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Flash no Escuro de Jorge Louraço Figueira

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Flash no Escuro

de

Jorge Louraço Figueira

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Clichés

Flash no Escuro é uma peça breve, escrita a pedido de alguns finalistas do

curso de teatro da ESMAE. Em relação à versão original foram feitos inúmeros

cortes e foi mudado o título original, Flash Motel. Com este texto pensei

levantar questões acerca da natureza do trabalho artístico do actor, em

Portugal, na actualidade, e da sua relação com a realidade social que nos é

comum. Não pensei na peça como um documentário. Vi-a mais como um

sonho ou um álbum de fotografias encenado. As personagens não falam uma

linguagem típica ou característica de um papel sócio-profissional; pelo

contrário, elas inventam a sua linguagem, que se revela insuficiente, e

fantasiam a imagem pessoal. O enredo tem uma vaga inspiração nos filmes de

penitenciárias femininas (WIP, de Women in Prison, segundo o jornalismo da

especialidade) que passam a desoras na televisão e, ainda mais vagamente,

tem a ver com o consumo do sensacionalismo na imprensa e na ficção

dramática. A peça tenta pôr à mostra os esforços das personagens para se

desembaraçarem do passado e irem além das fórmulas de linguagem e de

imagem do outro nas relações pessoais. Além dos clichés. Na altura, em Julho

de 2004, quando escrevi a primeira versão, tinha acabado de mudar de casa e

morava ao lado do Centro de Português de Fotografia, instalado na antiga

Cadeia de Relação, na Cordoaria, onde aos domingos de manhã fazem a Feira

dos Passarinhos e é comum ver gaivotas esquartejar pombas. Foi também por

isso que escrevi a peça assim.

Jorge Louraço Figueira

A primeira versão desta peça estreou em Setembro de 2005 no Teatro da

Vilarinha, no Porto, com encenação de Fernando Moreira e interpretação de

Leonor Afonso, Joana Figueira, Miguel Vale, Liliana Rosa, Nuno Preto e

Rosário Costa; desenho de luz de Cláudia Valente, som de Sérgio Correia,

cenografia de Ricardo Preto, figurinos de Helena Guerreiro e produção de

Pedro Leitão.

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Flash no Escuro

de Jorge Louraço Figueira

Personagens

CLARA

RITA

TERESA

MICAS

um RAPAZ de dezoito anos

uma GUARDA prisional

1

A sala de visitas do recém inaugurado Estabelecimento Prisional do Norte,

perto da costa marítima. Recortadas pela luz estão uma mesa e duas cadeiras.

A cena ilumina-se cada vez mais, ao mesmo tempo que surgem os sons da

prisão: conversas, passos nos corredores, altifalantes, sinais sonoros, o correr

dos gradões, o conto das prisioneiras. MICAS está à espera. RITA entra.

MICAS

Deixa a Micas olhar para ti? Estás tão magra... Quando é que sais um

diazinho, mor?

RITA

Tá quase.

MICAS

Tenho andando tão preocupada contigo, mor.

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RITA

Vou no segundo corte, eles agora deixam.

MICAS

Já passou tanto tempo? A baixa está impossível... as gaivotas de asa escura

invadiram aquilo tudo. Vais na rua e tropeças nelas. Na ribeira é só corvos

marinhos a atacar... mas as pombinhas estão todas abrigadas, cada uma no

seu poiso. [Comovendo-se.] Mandam todas? muitos? arrulhos.

RITA

O quê?

MICAS

Não ficou ninguém comigo, sabes?... A pomba Denise está num pombal todo

equipado na Galiza, diz que não pode cá vir. A pombinha Laika está a trabalhar

numa associação columbófila, pagou a dívida aos falcões peregrinos, tá safa.

Mas têm saudades da rola brava. As pombinhas dizem todas: quando saíres

podes contar com elas para um pombal novinho em folha... Estão à tua espera.

Contigo não têm medo dos falcões nem das águias sapeiras.

RITA

Mas que conversa é essa?

MICAS

[Secretiva.] É o nosso código...

RITA

O código?

MICAS

Não contei a ninguém. RITA

Mas qual código?...

RITA

O Passarinhês? a rola brava és tu.

RITA

Ah... foste tu que inventaste?...

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MICAS

Não!... quer dizer? eu só desenvolvi mais um bocadinho, a ideia é tua. A visita

da pomba... Foi o que tu disseste ao telefone? demorei uns dias a perceber,

até me lembrar do espanta-espíritos!...

RITA

[Interrompe-a.] Andaste a mexer nas minhas coisas?

MICAS

Não! ...o espanta-espíritos tá fechado debaixo da cama dentro da caixa

guardada no armário!

RITA

O quê?!

MICAS

Eu não mexi em nada!

RITA

Abriste a caixa?

MICAS

Não.

RITA

Tiraste alguma coisa da caixa?

MICAS

Não! Só o espanta-espíritos! [Comovendo-se.] Ia trazer, mas ‘tá todo

emaranhado, os fios presos uns nos outros, não consegui destrançá-los...

RITA

Deixa lá...

MICAS

Lembrei-me do espanta-espíritos porque estava a pensar em ti... As pessoas

são como os pássaros, foi o que eu pensei. Presos num espanta-espíritos,

emaranhados uns nos outros, à espera que venha alguém destrançá-las. Mas

eu não consegui... queria trazer-te...

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RITA

Deixa lá... Já também devia ter ido para o lixo?

MICAS

[Recuperando.] Então dás-me? [RITA não responde. MICAS começa a soluçar de

choro:] Eu aqui e tu presa, como um pássaro de asas cortadas e... por causa

de um crime que eu cometi.

RITA

Tu não podias adivinhar?

MICAS

Mas é culpa minha?

RITA

Tu não sabias...

MICAS

A culpa é minha, a culpa é minha?

RITA

Não é nada. Está calada.

MICAS

Porque a Micas é uma cabeça de vento? A Micas é que devia estar no teu

lugar...

RITA

Não, Micas, tu não foste feita para estar fechada dentro de quatro paredes?

MICAS

[Soluça cada vez mais.]

E tu estás tão ma-a-gra!?

RITA

[Para distraí-la.] Conta-me lá, quem te ensinou os nomes de tanto pássaro?

MICAS

Quem me ajudou foi um rapaz da CATS?

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RITA

Da quê?

MICAS

Da CATS! A Carrinha de Apoio às Trabalhadoras do Sexo... Ele sabe tantas

coisas. Foi ele que me ajudou a inventar o passarinhês.

RITA

[Segura o riso. MICAS chora mais e mais.] Pronto, está tudo bem. Não chores...

E eles dão apoio, é?

MICAS

[Chorando convulsivamente.] Dão!... Dão iogurtes e preservativos e conversam

comigo, e assim? Oh... Ainda bem que vieste cá para cima...

RITA

Não chores, Micas.

MICAS

Sabes que a Micas não tinha possibilidades de te ir ver... e agora anda aí um

passarão louco com ela... quer aprender a voar... Mas não deixa a Micas ir a

lugar nenhum? tive de vir às escondidas, sabes??

RITA

Pois? Pronto.

MICAS

Oh... Tu não devias ter dado a cara por ela, é uma louca estouvada, essa

Micas.

RITA

Ela agora já não é assim, pois não?

MICAS

Não, não, a Micas agora aprendeu a lição, não se mete mais com esses

passarões... abutres.

RITA

Pois.

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MICAS

[Referindo-se à maquilhagem.]

Tinha acabado de me arranjar, olha...

RITA

Pronto, dá cá. [Ajuda-a.]

MICAS

É este tempo de trovoada que me põe os nervos em franja. Olha. [Mostra o

braço com pele de galinha.] É o que eu sou, uma galinha, uma galinhola? um

ganso patola!

RITA

Não é nada, és como uma ave do paraíso... olha, vou-te fazer um risco que só

de olhar para ti... dá vontade de voar. Azul, como um beija-flor. Pode ser?

MICAS

[Recuperando.] Um beija-flor?

RITA

Sim. Pronto. [MICAS vê-se ao espelho.] Gostas? [Pausa.] Agora ouve? o que

aconteceu foi que eu apanhei uma pomba no pátio, quando ainda estava em

Lisboa, faz uns seis meses, – tás a ouvir? Toda ferida das gaivotas? – Ei! Tás

a ouvir? [Dá-lhe um safanão.] Levei-a para dentro, cuidei dela, e depois soltei-

a, mas esta semana – tás a ouvir ou não?! [Outro.] Esta de semana, de

repente, apareceu cá em cima, percebes? Veio ter comigo. Tenho a certeza

que é a mesma. Guardei-a no peito.

MICAS

Essa pomba gosta muito de ti...

RITA

[A perder a paciência.] Está calada, Micas, não és tu.

MICAS

Eu sei!

RITA

Tu és um beija-flor, certo?

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MICAS

Mas então quem é?

RITA

[Quase a explodir.] É um pássaro, pombo-correio, não interessa.

MICAS

Ah... Está bem, está bem.

RITA

Quando eu sair, em precária, levo a pomba escondida comigo.

MICAS

Mas quem é?

RITA

Quem é o quê?

MICAS

Essa tal Pomba Correia.

RITA

Porra, Micas, não ouves nada!! Não é uma Correia, é correio, percebes,

correio?! Leva mensagens, tem uma anilha, na pata!

MICAS

Na pata?

RITA

É uma pomba-correio, que se extraviou. É só isso. È um bicho?

MICAS

Bicho? Ah... É um pombo bicho, não é um pombo pessoa?

RITA

Não, Micas, não é... Porra, deixa lá o passarinhês e ouve: eu ato-lhe o bico...

MICAS

Isso é muito perigoso.

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RITA

Não, eu ato-lhe o bico?

MICAS

Mas então faz barulho à mesma!

RITA

[Explode.] Quem fica sem pio és tu, não tarda. Sempre a mesma, vens para

aqui queixar-te, a culpa é tua, não te deixam voar, não tens dinheiro, não tens

apoio, ninguém te quer, os passarinhos, foda-se! Eu é que estou na merda! Eu

é que não tenho ninguém. Tu tens o passarão e o gajo da carrinha de apoio e

os gajos todos que te querem comer! Eu não tenho ninguém a quem me

agarrar aqui dentro. Sabes porque é que eu não saio um diazinho, sabes?

Ninguém vai dar o nome! Vais tu? Eu não posso dar o nome de uma atrasada

mental que dá o cu para ganhar a vida, ou posso?! [MICAS engole o choro.] Eu

não aguento mais estar aqui, ouviste? Qualquer dia passo-me e penduro-me

nas grades até partir o pescoço! [Pausa.] Ouve. Dentro da caixa está comida

de pombo. Atas à perna da pomba, e soltas a pomba, deixas ir, que ela chega

cá, e traz-me o que eu preciso.

MICAS

Na pata? Para ela comer na viagem?

RITA

[Seca.] Dentro da caixa com as minhas coisas. Ou gastaste tudo?

MICAS

Não, não? desculpa, não percebi, disseste para esquecer o código...

São interrompidas pelo sinal sonoro que indica o fim da visita.

MICAS

Espera, a Micas tem uma prenda para ti. [Mostra o catálogo de uma exposição

de fotografia, e abre numa foto de RITA que ocupa duas páginas inteiras.]

RITA

O que é isto?

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MICAS

És tu. Estás muito bem. Houve uma exposição enorme na fundação... «Retrato

da Artista Quando Jovem Acompanhante». A tua amiga artista fotógrafa

também aparece nas fotografias? ela e os amigos e... Não me tinhas dito que

ela era assim tão riquinha? Diz aí tudo, que estudou no estrangeiro...

RITA

Onde é que arranjaste isto?

MICAS

Na casa do passarão. Podes lá ficar quando saíres, é um apartamento

chiquíssimo, mesmo na foz do rio, vê-se o mar todo, o pôr-do-sol... vê-se os

trovões?

RITA

Pois, os trovões?

MICAS

Tu daqui vês o mar?

RITA

Ouve-se a rebentação?

MICAS

Quando saíres daqui a primeira coisa que faço é levar-te a ver o mar. Levo-te

no meu carro.

RITA

Tu agora tens carro?...

MICAS

Não, mas nessa altura já tenho. Já me saiu o totoloto.

RITA

Com a tua sorte...

MICAS

Com a nossa sorte: há três anos que uso a hora e data da tua entrada: 19-45-

31-11-20-01...

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RITA

Para dar sorte?!

MICAS

O rapaz da carrinha diz que é melhor ter uma chave fixa, assim há mais

possibilidades.

RITA

Vou a pé, o mar é aqui ao lado.

MICAS

Levo-te ao mar da Póvoa. E depois vamos ao Casino.

RITA

Dá isso àquela gaivota, ela tem de controlar tudo.

MICAS

[Fica pensativa por um instante; de repente:] Não vês o mar, mas vês gaivotas!

MICAS é quase empurrada pela GUARDA.

RITA

Prefiro as pombas.

MICAS

[Recuperando a compostura, entrega o livro à GUARDA.] Isto é para ela.

RITA

Vem-me buscar à porta, como nos filmes! E muda essa chave fixa!

Escuridão, seguida de um clarão.

2

CLARA, no meio do palco, revê um maço de películas. Um RAPAZ entra em cena

e posa para ela. CLARA pega na câmara e fotografa o RAPAZ. A música de uma

aparelhagem quase se sobrepõe às falas.

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CLARA

Queres comer qualquer coisa?!

RAPAZ

Tens fome?!

CLARA

A tua amiga?!

RAPAZ

Espera!

CLARA

Então?!

RAPAZ

Vou ver!

CLARA

Rápido!

O RAPAZ sai e traz RITA.

RAPAZ

Serve?!

CLARA

Quantos anos?!

RITA

Quantos me dás?!

CLARA

Suficiente!

RITA

Já sou crescidinha!?

CLARA

Tou a ver!

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RAPAZ

Serve, não serve?!

CLARA

Sabes o que é para fazer?!

RITA

Sim!

CLARA

Se não estiveres à vontade, faz sinal!

RITA

Depois quero cópias das fotos!

CLARA

Tá bem!

RAPAZ

Não é boa?!

CLARA

Hã?!

RAPAZ

Não é boa?!

CLARA

Podem começar!

O RAPAZ e RITA preparam-se para ser fotografados por CLARA. Alguma

dificuldade e pouco à vontade no início. Beijam-se. Despem-se. CLARA vai

fotografando. Depois de um momento, RITA pede ao RAPAZ para parar. Param.

Recomeçam. RITA pede novamente ao RAPAZ para parar. Outra vez. Outra vez.

O RAPAZ está a forçar RITA. O RAPAZ pára e sai. RITA fica no chão a chorar.

CLARA tenta reconfortar RITA.

Escuridão, seguida de um clarão.

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O apartamento de CLARA, no centro da cidade. A luz de um candeeiro de rua

entra pela janela. Lá fora chove. Um colchão no chão, um computador portátil e

um scanner. CLARA digitaliza algumas fotos. Entra TERESA, ensopada em água.

CLARA

Cuidado com a porta, por causa do gato!

TERESA

Eu sei! [Pausa.] Já chegaste?

CLARA

Trouxe-te um perfume.

TERESA

Obrigada.

CLARA

Está tudo bem?

Silêncio, seguido de clarão.

TERESA

Amanhã vais encontrar uma cara conhecida, já sabias?

CLARA

Quem?

TERESA

Está no teu catálogo. [Abre o catálogo, que trazia consigo, na foto de RITA.]

Aqui nem parece puta.

CLARA

E com que é que se parecem as putas? [TERESA mostra-lhe a foto de RITA na

ficha do estabelecimento prisional.]

TERESA

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Sabes quem é?

CLARA

[Sublinhando o óbvio.] Tirei-lhe fotografias, pelos vistos sei quem é.

Silêncio, seguido de clarão.

TERESA

Porque é que não me contaste?

CLARA

O quê?

TERESA

Uma das modelos do teu livro está na minha cadeia e tu nem falas no assunto?

CLARA

Como é que eu ia saber?

TERESA

[Irónica.] Não estás em contacto com o submundo? Veio nos jornais e tudo.

CLARA

Viste-me lá? Se soubesse já a tinha ido visitar.

TERESA

E agora?

CLARA

Agora o quê?

Silêncio, seguido de clarão.

CLARA

O que é que ela fez?

TERESA

Atirou meio litro de ácido sulfúrico à cara de um cliente. Ela e uma colega,

numa pensão manhosa da avenida da liberdade. Completamente Série B, não

achas? A tua amiga assumiu as culpas.

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CLARA

Mas era um cliente?

TERESA

Um «amigo», como elas dizem. [Pausa.] Queres mesmo ir para a frente com

isto? Se for para parar é agora, não é depois!

Silêncio, seguido de clarão.

CLARA

Quanto tempo apanhou ela?

TERESA

Uns anos.

CLARA

Se calhar não é a mesma.

TERESA

É o mesmo nome, não é? [Pausa.]

CLARA

Se calhar nem se lembra de mim.

TERESA

Deve ter sido uma boa inspiração. Inventa as histórias mais incríveis. A

verdadeira artista.

Silêncio, seguido de clarão.

CLARA

Não vamos desistir por causa disso.

TERESA

Depois não digas que não te avisei.

Silêncio, seguido de clarão.

CLARA

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Teve um advogado decente, ao menos?

TERESA

O normal, uma oficiosa. Não tinha dinheiro.

Silêncio, seguido de clarão.

CLARA

Se calhar podia ter feito alguma coisa por ela, não sei.

TERESA

Se calhar... Isso não é nada teu.

CLARA

O quê?

TERESA

[Como se fosse óbvio.] Remorsos.

CLARA

[Ri-se.] Não, não são remorsos. Estou preocupada com ela, é natural. Se

calhar posso ajudá-la. [Vê a ficha.]

TERESA

Se calhar?

CLARA

Está presa, fiquei preocupada.

Silêncio, seguida de clarão.

CLARA

O que é isto, falta de retaguarda?

TERESA

Para poder sair em precária é preciso que alguém se responsabilize.

CLARA

Ela não tem ninguém?

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TERESA

Tem. A colega do ácido. Mas não tou a ver o juiz de execução de penas a dar a

colega como pessoa idónea... nem que eu queira, não tou a ver.

CLARA

Mas se é só isso, eu posso responsabilizar-me.

TERESA

[Incrédula.] Estás a passar-te...

CLARA

É, estou a ter um flash.

TERESA

Que morada vais dar?

Silêncio, seguido de clarão.

CLARA

Toda a gente merece uma segunda oportunidade.

TERESA

Não estás a exagerar, tanta filantropia?

CLARA

Fazia o mesmo por ti.

TERESA

Fazias?

CLARA

Não estás aqui em casa?

TERESA

Estou aqui porque te dou jeito para regar as plantas e tomar conta do gato

quando andas a passear no Louvre.

CLARA

Não te vou fazer o cursinho à prisão, não foste tu que pediste?

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TERESA

Ah é por minha causa que vais? Pensei que era o teu trabalho?

CLARA

Quando eu olho para a cara de uma reclusa não vejo uma mentirosa nem uma

condenada, vejo uma mulher. Vou para te ajudar, e vou porque me interesso,

para lhes dar uma oportunidade, e para dar uma oportunidade aos outros de

verem aquelas mulheres com olhos de ver.

TERESA

[Irónica.] Aquelas mulheres?? Desculpa lá: vais porque te pagam, porque és

tu que ficas bem vista, e para sacares mais umas fotos para o teu número da

fotógrafa marginal.

CLARA

Talvez te faça bem recomeçar de novo, também.

Silêncio, clarão.

TERESA

Comecei hoje à procura de apartamento.

CLARA

Onde?

TERESA

Lá perto.

CLARA

Viste alguma coisa?

TERESA

Vi um Tê-um com vista para outros Tê-uns.

CLARA

Estás à vontade aqui...

Silêncio, clarão.

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TERESA

Não sei se não fazia o mesmo, no lugar dela.

CLARA

Hã?

TERESA

Desfigurar um amante.

CLARA

Não era um cliente?

Silêncio, clarão.

TERESA

Quando é que a conheceste?

CLARA

Há sete anos, ou mais, na altura das fotos – era uma miúda fantástica, com

uma graça que eu nunca tinha visto... uma coisa animal, diferente, tinha uma

aura... percebes?, quando se mexia parecia... não sei, os movimentos dela

parece que tinham uma promessa de qualquer coisa, um ar de futuro, quase

podias cheirar o futuro. [Pausa.] É como os romanos, que CLARAm o futuro no

voo dos pássaros, é isso! Lembro-me de ficar cheia de ciúmes. Queria estar

com ela à força toda. Foi em Abril, Maio... andavam uns dias de trovoada,

abafados, aquele calor estranho, mais ou menos como agora... a prometer, a

prometer, mas nunca mais desabava, até que, pronto, depois daquilo... Teve

de ficar lá a dormir nessa noite, por causa da chuva. Depois, quando se foi

deitar, pôs-se a cantar baixinho, até adormecer. Cantava tudo. Fados... Era

capaz de estar uma noite inteira a cantar assim, baixinho. [Pausa.] Depois

disso cruzava-me com ela na noite, de vez em quando. Falávamos um

bocadinho. Era mais uma.

TERESA

E como é que vais fazer quando a vires? Vais tratá-la de maneira diferente das

outras prisioneiras?

CLARA

Não se vai passar nada. É uma reclusa como as outras. Eu sou tão profissional

como tu.

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TERESA

Exactamente. Lá dentro nem tu nem eu temos relações pessoais, somos as

duas profissionais. [Sai.]

Escuridão, seguida de um clarão.

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CLARA revê uma foto de RITA a dormir, a do último flash, tirada há quase quatro

anos atrás. O espanta-espíritos está pendurado perto da janela, onde apanha a

luz exterior. Deitada no colchão, a dormir, está RITA. CLARA prepara-se para

sair de sacos e mochilas. Ouve-se o tilintar do espanta-espíritos. CLARA pára,

olha para trás para ver se RITA acordou. Tem uma ideia. Tira a máquina

fotográfica do saco e prepara-se para tirar uma fotografia. Lá fora continua a

trovoada. Aproxima-se um pouco mais e, no momento do clique, o flash

dispara. RITA acorda estremunhada.

RITA

O que foi?

CLARA

Nada. São os relâmpagos.

RITA

[Sorrindo, ainda meio a dormir.] Estavas-me a tirar fotos, com esta cara, e

cheia de baba? que horas são?? [Silêncio. Ergue o tronco.] Não consegues

dormir?

CLARA

Não.

RITA deixa-se adormecer. Lá fora continua a ouvir-se a chuva. Passado um

pouco CLARA levanta-se e sai.

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O telefone público do estabelecimento prisional. RITA entra, dirige-se para o

telefone, marca o número e aGUARDA. Ouve-se o sinal de chamar. Do outro

lado do palco, entra MICAS, solene, para fazer o seu número de travesti. A

chamada feita por RITA vai para o atendedor.

MICAS

[Voz gravada:] Ligou para a Micas, mas ela não pode atender. Deixe uma

mensagem ou então use a sua... [Cantando:] Telepatia... silêncio, calma...

[Ouve-se o sinal sonoro do atendedor. Telepatia, de Lara Li, sobrepõe-se à voz

na gravação. No outro lado do palco MICAS faz o seu número. RITA sai depois

de ter deixado uma mensagem inaudível para o público. TERESA assiste ao

telefonema. CLARA fotografa TERESA.]

6

O apartamento de CLARA.

CLARA

Precisas de dinheiro?

RITA

[Encolhe os ombros.]

CLARA

Porque é que estás com essa cara? Já sei, é a única que tens. Dei o nome

para saíres em precária –

RITA

[Interrompe-a.] Eu quero é sair em condicional.

CLARA

Não te estou a ajudar?

RITA

E voltas a dar a cara, quando o curso acabar, ou vais desaparecer de repente?

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Silêncio.

CLARA

Prometes que não voltas a trabalhar?

RITA

Qual é o teu problema? Não tou presa por ser puta. Tou presa porque me

defendi de um cliente, mas não me defendi da justiça.

CLARA

E isso foi porquê, por estares sossegada em casa a ver televisão?

RITA

A fotógrafa é tão puta quanto eu. [Pega no catálogo.] Até fez um livro. «Retrato

da artista quando jovem acompanhante... uma série de auto-retratos como

prostituta em vários lupanares de Paris e outras capitais europeias». Lupanares

de Paris? Dá vontade de rir! Foi tudo tirado num motel da Póvoa, numa

espelunca à beira-mar! Isso é que era uma notícia, saber que ela é uma fraude

enquanto artista, e uma puta das autênticas. Ao pé dela não passo de uma

amadora.

CLARA

Não tenho a culpa de estares presa.

RITA

Foi contigo que eu comecei, no teu estúdio. Fomos para lá tantas vezes que

me habituei. Só pensava no que podia ganhar. Calha a todos uma vez por

outra. Às putas é todos os dias. Quando começou a haver dinheiro passei a

profissional, mas antes disso já me estava a vender, ou não achas?

CLARA

Se estás arrependida, tens agora a chance de começar de novo, deixar tudo

para trás.

RITA

Já é tarde, já está entranhado. Quando a merda do curso acabar inventas uma

história a dizer que me aceitas como assistente, para eu ter direito à

condicional.

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CLARA

Desde que não faças asneiras?

RITA

O que eu faço depois é comigo. Se não, digo a verdade a toda a gente!

CLARA

Achas que isso me incomoda? Mesmo que acreditassem, as fotos ainda tinham

mais saída!

RITA

Pois, tu és aplaudida, andas em altos voos... eu estou presa na gaiola. Mas

podíamos estar uma no lugar da outra, à vontade. As fotos também eram

minhas... E ainda tenho algumas, que deixaste para trás, com a pressa.

[Mostra-lhe uma fotografia.] Lembras-te? Também podia ganhar um prémio,

esta... Eu também posso ser fotógrafa de putas. Queimo tudo, se desapareces.

CLARA

[Depois de um tempo:] Só te ajudo se eu quiser. Porque eu quero.

Silêncio.

RITA

Sabes quanto tempo passou desde a última vez que vi a tua cara?

CLARA

Três anos, sete meses e uns dias.

RITA

[Irónica.] Eu não sabia que era a última vez, mas tu já sabias. O flash disparou

como um raio. Pelo menos, foi a desculpa que deste? Estavas nervosa?...

CLARA

Queria fixar uma imagem tua para levar.

RITA

E eu fiquei com quê? [Silêncio.] Ainda te deste ao luxo de usar a foto na merda

do teu livro. Mas eu apanhei-te, depois deste tempo todo. Ainda há quem não

acredite no destino. Fui eu que disse à Doutora Teresa que era bom ter lá um

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curso de fotografia? Despachada como ela é, deve ter ido a correr como uma

formiguinha à procura do contacto da artista?

CLARA

Publiquei a foto... Não sabia de ti, tinha uma esperança que tu visses a foto e

resolvesses aparecer.

RITA

Ia vê-la na prisão?

CLARA

Eu não sabia que estavas presa!

RITA

Porque é que não falaste comigo naquele momento, quando eu acordei?

CLARA

Tinha medo que me convencesses a ficar.

RITA

Eu? Tu é que não querias ir.

CLARA

Tive de escolher.

RITA

E agora deu-te saudades de quê?

CLARA

Eu tinha de parar.

RITA

Eu também tinha.

CLARA

Não, tu não querias parar. Eu estava farta da noite, e tu estavas farta de mim,

por causa disso. Mas dava-te jeito a companhia, em mim podias confiar. E para

me segurares, tratavas-me como uma rainha. Mas eu tinha passado a ser uma

cliente, para ti, eu sei. Mais uma.

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RITA

Como é que tu sabes? Não se faz a um cão, o que tu me fizeste, ir embora

assim.

CLARA

Tu não querias saber de mais nada. Nós não tínhamos um futuro. Como é que

ia ser dali a uns anos? Eu sonhava com um futuro, uma merda qualquer onde

pudesse ser eu, a toda a hora, e não precisasse de fingir.

RITA

A tua missão na terra!! Eu também tinha direito a um futuro, ou não? E continuo

a ter. Mesmo depois de estar nesta choça.

CLARA

Estou aqui, para ajudar, agora.

RITA

A ti ou a mim? Pareces a assistente social a falar, porra!

CLARA

Vou andar a pagar para sempre?

Silêncio. Beijam-se. RITA quebra o beijo.

RITA

Vamos ficar por aqui?

CLARA

Tens alguma sugestão?

RITA

Não há crise, não aparece ninguém?

CLARA

Não.

RITA

Então? Só preciso comprar tabaco.

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CLARA

Então vamos.

RITA

Não, eu vou sozinha.

CLARA

Achas boa ideia?

RITA

Porquê?

CLARA

Porque já me deu muito trabalho conseguir libertar-te por um dia e não quero

que faças asneiras.

RITA

Já fiz asneiras que cheguem.

CLARA

E o que é que queres fazer a seguir?

RITA

Qualquer coisa. Já vemos.

CLARA

Porque é que tens de ir sozinha?

RITA

Porque sim. Dá-me gozo. Tenho saudades de ir sozinha comprar tabaco.

CLARA

E tem de ser agora?

RITA

Sim.

CLARA

Tens alguém à tua espera?

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RITA

[Depois de um tempo:] E se tivesse?

CLARA

Não percebi.

RITA

E se tivesse uma pessoa à minha espera?

CLARA

Para quê?

RITA

Para ir buscar uma coisa.

CLARA

Pensava que já não tinhas ninguém no Porto.

RITA

É uma amiga, está cá por acaso.

CLARA

E não queres que te leve lá?

RITA

Não. Vou sozinha, é aqui ao lado. Volto daqui a meia-hora.

CLARA

Posso ir contigo.

RITA

Não tenhas medo que eu não fujo. [Pausa.] Não saí da prisão para ficar presa

aqui. Não basta a doutora e a guarda, faltavas tu.

CLARA

Não, claro que não. Fazes o que muito bem entenderes. Eu é que... [Pausa.]

Com quem é que te vais encontrar, afinal?

RITA

Um amiga, já disse.

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CLARA

Uma amiga. E o que é que isso quer dizer?

RITA

Uma amiga, a Micas. O que é que tem? Não confias em mim?

CLARA

Nada, não tem nada. [Pausa.] Trabalhava contigo?

RITA

Foi ela que me aturou quando te foste embora.

CLARA

É uma amiga importante?

RITA

Sim.

CLARA

Deve ser muito importante, para teres essa pressa toda.

RITA

Até gostava que conhecesses. Posso ir?

CLARA

Para fazer o quê?

RITA

«Para fazer o quê?», o quê?

CLARA

Porque é que havia de conhecê-la?

RITA

Porque é uma amiga. Não me falhou durante este tempo todo. Nem eu a ela.

CLARA

Estavas sozinha? Agora de repente. Como é que ela sabe que saíste?

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RITA

Telefonei.

CLARA

Já tens as antenas a funcionar.

RITA

Se estás com ciúmes, não vale a pena.

CLARA

Era o que me faltava.

RITA

Nem é bem uma amiga, é um amigo, se queres saber.

CLARA

Em que é que ficamos? É homem, é mulher, é traveca? Está na lista para a

operação?! Já percebi, tás cá fora, já tens o que querias. [Para si mesma.]

Como é que me deixei enrolar nisto outra vez?...

RITA

Mas nisto o quê?

CLARA

Nisto, nas amigas que afinal são amigos, nos amigos que afinal são clientes!...

Fizeste um negócio comigo, não foi? Mais uma vez? Alguém deixa de ser

quem é?

RITA

Tu não deixaste de ser? Hã? Jovem Acompanhante?

Ouve-se o portão de correr.

CLARA

Não me digas que é o patrocinador oficial da marca.

RITA

Qual marca?

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CLARA

A marca Puta Fina

Entra MICAS. Traz o espanta-espíritos, coberto por um lenço vermelho,

tilintando.

MICAS

[Para RITA.] Desculpa, mas tu nunca mais descias, e está quase na hora do

sorteio, e eu ali com isto na mão!... Ai! Venho interromper alguma coisa?

Desembaracei os fios todos. Está como novo, o vosso espanta-espíritos!...

[Olha para CLARA] Ai, estraguei a surpresa, desculpem... [Estendendo a mão

feminina para cumprimentar CLARA.] Olá... ouvi tanto falar de ti, estava ansiosa

por te conhecer, sou a tua fã número um. Fui ver a exposição quatro vezes

seguidas. A Micas fartou-se de chorar... Aquelas mulheres todas, lindas. És um

modelo para a Micas, a ídola, minha e das pombinhas todas. E a Micas vai ser

fotógrafa como tu. Não é, Rita?

RITA

Vai, claro.

MICAS

Se estivesse presa tinha feito o curso. Deixar esta vida. Montar uma empresa

de fotografia, para fazer casamentos!... Aquelas noivas todas, lindas, de branco

e flor de laranjeira... Um espectáculo.

RITA

Havia de ser bonito, tu a bateres casórios. Arranjavas logo uma data de

clientes.

MICAS

Já somos nós que aguentamos a instituição do matrimónio. Aumentávamos a

clientela. Estúdio Arte Beija-flor. Dois em um: despedidas de solteiro e serviço

de fotografias!

RITA

Não podes é fotografar as despedidas, ainda acabas famosa, com uma

exposição no museu!

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MICAS

[Para CLARA.] Não te preocupes que não te fazemos concorrência. Vamos

trabalhar só na área dos matrimónios. Tu estás no segmento oposto do

mercado. Quer dizer, podemos fazer sociedade. Eu fotografo-os a casarem-se,

tu quando eles vão às putas. Só falta alguém para tomar conta das mulheres

em casa a fazer crochet. É caso para a Rita, agora que ela vai deixar de vez os

pombais, passar a voar dentro da lei. Mas que é a lei? O casamento é lei?

Então devia estar tudo preso. Posso ver o sorteio do totoloto? Fiz hoje a chave

nova, com a data de saída da nossa menina, estou com uma fezada! Dantes

era 19-45-31-11-20-01, agora é 16-35-26-09-20-04. Ai Senhora do Livramento.

RITA

[Referindo-se ao espanta-espíritos.] Podes ficar com ele.

MICAS

Segura só um pouquinho, deixa a Micas tomar nota dos números.

RITA não mexe um dedo. MICAS dá o espanta-espíritos a CLARA.

MICAS

[Para CLARA:] Com cuidado para não ficar emaranhado outra vez. Onde é a

televisão?

CLARA

Não tenho.

MICAS

[Histérica.] Ahhhhh! E agora? [Vai à janela.] Ó vizinha! Ó vizinha! Ai isto está

tudo sujo das pombas. Diga-me os números do totoloto, vizinha! Por favor!

RITA

Já é tarde, é melhor ir andando.

RITA sai. CLARA tira o lenço do espanta-espíritos.

MICAS

1-11-19-20-31-45... [Confere a chave.] 19-45-31-20-11-01! Ai que me vai dar

uma coisa. Rita, Rita! A Micas ganhou, a Micas ganhou!! [Abraça-se a CLARA.]

Ganhámos, ganhámos, eu não acredito! Ai! Rita! Rita! Anda, vamos atrás dela!

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Sai. CLARA fica sozinha. A luz cai lentamente até à semi-obscuridade. Um

último flash incide sobre o espanta-espíritos. Escuridão.

FIM