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FILOSOFIA E INTERIORIDADE COLEÇÃO EDUCAÇÃO PARA A INTERIORIDADE PREFÁCIO DE OSWALDO GIACOIA JUNIOR

FILOSOFIA E INTERIORIDADE - PUCPR...INTRODUO 7 o presente seja um ensaio do futuro e que este seja pleno de oportunidades para que a vida, a ciência e a fé sejam seus alicerces,

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  • FILOSOFIA E INTERIORIDADEC O L E Ç Ã O E D U C A Ç Ã O P A R A A I N T E R I O R I D A D E

    PREFÁCIO DE OSWALDO GIACOIA JUNIOR

  • FILOSOFIA E INTERIORIDADEC O L E Ç Ã O E D U C A Ç Ã O P A R A A I N T E R I O R I D A D E

    Curitiba2019

    Curitiba2019

    PREFÁCIO DE OSWALDO GIACOIA JUNIOR

  • ©2019, Observatório de Educação para Interioridade 2019, PUCPRESS

    Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qual-quer meio sem autorização expressa por escrito da Editora.

    Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)ReitorWaldemiro Gremski Vice-ReitorVidal Martins Pró-Reitor de Missão, Identidade e ExtensãoIr. Rogério Renato MateucciDiretor do Instituto Ciência e FéFabiano IncertiGerente de Identidade InstitucionalJosé André de AzevedoRevisão TécnicaFabiano IncertiDouglas Borges CandidoJosé André de Azevedo

    PUCPRESSCoordenação: Michele Marcos de OliveiraEdição: Susan Cristine Trevisani dos ReisEdição de arte: Rafael Matta CarnascialiPreparação de texto: Pamela P. Cabral da SilvaRevisão: Pamela P. Cabral da SilvaCapa e projeto gráfico: Rafael Matta CarnascialiDiagramação: Rafael Matta CarnascialiImpressão: Corgraf

    PUCPRESS | Editora Universitária ChampagnatRua Imaculada Conceição, 1155 - Prédio da Administração - 6º andar

    Campus Curitiba - CEP 80215-901 - Curitiba / PRTel. +55 (41) 3271-1701

    [email protected]

    Dados da Catalogação na PublicaçãoPontifícia Universidade Católica do Paraná

    Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPRBiblioteca Central

    Edilene de Oliveira dos Santos CRB/9-1636

    Filosofia e interioridade / Fabiano Incerti, Jelson Oliveira (organizadores).F488 – 1. ed. – Curitiba : PUCPRESS, 20192019 82 p. ; 23 cm

    Vários autores Inclui bibliografia

    ISBN 978-85-54945-62-6 978-85-54945-63-3 (e-book)

    1. Filosofia. 2. Existencialismo. 3. Ontologia. 4. Espiritualidade. 5. Morte. I. Oliveira, Jelson, 1973-. II. Incerti, Fabiano.

    19-042 CDD 23. ed. – 100

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ..........................................................5O valor da interioridade

    PREFÁCIO ................................................................9Oswaldo Giacóia Júnior

    MONTAIGNE E A MORTE .................................... 21Jelson Oliveira

    SCHOPENHAUER E A COMPAIXÃO ................... 31Diana Chao Decock

    NIETZSCHE E A SOLIDÃO ................................... 39Jelson Oliveira

    GABRIEL MARCEL E A ESPERANÇA ................... 49José André de Azevedo

    MERLEAU-PONTY E O CORPO ........................... 57Ericson Falabretti

    FOUCAULT, CUIDADO DE SI E INQUIETUDE .... 67Cesar Candiotto

    PIERRE HADOT E A ESPIRITUALIDADE .............. 77Fabiano Incerti

  • INTRODUÇÃO

    O valor da interioridade

    Um dos grandes prejuízos de nosso tempo é a superficialidade das experiências vitais. Vive-mos a ânsia da quantidade, mas, quase sempre, ela nos conduz à pobreza da qualidade do que é vivido. O resultado é uma vida insossa e até enfa-donha. A velocidade e a pressa que marcam nos-sa época, são produtos daquilo que Byung-Chul Han chama de sociedade do desempenho, a qual, não por acaso, é também a sociedade do cansaço. Cansados, vivemos sem tempo para nós mesmos, espremidos sob a pressão da competência e da competição, gastando nossas horas de vida de forma pouco significativa, como mera rotina dis-traída que deixa escapar o essencial, que escorre líquido entre os dedos da mão inábil.

    Falar em interioridade, nesse contexto, é buscar um pouco de ar puro. Colocar a cabeça para fora da fumaça e do barulho para escapar da ablepsia insensata que cresce como epidemia, tal como no Ensaio de Saramago. Trata-se de estabe-lecer um novo tipo de vínculo com a vida, segundo o qual possamos cultivar nossa sensibilidade para o que é basilar, dedicar tempo para o mais funda-mental de tudo, aquilo que nos liga a nós mesmos,

  • 6 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    aos outros e ao transcendente. No fundo estamos tentando reinterpretar a promessa evangélica da vida em abundância, fugindo da pobreza do nu-meroso para encontrar a fartura e a fecundidade do que é primordial. Interiorizados, não estamos separados do mundo ou encapsulados nele; inte-riorizados estamos mais dispostos para a alegria existencial, mais atentos e mais preparados para a vida, que é dom e graça.

    Como nossa sociedade nos induz para o contrário, então precisamos nos educar para a interioridade, tarefa mútua e compartilhada que a própria universidade assume, como uma espécie de laboratório daquilo que nós gostaría-mos que toda a sociedade fosse. É aqui, entre colaboradores(as), professores(as), gestores(as) e estudantes, que nos encontramos diante do desafio de viver com intensidade e responsabili-dade os valores que dão sentido às nossas vidas, sobretudo porque é aqui, na universidade, que gestamos o futuro, todos os dias, com entusias-mo e perseverança. Aqui as jovens gerações se encontram com o conhecimento do mundo e de si mesmos. E desse encontro depende o tipo de humanidade que seremos amanhã.

    Precisamente por isso, a PUCPR, por meio do Observatório de Educação para a Interiorida-de, um dos quatro observatórios da Diretoria de Identidade, escolheu como uma das suas priori-dades o cultivo da interioridade: retomamos, as-sim, o elemento central da educação, como culti-vo do que é principal e do que contribui para que

  • 7INTRODUÇÃO

    o presente seja um ensaio do futuro e que este seja pleno de oportunidades para que a vida, a ciência e a fé sejam seus alicerces, um tempo em que seres humanos autênticos vivam em harmo-nia com toda a comunidade da vida.

    A interioridade, assim, é uma espécie de resistência continuada a todos os processos de superficialização e empobrecimento da vida. Educar para a interioridade é cultivar a atenção plena, a consciência limpa e o olhar esperançoso. Ora, poucas disciplinas do conhecimento nos aju-dam tanto nesses quesitos quanto a Filosofia. Ao longo da história o papel da Filosofia foi sempre oxigenar os tempos, seja com o desenvolvimento do senso crítico, seja com o esforço de trazer à luz o que permanecia sob as sombras e as poei-ras de cada época histórica. A herança filosófica, guardada na forma de ideias, autores e livros, tem sido, portanto, uma espécie de tesouro culti-vado pela universidade e um legado que precisa ser preservado da corrosão por meio de sempre novas interpretações. Nesse erário, portanto, fo-mos buscar inspiração para pensar os desafios do tempo que é nosso. Nasceu daí o projeto de oficinas intituladas Filosofia e Interioridade, reali-zadas ao longo de 2018 na PUCPR. Hora de refle-xão e de aprofundamento orientada por um(a) professor(a) de Filosofia, com a participação de pessoas de toda a comunidade (a universitária e a extrauniversitária).

    Neste pequeno livro reunimos alguns tex-tos que orientaram a nossa reflexão. Escritos de

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    forma simples e direta, eles querem continuar ecoando algumas ideias que nos retiram do ma-quinal, do súbito e do impensado, para nos pro-jetar diante da responsabilidade que temos no tempo e no espaço que nos cabe: viver e ajudar a viver de forma mais plena e integral. Eis o dom. Eis o valor da interioridade.

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    PREFÁCIO

    O presente volume nasce com base em oficinas culturais com idêntico título, que foram realizadas ao longo do ano de 2018, por meio do recém-criado Observatório de Educação para a In-terioridade da PUCPR. A instituição elegeu como uma das suas prioridades o cultivo da interiorida-de, retomando, desse modo, um dos elementos nucleares da atividade de formação, a saber, a educação entendida e praticada como cultivo do que é fundamental, e daquilo que contribui para que o presente seja um ensaio do futuro, alicer-çado na vida, na ciência e na fé - um compro-misso assumido com a comunidade acadêmica e extra-acadêmica, com vistas a um tempo em que seres humanos autênticos vivam em harmonia. Sob esse signo, originou-se o projeto das oficinas culturais intituladas Filosofia e Interioridade, reali-zadas ao longo de 2018 na PUCPR.

    O foco está voltado, portanto, para a dimen-são da interioridade, numa época em que essa pa-rece ensombrecida pelo espectro de sua dispersão na espiral das pressões por reconhecimento social que nos exigem plena dedicação, com urgência cada vez maior, e sempre em termos de produti-vidade, status, poder de influência, capacidade de

  • 10 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    rendimento, pretensões hedonistas voltadas ao consumo, bem-estar e segurança, e consideradas como o correspondente atual do sumo bem. Num cenário como esse, é saudável o recurso à filosofia como retorno a si, como reflexão sobre o autêntico Si-Próprio, que nos constitui em nossa mais íntima dimensão. Essa é a diretriz que orienta a compo-sição deste volume ao reunir reflexões enraizadas em Michel de Montaigne, Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche, Gabriel Marcel, Maurice Mer-leau-Ponty, Michel Foucault e Pierre Hadot, e que visam à condição ontológica do ser humano como indivíduo sofredor e mortal, portanto, a relação en-tre a finitude e a facticidade do existir humano no mundo e na história.

    Pois essa é uma via privilegiada para a inte-rioridade, que nos coloca face a face conosco mes-mos, como ex-sistência essencialmente temporal, singular, única, irresgatável, insubsumível a qual-quer generalidade ou abstração. Assim Heidegger descreve nossa condição existenciária, como seres-no-mundo, que é essencialmente cura e preocupa-ção. Portanto, cuidado de si, mas também Besorgen (o cuidado com alguma coisa, com providenciar alguma coisa); e Fürsorgen (a cura como tomar cui-dado de algo, ou de alguém - como preocupação, ocupar-se de algo ou alguém, tratar dele e com ele). Ser-no-mundo é existir como cura: que inclui o modo do providenciar utilitário, no trato com objetos e utensílios, mas também a pré-ocupação como encargo, que se pre-ocupa e toma sob seus préstimos. Cura, como preocupação e cuidado com

  • 11PREFÁCIO

    o mundo, é, portanto, uma dimensão essencial de nossa existência como Ser-O-Aí.

    Ora, ao nos situarmos nesse horizonte, po-demos divisar um entendimento de ética que faz comunicar as filosofias mobilizadas no presente volume com as reflexões de Martin Heidegger e de Giorgio Agamben, comunicação que se faz no elemento de numa acepção originária e funda-mental da palavra “ética”, que nos importa es-sencialmente nesse contexto:

    Uma vez que o ser mais próprio do homem é o de ser a sua própria possibilidade ou po-tência, então, e apenas por isso (na medida em que o seu ser mais próprio, sendo potên-cia, num certo sentido, falta-lhe, pode não ser, é pois privado de fundo e não está desde sempre na posse do ser), ele está e sente-se em dívida. O homem, sendo potência de ser e de não ser, está desde sempre em dívida, tem desde logo uma má consciência antes de ter cometido algum ato passível de culpa. Este é o único conteúdo da antiga doutrina.1

    Ética só faz sentido porque o homem é abertura e existe no aberto - ou seja, sua exis-tência é ex-stase, e, portanto, não referida a uma essência ou natureza substancial, permanente-mente idêntica a si mesma, uma identidade está-vel, submetida à inflexibilidade de uma destina-ção, mas existindo como experiência ética, como modo ou forma de vida a ser dado a si mesmo,

    1 AGAMBEN, G. A Comunidade que Vem. Tradução de Antonio Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1993. p. 38.

  • 12 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    na contingência e facticidade de sua ex-sistência. O ethos, portanto, guarda uma relação essencial com uma negatividade originária do ser huma-no - mas essa parece ter desaparecido de nosso horizonte, que só se abre para o positivo, para o necessário, para o útil, e para o útil como o único necessário. Razão pela qual torna-se imprescin-dível uma recuperação da potência do negativo, que se mostra de maneira superlativa no parado-xo da possibilidade de morrer a própria morte.

    É notório o modo pelo qual, em um ponto crucial de Sein und Zwit [§ 50-53], na tentativa de abrir caminho à compreensão do Dasein como um todo, Heidegger situa a relação do Dasein com sua morte. De encontro à com-preensão cotidiana, que subtrai ao Dasein a sua morte e iguala o morrer a “um evento que certamente diz respeito ao Dasein, mas não pertence propriamente a ninguém” (Hei-degger, I, p. 253), a morte, como fim do Dasein revela-se aqui como “a possibilidade mais própria, incondicionada, certa e, com tal, in-determinada e insuperável do Dasein” (p. 258). O Dasein é, na sua estrutura mesma, um ser-para-o-fim, ou seja, para a morte e, como tal, está desde sempre em relação com ela “Sendo para a própria morte, ele morre facticiamen-te e constantemente até o momento de seu decesso” (p. 259). A morte assim concebida não é, obviamente, aquela do animal, não é, portanto, simplesmente, um fato biológico. O animal, o somente-vivente (Nur-lebenden, p. 240), não morre, mas cessa de viver.2

    2 AGAMBEN, G. A Linguagem e a Morte: um seminário sobre o lugar da ne-gatividade. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 12.

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    Heidegger tinha aguda consciência da “pleto-ra do ente” no mundo contemporâneo. Com isso, quero dizer que, em nossas sociedades tecnologi-camente desenvolvidas, todos os espaços do mun-do da vida encontram-se saturados de positividade, inflados pelas mais variadas formas de entidades reais e virtuais: realidades físicas, imateriais, imagi-narias; cores, sons, sabores, relevos, estímulos de todas as modalidades; fluxos e ondas, redes de co-nexões impalpáveis - demarcando, por toda parte, em todas as esferas da vida, o domínio avassalador da Pre-Sença, que se coloca como um manto pro-tetor perante a possibilidade do vazio. Justamente sob a égide dessa presença positiva e opressiva, quedamos entorpecidos para o espanto, para a maravilhosa descoberta de que os entes são ab-solutamente contingentes, de que eles existem na clareira aberta entre o Ser e o Nada.

    Novas demandas nos enredam sempre mais na espiral das positividades, e isso inclui a matilha em ladrido constante de nossas paixões e atrocidades permanentemente em busca de satisfação imediata. Uma vez que podemos ser felizes, então também somos compelidos a sê-lo, pois é cada vez mais verdadeiro que saber é po-der. Somente nos importa o que é útil para nossos fins, e nosso fim último se identifica com um ideal de felicidade tecnologicamente assegurado, cuja realização é, por certo, permanentemente adiada, mas é sempre considerada como possível, e não apenas teoricamente. Já não há mais utopias nem finais escatológicos da história. Necessário, para

  • 14 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    nós, é apenas o que nos é útil; o que proporciona satisfação imediata; como, porém, essa exigência de satisfação, por sua própria natureza, reprodu-z-se em espiral infinita, o útil tornou-se, por sua vez, também incondicionalmente necessário.

    Tornou-se para nós dificilmente audível a voz da angústia, ofuscados que estamos por nosso próprio delírio de onipotência. Hoje em dia a ilusão de que tudo dá certo se tornou paradoxalmente perturbadora e digna de ser pensada. Ominosa é a certeza - que já desperta incômoda suspeita - de que podemos fazer cessar todas as inquieta-ções; afinal, na era da mobilização total de todos os entes para fins de produção e consumo, todos os macro e microproblemas da humanidade pare-cem ser tecnologicamente resolúveis. E, no entan-to, desperta a suspeita de que talvez venhamos a compreender, algum dia, a essência da devastação justamente nos lugares em que a terra e o povo não foram afetados por efeitos destruidores de guerras, catástrofes naturais e cataclismos:

    Onde, portanto, o mundo resplandece no brilho da ascensão, das vantagens e dos bens que proporcionam a felicidade, onde os di-reitos humanos são respeitados, e a ordem civil burguesa é sustentada, sobretudo onde está garantido o aporte provisional para a saturação permanente de um bem estar sem perturbação, de modo que tudo é calculado e inserido no âmbito do útil aproveitável e aí permanece. Onde sobretudo o inútil (das Unnötige) inibe o curso dos dias, e traz consigo

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    as temidas horas vazias, nas quais o homem torna-se tedioso para si mesmo.3

    Esse paradoxo está essencialmente ligado a outro: o homem torna-se tedioso para si mes-mo quando constata a insuperável dificuldade de entrar em contato íntimo e autêntico consigo, nessa nossa impossibilidade de ser contemporâ-neo de nós mesmos.

    Vivemos um tempo em que todos os entes - inclusive o próprio homem - tornaram-se po-sitivos, isto é, elementos disponíveis, em parcelas calculáveis, num processo contínuo de produção e consumo (desgaste) de tudo o que existe, cuja única estabilidade consiste na intensificação dos dispositivos de transformação, disponibilização e circulação cuja dinâmica homens e coisas per-dem a essência em que repousam, não podem mais conciliar-se com aquilo que são, e passam a ser tragadas na voragem devastadora do desgas-te dos materiais.

    A malignidade desse desgaste alcança seu ponto extremo precisamente na aparência en-ganadora de seu oposto, a saber: “quando ela se instalou na aparência irrefletida de um esta-do do mundo assegurado para colocar diante do homem, como meta suprema de sua exis-tência um standard de vida satisfatório, cuja

    3 HEIDEGGER, M. Abendgespräch in einem Kriegsgefangenenlager. In: HEIDEGGER, M. Feldweg-Gespräche. Gesamtausgabe. Band 77. Frankfur-t/M: Vittorio Klostermann, 2007. p. 216.

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    efetivação tem de ser garantida”4. A garantia de realização desse pretenso ideal de bem-estar, prosperidade, segurança e conforto parece ter como condição um estado de paz consolidada. No entanto o que efetivamente ocorre é que, em nosso tempo, a paz é apenas a perpetuação da guerra por meio da política, a própria paz constitui uma peça integrante da dinâmica com-pulsória da devastação.

    Um conceito estranho, como o de “altíssima pobreza”, tal como pensado por Giorgio Agam-ben, talvez possa nos indicar um caminho para preservação da liberdade humana. Para nós, e nas condições de urgência em que nos encon-tramos, esse caminho pode ser o resgate da es-sência da pobreza, ou da reversão da penúria em plenitude e riqueza verdadeira.

    A essência da pobreza repousa num Ser. Ser verdadeiramente pobre quer dizer: ser de tal modo que não carecemos de nada, a não ser do desnecessário (das Unnötige). O desneces-sário é aquilo que não advém da necessidade constringente, não provém da coação, mas do que é livre (aus dem Freien). Todavia, o que é o livre? De acordo com a saga de nossa mais an-tiga linguagem, o livre é frî, o ileso, o poupado, aquilo que não foi tomado para nenhum uso. “Libertar” significa originaria e propriamente: poupar, proteger, deixar algo repousar em sua própria essência. Proteger, porém, é conservar a essência no abrigo, no qual ela só perma-

    4 HEIDEGGER, M. Abendgespräch in einem Kriegsgefangenenlager. In: HEIDEGGER, M. Feldweg-Gespräche. Gesamtausgabe. Band 77. Frankfur-t/M: Vittorio Klostermann, 2007. p. 214.

  • 17PREFÁCIO

    nece se lhe é permitido repousar no retorno para a própria essência. Proteger é auxiliar continuamente nesse repousar, acalentá-lo. Só essa é primeiramente a essência do poupar que se apropria de si mesma, que não se es-gota de modo algum na negatividade do não tocar e do mero não-utilizar.5

    À luz dessa diretriz podemos pensar numa postura ética assumida como forma de vida, como reapropriação de si, que supera a aliena-ção e a reificação em que nossas vidas se encon-tram sequestradas pelos inúmeros dispositivos que se empenham em apropriar-se delas, para submetê-las às suas pautas. Uma forma de vida que conserva e abriga sua essência, que a pro-tege e a mantém sob um cuidado diligente para com seus espaços de liberdade. E então, justa-mente por causa disso, o pensamento se reco-locaria em condições de resgatar também uma das significações mais autênticas e originárias da ética e também da política, pois,

    [...] o pensamento é forma-de-vida, vida inse-gregável da sua forma, e em qualquer lugar em que se mostre a intimidade dessa vida inseparável, na materialidade dos processos corpóreos e dos modos de vida habituais não menos do que na teoria, ali e somente ali há pensamento. E é esse pensamento, essa for-ma-de-vida que, abandonando a vida nua ao “homem” e ao “cidadão”, que a vestem proviso-riamente e a representam com os seus “direi-

    5 HEIDEGGER, M. Die Armut. Heidegger Studies, v. 10, p. 8, 1994.

  • 18 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    tos”, deve tornar-se o conceito-guia e o centro unitário da política que vem.6

    Penso que o projeto Filosofia e Interioridade preocupa-se com tais questões. E, ao fazê-lo, recu-pera também a centralidade da esperança, uma das três virtudes teologais da tradição cristã. Da esperança brota confiança no possível, portanto nas possibilidades - também nas intramundanas - de superação do estado de coisas vigente:

    A vida de todos os homens é impregnada de sonhos de olhos abertos, uma parte dos quais é somente casca, também fuga que esgota, presa para trapaceiros; mas uma outra parte estimula, não permite que nos conformemos com o presente ruim, que justamente não nos permite renunciar. Essa outra parte tem a espe-rança em seu núcleo, e ela pode ser ensinada.7

    Oswaldo Giacoia JuniorDepartamento de Filosofia

    IFCH – [email protected]

    6 AGAMBEN, G. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 21.7 BLOCH, J. Das Prinzip Hoffnung. 3. ed. Frankfurt/M: SuhrkampVerlag, 1976. p. 11.

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    MONTAIGNE E A MORTE

    Jelson Oliveira8

    O filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592) está entre os pensadores mais insti-gantes e inovadores da história do pensamento ocidental. Sua obra Ensaios, publicada entre 1580 e 1588, é seguida de várias versões póstumas. Es-crita em uma linguagem ao mesmo tempo clara e elegante, a obra é uma reflexão sobre a condição humana. Diante da morte de seu amigo La Boétie, aos 32 anos, o filósofo alimentou o desejo de es-crever e concluiu que o tema no qual era o mais versado e experimentado era sobre si mesmo. Seu livro é, por isso, uma tentativa de encontro de um homem singular com o seu próprio eu, uma espécie de auto-observação, cujo resultado é um retrato não apenas de um homem particular, mas da humanidade em geral.

    Entre os vários assuntos que ocupam a reflexão de Montaigne em seu castelo, fincado entre os vinhedos de Bordeaux, sem dúvida o

    8 Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Fi-losofia da PUCPR. E-mail: [email protected]

  • 22 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    tema da morte é central. A meditatio mortis mon-taigniana encontra sua formulação mais contun-dente no ensaio 20, do primeiro volume da obra Ensaios, cujo título é “De como filosofar é apren-der a morrer”. Levando-se em conta a motivação de seu isolamento, aos 34 anos, após a morte de seu amigo, pode-se, sem exagero, afirmar que toda a sua obra se alinha com a tradição dos discursos fúnebres sobre a amizade. Palavras de afeto nascidas à beira do túmulo costumam ofe-recer as mais profundas reflexões sobre a finitu-de humana. Isso porque, como se esperaria de um filósofo, a reflexão sobre a morte não conduz à melancolia ou ao temor, mas à vida, entendida por Montaigne como uma espécie de preparação para a morte, ou para o “bem morrer”. Citando Cícero, para quem “filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte” (MONTAIGNE, 1984, p. 44), Montaigne destaca o fato de que toda sabedoria e inteligência, ou seja, que todo aprendizado fornecido pela filosofia deveria le-var os seres humanos a perder o receio da mor-te. Se essa é uma verdade facilmente aceitável, o modo como logramos alcançá-la é motivo de muitas divergências.

    Embora Montaigne não ofereça nenhum sis-tema moral para as condutas humanas, ele pode ser compreendido como um moralista precisa-mente por esse fato: ele reconheceu os benefícios da virtude na capacidade de evitar o medo da mor-te e, nisso, conquistar a capacidade de viver em “doce quietude”, fazendo com que a existência se

  • 23MONTAIGNE E A MORTE

    desenvolva “agradavelmente e sem preocupações” (MONTAIGNE, 1984, p. 45). “Eis porque todos os sistemas filosóficos concordam nesse ponto e para ele convergem”, afirma o pensador, esclarecendo a contribuição da filosofia para o enfrentamento da grande verdade da existência humana, o fato de que, cedo ou tarde, todos vamos morrer e que, diante desse irremediável, nada há a fazer senão vi-ver de forma intensa e responsável a vida que nos cabe. Montaigne cita o poeta Horácio: “marchamos todos para a morte; nosso destino agita-se na urna funerária; um pouco mais cedo, um pouco mais tarde, o nome de cada um dali sairá e a barca fatal nos levará a todos ao eterno exílio” (MONTAIGNE, 1984, p. 45). Temer a morte é ter motivos para tor-mentos diários, é como viver constantemente em um “país inimigo”; enfrentá-la, em sua inevitabili-dade, é ser capaz de levar a vida com quietude e serenidade. Eis o papel então da ética: contribuir para a tranquilidade da alma diante do inevitável destino do ser humano.

    Se a morte nos apavora, pergunta Mon-taigne, “como poderemos dar um passo à frente sem tremer?” (MONTAIGNE, 1984, p. 45). Muitas pessoas, para evitar essa situação, acabam fu-gindo da morte, deixando de pensar sobre ela. “Mas quanta estupidez será precisa para uma tal cegueira?” (MONTAIGNE, 1984, p. 45). Ao in-vés de fugir da morte, a proposta de Montaigne é filosofar sobre ela. Quem não pensa sobre a finitude própria e dos seus, acaba por ser toma-do pelo temor apavorante de sua chegada, cain-

  • 24 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    do facilmente em suas armadilhas. Essa é uma atitude muito comum: “As pessoas se apavoram simplesmente com lhe ouvir o nome: a morte! E persignam-se como se ouvissem falar no diabo” (MONTAIGNE, 1984, p. 45). Há quem, inclusive, evita falar o seu nome, como se a palavra fosse demasiado forte demais, trazendo má sorte ou até mesmo chamando-a. Uma longa tradição nos ensina a não falar (e, portanto, não pensar) sobre a morte. Mas como ela está por aí e é preciso se referir à sua presença, então, como era prática entre os romanos, acabamos por “adoçá-la ou a empregar perífrases”: “Em vez de dizer: ‘morreu’, diziam: ‘parou de viver, viveu’; bastava-lhes que se falasse em vida. Nós lhes tomamos de em-préstimo esses eufemismos e dizemos: ‘Mestre João se foi’” (MONTAIGNE, 1984, p. 45). Tudo isso são estratégias para fugir daquilo que amedron-ta o pensamento, atitude ingênua e ociosa diante de sua fatalidade.

    A dor produzida pela morte, contudo, é o principal motivo desse medo. Montaigne reco-nhece que a sua chegada sempre será trágica. Para ele, “jovens e velhos se vão da vida em con-dições idênticas” porque “partem todos como se acabassem de chegar” (MONTAIGNE, 1984, p. 45). Para o filósofo não há um homem sequer que, estando idoso, não deseje ainda viver mais; e nenhum jovem que não queira continuar ex-perimentando as delícias oferecidas pelo fato de estar vivo. Mas, para isso, é preciso que ele esteja bem preparado diante da morte. Quanto mais ele

  • 25MONTAIGNE E A MORTE

    refletir sobre ela, mais essa reflexão tirar-lhe-á o medo da morte e o levará a amar a vida com mais intensidade.

    Para o filósofo de Bordeaux, portanto, a morte é irrevogável na mesma medida de sua imprevisibilidade: “não sabemos onde a mor-te nos aguarda, esperemo-la em toda parte” (MONTAIGNE, 1984, p. 47), adverte. É preciso estar preparado para ela. E o melhor meio de fazê-lo é justamente pensando sobre ela a fim de adquirir liberdade diante da vida. A principal meditação humana deveria ser, portanto, sobre a finitude; pela morte, assim, alcançamos a es-sência de nossa condição: “meditar sobre a mor-te é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer desaprendeu a servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento” (MONTAIGNE, 1984, p. 47). Assim, não se trata de parar de viver para esperar a morte. A pro-posta de Montaigne é precisamente o contrário: “vamos agir e prolonguemos os trabalhos da existência o quanto pudermos” (MONTAIGNE, 1984, p. 48). É preciso viver com naturalidade, praticando nossas virtudes, deixando as coisas em seus devidos lugares, sem afobamentos e nervosismos. Eis como a filosofia de Montaigne se transforma em uma ética: a morte deve ins-pirar uma vida sã e alegre, de tal forma que o súbito de sua chegada não leve a desespero e comoção exacerbada. É o que inspira Montaigne

  • 26 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    a escrever uma das frases mais bonitas, sim-ples e significativas da reflexão filosófica sobre a morte: “que a morte nos encontre a plantar as nossas couves, mas indiferentes à sua chegada e mais ainda ante as nossas hortas inacabadas” (MONTAIGNE, 1984, p. 48). Estaremos, assim, le-vando a vida de forma tranquila, sem grandes episódios, envolvidos em nossos afazeres coti-dianos, prontos para ela porque estamos, antes, sempre prontos para a vida, plantando couves, cuidando de nossos cães, voltando do trabalho, comendo um pedaço de bolo no final de tarde, entre uma xícara de café e uma conversa afetuo-sa com quem amamos. E, sobretudo, sabendo que sempre haverá uma “horta inacabada”, sem-pre deixaremos uma vida por viver, uma obra por terminar, uma palavra para dizer...

    Montaigne oferece ainda uma advertên-cia: deveríamos evitar as pompas e circunstân-cias que cercam com aparatos lúgubres o ato de morrer. Ele pensa na calma com que solda-dos enfrentam a morte nos campos de batalha ou na forma pacífica com que os camponeses a acolhem: não há, nesses casos, grandes apara-tos que adornam o ato de morrer trazendo mais ansiedade. A morte simples, no meio das couves do dia a dia, parece amedrontar menos, porque vem sem “semblantes de circunstâncias” (MON-TAIGNE, 1984, p. 48), sem o grito e os lamentos das mulheres e crianças, sem as visitas, as pala-vras pesadas, a consternação geral, sem a pali-dez dos familiares, a obscuridade dos quartos

  • 27MONTAIGNE E A MORTE

    frios, as coroas, caixões de alça dourada, velas, padres e médicos... aquilo tudo, em suma, que se dispõe em volta da morte “como para inspirar horror”. Por isso, apela o filósofo,

    [...] arranquemos as máscaras das coisas como das pessoas e, por baixo, veremos muito sim-plesmente a morte. A mesma com a qual par-tiu ontem, sem maior pavor, tal ou qual criado ou camareira. Feliz é a morte que nos surpreen-de sem que haja tempo para semelhantes pre-parativos!” (MONTAIGNE, 1984, p. 51).

    Nas palavras de Montaigne, assim, encon-tramos tanto consolo quanto lucidez. Há em sua obra uma tentativa de enfrentar com o pensa-mento esse que é um dos maiores medos da existência. Nisso ele sofre evidente influência de Epicuro, para quem a filosofia era uma espécie de medicina da alma, tratando os medos huma-nos, entre os quais está a morte. Seguindo as éti-cas helenísticas, Montaigne interpreta a morte a partir do dístico: “siga a própria natureza”. Nesse caso, o ensaio sobre a morte se caracteriza tam-bém como uma espécie de recusa da interpreta-ção metafísica da morte. Seu conselho é simples, portanto: acostumar-se com a morte, a fim de vencer o que nela há de desassossego, inespe-rado, desconhecido, assustador. Habituando-se a pensar sobre ela, é como se aprendêssemos também a enfrentá-la. Nesse caso, Montaigne não está preocupado em evitar a morte e nem mesmo em vencê-la por meio da crença na eter-nidade. A proposta, aqui, é simplesmente levar a

  • 28 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    termo a ideia segundo a qual ensinar o homem a morrer é, no fundo, ensiná-lo a viver.

    Referências

    MONTAIGNE, M. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores).

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    SCHOPENHAUER E A COMPAIXÃO

    Diana Chao Decock9

    Transpor em palavras a compaixão é emol-durar uma das mais belas motivações humanas. A abstração tem dessas sutilezas, a capacidade de criar uma moldura para o esboço insólito. Iguala o inigualável, como já diria Nietzsche ao ecoar os pensamentos de Schopenhauer, este que encontra na compaixão o acesso ao outro e a nós mesmos. Um acesso que escapa qualquer apelo racional e jamais poderia ser conduzido por intermédio das palavras. Se as utilizamos é para tentar sobrevoar um campo infinito que só conhecemos intuitivamente. Uma tentativa de trazê-la à aridez racional, à solidez própria do toque de Apolo à Dafne. É aproximar-se do in-dizível e esculpir, assim como Bernini, o desvela-mento do nosso ser.

    Se, para o filósofo alemão, viver é sofrer, só teria como ser pelo sofrimento uma sutil reden-

    9 Doutoranda em Filosofia pela USP. Professora do curso de Filosofia da PUCPR. E-mail: [email protected]

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    ção. Uma redenção inviabilizada pela abstração e conduzida unicamente pela compaixão, a dor do outro que penetra em nós e nos faz reco-nhecer a unidade diante da multiplicidade. Com intuições similares à sabedoria indiana, Schope-nhauer concebe os inúmeros seres, projetados ao nosso redor, como enganos do Véu de Maya, que configura pelas lentes do tempo e do espaço aquilo que não somos, fragmentos separados de nós mesmos10. Somos todos um, o mesmo im-pulso cego e insaciável, a mesma vontade. Esta, presente em tudo e em todos, ofusca-se por esse Véu, que nos impede o conhecimento da identi-dade metafísica de todos os seres. E o encontro com o sofrimento do outro teria como romper esse Véu, dissolvendo as amarras que nos isolam e nos fazem crer que somos partículas distintas que de nada se assemelham.

    Uma natureza essencialmente egoísta é sintoma de tal isolamento, essa nos faz gritar por todos os cantos “tudo para mim e nada para o outro”. O engano do Véu de Maya nos faz acre-ditar, que “só no meu próprio si-mesmo tenho meu verdadeiro ser; todas as outras coisas, em contrapartida, são o não-eu e alheias a mim”. E tal conhecimento, “cuja verdade carne e ossos dão testemunho”, fundamenta todo o egoísmo e sua expressão “é toda a ação sem amor, injusta ou maldosa” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 218).

    10 Sobre o encontro de Schopenhauer com a sabedoria indiana, conferir o artigo de Decock (2016).

  • 33SCHOPENHAUER E A COMPAIXÃO

    Observar ao redor é recolher manifesta-ções constantes do egoísmo enraizado em nós, compreendido, por Schopenhauer, como o ímpe-to para a sobrevivência e o bem-estar. Queremos viver, mas, sobretudo, viver bem. A felicidade, como já diria Aristóteles, é o que mais almeja-mos. Afinal, é absoluta e carente de nada. Difícil, no entanto, é reconhecer, assim como o filósofo grego, que a felicidade não estaria atrelada ao prazer, mas a uma disposição de caráter relacio-nada a uma mediania. Esforços racionais para o alcance do meio termo são alheios à maior parte de nossas ações, preferimos os prazeres mun-danos, por serem certeiros e imediatos. E, para Schopenhauer, não teria como ser diferente, pois nossa essência é a vontade e a razão está a seu serviço. O aroma dos prazeres corpóreos é tão atraente, que torná-lo irresistível não é algo que a abstração seja capaz.

    A busca pelo prazer incessante, cuja satisfa-ção jamais é plena, leva-nos a ultrapassar cons-tantemente a nossa esfera, produzindo inume-ráveis violações, muitas vezes despercebidas ou até mesmo desconsideradas. O egoísmo, criado pelo abismo entre cada um de nós, torna o outro um instrumento para suprir nossas necessidades. Faz dele objeto de prazer, mas, principalmente de dor, pois não há como amortizar todos os desejos. Se estamos famintos, não teríamos como saciar a fome de ninguém a não ser para o nosso próprio deleite. Queremos sugar a todo custo e ao perce-ber que não resta qualquer gota a ser extraída a

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    rejeição vem à tona. E aquele que até então era objeto de prazer passa a ser só mais uma coisa, dentre tantas outras, a ser descartada.

    Em nome da felicidade ou da sobrevivência, estamos dispostos a invadir, violar e até mesmo aniquilar o outro. Schopenhauer jamais se espan-taria ao saber que a mulher mais reverenciada no Dia Das Mães deste ano, aqui em nosso país, foi a policial militar que, na frente de seus filhos, assassinou um jovem negro. A autodefesa é um grande mérito digno de louvor, enquanto um cor-po ensanguentado nem sequer foi considerado. Torna-nos difícil reconhecer que os valores mais admirados possam ser expressões do próprio egoísmo, pois encontramos diferentes formas de mascará-lo, vesti-lo com uma roupagem nem sempre elegante, mas incrivelmente sedutora.

    A afirmação da nossa vontade implica, ne-cessariamente, a negação da vontade alheia. Isso porque, a vontade, é “enganada pelo conhe-cimento atado ao seu serviço, desconhece a si, procurando em um de seus fenômenos o bem--estar, porém em outro produzindo grande sofri-mento” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 452). Fazemos o outro sofrer por estarmos envoltos pelo Véu de Maya, que nos impede o conhecimento de que somos todos um, a mesma vontade.

    Mas se crimes cruéis e atrozes são sinto-mas desse engano, o rompimento desse Véu desvela um território de pureza, do qual as mais belas ações são irrompidas.

  • 35SCHOPENHAUER E A COMPAIXÃO

    Minha essência interna verdadeira existe tão imediatamente em cada ser vivo quanto ela só se anuncia para mim, na minha autocons-ciência. Este conhecimento, para o qual, em sânscrito, a expressão corrente é “tat twam asi”, quer dizer, “isto é tu”, é aquilo que irrompe como compaixão, sobre a qual repousa toda a virtude genuína, quer dizer, altruísta, e cuja expressão real é toda ação boa. (SCHOPE-NHAUER, 2001, p. 219, trad. modificada).

    A única motivação genuinamente dotada de valor moral, aos olhos de Schopenhauer, é a compaixão, “a participação totalmente imediata, independentemente de qualquer outra conside-ração, no sofrimento de um outro e, portanto, no impedimento ou supressão deste sofrimen-to, como sendo aquilo em que consiste todo o contentamento e todo o bem-estar e felicidade” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 136). Ao se deparar com a dor do outro, a individualidade pode ele-var-se completamente. O abismo se desfaz e a vontade tem plena consciência de si: Tat twam asi, como diriam os antigos sábios da Índia, “isso és tu”, eu sou o outro, somos todos um11.

    Sofrer com o outro é reconhecer a própria essência, é reencontrar-se a si mesmo e ser im-pedido de praticar qualquer forma de violência. Motivados pela compaixão o egoísmo é suprimi-do e nada almejamos a não ser que o outro “per-maneça são e salvo ou receba ajuda, assistência ou alívio” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 135). O co-

    11 Sobre o uso da fórmula sânscrita Tat twam asi nas reflexões éticas de Schopenhauer, conferir Decock (2018).

  • 36 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    nhecimento da identidade metafísica de todos os seres desperta ações singulares, sem quais-quer máscaras ou interesses ardilosos e secretos. Como o surpreendente ato heroico da professora da creche de Janaúba que se jogou em um corpo em chamas para salvar dezenas de crianças. Sua própria vida se desfez, pois se desfez o abismo que a separava de todos os outros.

    Se aquele Véu de Maya, o principium individua-tionis, é de tal maneira retirado aos olhos de um ser humano que este não faz mais diferença egoística entre a sua pessoa e a de outrem, no entanto compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios como se fossem os seus próprios e assim é não apenas benevolente no mais elevado grau mas está até mesmo pronto a sacrificar o próprio indivíduo tão logo muitos outros precisam ser salvos; então, daí, segue--se automaticamente que esse ser humano re-conhece em todos os seres o próprio íntimo, o seu verdadeiro si mesmo, e desse modo tem de considerar também os sofrimentos infindos de todos os viventes como se fossem seus: assim, toma para si mesmo as dores de todo o mundo; nenhum sofrimento lhe é estranho (SCHOPE-NHAUER, 2005, p. 481, trad. modificada, grifo em negrito).

    Raras, no entanto, são as ações motivadas pela compaixão. Encontrá-las é surpreender-se com uma renúncia que nem saberíamos como desejar. Envolver-se completamente com o ou-tro, acrescentar à própria dor as dores alheias, requer tamanha abnegação que é preferível acreditar neste abismo que de todos nos aparta. E permanecer, assim, flutuando sobre a doce ilu-

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    são de que não estaríamos, nas palavras de Car-rascoza, “comendo os próprios lábios, mastigan-do com a gengiva os nossos dentes e engolindo a nossa própria garganta” (2014, p. 23).

    Referências

    CARRASCOZA, J. Caderno de um ausente. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

    DECOCK, D. O conhecimento imediato e intuitivo da identi-dade metafísica de todos os seres. In: DEBONA, V.; DECOCK, D. (Orgs.). Schopenhauer: a filosofia e o filosofar. Porto Alegre: Editora Fi, 2018.

    DECOCK, D. O encontro de Schopenhauer com o pensamento indiano: influência e legitimidade. Revista Voluntas: Estudos so-bre Schopenhauer, v. 7, n. 2, p. 27-37, 2016.

    SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representa-ção. Tomo I. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.

    SCHOPENHAUER, A. Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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    NIETZSCHE E A SOLIDÃO

    Jelson Oliveira12

    A solidão é tema central da filosofia. Está ligada à atitude de encantamento e de susto diante do mundo e se tornou característica da-queles que são capazes de fugir para o silêncio de si mesmos a fim de provar o que é essencial na vida. Perto do alarido da multidão, ouvindo os apelos e as pressões do cotidiano, muitas vezes ficamos alheios de nós mesmos. A solidão é a hora mais particular, aquilo que, na tradição re-ligiosa, foi associado à hora da oração, ou seja, o momento em que o ser humano se coloca so-zinho diante do transcende; e que na tradição filosófico-existencial abre caminho para o ser hu-mano encontrar a si mesmo.

    Nietzsche é um dos autores que mais deu destaque ao tema da solidão. Como um dos pri-meiros críticos da sociedade moderna, ele criticou a massificação cultural e a eleição da abnegação de

    12 Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. Autor dos livros: A solidão como virtude moral em Niet-zsche (Champagnat, 2012) e Para uma ética da amizade em F. Nietzsche (7 Letras, 2010). E-mail: [email protected]

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    si como valor moral por excelência, o que levou ao advento de uma moral de rebanho, ou seja, uma moral em que os indivíduos devem negar a si mes-mos para seguir opiniões, ideias e modismos dos outros. Para Nietzsche essa é a grande “deficiência” do nosso tempo, que afetou inclusive os processos educacionais: “Paulatinamente esclareceu-se para mim, a mais comum deficiência de nosso tipo de formação e educação: ninguém aprende, ninguém aspira, ninguém ensina - a suportar a solidão” (NIETZSCHE, 2004a, p. 230). A solidão deve ser su-portada porque ela purifica e fortalece o espírito humano, ela promove a alegria vital e o júbilo de ser si mesmo, ou seja, a solidão é o caminho que conduz cada um a si mesmo e, nesse sentido, ela aparece tanto como uma espécie de [1] higiene pessoal (por ela nós nos limpamos de tudo o que não é nosso) e, também, de [2] virtude.

    No primeiro sentido, a solidão é um toale-te espiritual e asseio, na medida em que ela nos limpa de tudo aquilo que não é nosso, daquilo que adquirimos na convivência com as outras pessoas: “Por isso vou para a solidão - a fim de não beber das cisternas de todos. Estando entre muitos, vivo como muitos e não penso como eu; após algum tempo, é como se me quisessem ba-nir de mim mesmo e roubar-me a alma. Aborre-ço-me com todos e receio a todos. Então o deser-to me é necessário, para ficar novamente bom” (NIETZSCHE, 2004a, p. 248). O deserto, como nas grandes tradições religiosas, desde Moisés, Je-sus, Zaratustra ou Buda, é o lugar do vazio, da

  • 41NIETZSCHE E A SOLIDÃO

    falta, da ausência e, por isso, do esvaziamento, da caminhada em direção à grande meta da exis-tência que é o encontro consigo mesmo.

    A cisterna da multidão é, ao contrário do deserto, o lugar da água suja. A metáfora usada por Nietzsche para expressar essa ideia é, por isso, a de uma poça de água que, na beira da estrada, recebe todo tipo de sujeiras e entra no fundo da terra para se purificar e sair de outro lado limpa novamente, para dar de beber a ou-tros andarilhos: “Mas nós faremos como sem-pre fizemos: levamos o que nos lançam para a nossa profundidade - pois nós somos profun-dos, nós não esquecemos - e tornamo-nos no-vamente límpidos” (NIETZSCHE, 2001, p. 282). A solidão purifica porque ela funciona como uma espécie de higiene ou mesmo de digestão (outra metáfora cara a Nietzsche, que pensa o espírito como uma espécie de estômago que digere as vivências negativas por meio do esquecimento).

    A segunda característica da solidão é o fato de que Nietzsche a considera uma virtude:

    Permanecer senhor de nossas quatro vir-tudes, da coragem, do discernimento, da simpatia, da solidão. Pois a solidão é uma virtude, como uma sublime inclinação e ím-peto de asseio, que adivinha que no contato com os homens – “em sociedade” – as coisas têm que ocorrer de maneira inevitavelmente suja. Toda comunidade – de alguma maneira, em algum lugar, alguma vez – torna comum. (NIETZSCHE, 2002, p. 191).

  • 42 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    Isso está ligado a um dos elementos centrais de sua (possível) proposta de moral do futuro: cada um de nós, em solidão, deve se tornar legis-lador para si mesmo e, para isso, deve cultivar a solidão como uma virtude, ou seja, como um ca-minho de autoafirmação. A solidão, assim, é uma espécie de fio condutor da filosofia de Nietzsche e todo o seu projeto de crítica à cultura ocidental pode ser explicada por esse esforço filosófico de cultivar a solidão como virtude afirmativa, em be-nefício não apenas da massa, mas do indivíduo. Isso porque, para o filósofo alemão, houve um exagerado ódio ao eu, uma condenação do egoís-mo em nome do altruísmo e da compaixão. Para Nietzsche, esses dois valores morais só seriam plenamente praticáveis por indivíduos que, antes, estivessem de posse de si mesmo. Eis o conselho que aparece em um fragmento póstumo escrito entre os anos de 1876-1877: “busca a solidão para poder servir do melhor modo a muitos ou a todos (à multidão): se a buscas por outra razão, te debili-tará, adoecerá e fará de ti um membro atrofiado” (NIETZSCHE, 1988, v. 8, p. 427). É a solidão, enfim, que faz a convivência com os outros algo agradá-vel e sadio: “Se alguém se mantém, com sentido de renúncia, na solidão, ele pode fazer do trato com as pessoas, rara vez saboreado, um delicioso manjar” (NIETZSCHE, 2008, p. 140).

    Não se trata, assim, simplesmente de con-denar nem o egoísmo, nem o altruísmo, mas de pensá-los em suas vantagens, como complemen-tares: “Você deve tornar-se senhor de si mesmo,

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    senhor também de suas próprias virtudes. Antes, eram elas os senhores; mas não podem ser mais que seus instrumentos, ao lado de outros instru-mentos” (NIETZSCHE, 2004a, p. 112).

    Se a regra moral por excelência tem sido sempre a anulação de si em nome do amor ao próximo, Nietzsche destaca a solidão como princí-pio que possibilita e conduz à prática das demais virtudes: “Como? Nunca mais poder estar a sós consigo? Nunca mais estar inobservado, despro-tegido, irrefreado, não-obsequiado? Sempre que há um outro ao nosso redor, o melhor da bonda-de e da coragem torna-se impossível” (NIETZSCHE, 2004a, p. 238). Ou seja, a solidão é uma ocasião para que, estando de posse de nós mesmos, seja-mos mais tranquilos, mais maduros, mais plenos de si e, portanto, mais capacitados para o amor, mais plenos para as amizades e as demais rela-ções sociais. Porque ninguém quer beber em cis-terna de água suja, precisamos nos limpar (ir para a nossa solidão) a fim de conquistar o poder de amar de verdade os outros primeiro amando a nós mesmos, não no sentido meramente egoís-ta e individualista, mas no sentido de exercitar, primeiro conosco, a capacidade do amor e sua sensibilidade. Quem não se ama, espalha rancor, guarda mágoa, faz murchar tudo ao redor. Quem se ama, está feliz e derrama, como luxo e exube-rância, essa alegria sobre os outros. A solidão, as-sim, é virtude, porque é um critério para todas as demais relações sociais, para que sejam verdadei-ras e saudáveis. O resto é água poluída.

  • 44 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    Nietzsche, contudo, não é um romântico. Ele sabe que esse caminho solitário não é fácil de ser seguido. Há muitas dificuldades quando de-cidimos seguir o nosso próprio destino; muitas vezes é preciso deixar de lado as indicações já estabelecidas pelos outros, meter-se em atalhos novos, arriscar-se e até mesmo perder-se:

    [...] quem anda por caminhos próprios não encontra ninguém: isso os “caminhos pró-prios” trazem consigo. Ninguém há de vir aí “em socorro” e, com tudo aquilo que acontece com ele em termos de perigo, acaso, malda-de e mau tempo, ele próprio tem de chegar a termos. Ele tem, afinal, o seu caminho para si, e também o seu ocasional dissabor com esse duro e irrevogável “para si”, a que pertence, p. ex., que mesmo os melhores amigos nem sempre vejam e saibam para onde ele real-mente vai, para onde ele realmente quer ir – ficando eles a se perguntar: como? será que ele realmente avança? será que ele tem um caminho? (NIETZSCHE, 2004a, p. 10).

    Sendo mais perigosa e arriscada, a solidão é mais rica em aprendizado e mais benéfica em criatividade e resistência. Sozinhos, aprendemos a nos defender, a falar por nós mesmos, a nos responsabilizar por nossas escolhas. O caminho da solidão é o mesmo da autonomia e da res-ponsabilidade. Às vezes, no meio do deserto, precisamos de um ombro amigo, de um copo de água, de unção para as feridas que latejam sob as nossas sandálias andarilhas. Mas ao mesmo tempo, quem conta sempre com a tutela alheia,

  • 45NIETZSCHE E A SOLIDÃO

    não fortalece as forças vitais e segue sempre de-pendente, carente e submisso. Todo o projeto filosófico de Nietzsche, por isso, é uma espécie de celebração da alegria vital, de celebração da vida em tudo o que ela oferece, tanto as horas sombrias quanto os dias iluminados. Tal pers-pectiva, por isso, orientou a própria filosofia de Nietzsche, cujo símbolo maior é o alto da monta-nha, o lugar onde a solidão é sentida como eleva-ção acima das fragilidades humanas, como lugar onde o ar é puro e a o ser humano de sente mais próximo de si mesmo - e, quiçá, experimenta a transcendência. A própria filosofia nietzschiana é uma filosofia das alturas, um pensamento solitá-rio de montanhas geladas e ar forte:

    Quem sabe respirar o ar dos meus escritos sabe que é um ar da altitude, um ar forte. É preciso ser feito para ele, senão o perigo de se resfriar não é pequeno. O gelo está perto, a solidão é descomunal – mas com que tran-quilidade estão todas as coisas à luz! com que liberdade se respira! quanto se sente abaixo de si! – filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária em gelo e altas mon-tanhas. (NIETZSCHE, 2004b, p. 18).

    Nietzsche descreve a solidão como um “país dos antropófagos” (NIETZSCHE, 2000, p. 208), ou seja, o lugar onde “o solitário se devora a si mes-mo” enquanto, ao contrário, na multidão ele é devorado por ela. Sarcasticamente Nietzsche en-cerra esse curto fragmento de O andarilho e sua sombra exortando: “agora escolhe!”.

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    Referências

    NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Um livro para espíritos livres. Tra-dução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

    NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Le-tras, 2002.

    NIETZSCHE, F. Aurora. Reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2004a.

    NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Como alguém se torna o que é. Tradu-ção, notas e posfácio de Paulo César de Souza. 2. ed. 3. reimpres-são. São Paulo: Companhia das Letras, 2004b.

    NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano II. Opiniões e sen-tenças diversas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.

    NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espí-ritos livres. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

    NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Monti-nari. München/Berlin/New York: dtv/Walter de Gruyter & Co., 1988. (15 Einzelbänden).

    OLIVEIRA, J. A solidão como virtude moral em Nietzsche. Curitiba: Champagnat, 2012.

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    GABRIEL MARCEL E A ESPERANÇA

    José André de Azevedo13

    Gabriel Marcel (1889-1973), partindo de um contexto de crítica ao racionalismo e ao cientifi-cismo - profundamente arraigado no pensa-mento ocidental a partir do século XIX -, propõe uma Filosofia do Concreto, ou seja, um pensar fi-losófico quanto às estruturas que vislumbram o humano como ser encarnado. Trata-se, aqui, de aprofundar a experiência do homem concreto, passível de convivências reais e, acima de tudo, estruturador de relações entre mundanidade e humanidade, na qual a própria “encarnação” seja percebida como dado central da metafísica. Mar-cel concebe o humano como homo viator, isto é, como um ser viandante, inacabado, ainda por se fazer, itinerante, peregrino em busca de si mes-mo. Também compreende a realidade por meio da ótica “mistério” e “problema”; ora, “problemáti-

    13 Doutor em Teologia pela PUCPR. Gerente da Diretoria de Identidade Institucional da PUCPR.

  • 50 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    co” é tudo aquilo que está para ser resolvido, que pode ser objetivado, passível de ser decomposto em conceitos (conforme a investigação científica). Por outro lado, o aspecto “misterioso” (que aqui não se pode confundir com fatos esotéricos, su-persticiosos ou relacionados ao campo religioso) é a análise própria metafísica, quer dizer, é o cam-po do ser, o qual não pode ser mediatizado, nem comunicado por registros lógicos, mas ontológi-cos.14 A tarefa da metafísica, assim, pode ser defi-nida como uma reflexão dirigida ao mistério. Para Marcel, o ser não é um objeto perante nós; nós mesmos somos ser, participamos no ser, de sorte que nos incluímos na pergunta que colocamos. É impossível separar a pergunta “O que é o ser?” da questão “Quem sou eu?”. A questão do ser com-porta, pois, um envolvimento existencial. E é sob esse horizonte que a experiência da esperança - analisada aqui ontologicamente - se apresenta a nós de maneira contundente.

    Em sua obra Homo Viator: Prolegômenos a uma metafísica da esperança (obra que reúne algumas de suas conferências e palestras), Mar-cel dedica um capítulo ao estudo da esperança intitulado “Esboço de uma fenomenologia e de uma metafísica da esperança”. Falar de uma fe-nomenologia e de uma metafísica da esperança,

    14 “Distinção entre o misterioso e o problemático. O problema é algo que se encontra, que obstaculiza o caminho. Acha-se inteiramente diante de mim. Ao contrário, o mistério é algo em que me encontro comprometi-do, cuja essência consiste, por conseguinte, em não estar inteiramente diante de mim. É como se nesta zona a distinção entre o em mim e o ante mim perdesse sua significação”. (MARCEL, 1947, p. 144).

  • 51GABRIEL MARCEL E A ESPERANÇA

    mesmo em forma de esboço, é apelar a certa ex-periência ontológica que se faz presente naquele que vivencia tal situação. Dessa forma, o ponto de partida, a arché da esperança, não pode ser uma definição conceitual (cujo conteúdo de nada adiantaria para a profundidade dessa experiên-cia). Por isso, descrever as estruturas mesmas da esperança não é, em certo sentido, descrever “a esperança”, mas a experiência do “eu espe-ro”.15 Marcel, assim, inicia sua obra consciente de que, por si só, a natureza da esperança é de difícil definição. Eis, portanto, a razão pela qual o filósofo parte, então, de análises fenomenoló-gicas e metafísicas das experiências existenciais do “eu espero” enquanto caminho para rechaçar qualquer tentativa de confundi-la com questões psicológicas de otimismo, desejo e crença. O iní-cio da análise marceliana será a comprovação de que a esperança se situa no quadro da provação, visto que a provação/sofrimento não somente corresponde à atitude de esperança, como cons-titui para ela uma verdadeira resposta do ser.16

    15 “Sem dúvida, teremos que recordar aqui a distinção [...] entre “esperar” e “esperar que”. Quanto mais tende a esperança a reduzir-se ao fato de fixar o olhar ou de hipnotizar-se com uma determinada imagem, tanto mais irrecusável deve ser considerada a objeção que se tem formulado. Ao con-trário, quanto mais a esperança transcende a imaginação, de modo que eu me proíba tratar de imaginar o que espero, tanto mais possível parece refeita efetivamente essa objeção”. (MARCEL, 1944, p. 60).16 “Na verdade, pode ocorrer que, arrancando-me de mim mesmo, esse sofrimento dê lugar ao fato de que eu alcance uma consciência bastante aguda, que sem ele esta integridade aguda que agora aspiro a recon-quistar não se apresente. É assim, por exemplo, para o enfermo em quem a palavra “saúde” despertará uma riqueza de harmônicas geral-mente insuspeitas pelo homem são”. (MARCEL, 1944, p. 48).

  • 52 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    Partindo do anelo esperançoso por libertação, percebe-se que o desespero é a grande tentação que o ser humano possui diante da prova. Ora, o desespero não se detém nos sintomas e nem nas manifestações, mas num processo de rendi-ção ante certo factum, isto é, o aceitar ou não a situação e conferir-lhe um sentido. Diante do fac-tum, ou do ocorrido, posso render-me ou não; a esperança, então, é o ato pelo qual a tentação do desesperar é ativa ou vitoriosamente superada.

    Dessa maneira, pode-se questionar: é o humano responsável pelo ato de desesperar? A resposta a essa questão, segundo o pensador francês, poderia ser traduzida nos seguintes ter-mos: Não sou eu quem produz a desesperança; ela se apresenta a mim como prova; minha ta-refa consiste exatamente em não ceder a essa tentação de desespero e, em sentido metafísico - e aqui entra a missão do filósofo - devo espe-rar. Essa não aceitação pode ser entendida em duas vertentes: demonstração de resistência ao desespero (aspecto positivo da não aceitação) ou resistência à própria esperança (aspecto ne-gativo da não aceitação, isto é, não aceitação de que no seio da prova se estabeleça a geração da esperança). Marcel, então, dirá que a segun-da não aceitação (de caráter negativo) somente se estabelece na relação porque é advinda do “medo”; tal reação - o medo -, quando concen-trada sobre si mesma, gera certa “impaciência”. E aqui entra um elemento filosófico profundamen-

  • 53GABRIEL MARCEL E A ESPERANÇA

    te inovador em Marcel: a espera pacienciosa17; a partir da ideia de que a esperança está imbricada na trama de uma experiência, supõe-se, na pró-pria esperança, uma relação original entre cons-ciência e tempo. No ato de desesperar, o tempo é fechado, é uma prisão, um kronos devorador, que provoca, nas relações, um processo de ei-dolização (idolatria); na esperança, ao contrário, possibilita-se uma nova relação com o tempo: não mais kronos, porém, kairós (o tempo da gra-ça), a abertura das relações, na quais o tempo deixa passar algo por meio de si. No tempo fe-chado (kronos), o humano tem a tentação - por puro desespero - de reivindicar as coisas para si; no tempo aberto (kairós), possui a capacidade de doar-se. E aqui encontramos outra estrutura do ato de esperar: a inversão do “reivindicar” pelo “doar-se”. Assim, esperança é sempre postura ativa de saída de si mesmo, de doação e busca; é sempre uma ação de fluidificação da existência, contra a postura de petrificação do ser e de auto-fagia espiritual.18

    17 “A paciência, em aparência e se somente se se consulta a etimologia, é simplesmente um deixar fazer ou um deixar estar, porém, por pouco que se leve adiante a análise, descobre-se que este deixar fazer ou esse deixar estar, porque se situa além da indiferença e porque implica um sutil respeito de duração ou da cadência vital própria do outro, tende a exercer sobre este último uma ação transformadora análoga à que, às vezes, recompensa a caridade”. (MARCEL, 1944, p. 54).18 “A esperança, com toda evidência, tem alcance não somente sobre o que está em mim, sobre o que pertence ao domínio de minha vida interior, senão especialmente sobre o que se apresenta como independente de minha ação possível e singularmente de minha ação sobre mim mesmo; eu espero – o retorno do ausente, a derrota do inimigo, a paz que devolve-rá ao meu país as liberdades das quais foi despojado. Se for lícito dizê-lo,

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    Não sendo passiva, a esperança está, por-tanto, profundamente arraigada ao ato do amor. Amar a um ser é, segundo Marcel, esperar dele algo indefinível, imprevisível; é, de certo modo, o meio pelo qual poderá responder a essa espe-ra.19 Assim, esperar é, paradoxalmente falando, dar e receber; e somente se pode falar de e expe-rienciar a esperança onde existe interação entre o que dá e o que recebe. Na análise fenomeno-lógica e metafísica da esperança, bem como na análise das causas e da essência do desespero, Marcel frisa que a raiz de muitas situações trá-gicas é a ausência de um modo de ser tecido na comunhão amorosa com o outro. Identificando desespero com solidão, o filósofo francês susten-ta que a única saída para a construção de uma civilização nova e esperançosa somente se torna

    como se deu a entender acima, a esperança é um poder de fluidificação”. (MARCEL, 1944, p. 56). “Sobre esta chama, que é a vida, exerce-se propria-mente a ação maléfica do desespero. Poder-se-ia dizer também que o ardor solubiliza o que sem ele chegaria a ser sempre impossibilidade de existir. Está volto até certa “matéria” do devir pessoal e tem por função consumi-la; ali, ao contrário, onde intervém o “malefício”, essa chama se desvia da matéria que é seu alimento natural para atacar-se a si mesmo. É o que se expressa admiravelmente quando se diz que um ser se “conso-me”. Desde este ponto de vista, o desespero pode ser assimilado a uma verdadeira autodevoração espiritual”. (MARCEL, 1944, p. 59).19 “Amar a um ser é esperar dele algo indefinível, imprevisível; é, por sua vez, dar-lhe, de certo modo, o meio pelo qual poderá responder a esta espera. Por paradoxal que possa parecer, esperar é, em certo modo, dar; porém, o inverso não é menos verdadeiro: não esperar mais é contribuir a ferir de esterilidade ao ser de quem já não se espera nada; é, pois, de alguma maneira, privá-lo, retirar-lhe por antecipação – o que é, exata-mente, senão uma possibilidade de inventar ou de criar? Tudo permite pensar que não se pode falar de esperança senão onde existe interação entre o que dá e o que recebe, esta comutação que é o selo de toda vida espiritual”. (MARCEL, 1944, p. 66).

  • 55GABRIEL MARCEL E A ESPERANÇA

    possível no horizonte da comunhão, da fidelida-de e do amor.

    Por fim, como Marcel, acredita-se que a es-perança é essencialmente a disponibilidade de uma pessoa comprometida em uma experiência de comunhão; daí que “eu espero em ti para nós” é a expressão mais adequada do ato que o verbo esperar traduz de uma maneira confusa e vela-da.20 Esperar é, então, o lugar onde o desespero não é a última palavra.21

    Referências

    MARCEL, G. Homo viator: prolégomènes a une métaphysique de l’espérance. Paris: Aubier, 1944.

    MARCEL, G. Être et avoir. Paris: Aubier, 1947.

    20 “’Espero em ti para nós’: tal é, talvez, a expressão mais adequada e mais elaborada do ato que o verbo “esperar” traduz de maneira, todavia, confusa e obscura. Em ti – para nós: entre esse tu e esse nós, que somen-te a reflexão mais insistente chega a descobrir no ato de esperança, qual é, pois, o laço vivo? Não há que responder que Tu és, em certo modo, o fiador da unidade que me liga a mim mesmo, ou melhor, um ao outro, ou ainda: uns aos outros? Mais que um fiador que assegura ou confirma desde fora uma unidade já constituída: o cimento mesmo que a funda-menta”. (MARCEL, 1944, p. 81).21 “Poder-se-ia dizer que a esperança é essencialmente a disponibilidade de uma alma bastante e intimamente comprometida em uma expe-riência de comunhão para cumprir o ato transcendente à oposição da vontade e do conhecimento pelo qual ela afirma a perenidade vivente, da qual essa experiência oferece, por sua vez, a roupa e as primícias”. (MARCEL, 1944, p. 91).

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    MERLEAU-PONTY: CORPO, DESEJO E SENTIMENTO DE SI

    Ericson Falabretti22

    Dizem que para conhecer, verdadeiramen-te, uma determinada pessoa é preciso vê-la por dentro, alcançar a sua alma, saber dos seus pen-samentos mais íntimos, acessar os seus medos e desejos, inclusive aqueles inconfessáveis à luz do dia que só se deixariam ver indiretamente, por sonhos e chistes, como bem estabeleceu Freud. Todavia uma pessoa é também aquilo que diz e o que faz, o seu projeto, as suas escolhas e ações concretas, como escreveu Sartre ao defender o seu humanismo existencialista. Já para saber de onde um homem ou mulher vieram, como po-demos ler em Rousseau, no Ensaio Sobre as Ori-gem das Línguas, bastaria ouvir as suas vozes e saber identificar os acentos e sotaques que de-ram o tom das primeiras frases e, mesmo com o passar dos anos, continuam denunciando as

    22 Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. Decano da Escola de Educação e Humanidades. E-mail: [email protected]

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    origens. Desse modo, a voz e a ação seriam - de Rousseau a Sartre - a exteriorização do nosso interior, os índices confessos – ainda que incom-pletos - do nosso ser, a forma exterior da nossa alma. Desse modo, seríamos, insuperavelmente, interior-exterior, pensamento-linguagem, inten-ção-ação, como uma figura sobre um fundo sem fronteiras claramente demarcadas seríamos o encontro entre duas substâncias radicalmente diferentes: corpo e alma.

    Descartes, ainda no século XVII, nas Medita-ções Metafísicas e no Tratado das Paixões da Alma, enfrentou, ambiguamente, essa tese dualista. Nas primeiras Meditações Metafísicas sustentou a separação essencial entre corpo e alma para, na sexta e última Meditação, afirmar a união e a relação causal entre ambas. Como óleo e água, corpo e alma, apesar de substancialmente di-ferentes - de um lado, pura matéria extensa e finita e, do outro, puro pensamento inextenso e imortal - estariam conjugados como os sons e a harmonia que compõem uma música. Acompa-nhemos o texto de Descartes:

    Ora, nada há que esta natureza me ensine mais expressamente, nem mais sensivelmen-te do que o fato de que tenho um corpo de que está mal disposto quando sinto dor, que tem necessidade de comer ou de beber, quan-do nutro os sentimentos de fome ou de sede etc. E, portanto, não devo, de modo algum, duvidar que haja nisso alguma verdade. A natureza me ensina, também, por esses sen-timentos de dor, fome, sede etc., que não so-mente estou alojado em meu corpo, como um

  • 59MERLEAU-PONTY: CORPO, DESEJO E SENTIMENTO DE SI

    piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que compo-nho com ele um único todo. (1991c, p. 218).

    Merleau-Ponty, leitor e crítico de Descartes, Husserl e Sartre, talvez como nenhum outro filó-sofo, sustentou a experiência corporal - os ensi-namentos da natureza como professava Descar-tes - como fonte originária de todas as nossas certezas. No prefácio da Fenomenologia da Per-cepção, Merleau-Ponty retomou a distinção hus-serliana entre duas formas de intencionalidade - operante e de ato - expediente determinante para a compreensão dos temas centrais da sua obra, por exemplo, percepção, corpo próprio, desejo, liberdade e outros. A intencionalidade de ato, vivida na dimensão reflexiva da nossa vida, é aquela dos nossos juízos e tomadas de posições voluntárias, consciência tética de um objeto que converte uma percepção em uma ideia e uma experiência sensível em um conceito abstrato. É, de modo geral, a nossa potência intelectiva de nos representar mundos e formular teses. Já a intencionalidade operante estaria assentada na estrutura natural e “antipredicativa” do mundo e da nossa vida. Não estaria no domínio da re-presentação, mas da presença como, também, seria da ordem do desejo e não do pensamento: “aparece em nossos desejos, nossas avaliações, na nossa paisagem, mais claramente do que no conhecimento objetivo” (MERLEAU-PONTY, 1998, p. 16).

  • 60 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    Desse modo, para Merleau-Ponty o sen-tido do ser do sujeito remonta a um paradoxo vivido nessa dimensão originária da nossa vida pré-reflexiva. A experiência da intencionalidade operante nos mostraria que o mundo e o outro, enquanto polos de vivência intencional, não exis-tem e não são percebidos como o próprio cogito se autopercebe. Como podemos ler na Fenome-nologia da Percepção, o corpo fenomenal é fiador do sentimento de si, da própria existência, pois se distingue dos objetos por reunir à consciência temporal de si à experiência da encarnação. Por outro lado, essa mesma experiência, nos revela-ria que temos um parentesco ontológico com o mundo, pois o sujeito também pertence ao mun-do, as coisas e ao outro. A tese merleau-pontyana da carne do mundo, sustentada pela experiência do entrelaçamento, do quiasma, radicalizada em O Visível e o Invisível, reconheceria nesse paren-tesco ontológico o sentido da condição ambígua do ser: como sujeito encarnado e como transcen-dente. A experiência da reversibilidade, alonga-da do corpo para a carne do mundo nos coloca diante da tese inegável de copertencimento e co-presença no mundo.

    Nós nos colocamos tal como o homem na-tural, em nós e nas coisas, em nós e no outro, no ponto onde, por uma espécie de quiasma, tornamo-nos os outros e tornamo-nos mun-do. A filosofia só será ela própria se recusar as facilidades de um mundo com entrada única, tanto como as facilidades de um mun-do de entradas múltiplas, todas acessíveis ao

  • 61MERLEAU-PONTY: CORPO, DESEJO E SENTIMENTO DE SI

    filósofo. A filosofia ergue-se como o homem natural no ponto em que se passa de si para o mundo e para o outro, no cruzamento das avenidas. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 157, gri-fo do autor).

    Todavia o que significa colocar no ponto do homem natural? Como se passa de si mesmo - do Eu - para o outro? Como podemos pensar a partir da experiência da reversibilidade em uma significação, ao mesmo tempo e inseparável, de si e do outro? Nos capítulos sobre o corpo da Fenomenologia da Percepção, podemos ler a tese mais radical sobre esse saber pré-reflexivo que esboça uma abertura para uma teoria acerca do sentimento de si fundada no corpo próprio. O desejo enquanto uma paixão do corpo - uma das paixões primitivas de Descartes - é a chave para entender como o outro, as coisas, o mundo e a significação da própria existência são, conjun-tamente, apreendidas afetivamente.

    Para pensar a tese fenomenológica sobre a subjetividade fundada no desejo, Merleau-Ponty recorreu à Psicanálise. Freud interpreta Merleau-Ponty, ressignificou a sexualidade pela desco-berta de um movimento que reintegrou dialeti-camente o biológico e o psicológico, o físico e o mental. Desde Freud a descrição da frigidez, por exemplo, não se explicaria por um problema ana-tômico, mas traduziria uma situação existencial mais profunda, como a recusa do orgasmo e da condição feminina, ou, ainda, a rejeição do par-ceiro sexual ou, ainda, uma apatia por si mesmo

  • 62 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    e pelo outro. O sexual não é uma representação, como também não se resume ao extrato o geni-tal, e a libido como o desejo, por sua vez, seriam reveladores do poder do sujeito psicofísico de aderir a diferentes ambientes, de adquirir estru-turas de conduta e ressignificar corporalmente a sua relação com o mundo e com o outro.

    Na Fenomenologia da Percepção, Merleau--Ponty examina uma patologia que se instala como interdição do desejo: “Uma moça a quem sua mãe proibiu de rever o rapaz a quem ama perde o sono, o apetite e finalmente o uso da fala.” (MERLEAU-PONTY, 1998, p. 221). O exame desse caso de histeria revela como a interdição do desejo conduz ao falecimento da intenciona-lidade operante do corpo voltada para a vida. A afonia, sem relação qualquer com uma lesão fí-sica e enquanto uma morbidade decorrente da proibição do amor, revela o rompimento com o mundo comum. O desejo pelo outro, a iniciação ao mundo da vida, foi substituída pelo desejo de morte. A afonia representa a não existência do outro como interlocutor desejado, remete ao enfraquecimento das paixões como desejo de viver. É o corpo que se cala contra a interdição do desejo. O silêncio do corpo, nesse caso, é a di-mensão carnal da supressão do desejo. O desejo, portanto, revela a situação ambígua da existên-cia corporal, ao mesmo tempo, física e psíquica, anônima e simbólica: “ele é a possibilidade para minha existência de demitir-se de si mesma” (MERLEAU-PONTY, 1998, p. 227). Fechar-se e

  • 63MERLEAU-PONTY: CORPO, DESEJO E SENTIMENTO DE SI

    abrir-se ao mundo também faz parte da estru-tura afetiva e desejante do corpo. A sexualidade, como o desejo, é a intencionalidade que encon-tramos no corpo não como resultado de um pen-samento, mas de uma existência passional.

    O desejo não transcende a vida humana, não está alojado na alma, como também não fi-gura como manifestações inconscientes. Na Filo-sofia de Merleau-Ponty, o desejo não é cego, não é reação motora a um estímulo, mas exprime a di-mensão simbólica do corpo próprio. O desejo é ir-radiado, antes de tudo, do nosso corpo e por meio dele manifestamos toda a nossa vida pessoal, nos abrimos ou nos fechamos para o mundo.

    Para Merleau-Ponty, o desejo, enquanto expressão da relação entre o corpo próprio e o mundo, não é mosaico de estados subjetivos associado pelos sentimentos de dor e prazer. Como uma experiência original, alojado no corpo, o desejo não apenas revela o poder do sujeito em representar o mudo para si, mas expressa a ma-neira mais profunda da nossa ligação com o mun-do. O desejo é o signo da nossa presença corporal no mundo, é o ato de doação mais origina pelo qual investimos as coisas, o outro de afetividade e, sobretudo, nós mesmos de afetividade.

    O desejo como manifestação primordial da intencionalidade operante é sempre desejo de algo, de alguém, de um outro corpo. Assim, o desejo é vivido antes que representado, sentido antes que pensado é o querer em estado bruto porque, retomando os termos de Descartes, ele

  • 64 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    “agita o coração violentamente... torna todos os sentidos mais agudos e todas as partes do corpo mais móveis” (DESCARTES, 1991, p. 115). Nesse caso, a intencionalidade compreendida como desejo, não se revelaria apenas como um saber antepredicativo do corpo, mas expressaria a di-mensão afetiva do pertencimento ontológico do corpo próprio ao mundo e ao outro. Com Mer-leau-Ponty, viver (leben), no sentido biológico, assim como desejar, é uma operação primor-dial que torna possível viver (erleben) um deter-minado mundo. Se é preciso respirar antes de perceber, é preciso permanecer desejando para experimentar condição ambígua de se sentir li-gado ao mundo e, ao mesmo tempo, sentir-se só e inteiramente em si mesmo. Assim o desejo não é apenas um sentimento de falta, mas o ponto de ligação que anima aquela existência, dada e anônima, em direção ao mundo e ao outro. As-sim, na obra de Merleau-Ponty, certo saber na-tural secretado pelo corpo seria o fundamento - concreto - de uma teoria da percepção, de um novo cogito sem distinção entre espírito e maté-ria e, finalmente, de uma ontologia radical sem separação substancial entre o eu-outro-coisa, como podemos ler na sua última obra inacabada o Visível e o Invisível a experiência encarnada do desejo reforça a tese fenomenológica do corpo próprio como emblema de uma nova subjetivi-dade que não é, absolutamente, consciência e, também, não é coisa.

  • 65MERLEAU-PONTY: CORPO, DESEJO E SENTIMENTO DE SI

    Portanto, em uma perspectiva fenomenoló-gica o desejo garantiria, ao mesmo tempo, a con-dição ambígua do ser - a univocidade e o per-tencimento ontológico - e permitiria ao homem natural se colocar no “cruzamento das avenidas”, no ponto que se passa “si para o outro”, na “con-dição do homem natural”.

    Referências

    DESCARTES, R. Discurso do método; As paixões da alma; Meditações metafísicas; Objeções e respostas. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores).

    MERLEAU-PONTY, M. Oeuvres. Paris: Éditions Gallimard, 2010.

    MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

    MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspec-tiva, 1999.

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    FOUCAULT, CUIDADO DE SI E INQUIETUDE

    Cesar Candiotto23

    A expressão cuidado de si, sempre que é invocada, remete aos últimos estudos de Michel Foucault (1926-1984) nos anos 1980, seja em seus cursos no Colégio da França (Subjetividade e verdade, de 1981; A Hermenêutica do sujeito, 1982; O governo de si e dos outros, 1983; A coragem da verdade, 1984), seja em parte de sua História da sexualidade publicada em 1984, vol. II: O uso dos prazeres; e vol. III: O cuidado de si. Além disso vá-rias passagens dos Ditos e escritos (vol. II da edi-ção Quarto/Gallimard, de 2001) e conferências nos Estados Unidos e no Canadá (publicados pela Editora Vrin) tratam dela.

    Depois de ter estudado longamente os mo-dos de constituição do sujeito nas práticas sociais do Ocidente, entre os séculos XVI e XIX, o pensador francês redireciona seu campo de pesquisa para as práticas de si cristãs dos séculos III a V, tanto

    23 Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Fi-losofia da PUCPR. Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]

  • 68 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    no curso de 1980, O governo dos vivos, quanto no vol. IV de História da sexualidade: As confissões da carne, publicado postumamente em 2017. Nessas práticas de si cristãs, principalmente na direção de consciência, ele identifica o nascimento da herme-nêutica do sujeito no Ocidente. Trata-se da inau-guração de uma modalidade de conhecimento de si baseada na decifração contínua e permanente dos movimentos do pensamento, assim como o nascimento de uma interpretação dos desejos no seu sentido de concupiscência. Verbalizar tudo o que se pensa assiduamente a um outro, o diretor de consciência, é um meio eficaz para discriminar entre o bom e o mau pensamento, entre a boa vontade (derivada do cumprimento da vontade de Deus) e o desejo concupiscente (resíduo onto-logicamente constitutivo do indivíduo, oriundo do pecado original).

    A ênfase no conhecimento de si pela ver-balização dos pensamentos e dos desejos, tam-bém se encontra presente - pelo menos em sua forma - nas práticas de enunciação sobre si mesmo exercidas pelas chamadas Ciências Humanas modernas, especialmente a Psicolo-gia e a Psicanálise. Ainda que suas finalidades e seus conteúdos não sejam os mesmos, se essas “ciências” forem comparadas à direção cristã dos primeiros séculos, não é exagerado afirmar que ambas partilham a valorização do conhecimen-to de si e a verbalização sobre si, o que permi-te pensar o sujeito constituído em suas práticas como um animal confidente e como homem do

  • 69FOUCAULT, CUIDADO DE SI E INQUIETUDE

    desejo. Considerado no conjunto dessas práticas confessionais, o cristianismo não representaria uma perspectiva tão diferente da analítica do su-jeito que encontramos na Modernidade, sendo antes sua própria condição e sua base histórica de possibilidade.

    A questão é saber por que ele teria se des-viado de seu projeto original da História da sexua-lidade, no qual os gregos e romanos não eram inicialmente contemplados? Uma das respostas pode ser a seguinte: nessas duas diferentes ca-madas históricas do mundo antigo encontramos a presença de práticas de si cuja ênfase não é o conhecimento de si acompanhado da renúncia de si (como nas práticas de verbalização dos pen-samentos e desejos do cristianismo monástico), ou focado na constituição de um eu identificado com os mecanismos de normalizadoras das Ciên-cias Humanas. Em lugar do papel sobressalente do conhecimento de si, os gregos teriam minimi-zado sua função diante da abrangência maior da preocupação consigo cujo princípio mais notório é o cuidado de si.

    Entre gregos e romanos inexiste a ênfase em uma hermenêutica de si baseada na verbali-zação daquilo que se pensa, se deseja e se é, cor-relata de um ascetismo rigoroso cuja finalidade é a obediência integral, a verbalização infinita e a salvação da alma. Eles procuravam antes cultivar uma forma de ascética cuja finalidade era o se-nhorio de si mesmo, o domínio sobre seus dese-jos, atos e prazeres, objetivando viver de maneira

  • 70 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    equilibrada diante das vicissitudes da existência, como a perda dos bens, a possiblidade da doen-ça ou a iminência da morte. De maneira muito esquemática, podemos dizer que se os cristãos buscavam a salvação da alma, os estoicos e epi-curistas cuidavam da saúde da alma. Se aquela salvação situada em uma dimensão ultraterrena tem como condição necessária, mas não suficien-te, a renúncia do desejo, a anulação dos prazeres e a diminuição dos atos pecaminosos, já a saúde da alma envolve ser senhor de si, ser mestre dos desejos, prazeres e atos na imanência de nosso mundo de maneira que eles não nos dominem e não sejamos por eles escravizados. Nesse caso o cuidado de si constitui uma maneira de encon-trar um equilíbrio entre essas três dimensões ao proporcionar a rarefação dos atos, a qualificação dos desejos e a intensificação dos prazeres.

    Na história do cuidado de si um persona-gem privilegiado por Foucault é Sócrates, que destacamos somente de modo ilustrativo. Em A defesa de Sócrates (SÓCRATES, 1972) é encontra-mos a divisa de que de nada adianta ao ser hu-mano se dedicar mais às riquezas, às honrarias e aos prazeres se ele deixar de lado o cuidado de sua alma (psyqué). Evidentemente que ele não condena os bens necessários à existência, a vida satisfatoriamente prazerosa e a tendência de qualquer ser humano de ser reconhecido pelo que é e pelo que faz. O que Sócrates repreende é que, em vez de nos preocuparmos com aquilo que depende somente de nós, que é o cuidado

  • 71FOUCAULT, CUIDADO DE SI E INQUIETUDE

    da alma, nos dedicamos a objetivos que não de-pendem totalmente de nós e cuja busca obceca-da não garante que os realizemos. Nesse sentido, é uma tônica entre os gregos e romanos estabe-lecer, como desdobramento do cuidado de si, o critério de diferenciar aquilo que depende de nós para que seja resolvido e aquilo que não depen-de de nós. Cuidar da alma, ou seja, ser melhor do que se é, respeitar os demais e procurar fazer o bem é, consoante Sócrates, uma maneira de en-carar a vida que depende somente de nós.

    Pensado de uma maneira mais genérica e sistemática, o cuidado de si é fundamentalmen-te uma atitude para consigo, para com os outros e para com o mundo. Não se trata, portanto, de uma incitação a se fechar no próprio eu, de se de ser indolente com os outros ou de se isolar no mundo. Essa atitude visa antes a encontrar um equilíbrio entre o eu e os outros, entre o eu e o mundo mediante uma forma peculiar de aten-ção, de conversão do olhar. Constatamos que nosso olhar está quase sempre direcionado para o que os outros fazem ou dizem de nós, para o que o mundo nos oferece ou deixa de oferecer, deixando pouco espaço para o que pensamos de nós mesmos, o que podemos fazer para modifi-car esse mundo em sua precariedade e transito-riedade e como nos deixarmos interpelar e a nos questionar em nossa relação com os outros.

    A atitude geral para com o mundo e a atenção do olhar para si mesmo não são sufi-cientes para designar o cuidado de si, posto que

  • 72 FILOSOFIA E INTERIORIDADE

    ele compreende também quase sempre um exercício de si para consigo, físico ou espiritual, por meio do qual nos modificamos, nos purifica-mos ou nos transformamos. Os exercícios espi-rituais são, nesse sentido, formas de cuidado de si: temos assim o exercício da premeditação dos males, o exercício da escrita de si, a meditação sobre o dia que passou, os exercícios corporais, enfim, uma ascética que deverá ser posta em prática quando houver necessidade.

    Finalmente, além de uma atitude, um re-direcionamento do olhar, uma atitude e uma prática, o cuidado de si tem uma importância ímpar nas práticas de subjetividade, que se es-tendem do exercício filosófico ao ascetismo cristão. E, nesse sentido, a problematização do cuidado de si insere-se no objetivo da genealo-gia dos diferentes processos de subjetivação no Ocidente. Consoante à inter