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Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira e Wellington Trotta
Estudos Preliminares para uma Filosofia do Direito Rio de Janeiro 2006
Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira
Bacharel em Comunicação Social pela FACHA.
Bacharel em Filosofia pela UERJ.
Especialista e Mestre em Filosofia (Ética e Filosofia Política) pela UERJ
Bacharel em Direito pela UNESA.
Advogada e Professora de Filosofia Geral e Jurídica e Ética Geral Jurídica na Universidade Estácio de
Sá
Wellington Trotta
Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho
Bacharel em Filosofia pela UERJ.
Mestre em Ciência Política (Política e Epistemologia) pela UFRJ
Advogado e Professor de Filosofia Geral e
Jurídica e Ética Geral Jurídica na Universidade Estácio de Sá
Estudos Preliminares para uma Filosofia do Direito Rio de Janeiro 2006
Prezado (a) aluno (a):
Este material, elaborado e atualizado para o semestre 2006.1, constitui parte integrante do
trabalho Estudos preliminares para uma filosofia do direito que elaboramos em nossos estudos de
filosofia jurídico-política.
Assim, o texto foi adaptado exclusivamente para as aulas de Filosofia Geral e Jurídica.
Nesse sentido, ressaltamos que se destina tão somente para uso interno, sendo vedada a sua
utilização sem autorização expressa dos autores. A obra completa encontra-se depositada no
Ministério da Cultura/Fundação da Biblioteca Nacional.
Clara Maria C.B. de Oliveira
Wellington Trotta
ii
Sumário
Introdução ................................................................................................................................................ 5
1 - Considerações sobre a importância da Filosofia para o curso de Direito ........................................... 5
2 - Metodologia adotada para a disciplina ............................................................................................... 7
Parte I – O surgimento da Filosofia .......................................................................................................... 9
1 - O conceito de Filosofia ....................................................................................................................... 9
Parte II – A Filosofia é Grega ..................................................................................................................11
1 - Origem e Surgimento da Filosofia na Grécia Antiga ..........................................................................11
2 - A pólis grega e a consciência jurídica ................................................................................................12
3 - Os Filósofos pré-socráticos 9 .............................................................................................................14
4 - A ideia de justiça no período pré-socrático ........................................................................................16
5 - Democracia ateniense .......................................................................................................................19
6 - A Sofística e Sócrates .......................................................................................................................24
7 - Sócrates (469-399 a.C.) ....................................................................................................................27
Parte III - A justiça na concepção de Platão (428 – 347 a.C.)27 ..............................................................31
1 - Introdução ..........................................................................................................................................31
2 - Relação entre alma e cidade: o governo da razão ............................................................................34
2 - Organização Política da Cidade ........................................................................................................35
3 - A ideia de Justiça ...............................................................................................................................36
4 - O projeto platônico: uma utopia? .......................................................................................................38
Parte IV - A justiça na concepção de Aristóteles (384-322 a.C.) ............................................................40
1 - Introdução ..........................................................................................................................................40
2 - A política, a ética e a justiça. .............................................................................................................42
Parte V - A Filosofia no período medieval: Agostinho e Tomás de Aquino .............................................50
1 - O Mundo Medieval .............................................................................................................................50
2 - Aurélio de Agostinho ..........................................................................................................................52
iii
3 - Tomás de Aquino ...............................................................................................................................56
3.1 - Fé e Razão .................................................................................................................................59
3.2 - Justiça e Sinderesis....................................................................................................................61
Parte VI - O Jusnaturalismo ....................................................................................................................64
1 - O jusnaturalismo no pensamento antigo e medieval .........................................................................64
2 - Jusnaturalismo no pensamento renascentista e moderno .................................................................65
3 - Características do jusnaturalismo moderno .......................................................................................68
4 - As teorias do contrato e o direito natural ...........................................................................................69
5 - O conceito de jusnaturalismo segundo Guido Fassò .........................................................................70
6 - Proposta para uma distinção entre direito natural e direito positivo .................................................700
7 - Critérios de distinção entre direito natural e direito positivo ...............................................................71
8 - Hobbes, Locke e Rousseau. ..............................................................................................................73
8.1 - Thomas Hobbes (1588-1679) 87 .................................................................................................73
8.2 - John Locke (1632-1704) .............................................................................................................75
8.2.1 - Noção de direitos civis dentro da Constituição de 1988 ....................................................755
8.2.2 - Jusnaturalismo e a doutrina política de John Locke ............................................................76
8.2.3 – Poder Legislativo e as leis como premissas de segurança política ....................................79
9 - Jean-Jaques Rousseau (1712-1778) .................................................................................................80
Parte VII – A filosofia prática de Immanuel Kant (1724-1804) ................................................................83
1- Introdução ...........................................................................................................................................83
2 - O conceito de liberdade no pensamento de Kant ..............................................................................84
3 - A ética e o imperativo categórico .......................................................................................................85
4 - As leis da liberdade: as leis morais e as leis jurídicas .......................................................................87
5 - A liberdade interna e externa .............................................................................................................89
6 - A lei jurídica e a sociedade civil .........................................................................................................91
7 - A doutrina do Direito ..........................................................................................................................92
Parte VIII - O positivismo jurídico ............................................................................................................97
1 - A origem do termo positivismo ...........................................................................................................97
iv
2 - As escolas Jurídicas ..........................................................................................................................97
2.1 - A Escola Histórica ou Romântica ...............................................................................................97
2.2 - A polêmica entre Thibaut e Savigny sobre a codificação na Alemanha ...................................100
2.3 - O Código de Napoleão: Cambacérès e Portalis .......................................................................101
2.4 - A Escola de Exegese ...............................................................................................................102
3 - O surgimento do positivismo jurídico ...............................................................................................104
Parte IX - O pensamento de Hans Kelsen (1881-1973) ........................................................................108
1 – Introdução .......................................................................................................................................108
2 - Princípio metodológico fundamental ................................................................................................110
3 - Norma jurídica e proposição jurídica ...............................................................................................110
4 - Estrutura da norma jurídica..............................................................................................................111
5 - Validade e eficácia ...........................................................................................................................112
6 - Causalidade e imputação ................................................................................................................113
7 - Direito e Justiça ...............................................................................................................................114
Parte X - A teoria tridimensional do direito: Miguel Reale (1910 -). ......................................................115
1 - Introdução ........................................................................................................................................115
2 - A tridimensionalidade da lei .............................................................................................................116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................................119
5
Introdução
1 - Considerações sobre a importância da Filosofia para o curso de Direito
“Filosofia do Direito esclareça-se desde logo, não é disciplina jurídica, mas é a própria Filosofia enquanto voltada para uma ordem de realidade, que é a realidade jurídica”. (Reale, Miguel. Filosofia do Direito, p. 9)
Inúmeras vezes percebemos que a falta de interesse pela leitura contribui também para
certo desinteresse pelo estudo de Filosofia. Muitos alunos indagam: por que estudar Filosofia? Qual a
utilidade da Filosofia para o saber jurídico? Nem sempre as respostas que formulamos são
convincentes para esclarecer sobre a importância desse saber. A grande maioria dos alunos não tem
contato com a Filosofia durante o ensino fundamental ou médio, o que torna nossa tarefa ainda mais
árdua.
Poucos se interessam por essa disciplina, geralmente ministrada em apenas um semestre
nos primeiros períodos da faculdade. Todavia muitos profissionais do Direito descobrem a Filosofia em
meio aos seus estudos de pós-graduação e experimentam certa ansiedade em tentar suprir essa falta
em sua formação intelectual.
Nesse sentido, estudar Filosofia significa estudar os fundamentos da nossa própria
cultura. Nos dizeres de Werner Jaeger, “A Grécia representa, em face dos grandes povos do Oriente,
um progresso fundamental, um novo estádio em tudo o que se refere à vida dos homens na
comunidade. Esta se fundamenta em princípios completamente novos. Por mais elevadas que
julguemos as realizações artísticas, religiosas e políticas dos povos anteriores, a história daquilo a que
podemos com plena consciência chamar cultura só começa com os gregos”.1
É preciso ressaltar que a Filosofia oferece uma abordagem singular para tratar dos
problemas fundamentais da esfera jurídica que focalizam em particular a eterna “insociável–
sociabilidade humana”. Ademais, insisto em apontar que a história do pensamento filosófico, que se
inicia com o povo grego em torno do séc. VII a.C. constitui as bases de nossa própria cultura, ou seja,
configura o nosso ponto de partida, o início do pensamento racional.
Assim, ao lermos um texto filosófico colocamos em ação todo o nosso sistema de valores,
crenças e atitudes que refletem o grupo social em que se deu nossa socialização primária, isto é, o
grupo social em que fomos criados. Podemos então investigar como esse sistema de valores interfere
em nossa visão de mundo.
6
A Filosofia ensina a pensar. Ensina a formular perguntas. Ingressar nos estudos filosóficos
significa fundamentalmente assumir a árdua tarefa do autoconhecimento que implica transformar o seu
próprio olhar, muitas vezes desatento, em um olhar cuidadoso diante das obviedades. Significa abolir a
pressa e o imediatismo. A Filosofia significa a formação de uma atitude - uma atitude diante da vida.
Como disse Kant em suas lições de Lógica, filosofar é algo que só se pode aprender pelo exercício,
pelo uso próprio e autônomo da razão. Um exercício sem medo.
Estudar Filosofia significa estabelecer um diálogo com homens de notório saber, que
viveram em outras épocas. É bom conhecê-los e compreender seus costumes, pois assim podemos
avaliar mais lucidamente os nossos.2 Não posso deixar de mencionar as célebres palavras de
Descartes na obra Discurso do Método:
“a leitura de todos os bons livros é qual uma conversação com as pessoas mais
qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na
qual eles nos revelam tão-somente os melhores de seus pensamentos. (...) É bom saber algo dos
costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais sãmente e não pensemos que
tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão, como soem proceder aos que
nada viram”.
Mas gostaria de esclarecer preliminarmente que o estudo tem objetivo modesto.
Intencionalmente se cuidou de apresentar um estudo propedêutico que pudesse oferecer uma
exposição clara e indispensável, capaz de configurar um apoio útil para posteriores estudos de Filosofia
do Direito.
Estudaremos em cada época autores e doutrinas que julgamos essenciais para o estudo
jurídico. Procurou-se, ao expor, dar certa objetividade que não comprometa a verdadeira complexidade
da matéria. O ponto de partida está na noção geral da Filosofia como um saber teórico e universal que
fundamenta toda a cultura ocidental - nossa herança grega. Assim, desvelou-se imperativo observar os
diferentes problemas que a nossa cultura formulou ao longo dos tempos com suas respostas e
terminologias acerca do que consideravam relevantes.
Importa ressaltar que a história apresentada focaliza um dos ramos da Filosofia, em
particular, aquela que estuda a ideia de justiça. O estudo foi essencialmente motivado pelo desejo de
compreender melhor a relação direito-sociedade a partir do devir histórico.
7
Assim, as informações apresentadas fundamentam-se em textos clássicos e
comentadores consagrados pela tradição filosófica. Acredito não ter incorrido em erro grave, buscando
não esquecer que os filósofos foram/são homens e que, portanto estavam/estão sujeitos às influências
de sua origem, educação e época histórica. Não podemos esquecer que todo pensador está fadado a
ser de seu século a seu contentamento ou pesar. Assim, procura-se mostrar que os problemas
filosófico-jurídicos são tão antigos quanto as inquietações conscientes dos homens sobre o problema
da convivência humana e se desvelam nas concepções fundamentais acerca do Direito e do próprio
Estado, a partir das realidades que serviam como pano de fundo.
Historicamente, podemos afirmar que uma Filosofia do Direito se inicia com os tratados
sobre sociedade política: seja uma pólis, uma res publica, civitas ou um Estado. Tratados que versam
sobre leis, justiça, direito natural e que assinalam o caminho do pensamento filosófico. Muitas vezes
este estudo assume nomenclaturas diferenciadas como, por exemplo, juris naturalis scientia ou
Naturrecht als Philosophie des positiven rechts.3
A abordagem filosófica nos permite então vislumbrar que a transformação das sociedades
não implica a superação pura e simples do passado, mas antes ressalta que esse passado existe e
persiste no presente, condicionando o focar dos problemas, apresentando certas tendências, validando
algumas soluções, revelando a lógica imanente de certos pontos de vista ou atitudes intelectuais.
Algumas vezes apontando caminhos que não se devem mais seguir. Não podemos negar
a importância da Filosofia, porque a própria tentativa de impugná-la significa a essência do filosofar.
Enfim, o Direito, pertencendo à história humana, participa do seu desenrolar gradual e do seu
reencontro consigo mesmo. O que importa nesse caminhar é a indispensável tarefa crítica que a
Filosofia nos oferece, sem a qual cairíamos inevitavelmente num dogmatismo feroz ou num ceticismo
tedioso.
2 - Metodologia adotada para a disciplina
O aprimoramento contínuo oferecido pela Filosofia é importante ferramenta para o
desenvolvimento das habilidades necessárias ao advogado. Nesse sentido, torna-se fundamental a
leitura prévia dos pontos a serem tratados em cada aula. Recomenda-se que o aluno procure elaborar
um pequeno resumo dos pontos mais relevantes, buscando não copiar o texto, mas elaborar o seu
próprio texto sobre o que foi lido. Cada um deve procurar sua interpretação.
8
Nosso objetivo é ampliar a conscientização sobre o assunto e fornecer as condições de
possibilidade para uma reflexão filosófica sobre o direito. Por isso, indicamos outras leituras
interessantes e vídeos para que o estudante possa ampliar seus conhecimentos.
9
Parte I – O surgimento da Filosofia
1 - O conceito de Filosofia
Observando a advertência de Marilena Chauí, na obra Convite à Filosofia, a Filosofia não
se confunde com Ciência, mas pode ser entendida como reflexão crítica sobre os procedimentos e
conceitos científicos, pois se trata de um saber que é cronologicamente anterior ao surgimento da
própria ciência; não é tampouco Religião, antes, porém reflexão crítica sobre as origens e formas das
crenças religiosas; não se reduz à Arte, mas se vê diante de uma reflexão crítica sobre os conteúdos,
formas, significações da obra de arte e do trabalho artístico; também não pode ser considerada
Sociologia ou Psicologia, mas reflexão crítica sobre os fundamentos dessas ciências humanas de suma
importância; a Filosofia não se limita à esfera Política, mas se configura como possível interpretação,
compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder; por fim, Filosofia não é
História, e sim interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e no espaço
e a compreensão do que seja o próprio tempo. A Filosofia está na história, pois é produto cultural do
homem; um saber do homem situado. A Filosofia busca desvelar as interpretações e limites de cada
época.
Podemos então definir Filosofia como a fundamentação teórica e crítica dos
conhecimentos e práticas. Trata-se de um saber que se preocupa com as origens, causas, forma e o
conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e culturais. O seu olhar observa com cuidado as
transformações históricas, a consciência em suas várias modalidades: imaginação, percepção,
memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo, paixões;
busca compreender as ideias ou significados gerais: realidade, mundo, natureza, cultura, história,
subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição e mudança.
O olhar filosófico se afasta das crenças, sentimentos, prejuízos, preconceitos; toma
distância para interrogar e não aceitar as coisas passivamente. A Filosofia diz “não” ao senso comum,
para indagar “o que é”, “como é” e “por que é” – momentos que constituem o pensamento crítico. O seu
conhecimento se realiza por reflexão que se configura no momento em que o pensamento volta-se
para si mesmo a fim de indagar como é possível o próprio pensamento. Sua reflexão é radical,
porquanto investiga a raiz, a origem de tudo o que existe. A Filosofia é um pensamento sistemático, o
que significa dizer que não é mera opinião. Na verdade a Filosofia segue uma lógica de enunciados
precisos e rigorosos, opera com conceitos ou ideias obtidos por procedimentos de demonstração e
10
prova. Assim, a Filosofia enquanto saber exige fundamentação racional do que é enunciado e pensado
e deve formar um conjunto coerente de ideias racionalmente demonstráveis.
O valor da Filosofia encontra-se, portanto, na fundamentação ou justificação do trabalho
científico ao indagar “o que é o homem?”, “o que é vontade?”, “o que é a razão?”, “como nos tornamos
livres?”, “o que é um valor?”. Podemos estudar a Filosofia sob o aspecto temático ou podemos
compreendê-la a partir de seu devir histórico, ou seja, a história da Filosofia a partir de períodos que
exprimem e manifestam os problemas e as questões que, em cada época, os homens colocaram para
si mesmos e para o mundo. Será possível perceber que as transformações no modo de conhecer
ampliaram os campos de investigação do filósofo. Os períodos foram classificados pela tradição da
seguinte forma: Antiguidade Clássica ou Filosofia Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna e
Filosofia Contemporânea.
11
Parte II – A Filosofia é Grega
1 - Origem e Surgimento da Filosofia na Grécia Antiga
Como nos lembra o saudoso professor José Américo M. Pessanha, buscar as razões que
conduziram o homem grego a fazer filosofia permanece ainda como um problema aberto. O que teria
fundamentado esse novo saber? Por que na Grécia em torno do séc. VII ou VI a.C. surgiu uma nova
mentalidade diante do real? Quais os fatores que se entrecruzaram e propiciaram esse fenômeno em
uma cultura tão antiga? Sabe-se que na Grécia do séc. VI a C., Pitágoras de Samos denominou-se
“Filo-sophos” (amante do saber) e não de “sophos” (sábio).4 O que a tradição afirma é que a Filosofia
foi um fenômeno específico do povo grego e teve continuidade com os povos dominados por ele. A
Filosofia começa quando algo desperta a nossa admiração nos espantando e exigindo uma explicação
sobre a origem do mundo, dos povos e dos fenômenos da natureza sem recorrer aos mitos.
A palavra mito do grego mythos deriva de dois verbos, a saber: mytheyo que significa
contar, narrar, falar alguma coisa para outros e do verbo mytheo que significa conversar, contar,
anunciar, nomear, designar. Para o pensamento grego, mito significa um discurso ou narrativa que é
considerada verdadeira para seus ouvintes; há uma relação de confiabilidade que repousa sobre a
pessoa do narrador, ou melhor, uma crença na autoridade do narrador. O narrador é chamado de
poeta-rapsodo. Os gregos acreditavam que ele fora escolhido pelos deuses e que se tornara o
transmissor de suas mensagens. A palavra proferida pelo poeta-rapsodo, o mito, ganhava uma aura de
divindade, portanto inquestionável e incontestável.
Nesse sentido, a narrativa sobre a origem do mundo é denominada como uma genealogia
que pode ser cosmologia ou teogonia. Será cosmologia quando trata do nascimento e da organização
do mundo, pois gonia vem do verbo gennao e do substantivo genos assumindo, portanto, a ideia de
geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmo quer dizer mundo ordenado,
organizado. Teogonia é composta de gonia e theos que significa em grego: seres divinos, coisas
divinas, deuses. Será teogonia quando a narrativa tratar da origem dos deuses. A Filosofia é vista
como uma cosmologia, ou seja, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas
das transformações das coisas. Nesse sentido, as narrativas míticas foram reformuladas ou
transformadas numa explicação que não admite fabulações, contradições, mas sim um raciocínio
lógico, racional e coerente. A autoridade dessa nova explicação não decorre de uma pessoa física,
como no caso dos poetas-rapsodos, mas decorre do poder da razão. O seu surgimento marca uma
indagação que não aceita respostas mitológicas ou mágicas, respostas fazedoras de mitos.
12
Não podemos negar que a mitologia grega está intrinsecamente ligada à história da
civilização grega, por isso o relato mítico não resulta necessariamente da invenção individual, mas da
transmissão de uma cultura por várias gerações e da memória de um povo, o que ressalta a sua
dignidade e importância. Essa mitologia e seus mitos sobrevivem enquanto se mantiveram vivos na
vida cotidiana. Memória, oralidade e tradição são os componentes indispensáveis à sua sobrevivência.
A explicação filosófica, que é apenas uma explicação de homens que buscavam saber, se desenvolveu
paulatinamente e permaneceu por muito tempo concomitante às explicações mitológicas que
povoavam o imaginário do mundo antigo.
A Filosofia é, portanto, um fenômeno cultural grego. Surgiu no momento de estabilização
da sociedade grega, com o desenvolvimento da atividade comercial, com a consolidação das cidades-
estados (pólis); um progressivo enriquecimento do comércio e invenção da moeda; expansão marítima
que propiciou o surgimento de uma classe mercantil politicamente forte; a invenção do calendário; a
própria invenção da política e da ética.
Não há consenso sobre a origem da Filosofia na Grécia antiga, porque muitos estudiosos
entendem que os povos do oriente já sistematizavam doutrinas filosóficas antes dos filósofos gregos.
Todavia o que se observa frequentemente é que não se configurou nesses povos o que ocorreu na
Grécia: o processo de laicização do saber.
2 - A pólis grega e a consciência jurídica
Antes do advento da Pólis, a Grécia já apresentava uma vida social intensa. Um dos
poetas mais importantes, Homero, autor dos famosos poemas que narram as guerras troianas (1260 a
1250 a.C.), as aventuras de Aquiles e Ulisses (nome grego, Odisseu), nos desvela em suas narrativas
o entrecruzamento de história, ficção, lenda, mitos e deuses, que segundo pesquisadores exprimem
traços da cultura dórica. Os dórios oriundos do norte, séculos após as guerras troianas, construíram
uma sociedade marcadamente aristocrática que paulatinamente se transformou no que denominamos
civilização grega.
Este poeta foi considerado o pai da cultura grega por ter sido a sua obra fundamental para
a manutenção das tradições. Além de Homero, o pensamento de Hesíodo foi igualmente importante,
porquanto marca uma nova fase da cultura grega. Em sua obra denominada Teogonia descreve a
criação do mundo, dos deuses e a organização do Olimpo. Em Os trabalhos e Os Dias narra o mito das
cinco idades da humanidade.
13
Por ocasião do séc. VIII a.C., com a invenção da moeda cunhada, a região vivenciou um
renascimento das relações comerciais que resultou na ruína das antigas linhagens tribais e no
surgimento de pequenas cidades de agricultores e artesãos. Lentamente se formou uma nova
organização social e política que segundo ensina Jean-Pierre Vernant destacou a supremacia da
razão, do discurso. Assim, a palavra, o discurso e a razão ganharam grande relevo nessa nova
organização social. O discurso tornou-se condição fundamental para a participação nos assuntos
públicos. O que se configurou nesta etapa e a revolução política que ensejou o desenvolvimento do
pensamento humano. Assim, as discussões políticas, a elaboração das leis, deixaram de ser privilégio
da aristocracia grega.
Pólis do plural póleis é uma palavra grega que expressa a ideia de cidades-estados
autogovernadas do mundo grego. Cada pólis tinha suas próprias leis de cidadania, cunhagem de
moedas, costumes, festivais, ritos e etc. Como nos ensina Jaeger, a pólis configurou um novo momento
para os gregos, uma nova forma de convivência humana: “A polis é o centro principal a partir do qual
se organiza historicamente o período mais importante da evolução grega. Situa-se, por isso, no centro
de todas as considerações históricas”. 5 O termo pólis propiciou o aparecimento de palavras como
político e política e, consequentemente, a ideia de justiça. Com a palavra pólis surgiu também o direito
de cada cidadão de emitir, na esfera pública, o seu pensamento para possível debate. A pólis valorizou
o humano, a discussão, a persuasão, a força do melhor argumento, enfim o próprio desenvolvimento
do discurso.
O interesse pela justiça se desenvolveu na vida comunitária da pólis grega e assumiu um
grande valor que se afigurou com a mesma intensidade que a força exercida pelo ideal cavaleiresco
dos primeiros estágios da cultura grega aristocrática. A ideia do homem justo assume, portanto, um
novo locus no pensamento grego, porque aquele que cumpre a lei e se regula por ela, cumpre o seu
dever. Observa-se que a pólis introduz uma verdadeira revolução: “O ideal antigo e livre da Arete6
heróica dos heróis homéricos converte-se em rigoroso dever para com o Estado, ao qual todos os
cidadãos sem exceção estão submetidos, tal como são obrigados a respeitar a fronteira entre o próprio
e o alheio”. 7
Com a mudança das formas de vida, surgiu um novo espírito centrado na vida pública. A
literatura que testemunha a ideia de justiça como fundamento da sociedade humana estende-se desde
os tempos primitivos da epopéia, ou seja, do séc. VIII até o séc. VI a.C. Jaeger narra que nos tempos
homéricos “toda manifestação do direito ficou sem discussão na mão dos nobres que administravam a
justiça segundo a tradição, sem leis escritas. Contudo, o aumento da oposição entre os nobres e os
14
cidadãos livres, a qual deve ter surgido em consequência do enriquecimento dos cidadãos alheios à
nobreza, gerou facilmente o abuso político da magistratura e levou o povo a exigir leis escritas”. 8 A
reclamação universal pela justiça já figura claramente em Hesíodo e, é através dele, que a palavra
direito, dike, se converte no lema da luta entre as classes. Não temos fonte sobre a história da
codificação do direito grego, mas sabe-se ao menos que ao ser escrito assumia o caráter de
universalidade.
Em Homero temos o direito como Themis que etimologicamente significa lei. Segundo a
narrativa homérica, Zeus ofertava aos reis o cetro e themis. Esta última seria o símbolo da grandeza
cavaleiresca dos primitivos reis e nobres homéricos. Na prática, significava que os nobres dos tempos
patriarcais julgavam de acordo com a lei procedente de Zeus. As normas que constituíam as leis de
Zeus fundamentavam-se no direito consuetudinário e no próprio saber do homem daquela época.
3 - Os Filósofos pré-socráticos 9
Já compreendemos que o que consideramos por Grécia Antiga não constituiu um Estado
no sentido moderno do termo, mas o conjunto de várias cidades autônomas entre si denominadas
pólis. Sabe-se que o berço da Filosofia teria sido a pólis de Mileto, situada na Jônia, litoral ocidental da
Ásia menor. Nesta cidade temos três pensadores pré-socráticos de grande importância: Tales,
Anaximadro e Anaxímenes. Esses primeiros filósofos, denominados filósofos da Physis, tinham como
objetivo construir uma explicação racional e sistemática do universo. Tais pensadores buscavam a
matéria-prima, a arché, existente em todos os seres. Seria, portanto a busca pelo princípio originário,
ou substancial de todas as coisas.
Tales de Mileto foi considerado o primeiro filósofo e sabe-se que era estudioso de
astronomia e, segundo conta a tradição, chegou a prever um eclipse total do sol ocorrida em 28 de
maio de 585 a.C. Este pensador apresentou grande desempenho em geometria e demonstrou que
todos os ângulos inscritos no meio círculo são retos e que a soma dos ângulos internos de um triângulo
é igual a 180º. Ademais concluiu que o princípio originário era a água, porque somente a água
permanece a mesma a despeito de todas as transformações.
Anaximandro de Mileto acreditava que o princípio primordial transcendia os limites do
observável e que, portanto, estaria fora do alcance dos sentidos. Denominou de ápeiron, termo grego
que significa o indeterminado, o infinito a massa geradora de todos os seres.
15
Anaxímenes de Mileto admitia que a origem de todas as coisas fosse realmente algo
indeterminado, mas não o concebia como inalcançável aos sentidos. Concluiu, portanto que o ar seria
o princípio de todas as coisas, o elemento invisível, imponderável e, no entanto, observável.
Pitágoras de Samos viveu na ilha de Samos e posteriormente deslocou-se para Crotona,
localizada no sul da Itália, região conhecida pelo nome Magna Grécia. Nesta região fundou uma escola
filosófica preocupada com questões políticas e religiosas. Em seu modo de ver, a essência de todas as
coisas residia nos números que representavam a ordem e a harmonia. A arché teria uma estrutura
matemática que configuraria a origem do finito e infinito, par e ímpar, multiplicidade, unidade etc. Para
ele, ao fim e a ao cabo, a diferença entre os seres repousava sobre os números. Suas contribuições
foram numerosas, dentre elas: o teorema de Pitágoras, a crença na imortalidade da alma e na
reencarnação, o rigor moral etc.
Heráclito de Éfeso foi considerado um dos mais importantes filósofos pré-socráticos.
Sabe-se que floresceu pelo ano 500 a.C. e se tornou o representante do pensamento dialético.
Heráclito concebeu o mundo como dinâmico, em inesgotável transformação. Sua escola filosófica foi
denominada de mobilista, pois para ele a vida era fluxo constante, impulsionado pela luta de forças
contrárias. Acreditava que a luta dos contrários seria o princípio de todas as coisas e por meio dessa
luta o mundo se modifica e evolui. Acreditava que o fogo era a arché. Seu fragmento mais conhecido
menciona que um homem não pode banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio.
Parmênides de Eléia (510-470 a.C.) foi um grande opositor de Heráclito. Acreditava que o
ser era eterno, único, imóvel e ilimitado. Essa era a ótica da razão, da essência, a via a ser buscada
pela filosofia. Por outro lado, a ótica da aparência, da doxa, não desvela a verdade, mas em função do
movimento ou vir-a-ser da realidade denota apenas uma aparência enganosa. Parmênides afirmou
que: o ser é; o não ser não é. Acreditou que o mundo é o lugar das aparências, o mundo da ilusão e
que somente pela razão, no plano lógico, compreendemos a essência da realidade. Para Parmênides o
ser é e o não ser não é.
Zenão de Eléia (488-430 a.C.), discípulo de Parmênides, buscou argumentos capazes de
legitimar as afirmações de seu mestre e fortaleceu a ideia de que a noção de movimento era
contraditória. O mais célebre foi o denominado “Aquiles” que revela o complexo estudo dos conceitos
de movimento, espaço, tempo e infinito. Neste argumento Zenão nega o movimento da seguinte
maneira: afirma que o mais lento em uma corrida jamais será alcançado pelo mais rápido, se e
somente se, o mais lento sair bem à frente, porque o mais rápido terá que primeiro alcançar o ponto de
16
onde partiu o mais lento que, por sua vez, continuaria se movendo. Para entendermos melhor esse
paradoxo de Zenão é preciso compreender o exemplo que nos forneceu e que resumidamente é o
seguinte: em uma determinada corrida, se a tartaruga (mais lenta) saísse à frente de Aquiles (herói);
este herói não conseguiria alcançá-la em face da vantagem que a tartaruga obteve por ocasião da
largada.
Empédocles de Agrigento (490-430 a.C.) tentou conciliar as ideias de Parmênides com o
pensamento de Heráclito, ou seja, conciliar a ideia de essência imutável obtida pela razão com a ideia
de movimento, o vir-a-ser, captado pelos sentidos. Acreditou que o elemento primordial era constituído
por quatro elementos: o fogo, a terra, a água e o ar. Tais elementos seriam misturados de modos
diversos a partir de dois princípios universais, a saber: de um lado, o amor, personificando a ideia de
força de atração ou harmonização das coisas; de outro o ódio responsável pela desagregação ou
separação das coisas.
4 - A ideia de justiça no período pré-socrático
Para estudiosos como W. Jaeger e R. Mondolfo, a preocupação dos primeiros filósofos
teria sido com o universo, ou seja, os pré-socráticos inauguraram o pensamento filosófico quando
iniciaram um estudo racional sobre o homem, a vida e a Natureza. Outros estudiosos do pensamento
grego revisaram essa tese e concluíram que certa reflexão acerca do mundo dos homens teria
precedido a reflexão sobre o mundo físico.
Truyol y Serra apresenta, nesse sentido, o seguinte argumento: “isto é verdade se
tivermos em conta a primitiva concepção helênica do mundo e da vida em sua totalidade, ou seja,
incluindo as teogonias míticas. Efectivamente, estas, fundadas num politeísmo antropomórfico,
concebem os problemas cósmicos como problemas humanos, o que traz consigo a personificação dos
elementos e das forças naturais e a apreensão das suas relações segundo a natureza das relações
entre os homens”. 10 A filosofia do mundo natural precisou trabalhar com categorias nascidas da
experiência da vida humana, de uma forma ou de outra expressa na literatura disponível à época, a
mitologia. São categorias cuja origem é social: a noção de lei, por exemplo. A imagem da comunidade
foi útil para a representação da Natureza. O enigma que perturbava o espírito dos pensadores pré-
socráticos era o movimento, a mudança, o que justifica a necessidade de buscar um elemento
primordial que permanecesse sempre o mesmo.
17
O homem desta época vivia em uma comunidade autárquica e sagrada que configurava o
microcosmo, a pólis. Cada cidade apresentava independência jurídico-política. Protegida por seus
deuses baseava-se em normas tradicionais de fundamento religioso, themistes, regulamentações que
paulatinamente constituíram o nomos. Podemos entender por nomos a ideia de ordem da pólis, ou
seja, as regras morais e os preceitos jurídicos indistintamente misturados. O cuidado com os valores
culturais de cada pólis garantia uma convivência pacífica. Não fica difícil perceber que a ideia de justiça
significava garantir essa convivência harmônica a partir de uma repressão a tudo que pudesse
comprometer a ordem estabelecida. Esse sentido seria alargado diante das novas necessidades que a
vida comunitária exigiria.
Truyol y Serra aponta que Anaximandro teria transposto ou deslocado a ideia de justiça da
pólis para o universo. 11 Este seria uma grande pólis, ou seja, uma grande comunidade sujeita a uma
lei ordenadora. Ele afirma a existência de uma justiça cósmica de caráter imanente que preside a
geração e a dissolução dos seres particulares. Para este autor, ideias semelhantes seriam usadas mais
tarde por Parmênides de Eléia e Empédocles de Agrigento nos poemas que cada qual escreveu,
ambos intitulados Acerca da Natureza. Parmênides teria personificado a Justiça nas deusas Themis e
Dike entre o dia e a noite e entre a verdade e a opinião. A justiça aparece no seu poema como um
princípio estático que assegura a imutabilidade do ser que ele afirma com vigor: o ser é e o não ser -
não é. Empédocles usa a ideia de justiça para tentar uma explicação do universo; o amor e o ódio
enquanto forças originais fazem e desfazem as coisas; a lei estende-se sem alteração.
Sabe-se que Pitágoras e Heráclito apresentaram considerações mais explícitas sobre a
vida social. Com Pitágoras ganha relevo a preocupação ética e religiosa. Cresce o interesse pela vida
humana e individual e a Filosofia se configura na possibilidade de uma purificação interior. 12 Pitágoras
antecipa também a relação entre Filosofia e política.
Os pitagóricos foram os primeiros a organizar uma teoria da justiça no interior de sua
doutrina dos números. Deste modo, conceberam os números como essência das coisas e expressão
de harmonia e regularidade no sentido específico de totalidade ordenada. Essa harmonia, transposta
para a esfera humana, assume o sentido de uma correlação de condutas. Os pitagóricos formularam
uma definição de justiça como “aquilo que alguém sofre por algo” – a justiça como uma relação
aritmética de igualdade entre dois termos. Esta igualdade aparece como elemento essencial da justiça.
Simbolizavam a justiça nos números 4 e 9, porque a multiplicação de um número par (2) por ele
mesmo daria 4; a multiplicação de um número ímpar (3) por ele mesmo alcançaria o número 9. A
justiça nessa concepção funda-se na ordem natural presidida pelo número.
18
Heráclito de Éfeso associa justiça e ordem universal. Como concebeu a realidade em
perpétuo devir; afirmou ainda que o devir nasce dos contrastes e que este surge da luta, a justiça é
luta. Todavia esse perpétuo fluir é presidido por uma lei eterna e universal, o logos. Este logos seria o
responsável pela harmonia invisível entre os opostos. Esta unidade realizada pelo logos manifesta-se
no fogo. Heráclito evoca as Erínias, personagens da mitologia que eram servidoras de Dike, que
segundo a narrativa mítica, forçavam o Sol a voltar à órbita se acaso se afastassem. Por analogia o
logos estaria oferecendo ao homem a norma para a ação correta. Todos os homens participam dessa
ordem, embora nem todos a revelem em sua conduta. Essa lei única e divina alimenta a lei humana,
conferindo o seu sentido de sagrado e justificando qualquer sacrifício em seu nome.
Importa perceber que a moralidade, tanto para os pitagóricos quanto para Heráclito,
fundamenta-se numa lei natural. Na fase pré-socrática houve, portanto, um jusnaturalismo cosmológico
de cunho panteísta. 13 Essa filosofia natural pré-socrática conferiu validade à concepção helênica de
justo percebida em Hesíodo e Homero. Sabe-se que a ideia de igualdade na reciprocidade,
apresentada na narrativa hesiódica, superou o sentido de autoridade expresso nos poemas homéricos
enquanto sentido da justiça. Esse predomínio da concepção de Hesíodo aconteceu por ocasião de
profundas transformações políticas e sociais nos séc. VII e VI a.C. que conduziu às codificações e
destacou a figura de Sólon.
Sólon, legislador e poeta, anunciou em suas Elegias o conceito de eunomia, ou seja, a
ordem equilibrada, fundada na justiça. Sólon observou a necessidade de homogeneidade social que
excluiria as desigualdades excessivas. A cidade deve ser comum a todos e todos devem se interessar
por sua conservação, o que configuraria o que ele entendeu por eunomia. Sólon fustigou a hybris como
a máxima negação da ordem.
No âmbito literário, os poetas trágicos como Ésquilo e Sófocles foram os herdeiros dessa
concepção de justiça pré-socrática. A lei representa o equilíbrio e a hybris a desmedida. A negação da
lei deve ser resolvida com uma sanção conforme o princípio que conhecemos pelo nome de talião:
“quem praticou a violência sofrerá violência” (Ésquilo, Agamémnon). Resgatar o equilíbrio entre o crime
e o castigo é função da pólis. A ideia de retribuição está fundada na mais antiga tradição e configura
uma legalidade cósmica que para os homens assumia o caráter de férreo destino.
Sófocles acrescenta um problema novo: o do antagonismo entre as leis humanas e as leis
divinas. Este conflito constitui o núcleo dramático da tragédia Antígona. Ao apresentar esse conflito,
19
Sófocles conduz-nos, de certo modo, à filosofia jurídica da sofística, todavia reconheça e enfatize o
caráter sagrado das leis não escritas. 14
Heródoto de Halicarnasso transpôs para o âmbito da história a concepção de justiça
oferecida pela tradição. Trata-se de uma concepção religiosa de justiça em que os deuses ansiosos por
justiça procuram manter os homens longe da demasia e dos excessos do orgulho, longe da desmedida.
Esse pensador considerado o “pai da história” apresenta um novo problema: a diversidade das
convicções e instituições humanas, ou seja, a relatividade dos costumes, a não universalidade das leis
entre as pólis. Este pensador nos conduz à problemática da sofística.
Segundo Aristóteles, Demócrito de Abdera (460-370 a.C.) foi o último dos pré-socráticos,
ou filósofos da physis. A importância de mencioná-lo separado dos demais é que ele inaugura o que
denominamos de período sistemático da filosofia helênica que, por sua vez, culminará no pensamento
de Platão e Aristóteles. Um estudo através dos fragmentos deste pensador nos permite perceber que
sua ética apresenta um desenvolvimento independente de sua filosofia natural. Sabemos que
Demócrito professou um materialismo mecanicista que considerava os átomos, móveis no vazio, os
elementos últimos da realidade. A tradição atribui a Leucipo a inspiração deste pensamento que a rigor
despoja o universo de qualquer concepção divina. Sua ética apresenta o que podemos denominar de
hedonismo esclarecido, ou seja, concebia a felicidade na moderação, na preeminência da alma sobre
os sentidos, sua meta era a eutimia que significava um estado de alma sereno e alegre, de
tranquilidade e equilíbrio. O seu individualismo se refletia na esfera da família e, nesse sentido,
combatia o casamento e a paternidade, porque acreditava que tais coisas perturbavam o espírito. Essa
concepção não se estendia ao âmbito político, pois compreendia que a prosperidade do indivíduo está
vinculada à vida na pólis. Daí preocupar-se com questões sobre o bom governo e sobre normas. Como
Sócrates, Demócrito inclina-se para uma aristocracia vinculada ao conceito de sabedoria: em seu modo
de ver os melhores deveriam governar.
5 - Democracia ateniense
A democracia ateniense não foi obra de um único homem, entenda-se aqui Clístenes,
sabe-se que esteve presente pelo menos por dois séculos de existência (508 a 322) no mundo grego
ateniense. Tradicionalmente, comentamos que Clístenes desenvolveu um sistema de democracia, em
508-7, entendido como isonomia, ou seja, igualdade perante a lei, mas observa-se que a palavra
democracia foi inventada tardiamente. Demokratía é considerada uma palavra ambígua no universo
ateniense, ou melhor, grego; literalmente krátos significa poder soberano do demos. Demos tinha
20
acepções diversas na Atenas do séc. V e poderia significar o povo como um todo; o conjunto dos
cidadãos adultos do sexo masculino; a maioria pobre do corpo dos cidadãos, ou ainda uma
denominação dada a pequenas áreas dentro da pólis (espécie de divisão em bairros ou comunidades).
Demokatía poderia significar também constituição, ou o próprio povo de Atenas na ekklesía.
Demokratía poderia ser vista como o governo do povo como um todo ou, para um opositor, como o
governo das pessoas comuns que estabelecem uma ditadura da maioria sobre os melhores cidadãos.
As fontes fidedignas não revelam quem inventou a palavra demokatía ou quando começou
a ser efetivamente utilizada, todavia acredita-se em certa aparição indireta ou virtual, registrada em
Ésquilo, na tragédia A suplicante, a partir de um equivalente poético: demou kratousa kheir, que
significa “a mão soberana do demos”. A palavra demokratía somente aparece em Histórias de
Heródoto e na Constituição de Atenas de Xenofonte, aproximadamente em 420 a.C. Podemos afirmar
que os ideais democráticos não eram aceitos por todos, havia inúmeros adversários. Muitos dos seus
opositores defendiam um retorno ao sentido de democracia de Sólon, outros pretendiam uma volta à
forma oferecida por Clístenes e alguns defendiam ferozmente uma oligarquia. A teoria democrática tal
como se configurou em Atenas viu-se diante da tarefa de uma reconstrução, sobretudo em face das
críticas elaboradas por Aristóteles na obra Política.
O período mais conhecido ou famoso da demokratía ateniense é o da segunda metade do
século V, todavia as fontes disponíveis que tratam do tema remontam ao século IV, o que compromete
seu estudo, visto que esse sistema aperfeiçoou-se ao longo do tempo. A democracia descrita por
Aristóteles na obra Constituição de Atenas (Athenaion Politeía) não é, portanto, a democracia de
Péricles15.
A democracia ateniense difere da nossa democracia representativa, as decisões eram
tomadas e executadas diretamente pelos cidadãos de Atenas. Duas instituições eram fundamentais
para configurar a imediatez dos procedimentos políticos de Atenas: a ekklesia (Assembleia) e a boulé
(conselho dos 500) com seu subcomitê de prutáneis (presidentes). Segundo especialistas, todos os
problemas de Estado eram observados primeiramente pelos cinquenta prutáneis que viviam em
constante vigilância. Se constatado a relevância do problema os prutáneis convocavam uma reunião
plenária da boulé dos 500 e, se necessário, convocar-se-ía a ekklesia, órgão encarregado da tomada
de decisões da democracia direta ateniense. A palavra ekklesia significa literalmente: “um grupo que é
chamado” e que se reunia em uma colina chamada Pnix a sudoeste da agorá que era o centro cívico
de Atenas.
21
Os cidadãos de mais de dezoito anos que estivessem inscritos nos registros do seu demo
(comunidade) poderiam integrar a ekklesia. O assunto principal era a política externa. Este órgão não
só deliberava sobre as políticas a serem seguidas, como também legislava. Tal função foi
posteriormente delegada a um órgão menor de legisladores (nomothétai), por volta de 403 a.C. De
acordo com os relatos de Aristóteles, na década de 320 a ekklesia realizava quatro reuniões fixas em
cada um dos meses que constituíam os dez meses civis. A primeira reunião era denominada de
ekklesia soberana (Kúria). Cada participante era inicialmente verificado, em seguida iniciavam as
oferendas de purificação, pronunciavam maldições contra traidores e, a partir de então, começavam as
sessões. Sabe-se que uma reunião ordinária durava menos do que um dia.
Outro fator importante a ser destacado é que na prática nem todos os cidadãos
participavam da ekklesia ou poderiam subir à tribuna. Acreditam alguns historiadores que a população
de cidadãos de Atenas flutuava em torno de 20 ou 50 mil pessoas, mas que pelo menos 5 mil
efetivamente participavam da ekklesia. Tanto o local não comportava um grande número de cidadãos
como muitos não se sentiam atraídos pelo debate ou ainda viviam desmotivados pela longa distância
que teriam que percorrer dos demos até a Pnix. Nesse sentido, no séc. IV introduziram uma espécie de
pagamento para compensar o comparecimento que implicava perda de horas de trabalho. Por razões
não difíceis de compreender, entre 400 e 330 a Pnix sofreu reformas para acomodar um número cada
vez crescente de cidadãos alcançando o quorum de 13 mil participantes.
A ekklesia exigia qualidades especiais em seus oradores que lançavam mão da
persuasão para obter êxito em relação aos seus interesses. Essa habilidade imperiosa para o cidadão
ateniense proporcionou um grande desenvolvimento da educação sofística. Os cidadãos que falam à
tribuna eram denominados de rhetores, ou seja, oradores ou ainda politeuómenoi, os políticos.
Os rhetores falavam na ekklesia na qualidade de líderes de pequenos grupos de políticos
ou pessoas com ideias parecidas (não confundir com o que chamamos hodiernamente de partidos
políticos). Eram agrupamentos informais, onde aquele que expressava com maior clareza suas ideias,
frequentemente tornava-se o porta-voz. Alguns desses oradores foram também denominados de
demagogós que significa literalmente, “o condutor do demos“ 16.
A condução da justiça em Atenas era responsabilidade dos thesmothétai, seis
funcionários. A democracia ateniense implicava também uma grande participação do cidadão nos
tribunais. Em Atenas, ou melhor, na antiga Grécia não havia a separação dos poderes. Foi Aristóteles
22
em sua obra Política que ressaltou que o cidadão de uma democracia não só participava da boulé e
ekklesia, como também, participava nos tribunais.
O surgimento de um tribunal popular como recurso contra as decisões das autoridades se
deu com Sólon em 594, denominado de Eliaia. Após 462-61, todos os tribunais do júri passaram a
figurar como Eliaia, não só como fase recursal, mas como primeira instância. Tais tribunais eram
constituídos por jurados em um número que poderia variar entre 201 a 2.501 membros e, nesse
sentido, também foram chamados de dikastéria. Sabe-se que o júri era escolhido de acordo com a
necessidade a partir de uma lista anual de 6 mil jurados e, mais tarde no séc. IV, eram escolhidos
dentre os que se ofereciam para tal. Observa Peter V. Jones, na obra supramencionada que o termo
“jurado” é um termo inapropriado para designar os dikastai, pois não havia juízes no sentido moderno,
mas “jurados” que eram ao mesmo tempo juízes. Os dikastai eram pagos por cada dia de sessão;
pagamento que fora introduzido por Péricles.17 Pode-se presumir que o cidadão que comparecia para
ser “jurado” era o mesmo que tinha o hábito de comparecer às ekklesias.
Muitas vezes a ekklesia funcionava como tribunal. Observa-se ainda a inexistência de um
órgão que funcionasse como a promotoria pública ou uma força policial específica. O procedimento
específico desses órgãos ficava a cargo da iniciativa particular, embora houvesse a distinção entre
casos públicos e casos particulares. Neste último somente a parte ofendida poderia mover a ação que
por sua vez era denominada de díke. Nos casos públicos a iniciativa ficava a cargo de quem quisesse
emitir uma intimação, graphé, intimação por escrito. O homicídio, por exemplo, era considerado como
díke por prejudicar o papel da família. Se um orador na ekklesia apresentasse uma proposta
inconstitucional, configuraria um caso público para quem quisesse salvaguardar a democracia.
Rumores de subversão e problemas de desafeto político também possibilitariam uma graphé. Uma vez
emitida a intimação, graphé paranómom18, ao orador com proposta de lei inconstitucional, esta ficaria
suspensa até o julgamento e, sendo considerado culpado, pagaria uma multa e seu projeto seria
imediatamente cancelado. Em Atenas, o povo como jurado julgava o próprio povo na ekklesia o que
desvela, em certo sentido, o princípio da responsabilidade democrática alcançando a todos.
Na obra Apologia de Sócrates que narra a versão platônica sobre o julgamento de
Sócrates condenado à morte em 399, percebemos as peculiaridades do tribunal ateniense. Não havia
advogados; os querelantes falavam em causa própria, sem regras para apresentação de provas e sem
juiz. As testemunhas embora fundamentais não eram ouvidas pelas duas partes e os jurados reagiam
conforme suas emoções e preconceitos morais. Os jurados votavam imediatamente após a fala dos
querelantes, sem fazer uso de recintos reservados ou de conselhos de juiz. O testemunho de escravos
23
somente poderia ser aceito se obtido sob tortura, porque eram considerados objetos sem alma, coisas.
Na verdade, o escravo era tido como um bem familiar valioso para o senhor que preferia não submetê-
lo a qualquer tortura, o que contribuiu como argumento válido para a limitação de testemunhos
considerados pouco confiáveis.
Sabe-se que no séc. IV havia o recurso da arbitragem. Ambas as partes concordavam
com a participação de árbitros particulares e se comprometiam a aceitar as decisões. Segundo os
historiadores, as partes poderiam invocar a arbitragem a qualquer tempo em um processo civil. Se tal
método não fosse eficaz, procedia-se a uma intimação. A parte ofendida se dirigia à agorá e verificava
se as leis que lá estavam expostas apoiavam seus interesses e qual o procedimento adequado à sua
causa. Inicialmente, a intimação era feita verbalmente, o réu comunicado perante testemunhas deveria
apresentar-se ao árkhon, conselho judiciário em dia estabelecido. Na data prevista tal conselho decidia
sobre a possibilidade ou não do processo. Se viável, a queixa era registrada por escrito e ambas as
partes depositavam um sinal referente as custas que o perdedor pagava por inteiro após o julgamento.
O conselho judiciário fixava um dia para a audiência e determinava que uma cópia da queixa fosse
exposta publicamente na agorá.
No caso de uma dike a aplicação da sentença era função do ofendido. A recusa repetida a
fazer um acerto ou acordo poderia ensejar mais processos e até mesmo a perda dos direitos civis
(atímia). Se o condenado se recusasse a pagar a quantia estipulada, o querelante vencedor poderia
apossar-se de suas propriedades no valor referente à quantia imposta.
Os julgamentos em uma graphé e as sentenças de morte proferidas eram atribuições de
funcionários da cidade. Atenas tinha um grande número de funcionários com mandatos anuais, embora
a cidade não possuísse uma burocracia, no sentido moderno do termo. Segundo Aristóteles, na
segunda metade do séc. V, Atenas contava com setecentos funcionários, o que ressalta o sentido
democrático na oportunidade de ocupar cargos públicos por turnos.
A situação de atimía equivalia a estar fora da lei e, nesse sentido, o homem na condição
de átimos poderia ser morto ou roubado sem ter direito à reparação legal. A atimía não acarretava a
perda das propriedades ou o exílio, antes, porém equiparava-se à morte no sentido político, a privação
absoluta dos direitos civis: falar na ekklesia, participar nos tribunais, integrar a boulé, entrar nos
templos e na agorá. Em geral, a perda dos direitos civis era de caráter perpétuo, sobretudo nos casos
considerados particularmente graves e era até mesmo dirigida aos descendentes. Peter V. Jones nos
relata um caso curioso, o de Andócides, em 415 a.C., que sofreu a perda parcial dos direitos civis por
24
se envolver na profanação dos Mistérios de Elêusis. Segundo seus relatos, tal sentença foi revogada
por ocasião de uma anistia geral extraordinária concedida em 403. 19
Enfim, Atenas foi a pólis grega que mais contribuiu intelectualmente para o
desenvolvimento das ciências e artes. A sua importância envolve a matemática, a retórica, a história, a
ética, a política, a linguística, a lógica e as artes (poesia, escultura e arquitetura). Seus pensadores
desenvolveram teorias que permaneceram válidas durante milhares de anos e algumas perduram até
hoje.
6 - A Sofística e Sócrates
O século V vivenciou um esplêndido apogeu cultural na cidade de Atenas, considerada a
capital intelectual do mundo helênico. Esta cidade-estado experimentou um verdadeiro
entrecruzamento de pensamentos filosóficos que contribuiu para a passagem do período cosmológico
para a fase antropológica. Foi nesse contexto que surgiram os sofistas. A sofística se tornara uma
exigência da própria democracia ateniense: formar cidadãos capazes de brilhar nas assembleias. Estes
senhores cultivaram a retórica, conferindo maior importância à argumentação - a arte de convencer por
meio do discurso em detrimento da busca pela Verdade.
Muitos estudiosos denominaram esta fase como o Iluminismo grego, pois a tendência à
retórica baseava-se em certo racionalismo e um espírito crítico que calcava aos pés a tradição
helênica. Ressaltaram a contraposição entre o natural e o convencional, ou seja, é o costume, o arbítrio
dos homens que estabelece o que é justo ou injusto, certo ou errado. Tais homens causaram receio e
escândalo que se refletiram nas comédias de Aristófanes e nos diálogos de Platão.
Todas as informações que temos dos sofistas foram obtidas através dos diálogos de
Platão, seu inimigo declarado. O único estudo da sofística repousa na existência de alguns fragmentos
ou fontes indiretas, além de não constituir uma unidade sistemática. Nos diálogos de Platão os sofistas
figuram como os interlocutores de Sócrates. Nesse sentido, resta-nos a máxima prudência possível ao
tentar compreendê-los.
Mas o que fizeram tais homens? Os sofistas frequentemente criticavam o fundamento que
conferia validade às leis e costumes da tradição. Atacavam o aspecto sagrado da tradição helênica.
Eles observavam a diversidade cultural de sua época e percebiam a mudança na esfera das
25
instituições. A lei e os costumes assumiam um caráter essencialmente humano, convencional,
vinculado à vontade dos homens.
Assim como nos pensadores jônicos, o ponto de partida dos sofistas foi o movimento e a
procura de uma realidade única capaz de permanecer idêntica a si mesma. Nesse sentido, surgiu com
os sofistas a dicotomia natureza (physis) e lei (nomos) ou convenção. A moralidade passa a estar
desligada da ordem natural e o interesse pela conveniência assume o status de pilares da vida social.
Trasímaco da Calcedônia que figura como personagem na República, livro I, afirmava que
a origem do nomos estaria no interesse, interesse do mais forte. Cada governo promulga leis que lhe
são favoráveis. O justo é o que interessa ao governo estabelecido. (Trasímaco pretende descrever
aquilo que de fato acontecia)
Cálicles, personagem do diálogo Górgias de Platão, concebe o nomos como estabelecido
em benefício da massa dos fracos como um limite ao excesso de superioridade dos mais fortes.
Cálicles confundia os mais fortes com os melhores. Em seu modo de ver, a injustiça consistiria em
alguém se destacar dos demais. Há na sua doutrina uma clara oposição entre um estado de natureza e
o estado civil, regido por um direito positivo que limita a liberdade natural. O seu conceito de natureza
se reduz aos instintos irracionais primitivos e espontâneos no homem.
A oposição entre natureza e convenção criou as condições de possibilidades para uma
crítica das instituições positivas. Nesse sentido, atacaram os privilégios de cidadania e de classe, a
escravidão, a subordinação da mulher ao marido20 e a discriminação entre gregos e bárbaros. Sabe-se
que um sofista chamado Antifonte, escrevera a obra Sobre a Verdade da qual restou apenas um
fragmento, afirmava a igualdade natural de todos os homens, asseverando que as leis estabelecidas
pelos homens eram leis contrárias à natureza que, na verdade, deveriam conduzir a um igualitarismo
democrático. Em outro tratado atribuído a Antifonte, Sobre a Concórdia, os fragmentos que se
conservaram afirmavam a obediência às leis fundamentadas em um egoísmo enraizado numa
educação criadora de hábitos socialmente aceitos.
Crítias, parente de Platão e que fora membro do governo tirânico dos Trinta em Atenas,
atribuiu a uma argúcia a origem da obediência às leis e a crença nos deuses. No seu modo de ver
como um crime só pode ser punido se a infração for conhecida, o homem teria inventado um ser divino
que tudo vê, conhecedor das infrações mais ocultas.
26
Outro sofista importante foi Protágoras de Abdera que, ao lado de Górgias de Leontini,
figura como um dos mais antigos representantes da sofística. Sabe-se que Protágoras fora amigo de
Péricles e que recebera deste a tarefa de elaborar a redação das leis da colônia ateniense de Turioi, no
Sul da Itália, por volta de 444 ou 443 a.C. Observa-se também que Platão tratou-o de forma
diferenciada. No mito platônico, Protágoras fundamenta a coesão social nas virtudes do pudor e da
justiça, ofertadas aos homens por Zeus. Como os homens viviam em incessantes lutas, Zeus concedeu
o dom que iria permitir a edificação das cidades. Esse mito retrata o problema do desenvolvimento das
aptidões sociais a partir de uma dura e lenta aquisição do gênero humano prevalecendo sobre as
tendências egoístas. Para Protágoras quem não possuir as duas virtudes mencionadas deveria ser
eliminado da sociedade, justificando desse modo a supressão dos insociáveis mediante uma teoria da
pena como função intimidatória em nome da defesa social. Há a crença numa virtude social média que
o esforço pedagógico seria capaz de aperfeiçoar – certo otimismo antropológico. Neste sofista
encontramos um relativismo ético que converte em regra desejável a utilidade social. Protágoras
transforma o nomos em consequência de um acordo de todos os membros da sociedade. O justo será
o conveniente em cada caso, desvelando assim, certo pragmatismo. Protágoras configurou também o
momento de um relativismo gnosiológico expresso em sua mais famosa frase: “o homem é a medida
de todas as coisas: das que são enquanto são; das que não são, enquanto não são”.
A sofística contribuiu para a reflexão filosófica na medida em que estimulou os debates
sobre os valores partilhados e introduziu novas ideias. O racionalismo que marca suas considerações
críticas inspirou projetos de reformas institucionais que conduziram à formulação de constituições
supostamente perfeitas. Para alguns estudiosos do helenismo, esse teria sido o momento do
surgimento de um gênero literário que para outros só aconteceria muito mais tarde: a utopia. As duas
primeiras utopias seriam as de Hipodamo de Mileto e de Fáleas da Calcedônia que foram analisadas
por Aristóteles no livro II da Política.
A diversidade nas instituições que inspirara os sofistas contribuiu para o surgimento de
várias formas de governo. A pólis era a maneira comum de organização, mas o regime variava
conforme os indivíduos ou grupos que detinham o poder. Os gregos denominaram de tiranos, os
homens que alcançavam o poder de forma irregular, a palavra não tinha o sentido pejorativo que
atribuímos.
O mundo grego vivenciou a monarquia, o surgimento de uma classe média com a
passagem de uma economia natural para uma de cunho mercantil, oligarquias, tiranias e democracia
direta que desembocou em demagogia. Heródoto, no livro III, de sua obra História, oferece-nos uma
27
ficção em que há uma séria discussão sobre as diversas formas políticas de governo. Heródoto as
observa e as classifica de acordo com o exercício do poder: monarquia, o poder supremo pertence a
um indivíduo; oligarquia, o poder pertence a um grupo reduzido de homens que receberam uma
educação específica; isonomia, que pertence ao conjunto dos cidadãos, o demos. Esta classificação
será sistematicamente observada por Platão, no diálogo O Político e, em Aristóteles, na obra Política.
Na época que estamos a considerar dois nomes são importantes para o debate sobre as
formas de governo: Isócrates e Demóstenes. Ambos trataram de um problema fundamental à
Democracia: a chefia nesse regime democrático. Combateram a demagogia e a corrupção dos
tribunais populares. A despeito dos vícios desse regime Demóstenes o considerava o único legítimo. Já
Isócrates21 propôs uma reforma que significaria a substituição de uma democracia direta por uma
indireta e, nesse sentido, os melhores estariam encarregados da gestão dos negócios públicos. Foi
este pensador que distinguiu o sentido de justiça de “dar a cada um o que merece” do sentido “dar a
todos o mesmo sem discriminação”. Mais tarde na obra Panegírio de Atenas (380 a.C.) ressaltou a
problemática da política externa e apresentou a ideia de uma confederação pan-helênica que pusesse
fim a atomização política da Grécia. Pode-se acreditar que Isócrates tenha pressentido a possibilidade
da caducidade da pólis grega em face da era dos grandes impérios do período helenístico e romano.
7 - Sócrates (469-399 a.C.)
Este pensador, contemporâneo e opositor mais importante dos sofistas, tornou-se o ponto
de partida de várias correntes doutrinárias. Sua existência nos foi transmitida por Platão ao colocá-lo
como personagem principal em vários de seus diálogos. Sócrates se tornou a figura mais significativa
da Filosofia Antiga e, isso se deu de tal forma que muitas vezes uma linha tênue separa o homem
lendário do histórico. Na verdade, Sócrates nada escreveu, mas enquanto personagem platônico
expressou o pensamento de seu discípulo e supostamente o seu próprio de forma que não fica claro a
diferença entre o pensamento de um e o do outro.
Os diálogos platônicos considerados pela tradição como “diálogos socráticos”, são:
Apologia de Sócrates, Eutífron, Críton, Protágoras, Górgias e olivro I da República. Foram
considerados como socráticos porque os diálogos posteriores apresentam mais acentuadamente a
personalidade de Platão. O que se deve advertir é que se torna recomendável comparar a figura de
Sócrates traçada por Platão e a apresentada por Xenofonte22, além das referências feitas por
Aristóteles. Sócrates, assim como os sofistas, orienta sua investigação para os problemas humanos,
observa a necessidade de substituir a obediência cega ao nomos por uma explicação racional
28
convincente. Difere dos sofistas quanto ao método, ou seja, não se preocupa com grandes discursos,
antes, porém prioriza a clareza nos conceitos, a simplicidade na exposição e, introduz os temas
mediante o uso de perguntas e respostas que vão pouco a pouco rodeando o objeto, descobrindo seus
diferentes aspectos até desnudar a superficialidade e imprecisão de certas opiniões ou juízos
proferidos pelo senso comum acerca de tal objeto – método maiêutico. Seu método enfatiza a
necessidade de definições rigorosamente formuladas, porque a verdade nasce no interior desse
diálogo. Sócrates personifica, portanto a figura do homem insubornável, cujo espírito prefere
demonstrar uma ignorância confessa a apresentar um falso saber.
Podemos dizer que o seu método o conduziu a um intelectualismo ético. Quero dizer com
isso que para Sócrates a moral se reduziu ao conhecimento do bem, pois acreditava que todos
poderiam conhecer a verdade se interrogassem a si mesmos e comparassem seus juízos com os dos
demais. O conhecimento se torna uma virtude e, nesse sentido, o homem pratica o mal por ignorância
do bem.
No âmbito da filosofia político-jurídica, Sócrates se opõe à tese sofística da moral do mais
forte e do relativismo, ensinando em seu lugar o princípio segundo qual é mais digno sofrer a injustiça
do que cometê-la e, se por uma fatalidade a cometeu, é preferível aceitar a sanção correspondente.
Nesse sentido, no interior de uma ética comprometida com o aperfeiçoamento da alma humana, a pena
figuraria como um remédio para o homem. No seu modo de ver, a temperança e a justiça são
condições indispensáveis para a maior felicidade humana. A Filosofia assume, portanto, o papel de
tornar possível essa perfeição.
Sócrates ensinava que as leis eram necessárias e correspondiam a uma exigência da
natureza humana. Isto implica dizer que a obediência às leis é um dever sem excusas. É a pólis que
torna possível a vida do cidadão, logo há um acordo tácito pelo qual o cidadão deve a sua
obediência.23 Faz-se mister ressaltar que essa postura de Sócrates não torna lícitas considerações de
que ele teria sido um positivista que tenha separado o Direito da Justiça. A esse respeito cito Truyol y
Serra: “Sócrates vê na cidade uma realidade ética, fundamentada na ordem divina das coisas. Esta
legitimidade essencial não é destruída por erros acidentais. O próprio Sócrates alega que, em certa
ocasião, ofereceu resistência passiva a uma ordem injusta, sob o governo dos Trinta Tiranos. Também
se opusera a um acordo ilegal feito em assembleia popular. Mas essa desobediência não pode ir ao
extremo de pôr em perigo os alicerces da ordem social, sem os quais é inconcebível uma vida humana
digna de tal nome”.24
29
Ademais, Sócrates concebia a existência de leis não escritas advindas da vontade reta da
Divindade. Estas leis estariam nas consciências humanas fundamentando sobretudo as leis positivas.
Todavia não ignorava os conflitos que na realidade aconteciam entre ambas. Outro fator importante é a
sua oposição ao regime democrático de Atenas, pois não compreendia como uma multidão poderia
conduzir corretamente os negócios públicos com a devida competência. Foi exatamente sua crítica ao
regime democrático em conjunto a um método que denunciava a superficialidade intelectual de alguns
homens o que concitou inimigos poderosos. Sócrates foi acusado de introduzir novos deuses e de
corromper a juventude; foi condenado à morte.
Nos diálogos Apologia de Sócrates e Fédon conhecemos um pouco dessa morte trágica e
podemos perceber Sócrates como um verdadeiro homem virtuoso que não fugiu à morte; que
acreditava na imortalidade da alma e na justiça divina. O seu imperativo ético impelia-o à prática do
bem, a jamais retribuir uma injustiça com outra injustiça. Como já pude mencionar, seu pensamento
tornou-se o ponto de partida de várias escolas, das que podemos chamar de “socráticas” por
aproximarem-se de Sócrates no focar dos problemas por este tratado, destaco os Cínicos e os
chamados socráticos menores ou Cirenaicos25.
Resumidamente podemos dizer que a escola cínica é tradicionalmente atribuída a
Antístenes (ca. 445-365 a.C.) outros revelam o nome de Diógenes de Sínope (flc.323 a.C.) como
primeiro cínico. A escola cínica operou uma aproximação do pensamento de Sócrates e dos sofistas,
sobretudo de Górgias, visto que Antístenes foi discípulo de Górgias antes de seguir Sócrates. O nome
cínico se deve ao fato de que Antístenes ensina junto ao Cinosarges, ou seja, Pórtico do Cão, daí a
palavra cínicos para os seguidores desta escola. O cinismo exagerou o aspecto ascético da
personalidade de Sócrates. A virtude é convertida na moderação entendida esta como verdadeira
negação de necessidades. Postula-se a indiferença em relação aos bens externos. A diferença entre os
sábios e os ignorantes repousa sobre a capacidade de autodomínio e desapego aos bens materiais.
O conceito central dos cínicos era a auto-suficiência do sábio e a partir desta concepção
formularam críticas às instituições e valores sociais. Desaconselhavam o casamento em face do amor
livre, o desapego do significado da pólis em face de uma concepção cosmopolita. Um pacifismo radical
no interior de um cosmopolitismo igualitário. Pregaram uma desvalorização da cultura e, portanto eram
avessos à propriedade, à família, à cidade, ao nomos etc. O seu ideal seria um estado de natureza sem
convencionalismos. Compreendiam natureza como o locus de uma espontaneidade sem esforço,
glorificando o bom-selvagem26. Construíram um jusnaturalismo fundado na moral da renúncia.
30
Os socráticos menores ou Cirenaicos partem de um ponto de vista aparentemente oposto
ao dos cínicos. Percebe-se um vínculo com Sócrates também distante. Sabe-se que o seu fundador,
Aristipo (435-355 a.C.), antes de se vincular a Sócrates fora discípulo de Protágoras. Os cirenaicos
identificaram o bem com o prazer, hedone, compreendendo este como satisfação de um desejo. Em
seu modo de ver a virtude é uma faculdade de gozar e a sabedoria significa saber procurar o prazer.
Na ética cirenaica abre-se o caminho para o postulado de uma auto-suficiência. Comentam os
estudiosos que esta doutrina veio a cair num pessimismo motivado pela experiência deprimente da
fugacidade do prazer, ou seja, o prazer é fugaz, logo surge a necessidade psicológica da sua repetição
que causa com o tempo um amortecimento progressivo.
Negou-se a vida quando esta não poderia oferecer o mínimo de prazer, apresentando
como saída possível o suicídio, hegesias. O sábio cirenaico afasta-se de tudo o que não oferece
prazer, afasta-se, sobretudo de uma participação política e social. Conforma-se com o mundo, sem
intenções de reformas nas instituições, configurando um verdadeiro conformismo. Compreenderam que
a forma monárquica seria a mais desejável visto não exigir participação do súdito na vida pública. Não
conceberam a dicotomia natureza/ norma, mas afirmaram que nada é justo por natureza e, nesse
sentido, não há outro direito que o direito positivo, fruto da vontade humana. Eles professavam um
positivismo moral e jurídico que mais tarde será adotado por Epicuro.
O apogeu dessas duas doutrinas que contribuíram para posterior formação do estoicismo
e do epicurismo marca a decadência da pólis grega como forma suprema de vida. O extremo
individualismo que surge opera certo desligamento da felicidade em relação à comunidade e em
relação à tradicional concepção do homem como bom cidadão.
31
Parte III - A justiça na concepção de Platão (428 – 347 a.C.)27
“Mas, a verdade é que é mais bem governada a polis em que aqueles que devem deter o poder são os menos ansiosos de poder. Ocorre o contrário com aquela cujos dirigentes são mais ávidos de poder”.(A República, livro VII, de Platão)
1 - Introdução
Platão nasceu em 427 ou 428 a.C. Filho de uma família da aristocracia ateniense que se
dedicava à política, foi discípulo de Crátilo que por sua vez foi seguidor de Heráclito e, posteriormente,
Platão tornou-se discípulo de Sócrates. Fundou sua Academia em 387 a.C., nos arredores de Atenas,
em cujo pórtico figurava: “Não passe destes portões quem não tiver estudado geometria”. A academia
de Platão durou cerca de um milênio, até o momento em que Justiniano a dissolveu em 529 d.C.
Nos dizeres de Truyol y Serra:
“Sócrates ultrapassou o relativismo e o individualismo dos sofistas, ao afirmar a existência
de uma ordem moral objetiva de validade absoluta, não deixou, apesar de tudo, um sistema, que
desenvolvesse os seus postulados. Por sua vez, as escolas socráticas limitaram-se a destacar
unilateralmente aspectos, ocasionalmente antinômicos do seu ensino. A tarefa de desdobrar em vasta
síntese o que em Sócrates era apenas gérmen, viria a caber a Platão”. 28
Nesse sentido Platão fornece a primeira formulação clássica da Filosofia, isto é, a
problemática do conhecimento, a possibilidade do conhecimento enquanto realidade. Para isso tem por
preocupação o método na relação direta se é possível o conhecimento; a verificação se o
conhecimento passa pelos sentidos ou pela razão; o mundo sensível e o mundo inteligível como
objetos de conhecimento.
Para Platão a Filosofia adquire a função de crítica dos fundamentos da cultura. A obra
desse filósofo é uma longa reflexão sobre a decadência dos costumes atenienses, tanto do sentido de
política como dos valores e ideais (modelo), contexto histórico que condenou seu mestre Sócrates à
morte. Por isso afirma-se que o pensamento platônico é essencialmente político, isso considerando a
tradição em que ele se situa e a crise política de seu tempo. Platão em suas reflexões analisa as
estruturas múltiplas de sua cidade e suas respectivas interferências na vida dos homens. Tal análise é
realizada por meio do diálogo, cuja função seria denunciar a fragilidade e a ausência de fundamentos
das opiniões dos homens. O papel do filósofo seria, portanto, o de levar seu interlocutor, através da
32
dialética (da discussão), a dar luz às ideias, uma vez que aprender é recordar as formas puras
contempladas pela alma quando livre do corpo. Percebe-se então que Platão abraça o problema
socrático da superação do cepticismo gnosiológico (impossibilidade do conhecimento) dos sofistas,
isso a partir da aplicação do método socrático (maiêutica), fonte de sua dialética.
No processo de buscar a essência pelo método da discussão, Platão apela para o mito
como recurso. E, sendo assim, qual a função do mito no pensamento platônico? “O eros filosófico de
Platão voa jubilosamente nas asas do mito, comprazendo-se no símbolo e na fábula” (Truyol y Serra,
120). O mito exerce função importante em seus diálogos, uma vez que a tradição mitológica mantém-
se como referência cultural importante. Trata-se de um discurso indireto, enriquecido com símbolos
para ajudar na compreensão dos objetos, coisas e ideias complexas. E partindo desse princípio Platão
concebeu o mundo em uma realidade dualista: de um lado, o mundo material visível com objetos
particulares, concretos, imperfeitos, mutáveis, perecíveis. Mundo este que denominou de mundo das
sombras, em que o conhecimento é superficial, imediato e incompleto. De outro lado, concebeu o que
chamou de mundo inteligível ou mundo das ideias com realidades abstratas, perfeitas, eternas,
imutáveis, inteligíveis.
Nesse mundo inteligível encontramos as ideias (formas puras) das coisas, ou seja, a
natureza essencial das coisas. A partir desse princípio, para Platão, a essência é a-histórica, ou seja,
trata-se de uma forma permanente na qual persiste às mudanças. A essência possui existência prévia
aos objetos. Quando pretendemos conhecer algo, descobrimos a essência imutável deste algo que
está sendo investigado (Manfredo, 1993: 30).
Em contrapartida as coisas singulares que existem no mundo são sombras das ideias que
configuram formas primordiais ou arquétipos eternos. É por isso que os sentidos não oferecem a
possibilidade do conhecimento verdadeiro e sim aparências enganosas, apenas doxa. O ponto de
partida é o senso comum, a mera opinião para um reexame crítico. A esse respeito o próprio Platão
comenta que:
“A Filosofia corresponderia a um método para se atingir o ideal em todas as áreas pela
superação do senso comum, estabelecendo o que deve ser aceito por todos, independente de origem,
classe ou função. É isso que significa a universalidade da razão. A prática filosófica envolve assim, em
certo sentido, o abandono do mundo sensível e a busca do mundo das ideias” (A República, Cap. VI e
VII).
33
Portanto, as ideias (formas puras) constituem a verdadeira realidade e na sua hierarquia,
coroa-se a ideia do Bem. O fim supremo do homem é realizar, o quanto possível, o Bem, vencendo os
sentidos por intermédio de uma vida virtuosa fundada no autêntico saber. Importa subordinar os
sentidos à razão, porque essa hierarquia ontológica existe também na esfera axiológica
consequentemente. Essa relação hierárquica influenciará seu pensamento político e diretamente suas
construções éticas.
A República (Politeia), o Político (Politikós) e As Leis (Nomoi) são diálogos que nos
oferecem a medida da importância da filosofia político-jurídica no pensamento de Platão. O tema da
justiça, da melhor forma de vida em comunidade, constitui o eixo em torno do qual gira a sua
especulação filosófica, o que nos revela a sua Carta VII. Esta famosa epístola descreve o processo da
vocação político–filosófica de Platão e sua desilusão com a vida pública, visto que os homens públicos
são dominados pelos interesses particulares.
A realidade política de Atenas marcada pelas particularidades, por injustiças e corrupções,
o fez desistir de ingressar na vida pública. Platão compreendeu a corrupção como um dos fenômenos
de sua época e acreditou que a Filosofia poderia resgatar a ordem e a justiça nas relações sociais. O
seu programa visava instaurar uma política fundamentada no saber. Seu projeto configurava uma
concepção pedagógica da comunidade. A obra a República contempla a ideia de uma comunidade
alternativa àquelas existentes. A relevância da educação no pensamento de Platão é outra marca de
seu pensamento. Para ele uma sociedade deveria ser edificada a partir de laços integrativos. Para
tanto destaca a importância da educação, pois de fato suas implicações logicamente que obrigam a
criação de uma identidade cultural, portanto política no sentido de unidade comunitária. Nessa
perspectiva Platão é o primeiro pensador a defender o caráter público da educação, entregando ao
poder público comunitário a responsabilidade de sua execução.
Como o sentido da educação é comunitário e a política visa por meio daquela estabelecer
laços integrativos no interior da polis, a razão é a medida de tudo que possa ser perceptível pela
inteligência e, nesse contexto, a justiça afigura-se como a virtude suprema do cidadão, o fundamento
da polis. Para Platão sua carência propicia a degeneração dos regimes políticos. A obediência às leis
configura, na concepção grega um quanto de harmonia, isto é, como ordem do cosmos. Partindo dessa
premissa temos que compreender o paralelo que estabeleceu entre a tripartição da alma e a sua teoria
da polis.
34
2 - Relação entre alma e cidade: o governo da razão
Na República, livro IV, Platão concebe a alma como tripartite, ou seja, a mesma se divide
em uma parte racional, e outra irracional que, ao seu turno se subdivide em irascível (impulsos e
afetos) e concupiscente (necessidades elementares). A parte racional é regida pela sabedoria ou
prudência, capaz de estabelecer o que convém a cada um. A parte irascível corresponde à fortaleza e
coragem que permitem seguir os imperativos da razão. Já a parte da concupiscência está relacionada
ao sentido das necessidades elementares. As duas dimensões da parte irracional da alma devem se
submeter à parte racional através da virtude da temperança ou moderação. Com tais virtudes surge a
virtude da justiça que estabelece o equilíbrio de cada uma das faculdades em seu âmbito próprio e
função específica.
Estabelecendo uma analogia da alma com a cidade, Platão apresenta o que podemos
chamar de concepção organicista de sociedade. A Cidade constaria de três classes diferenciadas por
suas funções próprias. A primeira seria a dos magistrados ou governantes, guiados pela sabedoria; a
segunda dos guerreiros que defenderiam a polis interna e externamente, cultivando a fortaleza; a
terceira e última dos artesãos (artífices), comerciantes, agricultores e aqueles que constituiriam a base
econômica da cidade. As classes dos guerreiros e dos artífices aceitam o domínio dos governantes
pela ação da temperança ou moderação. Assim como na alma, a justiça apresenta-se primordialmente
para garantia do funcionamento do todo e da manutenção da hierarquia baseada nas tarefas
específicas de cada classe.
O seu pensamento político inspirou-se no postulado segundo o qual a parte se subordina
ao todo, o que significa dizer que as classes se subordinariam ao bem comum da cidade. Platão opera
uma inversão na concepção individualista da sofística quanto à relatividade das coisas, buscando o
sentido de universalidade pela superação da individualidade absoluta. Nesse modo de ver, o indivíduo
se situa no plano coletivo e não em uma autonomia absoluta perante a polis. Esta existe para tornar
possível a vida humana. Há uma divisão de trabalho que permite coordenar as diversas aptidões
visando o bem comum. Destarte o horizonte do indivíduo seria o horizonte do cidadão. Faz-se mister
ressaltar que as classes da República não se baseiam em uma ordem hereditária. O ponto fundamental
repousa sobre as aptidões pessoais dos membros da polis, desenvolvidas pela cidade através do
processo educacional orgânico-administrado. A aristocracia de Platão é uma aristocracia do espírito – o
saber legitima o poder. Ademais, Platão equiparava a mulher ao varão observando uma educação
idêntica para ambos os sexos. Platão em seu projeto político-pedagógico suprime a instituição família e
a propriedade privada para as duas classes superiores dos magistrados e dos guerreiros a fim de
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afastar interesses particulares que pudessem conduzir à corrupção. Somente as duas classes
superiores teriam participação na vida pública, enquanto que o complexo dos artífices estaria limitado à
vida na esfera privada.
Na cidade platônica, governada pelo sentido da filosofia, não seria necessário o direito
positivo, pois os magistrados deveriam decidir, em cada caso particular, o que a justiça exigiria
segundo as circunstâncias. Esse pensamento não perdura nos diálogos considerados tardios, O
Político e As leis, em que Platão, mais velho, desiludido com as experiências na Sicília, admite a
necessidade de fixar princípios de governo em leis positivas. Reconhece a importância da família e da
propriedade privada, evitando-se o excesso de riqueza e pobreza, pois no seu entender seria a causa
de toda a discórdia civil. A cidade descrita na obra As Leis se afigura como uma teocracia em que os
magistrados assumem a dignidade de intérpretes da vontade divina. Em O Político, apresenta a
necessidade de uma legalidade. Há uma clara mudança de perspectiva em Platão mais velho,
consciente da imperfeição dos homens.
2 - Organização Política da Cidade
Platão nos oferece duas classificações distintas das formas de governo, uma na
República, livros VIII e IX e outra no Político. Na República descreve cinco formas. Entretanto, somente
uma assume o caráter de justa e legítima: a aristocracia do espírito ou governo dos sábios. Todas as
restantes são formas corruptas que não permitem a realização da justiça. Se os guerreiros tomarem o
poder teremos uma timocracia ou timarquia que significa governo da honra, caracterizado pela ambição
do espírito belicoso. Esta forma poderia conduzir a uma oligarquia que liga o poder à fortuna. Todavia,
o enriquecimento de poucos e a extrema pobreza de muitos poderá gerar a democracia, o governo da
multidão, que aspira a igualdade absoluta, desrespeitando hierarquias naturais e legítimas. Dessa
forma, a democracia, desemboca na desordem, que acaba por ser aproveitada por algum indivíduo
ambicioso e audacioso, capaz de instaurar uma tirania que desvelaria um caráter violento e
desenfreado. Os seus excessos provocariam a reação dos mais decididos e com seu derrube encerra-
se o ciclo constitucional, ou seja, a dinâmica política.
No Político apresenta dois critérios de formas de governo: o número dos que participam
do governo e a legalidade ou ilegalidade dos mesmos. Encontramos três formas legais e três ilegais de
governo. As legais são a monarquia ou realeza, a aristocracia e a democracia. As formas corruptas
são: a tirania, a oligarquia e a democracia (demagogia). Na verdade, Platão confere maior rigor
sistemático às teorias de Heródoto e Eurípides. Nas Leis, acrescenta um novo termo: uma forma mista
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de governo, ou seja, uma mistura de monarquia e democracia que se apresenta como a única capaz de
assegurar a paz social. Esta concepção assimilada por Aristóteles influenciará seu pensamento
político.
3 - A ideia de Justiça
A ideia socrática de que a Cidade (o poder político), na qual a família e o indivíduo
formavam um todo harmônico, permanece na obra A República e se torna o fundamento da ideia de
justiça como virtude, que significa a observância permanente da lei e, ao mesmo tempo, como ideia da
razão. O sentido de ordem política ideal é o de justiça que correlaciona intrinsecamente lei e justiça. As
leis são justas porque são editadas por quem pratica a virtude da justiça e a conhece em sua estrutura
para além do plano das aparências, isto é, numa imagem divina. Nesse sentido encontramos a ligação
entre as duas perspectivas do conceito de justiça em Platão: justiça como ideia (forma pura) e justiça
como virtude.
Segundo Joaquim Carlos Salgado, 29 o pensamento platônico sobre a justiça é o ponto de
partida para uma reflexão sobre a ideia de justiça como igualdade. Platão apresenta duas perspectivas
de sua concepção de justiça na obra a República, a saber: a justiça como ideia e a justiça como virtude
ou prática individual. Nas primeiras obras, Platão apresenta o conceito de justiça comprometido com a
ideia de virtude do cidadão ou do filósofo. Ao relacionar o célebre livro VII, da República, que narra a
Alegoria da Caverna em conjunto com sua teoria da reminiscência, compreende-se com maior clareza
o que o fundador da Academia assinala na Carta VII, isto é, “só conhece a justiça àquele que é justo”,
ou seja, só conhece a justiça àquele que a compreende na perspectiva divina, pelo conhecimento da
alma e não dos sentidos.
Platão enfatiza o agir justo na medida em que considera o outro como portador dos
mesmos direitos para a superação da ótica egoísta. O outro nos desvela uma dimensão exterior e o
comprometimento do homem com a sua polis. Tanto na República quanto no Górgias, Platão enfatiza
através de seu personagem, Sócrates, que fazer a justiça é melhor que recebê-la, e sofrer a injustiça é
melhor que praticá-la. Na República, exprime que o melhor modo de viver é o viver praticando a justiça,
correlacionando atos justos com alma sadia. A justiça é uma virtude que fundamenta e fortifica a alma.
Embora no Críton, a concepção de justiça se apresente como a conformidade das ações com a lei, a
essência da ideia de justiça platônica não se limita somente a esse entendimento.
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Na República, livro I, Platão expressa a difusa ideia de justiça em um conceito preciso a
partir do entendimento do poeta Simônides, 30 que afirmava a ideia de justiça como dar a cada um o
que lhe é devido. Platão amplia essa ideia para além da simples relação entre particulares e a relaciona
diretamente com a estrutura de sua cidade. No dizer de Salgado:
“Dar a cada um o que lhe pertence, o que lhe é adequado, explicita-se na estrutura do
Estado Platônico, dividido em planos, segundo as aptidões de cada um de seus participantes, de modo
semelhante ao que ocorre com a alma humana, na sua concepção. O que é devido a cada um, o que
lhe pertence por natureza é o posto que corresponde às suas aptidões e a função que cada um, por
força dessas mesmas aptidões, pode desempenhar no Estado”.31
Platão concebe a justiça como uma preocupação política que repousa na ideia de
igualdade; uma igualdade geométrica, na medida em que garante a cada um o que lhe é devido,
segundo suas aptidões. O seu conceito de justiça assume também o caráter de universalidade
enquanto se vincula à ideia de harmonia do cosmos. A justiça é um compromisso do cidadão com a
Cidade; dedicação ao bom funcionamento da vida coletiva a partir das aptidões naturais de cada um.
Sendo assim, Platão elabora duas vertentes do conceito de justiça: a justiça como ideia norteadora do
direito e da lei, e a justiça como virtude norteada e determinada pela lei. Ou dizendo de outro modo, a
ideia de justiça e a concepção da justiça como hábito de cumprir o direito.
Por fim Platão desenvolve um conceito de justiça retributiva e transcendente. Vejamos.
Na República, livro X encontra-se o mito de Er que consagra o sentido de justiça
retributiva e transcendente. O mito narra a história de um guerreiro chamado Er que vivencia a
experiência da justiça como recompensa no além-túmulo. Er, natural da Panfília, na Ásia Menor, bravo
soldado que morreu em combate, jaz na pira funerária dez dias após sua morte. Subitamente, volta à
vida e narra o que viu no mundo além-túmulo. Disse que, depois de morto, viajou até uma terra
estranha onde o solo era rasgado por dois grandes abismos. Por cima, havia dois buracos
correspondentes no Céu. Entre os abismos estavam sentados os juízes que julgavam todas as almas e
as marcavam com um sinal: os justos entravam pelo abismo da direito, para o Céu; os injustos
entravam pelo abismo da esquerda, que conduzia ao mundo subterrâneo. Er não foi autorizado a entrar
em qualquer dos buracos, mas foi escolhido para levar uma mensagem aos mortais. Observou que as
almas dos injustos passavam por uma longa experiência vivenciando dez vezes mais todo o mal que
causaram. Este é o sentido retributivo da justiça em Platão.
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As almas dos justos falavam em felicidade e alegria, recompensas de uma vida virtuosa.
As almas vindas dos subterrâneos, após expiarem todo o mal que praticaram e vivenciar as dores do
arrependimento, eram encaminhadas ao trono das Parcas: Láquesis, Átropo e Cloto para receberem
novas vidas como mortais. Cada alma poderia escolher a vida que desejava, algumas eram sensatas
outras tolas. Todas, após suas escolhas, bebiam a água do rio do esquecimento, de modo que
perdessem todas as recordações da vida passada, para renascer em novas vidas. Muitas praticavam
os mesmos erros. A justiça para Platão não é deste mundo, mas se configura como a recompensa para
aquele que escolhe a vida moral e conforme ao direito.
4 - O projeto platônico: uma utopia?
Sabemos que Aristóteles, no livro II, da Política, apresenta uma reflexão crítica que
considera a República e As Leis como projetos de cidade perfeita e as relaciona com as supostas
utopias de Hipodamo de Mileto e de Fáleas da Calcedônia. Entretanto, temos que ressaltar que a
intenção de Platão não era edificar um mundo social irreal, utópico, mas construir uma crítica aos
fundamentos de sua cultura Como essa mesma cultura se estruturava, e dentro dos limites da
imaginação, a pretensão de Platão era descrever uma comunidade possível na perspectiva de novos
valores comandados pela retificação dialética da educação. Considerar a República uma utopia
dependerá do conceito mais ou menos amplo que se tenha das ideias contidas ao longo de suas
linhas.
O idealismo político de Platão exerceu grande influência na posteridade. Plotino tentou
fundar uma cidade segundo o modelo da República com a ajuda do Imperador Galeno, projeto este que
ficou inacabado por ocasião do falecimento do monarca. Através dos discípulos de Plotino, o
platonismo alcançou os Padres da Igreja Grega. Santo Agostinho incorporou o platonismo (teoria das
ideias) na concepção cristã do mundo. A sua doutrina determinou a orientação do pensamento
medieval até a recepção do aristotelismo por Alberto Magno e Tomás de Aquino, no séc. XIII,
permanecendo ainda através da corrente franciscana da Escolástica.
A influência platônica no Renascimento propiciou a abertura de várias Academias a
começar por Florença (1459), através de Cosme de Médices e dirigida por Marsílio Ficino (1433-99).
Houve clara influência sobre a obra Utopia de Tomas More (1478-1535) e sobre o conjunto do
pensamento de Campanella (1568-1639). Nos séculos XVII e XVIII houve grande influência na
Inglaterra, notadamente na Escola de Cambridge, com Henry More (1614-1687), mais tarde
parcialmente ofuscada pelo predomínio do utilitarismo e do evolucionismo no séc. XIX.
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Embora Platão esteja distante de nossa realidade, longe deste mundo nada simples,
complexo por mecanismos até em certa medida desnecessários, pode-se ler Platão dentro da
dimensão crítica dos costumes, dos valores e dos hábitos constituídos por uma visão utilitarista dos
interesses imediatos. Mesmo não nos parecendo próximo, Platão, através de seu olhar idealista, ajuda-
nos a vislumbrar uma possibilidade meio que perdida: a reconstrução de uma nova estrutura social a
partir de uma reestruturação do homem para essa nova sociedade, tendo por fundamento o ideal de
justiça para além das aparências e do sentido mesquinho que por ora corrói o tecido da vida coletiva.
Trasímaco -- “Certamente que cada governo estabelece as leis de acordo com a sua
conveniência: a democracia, leis democráticas; a monarquia, monárquicas; e os outros, da mesma
maneira. Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhe
convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram uma injustiça. Aqui
tens, meu excelente amigo, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em
todos os Estados - o que convém aos poderes constituídos. Ora estes é que detêm a força. De onde
resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda parte: a conveniência do
mais forte.” (p. 24).
Sócrates – “Por este motivo, por conseguinte, os homens de bem não querem governar
nem por causa das riquezas, nem das honrarias, porquanto não querem ser apodados de mercenários,
exigindo abertamente o salário do seu cargo, nem de ladrões, tirando vantagens da sua posição. Tão-
pouco querem governar por causa das honrarias, uma vez que não as estimam. Força é, pois, que
sejam constrangidos e castigados, se se pretende que eles consistam em governar; de onde vem que
se arrisca a ser considerado uma vergonha ir voluntariamente para o poder, sem aguardar a
necessidade de tal passo. Ora o maior dos castigos é ser governado por quem é pior do que nós, se
não quisermos governar nós mesmos. É com receio disso, me parece, que os bons ocupam as
magistraturas, quando governam; e então vão para o poder, não como quem vai tomar conta de
qualquer benefício, nem para com ele gozar, mas como quem vai para uma necessidade, sem ter
pessoas melhores do que eles, nem mesmos iguais, para quem possam relegá-lo. Efetivamente,
arriscar-nos-íamos, se houvesse um Estado de homens de bem, a que houvesse competições para
não governar, como agora as há para alcançar o poder, e tornar-se-ia então evidente que o verdadeiro
chefe não nasceu para velar pela sua conveniência, mas pela dos seus súbditos. De tal maneira que
todo aquele que fosse sensato preferiria receber benefícios de outrem a ter o trabalho de ajudar ele os
outros. Portanto, de modo algum concordo com Trasímaco, em que a justiça seja a conveniência do
mais forte. Mas esse ponto havemos de o examinar de novo”. (pp.38-39) 32
40
Parte IV - A justiça na concepção de Aristóteles (384-322 a.C.)
“Os verdadeiros prazeres do homem são as ações conforme a virtude” (Aristóteles)
1 - Introdução
Aristóteles foi o patriarca das Ciências Naturais, discorreu sobre História da Filosofia e
psicologia. Desenvolveu estudos sobre as leis da argumentação e da lógica. Este grande pensador
nasceu em Estagira, colônia grega da Cálcida, mar da Trácia. Seu pai Nicômaco foi médico da corte de
Amintas II, em Pela capital da Macedônia. Aos 17 anos ingressou na Academia de Platão (este já
sexagenário) em Atenas. Por essa ocasião já possuía grande saber e era conhecido por justamente
apresentar o que hoje denominamos de conhecimento enciclopédico.
Após a morte de Platão em 347 a.C., casou-se duas vezes e dedicou-se à família. Em 342
a.C. foi nomeado tutor de Alexandre33, o Grande, pelo Rei Filipe da Macedônia. Durante esse período
estudou política e os assuntos de governo. Alexandre financiou suas pesquisas sobre a flora e a fauna
no Mediterrâneo. Embora esse pensador tenha sido tutor de Alexandre, surgiram divergências políticas
que se tornaram cada vez maiores entre o discípulo e o mestre, pois Alexandre sonhava com a
unificação dos gregos, ou seja, uma fusão cultural. Por outro lado, Aristóteles defendia a estrutura da
pólis tradicional. Narra a tradição que foi o assassinato de Calístenes, sobrinho de Aristóteles, a pedido
de Alexandre, que pôs fim à relação entre ambos. Por volta de 335 a.C., fundou o seu liceu no bosque
sagrado de Apolo – nordeste de Atenas. Ensinava passeando à sombra das árvores do liceu, daí seus
discípulos serem chamados de peripatéticos, derivado da palavra peripatos que significa um claustro34
que rodeava o liceu. Aristóteles escreveu em torno de 400 trabalhos sobre os seguintes temas:
educação, observações científicas, ética, política e pensamentos. Dessa enorme produção
sobreviveram apenas 50 ou 49 obras. Quando faleceu, em Cálcis, na Ilha de Eubeia, seus escritos e
sua biblioteca passaram às mãos do discípulo Teofrastos e, posteriormente, ao aluno deste, Neleu e,
por conseguinte, aos herdeiros de Neleu, que temendo o ataque dos príncipes tiranos de Pérgamo,
enterraram os escritos em um subterrâneo. Quando morreram perderam-se os manuscritos de
Aristóteles.
Antes do ano 100 a.C., os herdeiros de Neleu descobriram e venderam ao armador35 de
livros Apelicon de Teos, que os publicou com inúmeros erros, em 86 a.C. Por ocasião da tomada de
Atenas pelos romanos, os escritos passaram às mãos do tirano de Sila e, posteriormente, às mãos de
Andrônico de Rodes que os catalogou e os editou. Os primeiros comentadores das obras de Aristóteles
41
foram: Alexandre de Afrodisías (séc. II d.C.); os neoplatônicos: Porfírio (séc. III d.C.), Temístio (séc. IV
d.C.), Simplício (séc. IV d.C.) e Filopon (séc. IV d.C.).
Aristóteles iniciou o que entendemos por estudo dos problemas filosóficos através do
exame crítico das opiniões de seus antecessores. Houve uma grande independência doutrinal em
relação a Platão. Efetivamente eram homens de temperamentos diferentes, de procedência social
distinta, sem mencionar a tradição familiar e a primeira formação. Podemos considerar sua Metafísica
como uma obra que desvela uma história da filosofia. Essa abordagem aparece também na Política,
quando analisa as teorias anteriores acerca da convivência humana.
Aristóteles rejeitou o dualismo platônico, pela dificuldade em explicá-lo e apresentou uma
concepção diferente da realidade. Aristóteles demonstrou um realismo moderado e um espírito
analítico apegado aos fatos. Platão havia separado as essências36 dos objetos; Aristóteles
compreendia que as essências só existiam em uma inteligência, ou seja, no entendimento humano
sobre as coisas, em nosso espírito que abstrai das coisas em estado de individualidade. O mundo
platônico é uma ficção, as coisas individuais e perecíveis deixam de ser meras “sombras ilusórias”.
Aristóteles foi o fundador da física experimental, ou seja, a ciência que estuda os
fenômenos do mundo físico. Substituiu o idealismo de Platão por um empirismo que buscava seu ideal
numa concepção de felicidade alcançável pela ação, reflexão e experiência e que se configurava no
conceito de justiça. Ao contrário de Platão, Aristóteles não define o direito a partir da ideia de justiça,
mas define a justiça em função do Direito, que por sua vez, torna-se objeto da justiça e é somente
possível no interior de uma pólis.
Aristóteles apresentou uma divisão do conhecimento. Entendeu o conhecimento como
processo cumulativo partindo da sensação (prazer/sentidos) em direção à memória (retenção dos
dados), em seguida à experiência (capacidade de estabelecer relações entre os dados sensoriais), à
arte/técnica (regras – capacidade de ensinar), alcançando por fim o nível da teoria/ciência que chamou
de episteme (conhecimento de conceitos e princípios). Esse conhecimento estaria subdividido em:
conhecimento prático (praxis) e nesse campo encontramos os estudos sobre ética e política;
conhecimento produtivo (poiesis), estudo da estética; conhecimento teórico que por sua vez se divide
em: física, que estuda o mundo natural e estudos matemáticos, que trata da quantidade e do número; a
filosofia primeira ou metafísica37 estuda o ser primeiro ou causa primeira.
42
Aristóteles apresenta a Lógica ou analytika como um saber instrumental, o que desvela a
importância do método. Assim, denominou Organon, os tratados de lógica em seu conjunto. Para esse
filósofo, a realidade sensível é também inteligível e, nesse sentido, o entendimento humano é capaz de
descobrir a ideia oculta no objeto sensível, por meio da abstração. O conhecimento tem seu início com
a experiência. Dentro dessa concepção da inteligibilidade da realidade sensível, formulou sua teoria
teleológica segundo a qual todas as coisas existem para um fim e todas as coisas alcançam a
perfeição na medida em que cumprem esse fim. Esta ideia resume-se no princípio de que o todo é
anterior às partes, no sentido lógico e metafísico, pois cada objeto particular é compreensível em
função do todo que o pressupõe. Esse finalismo refletirá em sua concepção ética e política.
2 - A política, a ética e a justiça.
Para Aristóteles, a política é a ciência da felicidade humana, uma ciência prática que
busca o conhecimento como meio para a ação e que se divide em ética e política. A felicidade em seu
modo de ver significa certa maneira de viver específica do homem, animal social por natureza,
resultado do meio em que vive e destinado a desenvolver suas potencialidades na vida em sociedade.
O seu objetivo nesta obra era descobrir a maneira de viver que conduz à felicidade humana; descobrir
a forma de governo e as instituições sociais capazes de assegurar aquela maneira de viver.
O bem é a plenitude e todo ser tende para esta plenitude. O homem ao longo da vida
encontra uma hierarquia de bens até alcançar o bem supremo que coincide com o seu fim último, a
felicidade. O meio para consegui-la são os hábitos ou disposições do homem graças aos quais saberá
realizar as suas obras; são as virtudes. A virtude consiste no meio entre a falta e o excesso, ou seja,
consiste em disposições resultantes do esforço do homem para submeter os seus atos à razão e aos
fins supremos da sua natureza.
O objeto de pesquisa da Política38 era o estudo das constituições das pólis39. A obra está
dividida em três partes, a saber: livros I, II e III, onde trata da teoria do Estado em geral e da
classificação das várias espécies de constituições; livros IV, V e VI, que tratam da política prática, ou
seja, estuda a natureza das constituições existentes e dos princípios para seu bom funcionamento;
livros VII e VIII, onde examina a política ideal. O estilo de Aristóteles se desvela em suas próprias
palavras a esse respeito, no livro II, cap. V, §4 -5: “o método de quem estuda filosoficamente qualquer
matéria, e não apenas seu aspecto prático, consiste em não negligenciar ou omitir qualquer detalhe”.
43
Aristóteles aprofunda os ensinamentos de seu mestre Platão (República) na obra Ética a
Nicômaco, o mais importante tratado de moral dentre os quatro que escreveu sobre moral (Ética a
Nicômaco, Ética a Eudemo, Grande Moral e Tratado das virtudes e dos vícios). 40 A sua teoria ética foi
elaborada sobre a base das estruturas morais vigentes na comunidade grega do séc. V a.C. De um
modo geral, podemos dizer que a sua teoria apresenta o procedimento do homem prudente como
válido, o valor da opinião dos homens mais velhos e o indispensável valor da experiência da vida e dos
costumes da cidade para a elaboração de qualquer Filosofia.
Diferente de Platão, Aristóteles humanizou o fim último, ou seja, o fim último foi afirmado
no plano terrestre. Por isso, o ético em Aristóteles é entendido a partir do ethos41 (do costume) da
maneira concreta de viver vigente na sociedade. É exatamente o ethos aristotélico que funciona como
elo entre a esfera jurídica e a esfera política. A ordem jurídica e a ordem política pressupõem o ethos.
Aristóteles escreveu a Ética a Nicômaco na fase em que vivia em Atenas, organizando-a
em 10 capítulos subdivididos em pequenas partes. Sabe-se que esta obra refere-se ao segundo curso
que ministrou e que fora redigido entre 334 e 333 a.C. A sua ética compreende duas categorias de
virtudes, a saber: as virtudes morais, fundamentadas na vontade e as virtudes intelectuais, baseadas
na razão. Como exemplo de virtudes morais temos: a coragem, a generosidade, a magnificência42, a
doçura, a amizade e a justiça. As virtudes intelectuais ou dianoéticas43 são: a sabedoria, a temperança,
a inteligência e a verdade. Uma ação pode ser considerada como justa quando realiza o equilíbrio das
virtudes morais e quando alcança as virtudes intelectuais. O objetivo da ação moral é a justiça, assim
como, a verdade é o objetivo da ação intelectual. Em sentido lato, a justiça44 configura o exercício de
todas as virtudes, observando-se a instância da alteridade. Em sentido estrito, encontra-se como uma
virtude ética que implica o princípio da igualdade.
Nesse sentido, Aristóteles inicia sua ética a partir da realidade social de sua época. O
ponto central torna-se o conceito de atividade; atividade no sentido de que o homem deve realizar ao
máximo suas disposições ou aptidões. O homem deve buscar esse aperfeiçoamento para com isso
alcançar a felicidade. Este pensador enfatiza que o cultivo da inteligência é o bem supremo, o summum
bonum. Sua ética é denominada de ética das virtudes ou ética eudemônica, porque enfatiza a busca
pelo bem viver e pela felicidade, no sentido estrito de pleno desenvolvimento das disposições naturais.
O homem deve desenvolver suas aptidões para alcançar o seu fim (télos), sua perfeição. Eudemonia e
télos estão intrinsecamente ligados formando a base da ética do pensamento de Aristóteles, uma ética
imanente da felicidade terrestre.
44
Importa observar que a teoria moral de Aristóteles é aristocrática; uma moral que atinge a
elite, para homens sábios, felizes e materialmente privilegiados, mas que exclui crianças, escravos e
trabalhadores manuais. Platão e Aristóteles concebiam a escravidão como instituição natural que se
justificava pela suposta incapacidade de certos homens para se autogovernar. Estes devem se
submeter a outrem. Sob o ponto de vista econômico, Aristóteles diz que o escravo é um instrumento
indispensável na produção dos bens. Na verdade, três bens constituem a felicidade para Aristóteles,
são bens interiores à alma, a saber: a sabedoria, a virtude e o prazer (recompensa natural da vida
virtuosa). Este pensador considera ainda como importantes: a amizade, a saúde, a posse de bens
(inclui-se aqui o escravo), a sorte e os dons.
O conceito de eudemonia vincula-se ao conceito de justiça apresentado por Platão na
obra A República. Aristóteles também compreende a noção de justiça como uma virtude45 que precisa
ser praticada constantemente46 e não pode ser tomada como aquisição contínua.47 A justiça é um
exercício político. No livro II-6, da Ética a Nicômaco, Aristóteles apresenta o sentido do conceito de
virtude como hábito, ou seja, algo construído, algo que temos em potencial. A natureza oferece as
condições de possibilidades para que o homem possa desenvolver suas aptidões conforme sua
essência racional. A justiça enquanto um valor ético se desvela em nossos atos. “Toda virtude e toda
técnica nascem e se desenvolvem pelo exercício”.48
Observa-se que a prática da virtude não se confunde com um mero saber técnico, não
basta a conformidade, exige-se a consciência do ato virtuoso. O homem considerado justo deve agir
por força de sua vontade racional. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles enumera três condições para que
um ato seja virtuoso: 1. O homem deve ter consciência da justiça de seu ato; 2. A vontade deve agir
motivada pela própria ação; 3. Deve-se agir com inabalável certeza da justeza do ato. As virtudes são
disposições ou hábitos adquiridos ao longo da vida e se fundamentam na ideia de que o homem deve
sempre realizar o melhor de si. A virtude será uma espécie de meio termo, de termo médio entre os
extremos: o excesso e a deficiência.
Para Aristóteles, a justiça é uma virtude que só pode ser praticada em relação ao outro e
de modo consciente. O objeto da justiça é realizar a felicidade na pólis, o seu oposto, a injustiça,
poderá ocorrer por falta ou por excesso.
Aristóteles distingue duas classes de justiça: a universal e a particular. A justiça universal,
total ou integral significa a justiça em sentido amplo que pode ser definida como conformidade ao
nomos (norma jurídica, costume, convenção social, tradição). Esta norma constituinte do nomos é
45
dirigida a todos. A ação deve corresponder a um tipo de justo que é o justo legal. “Aquele que contraria
as leis contraria a todos que são por elas protegidos e beneficiados; aquele que as acata, serve a todos
que por elas são protegidos ou beneficiados”.49 O membro da pólis se relaciona com todos os demais,
ainda que virtualmente, e compartilha com todos os efeitos de sua atitude ou omissão. A justiça
universal ressalta a importância da legalidade como um dos aspectos que fundamenta a coesão social.
A comunidade existe virtualmente na pessoa de cada membro. O homem virtuoso é aquele que
desvela em seu modo de agir a observância do princípio neminem laedere (Não prejudique a ninguém).
A justiça particular significa em sentido estrito o hábito de realizar a igualdade. Este tipo de
justiça refere-se ao outro no sentido de uma relação direta entre partes, típica da experiência citadina.
Percebemos que este tipo de justiça vincula-se com a justiça universal, pois o transgressor da justiça
particular se compromete também diante do nomos.
O justo particular apresenta-se em duas formas distintas: o justo particular distributivo que
desvela a justiça distributiva e o justo particular corretivo que apresenta a justiça corretiva. A ideia de
justiça distributiva surge no sentido de igualdade na devida proporção. Essa modalidade de justiça
regula as ações da sociedade política com seus membros e tem por objeto a justa distribuição dos
bens públicos: honras, riquezas, encargos sociais e obrigações. Essa distribuição também se
fundamenta na igualdade que não se confunde com uma igualdade matemática e rígida, mas
geométrica ou proporcional que observa o dever de dar a cada um o que lhe é devido; observa os
dotes naturais do cidadão, sua dignidade, o nível de suas funções, sua formação e posição na
hierarquia organizacional da pólis.50 O princípio de igualdade que figura neste tipo de justiça exige uma
desigualdade de tratamento, pois sendo diferentes segundo o mérito, os benefícios a serem atribuídos
também devem ser diferentes.
A outra modalidade de justiça particular é a justiça corretiva ou sinalagmática, que se
divide em comutativa e judicial. Trata-se de um tipo de justiça que regula as relações entre cidadãos e
utiliza o critério do justo meio aritmético ou igualdade matemática (se devo x, pagarei x). Observa-se
que este tipo não focaliza em primeiro plano as pessoas, mas sim as coisas. Medem-se os benefícios
ou prejuízos que as pessoas podem experimentar, ou seja, as coisas e os atos no seu valor efetivo.
Nos casos de ações que geram constrangimento para uma das partes, caberá ao juiz restabelecer a
igualdade rompida através de uma sentença. Quando há a vontade dos interessados como elemento
principal, chama-se justo comutativo (sinalagma)51 e, quando por decisão do juiz a vontade de um
deles é contrariada, como o caso dos crimes, chama-se justo judicial ou justo reparativo. Neste último
caso o sujeito de uma injustiça é sancionado a reparar o dano provocado indevidamente a outrem.52
46
Podemos perceber que o princípio de igualdade que figura em seu pensamento recorda as
especulações pitagóricas acerca da justiça.
Já percebemos que Aristóteles atribui à palavra justiça diversos sentidos que demonstram
a possibilidade de classificá-la de diferentes modos. Menciona a ideia de justiça política, quando se
refere à comunidade, ou seja, a justiça que organiza a vida comunitária e que, em particular, deve
observar o processo deliberativo social (o cidadão). Aristóteles fala em justo doméstico quando observa
a esfera da família, ou seja, a justiça para com a mulher, o filho e os escravos – regras necessárias à
organização do lar. 53
O justo político abrange duas outras formas de justiça: o justo natural e o justo legal. O
justo natural significa o que será sempre o mesmo em toda parte, independe da vontade humana, ou
melhor, para existir não precisa de qualquer decisão ou ato de positividade. O justo legal, que em
princípio poderia ser cumprido de maneiras diferentes, passa a ser obrigatório por ser assumido pelo
nomos vigente em uma pólis.54 Este tipo de justo decorre do ato legislativo e configura-se no conjunto
de disposições vigentes na pólis. Tanto o justo natural quanto o justo legal constituem a ordem
normativa da cidade. O justo natural é constituído por noções e princípios comuns que encontram
fundamento na própria natureza racional do homem. Podemos compreender a mutabilidade da justiça
natural a partir da concepção aristotélica de physis. Em seu modo de ver a Natureza experimenta o
movimento, ou seja, atualização do ser (a doutrina do ato e potência). A justiça natural sofre as
transformações típicas da racionalidade. Trata-se de um movimento perene que permeia todos os
seres.
Há uma lei natural ou direito natural que desvela a natureza da comunidade política. O
ponto de partida é o princípio da naturalidade da sociedade política, o homem, um animal político é
chamado a viver na pólis por força de sua própria essência. A cidade-estado é uma realidade natural e
nesse âmbito há uma relação entre razão, lei e igualdade. Para Aristóteles, a Natureza não é um
princípio estático, mas dinâmico; é o que em cada ser está latente como potência e se desenvolve em
conformidade com o fim. A natureza de uma coisa revela-se no termo deste desenvolvimento. A teoria
do ato e potência nos ajuda a compreender como Aristóteles concebeu a relação homem e pólis.
Temos que observar que o justo legal encontra sua origem no justo natural. Esta relação
se esclarece quando percebemos que caminhamos do geral para o particular, ou seja, um princípio
geral pode acarretar uma lei específica. O princípio neminem laedere que significa que não devemos
prejudicar as pessoas, um preceito da justiça natural, pode ser positivado em norma que prevê uma
47
punição para atos como o homicídio, a injúria etc. Os conflitos entre preceitos jurídicos legais e
preceitos jurídicos naturais não invalidavam a ordem jurídica da pólis grega; não eram concebidos por
Aristóteles, exceto em um sistema corrompido.
A eventual tensão entre a generalidade abstrata da lei e a singularidade concreta dos
casos reais era mediada pela equidade (epieikéia), em atenção à justiça natural.
A equidade é a forma corretiva da justiça legal quando esta engendra certa injustiça pela
própria generalidade de seus preceitos normativos. Nesse sentido, o julgador, coloca-se como
legislador, e opera a adaptação da lei ao caso concreto. Para Aristóteles, o julgador assumindo a
postura do legislador torna-se um homem preocupado com a correção ética da justiça, um homem
équo. Aristóteles define o homem équo como aquele que não é rigoroso na aplicação da justiça,
quando esta se configura como a pior solução, mas que fundamenta seus juízos nos princípios da
moral.
O grego reverenciava o nomos (a lei ou costume) porque era fundamental para a
existência da própria pólis como comunidade ética-política. Nesse sentido, “a ordem é a lei e o governo
da lei é preferível ao de qualquer cidadão, porque a lei é a razão sem apetites”, dirá Aristóteles na
Política. 55
Se o objetivo da atividade humana é a vida na pólis, esta deve ser anterior ao indivíduo.
Todavia, historicamente a pólis é a ultima fase de um processo ascendente de sociabilidade. 56 Há no
homem um impulso social que se desvela primeiramente na família, em seguida na aldeia até alcançar
a estrutura equivalente a uma pólis grega. A cidade é por sua natureza uma unidade na diversidade.
A lei escrita ou não escrita, o nomos, surge da experiência citadina e, portanto, é
intrinsecamente superior a qualquer decisão individual por mais sábia que seja. Por ser o nomos a
razão desprovida de paixão deve ser a suprema autoridade da sociedade política. No Direito da pólis
há elementos naturais e permanentes e também convencionais e mutáveis. A razão é comum a todos
os homens - todos são iguais; o nomos é razão porque realiza a igualdade jurídica formal. A lei comum
seria uma lei natural ou original, pois teria validade geral, independente da opinião dos homens,
embora não imutável porque até a própria natureza é mutável.
A conformidade com a lei apresenta a relação que o sentido de justiça particular mantém
com a ideia de equidade. O termo equitativo desvela o sentido de que o justo ultrapassa a simples
dimensão da lei escrita, ou seja, vai além da razão de ser da lei escrita e se liga diretamente ao sentido
48
de lei natural, na medida em que pode ser compreendido como um critério de ajuizamento da igualdade
ditada pela razão conforme à lei natural. Observo que a razão significa para Aristóteles uma forma
superior da natureza humana. A equidade surge para corrigir os lapsos da lei convencional, sobretudo
quando a lei, aplicada mecanicamente, não corresponder à justiça. As circunstâncias particulares
exigem a aplicação da equidade para dirimir um caso concreto, buscando uma igualdade entre as
partes.
O équo 57 é aquele que busca a igualdade no momento concreto da relação da justiça. O
bem comum é o fim ou o bem principal da pólis. O pressuposto fundamental do pensamento de
Aristóteles acerca da justiça é a ideia de que o homem é um ser destinado naturalmente à vida em
comunidade – a sociabilidade como um imperativo da natureza humana. A justiça seria o bem supremo
no âmbito da política, na medida em que procura o benefício da comunidade; busca uma felicidade no
âmbito da comunidade. Enfim, o sentido de igualdade que aparece em Aristóteles, embora seja um
conceito já pensado pelos pitagóricos, apresenta o caráter de definição da ideia de justiça.
A noção de alteridade é fundamental ao seu conceito de justiça, pois a justiça é uma
virtude que só pode ser praticada em relação ao outro de modo consciente, na medida em que essa
prática se destina à realização do seu elemento fundamental: a igualdade, ou a conformidade com a lei.
O objetivo é realizar a felicidade na pólis num plano mais alto, ou o bem comum de modo geral. 58 Os
elementos que compõem o conceito aristotélico de justiça são: o outro, a consciência do ato (vontade),
a conformidade com a lei e o bem comum, a igualdade. A dimensão do outro, ou seja, a alteridade
observada enquanto ser racional é fundamental para realização da justiça. A justiça no entendimento
de Aristóteles se afigura em como fazer um bem para o outro. 59 O homem injusto é aquele que age
com injustiça, embora não queira receber o ato injusto de outrem. O ato de justiça exige a mediação da
vontade, só se realiza voluntariamente ou conscientemente.
Segundo Aristóteles, ato voluntário significa aquele “cuja origem se acha no agente que
conhece todas as circunstâncias da ação”. 60 Somente o homem é capaz de possuir uma faculdade da
vontade apta a discernir o que deve fazer ou não. Na Ética a Nicômaco, menciona: “Chamo voluntário,
como disse anteriormente, a ação que depende do agente e que este realiza conscientemente, isto é,
sem ignorar a pessoa que a ação afeta os meios empregados e o fim da ação”. 61
A moralidade do ato fundamenta-se no critério da premeditação ou escolha deliberada.
Salgado observa que na pólis o justo não está separado do direito positivo em geral, ou da norma
costumeira ou ainda do padrão de comportamento partilhado na comunidade.
49
A teoria das formas de governo em Aristóteles segue a clássica organizaçãoapresentada
por Platão no Político, ou seja, três formas puras: monarquia, aristocracia, democracia moderada ou
política; e três impuras: tirania, oligarquia e democracia radical que equivale à demagogia. O fato é que
Aristóteles usa um critério econômico para distinguir tais formas. Observa que o princípio de autoridade
em cada um dos regimes repousa sobre a situação econômica: a oligarquia, na riqueza de uma
minoria; democracia radical, uma maioria pobre; na monarquia e aristocracia, uma virtude superior;
tirania, na fraude e violência. Aristóteles também compreende que o melhor governo seria um governo
misto. Cada pólis necessita de um governo que corresponda ao seu caráter e necessidades próprias.
Aristóteles também distinguiu as atividades do governo em deliberativas ou legislativas, executiva e
judicial. E apresentou um ponto de vista técnico-político preocupado com a conservação do poder e
com a ética.
O aristotelismo alcançou o ocidente através dos árabes e judeus, em traduções latinas
indiretas, sobretudo pela Escola de Toledo, até ser estudado diretamente e predominar a partir do séc.
XIII, na Escolástica. Com Tomás de Aquino houve uma adaptação prévia do aristotelismo ao
Cristianismo. No Renascimento, fundamentou doutrinas opostas à Escolástica e muitas vezes
incompatíveis com o Cristianismo. Vinculou-se de novo ao Cristianismo através da neo-escolástica
católica dos séculos XVI e XVII e com a escolástica protestante. No que se refere à sua filosofia prática
até hoje o mundo tem sido visto em boa parte com olhos aristotélicos.
50
Parte V - A Filosofia no período medieval: Agostinho e Tomás de Aquino
“(...) não cuideis da carne com demasiados desejos”. Paulo de Tarso
1 - O Mundo Medieval
O cristianismo nasceu em um mundo helenizado impregnado de elementos religiosos
orientais. A novidade da perspectiva religiosa cristã propiciou o que alguns compreendem como
filosofia cristã, ou seja, um pensamento que se desenvolve nos limites das verdades estabelecidas pela
fé, na busca de fundamentos racionais. A novidade que a perspectiva cristã oferece é radical em sua
concepção de Deus. Não podemos perder de vista como os povos primitivos e depois os gregos
concebiam a divindade. Na idade média há uma nova relação entre Deus e criatura. Surge uma nova
concepção acerca da criação que engendra uma absoluta dependência de tudo e todos para com
Deus.
O sentimento da grandeza de Deus, próprio do judaísmo, é transposto para o cristão e
contribui para fortalecer o sentido da humildade como virtude. Isso fica mais claro quando comparamos
o sábio estóico com o santo cristão: o sábio estóico se orgulha de se assemelhar à divindade, o santo
cristão, que não é um ser autônomo e sim criatura nada pode sem a graça divina. A criação do homem
“a imagem e semelhança de Deus” lhe confere certo esplendor: possui uma dignidade intrínseca. A
concepção grega do homem integrado na Natureza ou na pólis cede lugar à interioridade do sujeito.
Deus não é só o Senhor dos Hebreus, mas o Pai, conjugando em um só o poder e o amor.
A ideia de filiação divina fortalece a solidariedade essencial para a comunidade que passa a se afigurar
como uma pessoa moral que participa de uma história universal e, nesse sentido, ressalta um só
destino para o gênero humano. O homem vive o drama da queda e da redenção como fatos históricos.
O mundo torna-se o lugar da experiência que permitirá a superação espiritual para a salvação.
Segundo Truyol y Serra, o cristianismo pelas suas origens e suas primeiras lutas, pertence
à Antiguidade. Durante seis séculos firmou seus passos com êxito crescente até ser reconhecido
oficialmente no Império Romano. Na sua fase inicial o pensamento cristão desenvolve-se
paralelamente ao pensamento pagão da última fase. Dentro deste período antigo e depois medieval do
cristianismo a tradição estabelece os seguintes limites: o pensamento patrístico e o escolástico. A
Patrística tem seu lugar nos séculos II –VI e a Escolástica, do XII ao XIV. O período que se dá entre
51
essas duas épocas se define por uma silenciosa afirmação social e política da cristandade medieval e
sua cultura.
Compreendemos que o mundo antigo nos oferecia o espetáculo da competição entre duas
sabedorias: a grega e a hebraica. Este conflito marcou o fim do período antigo e o esforço da Idade
Média em articular a sabedoria divina com a sabedoria humana. A sabedoria grega apresentava um
interesse direcionado para o mundo. Nesse sentido, o seu paganismo lançava raízes no pensamento
mágico. A razão grega acreditava no destino, na boa ou má sorte, nas inspirações superiores, na
adivinhação etc. A razão grega partia da realidade tangível e visível, do vir-a-ser, do comportamento
humano. Na sabedoria hebraica ou da salvação, Deus é quem concebe a sabedoria ao homem.
O cristianismo promoveu uma modificação nos valores éticos: operaram a transcendência
do fim último, onde Deus se torna o valor supremo. Surge o Deus pessoal criador do mundo; sendo ele
perfeito, independente e livre. A transfiguração da felicidade em bem-aventurança, o que significa dizer
que não é através da razão, mas da fé que o homem alcança a felicidade. Esta felicidade está
expressa no sentido de posse ou visão intuitiva de Deus. E, por fim, destacaram as virtudes teologais
(fé, esperança e caridade) que passam a ofuscar as virtudes morais.
A idade Média foi considerada a época intermediária entre a Antiguidade e os tempos
modernos, é o período compreendido entre a queda do Império Romano do Ocidente (476)62 e a
tomada de Constantinopla63. O medievalista Alain de Libera ensina em sua obra A Filosofia Medieval
(1998) que a história da filosofia medieval é escrita, em geral, do ponto de vista do cristianismo
ocidental. E que, portanto, esse gesto não é isento de consequências, pois fixa os objetos, os
problemas, os campos de investigação, avaliam, podam, repartem segundo suas perspectivas,
interesses, tradições, impõem esquecimentos, imprimem suas diretrizes e direções. Na verdade, a
história da filosofia medieval é constituída por várias fases: a latina, a grega, a árabe-muçulmana e uma
judaica.
O período da Idade Média é, para alguns, conquista de um só grupo os cristãos
ocidentais. Em seu Tratado da Opinião (1735), o marquês Gilbert-Charles Le Grende de Saint-Aubin
retrata a filosofia medieval de modo nada lisonjeiro: “Após a tomada de Constantinopla, os franceses
trouxeram os livros de Aristóteles comentados pelos árabes. Introduziu-se, então, uma filosofia tirada
de Avicena e de outros comentadores africanos; e o mau gosto arabesco estragou as escolas, como a
arquitetura e as demais artes haviam sido corrompidas pelo gosto gótico. Sutilezas vãs e bárbaras
52
tomaram o lugar da antiga filosofia, e apoderaram-se da lógica e da metafísica, que eram praticamente
os únicos objetos dos filósofos de então”.
Para outros pensadores árabe-muçulmanos, a Idade Média configurou o nascimento, o
impulso e apogeu de uma cultura. Uma ideia aceita na visão de Alain de Libera é a de que a Idade
Média viu a teologia cristã tomar definitivamente o lugar da filosofia grega.
Este autor entendeu que o ocidente cristão foi filosoficamente estéril e só despertou do
seu longo sono a partir das influências do oriente muçulmano para o ocidente muçulmano e depois
para o ocidente cristão.
Mencionou que “O século de Justiniano é, para nós, um período crucial: é o século da
reconquista, da suprema afirmação da romanidade bizantina, da reconstrução da unidade do Império
de Constantino. Ora, é nessa época que o poder político cristão decide erradicar a filosofia pagã. (...) O
espaço histórico em que se situa Justiniano não é medieval nem tardo-antigo: o tempo em que sua
ação se inscreve é o da romanidade. Justiniano é um romano. É um imperador romano que se esforça
por acabar com a filosofia como instituição e realidade social. (...) Portanto, o conflito entre o helenismo
e o cristianismo não termina com o suposto exílio dos filósofos64 na Pérsia, nem a filosofia está morta,
nessa época. Ao contrário, inicia-se um movimento de deslocamento ou de translação da ciência: a
translatio studiorum, que vai durar até o final da Idade Média”. 65
O cristianismo triunfa a partir de Constantino (c. 280 – 337) permitindo a liberdade de culto
aos cristãos e reconhecendo a competência da autoridade episcopal nos processos civis. Na prática o
cristianismo já possuía estrutura organizada denominada Igreja (ekklesia). Com o edito de Milão, a
Igreja de Roma foi erigida em centro da cristandade o que engendrou inúmeras disputas sobre
divergências na interpretação da mensagem de Jesus. O confronto de opiniões fortaleceu a Igreja
católica (em grego Igreja universal). Foi nesse contexto que surgiu a Filosofia Patrística com a missão
de apresentar uma única versão do Evangelho, não só como revelação divina, mas também como
resultado de juízos racionais. Tentou-se munir a fé com argumentos racionais. Dentre os inúmeros
padres da Igreja, destacou-se Santo Agostinho, considerado “o pai da filosofia cristã”.
2 - Aurélio de Agostinho
A influência da filosofia cristã de Agostinho perdurou até o século XIII, momento da
descoberta do pensamento de Aristóteles. Agostinho pregou uma aproximação entre o pensamento
53
platônico e o pensamento cristão. É preciso lembrar que este pensador conheceu a filosofia de Platão
através dos filósofos neoplatônicos de Alexandria e de traduções latinas. Aurélio de Agostinho nasceu
no Norte da África, na cidade de Tagaste, província romana e faleceu como bispo de Hipona em 430,
aos 72 anos de idade. Agostinho vivenciou os últimos anos do Império Romano. Compreendeu essa
decadência como a mão de Deus castigando os homens da cidade terrena e anunciando o triunfo do
cristianismo. Este pensador tornou-se mestre em retórica e, segundo relata em suas Confissões, a
leitura de um determinado diálogo de Cícero, Hortensius, que exprime um verdadeiro elogio à filosofia,
o despertou para os estudos filosóficos.
Agostinho aderiu ao maniqueísmo, religião de origem Persa, fundada por Mani, no séc. III,
que apresentava uma visão dualista do mundo: o bem versus o mal. Mais tarde interessou-se pelo
sermão de Santo Ambrósio, bispo de Milão, estudou os filósofos neoplatônicos em particular Plotino e
em 386 converteu-se ao cristianismo. Escreveu os diálogos De magistro, Contra os Acadêmicos,
Contra os Maniqueus e as Confissões. Quando assumiu a diocese de Hipona redigiu Sobre a doutrina
cristã, Sobre a trindade e Cidade de Deus. Sua contribuição para o desenvolvimento de uma filosofia
cristã se deve à sua formulação relacionando teologia e filosofia, sua teoria do conhecimento com
ênfase na subjetividade e uma teoria da história expressa na obra Cidade de Deus.
A sua filosofia foi elaborada a partir de uma aproximação entre neoplatonismo de Plotino e
Porfírio com os ensinamentos de São Paulo e o evangelho de São João. Na escola de Alexandria, o
platonismo era interpretado como uma antecipação do cristianismo. Para Agostinho a filosofia antiga
consistia em uma preparação da alma para a contemplação da verdade revelada. Dessa concepção
surgiu uma forte desvalorização do mundo. Agostinho apresentou uma teoria do conhecimento na
mesma direção da filosofia platônica, inatista, ou seja, há um conhecimento prévio, independente da
experiência que permite o processo do conhecer.
Agostinho rejeitou a doutrina platônica da anamnese, todavia desenvolveu uma teoria da
interioridade e iluminação. Essa noção de interioridade se configura como um prenúncio do conceito de
subjetividade que surge no período moderno (In interiore homine habitat veritas). Essa interioridade
permite acessar a Verdade. A mente humana que é mutável e falível possui a centelha divina que é o
seu intelecto – imagem e semelhança a Deus. Com este pensamento Agostinho explica o ponto de
partida do conhecimento humano.
Na obra Cidade de Deus (c.413- 427) nosso autor interpreta a história da humanidade
desde o gênesis até o juízo final e a redenção. Assim, formula a noção de história, apresentando um fio
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condutor, rompendo com a concepção grega de uma visão cíclica, sem início e sem fim. Este sentido
de história deveria incutir na mente humana que a história é aquela que exprime o triunfo da Cidade
Divina, daí resulta a necessidade da fé como um novo ânimo para viver. Agostinho representa o
momento da cristianização da Europa Ocidental e ressalta a supremacia do poder espiritual sobre o
poder temporal, ou seja, o Papa acima dos Reis e nobres feudais. Nesta obra Agostinho apresenta a
felicidade como a motivação do pensar filosófico e formula a tese segundo a qual o homem não tem
razão para filosofar, exceto para atingir a felicidade. A filosofia, por conseguinte, passa a ser vista como
indagação humana à procura da beatitude. Esta está presente nas Sagradas Escrituras.
No que se refere à sua teoria do conhecimento, Agostinho afirmou que o erro está em
querer que as sensações possam expressar uma verdade ao sujeito. Com esta ideia na Cidade de
Deus, Agostinho antecipou a reflexão do cogito cartesiano. Quando formulou a seguinte frase: “eu me
engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado” – apresentou a primeira certeza, a
essência do ser humano - o homem como ser pensante em que o seu pensar o difere da materialidade
do corpo.
Ocorre que esta ideia já estava presente em Platão e chegou a Agostinho através de
Plotino. No diálogo Alcebíades, Platão define o homem como uma alma que serve ao corpo. Agostinho
assimilou essa transcendência hierárquica da alma sobre o corpo e, nesse sentido, enfatizou que a
alma possui funções importantes dentre as quais a de permitir o conhecimento verdadeiro, excluindo-
se, portanto, a percepção sensível. Assim, temos dois tipos diferentes de conhecimento: um limitado
aos sentidos, e outro conhecimento necessário, imutável e eterno. Mas como o homem que é mutável
e falível acessa a Verdade? Para Agostinho, somente através de algo que transcende a própria alma
humana: Deus.
Agostinho utilizou a metáfora platônica da alegoria da caverna ou mito da caverna e
apresentou o conhecimento verdadeiro como aquele que previamente foi iluminado pela luz divina. Há
um saber prévio existindo de modo infuso que cria as condições de possibilidade para o conhecimento
humano. A percepção de um conteúdo na alma decorre da irradiação divina. Importa perceber que
Deus não substitui o intelecto humano, na verdade precisa dele. O que temos que perceber é que
Agostinho está afirmando a tese segundo a qual todo conhecimento verdadeiro é resultado de um
processo de iluminação divina. Deus é um Ser transcendente que daria fundamento à Verdade. Para
Agostinho, o mal é o não-ser, a privação do bem, não existe como um princípio poderoso a reger o
mundo.
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O homem é réprobo miserável condenado à danação eterna e só recuperável mediante a
graça divina. O homem é criatura privilegiada porquanto feito à semelhança de Deus. Essa
especificidade se desvela nas faculdades da Alma: a memória, a inteligência e a vontade. Esta última é
a mais importante porque é o centro da personalidade humana: é livre e nela reside também a essência
do pecado que é a transgressão da Lei Divina criada por Deus. A queda do homem decorre do seu
livre-arbítrio e, portanto, a salvação depende de Deus. 66
Falar de uma Filosofia jurídica implícita no pensamento de Agostinho nos lembra a
influência que Cícero exerceu em seu pensamento. Com Agostinho, surge uma nova concepção de
justiça: a justiça divina. Nesta nova concepção, todos os homens são filhos de Deus e, portanto iguais.
Se todos são iguais, a justiça consistirá à moda aristotélica da justiça distributiva. Agostinho quis dizer
que a cada um será dado segundo o seu mérito, ou seja, a observância da lei de Deus, a lei natural e,
depois, a lei humana.
Nos dizeres de Joaquim Salgado, o sentido de igualdade perante a lei se configura no
próprio princípio de justiça que preside o ato de criação. Todavia essa igualdade não esgota a ideia de
justiça. Há que se falar também na graça como um tipo de justiça em sua doutrina da iluminação.
Agostinho assimilou a concepção estóica da existência de uma lei natural universal
dividida em Lex aeterna, lex naturalis e lex humana, onde figura a ideia de dar a cada um o que é seu.
O próprio Deus, criador do Céu e da Terra, está no horizonte desse princípio ou fórmula, pois o homem
deve dar-Lhe amor incondicionado. Assim a suma justiça é a adequação do agir humano com a
vontade divina, é a submissão absoluta a Deus. Nesse sentido afirma Joaquim Salgado:
“Dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César é um princípio que fundamenta
a doutrina da diferença entre o inteligível e o sensível, a cidade de Deus e a cidade dos homens em
Santo Agostinho. A igualdade dos homens entre si é posta por santo Agostinho como absoluta, mas
somente na esfera da cidade de Deus”. 67
A finalidade última do homem é Deus e, nesse sentido, a cidade que não observa esta
ordem pratica a injustiça. Combater esse mal é um dever sem piedade. Assim, Agostinho justifica o
castigo infligido aos maus, para que a justiça perfeita se opere na cidade. Esta sua concepção
legitimou a servidão, pois a servidão nasce do pecado e serve ao propósito de expiação dos males
praticados. O homem tornado escravo não deve subverter a ordem social.
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A justiça, portanto consiste em dar a cada um o que é seu, que por sua vez é ditado pela
vontade de Deus. Como os homens não são perfeitos e se tornam pecadores, a justiça perfeita, como
igualdade de todos, só acontece na cidade de Deus. A lei eterna liga a criatura a Deus e a justiça se
configura na submissão à vontade divina. Na ordem natural, a lei natural prescreve a harmonia do
homem com ele mesmo, com a natureza e com o sobrenatural. A justiça está no reconhecimento do
homem como imagem de Deus, desprezando a carne e valorizando a alma. Esta dignidade é o que
confere o equilíbrio. No que se refere à Lei humana, Agostinho enfatizou que esta deve ter como fonte
de referência a Lei natural.
A Patrística de Agostinho foi marcadamente um período em que predominou o Novo
Testamento como doutrina constituída por regras morais e pela crença na salvação através do
sacrifício de Cristo. Segundo José Américo M. Pessanha, a nova fé não apresentava fundamentação
filosófica, mas uma religião que servia de contestação da ordem imperial vigente (os romanos). Essa
nova religião buscava no campo dos filósofos gregos os conteúdos para uma filosofia cristã.
Predominaram nesta fase escritos que apresentavam o cristianismo em sintonia com as
verdades racionais. O problema central da Patrística foi, portanto o problema da relação entre razão e
fé, entre o que se sabe pela convicção interior e o que se demonstra racionalmente. Além de Agostinho
destacaram-se São Justino, Clemente de Alexandria e Orígenes.
3 - Tomás de Aquino
O século XIII foi denominado de “século de São Tomás” e da “escolástica”. Este momento
é o período da quinta, sexta, sétima e oitava cruzadas. O período entre 1200 e 1300 é marcado pelo
surgimento de duas ordens mendicantes: os dominicanos ou “irmãos pregadores” de Domingo de
Gusmão; os franciscanos ou “irmãos menores” de Francisco de Assis (João Bernardone). Temos,
também, a criação das universidades; novas traduções de Aristóteles e de Averróis; o apogeu das
formas literárias criadas no final do séc. XII: comentários de sentenças, sumas de teologia e a
assimilação da filosofia natural peripatética. No início do séc. XIII, as únicas obras de Platão acessíveis
eram o fragmento do Timeu traduzido por Calcídio, o Mênon e o Fédon traduzidos por Henrique
Aristipo da Catânia. Tais textos não tiveram grande repercussão no séc. XIII, pois a verdadeira difusão
do pensamento de Platão ocorreu no séc. XV com a tradução da República pelo emigrado bizantino
Manuel Crisóloras, prosseguindo com Leonardo Bruni que traduz o Fédon, Górgias, Crítias, Apologia
de Sócrates e Banquete. Termina com as traduções de Platão e Plotino realizadas por Marsílio Ficino.
57
A obra de Aristóteles só foi conhecida em parte por volta do séc. XII o que gerou
consequências para a história do aristotelismo medieval, pois a obra de Avicena, seu comentador, fora
conhecida antes. Tal fato ressalta que os tradutores de Toledo interessavam-se mais pela filosofia
árabe-muçulmana e judaica do que pelo corpus aristotelicum. O ingresso do pensamento de Aristóteles
foi preparado pelo pensamento dos peripatéticos árabes. Nesse sentido, podemos dizer junto com
Libera que nunca existiu o aristotelismo em estado puro e que Tomás de Aquino realizou uma certa
desplatonização do pensamento aristotélico. Segundo Libera: “Os medievais, em geral, pensaram que
Aristóteles compusera orgânica e completamente suas obras. Eles não imaginaram a gênese interior
do corpus nem as condições concretas de sua composição. Com Averróis e Tomás de Aquino, o
método do grande comentário, fundamentado em recortes do texto e na sua recomposição por divisões
e subdivisões lógicas, impôs a ideia que as obras do Estagirita apresentavam um plano perfeitamente
ordenado, quando, pelo contrário, a composição nada tinha de intrinsecamente ligado”.68
Para a maioria dos historiadores da filosofia medieval, o séc. XII em particular
corresponde aos anos sombrios de uma verdadeira ditadura intelectual de Aristóteles. Ledo engano.
Para compreender o lugar exato de Aristóteles no pensamento medieval latinófono é preciso ter em
mente os três fatos elementares: 1. o conhecimento de Aristóteles pelos latinos é fenômeno tardio,
começa aproximadamente 700 anos após a queda do Império romano do Ocidente; 2. é um fenômeno
ambíguo, levando em conta os numerosos apócrifos, incorporados pela tradição interpretativa; 3. é um
fenômeno supradeterminado, levando em conta a redescoberta do texto aristotélico pelos comentários
ou pelas leituras do peripatetismo árabe, na verdade, um aristotelismo neoplatonizante.
Ademais, a própria categoria “aristotelismo” é desconhecida na Idade Média e o avanço
de Aristóteles foi institucionalmente combatido desde o final do séc. XII até a segunda metade do
século XIII e intelectualmente trazido à cena a partir da segunda metade do séc. XIV. Somente a
Lógica de Aristóteles, reduzida ao estritamente necessário se relacionou com a teologia da época.
Acreditava-se que a Lógica era neutra. As proibições se dirigiam à Metafísica, aos livros naturais e às
sumas extraídas dessa. Em 1230, a querela do aristotelismo é transposta para o interior da faculdade
de Teologia, o papa Gregório IX previne os teólogos contra as novidades profanas, pois entendia que a
fé não teria mérito quando a razão humana estivesse a emprestar seus recursos. Somente na
Universidade de Toulouse, Aristóteles é lido sem restrição – Aristóteles não seria mais corrigido.
Inocêncio IV estende a proibição até a Universidade de Toulouse, sendo esta restrição reeditada em
1263, todavia tornando-se letra morta. O papado não teve poder para impedir a difusão do aristotelismo
através de Averróis, no interior das Universidades.
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Do século XI ao século XIII, o problema que apaixonou a Idade Média e que orientou a
reflexão filosófica foi o problema dos universais, levantado a propósito da obra Isagoge de Porfírio69,
discípulo de Plotino. A preocupação da Escolástica com as palavras resulta da investigação da Bíblia
como portadora de verdades. Importa perceber a diferença entre o sentido literal e o saber simbólico.
Por tanto, neste período desenvolveu-se grande estudo da linguagem para depois examinar a realidade
das coisas. A indagação era: qual a relação entre as palavras e as coisas? O célebre romancista
Umberto Eco escreveu a obra O nome da rosa para colocar essa questão medieval dos universais.
Veja-se a Rosa como símbolo de perfeição. A palavra rosa subsiste à morte da própria flor – qual seria
a relação entre o nome e a coisa? Linguagem e realidade? Diante de tais indagações os medievais
tomaram duas direções: o nominalismo e o realismo. Os nominalistas compreendiam que os universais
eram termos que designam ideias gerais, meras palavras sem existência real; pura abstração que o
intelecto faz. Os realistas sustentam que há uma existência efetiva dos universais. Essa existência
pode ser à maneira platônica ou à moda aristotélica.
A partir do séc. XII, as obras de Aristóteles começam a ser divulgadas por intermédio dos
árabes que continuavam instalados em Espanha. O aristotelismo será conhecido através dos
comentários dos árabes. Fato que constituía ameaça para o acordo entre a reflexão filosófica e a fé
cristã.
Tomás de Aquino nasceu em 1225, seu pai foi conde de Aquino. Aos cinco anos foi
oferecido como oblato70 à abadia beneditina de Monte Cassino permanecendo até quatorze anos. Por
volta de 1239 retorna a casa dos pais antes de ingressar na Universidade de Nápoles, fundada por
Frederico II. Em 1244, ingressa como noviço na ordem dos Irmãos pregadores e renuncia ao abadado
do Monte Cassino, contra os projetos de sua família. Por ocasião de sua ida à Paris em companhia do
mestre geral da ordem, seus irmãos o levam para a casa de sua família, sob escolta. Libertado por
suas irmãs em 1245 foi para Universidade de Paris em busca do mestre Alberto Magno que
empreendia a reforma dos estudos teológicos. De 1248 a 1252 viveu em Colônia sob a orientação de
Alberto Magno, para organizar um studium generale, um centro de estudos teológicos. Regressa a
Paris em 1252 e obtém o título de bacharel bíblico e sentenciário, ou seja, encarregado de comentar o
livro das sentenças de Pedro Lombardo. Começa a lecionar na Universidade de Paris com 27 anos.
Em 1256 obtém de seu protetor, o papa Alexandre IV, o título de mestre. Em 1259 é
chamado à Itália por Alexandre e torna-se o teólogo da cúria pontifícia. Tomás escreve obras a pedido
do papado com vistas a observar o Novo Testamento e o pensamento grego. Elabora seus
comentários sobre as obras de Aristóteles a partir da tradução de Guilherme de Moeberke. Em 1269,
59
encontra a universidade de Paris dividida por lutas doutrinais. De um lado, o averroísmo latino que
negava a individualidade da alma humana e professava que o universo era tirado de Deus por
necessidade e, de outro, os franciscanos, agostinianos, conservadores, inimigos de todas as novidades
e, por consequência, do aristotelismo.
Em 1272, o papa Gregório X o envia para a Universidade de Nápoles. Por ocasião de uma
viagem com o objetivo de assistir o concílio de Lyon, morre de uma doença (1274) aos 49 anos.
Em 1277, o tomismo foi condenado simultaneamente pelo bispo de Paris, Etienne Tempier
e pelo primaz de Inglaterra, Robert Kildwarby. Sua doutrina encontra inimigos entre os franciscanos e
dominicanos. Todavia, o papa João XXII encerra o processo de canonização de Tomás em 1323 e
afirma que seus escritos são milagres.
Aquino estava firmemente agarrado ao princípio da não-contradição, confiante no poder
da razão relacionado à autoridade da fé. Estava convencido da unicidade da Verdade. Nenhuma
verdade certa do ponto de vista da razão pode ser contrária à fé. Nenhuma verdade de fé pode negar
uma verdade natural. A verdade é só uma, embora existam duas vias para atingir. No entanto, a fé
ultrapassa a razão. Seu tomismo não é uma simples justaposição da filosofia e da teologia. A sua
originalidade reside no equilíbrio interior que realiza entre a supremacia da teologia e a autonomia da
filosofia. Mas estabelece uma relação que mostra a filosofia servindo tanto melhor à teologia quanto
mais rigorosamente filosófica ela for, e a teologia revela tanto melhor o caráter sobrenatural da fé
quanto mais respeitar a luz natural da razão.
3.1 - Fé e Razão
Para Tomás de Aquino, a fé significa obediência e confiança na Palavra de Deus; mas,
não é um impulso cego da sensibilidade, e menos ainda um sacrificium intellectus. Pela adesão total
que ela exige dum ser dotado de razão e vontade, suscita por si própria a pesquisa teológica. Com a
expressão Fides quaerens intellectus de Santo Anselmo se define no trabalho da teologia: a fé em
busca da inteligência. Para Tomás, a fé não está ligada a uma pesquisa da razão natural para
demonstrar aquilo em que se acredita. O teólogo apela para a razão natural, não para provar este ou
aquele artigo de fé, por exemplo, a criação do mundo ou o mistério de um Deus em três pessoas, mas
para explicitar o conteúdo desses artigos e captar a ordem dos argumentos pelos quais se passa de
um para outro. Não existe fé para um ser privado de razão, tal como não há conhecimento sobrenatural
sem a possibilidade dum conhecimento natural.
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A necessidade duma inclusão do conhecimento natural no conhecimento sobrenatural não
significa a necessidade de uma anterioridade histórica do conhecimento filosófico de Deus
relativamente ao ato de fé. O conhecimento da fé pressupõe e pré-exige a validade do conhecimento
natural de Deus, não somente para dar um mínimo de sentido intelectual à palavra Deus, mas também
porque é o mesmo Deus que é visado pela razão e pela fé.
Não há um Deus para a fé e outro para a razão: só a afirmação de Deus pela fé difere da
afirmação de Deus pela razão. Deus, objeto adequado da fé, transcende o objeto próprio da razão, mas
é o próprio Deus o objeto real – objectum ut res – da fé e da razão. A priori é impossível saber e crer
uma mesma coisa sob o mesmo ponto de vista. O que é objeto da fé não é da ciência. Mas Tomás
acredita que para um mesmo objeto poderá haver fé e saber, ao mesmo tempo, e no mesmo indivíduo,
todavia sob perspectivas diferentes.
O mérito do Tomismo é manter assim, entre a fé e a razão, uma distinção sem separação
e uma união sem confusão. Nem a fé está subordinada à razão, nem a razão é anexada pela fé, e, no
entanto, elas vivem uma da outra e realizam-se numa promoção mútua e nessa relação recíproca,
encontram-se a si mesmas. O Tomismo caracteriza-se na crença inabalável no acordo entre a verdade
terrestre evidenciada pela razão e a verdade de fé recebida pela revelação.
A especulação teológica depende diretamente da fé, a reflexão filosófica é essencialmente
obra da razão. O filósofo considera as criaturas em si mesmas, o teólogo encara-as na sua relação
com Deus. O teólogo aprecia as causas primeiras, o filósofo aprecia as causas segundas. Nesse
sentido, a Teologia é mais perfeita que a filosofia, devido à sua maior semelhança com a Ciência
Divina, uma vez que Deus se conhece primeiramente a si mesmo e vê em si próprio todo o resto. A
teologia que é iluminada pela luz natural da fé, não recebe os seus princípios da filosofia, mas
diretamente de Deus, graças à revelação. Para Tomás somos feitos de tal modo que o nosso intelecto
deve partir dos conhecimentos obtidos através da luz natural da razão para ser encaminhado para os
conhecimentos que ultrapassam a razão e formam o objeto da teologia.
Não cabe à Filosofia procurar para a teologia essa evidência do seu objeto que a tornaria
uma ciência perfeita mesmo para nós. Filosofia constitui simplesmente a pré-compreensão ou o
preâmbulo necessário à inteligibilidade das verdades reveladas. Há uma inclusão do conhecimento
natural no conhecimento sobrenatural. E segundo E. Gilson, o acordo da Filosofia com a Teologia, no
Tomismo, é consequência necessária das exigências da razão e não simples desejo.
61
Na visão de Édouard Hugon, a grandeza filosófica de Tomás de Aquino muitas vezes é
esquecida ao denominá-la de “filosofia aristotélico-tomista”. De fato, Tomás de Aquino seguiu as trilhas
de Aristóteles, mas reformulou-os de tal modo que arquitetou uma nova filosofia. Introduziu na filosofia
peripatética os conceitos de Deus como criador das coisas, temporalidade da matéria-prima, do próprio
ser, levando às últimas consequências aquilo que Aristóteles esboçara. O ponto fundamental de sua
filosofia é o realismo. O seu ponto de partida é a realidade das coisas e não das ideias imaginadas. O
seu tomismo origina-se da percepção sensível do mundo para dela tirar no âmbito da inteligência um
conjunto consequente e harmonioso de teses.
Tomás de Aquino buscou as razões principais das coisas existentes, apreendidas pelos
sentidos, conceituadas pela inteligência, dirigindo-se às explicações últimas das mesmas. Nessa
trajetória partia das percepções mais primitivas até alcançar a certeza do Ser Supremo: das mudanças,
da causalidade existente entre elas, da contingência, das perfeições e da ordem harmoniosa das
coisas. Deus seria a explicação de todas as coisas, por conseguinte, seu realismo é a filosofia do ser e
da verdade; verdade que seria a correspondência da mente com as coisas. Em primeiro lugar, as
coisas, depois a mente, ou dizendo de outro modo, em primeiro lugar o objeto e depois o sujeito. “O
critério supremo do tomismo é a verdade imparcialmente aceita”.71 Diz-nos Tomás de Aquino: “O
estudo da filosofia não é para se saber o que os homens pensaram, mas para que se manifeste a
verdade” (De Coelo et Mundo, I,22).
A noção de ser é o fundamento primeiro das coisas e a última determinação da perfeição
das mesmas. A noção do ser é a primeira que afeta nossa inteligência e perpassa todos os nossos
conhecimentos. O ser é a própria natureza de Deus, ou seja, sabemos através de uma operação lógica
que Deus é e o conhecemos por meio de uma analogia. “Se o Tomismo admite entes de razão, cuja
realidade objetiva está tão somente na inteligência, os seres de razão nada mais são que ideias
formuladas pela razão, para que melhor se atinja a realidade existencial das coisas. Somente em Deus
o ser atinge a sua suprema perfeição. Deus une todas as perfeições na infinitude de um ser que vem
de si mesmo e que desconhece mudanças e sucessão. Deus é o ser de ato puro destituído de
qualquer imperfeição ou potência – a perfeita posse e simultânea de todas as perfeições: é o ser eterno
(Boécio) ”. 72
3.2 - Justiça e Sinderesis
O cristianismo opera um deslocamento no sentido da liberdade. Enquanto para os antigos
a liberdade era um conceito essencialmente político, passa a figurar para os medievais somente no
62
interior de cada ser humano e se articula com a ideia de vontade dividida entre bem e mal. A liberdade
afigura-se como livre-arbítrio. Nesse sentido, percebemos a despolitização da liberdade e a sua
moralização junto à concepção de culpa originária. Surge a ideia do dever e da obrigação que exige a
submissão à vontade divina. A noção de responsabilidade assume um papel novo: a responsabilidade
individual.
A concepção ética de Tomás de Aquino é teleológica, porque enfatiza o fim último do
obrar ético na noção de Bem Comum. A atividade ética consiste no que denominamos de atividade da
razão prática, ou seja, capacidade racional de discernir o bem do mal para alcançar o fim último. A sua
filosofia denominou a razão prática de sinderese ou sinderesis que poderá ser entendida como um
conjunto de conhecimentos conquistados a partir da experiência habitual. Partindo dessa experiência
podemos cunhar os principais conceitos acerca do que é bom ou mal; justo ou injusto.73
A sinderese atua para desvelar o bem, ou seja, aquilo que a todos agrada (bonum est
quod omnia eppetunt). Na visão aquiniana o mal só encontra sentido enquanto “bem aparente” e isto
significa dizer que decorre de um equívoco que pensa o mal como se fosse o bem. Na verdade Tomás
de Aquino compreendeu o mal como privação do bem ou estado de ignorância do verdadeiro Bem.
Segundo Eduardo Bittar: “Todo conjunto de experiências sinderéticas, ou seja, de experiências
hauridas pela prática da ação, é capaz de formar um grupo de princípios, de conceitos (...) que
permitem a decisão por hábitos (bons e maus; justos e injustos). Isto quer dizer que os hábitos não são
inatos, mas sim conquistados a partir da experiência; é essa a base das operações da razão prática. O
princípio da razão prática, assim dirigida em sua finalidade, será, como já se disse fazer o bem e evitar
o mal (bonum faciendum et male vitandum).”74
Nesse modo de ver, o homem deverá guiar-se por princípios extraídos da experiência
sinderética. Essa experiência formará a lei natural que apresentará as seguintes características: 1.
Uma lei racional, pois é fruto da experiência racional ou sinderética; 2. Uma lei rudimentar, ou seja,
originária que somente poderá ser considerada como princípio norteador; 3. Uma lei insuficiente e
incompleta, no sentido de que exige o complemento de uma lei positiva, para a qual representa uma
diretriz.
A ética exige o sentido de justiça no âmbito das relações entre homens. Tomás de Aquino
apresenta o seu conceito de justiça a partir do seu conceito de ethos. Encontramos ecos do
pensamento aristotélico que concebia a justiça como uma virtude e o conceito romano de justiça como
63
vontade perene de dar a cada um o que é seu, segundo uma razão geométrica. A justiça é uma virtude,
ou seja, o meio entre excesso e carência.
Tomás de Aquino afirma expressamente que justiça é dar a cada um o que é seu: Cum
iustitiae actus sit reddere unicuique quod suum est, actum justitiae pracedit quo aliquid alicuius suum
efficitur, sicut in rebus humanis patet.75 A igualdade que figura nesta definição de justiça é uma
igualdade entre pessoas. Justiça é um hábito que se desvela nas atitudes ou comportamentos dos
homens. A lei positivada é importante no sentido de que conduz o homem ao caminho virtuoso do Bem
Comum e torna a convivência social pacífica.
Bittar observa que na visão aquiniana é da interioridade virtuosa que o homem retira o
necessário para a elaboração da conduta externa, ou seja, o bem que se pratica é fruto da fé e do
conhecimento da divindade, do temor de sua onipresença e da vontade de orientar-se de acordo com a
palavra que salva. Em outras palavras, podemos afirmar que Aquino quer dizer que a Lei divina (lex
aeterna) possui uma supremacia que a coloca em uma instância superior em relação à lei natural e
positiva.
Estudamos que o mundo antigo nos oferecia o espetáculo da competição entre duas
sabedorias: a grega e a hebraica. Este conflito marcou o fim do período antigo e o esforço da Idade
Média em articular a sabedoria divina com a sabedoria humana. A sabedoria grega apresentava um
interesse direcionado para mundo. Nesse sentido, o seu paganismo lançava raízes no pensamento
mágico. A razão grega acreditava no destino, na boa ou má sorte, nas inspirações superiores, na
adivinhação etc. A razão grega partia da realidade tangível e visível, do vir-a-ser, do comportamento
humano. Na sabedoria hebraica ou da salvação, Deus é quem concebe a sabedoria ao homem.
O cristianismo promoveu uma modificação dos valores éticos: 1. a transcendência do fim
último, onde Deus se torna o valor supremo. Surge o Deus pessoal criador do mundo; sendo ele
perfeito, independente e livre. 2. a transfiguração da felicidade em bem-aventurança, o que significa
dizer que não é através da razão, mas da fé que o homem alcança a felicidade. Esta felicidade está
expressa no sentido de posse ou visão intuitiva de Deus. 3. as virtudes teologais (fé, esperança e
caridade) se colocam acima das virtudes morais.
64
Parte VI - O Jusnaturalismo
1 - O jusnaturalismo no pensamento antigo e medieval
A tua lei não é alei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses. Porque essas não são leis de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos”. (Fala de Antígona a Creonte na tragédia grega sob o nome Antígona de Sófocles, 498 a C.)
As primeiras manifestações do jusnaturalismo aconteceram na Grécia. Há a afirmação de
um conceito de “justo por natureza” que se contrapõe ao “justo por lei” que fora enfatizado pelos
sofistas que já entendiam a expressão “justo por natureza” de formas distintas e com consequências
políticas também diversas. O mundo grego antigo desenvolveu um jusnaturalismo cosmológico.
O jusnaturalismo presente no pensamento de Platão e Aristóteles, posteriormente
retomado pelos estóicos, compreendia a Natureza como se fosse governada por uma lei universal,
racional e imanente. Essa concepção apresentada em Roma por Cícero, em versão racionalista,
exerceu grande influência no pensamento cristão dos primeiros séculos.
Na obra De Republica, Cícero76 defendeu a existência de uma lei verdadeira, conforme à
razão, imutável e eterna, que não muda com os países e com os tempos e que o homem não pode
violar sem renegar a sua própria natureza humana. Os padres da igreja ao acolherem as ideias de
Cícero, se viram diante de uma grande tarefa: conciliar esse direito natural com a ideia de lei revelada.
Os juristas romanos também buscaram no estoicismo a ideia de um direito natural como,
por exemplo, Ulpiano que chegou a definir o direito natural como aquilo que a natureza havia ensinado
a todos os seres animados. Essa ideia acabou por reduzir o direito natural ao mero instinto, posto que
incluía também como seres animados os seres irracionais, ou seja, os motivados apenas por instinto.
Esta concepção que se configura em uma versão naturalista, oposta à de Cícero, foi adotada por
muitos escritores medievais. Temos, portanto, duas versões do direito natural: a versão naturalista de
Ulpiano e a versão racionalista de Cícero.
A idade Média se identificava com a doutrina de um suposto direito natural revelado por
Deus a Moisés e com o Evangelho (Graciniano – séc. XII). Foi Tomás de Aquino que compreendeu a
lei natural como aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus, governador do universo, que se
acha presente na razão humana – uma norma racional. O seu jusnaturalismo foi de grande
65
importância, pois constituiu a base do jusnaturalismo católico. Tomás de Aquino foi severamente
criticado por seus coetâneos, mas hoje é considerado o filósofo medieval mais importante do
catolicismo.
A doutrina tomista foi considerada por muitos comentadores como uma retomada do
pensamento estóico-ciceroniano da lei verdadeira enquanto racional.
Enfim, na época clássica, o direito natural não era concebido como superior ao direito
positivo, mas tão somente era considerado como um direito comum. O direito positivo como um direito
especial ou particular de uma dada civitas, baseando-se no princípio de que o direito particular
prevalece sobre o direito geral – “lex specialis derogat generali”. 77
Não podemos olvidar que a sociedade medieval era marcadamente uma sociedade
pluralista, ou seja, inúmeros agrupamentos sociais cada qual dispondo seu próprio ordenamento
jurídico. Nesse contexto, o direito positivo assumira o caráter de fenômeno social, posto pela sociedade
civil. Por outro lado, o direito natural passara a ocupar status privilegiado, uma vez que adquirira o
status de norma fundada na própria vontade de Deus – como a lei escrita por Deus no coração dos
homens.
O direito natural é percebido como aquele contido na lei mosaica, no Velho Testamento e
no Evangelho. Desta concepção derivou a ideia jusnaturalista do direito natural como superior ao direito
positivo. A esse respeito ressalta Norberto Bobbio que se trata de uma distinção de grau e não de
qualificação, pois tanto um como outro se configuram como direito na mesma acepção do termo.
Somente com o advento do positivismo jurídico é que o direito natural é excluído da categoria do
direito.
2 - Jusnaturalismo no pensamento renascentista e moderno
Segundo os estudiosos, o termo Renascimento significa um movimento intelectual que se
iniciou por volta do final do século XV. O objetivo perseguido por esses intelectuais era abandonar as
ideias medievais, para um retorno à Antiguidade clássica. No sentido amplo, Renascimento configura
um momento de tensão entre duas autoridades: a do Papa e a das monarquias. Trata-se de uma época
de grande crise da consciência européia, devastada por inúmeras dissensões e uma esplêndida
florescência do humanismo, ou seja, o estudo da cultura greco-romana, a exaltação do homem, a
valorização da razão e da liberdade. Observa-se, portanto, que nesta fase ressurge um interesse pela
66
pesquisa natural, na qual a observação assume papel fundamental. Surgem cientistas e filósofos que
revisitaram as questões medievais, a partir de uma nova ótica. Este é o século de Shakespeare, Dante,
Bocaccio, Cervantes, Tomas Morus, Camões, Erasmo de Rotterdam, Maquiavel, Michelangelo,
Leonardo Da Vinci, Galileu Galilei, Kepler e tantos outros. Durante essa fase muitos precursores da
ciência sofreram nos Tribunais da Inquisição, órgão da Igreja encarregado de descobrir e julgar os
hereges. 78 Foi um momento em que o homem perdeu suas certezas e verdades, afinal, a Terra não
era mais o centro do universo, o céu não era finito e o homem deixava de ser criatura miserável.
Três concepções predominaram no período do Renascimento, a saber: 1. O pensamento
platônico, a partir do neoplatonismo e a descoberta do hermetismo que compreendiam a Natureza
como um grande ser vivo, o homem como microcosmo e o conhecimento da Natureza através da
magia natural (alquimia e astrologia). 2. Os pensadores florentinos que valorizavam a política e
defendiam os ideais republicanos das cidades italianas contra o império romano-germânico,
aumentando a tensão entre os imperadores e o papado (liberdade política versus autoridade
eclesiástica). 3. A concepção do homem como artífice de seu próprio destino através do conhecimento,
da política, das técnicas e das artes. Essa fase marcou também o momento inicial de uma filosofia do
direito e do Estado explícita como resultado do homem em seu novo papel de criador no mundo social.
No âmbito religioso, a “Reforma” que tem sido considerada responsável pelo surgimento do
protestantismo no séc. XVI fortaleceu o individualismo intelectual e estético desse humanismo
crescente. Os reformadores protestantes voltaram as costas à tradição medieval, pretendendo com
isso reatar a Antiguidade cristã, um retorno ao pensamento agostiniano. O que importa perceber é que,
num plano mais vasto, fortaleceram a oposição à Escolástica medieval.
Como ressalta Truyol y Serra79, dentre os acontecimentos mais importantes desta etapa
do pensamento humano, um alterou profundamente o cenário europeu: o advento do Estado soberano.
Na verdade vários acontecimentos contribuíram para essa mudança: o combate ao pluralismo feudal; a
tentativa de enfraquecer o papado; a expansão da economia no sentido de um capitalismo; o
descobrimento da América; as viagens de exploração ultramarina pondo o Ocidente em contato com
outros povos; a criação da Imprensa; e, sob o aspecto terminológico, o surgimento da palavra Estado -
lo stato, designando a ideia de coisa pública. Este é o momento de crise; crise que caracteriza a
transição da Cristandade medieval para o Estado moderno.
O jusnaturalismo moderno assumiu no séc. XVII características laicas80 e no campo
político, características liberais. Alguns autores entenderam que a origem do jusnaturalismo moderno
estaria na doutrina de Hugo Grócio (1583-1645), enunciada na obra De iure belli ac pacis,81 de 1625, e
67
se deve à grande disputa entre as alas extremas do voluntarismo calvinista e o pensamento tomista de
influência estóica-ciceroniana. Grócio diferenciou direito natural e direito positivo da seguinte maneira:
“O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é
moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não conforme à própria natureza racional
do homem”.
Hugo Grócio afirmou que o direito natural é ditado pela razão, independente de qualquer
interferência divina. Esta sua ideia anuncia o modo de ver da época que estaria por vir, a época do
Iluminismo, momento do surgimento de uma nova cultura; uma cultura laica e antiteológica. Segundo
alguns comentadores, o pensamento de Grócio teria fortalecido o caminho para esse pensamento
laicizado no âmbito da moral e da política. Este autor sustentou que o direito natural é imutável e
independente de Deus como legislador supremo. Na verdade o direito possui uma dupla origem, a
saber: a recta ratio e a appetitus societatis (desejo de uma sociedade tranquila e ordenada).
A obra de Grócio difundiu com grande sucesso a ideia de um direito natural, cuja fonte
repousa exclusivamente na validade da sua conformidade com a razão humana. A consequência mais
relevante do seu pensamento foi a ideia de adequar a lei positiva e a Constituição a esse direito natural
e legitimar a possibilidade de resistência e desobediência civil em caso de conflito. Segundo Paulo
Nader82, o pensamento racionalista de Hugo Grócio forneceu as condições de possibilidades para o
advento da Escola Clássica do Direito Natural.
A Escola Clássica do Direito Natural apresentou e defendeu algumas ideias, a saber: a
valorização da natureza humana como fonte do direito natural; a crença num suposto estado de
natureza; a ideia de um contrato originário como origem da sociedade; a existência de direito naturais
inatos. Tais ideias no seu conjunto contribuíram para o processo de laicização do direito, como também
conduziram ao sentido de um direito natural imutável, universal e eterno. Além de Hugo Grócio,
Hobbes, Spinoza, Locke, Puffendorf, Tomásius e Rousseau foram considerados representantes dessa
escola.
Na Inglaterra, ao largo do pensamento do holandês Hugo Grócio, temos a obra Dois
tratados sobre o governo, de John Locke, escritos em 1680 e publicados em 1690 que já observava
limitações ao poder real. O jusnaturalismo de Grócio e o jusnaturalismo do séc. XVII foram de grande
importância, pois fundamentaram teoricamente o que entendemos por direito internacional daquela
época que, por sua vez, apresentava-se sob o nome: Do direito natural e das gentes.
68
3 - Características do jusnaturalismo moderno
A diferença marcante entre o jusnaturalismo antigo-medieval e o jusnaturalismo moderno
repousa sobre o fato de que o primeiro vincula-se à ideia de que tal direito constituiria uma teoria do
direito natural como norma objetiva; o segundo momento do jusnaturalismo configura o momento de
uma teoria dos direitos subjetivos. Bobbio observa que entre o direito natural da Antiguidade clássica,
do período medieval e do período moderno não há rupturas, mas continuidade.
O jusnaturalismo moderno enfatiza o aspecto subjetivo do direito natural, isto é, os direitos
inatos, deixando de lado o aspecto objetivo, o da norma. Por conta deste traço essencial, o
jusnaturalismo do séc. XVII e XVIII fundamentou doutrinas políticas de tendência individualista e liberal,
ressaltando peremptoriamente a necessidade do respeito e reconhecimento desses direitos por parte
da autoridade política.
Esse modo de ver modifica também a figura do Estado que passa a não ser mais visto
como instituição necessária por natureza, mas sim como obra voluntária dos indivíduos. Os indivíduos
abandonam o estado de natureza (diversamente entendido, mas sempre carente de organização
política) e fazem surgir o Estado politicamente organizado e dotado de autoridade para garantir os
direitos naturais. A legitimidade do Estado é assegurada por um pacto entre cidadãos e um soberano,
visando salvaguardar os direitos naturais.
As doutrinas jusnaturalistas modernas consideraram a sociedade como efeito de um
contrato entre os indivíduos; este contrato se desdobraria em dois momentos: o pacto de união e o
pacto de sujeição. Direitos inatos, estado de natureza e contrato social, conquanto diversamente
entendidos pelos vários expoentes do jusnaturalismo moderno (Grócio, Locke, Milton, Pufendorf,
Cumberland, Wollf, Vattel, Rousseau, Kant, Fichte) são conceitos característicos desta corrente de
pensamento. Isto quer dizer que se acham presentes em todas as doutrinas legítimas dessa corrente
de pensamento político.
Faz-se mister ressaltar que, sobretudo em Rousseau e Kant, a teoria do contrato afigurou-
se como uma historieta de ficção, ou mera ideia reguladora capaz de explicar racionalmente a
realidade histórico-política da formação do Estado.
A tradição constitucionalista inglesa inspirou-se na doutrina do direito natural, como
também na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América (1776), que afirmaram a
69
existência de direitos do homem inalienáveis. Nesse sentido, a Declaração dos Direitos do Homem e
Cidadão (1789) configurou um dos primeiros atos da Revolução Francesa que proclamou a liberdade, a
fraternidade e a igualdade.
Outro efeito importante do jusnaturalismo moderno foi a reformulação da legislação
positiva para torná-la adequada às novas exigências. Sentiu-se em certo momento uma forte
necessidade de reforma legislativa, assim, o jusnaturalismo com sua teoria de um direito absoluto e
universalmente válido, enquanto ditado pela razão, seria capaz de oferecer as bases doutrinais para
uma reforma racional da legislação.
4 - As teorias do contrato e o direito natural
Por contratualismo entendemos teorias diversas com problemas e soluções também
diversas. Em sentido amplo, o contratualismo compreende aquelas teorias políticas que vêem a origem
da sociedade e o fundamento do poder político na figura jurídica do contrato, ou seja, um acordo tácito
ou expresso entre a maioria dos indivíduos, acordo que assinalaria o fim do estado natural e o início do
estado social e político. Em sentido restrito, representa uma escola que floresceu na Europa entre os
começos do séc. XVII e fins do séc. XVIII, que teve os seguintes expoentes: J. Althusius (1557-1638);
T. Hobbes (1588-1679); J. Spinoza (1632-1677); S. Pufendorf (1632-1694); J. Locke (1632-1704); J.-J.
Rousseau (1712-1778), I. Kant (1724-1804).
Tais autores apresentaram o uso comum de uma mesma sintaxe ou estrutura conceitual
para racionalizar a força e alicerçar o poder no consenso. Desta forma, podemos compreender dois
níveis distintos, a saber:
1 1 - Os que sustentavam a passagem do estado de natureza ao de sociedade
como um fato histórico realmente ocorrido para dar conta do problema
antropológico da origem do homem civilizado;
2 2 - O estado de natureza como mera hipótese lógica a fim de ressaltar a ideia
racional ou jurídica do Estado. Nesta concepção o fundamento da obrigação
política repousa consenso expresso ou tácito que legitima uma autoridade que os
represente e encarne (contratualismo clássico).
Encontramos, assim, a ideia do direito como a única fonte de racionalização das relações
sociais. Três fatores explicam essa ideia: a influência da escola do direito natural com a qual o
70
contratualismo está relacionado; a necessidade de legitimar o Estado, as leis criadas pelo soberano
que tenderiam a substituir o direito consuetudinário; construir um sistema jurídico que evidencie a
autonomia dos sujeitos desse contrato, colocando como base de toda juridicidade o pacta sunt
servanda.
5 - O conceito de jusnaturalismo segundo Guido Fassò
O jusnaturalismo é uma doutrina que afirma a tese segundo a qual existe e pode ser
conhecido um direito natural, ou seja, um sistema de normas de conduta diversa do sistema constituído
pelas normas fixadas pelo Estado. Este direito natural teria validade em si, seria anterior e superior ao
direito positivo e, em caso de conflito, ele prevaleceria.
O jusnaturalismo é uma doutrina oposta ao positivismo jurídico que enfatiza a existência
de um só direito, aquele estabelecido pelo Estado e cuja validade não dependeria de valores éticos.
Na história da filosofia jurídico-política surgiram três versões do jusnaturalismo: a de lei
estabelecida por vontade da divindade e por esta divindade levada aos homens; a de lei natural em
sentido estrito e co-natural a todos os seres animados; a de lei ditada pela razão, específica do homem,
animal racional, que a encontra dentro de si. Todas essas versões partem do pressuposto que o direito
natural é constituído de normas logicamente anteriores e eticamente superiores às do Estado.
Qualquer atividade política que se oponha às normas do direito natural será considerada ilegítima.
Enfim, os jusnaturalistas admitiam a existência de um suposto estado de natureza, ou
seja, uma forma de convivência onde existiam apenas relações intersubjetivas entre os homens, sem
um poder político organizado. Este seria o momento anterior à formação da sociedade política,
caracterizando-se por possuir um direito natural.
6 - Proposta para uma distinção entre direito natural e direito positivo
Segundo ensina Norberto Bobbio, na obra O positivismo jurídico, a clássica distinção entre
direito natural e direito positivo já se encontra claramente exposta no cap. VII, do Livro V, da Ética a
Nicômaco de Aristóteles. Nesta obra o direito positivo é denominado de direito legal; o direito natural se
define pelos termos “justiça” e “direito”. Para Aristóteles, o direito natural possui eficácia em toda parte
e prescreve ações cujo valor não exige ajuizamentos, sua bondade é objetiva, são ações consideradas
boas em si mesmas. O direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas em que é posto;
o direito positivo é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser cumpridas
71
indiferentemente de um modo ou de outro, mas se imposta por lei, devem observar o seu modo
prescrito em lei.
No direito romano a dicotomia direito natural e direito positivo pode ser vista a partir da
distinção entre jus naturale (inclui-se aqui o jus gentium) e jus civile, que seria o correlato ao nosso
direito positivo. Segundo Bobbio, o primeiro tipo de direito corresponderia à natureza, à razão natural e
o segundo tipo corresponderia às estatuições do povo. O direito natural seria aquele que a natureza
ensina aos homens e o direito positivo aquele organizado por um determinado povo em uma
determinada época.
7 - Critérios de distinção entre direito natural e direito positivo
Norberto Bobbio enumera seis critérios para distinguir direito natural e direito positivo, a
saber:
1 O primeiro critério baseia-se na antítese universalidade/particularidade: o direito
natural é universal; o direito positivo particular (Aristóteles).
2 O segundo critério repousa sobre a diferença entre imutabilidade e mutabilidade:
o direito natural é imutável; o direito positivo é mutável (Paulo).83
3 O terceiro e mais importante critério refere-se à fonte do direito: o direito natural
funda-se no poder da razão; o direito positivo, no poder do povo (Grócio).
4 Este critério refere-se ao modo pelo qual o direito é conhecido por seus
destinatários: o direito natural é conhecido pela razão; o direito positivo é
conhecido através de uma declaração de vontade.
5 Este critério concerne ao objeto de cada direito: o comportamento regulado pelo
direito natural poderá ser considerado bom ou mau por si mesmo; o
comportamento observado pelo direito positivo depende da sua tipificação para
ser justo ou injusto.
6 O último critério refere-se à valoração das ações: o direito natural estabelece o
que é bom; o direito positivo o que é útil.
É preciso não perder de vista a importância do direito natural para a reflexão jurídica e que
este direito não pode ser considerado como mera filosofia do direito positivo, mas está presente em
todas as dimensões da juridicidade. Nos dizeres de Paulo Nader:
72
“Se no Direito natural se destaca a atuação do filósofo e no Direito Positivo, a figura do jurista, é de reconhecer que não podem as duas ordens se apresentar como departamentos alheios entre si. A formação do Direito Positivo e sua aplicação exigem a atuação do jurista prático e a presença do teórico, identificado este com o jurisfilósofo. Se o conjunto de princípios é alcançado pela reflexão, a sua conversão em Direito Positivo, sem se esgotar, exige o jurista prático. Como a tarefa do Direito Natural não se limita na orientação ao legislador, pois deve influenciar na aplicação do Direito aos casos concretos, o juiz deve possuir o pendor para a reflexão, pois a sua missão não lhe impõe o sacrifício da neutralidade axiológica.”84
De um modo geral, podemos observar, de acordo com o pensamento de Giovanni
Reale85, que os estudos de Filosofia do Direito ao longo de nossa história baseavam-se em três esferas
distintas entre si86: a esfera do jusnaturalismo; a esfera do realismo jurídico e a esfera do positivismo
jurídico.
Não há dúvida de que o jusnaturalismo configura uma doutrina muito antiga que
relacionou direito e justiça. O pensamento jusnaturalista de Gustav Radbruch (1878-1949) expresso na
obra Filosofia do Direito (1932) apresenta claramente essa relação entre validade e justiça:
“Quando uma lei nega conscientemente a vontade de justiça – por exemplo, concedendo arbitrariamente ou rejeitando os direitos do homem -, falta-lhe validade (...) Os juristas também devem encontrar a coragem para rejeitar-lhe o caráter jurídico. Pode haver leis tão injustas e danosas socialmente que é preciso rejeitar-lhes seu caráter jurídico (...), já que existem princípios jurídicos fundamentais mais fortes do que toda normatividade jurídica, a tal ponto que uma lei que os contradiga carece de validade. Onde a justiça não é sequer perseguida e onde a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada pelas normas do direito positivo, a lei não apenas é direito injusto, mas em geral também carece de juridicidade”.
O maior problema da doutrina jusnaturalista está em compreender a seguinte questão: o
que é a justiça? Seria possível encontrar critérios que nos permita estabelecer definitivamente o que é
o justo? Essa pergunta constitui o pano de fundo do pensamento jusnaturalista, ao mesmo tempo em
que se desvela como seu maior desafio.
Quando estudamos o direito natural, não estamos afastados da nossa realidade concreta,
mas imersos no pensamento dos seres humanos comuns ou medianos. Todos nós, independentes de
credo, temos interesse por uma vida digna, ou seja, justa. Nesse sentido, os anseios da doutrina
jusnaturalista estão presentes na própria experiência vivida. Desejamos direitos naturais como a
liberdade, a igualdade, o respeito à diferença e à paz. Lutamos por direitos humanos e o direito a um
73
ambiente ecologicamente equilibrado, porque temos como pano de fundo os pressupostos
jusnaturalistas.
Os direitos naturais não configuram a base fundamental para a vida em sociedade? O
Direito pode estar desvinculado dessa dimensão? Apesar dos esforços de muitos filósofos e juristas ou
de juristas-filósofos, temos uma grande e árdua tarefa: a de refletir sobre essas questões, porque o
valor justiça é indispensável.
Podemos entender por direito natural os princípios que norteiam as fontes geradoras da
norma jurídica e que também atuam efetivamente em sua aplicação. Princípios que são a-históricos e,
portanto, não se confundem com os desdobramentos posteriores, quando submetidos à mutação. São
princípios e não normas. O direito natural não se reduz ao sentido de um direito costumeiro, mas um
direito costumeiro possui elementos do direito natural. O direito natural é a própria expressão da
natureza humana, não resulta do mundo da vida. O seu lugar ontológico não é a cultura, mas a
natureza humana.
Temos, portanto, normas de direito positivo com raiz costumeira e normas de direito
positivo com fundamento no direito natural. O direito natural, na verdade, se confunde com os próprios
princípios gerais do direito que estão na base da elaboração das normas e na sua aplicação ao caso
concreto.
8 - Hobbes, Locke e Rousseau.
8.1 - Thomas Hobbes (1588-1679) 87
No entendimento de Thomas Hobbes (1588-1679), o poder soberano é instituído no
momento em que uma multidão de homens passa do estado de natureza ao Estado político, isto é, do
estado de guerra permanente de todos contra todos ao Estado enquanto centro ordenador da vida em
sociedade, capaz de promover a paz, a segurança e o bem estar de todos os súditos. Os homens
passam a viver sob a “espada pública” da lei, condição de eficácia dos pactos firmados. Nesse
momento, celebra-se o pacto maior quando todos põem suas vontades particulares ao serviço do bem
maior, à vontade do soberano que não é outra senão o interesse pelo bem comum, somente possível
em razão do poder coercitivo do Estado.
O poder soberano no sistema hobbesiano é aquele exercido por um homem ou por uma
assembleia de homens, uma vez cedido e transferido o domínio que cada um tem sobre si mesmo em
74
favor do Estado - juiz capaz de impor uma só vontade - unidade necessária ao interesse do bem
comum, na certeza de que o mesmo é assegurado pela paz. Destaca-se que esse soberano, embora
sendo fruto do pacto firmado por todos, não faz parte do pacto, não é figura contratante, não
estabelece nenhuma relação de bilateralidade com este ou aquele membro da sociedade, sua ação
fundamenta-se no preceito erga omnis, sendo portanto livre no exercício do poder. Sua ação é sempre
justa.
Sendo o Estado conditio sine qua non à preservação da paz e da justiça, este mesmo
Estado detém os meios necessários ao fim perseguido. Tais meios são absolutos, não há nenhuma
divisão de poder, pois o soberano em suas determinações o tem como força instrumental na execução
da justiça, ou seja, no respeito aos contratos válidos, visto que numa sociedade fundada na lei, todo e
qualquer contrato válido deve ser cumprido, pois isso é a perfeita expressão de justiça, a garantia dos
interesses firmados. Entretanto, caso assim não proceda, instala-se a insegurança, é o retorno ao
estado de natureza, a fragmentação, a guerra de todos contra todos em ato e potência, a beligerância
propriamente dita e sua permanente pré-disposição: a insegurança total.
O soberano é o supremo mandatário, exerce o poder no firme propósito de manter a paz e
possibilitar as condições necessárias ao quotidiano da vida. Os membros dessa sociedade podem
trabalhar, ter propriedade, utilizar as estradas em segurança, sair de casa sem nenhum medo de
saque, desenvolver a indústria e o comércio, expandir riquezas e dormir tranquilamente. O soberano
representa a soberania do Estado e guarda zelosamente a sociedade constituída. Seu poder não é um
fim em si mesmo, é apenas instrumento de coesão das forças existentes, sua finalidade consiste na
esperança de todos celebrando e respeitando contratos. O soberano deve ser forte para impor sua
autoridade, tanto no plano interno quanto no externo, o receio da punição leva o respeito à lei por parte
dos súditos, o firme e violento contra-ataque do seu exército é a medida da segurança territorial de toda
e qualquer invasão externa.
Finalizando, os limites do soberano, os limites da soberania exercida por um só corpo
político absoluto estão relacionados ao exercício de sua função. Aquela multidão de homens quando
instituiu o Estado, o poder soberano, designou seu representante para exercer autoridade necessária e
eficiente ao interesse da unidade dos homens, garantindo justiça e paz, em troca oferecendo toda
obediência possível. Em nome dessa obediência e da representatividade, o soberano não pode
promover injustiças e insegurança no plano interno e no plano externo. Tanto o bem do povo quanto o
bem do soberano são inseparáveis, este é o legítimo representante daquele, instituído para fazer valer
o bem comum, o fim de todo Estado: justiça e segurança. Quando esse fim não é alcançado e os
75
súditos passam a viver sob o estado de insegurança, como vítimas de injustiças, não encontram no
soberano o poder de solução (podendo ser até o soberano agente de injustiças e insegurança), só lhes
resta o uso da razão, manter sua existência, garantir sua vida da melhor maneira possível, o que seria
o retorno à barbárie.
8.2 - John Locke (1632-1704)
A proposta do presente seminário é analisar os conteúdos daquilo que comumente
entendemos por direitos civis e em que medida o pensamento lockiano é suficiente para responder as
exigências das novas relações políticas existentes em nossos dias. Toma-se John Locke (1632-1704)
por fundamento em razão de uma tese muito simples: ao se debruçar sobre a Constituição brasileira de
1988, logo se percebe os valores da livre iniciativa, do trabalho, da propriedade e da divisão dos
poderes políticos com o propósito de organizar um governo civil capaz de atinar para as expectativas
dos indivíduos. Se de fato isso ocorre ou não na ordem material, constitui um problema a ser
devidamente estudo.
Destarte dividiu-se o presente texto em três tópicos e uma conclusão. O primeiro tópico
trabalho a noção de direitos civis a partir da Carta de 1988 sem travar nenhuma discussão doutrinária.
No segundo tópico faço uma pequena resenha do pensamento político de Locke, situando-o na
tradição filosófica como um pensador preocupado com a ordem legal nas relações de sociedade. N
terceiro e último tópico, destaco o sentido de legalidade tanto como premissa fundamental para o
pensamento de Locke, como uma realidade construída enquanto algo necessária ao bom termo da
sociedade.
8.2.1 - Noção de direitos civis dentro da Constituição de 1988
Primeiramente é preciso entender o significado de direitos civis e com isso verificar o grau
de responsabilidade que a constituição de 1988 impôs ao Estado brasileiro na consecução de seu fim.
Por direitos civis pode-se entender todos os direitos concernentes ao homem no tocante à
vida, à liberdade, à segurança, à igualdade e à propriedade nos termos estabelecidos pela lei. Esses
são os elementos que informam os direitos civis na constituição brasileira de 1988, no seu art. 5º.
Entende-se que tais direitos são essenciais não só ao plano do indivíduo como também ao plano
coletivo, portanto os direitos civis assumem a dimensão de necessidade social. A satisfação do
indivíduo implica no equilíbrio da sociedade que é pensada como um corpo representado na
perspectiva dos seus componentes. Para pensar os direitos civis (aqueles individuais e coletivos) face
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à exclusão social que atormenta a vida brasileira, focalizou-se o item propriedade como problema
central. Isso porque a propriedade no nosso sistema político assume a possibilidade do homem se
manifestar não somente como igual, mas também como necessariamente responsável pelo corpo
social.
Pode-se dizer que a propriedade assume um caráter imprescindível nas relações político-
sociais, porque implica o nível de liberdade do indivíduo e o sentir-se cidadão de fato. A propriedade
corrobora o nível do indivíduo na sociedade. A propriedade pronuncia o real sentido de cidadania
porque sou cidadão quando disponho de mim mesmo como ser capaz de produzir.
8.2.2 - Jusnaturalismo e a doutrina política de John Locke
Partindo, pois, de tal premissa, pode-se pensar com Locke que o corpo político tem por
fim a administração dos conflitos dos homens em sociedade no tocante ao respeito do direito de
propriedade. No entanto, para isso é preciso que analisemos o pensamento desse filósofo inglês.
Tomemos como ponto de partida o significado de direito natural para depois situar seu pensamento.
O cientista político italiano Guido Fassò assevera que:
“Jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um ‘direito
natural’, ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas
normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural tem validade em si, é anterior e
superior ao direito positivo e, em caso de conflito. E ele que deve prevalecer” . 88
Em contrapartida há especificidades dentro do pensamento jusnaturalista, a começar pela
distinção entre junaturalismo antigo e jusnaturalismo moderno. Enquanto este constitui uma teoria dos
direitos subjetivos, aquele se assenta na tese de que o direito natural deveria representar um sistema
de normas objetivas, cravadas no cotidiano legal da sociedade. A tese jusnaturalista moderna
compreende que o direito natural expressa uma relação de princípios compreendidos pela razão, ou se
quisermos como Locke, descoberta pela razão, que é justamente a capacidade de compreensão
existente nos homens. Tais direitos não seriam uma construção dos Estados ou das legislações, mas
um ditame da justa razão que mostraria aos homens os limites daquilo que convém.
É nesse contexto que surge a figura de John Locke como um verdadeiro filho do século
XVII. O jusnaturalismo de Locke pressupõe uma ordem universal a partir de um Deus que criou os
homens para o propósito segundo o qual, todos pelo trabalho, pudessem construir sua prosperidade.
77
Nesse aspecto, a prosperidade está diretamente relacionada ao sentido de propriedade, que para o
filósofo inglês pode ser sintetizada em vida (bem estar), posses e liberdade. Para Locke, todo homem
tem direito ao fruto do seu trabalho, logo a propriedade assume o status de categoria político-
epistemológica. Enquanto epistemológica promove a compreensão da propriedade como chave dos
movimentos políticos, que por sua vez determina a forma de organização coletiva visando um modo de
produção de bens à vida material.
Nesse contexto, podemos perguntar ao velho Locke o que levou o homem a deixar o
estado de natureza, situação de relativa paz, para fundar uma sociedade civil, já que esta toma
daquela a irrestrita liberdade e não apresenta, aparentemente, nenhuma diferença qualitativa no que
diz respeito à felicidade, à propriedade e ao bem estar dos homens. Locke, com certeza, responderia
que vivendo sob a sociedade civil o homem terá mais segurança para desfrutar daquilo que ele
concebe, lato sensu, como propriedade: vida, liberdade e posse. A sociedade civil não tem outro fim
senão defender tal valor, tal princípio, tal necessidade existencial. É na propriedade que os homens
dimensionam suas possibilidades e constroem a felicidade por meio do trabalho, gênese do bem estar
social. Em Locke não há como separar felicidade de liberdade, trabalho de propriedade, justiça de bem
estar comum, riqueza sem esforço permanente. Em torno de tais perspectivas funda-se uma sociedade
que será absorvida por uma organização política capaz de promover a justiça sob o primado da lei.
Locke não concebe uma sociedade civil vivendo sob o arbítrio de um poder absoluto,
capaz de resolver tudo pela onisciência. O poder absoluto não visa o bem comum. Seu julgamento
sempre será parcial e voltado para si mesmo, uma espécie de ação por reflexo, onde o poder total está
em sua volta para inteira satisfação. No sistema absoluto, o imperioso é a vontade particular, contrária
aos interesses de todos, pois ameaça à propriedade e o resultado do seu trabalho. O poder para Locke
é sempre uma relação entre os homens, uma renúncia coletiva capaz de estabelecer padrões possíveis
de conduta; por isso a lei será o novo referencial, a ordenação precisa dessa mesma conduta. Nesse
ponto, afirma Locke: “Ninguém pode na sociedade civil isentar-se das leis que a regem”. As garantias
devem ser iguais para todos no corpo político. Isso porque pelo direito natural somos todos iguais, e a
sociedade civil apenas deve, pela legalidade, ratificar tal princípio.
Sendo a sociedade civil uma construção pelo consentimento, observa-se imediatamente a
razão como instrumento dessas vontades particulares consentidas, e que precisam contratar os meios
pelos quais essas concessões serão respeitadas. Locke aponta a lei como guardiã dessa vontade
expressa pela racionalidade. É a lei e não mais o absolutismo o parâmetro da vida em comunidade; é
preciso que haja uma lei definidora para julgar corretamente cada caso apresentado ao conselho. É
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preciso a constituição de um juiz permanente, conhecido, imparcial e que governe seu julgamento sob
a égide da lei, elaborada pela mesma sociedade civil por meio de representação parlamentar. Se a lei
obedece ao critério da razão, seu surgimento só pode ser construído pela discussão, e o fórum dessa
discussão é o Legislativo.
A sociedade é um corpo político, orgânico, comandada pelo princípio da legalidade que se
constrói no parlamento, chamado por Locke de poder supremo. Esse poder supremo é a representação
da sociedade, o garante da justiça, do bem estar comum. Nele está a esperança da preservação da
sociedade que se constituiu para tirar o melhor proveito possível da propriedade. O Legislativo sendo
expressão da vontade da sociedade, símbolo da sociedade civil, não pode transferir sua competência a
outro poder, sua extensão visa a permitir que a sociedade seja a verdadeira fonte de poder, e que sua
ação não seja mais que a chancela política de seus interesses. O Poder Legislativo não passa de
representação popular, por isso é supremo e a ele são submetidos os poderes executivo e federativo.
O Poder Legislativo só é o ordenador da sociedade porque tem representação popular e
sua destinação é elaborar leis justas e precisas ao bem comum. O Poder Executivo é aquele que
executará as leis, poder permanente na administração dos negócios públicos escolhidos pelo
Legislativo. Atua no âmbito comunal, nos problemas intra-sociedade. O Poder Federativo é uma
extensão do executivo, sua função é relativa aos negócios estrangeiros, quanto à paz, quanto à guerra.
Os exercícios dos poderes Executivo e Federativo podem ser realizados pelos mesmos membros,
distintos do Legislativo, cujos membros não podem pertencer a outro poder. Outra característica do
Legislativo é que sua atuação não é permanente, sua finalidade é elaborar leis, uma vez elaboradas
extingue-se a legislatura e seus membros voltam a ser súditos.
Locke deixa claro em seu Segundo Tratado Sobre O Governo Civil, que a sociedade sob
um poder político, o Estado, somente existe para promover a paz na possibilidade da segurança
permitir o gozo e o uso da propriedade, bem como na execução da justiça entendida como bem estar
comum. O Estado não existe para satisfazer um grupo de pessoas, sua ação positiva visa toda
comunidade, justamente associada aos interesses dos homens que deixaram as incertezas do estado
de natureza para viverem sob uma ordem legal. Locke afirma que o corpo político está subordinado à
sociedade, portanto, seus atos não podem contrariar tal princípio, e assim não acontecendo, o Estado
declarando guerra à sociedade em razão de sua insubordinação, enseja o direito à resistência e, por
fim, o dissolverá para constituir um outro Legislativo para um novo governo.
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Ao construir sua tese de que o homem abandona o estado de natureza e contrata com
outros homens a sociedade civil para a preservação da propriedade, Locke está pensando naqueles
homens proprietários de terra, portanto não levando em consideração aqueles que não possuem
alguma propriedade, inclusive os que não possuem a si mesmos. Todavia, forçosamente podemos
pensar que o filósofo inglês trouxe algo de diferente, mesmo não atentando para tal princípio, que
sendo a propriedade um direito natural, e os homens iguais, todos, sem distinção devem ser
contemplados no seu direito ao uso, gozo e disponibilidade, daquilo que constituiu pelo trabalho. Nesse
sentido, pode-se, por relação, supor que todos aqueles que formam uma sociedade devem ter direitos
resguardados por ela.
8.2.3 – Poder Legislativo e as leis como premissas de segurança política
Ao iniciar o capítulo XI do Segundo Tratado, Locke enfatiza que o objetivo pelo qual o
homem ingressa na sociedade civil consiste em construir normas para garantir a propriedade e, nesse
sentido cabe ao Legislativo o papel de edificá-las na proteção da vida, posse de bens e liberdade, ao
que o nosso autor chama de propriedade.
Na formulação política lockiana, o papel do Poder Legislativo é de ordem primordial, isto é,
tem a função de estabelecer normas necessárias à existência da sociedade como um corpo político, e
sendo assim, o Poder Legislativo assume o status de poder supremo dentro de uma sociedade que
pretende como governo a própria legalidade. Para Locke, o poder legislativo institui normas para
comandar a sociedade, o Executivo para aplicá-las, por fim estabelecer funções de poder distintas para
que não haja arbitrariedade por parte dos poderes constituídos. Se o Poder Legislativo agir de forma
diversa de sua destinação, ou se todos os poderes, em seus atos, não respeitarem o povo, que é o
verdadeiro soberano, caberá ao próprio povo apelar para os céus no sentido de desobediência civil.
Para Locke, tais poderes públicos somente existem em função do soberano que é o povo, logo seria
absurdo um governo ou mesmo um Estado que fuja de suas funções essenciais. Caso ocorra, caberá
ao povo destitui-lo e formar um outro que atenda ao pacto firmado como fim último.
A legalidade é o espírito do sistema político lockiano. Claro que essa legalidade pode se
tornar algo conservador para aqueles que estão fora do círculo dos proprietários que por sua vez
organizam a sociedade. Mas o que importa é destacar a legalidade submetida ao povo, o Legislativo
submetido ao povo e a administração submetida a esse mesmo povo.
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O dado da exclusão social é sem sombra de dúvida o fato de não possuir propriedade, ou
pelo menos não possuir a si mesmo como tal. Os homens acordam entre si os limites de suas ações
para que esse limite seja administrado pela sociedade na pessoa do poder público, isto posto leva ao
raciocínio que o Estado em sua função precípua, de administrar os limites das ações humanas em
sociedade, não pode se furtar do dever de contemplar os seus membros em suas múltiplas
expectativas. Ou o Estado exerce o seu papel na contemplação dos seus fins, ou pode se destituído de
suas funções para que um outro modelo leve em conta os homens como realmente iguais.
9 - Jean-Jaques Rousseau (1712-1778)
“O homem nasce livre e por toda a parte encontra-se a ferro”,89 acorrentado por cadeia de
elos convencionados. Assim JJ Rousseau (1712-1778) inicia a famosa obra, O Contrato Social, com
uma observação pertinente: a liberdade não é algo relacionado à convenção ou mesmo uma
prerrogativa legal, mas uma condição natural, existencial, algo intrínseco à própria condição humana,
visto ser a liberdade uma necessidade pré-social. É a liberdade a única e possível condição legítima de
organização social, onde repousa toda autoridade subordinada à vontade de uma ideia coletiva. A
liberdade é a própria qualidade humana, a escravidão como antítese é a plena renúncia dessa
humanidade, sustentada por convenção e interesses mesquinhos. Foi para garantir a liberdade e os
bens que o homem superou as inconveniências do estado de natureza e instituiu o que chamamos de
sociedade civil. Tal passagem, a do estado de natureza ao estado de sociedade, supõe que ocorreu
nas condições em que os homens tinham pela frente obstáculos prejudiciais à sua conservação e limite
de forças que cada um dispunha; o estágio primitivo já não podia subsistir, e o gênero humano, se não
mudasse de modo de vida, pereceria. Os homens trocaram sua liberdade irrestrita pela liberdade civil,
“sendo, porém, a força e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua
conservação” (Rousseau, s/d: 35).
“Qual é o fim da associação política? A conservação e a prosperidade de seus membros.
E qual é o meio melhor de que se conservam e progridem? Seu número e população” 90
O contrato social tem como fim buscar uma associação que guarde a pessoa e os seus
bens, em que todos, unidos pelo mesmo objetivo, cada um obedeça a si mesmo, procurando manter-se
tão livre quanto livre fora no estado de natureza. Sendo assim Rousseau dimensiona a liberdade como
valor absoluto. A sociedade civil não se estrutura para livrar-se do medo permanente do homo homini
lupus, como também não se organiza para proteger e gozar a propriedade por mais amplo que seja o
seu conceito. O pacto social visa a conservar a liberdade garantindo a posse e sua transformação em
81
propriedade pelo trabalho, pela cultura do cultivo e da produção, ora garantida pela vontade geral,
positivamente sob forma de lei, emanada do soberano. Nesse sentido todos os cidadãos são iguais.
Rousseau concebe vontade geral como expressão de um desejo de todos, vontade
comum. Essa mesma vontade geral não é uma soma de vontades particulares, mas a materialização
do soberano, a suprema fonte de poder da sociedade, instância deliberativa do corpo político, em que o
povo se assume como ser livre sustentado pela igualdade. A igualdade é uma condição de semelhança
na sociedade civil, o soberano não admite em seu seio homens desiguais, pois se assim não fosse a
soberania não seria uma emanação de poder e sim de lutas individuais, representando interesses
particulares. O soberano só pode ser o povo no seu momento de deliberação legislativa, de exposição
da vontade geral.
Não podemos esquecer que Rousseau desconsiderava importante qualquer mediação
parlamentar. O poder soberano exerce a função de ordenar a vida social, todos os súditos são
obrigados ao poder soberano, mas o poder soberano não é obrigado aos súditos: “não há nem pode
haver qualquer espécie de lei fundamental obrigatória para o corpo do povo, nem sequer o contrato
social” (45); é o soberano a legitimação da ordem social onde se dará sob forma de assembleia, fonte
da vontade geral.
O pacto social dá ao poder soberano, corpo político da sociedade civil, poder absoluto
sobre seus membros, inclusive sobre a propriedade, que só existe enquanto possibilidade jurídica
graças à legitimação desta por parte do soberano. O limite do poder soberano está adstrito ao contrato
social naquilo que se convencionam naquilo que ficou firmado como interesse público. É o interesse
público o norte do poder soberano em suas deliberações; sua instituição obedece aos princípios da
liberdade e da igualdade, na lei como força da vontade geral, meio que fixa, estabelece todos os
direitos e deveres dos cidadãos. O poder soberano pela sua própria natureza é quem institui o poder
executivo, aquele que irá executar, ou seja, administrar as leis promulgadas. O poder executivo “é um
corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano”, encarregado da manutenção das
liberdades civil e política; e no governo que se estabelece a relação do todo com o todo, do soberano
com o Estado, não podemos confundir o soberano com as instâncias administrativas do poder, visto
que o soberano embora permanente enquanto garante da vontade geral se dá em assembleia.
Gostaríamos de ressaltar, ao finalizar o presente texto, que em Rousseau não existe a
possibilidade do poder legislativo existir fora do soberano. Rousseau entende que não se pode
representar vontades. O povo não pode prescindir do seu direito-dever de participar da vida política do
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seu Estado, abrir mão desta condição é arruinar todo o corpo político, é colocar sob perigo e mesmo
arruinando toda organização estatal constituída. O povo é quem ratifica a lei, nula é toda lei que não
leva sua chancela. É importante ressaltar que os deputados são comissários do povo.
“A diminuição do amor à pátria, a ação do interesse particular, a imensidão dos Estados,
as conquistas, os abusos do governo fizeram com que se imaginassem o recurso dos deputados ou
representantes do povo nas assembleias da nação” (Rousseau, s/d: 131).
83
Parte VII – A filosofia prática de Immanuel Kant (1724-1804)
“Ninguém pode me constranger a ser feliz à sua maneira (...) mas a cada um é permitido buscar a sua felicidade pela via que lhe parecer boa, contanto que não cause dano à liberdade de os outros (isto é, ao direito de outrem) aspirarem a um fim semelhante, e que pode coexistir com a liberdade de cada um, segundo uma lei universal possível. ” (Kant, I. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática (1793). A233-4.)
1- Introdução
Immanuel Kant nasceu em 1724, em uma cidade da Prússia Oriental denominada
Königsberg. Nasceu numa modesta e numerosa família de artesãos. Sua mãe o educou segundo os
princípios do pietismo91, corrente radical do protestantismo prussiano. Estudou no Collegium
Fridericianum, dirigido pelo pastor pietista F. A. Schultz. Entre 1740 e 1747 estudou na universidade de
sua cidade frequentando os cursos de ciência e filosofia. Durante os anos de 1747 e 1754 viveu
momento de grandes dificuldades. Nesse período precisou trabalhar como preceptor, mas apesar das
condições desfavoráveis estudou muito se atualizando. Em 1755 obteve o título de doutor e conseguiu
lecionar na Universidade de Königsberg como livre-docente. Naquela época o professor na categoria
de livre-docente recebia somente um valor correspondente ao número de horas de ensino e ao número
de alunos que frequentavam o curso.
Mais tarde em 1770 passou no concurso para professor ordinário com a dissertação De
mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis. Uma das características mais marcantes do
caráter moral de Kant além de metódico e sistemático, foi sua indeclinável aversão por qualquer forma
de carreirismo. Kant recusava qualquer forma de adulação em relação a protetores poderosos.
Nosso autor se concentrava em sua pesquisa filosófica, de forma totalmente
desinteressada em relação a qualquer possibilidade de fama ou riqueza. Por volta de 1778 chegou a
receber um convite por parte do barão von Zedlitz para assumir uma cátedra em Halle, o que lhe
renderia um pagamento pelo menos três vezes maior do que o de Königsberg. Kant recusou tal oferta e
com ela outra referente a um cargo público vinculado à mencionada cátedra.
Em 1781 nasceu sua primeira crítica denominada de Crítica da Razão Pura,
posteriormente em 1788, a Crítica da Razão Prática e, em 1790, a Crítica da Faculdade de Julgar.
Cumpre dizer que este autor situou-se dentro da atmosfera intelectual que caracterizou o iluminismo
alemão. O seu criticismo estabeleceu limites à razão humana quando afirmou que só podemos
84
conhecer aquilo que nós mesmos criamos. O seu pensamento deve ser estudado como uma nova
forma de filosofar que nasceu no interior das mudanças estruturais que tipificaram a própria
modernidade:
“A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que se submeter. A religião, pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame. ”92
Essa nova maneira de filosofar reivindica como pressuposto fundamental a liberdade, uma
liberdade de fazer uso público da razão em todas as questões sem a direção de outrem. Esse uso
público da razão significava para Kant a liberdade para pensar enquanto intelectual e a possibilidade
de expressar suas ideias ao público leitor.93
Após a morte de Frederico, o Grande, monarca esclarecido, em 1786, seu sucessor,
Frederico Guilherme II, desenvolveu uma política anti-iluminista. Kant recebeu uma advertência desse
novo monarca que havia intensificado a tutela e a censura, por ter publicado a obra A religião nos
limites da simples razão (1793). Kant acabou por silenciar suas críticas diante da advertência proferida
pelo Gabinete Imperial. Após argumentar em favor do uso público da razão, prometeu obedecer, o que
para alguns configurou momento de grande triunfo para os inimigos de uma filosofia crítica e inovadora.
O criticismo transcendental sofreu uma interpretação de cunho idealista, especialmente no
pensamento de Fichte, a despeito de sua resistência e desprezo a essa interpretação. Nos seus
últimos anos tornou-se quase cego, perdeu a memória e a lucidez intelectual, sobrevindo sua morte em
fevereiro de 1804.
2 - O conceito de liberdade no pensamento de Kant
Para Kant, o homem está submetido às leis da natureza (determinismo) e, ao mesmo
tempo, às leis da liberdade. O homem é capaz de perceber que ele próprio é a causa dos fenômenos
que existem no mundo, ou seja, compreende que a razão humana é livre e determinante e, portanto, o
homem possui uma liberdade que o difere dos animais. Kant denominou essa especificidade do
homem de liberdade transcendental.
É justamente no âmbito da vontade94 ou razão95 prática que posso perceber essa
liberdade no seu uso prático, ou seja, a liberdade prática ou independência da vontade pode ser
85
demonstrada quando a razão nos fornece a “regra de conduta”96, quando entra em jogo o que devemos
ou não fazer.
É exatamente nessa experiência interior, exclusivamente pessoal, que conhecemos a
ideia de liberdade transcendental como um tipo de causalidade da razão capaz de determinar a
vontade, a agir com ou sem as influências de impulsos sensíveis (interesses).
O que Kant entendeu pela esfera da prática? Kant concebeu a liberdade transcendental,
ou seja, o homem é dotado de livre-arbítrio e, portanto, tudo o que se relaciona com essa dimensão do
livre-arbítrio “é chamado prático”.97 Resulta dessa afirmação que devo entender por prático o que diz
respeito à moral e ao direito. Então, a liberdade prática, que significa liberdade da vontade, é uma
variante da liberdade transcendental. Deve-se observar, portanto, que este autor se filiou a uma
tradição filosófica que estabeleceu a separação entre uma faculdade superior (a razão) e uma
faculdade sensitiva (as inclinações).
Nesse sentido, a independência da vontade de motivos empíricos está estritamente
relacionada com a fundamentação da moralidade kantiana. Porque a moralidade implica o conceito de
autonomia, que é consequência da existência de uma vontade livre de motivos sensíveis ou direções
estranhas. Kant precisou de uma liberdade transcendental relacionada com a dimensão racional do
homem para construir a sua teoria moral. Seu argumento se baseia na ideia de que sempre que nos
pensamos como livres reconhecemos a consciência da possibilidade de autonomia. Se como ser
racional o homem é dotado de uma vontade livre capaz da elevada função de permitir a moralidade,
seria contraditório que este mesmo homem permanecesse sob tutelas. E, assim, associada à ideia de
liberdade está a ideia da autonomia, que, por um lado, é entendida como liberdade em relação a
direções estranhas e, por outro, como a liberdade da faculdade da vontade capaz de autolegislar.
3 - A ética e o imperativo categórico
Immanuel Kant surgiu no contexto do Esclarecimento ou Iluminismo com sua famosa
teoria moral que ressaltava o ser racional como absolutamente responsável por sua conduta. Nesse
sentido, consagrou uma ética das normas contra as éticas finalistas. Destacou que a busca pelo bem
não poderia fazer parte da moralidade, mas o cumprimento da lei pela lei98, enfatizando, com isso, que
a ética significa a obediência à lei moral, lei esta que está em mim e que se identifica com a minha
consciência.
86
Sua teoria moral apresenta, portanto, três características fundamentais: o aspecto
cognitivista, ou seja, a crença na possibilidade de decidir as questões prático-morais com base em
razões, o que implica dizer que os juízos morais são passíveis de serem fundamentados; o sentido
formalista, pois elabora um princípio moral (imperativo categórico) limitado às questões referentes à
justiça e não ao “bem viver”; e, por fim, o caráter universalista, uma vez que os juízos morais devem
erguer uma pretensão de validade universal.
O formalismo moral de Kant refere-se à ideia de que a vontade racional deverá ser
orientada por princípios a priori, válidos universalmente, isso implica a capacidade do ser humano de
agir segundo princípios ou determinar-se segundo a razão, independente de qualquer inclinação
pessoal. Os princípios podem ser técnicos se valem para todos os seres racionais, mas condicionados
pelo fim particular que se almeja; os da prudência condicionam-se ao desejo e ao caráter do ser que
age; os da moralidade, princípios práticos objetivos que são válidos para todos os seres racionais – não
decorrem de nenhum fim subjetivo, empírico. O princípio moral vale universal e incondicionalmente.
Assim, a lei moral em Kant não precisa do aspecto volitivo no sentido do “eu quero” para
existir. Ao contrário, ela existe até mesmo contrariando o “eu quero”. Com isso, Kant afastou o sentido
do “eu quero” em favor do “eu devo”.99 A ação adquire um valor moral, pois superei meus próprios
obstáculos quando agi por dever.
O seu princípio moral denominado imperativo categórico foi formulado pela primeira vez
na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Em uma de suas formulações determina: “Age
de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,
sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” Tal princípio funcionaria como
um teste a ser realizado pela nossa própria consciência a fim de identificar se as intenções que
fundamentam uma determinada ação são moralmente boas.
Esse imperativo formulado por Kant configurou um exercício típico do pensar esclarecido
(iluminismo), que não aceitaria ser guiado por outrem, mas entraria na perspectiva de todos os outros,
na medida em que abstrairia da sensibilidade e buscaria “um ponto de vista universal”100. Uma
interrogação estruturada numa indispensável compreensão das exigências de reciprocidade numa
comunidade ética idealmente antecipada.
Esse imperativo categórico ou princípio moral serviria ao propósito de fornecer as
condições de possibilidade para o desenvolvimento de um certo discernimento moral. Nesse sentido, a
87
validade de uma máxima subjetiva somente poderia ser reconhecida pela razão como moralmente
correta se apresentasse uma obrigação moral que qualquer um pudesse desejá-la, por reconhecê-la
como válida.
4 - As leis da liberdade: as leis morais e as leis jurídicas
Como nos mostra este filósofo, o homem vivencia a tensão entre os impulsos e a razão e
encontra, além das leis da natureza, as da liberdade denominadas de leis jurídicas e leis morais. A
legislação jurídica diz respeito às ações sob o ponto de vista externo, destacando a mera conformidade
com o que prescreve a lei; o que configura o sentido de legalidade. As leis éticas, ao contrário,
vinculam-se às determinações das ações e revelam a moralidade. Assim, no caso da legislação jurídica
temos o sentido de liberdade como exercício do arbítrio e no caso da legislação ética, a liberdade
apresenta-se tanto no exercício externo quanto interno do arbítrio.
Na terceira parte da introdução geral, Kant concentra seus esforços na clássica distinção
entre a legislação moral e a jurídica. Encontramos nesse ponto o problema inicial da filosofia do direito:
a distinção entre as duas esferas. Nesse sentido, o que efetivamente distingue as duas legislações não
é tão somente o fato de uma legislação ser interna e a outra externa, mas em particular a ideia do
dever como impulso.
Para entendermos melhor essa ideia temos que considerar que toda legislação – como diz
Kant – possui dois elementos constitutivos, a saber: o elemento objetivo, que significa a representação
da lei como necessária à ação e que portanto converte a ação em dever, e um elemento subjetivo, que
liga a representação da lei ao fundamento de determinação do arbítrio para realização de tal ação. No
primeiro momento, temos o que Kant denominou de conhecimento teórico da possibilidade da regra
prática e, no segundo, o dever como impulso.
“A legislação que erige uma ação como dever, e o dever, ao mesmo tempo como impulso, é ética. Aquela, pelo contrário, que não compreende esta última condição na lei e que admite também um motivo diferente da ideia do próprio dever é jurídica. No que diz respeito à esta última, vemos facilmente que estes motivos, diferentes da ideia do dever, têm que extrair-se de fundamentos patológicos da determinação do arbítrio, das inclinações e aversões e, dentre estas, das últimas porque tem que ser uma legislação que obrigue, não um chamado atraente”.101
88
A implicação mais imediata desta distinção é o fato de que os deveres característicos da
legislação jurídica são externos, pois não exigem a ideia de um dever interior. Faz-se mister ressaltar
com certa cautela que é preciso não esquecer que a legislação ética, por ser mais ampla, envolve
também a legislação jurídica, o que justifica a afirmação de Kant a respeito da legislação ética como
relacionada ao dever em geral:
“A legislação ética converte também em deveres ações internas, porém não excluindo as externas, senão que afeta a tudo o que é dever em geral. Mas justamente por isso, porque a legislação ética inclui também em sua lei o impulso interno da ação (a ideia do dever), cuja determinação não pode transpor de modo algum em uma legislação externa, a legislação ética não pode ser externa (ainda que de uma vontade divina), embora admita como impulsos em sua legislação deveres que desprendem de outra legislação, ou seja, de uma legislação externa, desde que sejam deveres. Disto se infere que todos os deveres, simplesmente por serem deveres, pertencem à ética; mas nem por isso sua legislação está sempre contida na ética”.102
Assim, teremos a legalidade se houver uma simples conformidade externa com a lei, “a
coincidência de uma ação com a lei do dever”103 e a moralidade quando o dever afigurar-se como
impulso da ação, ou seja, quando “a máxima da ação [coincidir] com a lei”104
Há também deveres interiores que não são éticos e deveres exteriores que não são
jurídicos; há deveres éticos diretos (moralidade) e deveres éticos indiretos (legalidade). Isso implica
dizer que todos os deveres são também deveres éticos; todo dever é considerado dever de virtude.105
Os atributos de interno e externo apenas sinalizam para a forma de adesão, observando ou não o
animus com o qual é cumprida uma ação.
A liberdade torna-se o ponto chave entre as duas esferas, pois se constitui no conceito
limite capaz de conferir sentido e direção à conduta humana na esfera da vida em sociedade.106 As
normas jurídicas e éticas derivam da razão e não da natureza. Derivam da vontade humana
legisladora. A partir desta concepção podemos dizer que o direito identifica-se com a ideia de
autonomia. O conceito de direito coincide com o conceito de autonomia no sentido de que “A legislação
própria da razão prática é a liberdade em sentido positivo, autonomia”.107 Esta relação entre direito e
autonomia exclui qualquer possibilidade de violência, menoridade e os mais variados tipos de
desrespeitos para com certas regras de convivência mútua. O conceito de liberdade vincula-se
necessariamente à ideia de uma sociedade, daí o sentido de limitação recíproca, pois não podemos
esperar que todos tenham motivação ética para o cumprimento das leis. As leis morais e jurídicas são
leis da liberdade, ou seja, leis que ordenam na medida em que somos livres.
89
5 - A liberdade interna e externa
Depois de apreciar essa distinção entre legislação interna e externa, Kant relaciona o
atributo de interno e externo ao conceito de liberdade, para esclarecer e justificar o seu conceito de
direito. Surge, portanto, um outro critério de distinção que se baseia no sentido de liberdade interna e
liberdade externa.
A esfera da ética vincula-se à liberdade interna e a esfera jurídica à liberdade externa, ou
dizendo de um modo mais breve, liberdade ética e liberdade jurídica. O primeiro tipo de liberdade
refere-se à faculdade de agir segundo leis que a nossa própria razão nos fornece; o segundo tipo de
liberdade, a jurídica, remete-nos à faculdade de agir no mundo exterior, mas limitada pela mesma
liberdade presente nas outras pessoas. Então, o âmbito da moralidade diz respeito à liberdade interna
e o âmbito da legalidade à liberdade externa.
Na relação entre liberdade e dever não podemos relacionar estritamente a liberdade
interna com os deveres que Kant denomina de deveres para consigo próprio e a liberdade externa com
deveres para com o próximo. Na verdade, somos responsáveis por todas as nossas ações
primeiramente diante de nossa própria consciência e depois, em alguns casos, diante do olhar dos
outros.
No âmbito da ética, somos responsáveis frente a nós mesmos; na esfera do direito, somos
responsáveis frente à coletividade. Podemos pensar a liberdade interna atuando nos dois momentos,
ou seja, no âmbito da ética e na esfera jurídica, embora a relação jurídica tenha como característica
fundamental a intersubjetividade. Tal relação exige a presença de dois seres humanos para a limitação
recíproca da própria liberdade externa.
No âmbito da legislação externa, as leis obrigatórias podem ser de dois tipos, a saber: as
naturais e as positivas. As leis externas naturais são aquelas cuja obrigação é reconhecida a priori pela
razão, ainda que não haja nenhuma legislação jurídica a seu respeito. As leis externas positivas são
aquelas cuja obrigação depende necessariamente de uma legislação externa efetiva. Kant, como um
legítimo representante do pensamento jusnaturalista, entende que as leis positivas encontram seu
fundamento nas leis naturais, o que equivale dizer que o direito se fundamenta na moral.
Para Kant, a lei natural fundamenta a autoridade do legislador, ou seja, confere a
faculdade de poder obrigar outrem mediante seu arbítrio. 108 Neste momento, reforça a ideia do seu
90
imperativo categórico no sentido de que prescreve a todos a necessidade de se pôr no papel de um
suposto legislador para observar a possibilidade de universalização das máximas do agir. “Por
conseguinte – afirma Kant -, deves considerar tuas ações primeiro desde o teu princípio subjetivo:
todavia podes reconhecer se esse princípio pode ser também objetivamente válido”.109
Esse exercício nos permite conhecer nosso arbítrio e consequentemente nossa liberdade,
pois entende que as leis procedem da vontade e as máximas do arbítrio, que no homem é livre, pois
fundamentou seu argumento no fato de que a vontade se refere tão somente à lei; o arbítrio liga-se às
ações e, portanto exige liberdade: “a vontade que não se refere senão à lei, não pode chamar-se nem
livre, nem não livre, porque não se refere às ações, senão imediatamente à legislação concernente às
máximas das ações (portanto, à razão prática mesma), daí que seja também absolutamente necessária
e não seja ela mesma suscetível de coerção alguma. Por conseguinte, somente podemos denominar
livre o arbítrio”.110
Kant estabeleceu a relação entre liberdade e arbítrio quando estabeleceu a possibilidade
da liberdade ser percebida no sentido de autodeterminação pela razão. O arbítrio determinado
diretamente pela razão pura é o livre-arbítrio, o que implica dizer que o homem é livre por ser racional,
ou, como diz Rohden, “se o homem é capaz de determinar-se por uma razão independente, ele é sob
este aspecto livre do determinismo natural e tem uma vontade própria, da qual derivam os conceitos e
leis tanto morais como jurídicas”.111
Embora Kant afirme a existência de direitos inatos em À Paz Perpétua, na Metafísica dos
Costumes ressalta que só há um único direito inato, que é a liberdade no sentido de independência do
arbítrio de outrem:
“A liberdade (independência do arbítrio necessitante de todo outro), na medida em que pode coexistir com a liberdade de todo outro segundo uma lei universal, é o único direito originário, pertencente a todo homem em virtude de sua humanidade”112
Apresentou na Fundamentação:
“A liberdade tem de pressupor-se como propriedade da vontade de todos os seres racionais”113. O conceito de igualdade decorre desta ideia de liberdade como direito inato, pois todos são igualmente independentes. A igualdade inata é: “a independência que consiste em não ser obrigado por outros senão àquilo a que também reciprocamente podemos obrigar-lhes” 114
91
Na verdade, a igualdade, a qualidade do homem como sui iuris, ser homem íntegro e o
conteúdo da formulação do imperativo categórico acima mencionado já se encontram no princípio da
liberdade originária como elementos constitutivos dela.
6 - A lei jurídica e a sociedade civil
Para Kant, a lei jurídica não é algo inato, mas surge do acordo entre indivíduos autônomos
para justamente assegurar a realização da liberdade. Este conceito torna-se um conceito limite que
direciona a conduta dos indivíduos para uma vida em sociedade.115 Essa circunstância nos leva a
pensar que Kant nega a origem do direito como derivado da propriedade, pois o que seria a
propriedade nos primórdios da sociedade senão o reconhecimento de uma posse arbitrária? O conceito
de posse em Kant funda-se sobre a inata posse comum da superfície da Terra e sobre a vontade
universal.
Kant entende que só podemos nos considerar possuidores de algo quando há o
reconhecimento dessa posse de forma não diretamente relacionada com a detenção física. O direito
consiste em limitar as ações: a minha liberdade de me apoderar das coisas encontra seu limite na
liberdade do outro em agir da mesma forma. O direito é uma exigência da razão que apresenta aos
homens um procedimento para solucionar conflitos. Nesse sentido, Kant justificou o ingresso no estado
de direito a partir do conceito de racionalidade. Trata-se de uma razão prática-jurídica e não
pragmática, ou seja, direcionada a interesses particulares independentes de qualquer moralidade. A
racionalidade permite o reconhecimento recíproco e a unificação das vontades e, nesse sentido,
sublinho mais uma vez que não é a experiência da violência como pensava Hobbes, mas um princípio
da razão. É a razão que nos impulsiona a abandonar o estado de natureza, embora seja concebido
como estado de direito privado, em favor de um estado de direito, onde não há uma razão privada, mas
um interesse comum e um tribunal capaz de assegurar e reconhecer os direitos de todos.
Kant compreendia o direito natural como não estatutário e, portanto cognoscível pela
razão de todo homem e, nesse sentido, a justiça pertence a ele. 116 Isto posto, o Estado para Kant deve
reconhecer em cada um a habilidade de ser seu próprio senhor e, portanto, não permitir qualquer
privilégio ou interesse especial protegido. A igualdade formal, que não é igualdade de posses, mas de
oportunidade, é uma consequência necessária do único direito inato: a liberdade. Nesse sentido,
compreendendo o típico egoísmo humano, o Estado pode e deve usar a coerção mediante leis para
senão eliminar, pelo menos controlar os abusos. A legislação civil deve realizar o direito natural que
serve de fundamento racional à legislação positiva.
92
Segundo N. Bobbio, com a doutrina do contrato e do direito natural, o Estado assume a
figura de associação voluntária com vistas a defender alguns interesses. 117 Kant partiu em defesa
desse modelo de Estado, cuja meta seria assegurar a liberdade de cada um com base em uma lei
universal racional e, portanto, condenou o Estado eudemológico que pretendia tomar para si a tarefa de
tornar seus súditos felizes, já que a verdadeira função do Estado não se confunde com essa tarefa,
mas deve ser tão somente salvaguardar a liberdade que permita a cada um buscar a sua própria
felicidade. Por felicidade entenda-se o pleno desenvolvimento de todas as suas disposições.
Kant demonstrou uma grande aversão por um Estado do tipo paternalista que mantinha os
súditos na condição de uma menoridade perpétua. 118 Ele acreditava que havia uma tendência natural
da história humana para uma ordem jurídica universal, um ordenamento jurídico cosmopolita. Na sua
ideia do homem como cidadão do mundo ou cidadania mundial, presente no texto “Ideia de uma
História universal sob o ponto de vista Cosmopolita” e que reaparece no opúsculo A Paz Perpétua e na
Metafísica dos Costumes como Ius Cosmopoliticum, implica uma espécie nova de direito público em
geral, distinto do direito privado que existia no Estado de Natureza, do direito público interno do Estado
Civil e do direito público externo da ordem internacional. Trata-se de uma relação jurídica particular que
encontra de um lado o Estado e de outro um cidadão de um diferente Estado. Dessa ideia, Kant inferiu
duas máximas já mencionadas: o dever de hospitalidade e o direito de visita.
7 - A doutrina do Direito
Kant define a doutrina do direito como um conjunto de leis que se apresentam como leis
externas ou exteriores, que constituem o que se chama direito positivo, cujo interessado é o jurisperito
(Iurisperitus), aquele que conhece as leis externas em sua aplicação aos casos que se apresentam na
experiência, estudo denominado pelo nome técnico de jurisprudência (Iurisprudentia). Além da doutrina
do direito e da jurisprudência encontramos a Ciência do Direito, que corresponde ao conhecimento
sistemático da doutrina do direito natural (Ius naturae).
Para compreendermos o direito como ideia da justiça é preciso abandonar o campo
empírico e dirigir-se à razão pura. Kant entende que o conceito de direito diz respeito a uma relação
externa entre pessoas cujas ações implicam-se mutuamente. Não se trata de uma relação entre um
arbítrio e um desejo, mas entre arbítrios, e nessa relação recíproca não interessa muito saber o fim a
que se propõem, mas sim a forma da relação; em última análise, trata-se de conciliar a liberdade de um
com a liberdade do outro, isto é, a liberdade em sociedade. Assim, Kant formula pela primeira vez na
obra em foco o seu conceito de direito como “o conjunto das condições, por meio das quais o arbítrio
93
de um pode estar de acordo com o arbítrio de um outro segundo uma lei universal da liberdade”.119 O
princípio universal do direito expressa a necessidade de coexistência dos arbítrios segundo uma lei
universal. Uma lei universal do direito que determina que devo agir externamente de forma tal que
preciso sempre respeitar a liberdade do arbítrio do outro nada mais é do que uma obrigação que me
determina a razão: “age exteriormente de maneira que o uso livre do teu arbítrio possa estar de acordo
com a liberdade de qualquer outro, segundo uma lei universal”.120
É preciso levar em conta os três elementos constitutivos do seu conceito de direito: o
primeiro diz respeito apenas às relações externas, ou seja, é um direito intersubjetivo; o segundo
estabelece a relação entre arbítrios, pois a intersubjetividade pode ocasionar lesões nos outros; o
terceiro não se preocupa com a matéria do arbítrio, mas tão somente com a forma, pois o direito não
concerne aos objetos particulares.
O direito, aparentemente mais do que a moral, está relacionado à coerção, pois está
diretamente ligado a esse sentido de obrigar alguém a agir de uma forma e não de outra, por meio da
coerção. O termo coerção pode ser entendido como a possibilidade de regular as relações humanas a
partir de leis externamente válidas. Quando usamos a expressão coerção legal limitamos esse sentido
para um tipo específico de controle baseado em leis positivas.
Num estágio pré-positivo, há a possibilidade de conseguir provocar no outro certa
conduta, mas sem garantias de que tal fato aconteça efetivamente. A coerção em que as leis positivas
se vinculam e que podemos denominar de “coerção recíproca universal implica que se desista de
procurar convencer os outros do que é ou não justo, e se fique limitado a regular a relação entre
arbítrios, isto é, sem nenhum componente ético ou intencional”.121
À primeira vista, pode parecer contraditório relacionar o direito com a liberdade mediada
pela coerção. Mas inspirado em C. Thomasius122, Kant postula uma relação intrínseca entre direito e
coerção. Assim, explica como funciona tal coerção capaz de salvaguardar a liberdade, lembrando que:
“A resistência que é oposta àquilo que impede um efeito serve como auxiliar para este efeito, e concorda com o mesmo. Tudo aquilo que é injusto é um impedimento para a liberdade enquanto esta está submetida a leis universais e a coerção é um obstáculo ou uma resistência à liberdade. Quando um certo uso da própria liberdade é um impedimento para a liberdade segundo leis universais (ou seja, é injusto), então a coerção oposta a tal uso, enquanto serve para impedir um obstáculo posto à liberdade, está de acordo com a própria liberdade, segundo leis universais, ou seja, é justo”.123
94
Esta passagem indica que há certo uso da liberdade que se configura como obstáculo a
um outro tipo de liberdade regrada e que a coerção, nesse sentido, é indispensável ao direito. 124
Com isso, exercer a liberdade a qualquer custo ou o mal praticado por alguém fere a
liberdade de outrem. Este modo de agir se afigura como uma forma deturpada de liberdade no sentido
da capacidade do homem como ser racional. A liberdade exterior compatibilizada com a liberdade dos
demais é a forma universalizada da possibilidade de convivência humana, ou seja, a coexistência
pública dos homens, a criação de um espaço público sem constrangimento injusto.
Se a razão implica liberdade, se a autodeterminação é algo indisponível e envolve
necessariamente um espaço público, fica excluída qualquer possibilidade de uma liberdade irrestrita ou
irracional porque iria contradizer essa relação que fundamenta a moral e o direito e que ademais
confere status privilegiado ao homem em relação à natureza.
O acordo entre liberdade e coerção já havia sido apontado no texto “Sobre a expressão
corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática” (1793) quando afirma que a lei da
coerção recíproca corresponde à liberdade de cada um sob o princípio da liberdade universal e na
Metafísica dos Costumes, quando comenta a semelhança com a “lei da igualdade da ação e reação”125.
Esse vínculo da liberdade com a lei foi herdado por Kant do pensamento de Rousseau, que entendia a
liberdade como a obediência à lei que o homem prescreve a si mesmo. 126 O conceito de liberdade é
comum à doutrina do direito (relacionada à condição formal da liberdade externa) e à doutrina da
virtude (relacionada à condição formal da liberdade interna). A ética e o direito afirmam a relação da
liberdade com a lei.
Ao pensarmos o direito pensamos também a liberdade na ideia do arbítrio de todos
unificados no conceito de vontade universal legisladora. A justiça consiste no respeito à vontade
universal. O sentido de justiça liga-se ao sentido de um estado jurídico, ou seja, “aquela relação dos
homens entre si que contém as condições sob as quais unicamente cada um torna-se partícipe de seu
direito, e o princípio formal de sua possibilidade considerado segundo a ideia de uma vontade
universalmente legisladora, chama-se justiça pública. Assim surge o direito público da necessidade de
coexistência inevitável, a partir de um ordenamento instituído mediante a publicidade de suas leis para
que todos possam usufruir de seus direitos: a Constituição. 127
A relação da Constituição que consiste na vontade unificada, com o sentido de estado civil
somente é pensável a partir do conceito de autonomia, uma vez que falar em direitos exige a existência
95
de um “a priori originário”, a liberdade. Kant estava vinculado a essa concepção liberal, o que justifica a
sua definição do direito estar formulada a partir do conceito de liberdade. Podemos até argumentar que
ele formulou uma teoria da justiça como liberdade e que muito pode ter influenciado na elaboração dos
fundamentos teóricos do Estado Liberal. 128
Para alguns autores, Kant teria inserido a temática filosófico-jurídico-política em termos de
compreensão das condições transcendentais da experiência jurídica, quando definiu o direito como o
conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um
outro segundo uma lei universal. Podemos dizer que os fundamentos históricos do pensamento jurídico
contemporâneo passam necessariamente por uma fase histórica importante: o pensamento liberal do
século XVIII - época de Kant.
Nesse sentido, Kant pode ser estudado como o filósofo do iluminismo, pois apresentou
campos de cultura diferentes, a Crítica da razão pura, no Âmbito teórico; a Crítica da razão prática, no
âmbito prático e a Crítica do juízo no âmbito da arte. Ademais apontou noções como dignidade da
pessoa humana, autonomia moral, liberdade, Estado de Direito, contrato social como princípio
regulativo, direitos naturais como princípios morais, etc. Em particular, a relação que estabeleceu entre
indivíduo, pessoa moral e cidadão submetido às leis, como uma exigência da razão.
É possível que a preocupação de Kant com a fundamentação do cumprimento do direito
como um dever moral se relacione com o fato de que o desenvolvimento humano e moral não
acontecem senão por meio da interação social. Princípios éticos universais como a justiça,
reciprocidade, igualdade, dignidade da pessoa humana inspiram o direito, conferindo sentido às
normas jurídicas. Por conseguinte, o direito pode ser entendido não apenas como imposição externa,
mas também como transformação da nossa autocompreensão (racionalidade, personalidade e
autonomia), na medida em que está intimamente vinculado à ética. O direito é, sem dúvida, animado
por um procedimento diferente do procedimento ético, mas ambos habitam o mesmo terreno; ética e
direito se dirigem à conduta humana e, portanto inspiram-se em valores morais comuns às duas
esferas.
Kant compreendeu a relação do direito com a moral a partir de uma intuição política e
histórica da origem do Estado, uma vez que não é possível pensar o direito sem necessariamente estar
ligado à figura do Estado e ambos encontram sua fundamentação e legitimação na autonomia. O
Estado se revela, portanto, como a personificação do princípio da justiça, reputando indispensável a
conquista da razão e da liberdade.
96
Ademais, é preciso considerar que para uma sociedade livremente associada, o direito
também exige um reconhecimento moral capaz de justificar a sua necessidade de limitação recíproca
da liberdade. A legislação jurídica não está adstrita somente ao âmbito da coerção, mas também pode
relacionar-se com o sentido de cumprimento do dever por puro respeito à lei, o que J. Habermas
chamou (sob a ótica de sua teoria da ação) de “duplo aspecto da validade do direito,” 129 onde a
legalidade pode ser obtida por meio da coação ou por consciência da necessidade de obediência à lei.
Essa relação entre ética e direito ultrapassa os limites da simples garantia dos direitos
individuais e alcança também a importância de legitimar as leis jurídicas fundamentando-as na ideia de
um sujeito racional autônomo na qualidade de co-legislador e no sentido da ideia de vontade geral.
Da filosofia kantiana surgiram duas correntes distintas, uma valorizando a Crítica da
Razão Pura, outra se fundamentando na Crítica da Razão Prática, a saber: a Escola de Marburgo,
ligada às ciências sociais e jurídicas e a Escola de Baden, ligada à filosofia dos valores.
A Escola de Marburgo compreendeu o predomínio do problema lógico sobre o problema
ético, o que desvela a preferência pelo pensamento de Kant expresso na Crítica da Razão Pura. A
Escola de Baden focalizou em especial os conceitos de valor e cultura, ou seja, o mundo do dever ser,
o mundo dos valores.
De tais escolas surgiram os mais importantes intérpretes neokantianos de uma filosofia
voltada para a experiência jurídica como Renouvier, Stammler, Del Vecchio, Kelsen e Radbruch. E
autores contemporâneos com suas éticas de inspiração kantiana como Jurgem Habermas e John
Rawls.
A fundação científico-positiva do Direito ensejou uma filosofia do direito inspirada no
criticismo de Kant, a partir do qual se esboçara a passagem de uma análise do direito natural para o
estudo da filosofia do direito.
97
Parte VIII - O positivismo jurídico
1 - A origem do termo positivismo
Sabemos que o termo positivismo, em seu sentido estrito, refere-se primeiramente à
doutrina de August Comte (1793-1857) exposta nas obras Curso de filosofia positiva (1830-1842),
Discurso sobre o espírito positivo (1844), Catecismo positivo (1852) e Sistema de política positiva
(1852-1854); segundo como designação de doutrinas que se ligam à de Comte ou que tem por tese
comum a ideia de que só o conhecimento dos fatos é fecundo, ou seja, que o modelo da certeza é
fornecido pelas ciências experimentais, renunciando a todo e qualquer conhecimento a priori.
Na visão de alguns especialistas o termo positivismo foi utilizado pela primeira vez na
escola de Saint-Simon, mestre de Comte e que o sentido de conjunto de ideias ou tendências
intelectuais que atribui à constituição e ao progresso da ciência positiva uma importância
preponderante para o progresso, se ligam mais a Condorcet do que a Comte, segundo as próprias
declarações deste.
2 - As escolas Jurídicas
Segundo ensina Ana Lúcia Sabadell130 podemos compreender a expressão “escola
jurídica” como um grupo de autores que compartilham uma determinada visão sobre a função do
direito, suas regras, validade e conteúdos. Nesse sentido, cada escola jurídica oferece respostas a três
indagações: o que é o direito, como funciona o direito e como deveria ser configurado esse direito.
Várias escolas jurídicas surgiram ao longo dos anos, cada qual caracterizando sua época
e sua cultura jurídica. Encontramos, portanto, inúmeras escolas rivais e outras que apresentam pontos
de continuidade entre si, ou seja, escolas que se inspiraram em outras dando continuidade às suas
concepções. De um modo geral, podemos classificar as escolas em dois grandes grupos: as escolas
moralistas e as positivistas. As escolas moralistas são aquelas que valorizam o direito natural e se
caracterizam por um pensamento jusnaturalista. As escolas positivistas são aquelas que entendem o
direito como um sistema de normas que regulam o comportamento social.
2.1 - A Escola Histórica ou Romântica
A escola Histórica ou romântica representou uma tendência importante no quadro anti-
racionalista da primeira metade do século XIX. Na verdade, o historicismo foi um movimento filosófico-
98
cultural contra a razão iluminista e que no âmbito jurídico pretendia a dessacralização do direito natural.
Assim, no campo filosófico-jurídico o historicismo se configurou na Escola Histórica do Direito, em
particular no pensamento de Friedrich Karl Von Savigny (1779-1861), reclamando uma visão mais
concreta e social do Direito, comparando-o ao fenômeno da linguagem. Para este filósofo-jurista direito
e linguagem apresentam um início anônimo e visam atender tendências e interesses múltiplos de um
povo. Ressaltamos aqui uma advertência de Norberto Bobbio: “Note-se bem que escola histórica e
positivismo jurídico não são a mesma coisa; contudo, a primeira preparou o segundo através de sua
crítica radical do direito natural”. 131
Segundo estudiosos, temos pela primeira vez uma refutação filosófica do direito natural.
Savigny invocou contra a lei escrita, ou seja, a lei abstrata e racional, a força viva dos costumes, o
“espírito do povo”, pois temia o perigo de leis destituídas de eficácia. Para Savigny, o direito vive na
consciência popular porque é do povo que ele nasce. Trata-se do espírito do povo (Volksgeist) que
produz o direito positivo. A função legislativa seria, portanto, a expressão da necessidade de dar ao
direito positivo uma existência exterior cognoscível.
Savigny respirou a atmosfera romântica dos alemães de Heidelberg, recebeu influência de
vários autores como: Edmundo Burke (1729-1797), considerado um dos precursores do historicismo
político-jurídico; Joseph De Maistre (1754-1821); Justus Moser (1720-1794), Adam Muller e Gustav
Hugo (1765-1844) que só considerava o direito positivo como objeto da ciência.
Sua obra fundamental foi Da Vocação de nosso Tempo para a Legislação e a
Jurisprudência (1814), onde objeta a codificação, além da obra que marcou o grande florescer do
Direito romano na Alemanha, Sistema de Direito Romano Atual (1840).
Assim, a Escola Histórica do direito não foi precursora do positivismo jurídico, mas de
certas correntes jusfilosóficas como, por exemplo, a escola sociológica e a escola realista que no final
do séc. XIX; ambas se posicionaram criticamente em relação ao próprio juspositivismo.
Conforme ensina Norberto Bobbio, “O fato histórico que constitui a causa imediata do
positivismo jurídico deve, ao contrário, ser investigado nas grandes codificações ocorridas entre o fim
do séc. XVIII e o início do séc. XIX, que representaram a realização política do princípio da onipotência
do legislador”.132
Sabemos que as codificações foram incentivadas pelo pensamento iluminista que
congregou a ideia de um sistema de normas racionalmente elaboradas com a exigência de um código
99
imposto pelo Estado. Foi neste momento que houve uma certa identificação com o positivismo jurídico
– o direito como expressão de uma autoridade legitimada para legislar.
Ao observarmos as características da Escola Histórica temos que ressaltar um traço
fundamental, a saber: a intenção de substituir um olhar generalizante e abstrato da história humana por
uma visão que considera o homem em sua individualidade. Enquanto os racionalistas consideravam o
homem como integrante de uma humanidade abstrata, o historicismo focaliza o seu caráter individual.
Bobbio enumera cinco características da Escola em apreço:
1 Valorização da individualidade/diversidade histórica – pretende-se a superação do
entendimento dos jusnaturalistas, segundo o qual é possível falar em Homem com
caracteres sempre iguais e imutáveis (De Maistre).
2 Valorização do sentido irracional na história/há impulsos e paixões - a mola
mestra da história não é a razão, mas o elemento passional e emotivo do homem.
3 Valorização da descrença no progresso iluminista – há certo pessimismo
antropológico porque não acredita nos magníficos destinos e progressos da
humanidade (Burke).
4 Idealização do passado – valorizam o passado, as origens. Os iluministas
desprezavam o passado e zombavam da ingenuidade e ignorância dos antigos
(Justus Moser)
5 Valorização da tradição, instituições e costumes da sociedade – esta ideia foi
difundida por Herder e Burke que valorizavam os costumes formados através de
um desenvolvimento lento e secular.
A escola histórica do direito realizou estudos jurídicos a partir desse novo modo de pensar
o homem e sua história. Nesse sentido, Bobbio observa que Savigny apresentou traços importantes no
interior desse pensamento, a saber: 1. A impossibilidade de um direito único e igual em todos os
tempos e lugares, pois o direito passa a ser visto como um produto da história; 2. O direito nasce do
sentimento de justiça e não do cálculo racional; 3. Os perigos da cristalização do direito numa única
coletânea jurídica – perigo da codificação do direito germânico; 4. Reviver o antigo direito germânico
mais adequado ao povo alemão; 5. Valorização das normas consuetudinárias que expressam
verdadeiramente uma tradição, o direito espontâneo. O costume é um direito que nasce diretamente do
povo.
100
Com o passar dos anos, após a morte de Savigny, a Escola Histórica passou a dar
preferência à história dos textos legais, ou seja, os seus seguidores limitaram-se a fazer a interpretação
histórica, no sentido de ir buscar os antecedentes dogmáticos para conhecer melhor uma regra. O
Historicismo deixava, portanto de ser um Historicismo de conteúdo social e passava a configurar um
historicismo meramente lógico-dogmático.
2.2 - A polêmica entre Thibaut e Savigny sobre a codificação na Alemanha
Já compreendemos que os iluministas realizaram uma crítica demolidora do direito
consuetudinário enquanto herança do século das trevas e um verdadeiro obstáculo aos princípios de
uma nova civilização que valoriza a razão e a autoridade do Estado. Configura-se, portanto, uma
estreita relação entre o movimento do iluminismo e o processo de codificação.
Ocorre que grande polêmica surgiu por ocasião em que os exércitos da França
revolucionária ocuparam uma parte da Alemanha, difundindo o Código de Napoleão. Este código
adotara princípios estranhos a um povo que vivia em situação semifeudal, onde a codificação prussiana
de 1797 conservava a distinção da população em castas, baseada em privilégios. Esta situação gerou
a oposição de vários conservadores alemães, dentre eles: Rehberg que elaborou um artigo em defesa
da tradição prussiana. Thibaut (1772-1840), famoso jurista alemão fez uma apreciação anônima do
texto conservador de seu coetâneo. Na verdade assumiu uma posição moderada, de conciliação, entre
história e razão para a construção de um sistema de direito positivo. Afirmou que:
“Os alemães estão a muitos séculos paralisados, oprimidos, separados uns dos outros por causa de um labirinto de costumes heterogêneos, em parte irracionais e perniciosos. Justamente agora se apresenta uma ocasião inesperadamente favorável para a reforma do direito civil como não se apresentava e talvez não se apresente mais em mil anos. ”133
O pensamento de Thibaut, que figura no ensaio Sobre a necessidade de um direito civil
geral para Alemanha (1814), exprimiu a posição da chamada escola filosófica do direito. Para ele o
direito germânico é insuficiente, obscuro e primitivo. As diversidades locais expressam o arbítrio dos
vários príncipes, logo o direito germano não é natural, mas fruto dos interesses. A inspiração iluminista
de Thibaut pode ser expressa na citação do lema sapere aude, palavras de Horácio, tornadas célebres
no Iluminismo como grito de batalha, como convite à coragem intelectual. Antes de Thibaut, Immanuel
Kant utilizou esse mote no texto “Resposta à pergunta: que é Iluminismo?” (1784). Thibaut reafirma a
necessidade de uma legislação geral cujas vantagens são para os Juízes e a unificação da Alemanha.
101
Suas ideias provocaram recensões, dentre elas as de Savigny que afirmou a artificialidade
das legislações. Para este pensador a codificação paralisa o desenvolvimento do direito. Em seus
escritos ressalta a falta de maturidade do povo alemão para o processo de codificação. Nesse sentido,
Savigny fundamenta seus argumentos em Bacon quando este autor afirma que para um povo proceder
à instauração de um novo sistema jurídico é preciso que o nível civil e cultural seja superior. Mas a
Alemanha de Savigny encontrava-se em crise, por isso propunha o renascimento e o desenvolvimento
do direito popular.
2.3 - O Código de Napoleão: Cambacérès e Portalis
O Código de Napoleão entrou em vigor em 1804 ocasionando uma profunda mudança no
pensamento jurídico moderno, porquanto serviu de base para várias codificações posteriores e também
porque configurou um verdadeiro corpo de normas sistematicamente organizadas e expressamente
elaboradas. O processo de codificação das normas francesas encontra sua origem na cultura
racionalista que predominou no interior do pensamento iluminista. Como fato histórico fundamental
destacamos a Revolução Francesa, momento em que a ideia de codificar o direito adquiriu consistência
política.
O fato é que a sociedade francesa encontrava-se fragmentada e na concepção
racionalista as velhas leis deveriam ser substituídas por um direito simples e unitário. Os iluministas
estavam convencidos de que existia um verdadeiro direito. Os juristas da Revolução se propuseram a
eliminar a multiplicidade de normas jurídicas pelo desenvolvimento histórico e instaurar no seu lugar um
direito fundado na Natureza e adaptado às exigências universais humanas.
Segundo Bobbio, o novo código se distanciou progressivamente da inspiração originária
se reaproximando da tradição jurídica francesa do direito romano comum. O protagonista desta
primeira fase de codificação foi Cambacérès (1753-1824), jurista e político prudente que participou da
Convenção que decidiu a morte do Rei Luiz XVI. Não era extremista e chegou a se opor a Robespierre.
Com o golpe de Estado operado por Napoleão, 18 Brumário, foi nomeado segundo-cônsul e depois
arquichanceler.
Durante a Convenção este jurista apresentou três projetos para um novo código de clara
inspiração jusnaturalista. Em um dos seus projetos já equiparava filhos naturais aos legítimos,
proposição radicalmente nova, fundada em princípios como igualdade dos cônjuges, a possibilidade do
divórcio e da comunidade patrimonial. Na verdade este autor evocou a definição ciceroniana do direito
natural. Dos três projetos, o de 1793, 1794 e 1796, foi este último que apresentou características mais
102
técnicas e uma notável atenuação das ideias jusnaturalistas que influenciou na elaboração de um
projeto definitivo do Código Civil Francês.
O projeto do Código Civil foi obra de uma comissão criada por Napoleão. O papel mais
importante foi realizado por Portalis (1746-1807), liberal moderado, crítico do pensamento kantiano,
perseguido por Robespierre e posteriormente protegido no governo de Napoleão. Elaborou severa
crítica contra os excessos da revolução e representou em certo sentido o início do movimento de
Restauração. O projeto definitivo do novo código abandonou decididamente a concepção
jusnaturalista. O código de Napoleão representou, na realidade, a expressão orgânica e sintética da
tradição francesa do direito comum.
Os projetos inspirados nas ideias do jusnaturalismo racionalista representavam a
Revolução quando esta queria fazer tábula rasa de todo o passado. Mas as intenções da comissão
napoleônica pretendia elaborar uma síntese do passado que não deveria excluir os costumes e o
direito comum romano. Na verdade foram os primeiros intérpretes que consideraram o novo código
uma ruptura com o passado e no entendimento de Bobbio, a adoção do princípio da onipotência do
legislador – um dos dogmas fundamentais do positivismo jurídico. O problemático art. 4o. do Código
dispõe: “O juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da
lei, poderá ser processado como culpável de justiça denegada”. O juiz deve usar a interpretação, a
integração da lei e buscar no interior do próprio sistema legislativo resolver o silêncio da lei. Neste
caso, o dogma da onipotência do legislador impõe ao juiz a necessidade de encontrar resposta para
todos os problemas, gerando um outro dogma, o da completude do ordenamento jurídico. A intenção
dos legisladores do novo Código era evitar a possibilidade de uma prática judiciária, pela qual os juízes
se abstinham de decidir e devolviam os atos ao poder legislativo para obter disposições a propósito.
Além do art. 4o., o art 9o. indicava os critérios com base nos quais pode o juiz decidir na hipótese do
silêncio ou qualquer incerteza. Os intérpretes compreenderam que este artigo a necessidade de buscar
na própria lei a solução.
Foi essa visão consagrada pelos intérpretes que se configurou na escola dos primeiros
intérpretes do Código de Napoleão, a escola de exegese. Esta escola foi acusada de fetichismo da lei
por considerar o novo código uma ruptura com o direito precedente.
2.4 - A Escola de Exegese
A outra escola importante é a Escola de Exegese que em sentido amplo significava a
interpretação passiva dos Códigos. Para essa escola o direito está feito, portanto o estudo do direito
103
deve ser substituído pelo estudo dos códigos. Podemos enumerar algumas causas para o seu advento,
a saber:
1 Com o surgimento dos códigos emergiu também a necessidade de interpretar a
letra da lei, sem recorrer a outras fontes como costume, jurisprudência, doutrina
etc. Para estes, os operadores do direito visavam caminhos mais simples para
resolver conflitos;
2 A crença na vontade do legislador expressa de modo seguro e completo e a
necessidade de limitar-se aos ditames dessa autoridade legislativa;
3 A possível terceira causa é a tripartição dos poderes, fundamento ideológico da
estrutura do Estado moderno, que limita o juiz na sua esfera de competência,
afigurando-se apenas através da seguinte metáfora: “a boca através da qual fala a
lei”;
4 O princípio da certeza do direito, ou seja, a ideia de que o direito fornece um
critério seguro de conduta que permite antecipar os resultados – uma regra certa,
um processo lógico;
5 As pressões políticas que foram operadas pelo regime napoleônico em favor do
ensino acadêmico centrado somente no direito positivo, excluindo-se assim as
concepções das teorias gerais do direito e as concepções jusnaturalistas.
A escola exegética configurou um procedimento específico de análise comentando artigo
por artigo do Código Napoleônico. A história da influência dessa escola pode ser dividida em três fases:
de 1804 a 1830, o seu início; de 1830 a 1880, considerado período do seu apogeu; de 1880 até o fim
do séc. XIX, o seu declínio. As características fundamentais dessa escola são:
1 Desvalorização da importância e significado do direito natural para o jurista;
2 Concepção rigidamente estatal do direito: as normas jurídicas legítimas são
aquelas impostas pelo Estado;
3 Interpretação da lei fundada no legislador: se a lei é manifestação da vontade do
Estado, busca-se na vontade do legislador a correta interpretação da lei nos
casos de obscuridades e lacunas;
4 O culto ao texto da lei: o operador do direito deve seguir rigorosamente o que está
escrito;
5 O respeito pelo princípio de autoridade: os primeiros comentadores do código
gozaram de grande prestígio e influenciaram inúmeros juristas posteriores.
104
A tese fundamental da Escola é a de que o Direito por excelência é o revelado pelas leis,
que são normas gerais escritas emanadas pelo Estado, constitutivas de direito e instauradoras de
faculdades e obrigações, sendo o Direito um sistema de conceitos bem articulados e coerentes, não
apresentando senão lacunas aparentes. O verdadeiro jurista deve partir do Direito Positivo, sem
procurar respostas fora das leis. Surge assim a ideia de uma Dogmática Jurídica134 conceitual ou uma
Jurisprudência135 conceitual, como objeto do jurista. Significa dizer que existe uma ratio iuris específica,
ou seja, uma interpretação conceitual de regras do Direito. Essa concepção (normativista e conceitual
do Direito) compreendia que a lei deveria ser atingida em seu espírito e, convém ressaltar, que a
interpretação se limitava a um trabalho rigorosamente declaratório. Qualquer mudança na lei deveria
seguir o processo legislativo.
3 - O surgimento do positivismo jurídico
Norberto Bobbio aponta, na obra O positivismo jurídico, alguns acontecimentos que foram
importantes para o surgimento do positivismo jurídico, porquanto formularam críticas ao direito natural.
O exemplo clássico dessa crítica foi a reflexão anti-racionalista elaborada pelo historicismo do séc. XIX,
que propiciou o desenvolvimento de certo desencantamento em relação ao direito natural. O
historicismo compreendia o homem na sua individualidade, ao contrário da corrente do jusnaturalismo
que considerava a humanidade abstratamente.
No campo filosófico-jurídico, a corrente historicista se configurou a partir da denominada
escola histórica do direito, na Alemanha, entre o fim do século XVIII e o começo do séc. XIX
encontrando em Karl Friedrich von Savigny seu maior expoente. Todavia, a obra que antecipa o
pensamento da escola histórica foi a obra de Gustavo Hugo sob o título Tratado do direito natural como
filosofia do direito positivo de 1798, onde este autor concebe o direito natural como um conjunto de
considerações filosóficas sobre o próprio direito positivo, ou seja, o direito natural passa a ser uma
filosofia do direito positivo. Observa-se que este direito positivo significa aquele direito que existe ou
pode existir em qualquer Estado. Com essa obra este autor opera a passagem do jusnaturalismo (lato
sensu) para o pensamento juspositivista, uma vez que esgota e esvazia a tradição jusnaturalista,
contribuindo assim para o surgimento de um novo modo de considerar o direito.
Segundo Miguel Reale, na obra Filosofia do Direito, antes da Revolução Francesa, o
Direito estava dividido em sistemas particulares, ou seja, cada região possuía seu sistema de regras.
Tratava-se de um sistema jurídico complexo constituído pelos usos e costumes, pelos preceitos do
direito Romano, canônico e a opinião dos doutores, além do Direito natural. Percebiam-se abusos e
105
fraudes. Diante desta obra legislativa multifacetada e empírica comprometida pela força dos interesses,
restou à Revolução Francesa de 1789, levar a cabo a tarefa de materializar seus ideais, dentre eles a
igualdade jurídica. Dois princípios se tornaram concretos: a igualdade perante a lei e a lei geral para
todos.
Compreende-se, portanto o grande entusiasmo que provocou o Código Civil Napoleônico,
de 1804. Representou um corpo harmônico e lógico de preceitos, como expressão da razão, capaz de
atender a todas as hipóteses ocorrentes na vida, de maneira que tudo já estivesse de certo modo
ordenado no sistema legislativo. O surgimento dessa nova postura consistia na defesa intransigente do
indivíduo e de suas iniciativas, na liberdade e na segurança das relações jurídicas, na proteção da
propriedade privada, como o individualismo econômico a concebia.
Com a promulgação deste código fortaleceu-se a convicção de que a sua tarefa
fundamental deveria consistir em interpretar os textos de maneira autêntica. Não admitiam lacunas,
bastaria o trabalho de interpretação, para se obter respostas convenientes a todas as lides e
demandas. O juiz através de um trabalho de exegese poderá sempre encontrar uma solução para cada
caso. Essa visão de mundo propiciou o surgimento da Escola de Exegese, na França, reunindo em seu
seio os maiores civilistas da Europa.
O positivismo jurídico apresenta o Direito como avalorativo. Enfatiza a separação entre
juízos de fato (o direito tal qual é) e juízos de valor (o direito como deveria ser). Nesse sentido, o
positivismo entende o Direito como Ciência. A validade da norma jurídica decorre da sua origem em um
ordenamento jurídico. A justiça decorre da sua validade.
Segundo N. Bobbio podemos observar sete problemas fundamentais nessa doutrina: 1. O
positivismo jurídico compreende o direito como um fato e não um valor. Isto significa dizer que o jurista
deve estudar o direito do mesmo modo como o cientista estuda a realidade natural, não formulando
juízos de valor. Nesse sentido, o termo direito se afigura como avalorativo ou não valorativo. O direito
não recebe o qualificativo de bom ou mau. Deste modo de ver surge uma teoria da validade do direito
denominada formalismo jurídico, cuja validade do direito repousa na sua estrutura formal. 2. O direito é
definido em função do conceito de coação, situação esta que propicia o aparecimento de uma teoria
chamada teoria da coatividade do direito. Observa o autor supracitado que este caráter do direito não é
exclusividade do juspositivismo, pois foi apresentado pelo jusnaturalista Christian Tomasius. 3. A teoria
da legislação como fonte do direito. Na relação entre lei e costume admite-se apenas o costume
secundum legem e eventualmente o praeter legem. 4. O positivismo jurídico compreende a norma
106
como um comando (teoria da norma jurídica), implicando em uma teoria imperativista do direito. 5. A
teoria do ordenamento jurídico considera o conjunto de normas jurídicas vigentes numa sociedade e
implica uma teoria da coerência e da completude deste ordenamento jurídico. 6. O positivismo sustenta
a teoria da interpretação mecanicista que consiste em enfatizar o aspecto declarativo em detrimento de
uma análise criativa ou produtiva. 7. O positivismo jurídico sustenta a ideia da obediência absoluta à lei.
De acordo com os ensinamentos de Norberto Bobbio, “O positivismo jurídico nasce do
esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas
características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais”.136 Estamos no âmbito da
avaloratividade do direito enquanto ciência, ou seja, na separação entre juízos de fato e juízos de valor.
A ciência deve excluir de sua esfera juízos de valor, pois pretende um conhecimento objetivo da
realidade. Este é um traço fundamental na separação entre o mundo antigo e o moderno: o homem
moderno renuncia a uma visão metafísica da realidade.
O positivismo estuda o direito tal qual é e não como deveria ser, ou seja, juspositivista
estuda o direito real sem se vincular com um suposto direito ideal. Observa-se, para fins didáticos, que
o conceito de valor não se confunde com o de validade, uma vez que uma norma jurídica é válida
quando faz parte de um ordenamento jurídico real, ou seja, efetivamente existe em uma determinada
sociedade.
O valor de uma norma jurídica indica a qualidade de tal norma conforme sua relação com
um suposto direito ideal. Uma norma jurídica será justa quando corresponder a esse direito ideal.
Encontramos aqui dois critérios independentes entre si. Para o juspositivista há uma redução da
concepção valorativa na concepção validativa, ou seja, uma determinada norma será válida se
pertencer a um ordenamento jurídico e, portanto, justa (legítima).
Com a distinção entre juízos de valor e juízos de fato, há uma separação entre ciência do
direito e filosofia do direito. O juspositivista estuda o direito independente de juízos de valor, enquanto
que o filósofo do direito considera imprescindível investigar o fundamento e a justificação do direito.
Segundo Bobbio, a filosofia do direito pode ser definida como o estudo ou investigação acerca do
direito a partir de certo ponto de vista valorativo. Desta dicotomia podemos observar duas
possibilidades para definir o direito, a saber: a definição científica e a definição filosófica. Uma definição
científica tem como característica o fato de ser avalorativa define o direito como ele é; uma definição
filosófica pode ser considerada ideológica, ou valorativa ou deontológica, pois define o direito tal como
107
deve ser para plenitude de determinado valor. Com efeito, há uma passagem na obra de N. Bobbio que
expressa a crítica que os juspositivistas fazem aos filósofos do direito:
“Os positivistas jurídicos não aceitam as definições filosóficas porque estas (introduzindo uma qualificação valorativa que distingue o direito em verdadeiro e aparente, segundo satisfaça ou não um certo requisito deontológico) restringem arbitrariamente a área dos fenômenos sociais que empírica e factualmente são direitos”.
As definições valorativas apresentam uma estrutura teleológica, ou seja, definem o direito
relacionado a um fim (telos). As mais tradicionais definem o direito como um ordenamento jurídico
necessário para alcançar a justiça, ou ainda o bem comum.137 A justiça, ou o bem comum, ou ainda a
liberdade individual são valores que o direito deve realizar. As definições juspositivistas são definições
neutras, o direito é definido como uma simples técnica. Como exemplo, as definições de Hobbes,
Austin e Kelsen.
108
Parte IX - O pensamento de Hans Kelsen (1881-1973)
“O anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade. Não podendo encontrá-la como indivíduo isolado, procura essa felicidade dentro da sociedade” Kelsen
1 – Introdução
Este pensador foi jurista de notável valor, filósofo, sociólogo e juiz (entre 1921-1930) da
Corte Constitucional da Áustria. Foi iniciador do que se denomina de lógica jurídica e autor intelectual
da Constituição republicana austríaca. Sua obra mais importante foi Teoria Pura do Direito (1934).
Exilou-se nos Estados Unidos por ocasião do advento do nazismo e lecionou na Universidade de
Berkeley. Kelsen frequentou o conhecido Círculo de Viena que reunia intelectuais como Carnap,
Wittgenstein e Freud.
Kelsen foi influenciado pela filosofia do Círculo de Viena que era, na verdade, um grupo de
pensadores que contribuíram para o surgimento do neopositivismo vienense. Os filósofos do Círculo de
Viena eram professores da Universidade de Viena, pensadores antimetafísicos, filósofos da ciência. A
cidade de Viena era propícia ao surgimento do neopositivismo porque nesta região se desenvolveu
durante a segunda metade do séc. XIX, o liberalismo com seu patrimônio de ideias originadas do
Iluminismo, do empirismo e do utilitarismo. A universidade de Viena se mantivera sob a influência
católica e, portanto, ficou imune à corrente do idealismo. Foi, portanto, a mentalidade escolástica que
preparou a abordagem lógica das questões filosóficas. O círculo de Viena era constituído por um grupo
de jovens doutores em Filosofia da ciência que organizavam colóquios semanais, dentre eles
destacamos: Hans Hahn, Otto Neurath, Olga Neurath, Félix Kaufmann, Carnap e tantos outros. Uma
das teses do Círculo de Viena era afastar o conhecimento metafísico, a ética e a religião do âmbito
científico.
Sua obra foi de extrema importância para o pensamento jurídico do séc. XX. O objetivo da
obra seria discutir e propor os princípios e métodos da teoria jurídica, reflexo dos debates
metodológicos que ocuparam os intelectuais do séc. XIX. Kelsen vivenciava uma época marcada pelo
positivismo jurídico nas suas diversas tendências e pelos teóricos da livre interpretação do direito. Esse
momento colocava em relevo a própria autonomia do direito enquanto ciência jurídica. Nesse sentido,
alguns entendiam a metodologia correta como aquela que aproxima o direito e as demais ciências
humanas. Outros compreendiam a ciência jurídica como esfera autônoma, livre de qualquer juízo
valorativo. Kelsen procurou um conhecimento objetivo, desvinculado de qualquer ideologia.
109
Há que se falar também na tentativa de uma volta aos parâmetros do direito natural.
Nesse entrecruzamento de correntes, o pensamento de Kelsen se comprometia com a busca de um
método e objeto próprios, capazes de superar as confusões metodológicas e dar mais autonomia
científica ao jurista. Com esse objetivo, Kelsen propôs o princípio da pureza, segundo o qual o método
e o objeto específicos da ciência jurídica deveriam ter o enfoque normativo, isto quer dizer que, o direito
deveria ser visto como norma e não como fato social ou valor transcendente. Essa proposta causou
polêmica, o que resultou na acusação de reduzir o direito à norma, ou seja, abandonar a dimensão
social e valorativa (para alguns, despir o direito de caracteres humanos), todavia não tenha sido essa a
sua intenção. Sem dúvida, o direito é um fenômeno complexo, mas no seu modo de ver deveria ser
observado autonomamente pelo jurista sob pena de incorrer em debates infindáveis.
O que podemos entender por norma senão uma regra de conduta que poderá ser moral,
religiosa e jurídica. As normas morais e religiosas fundam sua obrigatoriedade na consciência pessoal;
as jurídicas são protegidas por uma eventual força coercitiva externa. 138 Isto posto podemos focalizar o
conceito de norma em Kelsen. Para este autor, normas são prescrições de dever-ser que conferem ao
comportamento humano um sentido prescritivo e, portanto, trata-se de um comando, produto da
vontade humana que proíbe, obriga ou permite determinado comportamento. Tércio Sampaio Ferraz Jr.
oferece o seguinte exemplo: existe a categoria de ser e a do dever ser; as prescrições são prescrições
de dever ser, ou seja, o ato de levantar o braço em uma palestra poderá ter dois sentidos, um descritivo
onde interessa apenas observar que alguém levantou o braço e um sentido prescritivo onde levantar o
braço deve ser entendido como voto a favor de uma proposta.
Essa norma adquire existência independente de seu autor; essa existência chama-se
validade. Kelsen compreende a ciência jurídica como uma ciência pura de normas e as investiga no
seu encadeamento hierárquico. A validade de uma norma está ligada a normas superiores que
culminam numa norma fundamental. Kelsen também elaborou uma teoria da norma fundamental onde
a norma somente será considerada jurídica e legítima se, e somente se, for estabelecida em
conformidade com as prescrições contidas na norma fundamental, valorativamente neutra. Disto
decorre que todo o ordenamento jurídico vale e é legítimo em função dessa norma fundamental
(constituição, posta por um poder eficaz). Ainda que haja uma norma injusta, será válida e legítima
desde que decorra de uma norma fundamental legítima.
Kelsen foi grande defensor da neutralidade científica aplicada à ciência jurídica,
compreendendo a necessidade do direito se afigurar como uma esfera autônoma em relação à moral e
a política. Para Kelsen, Direito e Estado se confundem. Isto implica dizer que o Estado se configura
110
num conjunto de normas estabelecidas prescrevendo uma sanção para determinados comportamentos.
Sem essa ordem normativa, o Estado deixaria de existir no sentido jurídico.
2 - Princípio metodológico fundamental
Tal princípio significa a condição primeira para que a doutrina do direito se torne ciência. O
cientista do direito deve abster-se de valores estranhos ao objeto da ciência jurídica. O conhecimento
para ser científico deve ser neutro em relação aos valores, pois não é da competência da doutrina
jurídica discutir acerca dos valores buscados pelo direito e sim ressaltar uma preocupação
eminentemente jurídico-científica.
Esses são os limites apresentados pelo princípio metodológico fundamental. O objeto da
ciência do direito é a norma posta por autoridade competente. Nesse sentido, o que o princípio
metodológico fundamental exige é a exclusão do âmbito de interesse do jurídico os fatores
especificamente sociais, econômicos, culturais, morais ou políticos interferentes na produção da norma
e também os valores prestigiados em sua edição. A utilização do princípio metodológico fundamental
implica uma hermenêutica jurídica que se abstém da ideia de um único sentido correto para a norma
jurídica, mas busca uma pluralidade de significações cientificamente pertinentes e fixa esse limite.
3 - Norma jurídica e proposição jurídica
A distinção entre norma jurídica e proposição jurídica é considerada uma das mais
importantes para a teoria kelseana. Com essa distinção entre norma jurídica e proposição jurídica,
Kelsen pretendia acentuar ainda mais a diferença entre a atividade de aplicação do direito e a
desenvolvida pelo cientista jurídico.
A norma jurídica prescreve a sanção que se deve aplicar no caso de ações ilícitas – tem
caráter prescritivo, resulta do ato de vontade; uma proposição jurídica que é um juízo hipotético ou
condicional, afirma que uma determinada conduta típica implica em certa sanção – tem caráter
descritivo, resulta do ato de conhecimento.
Podemos dizer que as proposições jurídicas são reflexões, juízos sobre as normas
jurídicas. Como diz Kelsen na obra Teoria Pura do Direito, “Proposições jurídicas são, por exemplo, as
seguintes: se alguém comete um crime, deve ser-lhe aplicada uma pena; se alguém não paga uma
dívida, deve proceder-se a uma execução forçada de seu patrimônio; se alguém é atacado de doença
contagiosa, deve ser internado num estabelecimento adequado. Procurando uma fórmula geral, temos:
111
sob determinados pressupostos fixados pela ordem jurídica, deve efetivar-se um ato de coação, pela
mesma ordem jurídica estabelecida. É esta a forma fundamental da proposição jurídica”. Percebemos
que a proposição liga dois elementos, a saber: 1. Antecedente: dados determinados pressupostos, 2.
Consequente: decorre a efetuação de um ato de coerção, sempre na forma estabelecida pela ordem
jurídica.
As normas jurídicas recebem o qualificativo de válidas ou inválidas e as proposições
podem ser consideradas como verdadeiras ou falsas. Ou dizendo de outro modo, uma lei poderá ser
válida ou não conforme a sua existência no mundo jurídico e uma proposição acerca de uma lei poderá
ser ou não verdadeira; poderá ocorrer que um jurista qualquer tenha formulado um juízo equivocado
acerca da tal lei – sua proposição será falsa.
4 - Estrutura da norma jurídica
Sabemos que o direito se distingue de outras ordens sociais por meio do uso da coação
prescrita em suas normas. As proposições jurídicas se referem a enunciados deontológicos139, ou seja,
enunciados que prescrevem alguma conduta através do verbo dever ser. Ligam uma determinada
previsão com atos de coação: se fulano cometeu homicídio deverá ser punido com reclusão de seis a
vinte anos.
Dessa estrutura básica podemos inferir duas possibilidades de conexão, a saber: ou
temos uma ligação deôntica entre uma ação/omissão e uma sanção, ou entre diversas condutas
humanas com diversos atos coativos na qualidade de sanção. O primeiro tipo aplica-se para a
generalidade dos casos e o segundo em situações específicas. Kelsen se mantém nos limites da
primeira alternativa: a estrutura da norma jurídica é descrita pela proposição jurídica como a ligação
deôntica entre a referência a certo comportamento e a sanção correspondente. Nesse sentido, afirma
Fábio U. Coelho que “As normas jurídicas, assim, têm a estrutura de uma proibição, por descreverem a
conduta tida por ilícita como antecedente e a punição como consequente”.140
O fato de Kelsen ter reduzido as normas jurídicas a uma estrutura de proibição gerou
algumas objeções: a primeira delas relativa às normas que não proíbem, mas que obrigam
determinados atos ou omissões; a segunda, em relação às normas permissivas; em terceiro lugar, com
relação às normas revogatórias e conceituais. O argumento de Kelsen se baseia em duas
observações. A primeira refere-se ao fato de que existe a possibilidade de interdefinir, ou relacionar
intrinsecamente as normas proibitivas e obrigatórias, uma vez que qualquer proibição pode ser
112
traduzida por uma obrigatoriedade e vice-versa. Proibir certa conduta equivale a obrigar a omissão da
mesma conduta. O argumento usado em favor das normas permissivas baseia-se na possibilidade de
distinguir a permissão em negativa (o que não é proibido é permitido) e positiva (dependente das
normas proibitórias). Nesse caso, encontramos na permissão negativa a inexistência de proibição, mas
na permissão positiva a manifestação de uma proibição à qual se liga.
Como exemplo desse tipo de normas permissivas positivas, Fábio U. Coelho menciona as
hipóteses de exclusão de ilicitude previstas no art. 23, inc., II, do CP: “Não há crime quando o agente
pratica o fato: I - em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de
dever legal ou no exercício regular de direito”. Tais hipóteses configuram o sentido de normas
permissivas positivas (a atitude em si poderia configurar um ilícito penal).
Para Kelsen certas normas não possuem autonomia, mas encontram em outras normas
proibitivas o complemento para seu sentido no mundo jurídico; normas não autônomas precisam de
normas sancionadoras. Kelsen denominou tais normas não autônomas de secundárias e as
sancionadoras de primárias.
5 - Validade e eficácia
A validade da norma jurídica para Kelsen vincula-se inicialmente à sua relação com a
norma fundamental, sobretudo no que concerne ao problema da manifestação de vontade de uma
autoridade competente: “A norma jurídica é válida se emanada de autoridade com competência para
editá-la, ainda que o respectivo comando não se compatibilize com disposição contida em normas de
hierarquia superior”.141
Como um legítimo representante do pensamento jurídico-positivista, Kelsen relaciona
validade e eficácia, a partir da dicotomia entre a norma singularmente considerada e a ordem positiva
como um todo. A validade exige também a eficácia da norma jurídica e, nesse ponto, nosso autor
rejeita duas ideias: a de que a validade não depende da eficácia, como também, a de que validade e
eficácia se identifiquem.
Qual seria a posição de Kelsen? Observando as duas instâncias: a da norma
singularmente considerada e a da ordem positiva, este autor sustenta que as normas deixam de ser
válidas se perderem a eficácia. Validade e eficácia não são termos sinônimos, mas guardam forte
113
relação entre si. Segundo Kelsen, a eficácia se revela como condição de validade em ambas as
instâncias e nesse sentido qualquer norma jurídica totalmente ineficaz é inválida.
A reivindicação do representante do tráfico organizado e a do agente fiscal diferem
fundamentalmente por não ter a primeira validade jurídica, na medida em que não se sustenta em
norma hipotética alguma; a segunda reivindicação é válida, porque o direito instituído pelo Estado se
revela eficaz e torna legítima tal situação. A eficácia necessária à vigência da ordem jurídica é medida
em termos globais, ou seja, se a legislação de um país vigora, ainda que alguns dos seus artigos sejam
totalmente ineficazes e consequentemente inválidos. A validade da ordem jurídica não depende da
eficácia de todas as normas que a constituem. Todavia, o inverso é possível, isto é, a norma
singularmente considerada perde eficácia se houver ineficácia global da ordem jurídica.
São três os pressupostos que condicionam a validade da norma jurídica, a saber: 1. A
competência da autoridade que a editou, com base na norma hipotética fundamental; 2. O mínimo de
eficácia que desconsidera a inobservância episódica ou temporária; 3. A eficácia global da ordem
jurídica.
6 - Causalidade e imputação
O objeto da ciência jurídica compreende as normas e, nesse sentido, os cientistas do
direito operam de forma diferente dos cientistas sociais, pois não estabelecem relações de causalidade,
mas relações de imputação. Isto quer dizer que, entre dois fatos como, por exemplo, um homicídio e a
punição correspondente há uma ligação de outra ordem e esta ligação é a imputação. A sanção
referente ao homicídio não foi causada pela conduta em si mesma, mas exige a prova de seu
acontecimento. O direito pertence a uma ciência normativa que não visa prescrever condutas, mas tão
somente examinar as normas e estruturar seus enunciados a partir do princípio da imputação.
Imputar significa atribuir coisa desonrosa ou criminosa a uma pessoa; creditar algo que
não seja evidente ou decorra analiticamente. Causalidade significa uma relação necessária e universal
entre dois termos no caso das ciências naturais, ou uma ligação de causa e efeito também utilizada
pelas ciências sociais como, por exemplo, a sociologia que vincula por causalidade a taxa de
desemprego e o índice de violência.
Duas distinções são relevantes entre causalidade e imputação, a saber: 1. A imputação
depende da vontade humana; a causalidade independe dessa interferência. Há o ponto inicial e o
114
terminal, claramente definidos na proposição jurídica. 2. A imputação não deriva de nenhum outro
consequente imputado, não há uma cadeia de sucessões; a causalidade implica em infinitude, ou seja,
uma cadeia de sucessões.
7 - Direito e Justiça
Para Kelsen, a justiça possui valor inconstante, relativo, dissolúvel e mutável. Trata-se de
um julgamento de valor que possui caráter subjetivo. A multiplicidade de valores sobre o justo reafirma
a possibilidade de o direito positivo se chocar pelo menos com algum sentido de justiça. Como
doutrinas morais não fazem parte do conhecimento dos juristas, pois estes estão preocupados com as
normas jurídicas, o direito positivo desvincula-se de questões de justiça.
115
Parte X - A teoria tridimensional do direito: Miguel Reale (1910 -).
“A norma jurídica é a indicação de um caminho, porém para percorrer um caminho devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor”. (Miguel Reale)
1 - Introdução
Miguel Reale ocupa lugar de destaque no pensamento filosófico-jurídico brasileiro.
Bacharel em Direito desde 1934, sua vida foi marcada por intensa participação nos movimentos
estudantis e políticos de sua época. Foi professor de latim, psicologia, direito comercial, legislação
fiscal, português, escreveu inúmeros artigos e livros. Em 1941, aos 31 anos, ocupou a cátedra outrora
ocupada por João Arruda, com a apresentação da tese Fundamentos do Direito. Com esta obra,
apresentou sua concepção culturalista do Direito, segundo a qual o estudo do fenômeno jurídico
somente será possível a partir de um estudo integral, ou seja, uma apreciação panorâmica e completa
dos elementos do Direito em detrimento de uma postura unilateral baseada apenas no fato jurídico.
Reale ressaltou a insuficiência daqueles que defendiam “um verdadeiro dualismo ou uma justaposição
de perspectivas, como se houvesse um direito para o jurista e um outro para o filósofo, cada um deles
isolado em seu domínio, sem que a tarefa de um repercutisse, de maneira direta e permanente, na
tarefa do outro ” 142
Segundo exprime Cretella Júnior, Miguel Reale tentou uma “síntese entre o sujeito ético
do kantismo e o espírito histórico do hegelianismo”. 143 Reale formulou uma teoria tridimensional do
direito com caráter dialético relacionando três termos (fato, valor e norma), de modo diferente das
diversas teorias tridimensionais que correlacionaram norma, fato e valor, ou seja, o aspecto fático,
axiológico e prescritivo do Direito, num sentido estático. Em seu modo de ver:
“Quem assume, porém, uma posição tridimensionalista, já está a meio caminho andado da
compreensão do direito em termos de - experiência concreta - , pois, até mesmo quando o estudioso se
contenta com a articulação final dos pontos de vista do filósofo, do sociólogo e do jurista, já está
revelando salutar repúdio a quaisquer imagens parciais ou setorizadas, com o reconhecimento da
insuficiência das perspectivas resultantes da consideração isolada do que há de fático, de axiológico ou
ideal, ou de normativo na vida do direito”. 144
Segundo Reale, a ciência jurídica encontra problemas de natureza axiológica, social e
histórica, por isso a Filosofia do Direito, no seu entender, divide-se em três partes, a saber: a
116
ontognoseologia jurídica que indaga as estruturas objetivas e como são pensadas em conceitos, ou
seja, o direito em sua estrutura ôntica e em sua estrutura racional; a epistemologia jurídica que estuda
os objetos das diversas ciências jurídicas, observando sua natureza e implicações; a deontologia
jurídica que indaga o fundamento da ordem jurídica e a razão da obrigatoriedade das normas de
Direito, da legitimidade da obediência às leis; a culturologia jurídica que estuda o Direito como cultura,
como esforço humano de conquista e preservação daquilo que se concebeu como válido.
Para os culturalistas, o mundo das normas faz parte de uma área maior que é o mundo da
cultura humana em geral, o direito não é um objeto natural, ideal ou simplesmente valorativo, mas um
objeto cultural que supera o dualismo de ser e dever ser. Esta última posição é a da teoria
tridimensional do direito sustentada vigorosamente por Miguel Reale, na qual o direito se considera em
seus três elementos indispensáveis: fato, valor e norma. Nesse sentido o jurista precisa interpretar o
problema da justiça, não se contentando apenas com o estudo dogmático do direito, a partir de estudos
sociológicos e filosóficos, embora consciente de que cada uma destas matérias tem seus métodos
próprios.
2 - A tridimensionalidade da lei
Segundo Miguel Reale, no campo das ciências sociais encontramos palavras que
apresentam uma multiplicidade de acepções ao longo do devir histórico. Nesse sentido, a palavra
Direito assumiu sentidos diferentes conforme interesses e preferências que em cada momento histórico
recebeu certo destaque. Inicialmente o homem vivenciava o direito como um fato, depois essa ideia
cedeu lugar para a intuição do direito como sentimento do justo e consequentemente ao sentido de
obrigação jurídica, que hoje se nos apresenta como algo intuitivo e evidente. A importância do Direito
Romano se afigura na ciência que denominavam de jurisprudência (senso prudente de medida) que
focalizava o Direito como norma. No dizer de Reale, “Eis aí, portanto, através de um estudo sumário da
experiência das estimativas históricas, como os significados da palavra Direito se delinearam segundo
três elementos fundamentais: o elemento valor, como intuição primordial; o elemento norma, como
medida de concreção do valioso no plano da conduta social: e, finalmente, o elemento fato, como
condição da conduta, base empírica da ligação intersubjetiva, coincidindo a análise histórica com a da
realidade jurídica fenomenologicamente observada”.145
Miguel Reale observa que encontraremos os três elementos onde quer que se encontre a
experiência jurídica e é nesse modo de ver que podemos falar em triplo enfoque do Direito. Podemos
observar o Direito enquanto valor, estudado pela Filosofia do Direito na parte denominada de
117
deontologia Jurídica; podemos ainda observá-lo como norma ordenadora da conduta, objeto de estudo
da Ciência do Direito ou Jurisprudência e da Filosofia do Direito na esfera da Epistemologia; também
podemos estudar o Direito como fato social e histórico, objeto de investigação da Sociologia e da
Etnologia do Direito e da Filosofia do Direito na parte denominada Culturologia Jurídica. Para
entendermos melhor essa relação entre norma, fato e valor, podemos pensar no exemplo oferecido por
Severo Hryniewicz: “tomemos um exemplo do Direito Penal: a prática de um homicídio. Temos primeiro
um fato – fulano matou sicrano. No fato está implícito o atentado contra um valor ético fundamental – o
valor da vida. E, por fim, temos uma norma jurídica – artigo 121 do CP – que prevê uma sanção para,
de algum modo, - compensar - o desrespeito ao valor. Se não houvesse na base uma categoria
axiológica – o valor vida – não teriam sentido tanto a elaboração de uma norma que visa à preservação
do valor vida, quanto todos os procedimentos posteriores ao fato no âmbito penal”.146
Reale afirma que a teoria tridimensional é fruto da verificação objetiva da consistência
fático-axiológica-normativa de qualquer porção ou momento da experiência jurídica. É formada de
consciência de todas as implicações do direito – a essência triádica do direito. Uma análise rigorosa
desta teoria implica formular algumas questões: como se garante a unidade a partir desses três
fatores? Como se correlacionam? Como se distinguem?
Para Reale, fato, valor e norma estão sempre correlacionados não importa o ponto de
vista: se filosófico, sociológico ou jurídico. Tal correlação possui natureza dialética, uma mútua
implicação entre esses elementos – entre fato e valor que implica em um momento normativo. Segundo
exprime nosso autor, o direito “não é puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe
dá uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade competente”.
A novidade da teoria de Reale está na utilização do conceito de dialética, retirado do
sentido do termo alemão lebenswelt, que significa mundo da vida presente na obra Crise das Ciências
do filósofo alemão Edmundo Husserl (1859-1938) que desenvolveu um pensamento crítico do
positivismo (em sua pretensão de objetivismo e verdade científica). Para Husserl, toda consciência é
intencional, ou seja, não há consciência separada do mundo, não há objeto em si, afastado da
consciência que o percebe. Isto significa dizer que não há fatos com objetividade pretendida, pois o
mundo que percebo é o mundo para mim. A crise da ciência se desvela na sua tentativa de redução da
razão à racionalidade científica. Na verdade, a ciência não tem nada a nos dizer sobre nossa liberdade.
A mera ciência do fato exclui o homem de sua análise.
118
Assim, Reale insere o conceito de dialética na relação entre fato, valor e norma, a partir do
sentido de mundo da vida (lebenswelt) que expressa o complexo de noções, opiniões, regras, valores e
etc, ou seja, uma vida cultural que está em constante acontecer, o lugar de nossas originárias
formações de sentido. O direito está, portanto, inserido na fervilhante experiência do mundo da vida. E
essa tridimensionalidade não se limita à esfera jurídica. A função da Filosofia para Reale está na tarefa
de libertar a história da fetichização da ciência e da técnica – da clausura para desvelar a verdadeira
humanidade. O mundo da vida é o mundo da criatividade intencional da subjetividade.
Reale entende que a norma jurídica é muito mais do que simples proposição lógica de
natureza ideal: é antes uma realidade cultural e não mero instrumento técnico de medida no plano ético
da conduta; a sua elaboração não é mera expressão do arbítrio do poder e nem resulta da tensão
fático-axiológica, mas um processo onde o poder é condicionado por um complexo de fatos e valores.
A experiência jurídica é a experiência histórica cultural, na qual o valor atua como um dos fatores
constitutivos dessa realidade (função ôntica) e, concomitante, como prisma de compreensão da
realidade por ele constituída (função gnoseológica) e como razão determinante da conduta (função
deontológica) – tripla função do valor revela a historicidade do homem e a experiência histórica do
direito.
Reale difere de Kelsen, pois este jurista separou as três esferas na tentativa de
desacreditar a sociologia jurídica e a filosofia jurídica e preservar a Teoria pura do direito. Queria
desacreditar a jurisprudência sociológica ou a teoria da justiça como campos apropriados de indagação
de natureza jurídica. Kelsen formulou, segundo Reale, uma tridimensionalidade metodológica negativa,
só a ciência do direito possui caráter jurídico. Na verdade o direito acontece no seio da vida humana.
Trata-se de um processo existencial do indivíduo e da coletividade imersos no mundo da vida.
119
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1. Jaeger, Werner W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 4. [grifo nosso]
2. Descartes, R. Discurso do Método. In: Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.39.
3. Direito natural como filosofia do Direito positivo (Naturrecht als Philosophie des positiven rechts – 1797) de Gustav Hugo, Fundamentação do Direito Natural ou elementos Filosóficos do ideal do Direito (Grunlage des Naturrechts oder philosophie Grundriss des Ideals des rechts – 1803) e Bosquejo do Sistema de Filosofia do Direito (Abriss des Systems der rechtsphilosophie – 1828) de Karl Christian Friedrich Krause; Elementos de Direito natural e de Ciência Política (Grundlinien der Philosophie des Rrechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse – 1821) de Hegel.
4. A palavra Filosofia formou-se da junção de “Filos-filia” (amigo) com “sophia” (sabedoria, saber), opondo-se ao termo grego “polimathéia” que significa saber comum, desconexo, fragmentado, ao nível do senso comum.
5. Jaeger, Werner W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p.73.
6. areté, aretai (pl.) – excelência, virtude.
122
7. Jaeger, Werner W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p.94.
8. Jaeger, Werner W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 91.
9. Meu intento nesta parte foi o de mencionar os pré-socráticos mais conhecidos. Para um maior aprofundamento sugiro a obra de Bornheim, G. (org) Os Filósofos Pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1997.
10. Serra, A. T. História da Filosofia do Direito e do Estado. Portugal: Instituto de Novas Profissões, 1985, pp. 85-86.
11. Esta ideia estaria presente no único fragmento existente da obra Sobre a Natureza, p. 87.
12. Trata-se de uma das fontes do idealismo ético de Platão.
13. Serra, A. T. História da Filosofia do Direito e do Estado. Portugal: Instituto de Novas Profissões, 1985, p.89.
14. Chamo a atenção para um ponto interessante: a figura do coro na tragédia Antígona desvela certo vestígio da antropologia sofística que exalta o homem e suas obras, embora apresente a advertência que a obra humana também poderá gerar um grande mal.
15. Péricles: estadista e general, incentivador da democracia e do imperialismo ateniense. Jones, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
16. Jones, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.210.
17. Cf. As vespas (422) de Aristófanes que constitui uma sátira sobre os tribunais.
18. O primeiro uso da graphé paranómom foi verificado em 415, momento em que houve rumores de subversão. Também foi utilizada na competição pelo sucesso político. A graphé paranómom substituiu o ostracismo que foi abandonado por volta de 416. Cf. Jones, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 224.
19. Cf. Jones, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp.231-2.
20. Os defensores de certo feminismo foram ridicularizados por Aristófanes na obra O congresso das mulheres.
21. Na obra Areopagítico (354 a.C.) e Panatenaico (340 a.C.)
22. Xenofonte (ca.430-354 a.C.) – suas obras foram conservadas na íntegra: Hierão, República dos Lecedemônios, República de Atenas, Ciropédia e Econômico.
23. Cf. o diálogo Críton.
24. Jones, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 111.
25. Os cirenaicos foram assim chamados por ser o seu fundador oriundo da cidade de Cirene.
26. As ideias do cinismo nos fazem lembrar as proferidas por Rousseau sobre o bom-selvagem.
27. Este texto foi elaborado em conjunto pelos professores Wellington Trotta e Clara Maria C. Brum de Oliveira.
28. P.119.
123
29. Salgado, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, pp. 24-29.
30. Platão. A República, 332c, 433a, 433e.
31. Salgado, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, p. 27 e Platão. A República, 433ª
32. Platão. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian: 1993.
33. ‘Se a meu pai devo a existência a meu preceptor devo a arte de me saber conduzir. Se governo com alguma glória, a ele [Aristóteles] sou devedor”. In: Col. Os Pensadores.
34. Casa religiosa com clausura, ou seja, recinto fechado.
35. Aquele que constrói navios mercantes; enfeita igrejas, salões de festas, ornamenta livros, etc.
36. Essência, forma – mundo inteligível.
37. Metafísica: palavra de origem grega, usada para nomear o conjunto de textos de Aristóteles. Esta não foi usada por ele e sim a expressão Filosofia Primeira, que denota com maior precisão a sua filosofia: a ciência dos primeiros princípios e das primeiras causas.
38. Acrescenta-se a esta obra a República dos Atenienses ou Constituição de Atenas, descoberto em 1891.
39. Pólis ou cidade-estado: nova forma de convivência centrada na ágora (praça pública) para o debate sobre interesses comuns. Surge a figura do cidadão, aquele que fazendo uso público de sua razão, delibera conjuntamente aos seus pares os destinos da cidade.
40. A Ética a Nicômaco ou Nicomaquéia foi assim chamada por ter sido, provavelmente editada por Nicômaco, filho de Aristóteles. Ética a Eudemo, por ter sido editada ou redigida pelo seu discípulo deste nome, uma refundição da anterior. A Grande Ética ou Ética Maior, um resumo posterior. Truyol y Serra, p.132.
41. Ethos do grego costume, uso, característica. Significa caráter, modo de vida habitual. Aquilo que é característico e predominante nas atitudes e sentimentos dos indivíduos que pertencem a uma comunidade e que marca suas realizações ou manifestações culturais. Em Platão é o resultado do hábito (Leis, 792e); em Aristóteles (Ética a Nicômaco, 1139a) é mais moral do que intelectual.
42. Grandiosidade, esplendor, suntuosidade.
43. Diánoia: entendimento. Em Aristóteles é usada como um termo geral para atividade intelectual. Noético (gr) relativo ao pensamento; noetikos – inteligente.
44. Cf. livro V da Ética a Nicômaco.
45. Disposições constantes do espírito, as quais por esforço de vontade inclinam à prática do bem.
46. Cf. livro II-4, 1105b, Ética a Nicômaco.
47. Ressalta-se que a conceituação da justiça como uma virtude não implica o caráter de uma ideia ontologicamente transcendente como acontece em Platão.
48. Salgado, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, p.33.
49. Bittar, Eduardo. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001, p.91.
124
50. Pegoraro, Olinto. Ética é justiça. Petrópolis, Vozes, 1995, pp.32- 33
51. Bilateral.
52. Aqui percebemos que a ideia que fundamenta a responsabilidade civil já estava presente na experiência da pólis grega.
53. Os diversos modos de falar de justiça podem ser observados em: Grande Moral, 1194 b,1193b, Retórica,1373; Política, 1279a, 1301b.
54. Decretos, sentenças, as decisões do poder administrativo, caracterizam-se por circunstancialidade ou especialidade.
55. Salgado, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, pp. 40-41.
56. Cf. Capítulo 1, Política.
57. Reto, justo.
58. Salgado, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, p. 37.
59. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Col. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, pp.1130a, 1134b.
60. Idem ibidem, p. 1110ª
61. Idem ibidem, p. 1135ª
62. Deposição do imperador Rômulo Augústulo.
63. A vitória de Maomé II contra Constantino XII (1453).
64. Simplício e Damáscio.
65. p.14-5.
66. Calvino (1509-1564) levou as teses agostinianas às últimas consequências.
67. Salgado, Joaquim. P.58.
68. P. 359.
69. Disse Porfírio: “enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos ou na sua pura inteligência, nem, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos” Apud, História da Filosofia, p.107.
70. Oblato: leigo que se oferece para o serviço monástico.
71. HUGON, Édouard. Os Princípios da Filosofia de Tomás de Aquino: as vinte e quatro teses fundamentais. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p.14.
72. Idem ibidem, p.14.
73. Ver. Ética a Nicômaco, Livro VII: o agir ético como um agir pendular entre o vício e a virtude.
74. BITTAR, Eduardo C. B. Curso de ética jurídica: ética geral e profissional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 232.
125
75. Aquino, T. Summa Contra Gentiles, Liv. II, cap. XXVIII, 2.
76. “Epicuro”. In: Coleção Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1988.
77. Conforme exprime Sófocles na tragédia grega sob o nome de Antígona.
78. Giordano Bruno ( 1548-1600) foi condenado à morte por apresentar a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico ( 1473-1543) e a infinitude do universo. A inquisição foi reativada no Concílio de Trento (1545-63)
79. Truyol y Serra, p.5 Do renascimento a Kant.
80. Não eclesiásticas ou leigas.
81. Do direito da guerra e da paz
82. Nader, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
83. Observa-se que este critério não pode ser atribuído a Aristóteles, pois este filósofo entendia que o direito natural poderia mudar no tempo.
84. Nader, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.163. Sugiro a leitura do capítulo XIII – “A doutrina do Direito Natural”, pp. 154-172.
85. Reale, Giovanni. História da Filosofia: Do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991, p.907.
86. Falarei do realismo jurídico e do positivismo na apostila “O positivismo Jurídico”.
87. O item 8 é de autoria de Wellington Trotta
88. Bobbio, Norberto (org.) Dicionário de ciência política. Brasíkia: UnB, 2000: 655.
89. Rousseau, JJ. O contrato social. RJ: Edições de Ouro, s/d: 28.
90. Idem: 120.
91. Movimento de intensificação da fé, nascido na Igreja Luterana alemã no séc. XVII.
92. Crítica da Razão Pura (1781-1787). Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, AXI.
93. "Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?” (1783) In: Textos Seletos. Edição bilíngue. Petrópolis: Editora Vozes, 1974.
94. Faculdade de representar mentalmente um ato que pode ou não ser praticado em obediência a um impulso ou a motivos ditados pela razão.
95. Faculdade que tem o ser humano de avaliar, julgar, ponderar ideias universais; raciocínio, juízo.
96. Crítica da Razão Pura (1781-1787). Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, A803 / B831.
97. Crítica da Razão Pura (1781-1787). Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, A802 / B830.
98. Crítica da Razão Prática (1788). Lisboa, Edições 70, 1994, A111-115.
99. BRITO, A. J. “Observações críticas à Crítica da Razão Prática”. In: Revista Portuguesa de Filosofia. Vol. XLIV, 1988, p. 544.
126
100. Crítica da Faculdade do Juízo (1793). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 159
101. La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid, Editorial Tecnos, 1994, pp. 218-9.
102. La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos, 1994, pp. 219.
103. Op. cit., pp. 225.
104. Idem ibidem.
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115. Galleffi, R. A Filosofia de Immanuel Kant. Brasília, Unb, 1986.
116. La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos, 1994, pp. 297-8.
117. Bobbio, N. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília, Ednub, 1992, p.50.
118. "Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?” (1783) In: Textos Seletos. Edição bilíngue. Petrópolis: Editora Vozes, 1974, A 482-3
119. La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid, Editorial Tecnos, 1994, pp. 230.
120. La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid, Editorial Tecnos, 1994, pp. 231.
121. Idem, ibidem.
122 . A origem da concepção coercitiva é atribuída a C. Thomasius. Cf. Bobbio, N. e Reali, G. e Antiseri, D. História da Filosofia. V.II. São Paulo: Paulus, 1990, p. 817.
123. La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos, 1994, p. 231.
124. Cf. a definição Romana: “Liberdade é a faculdade natural de fazer o que se quer, desde que o não impeça a força ou a lei”( Institutas, I, 3,2). Cf ainda Aristóteles: “Livre é o homem que tem a si mesmo como fim e não o outro”( Metafísica, 892b) e “o que não é senhor de si mesmo é capaz de desejar, mas não de agir por livre escolha”( Ética à Nicômaco, 1111b); cf.
127
ainda Montesquieu. Espírito das Leis, Cap. III, V e XI. Salgado, J. A ideia de Justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, pp. 226-8.
125. La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos, 1994, p. 232.
126. Rousseau, J.J. Do Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
127. La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos, 1994, p.311.
128. Bobbio, N. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Ednub, 1992, p.73-4.
129. Habermas, J. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 49-53.
130. Sabadell, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 17.
131. Bobbio, N. O positivismo Jurídico, p. 45
132. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p54.
133. Apud, Bobbio, N. O positivismo jurídico, p.58.
134. Dogmática jurídica – ciência empírica do direito positivo. Objeto: norma imposta pelo legislador. Estudam-se as regras vigentes, escritas e sua sistematização.
135. É preciso entender o que significa jurisprudência. No sentido romano, jurisprudência significava o conhecimento das coisas divinas e humanas, se confundia com a própria Filosofia. Os romanos não eram tão voltados para ratio scripta. Na verdade, eram os princípios que constituíam o melhor de sua preocupação, cuja finalidade era realizar o justo. Os romanos não atribuíram a característica de ciência, mas a de juris-prudentia, ou seja, prudência do direito, o que nos remete a Aristóteles em sua classificação das virtudes, em particular o termo Phrônesis fundamental para a ação honesta, leal e justa. A juris-prudentia estaria situada entre o logos (razão) e o ethos (prática). No sentido moderno, temos jurisprudência como: 1. conjunto das ciências do Direito que busca o conhecimento do Direito Público e Privado (Radbruch); 2. disciplina jurídica no sentido geral (Austin); 3. prática dos tribunais (Capitant);
136. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 135.
137. Cf. a definição do direito em Kant
138. Sugiro a leitura do capítulo 10 – “conceito de lei e norma jurídica” na obra Montoro, Franco. Introdução à ciência do direito. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, pp. 293-320.
139. Deontologia, do grego déontos, estudos dos princípios, fundamentos e sistemas da moral; tratado dos deveres.
140. Coelho, Fábio U. Para entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 36.
141. Coelho, Fábio U. Para entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 41.
142. Reale, Miguel Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo, Saraiva, 1994, p.3.
143. CRETELLA JUNIOR, José. Novíssima história da filosofia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p.288.
144. Reale, Miguel Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 11.
145. Reale, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 509.
146. Hryniewicz, Severo. Para Filosofar hoje. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1999, p.135.