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Fogo nas Cartas - Teologia pela Internet · Web viewTrata-se da melhor abordagem, do ponto de vista de uma crítica literária, acerca da obra de João Cabral, que permite nas entrelinhas

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Fogo nas Cartas

Fogo nas Cartas, de Floriano Martinsmenumark

Edições da Agulha

Fogo nas CartasFloriano Martins

Capa e ilustraçõesFloriano Martins

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Copyright:Resenhas © Floriano Martins

Capa & Projeto gráfico © Socorro NunesCollage da capa © Floriano Martins

Foto de Floriano Martins © Gustavo Araújo (Panamá)© 2001 Edições da Agulha

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ÍNDICE-Nota editorial-Adolfo Caminha (Vida e obra), de Sânzio de Azevedo-Poesia completa, de Raúl Bopp-Conversas com Pablo Neruda, de Brassaï-Trovar claro, de Paulo Henriques Brito-Mar anterior, de Sérgio Campos-Inventário das sombras, de José Castello-Eva e os padres, de Georges Duby-Poemas, de Seamus Heaney-O fio de Dédalo, de Ivan Junqueira-Baudelaire, Eliot, Dylan Thomas: três visões da modernidade, de Ivan Junqueira-A tessitura dissimulada (O social em Clarice Lispector), de Neiva Pitta Kadota-Ascese: os salvadores de Deus, de Nikos Kazantzákis-Geometria da água & outros poemas, de José Kozer-Obra completa, de Lautréamont-Os olhos do deserto, de Marco Lucchesi-O sorriso do caos, de Marco Lucchesi-Melhores poemas, de Dante Milano-Poesias, de Alvaro Mutis-Cadernos de Temuco, de Pablo Neruda-João Cabral: a poesia do menos, de Antonio Carlos Secchin-Poemas da carne e do exílio, de Ovídio-Ruidourbano, de Uílcon Pereira-Poesia reunida, de Dora Ferreira da Silva-Na trilha de Lagoa Santa, de Henrik Stangerup-Três livros, três manifestos: Anotações para um apocalipse, Dias circulares e Jardins da provocação, de Claudio Willer-origem dos textos-O Autor

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Coleção Resto do MundoEdições da Agulha/eBooksBrasil

Nota editorial

Se encarada a leitura como exercício de destruição de um texto, dissipa-se toda a paixão e passamos a exigir do ato de criação um apuro que ele não possui em raiz. Concordo com George Steiner, ao rejeitar a idéia de que o ato de criação seja reduzido a mera constatação de nossa inteligência. A defesa da leitura como exercício desconstrutivo conduz a outra instância: a suspeitosa especialidade de que se arvoram os homens de letras para ocultar a ignorância em relação ao todo. Surgiram então os textos sobre textos sobre textos sobre textos, fazendo com que o original perdesse relevância. A morte do autor talvez pertença ao mesmo princípio de uma customização de massa.

Marshall McLuhan vinculou a evolução do plágio e da citação identificada à permanência do texto impresso. Ou seja, antes é preciso afirmar uma propriedade – no caso, de idéias e palavras –, para só então estar apto a perdê-la. Segundo John Cage, Duchamp destacou, com o ready made, que “a propriedade está na base de tudo”. Essa correlação entre um antes e um depois me parece refutar uma veleidade corrente: a de que todo texto seja um pretexto. O princípio da leitura, por exemplo, não é o de deliberada destruição. Sendo o texto um ato de paixão, ato extremo que individualiza alguém, corresponde a leitura a outro extremo ato, o de identificação, de compromisso mútuo com uma determinada visão de mundo.

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Ao referir-me a autor não limito o âmbito da assinatura, mera identificação de firma. Interessa-me a individuação da escrita, do ato criador, e sua responsabilidade diante da visão de mundo que suscita. Para que o plágio seja necessário antes é preciso que haja o objeto do plágio. Borges, em entrevista concedida em 1975, ao ser indagado sobre interesse particular pela notícia diária, disse: “Isso se sabe depois. Geralmente os fatos importantes são importantes muito depois. Quando ocorrem não sabemos se são importantes. Penso na crucificação, por exemplo, que foi um fato muito importante. Sem dúvida, não teria aparecido em nenhum jornal: a execução de um criminoso ao lado de outro. Teria ganho um grande espaço, por exemplo, o fato de que César foi de Roma à Grécia. Assim, os jornais estão cheios de coisas totalmente frívolas, como as viagens dos presidentes.”

Sempre me questiono se um mundo sem arte seria melhor ou pior. Imaginemos um mundo sem a manipulação da informação. Seria melhor ou pior? Tolstoi dizia que a arte conduz a humanidade ao exercício amplo da fraternidade. Que espécie de consciência estamos criando acerca de nosso tempo? Qual a nossa noção de humanidade? Bem sabemos que o discurso da comunicação, como qualquer outro, na medida em que se aprimora, perde contato com a realidade que o fundamenta. Todo discurso tende à fraude?

Os textos aqui reunidos talvez espelhem uma dispersão, de maneira que cabe observar um possível vínculo entre eles. Escritos em distintos momentos, como resenha de livros publicados nos últimos anos, registram preocupações minhas referentes a alguns aspectos presentes em nossa contemporaneidade. Pela forma resumida com que se mostram, claro que não são mais do que algumas pistas para o desejado início de um diálogo. Em conversa com alguns dos autores invocados desdobra-se uma convicção de que o mundo (qualquer mundo) não pode seguir sendo abordado sempre por um mesmo prisma. Desfazer e refazer é também parte do árduo trabalho de construção de um imaginário. Reuno então estas resenhas como uma pretensa carta de navegação, diário de vertigens, onde somente o que se deixa tomar pelo abismo é que conquista o curso irrefreável da viagem.

 

Adolfo Caminha (Vida e obra), de Sânzio de Azevedo

 

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Uns poucos livros foram publicados até o momento especificamente destinados ao estudo da obra de Adolfo Caminha. Assinados por Lúcia Miguel-Pereira e Sabóia Ribeiro, foram todos publicados no Rio de Janeiro, há mais de duas décadas. Nenhum deles possuía o caráter biográfico do qual se ocupa este livro de Sânzio de Azevedo (Adolfo Caminha (Vida e obra), 1997). A bibliografia avulsa sobre Adolfo Caminha é bastante reduzida, ao mesmo tempo em que repleta de equívocos. Embora Azevedo já tenha a ele dedicado ensaios anteriores, é fato ser o presente livro o mais fundamental documento para uma compreensão da obra do autor de A normalista.

Tendo vivido apenas 30 anos, o cearense Adolfo Caminha (1867-1897) nos legou obra tanto resumida quanto controversa. Iniciado na poesia, não deixou ali nada de que devamos nos orgulhar. Crítico literário de critérios extremamente subjetivos, registrou-se em tal gênero mais polêmica evasiva do que propriamente substância crítica. Sua própria natureza, oscilante entre a lucidez republicana e o moralismo provinciano, interferiu desastrosamente na leitura de sua obra pela posteridade. Junto a seus contemporâneos a interferência viria também da temática abordada por um de seus romances e a leviandade constante de seu caráter.

Concentra-se no romance o real contributo à literatura brasileira. Embora autor vinculado ao realismo-naturalismo – como atestam A normalista (1893) e Bom-Crioulo (1895) –, tanto a publicação póstuma de Tentação (1897) quanto comentários esparsos de seus contemporâneos nos animam a pensar que o amadurecimento decerto o levaria a uma postura estética além de seu tempo. Viveu o crepúsculo de uma sociedade, arraigada já em decadentes valores imperiais. Tão arraigada que não percebeu o exacerbado moralismo de Adolfo ao tratar de uma ambientação homossexual em Bom-Crioulo. Aliás, diga-se que até hoje a temática deste romance falou mais alto que quaisquer evidências estilísticas.

Na última década do século, em um momento de retorno a Fortaleza – residira no Rio de Janeiro parte substancial da breve existência –, ao juntar-se a um grupo de intelectuais na formação da Padaria Espiritual, somou novas contradições tão comuns à sua personalidade. Disse posteriormente Leonardo Mota que a ele “faltava qualquer espírito camaradesco”, o que pode concluir por uma falha tática de Adolfo, a de agremiar-se. É fato que tanto sua leviandade ferina quanto as aspirações corporativistas da Padaria Espiritual contribuíram para o desenlace futuro.

Como crítico provocou celeumas localizadas. Tanto foram equívocas as observações acerca de Cruz e Souza, quanto desnecessárias as sessões de desagravo a Antônio Sales. Reportou-

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se a um “subjetivismo lamuriento da velha poesia brasileira”, nem de longe imaginando que um século depois ainda estivéssemos à deriva em idêntica fruição. Apesar de sua defesa abolicionista e do marco na literatura brasileira que é a presença de um protagonista negro em um romance, foi um moralista incorrigível ao tratar das relações afetivas em seus livros.

Entre as curiosidades de ressonância é interessante citar as abordagens sempre preconceituosas levadas a termo por críticos como José Veríssimo, Valdemar Cavalcanti e Wilson Martins. Em 1982, uma casa editorial nos Estados Unidos, a Gay Sunshine Press, publicou a tradução inglesa de Bom-Crioulo. Posteriormente seria levada a termo uma adaptação teatral somando passagens da vida e da obra do autor de A normalista. Condenava-se o realismo-naturalismo pela maneira crua e minuciosa como as cenas eram descritas. Recrimina-se em Adolfo que tenha escolhido a escória social para um exercício de minúcias.

Com tudo isto, A normalista – ao lado de O cortiço, de Aluísio Azevedo, considerados ambos de importância crucial à época – acabou não contando com uma leitura pública tão disputada quanto Bom-Crioulo – muito embora ali estivesse presente crítica muito mais lúcida e abrangente do provincianismo da sociedade brasileira. Nos dias de hoje também buscamos intrínseca relação entre autor e obra, no débil sentido de sujeição do primeiro na lida com o imaginário. O autor é a obra. A obra jamais será o autor. Adolfo Caminha chama-se tanto A normalista quanto Bom-Crioulo.

Retomando o livro de Azevedo, uma menção à lucidez da buscada historiografia de uma época. O livro permite todas as consultas. Vai às minúcias do que aqui tratamos. De forma clara expõe méritos e falhas da obra e da pessoa de Adolfo Caminha. Não é, portanto, um livro que se esgote em si. Bem ao contrário, trata-se de convite à rediscussão de aspectos da literatura cearense (brasileira?) tidos até hoje como consolidados.

 

Poesia completa, de Raúl Bopp

 

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Ao se falar do gaúcho Raul Bopp (1898-1984) a referência comum é de que tenha sido autor de um único livro, neste caso o largamente conhecido Cobra Norato (1931). A razão central disto é o profundo desconhecimento de sua obra por parte de todos nós, brasileiros. A própria discussão estética a seu respeito é bastante resumida, ressalvando três casos de maior latitude e mais ampla visão crítica: estudos assinados por Américo Facó, Othon Moacyr Garcia e Lígia Morrone Averbuck. Outro lugar-comum é considerar idênticos em importância os livros Cobra Norato e Macunaíma (1928), este último de Mário de Andrade. Se há uma consonância temática, vista tanto a partir de uma paixão amazônica quanto de uma obsessão nômade, há no mínimo que se reconhecer que Raul Bopp resolveu estruturalmente melhor o diálogo proposto com o enigma voraz das terras do sem-fim. Basta lembrar uma observação de Murilo Mendes, ao dizer que Bopp jamais caiu “nos exageros e preciosismos de Mário de Andrade”.

Já nos disse Wilson Martins que “o Modernismo foi uma escola ambulante e perambulante, fascinado pela descoberta geográfica e medusado pela descoberta cronológica”. Contudo, diversas são as razões desse fascínio: vão do exibicionismo de um Oswald de Andrade à aventura anímica de um Raul Bopp. O fato é que desse entrecorte de viagens seguramente a poesia de Bopp nos dá uma dimensão poética mais ampla do que aquela encontrada nos versos de Mário e Oswald. A dificuldade maior em colocar tais assuntos à mesa é que os mesmos estão sempre assistidos por uma série de prerrogativas acerca de um supostamente inquestionável valor dos capitães de nosso Modernismo.

A edição da Poesia Completa de Raul Bopp (Ed. José Olympio/EDUSP, 1998), que traz organização e comentários assinados por Augusto Massi, reúne, além da poesia, breve cronologia, fortuna crítica, estudo introdutório e valiosa iconografia. O texto que abre o livro Massi o inicia indagando sobre os obstáculos na recepção e conhecimento “mais amplo” da obra de Raul Bopp, para conclui-lo, páginas após, com a hipótese de que tal obra “nos transmite uma experiência da viagem e do diálogo à qual não temos mais acesso, anestesiados pelo excesso de turismo e comunicação”. Creio que há aí um deslocamento de pertinências. E basta observar alguns dados fornecidos pelo próprio Massi no decorrer de seu estudo, sobretudo nos momentos em que se refere a aspectos como profusão imagética (“Está mais próximo da linhagem onírica dos surrealistas do que das técnicas de montagem e corte cubo-construtivistas praticadas por Oswald e Cabral”) e acento estilístico (“A contrapelo da lírica moderna brasileira, em Bopp praticamente inexiste veio confessional ou discurso autobiográfico”).

No âmbito do Surrealismo, o próprio Bopp referiu-se, em conferência datada em 1944, à “frescura primitiva” do que ele chamava de “surrealismo brasileiro”. A seu tempo, observou muito bem Lígia Averbuck: “Como em todos os processos surrealistas, ao proscrever a retórica usual, sua escritura mostra as coisas na sua nudez perturbadora e no impacto subversivo de sua verdade”. Quanto ao confessionalismo, Bopp é primoroso ao salientar o “lirismo bojudo do poeta [Augusto Frederico] Schmidt” na carta a Jorge Amado e Carlos Echenique que funciona como prólogo à única edição de Urucungo (1932).

Creio então que estes aspectos todos que constituem a identidade da obra de Raul Bopp, na verdade a identidade incontestável de seu próprio autor, são suficientes para um mínimo de deslocamento ou folclorização da importância de sua dimensão poética. Além disto, temos

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algumas leituras discutíveis, tanto no tocante ao vínculo com uma saga indianista quanto à influência exacerbada do Futurismo. Na fortuna crítica recolhida por Augusto Massi há referências a uma identificação da poética de Bopp com a de Gonçalves Dias, em menções vindas de Oswald e Carlos Drummond de Andrade. Por sua vez, no livro A escrituração da escrita (1996), Gilberto Mendonça Teles observa que “mesmo num poema de cunho nacional como Cobra Norato [...] encontramos a locomotiva futurista metamorfoseada no mito indígena da ‘cobra grande’, na região amazônica”.

Temos aí dois exemplos de uma leitura distorcida que sofreu a obra poética de Raul Bopp. Wilson Martins chega a dizer que Cobra Norato “tem o valor exemplar de fechar o ciclo da poesia indianista no interior do Modernismo”. Bopp disse haver procurado um “verso novo que captasse uma linguagem nova, que rompesse com o procedimento formal do verso”. Isto quer dizer que buscou a invenção a partir de uma identificação. Seu nomandismo não era de gabinete, assim como, ao contrário de Gonçalves Dias, não emprestou a voz à agonia alheia, não lhe interessando os ardis de uma mitificação da própria voz. Sequer há traços indianistas em sua poética, exceto se compreendermos o diálogo com um determinado imaginário como sua entranhável submissão ao mesmo.

Idêntica impertinência registra-se na acima citada afirmação de Mendonça Teles. Primeiro porque Cobra Norato não se trata de um poema de cunho nacional e sim poético. Além disto, a retórica trocadilhesca do crítico goiano habitualmente tolda a leitura estética de inúmeros assuntos. Não bastasse o fato da cobra ser anterior ao trem, há toda uma mitologia do erotismo que ultrapassa os domínios de um onanismo desalentador que por vezes sugere o Futurismo. Por sinal, vale lembrar que o trem jamais dividiu o Brasil em dois meridianos, como anunciava Oswald. Há, portanto, uma dupla ingenuidade, de ordem indianista e futurista, no tocante à poesia de Raul Bopp.

O que parece haver perseguido Raul Bopp foi uma realocação do eu poético. Por sua natureza nômade, buscou fundir ao verso uma amplitude de deslocamento, um movimento cortante. Basta ler o estudo de Othon Moacyr Garcia, que se preocupa antes com a poesia em si e não com os artifícios literários. O acento estilístico de Bopp radica na ampla utilização de perífrases e na presença constante de gerúndios e diminutivos inusuais. Além disto, não deixou nunca de apontar as fontes. Vinham inicialmente do Simbolismo da adolescência, consubstanciando-se na descoberta de textos como os recolhidos por Antonio Brandão de Amorim, em 1916, para uma edição da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro acerca dos mitos e lendas do Amazonas. Ele próprio disse, ao referir-se a uma leitura do “espírito da selva”, haver percebido ali “as profundas vibrações num clima surrealista”.

É curioso observar, após a leitura combinada de todos os poemas de Bopp, que aquela referência inicial, ou seja, de que se trata de autor de um único livro, no caso Cobra Norato, possui algo de verídico. Não digo isto no sentido redutor do termo, mas antes atento ao fato de que sua poética já estava constituída desde as anotações primárias. Toda a grandeza de seu erotismo, da corporificação do mito, a ambição anímica, a preciosidade dos jogos de associação de linguagem, a originalidade imagética, tudo, já havia antes e pouco desdobrou-se após a escritura de Cobra Norato. No entanto, há que lembrar outro aspecto: Bopp esteve incansavelmente a reescrever seus poemas. Tudo isto fundamenta a idéia de

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um mundo em perene formação. Claro, coincidia com alguns padrões de movimento propostos pelas vanguardas na segunda década deste século, porém sem a intenção burocrática das mesmas. Não quis fundar nenhum novo indianismo e mesmo o vínculo com a antropofagia buscava justamente uma discussão em torno da priorização de uma sintaxe sobre as demais.

Digno de elogio, conclua-se, é o empenho de Augusto Massi pela recolha da obra poética de Bopp. O trabalho de recuperação dos poemas é notável. Anota as diversas versões que tiveram, por vezes reproduzindo, em notas ao final de cada capítulo, a versão original de alguns deles, como são exemplos os que constituem Urucungo. Ao mesmo tempo, o livro deixa a desejar no tocante à montagem da fortuna crítica, assim como não propõe discussão mais aprofundada em torno deste importante escritor brasileiro. Acrescente-se, como ilustração final, que a obra de Raul Bopp é constituída pela poesia – na verdade Cobra Norato, Urucungo e poemas esparsos reunidos pelo autor em Putirum (1969) – e uma seqüência mais extensa de prosa crítica (ensaios, entrevistas, anotações memorialistas). Neste segundo segmento encontramos as razões necessárias a uma compreensão estética e os vínculos com o Modernismo.

 

Conversas com Pablo Neruda, de Brassaï

 

Em 1949 se publicou, inicialmente na França e logo na Inglaterra, o volume Sculptures de Picasso, reunindo mais de 200 fotografias das obras do artista espanhol, assinadas pelo húngaro Brassaï (1899-1984). O primeiro encontro entre fotógrafo e pintor se deu em 1943, por solicitação das Éditions du Chêne que, por motivos de falência, acabou não realizando o projeto. Durante a convivência com Picasso, Brassaï seguiu anotando diálogos, registrando situações, chegando a publicar, em 1964, Conversations avec Picasso, pelas Éditions Gallimard, livro que somente agora chega ao Brasil.

Impressiona a memória de Brassaï no que respeita aos detalhes tanto de cenas quanto das extensas falas reproduzidas. O húngaro radicado francês também escrevera retratos fascinantes de Henry Miller e Marcel Proust, sendo ainda, aos olhos de Picasso, um notável

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desenhista. Seu nome hoje se encontra entre os mais importantes fotógrafos do século XX e, com inteira razão, certa vez Henry Miller observou-lhe um raro dom de captar o clima das conversas.

Anotado em forma de diário, Conversas com Picasso abrange relação algo insólita registrada em dois períodos: 1943-1947 e rápido encontro em 1960, incluindo ainda um post-scriptum (1960-1962) que recolhe conversas de Brassaï com algumas amizades caras a Picasso: o filho, Paulo Picasso, a esposa de Matisse, Marguerite Duthuit, e o galerista Daniel-Henry Kahnweiler. Refiro-me à condição insólita da relação pelo fato de que o temperamento intempestivo de Picasso relevou ali umas tantas situações dadas como inadmissíveis. Ao mesmo tempo, o livro apresenta um Picasso fascinante em sua integridade, em alguns momentos incompreendido pelos excessos de paixão pela arte.

Diz Brassaï: “Para ele, que quer comungar com a realidade, toda a realidade, a mais imediata, a mais vulgar, a menos pitoresca, a mais verdadeira, o ponto de vista artista lhe parece pobre e mesquinho”. Duas décadas depois, um outro fotógrafo, Man Ray, observa: “Picasso me deu a impressão de ser um homem consciente de tudo o que passava a seu redor e no mundo em geral, um homem que reagia violentamente a todos os golpes mas que tinha apenas uma maneira de se expressar: a pintura”.

Em uma das conversas com Brassaï, Picasso, sempre provocativo, suscitou: “A fotografia chegou na hora exata para liberar a pintura de toda literatura, da anedota e mesmo do tema... Em todo caso, um certo aspecto do tema pertence doravante ao domínio da fotografia... Os pintores não deveriam aproveitar sua liberdade reconquistada para fazer outra coisa?”

Brassaï menciona as impossibilidades de entendimento entre Picasso e o Surrealismo, baseando-se nas declarações de Breton à época, que corriam o risco de serem entendidas como o estipular de um padrão de desordem, convulsão, relação insólita com o real etc. Breton admitiu, em 1961, que o “indefectível apego ao mundo exterior”, aliado a uma “cegueira que essa disposição acarreta no plano orgânico e imaginativo”, teria sido aspecto decisivo no impedimento de vínculo de Picasso ao Surrealismo. É curioso verificar que Breton cessou os elogios à clarividência do pintor espanhol a partir do momento em que o mesmo recusou adesão ao Surrealismo.

No furor da época de que trata o livro de Brassaï, em meio aos bombardeios constantes da 2ª Guerra Mundial, Picasso tinha relações com alguns surrealistas, Jacques Prévert, Raymond Queneau, Robert Desnos, mas não lhe interessava estabelecer um vínculo que fosse com o que sequer sugerisse permanência ou rótulo. Por razões distintas, pode-se dizer que Picasso e Artaud foram mais surrealistas do que muitos aderentes à causa.

Curiosidades da época? O zinco e o cobre das estátuas francesas que sabemos terem sido arrancadas dos pedestais das mesmas para conversão em material bélico, na verdade foram destinados não à construção de canhões mas sim às obras do escultor Arno Breker, segundo Brassaï “o protegido de Hitler e escultor oficial do Terceiro Reich”. Picasso chegou a cobrir de gesso peças de metal, para que as pudesse aproveitar nas próprias esculturas.

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Quando Robert Desnos foi preso, em 1944, disse a Brassaï que sabia que ele se deixara prender para não comprometer seus queridos. A Gestapo acabou com toda forma de vida naquela ocasião, espécie de agente laranja bombardeando uma Europa já desgastada. Em 1944, Picasso aderiu ao partido comunista. Escreveu uma peça de teatro, em 1945: Le désir attrapé par la queue (O desejo apanhado pelo rabo), título que lhe consubstancia a clarividência.

O controverso artista assume coerência extraordinária neste livro de Brassaï. O período abrangido é, portanto, um referencial raro para o entendimento dessas conturbadas relações. Escreveu diversos textos com a mesma volúpia criativa com que pintava, desenhava, esculpia. Assim envolvia-se com as paixões e assumia posições díspares, por vezes inaceitáveis. A coerência é estabelecida com base em um preceito. Em qual preceito basear-se para definir uma coerência na obra de Pablo Picasso?

Talvez Duchamp tenha razão ao dizer que a “única orientação possível em sua obra é um lirismo penetrante que, com o tempo, adquiriu acentos cruéis”. A personalidade de Picasso, que se mescla de tormento e encantamento por essa expansividade infantil, está muito bem relatada na intimidade que privou com ele o fotógrafo húngaro. A edição brasileira de Conversas com Picasso inclui ainda uma série de quase 50 fotografias de Brassaï.

 

Trovar claro, de Paulo Henriques Brito

 

Constitui grave entrave ao conhecimento uma espécie de deslize reflexivo que tem habitualmente confundido clareza com superficialidade, simplicidade com inabilidade. Talvez o denominado discurso rápido que tanto caracteriza o texto jornalístico seja o principal responsável, naturalmente que contando com um fortíssimo aliado: a quase completa extinção do talento no mundo das artes.

Não bastasse a degeneração em que caiu o termo “artista” e o surgimento questionável da expressão “arte jornalística”, dissiparam-se as conexões essenciais entre paixão (pathos),

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razão (ratio) e criação estética (poiésis). A resultante infesta nossos dias de torpe confessionalismo, malabarismos formais e outras mecânicas facilmente degustáveis.

Assim é que o verdadeiramente claro e simples foi dando lugar a um besteirol contagiante, sedimentado graças à sacrossanta ignorância do povo brasileiro. Em meio a tal cenário, torna-se irrelevante discutir etimologia ou ética. Segundo um princípio atual da difusão de qualquer conhecimento, o “rápido acesso” define-se por uma “apresentação agradável”. A essência humana, por sua vez, só importa enquanto bem de consumo.

Penso em tais aspectos a partir do título deste novo livro de poemas do Paulo Henriques Britto: Trovar claro (1997). A revista Azougue # 3, deste mesmo ano, traz um largo depoimento deste poeta, onde destaca-se a opinião do mesmo sobre a debilidade estética da própria geração. Ali aponta como falhas básicas a “trivialização do lirismo” e a “necessidade de ser original”. Acrescenta ainda dois outros ardis: o “purismo verbal” e a “autocomiseração”, considerando ambos como “parte do legado cultural português”.

De fato, o que ficou conhecido como “geração 70” não passa de um emaranhado de equívocos onde se consubstancia o arrebatamento pela superficialidade. Eclodiu então uma panacéia despida de toda dignidade estética, que veio desaguar com larga propriedade nos dias de hoje. Pode-se discutir angulações políticas, ao tratar daquele momento, mas não se pode apagar os rastros de uma mimese retórica ali desfiada.

Henriques Britto refere-se também aos “modelos parnasianos e simbolistas” aos quais permaneciam presos os novos poetas. Ao falar da própria poética, diz-se adepto de “uma poesia calcada numa linguagem simples e livre de adornos”. Em Trovar claro, contudo, remete o leitor ao convívio com imagens entre desgastadas e desmedidas, a exemplo de “em torno da cebola / o ar é tenso de lágrimas”, “escrever a contrapelo do papel”, “espaço exíguo entre o sonho e o osso” ou “tudo que sobe desce / tudo que dói é possível”.

Tento entender que este seja seu pretendido exercício em busca de uma “dignidade da língua viva”. Diz o poeta haver adquirido “uma forte ojeriza pela poesia brasileira do século passado”, o que revela a mesma postura impulsiva e desprovida de conhecimento de seus pares. Justifica a opinião com base no que chama de “linguagem elevada e poética”, segundo ele característica de tais momentos de nossa literatura. Opinião pomposa e vazia, como (de resto) toda xenofobia.

Ao apresentar Trovar claro, Augusto Massi acentua o pudor no tocante ao que chama de “predileção por composições de forma fixa”, deixando claro que Henriques Britto é “contra a fatura formalista”. Ora, todo o livro é composto de versos medidos, variando apenas a contagem de linhas. Ali nem mesmo a rima é dispensada, em clara aventura retórica. Não encontro, portanto, dignidade alguma em tal defesa da poesia.

Henriques Britto declarou ainda que a “falta de sensibilidade para o sublime e o místico” o levou a “valorizar a razão, a linearidade e a comunicabilidade”. Esquece-se, no entanto, que graças à delimitação arbitrária de tais conceitos é que estabeleceu-se uma cultura do rebanho, o que nos põe de volta ao “discurso rápido” que gerou toda a superficialidade em curso. Ao contrário de uma poética concentrada e exímia em sua sintaxe, segundo o

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apresentado em livros anteriores, a exemplo de Liturgia da matéria (1982) e Mínima lírica (1989), Paulo Henriques Britto, através deste novo livro, assemelha-se a tudo quanto questiona.

 

Mar anterior, de Sérgio Campos

 

Somente a paixão é suficientemente cruel para nos trazer de volta à vida. Celebrá-la é dar-nos a ilusão de que podemos reconquistar os prazeres perdidos. A representação, neste sentido, tem o dom de nos reconduzir ao caos original, ao palco de trevas em que fundamos todos os deuses, à casa da ardilosa solidão que nos multiplica em seres doados aos mistérios vorazes do mundo. No pulsar cíclico das representações, na convulsiva ordem de seu canto, caminhamos ao encontro da poesia. Sempre a ilusão de retorno a um tempo que jamais viveremos. Reside aí uma paixão solene que nos leva às palavras, sem que através delas jamais alcancemos desvelar nosso destino. Um teatro sombrio do ser entregue às mãos da poesia. Esta encantação sutil e dolorosa é o que nos revela, em particular, a obra poética de Sérgio Campos.

Nascido em 1941, Campos nos traduz a imagem de um poeta obstinado pela criação como atividade reveladora do espírito. Rigor e substância encontram-se nele empenhados na leitura dos mínimos gestos que nos delimitam. Compromisso sólido, mas sobretudo uma paixão. Como ele próprio assegura: “Diria que a experiência com as palavras define o poeta. Ele precisa ter uma relação especial, única em relação a elas. Precisa delas como do próprio ar, de ouvi-las em busca de novos sons, poli-las, redescobrindo sob o azinhavre a legenda dos mitos, dispô-las em conjuntos para observar seus conflitos e conciliações, povoar delas seu pátio de utopias.”

O mais que se diga soará como uma sala de ecos. Os fios encantados da linguagem movimentam a usina de sentidos em que urdimos o cenário de nossa precária existência. A poesia é nosso prato de sonhos e também a lanterna perdida cuja luz sutil o acaso nos aponta. A grave contingência de tudo quanto idealizamos. Em um poema debruçado sobre a

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mítica górgona, Sérgio Campos assim desfia sua voz: “Nossas imagens oscilam / somos o risco de nos perder / entre homens deuses e animais”. A poesia é um inestimável amuleto em nosso trânsito incerto pelos reinos de Hades. Em outro poema nos revela uma imagem que é a própria súmula de sua poética: “Orfeu regendo os remos de Argos”. O poeta em um ofício de sombras, erguendo com o canto uma outra dimensão do abismo ulterior de que nos alimentamos.

Os poemas são movidos pela memória, são sua expressão coerente, constituem (corpos de linguagem) o fundamento do tempo que inauguramos a cada experiência. Ruptura e integração: através de tais margens instauram uma consciência crítica, erguem uma síntese de investigações. Não vivem da imagem encontrada, mas sim do abismo entre a origem e o testemunho, ao mesmo tempo em que sua razão sustenta-se em constantes interrogações. O curso temático desta poesia, ao eleger como recursos uma predileção de ordem helênica e o que Ivan Junqueira tão bem situa como “delicada fiação de enredos que se diriam domésticos”, o faz acentuando essa fundação da palavra a partir da memória. Contudo, se o mundo verbal é, como em Góngora, uma negação do mundo real, aqui também se poderia falar em afirmação de uma realidade outra, enriquecida pela memória e o curso incessante de seus descobrimentos, como se dá, por exemplo, na poesia do cubano José Kozer (1940).

Além disto, prima Campos por uma concisão verbal, sendo por ela pautado seu esplendor. Para ele, o excesso consiste em um exercício absoluto de economia de meios, cujo duplo curso temático mencionado instaura uma tensão que nos conduz a uma aventura de natureza ontológica. Se até Móbiles de sal (1991) essas duas vertentes temáticas apenas compartilham a trilha existencial dos livros, experimentam em A cúpula e o rumor (1992) uma audaciosa e feliz comunhão. Mitologia doméstica – elogio crítico da casa e seus elementos, recantos e cintilações –, aliada a um ideário épico de exílios e conquistas: eis aqui a lúcida jornada imaginário adentro, caminho que o aproxima cada vez mais do sentido essencial de uma religiosidade cósmica – fonte inaugural de toda poesia –, inseparável de uma exaustiva exigência de procedimentos, recursos, ordenações. San Juan de la Cruz, Hölderlin, Perse, José Ángel Valente – seus vigorosos companheiros de viagem.

A tendência helenizante aqui referida – cujo registro se faz sobremaneira com os recursos da parábola e da alegoria – torna-se singular na poética de Sérgio Campos exatamente por sua grande potência lírica. A presença quase constante de um narrador, e seus recontares a bordo de um abismo pessoal – o confessional só se realiza em seu transbordamento, em sua voragem –, destaca-se pelo lirismo inquietante com que tece sua trilha. O próprio poeta melhor situa tal virtude ao referir-se a ela como um “lirismo fabular”, aventura enriquecida ainda mais pela paixão etimológica, um notável empenho de restauração da dignidade da palavra, dever natural de todo grande poeta.

Desta maneira, há que se por em destaque uma profunda arqueologia da forma – sem, contudo, sobrepor-se à sua alma gêmea: o conteúdo –, expressa em variadas utilizações de sonetos, tercinas, sextinas, e com acentuada inclinação rítmica, cumprindo assim um desafiante percurso polarizado pelo classicismo e a modernidade. Trata-se, portanto, de uma poética de múltipla abrangência, cuja revelação em curso nos traduz um dos caminhos mais valiosos da poesia brasileira em todos os tempos.

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Meses antes de uma morte prematura, em 1994, Sérgio Campos publicou Mar anterior. Poesia selecionada e revista 1984/94. Mais do que simples seleção de poemas de outros livros, aqui podemos falar de um livro outro, onde os poemas, além de revistos, apresentam nova disposição, atendendo aos temas que se mostraram, ao largo de dez anos de produção, mais entranhados em sua obra. A leitura deste livro confirma o que já havia assinalado anteriormente, ou seja, a incidência de uma epopéia íntima, como característica fundacional de uma relevante poética. O próprio autor assim o comenta, em nossa correspondência pessoal: “realmente, o epos se coloca em in-tensão no poema que, no entanto, não é heróico, mas em essência lírico, o que lhe dá essa sensação de intimismo”.

Em permanente estado crítico, Sérgio Campos publicou uma plaquette intitulada Ponto & contraponto (1992), lugar de diálogo com um ensaio do espanhol Antonio José Trigo, configurando-se naquilo que o próprio autor denomina de “subsídios para uma poética”. Ali revela convicções e inquietudes, a opção “por uma poesia que incorpore elementos da modernidade, na dinâmica geral dos conteúdos, com extremo rigor formal”, a lembrança sempre necessária de “que a poesia é arte da palavra, que a palavra é o ser da poesia”, a primordialidade do tempo da leitura e a defesa de uma escritura poética de natureza ontológica que estabeleça uma projeção do humano, que o sublinhe como elemento fundante de toda poesia. Por tais e encantados fios conduziu sempre sua palavra.

 

Inventário das sombras, de José Castello

 

Segundo o louco Arthur Bispo do Rosário, a luz não passa de “uma embalagem, uma espécie de truque com que Deus enganava os homens, sendo o mundo feito só de escuridão”. Considerado um artista, Bispo percebia à sua volta um mundo sem contraste, decerto uma notável crítica ao catolicismo em que radicava sua loucura, ao qual opunha uma firmeza nominativa.

Exata compreensão desse inventário silencioso de Bispo do Rosário encontramos no mais recente livro do escritor e jornalista José Castello, Inventário das sombras (Ed. Record, Rio

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de Janeiro, 1999). Ao escrever sobre o artista louco, Castello define-lhe a obra como “um dicionário de coisas, em que nenhum objeto, nada podia faltar”.

Com igual e obsessiva persistência buscam o nome certo de cada coisa ou sensação. O louco esmera-se em afinar sua percepção, considerando-a mais essencial que a visão. O escritor enfatiza a existência humana a partir do risco de invulgares retratos. Ambos, buscam a plenitude da palavra, inventariando a si mesmo.

Tal perspectiva é o que torna o livro de José Castello algo mais do que mera atividade jornalística. Não importa a pontualidade, a trama fatual, mas sim a profundidade com que recolhe as sombras a que dedicou uma vida. Não de outra maneira teceu este livro, o que não impede que tenha apanhado sua matéria bruta nas entrevistas feitas para jornais e revistas. É outra agora a condição que essa matéria alcança.

A distinção a encontramos quando da leitura conjunta desses perfis de sombras. Castello deu forma a um verdadeiro elogio da solidão, consolidando tal sentimento como uma razão secreta da criação, longe de qualquer leitura piegas do mesmo. Temos ali a solidão como a raiz de uma busca exasperada por si mesma. E Castello, com exímia sagacidade, utilizou-se de tal fio para percorrer o labirinto da criação poética. Não fosse o bastante, ilumina ainda algumas geniais áreas obscurecidas de nossa cultura.

O livro é um relicário das inúmeras e preciosas maneiras de embate que um escritor assume, diante do papel e de seu tempo, por vezes única forma que encontra para que possa entregar-se ao ânimo ou ao transe no qual escreve. Escritores são frutos da solidão, ao mesmo tempo em que os escritos insurgem-se contra ela. No entanto, serão esses mesmos escritos que revelarão a profundidade dessa aparente contradição.

Antes de seguir em tal abordagem, enumero os retratados pela aguda sensibilidade de José Castello, uma galeria que pode eventualmente despertar alguma incompreensão, pela falta de conexão visível entre os componentes. Clarice Lispector, João Antônio, Caio Fernando Abreu, Alain Robbe-Grillet, Hilda Hilst, Manoel de Barros, Nelson Rodrigues, Adolfo Bioy Casares, Raduan Nassar, Ana Cristina César, José Saramago, Dalton Trevisan, José Cardoso Pires, João Rath, Arthur Bispo do Rosário.

Antonio Gonçalves Filho refere-se ao “absoluto desprezo pela literatura”, encontrado em alguns personagens abordados por José Castello, como exigência de uma “redefinição da literatura no limiar do novo milênio”. A perspectiva de um novo milênio nos enche de exagero. O termo “literatura” se renova por si só. Entendido como retórica, foi sempre combatido. Caso contrário, não há no que contrariá-lo. Não radica aí a importância do livro de Castello.

A notável contribuição diz respeito à forma cortante com que avalia a relação entre escritor, obra e leitor, misteriosa conexão cujo ponto de partida não se encontra jamais com a marca de chegada. Castello propõe-se a reduzir abismos, tendo escrito o livro de um grande leitor, que nos leva a entender ser esta a maneira mais lúcida de encarar a criação: entregar-se a ela, ser seu leitor. O livro é um elogio da leitura, na forma de apaixonada travessia pelos bastidores dos livros.

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O jornalista não deve escarnecer pura e simplesmente por uma veleidade do motejo em si. Sua crítica deve superar o raio minúsculo do fatual e o âmbito desprezível da vaidade. Deve, enfim, imobilizar ou distrair as rédeas do “jornalismo”, termo igualmente caprichoso.

Inventário das sombras é uma descida aos porões invisíveis da imagem construída em torno dos quinze autores ali retratados. As reentrâncias guardam súplicas retraídas, rancores enviesados, golpes de influências, confissões de preguiça, ócios desmesurados, retratações de carnificinas, um empório latente de situações que definem, nunca em isolado, a verdadeira máscara do escritor.

Não se trata de uma análise da “criação literária no Brasil”, segundo quis Gonçalves Filho. Atesta o erro a presença de dois portugueses, um francês e um argentino em sua galeria. Castello poderia mesmo ter montado um livro que argüísse sobre as condições de nossa literatura. Teria realizado algo ainda mais percuciente. Outra era a meta: a configuração de retratos que permitam um diálogo com o inferninho que define a criação artística. Súmula de angústias, vaidades, inquietudes, decepções, indignações.

Destacar um capítulo seria criar um sentido hierárquico, o que o autor quis evitar, dentro do inevitável de enumerá-los. Mesmo a menção inicial ao Arthur Bispo do Rosário atende a outra instância. A palavra-chave segue sendo “solidão”, terra inóspita de onde surge toda a criação. Em tal garimpo, José Castello enxergou as trilhas invisíveis que o levaram de um ponto a outro do labirinto de sombras em que repousam as figuras reconquistadas.

 

Eva e os padres, de Georges Duby

 

Ao concluir Eva e os padres (Cia. das Letras, trad. Maria Lúcia Machado, 2001), o historiador Georges Duby observa acerca da resistência das damas do século XII – tema central do livro –, “adivinhando-as fortes, bem mais fortes do que imaginava, e por que não, felizes, tão fortes que os machos aplicam-se em enfraquecê-las pelas angústias do

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pecado”. Tal condição apenas adivinhada encontra razão de ser no próprio mapeamento histórico do período, sobretudo se tomarmos em conta a reforma por que passava a Igreja, empenhada em impedir que os padres seguissem casando ou simplesmente vivendo com concubinas.

Coincidindo com o momento em que Pedro Abelardo se vê considerado herético pela escritura da Teologia, obra que sugere uma aplicação da análise lógica na compreensão da metafísica, o Concílio de Latrão, sob a regência do papa Calisto II, se realiza por três vezes, no século XII, restabelecendo severa disciplina para o corpo eclesiástico. O princípio dialético levado a termo por Abelardo logo seria desenvolvido por Graciano em Decretum, que tinha por subtítulo A concordância de cânones discordantes, espécie de carta jurídica que adotaria a Igreja, baseada na aproximação de afirmações contraditórias, visando uma ambigüidade de interpretação que fatalmente permitiria toda ordem de manipulação.

Temos no século XII um daqueles essenciais entroncamentos da história da humanidade, em que os poderes se reorganizam e redefinem normas e procedimentos. Se a Europa Ocidental então vivia o que se chamaria de renascimento do saber, é preciso entender que tal saber, mesmo que se realizasse no âmbito da medicina, da filosofia e das artes, em muito privilegiou o florescimento de uma teologia que acabaria encontrando na mulher a vítima ideal para os interesses de afirmação de uma nova ordem.

A primeira das considerações a ser feita neste sentido diz respeito à recorrência, por parte da Igreja, à definição de pecado, tomando por base uma mescla de conceitos envolvendo homem/mulher, masculino/feminino, razão/emoção, dicotomias já de muito suspeitas, embora sempre funcionais quando se quer confundir para melhor governar. A adivinhada força da mulher, que menciona Duby, estava clara em textos da época que referem-se ao rigor feminino e à indulgência masculina quando se trata de aspectos ligados à sexualidade. Uma vez mais se observava a relação de interposição da mulher entre Deus e o homem, criador e criatura, interferência da ordem de uma outra dualidade: sagrado/profano.

Tais dobras existem e requerem discussão menos dogmática. Em todas as culturas encontramos relações entre forças complementares. A Igreja, no entanto, baseada no princípio (uma imagem consubstanciada) da Queda, nos persuadiu a todos de que não há relação de complementaridade sem a presença da submissão. Estabeleceu-se então que tal submissão recairia sobre a sexualidade (sensualidade, parte animal, o Diabo). A alusão indispensável à figura mítica de Eva condicionava a existência humana a três atos: criação, tentação e punição. A instituição do pecado tornava-se assim uma das mais sagazes invenções do homem, não resta dúvida, com sutilíssima aplicação até os dias de hoje.

O dualismo empregado pela Igreja no século XII estabelecia uma relação direta entre criador e criatura, relação interferida ou desordenada pela presença da mulher. O homem seria o espírito, a mulher a carne, cabendo uma relação de subordinação desta em relação àquele. Tal maniqueísmo esteve no discurso dos principais teólogos do século e naturalmente Duby baseou-se em vários deles para escrever Eva e os padres.

Diz ele próprio: “No século XII, o cristianismo não é mais tanto questão de rito, de observância, quanto de conduta, de moral. A expansão das práticas da penitência íntima

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torna mais urgente a pergunta: o que é o pecado?” Ao considerar o desejo como algo passível de castigo, fortalecendo a defesa de que a expulsão de Adão do paraíso foi provocada por um excesso de apetite de prazer, ainda hoje as relações de afeição se sentem prejudicadas pela idéia de submissão, assim como a condição de risco em relações políticas ou econômicas é evitada ou manipulada sob pena de se comprometer a própria integridade do que se busca.

Quem eram essas “sombras, vacilantes, inapreensíveis”, que averigua Duby nas inúmeras leituras de documentos da época? O que definiria o adultério como uma inclinação da mulher? E como tantas esposas se mantiveram fiéis aos maridos ausentes durante as Cruzadas? E onde se lê que todos aqueles padres casados freqüentavam um único leito? Em momento algum a razão se sentia atraída pela impudicícia? E as religiosas guardadas por Deus nos conventos acaso não cediam a pecaminosos desejos? Onde os documentos que se referem às relações homossexuais do período?

O que se dizia então era que a sexualidade encontrava-se na ponta de toda transgressão da lei divina. Mas não havia tal lei, e sim um conjunto de decretos que se impunha, com base em imagem fraudada da mitologia cristã. Mesmo quando a Igreja define uma nova condução apropriada para o casamento, não se vê aí senão uma solução melhor do que a fornicação sem rédeas. O casamento foi assim incluído como sétimo sacramento por uma estratégia de compreensão das forças de sujeição/dominação.

Eva e os padres possui uma espinha dorsal interessante. O livro se baseia em leituras de alguns documentos de época, expõe a condição de tratamento das mulheres em aspectos que se referem aos conceitos de pecado, queda e amor, a eles acrescentando a maneira como o corpo eclesiástico se dirigia a essas sombras raptadas, recorrendo aqui a metáfora utilizada por mim em um poema dedicado à condição feminina sob o jugo do cristianismo.

O francês Georges Duby (1919-1996) encontra-se vinculado ao movimento dos Annales, corrente de averiguação histórica criada em Paris, em 1929, por Marc Bloch e Lucien Febvre, onde viria a se destacar como uma das principais autoridades no conhecimento do Medievo. Ao referir-se a ele, José Mattoso observou o respeito pela “hierarquia dos fenômenos históricos”, bem como o reconhecimento do “efetivo significado, sem confundir regras com exceções, fatos e dados majoritários com outros minoritários, correntes dominantes com desvios, permanências com mutações”.

Em entrevista a François Ewald (Magazine Littéraire, Paris, 1987), ele próprio situava a visão do referido movimento: “A história segundo Bloch e Febvre havia repelido a histórial fatual, a história militar e local; ela havia posto à parte os problemas do político. Eis que, após a travessia necessária de uma história que se debruçava sobre os movimentos profundos das estruturas, e sobre os choques mais bruscos da conjuntura, voltamos, depois de ter compreendido melhor o que eram a economia e a sociedade, a colocar os problemas da evolução política sob luz mais intensa”.

O estudo tripartido da sociedade medieval – “os que rezam, os que guerreiam e os que trabalham” – permitiu uma compreensão mais nítida das correlações entre esses estamentos sociais, sobretudo se pensarmos, como recorda Peter Burke, em A escola dos Annales

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(UNESP, trad. Nilo Odalia, 1997), que tal concepção tripartida “foi uma arma nas mãos dos monarcas, que proclamavam concentrar em sua própria pessoa as três funções básicas”. Burke salienta ainda que, para Duby, a ideologia não deveria ser vista como um “reflexo passivo da sociedade”, mas antes como “um projeto para agir sobre ela”.

Há uma citação chave em Eva e os padres: “Não é aventurar-se demais comparar a comoção das consciências determinadas pelo progresso da pregação à incidência da mídia de hoje”. As alianças políticas, por exemplo, se fundam no mesmo princípio do matrimônio, ou seja, o de “extinguir as exaltações do desejo”. Já não se trata de pura e simples dialética. Duby recorda um tratado da época que considerava três táticas: alcançar o amor, vivê-lo e livrar-se dele.

Então os violentos impulsos da carne estavam definidos por outra instância. Que as mulheres assumiam uma importância social tanto no resguardo de uma integridade matrimonial (no caso das esposas dos cruzados) quanto na assunção de novas maneiras de ser, nenhuma dúvida. A Igreja transformou em violência todas as afirmações ou descobertas de uma condição inaceitável. A mulher não estava mais condicionada pelo papel determinado pela Bíblia. O notório e alarmante paroxismo seria deflagrado nos séculos seguintes, quando da perseguição e dizimação das bruxas.

Em O diabo – a máscara sem rosto (Cia. das Letras, trad. Laura Teixeira Motta, 1998), o ensaísta Luther Link anota que “a mudança isolada mais importante do início do século XII foi a concentração de poder nas mãos do papa e do imperador”, logo considerando que “ambos deixaram de lado as desavenças e se uniram para julgar e separar os povos da Europa em abençoados e condenados”. Este é o momento exato em que se estabelecem normas de combate ao que essas duas forças determinam como sendo heresia. A carta de fundação seria o decreto Ad abolendam, assinado por ambos poderes, na verdade um índice de hereges que deveriam ser buscados e condenados.

Menciono tais fatos pela razão simples de que o quarto concílio de Latrão já tratava de fortalecer as condições operantes da Inquisição, ou seja, em meio a todas as observações que Duby faz em torno da condição da mulher já se desenhava um dos mais violentos períodos da história da humanidade, comparável decerto ao extermínio de judeus no século XX.

Em outro momento caberia observar como a cantoria da época descobriu uma maneira de dizer que a mulher caiu, mas que o fez com alguma honra. A arte quase sempre foi subjugada pelo poder ou, quando menos, compactuou com a situação. Os artistas seriam tão indicados quanto os clérigos para prestar depoimento aceitável acerca das mulheres. A história tem sido invariavelmente escrita por homens. Qualquer menção a uma perspectiva da mulher soa como blague. O homem segue sendo o feitor da história e a mulher sua vítima. O tema naturalmente deixa em aberto o que se poderia compreender em termos de um dualismo ainda hoje mal assimilado: masculino/feminino.

Duby conclui Eva e os padres com uma frase reveladora: “foram eles que as deixaram escapar”. Mas não se refere à mulher em si, antes à metade amputada pelo castrador conceito da Queda. Ele próprio diz que procurou “perceber melhor a maneira pela qual os

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homens de Igreja representavam-se as mulheres”. A representação se dava em nome de uma nova Igreja que se reformava. Talvez tenha faltado a Duby, neste livro, uma veemência no tocante à condição vilipendiosa da Igreja em relação à mulher. Não uma falha propriamente, mas antes uma confessa vontade de ouvi-lo a este respeito.

 

Poemas, de Seamus Heaney

 

Segundo a tradição irlandesa, ao ollave (mestre em poesia) cabia compreender e revelar a verdade poética, de maneira que a figura do poeta possuía um caráter sagrado. Basta lembrar que o ollave sentava-se ao lado do rei à mesa e, assim como a rainha, podia estampar na roupa até seis cores. O profundo conhecimento da história e do valor mítico das palavras de que era possuidor justificava a razão de tanta reverência. Por outro lado, como recordara Robert Graves, os poetas ingleses “sentem-se obrigados a desculpar-se por sua profissão salvo quando atuam em círculos literários”. A razão disto, ainda segundo o poeta inglês, é que “a ciência poética inglesa é de terceira mão, pois está tomada, através dos romances franco-normandos, de antigas fontes britânicas, gálicas e irlandesas”, concluindo: “isto explica por que não se mostra a mesma reverência instintiva pelo nome de poeta no campo inglês que nas partes mais remotas de Gales, Irlanda e as regiões montanhosas”.

O irlandês Seamus Heaney (1939) pertence justamente a uma antiga tradição celta de bardos religiosos que não integravam nenhuma ordem religiosa, mas que assumiam para si a representação mitológica da região em que viviam. A leitura de um livro como Sweeney astray (1983), assim como de uma série de poemas incluídos em Station Island (1984), a que intitulou “Sweeney redivivus”, é bastante reveladora desta identificação com a tradição. No primeiro caso, trata-se de tradução do poema medieval Buile Swibhne, texto que simboliza os valores culturais celtas, através da polarização paganismo/cristianismo. Já o segundo, ainda que baseado nos mesmos manuscritos irlandeses, mostra uma voz poética despojada do contexto original, buscando uma atualização do mesmo. Nos dois casos, estamos diante da peregrinação de Sweeney, o amaldiçoado, e suas inúmeras privações,

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representação mitológica da figura do poeta levada a termo por Heaney.

Este poeta, Seamus Heaney, tem sido um notável defensor, através de sua poesia, de uma máxima que estampa um dos livros básicos da tradição celta: O Livro Vermelho de Hergest, onde lemos que “três coisas enriquecem o poeta: os mitos, a faculdade poética, uma provisão de poesia antiga”. Ver nesta poesia apenas um mero registro poético do cotidiano, aliado a algumas pinceladas de conhecimento histórico, é quando menos uma miopia, sendo mais correto ver aí uma distorção de seu verdadeiro trabalho poético. Heaney, com suas letras-árvores (as duas palavras possuem idêntico significado na tradição druídica), restaura os antigos mistérios poéticos, dando-lhes atualidade e dignidade incontestes. Sua poesia, através da inseparável teia que une tema e linguagem, possui tamanha força restauradora que nela sentimos a presença inconfundível da tradição que a constitui.

É o cantor de sua terra, não há dúvida. Porém é sobretudo o poeta que reacende o fervor da poesia, que reaviva os mistérios agudos da condição humana e do mito poético. Como diz ele próprio em um poema, seu trabalho está em saber “escutar um rio nas árvores”. E o faz sempre pondo em diálogo visão de mundo e páginas essenciais da memória, tradição e conhecimento antigos. Nos “Sonetos de Glanmore”, menciona a existência de “vogais lavradas em outras”. Em outro poema, “Alfabetos”, enfoca o périplo de um escriba até que aprenda a escrever o próprio nome. Nestes e em outros inúmeros textos, a presença de um dos mais fundamentais manuscritos da tradição irlandesa, o Câd Goddeu (A batalha das árvores), não como influência fugaz, mas antes como identificação de um sentido poético.

A coletânea de poemas de Seamus Heaney que ora se publica no Brasil tem, por assim dizer, uma grata importância: a de nos revelar um poeta raro, cujo domínio da escrita iguala-se ao prazer da revelação de seus enigmas. Embora a edição apresente algumas pertinentes notas ao final, os poemas de Heaney explicam-se por si mesmos, como é indispensável em toda grande poesia. Refazem o trajeto de um homem pelo interior de seu país e também pelo interior de si mesmo. E o relato desta peregrinação tem sido a grande colheita de Seamus Heaney, nela radicando sua importância e não no reconhecimento circunstancial de distinções como o Nobel de Literatura (1995) ou a recente medalha da Ordem das Artes e das Letras (1996). Em um dos poemas, ele próprio deflagra tal situação: “o solo a nos suster parecia manter-se firme / somente quando o abraçávamos in extremis”. E conclui, no mesmo poema, a título de emblema de sua própria poesia: “tudo o que creio lá ter ocorrido foi uma visão”.

 

O fio de Dédalo, de Ivan Junqueira

 

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Em entrevista que fiz ao poeta Ivan Junqueira (1933), ao conversarmos sobre a utilidade da crítica literária, observou que a mesma “deve ser um ato de empatia e compreensão, pois, caso contrário, jamais poderemos entender como se escreveu uma poesia que não é a nossa”, acrescentando que “nada supera o prazer de alcançar esse nível de entendimento, sobretudo quando maiores são as diferenças entre a nossa própria obra e a alheia.”

Ali concordamos quanto ao que defende um outro crítico, o espanhol Jorge Rodríguez Padrón, ao entender que um dos aspectos mais fundamentais da crítica é o de alertar sobre os limites a que pode haver chegado determinada produção literária. Basta pensar que o poeta, com sua palavra, busca iluminar justamente aquela zona ainda obscura da linguagem. Desta forma, caberá ao crítico leitura a um tempo distinta e aproximativa, porém nunca judicativa, do alcance dessa iluminação.

Se pensarmos em ensaios como “Bilac: versemaker” (O Encantador de Serpentes, 1987) e todo um largo capítulo de O Signo e a Sibila (1993) intitulado “O modernismo e seus herdeiros” – onde, após um recorte sobre o que representa tradição e ruptura naquela instância basilar de nossa literatura, desmonta a obra de poetas como Bandeira, Drummond, Vinícius e Gullar –, entenderemos que este tem sido o contributo mais eficaz do exercício crítico de Ivan Junqueira, não esquecendo aqui a referência ao prólogo de Os melhores poemas de Dante Milano (1998).

Dentre os exemplos mais notáveis desse percurso de identificação dos alcances da criação literária no Brasil encontramos na publicação de O Fio de Dédalo (Record, 1998), em ensaios sobre Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e José Lins do Rego, que se destacam dos demais justamente por seguirem cumprindo com aquela sempre arriscada função de uma leitura crítica que seja ao mesmo tempo aceitação e resistência, que estabeleça vínculos com o objeto do estudo sem contudo lhe ser submissa.

Estruturalmente, O Fio de Dédalo apresenta um recorte tríplice, abrangendo poesia, ensaísmo e tradução. Discute, portanto, as três zonas hoje inseparáveis do exercício criativo de todo grande escritor. Se tomarmos em conta que o terceiro capítulo é um diálogo justamente centrado no exercício da tradução, à exceção das resenhas a livros de Ernst Robert Curtius, La Fontaine, Wolfgang Iser e Malcolm Bradbury, a notável conferência sobre sóror Mariana Alcoforado e o largo estudo “A poesia britânica no século XX” – todos estes inclusos nos capítulos iniciais –, a verdade é que O Fio de Dédalo é preciosa contribuição de Junqueira ao entendimento do que se passa com nossas letras.

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As resenhas sobre Literatura européia e Idade Média latina (Curtius) e O romance americano moderno (Bradbury) – em respectivas traduções: o primeiro, de Paulo Rónai e Teodoro Cabral; o segundo, de Bárbara Heliodoro – bem poderiam ser deslocadas para o capítulo final, excluindo os demais textos. Não feito isto, temos aí o pecado único de O Fio de Dédalo, deslize que não lhe permite alcançar uma unidade desejável, a de ser um espelho crítico da atividade literária no Brasil, seja pela argúcia de sua pena quanto pelo constante entendimento de que não há crítica sem risco.

E este “supremo risco” que pratica uma vez mais nos leva à discussão do recorrente abismo da criação poética no Brasil, sobretudo no que se abstrai dos prefácios a livros recentes. Sobre Antevéspera do anjo (Márcio Tavares d’Amaral, 1995), refere-se à sua “intrínseca e funda religiosidade, vertente esta, aliás, quase extinta na poesia que hoje se escreve entre nós”, logo remetendo a “um acento elegíaco, também muito raro em nossa poesia atual”. No intróito a Íris breve (Álvaro Mendes, 1996), menciona a impossibilidade de vincular este poeta “ao metaludismo concretista, à poesia alternativa dos anos 70 ou ao que restou do naufrágio a que sucumbiu a instauração-práxis”. Já sobre Umbrais (Ayrton Pereira da Silva, 1997), observa que o autor não compactua com “nenhum desses contumazes e ardilosos feux-d’artifice verbais em que se comprazem e se perdem incontáveis de nossos poetas”.

Não bastasse o risco no diálogo tecido com obras de rareada repercussão em nossas letras, a partir delas Junqueira salienta a visão de um impasse: gasto por completo o modelo teimosamente em curso, ou o revemos com seriedade ou não teremos como seguir adiante, restando-nos o epigonismo e a autofagia. No prefácio a Poemas ordinários (Frederico Gomes, 1995), avalia: “A produção mais recente de nossa poesia, ao contrário do que ocorreu durante os movimentos de 1922 e 1945, reflete uma carência de programas literários ou ideários estéticos em torno dos quais se pudessem reunir os adeptos dessa ou daquela doutrina poética”.

Se em O Fio de Dédalo importa ainda comentar o convite à discussão em torno do ensaísmo e da tradução, justifico que enfatizei a abordagem da criação poética tanto pela essencialidade de sua visão crítica como pela concordância de que “a poesia é a mais difícil, complexa e misteriosa manifestação do espírito humano”. Contudo, ressalto o valor imponderável do capítulo dedicado à tradução, onde Junqueira comenta a pertinência técnica e indispensável razão de ser de algumas traduções – sobretudo de origens francesa e inglesa – que nos chegaram.

É óbvio que o labirinto convida à exegese, como por igual que toda escritura poética é labiríntica. Nenhuma instância humana sedimenta-se sem que se desdobre ou ramifique: não haverá outra forma de enfrentar o dilema da própria existência. O que propõe O Fio de Dédalo não é, segundo entendo, uma viagem iniciática, mas antes a discussão sobre o princípio e o fim da criação poética, salientando sempre que não há habilidade desgarrada de sua função, ou desejo sem visão. E, claro está, nunca há verso desprovido de seu reverso. Eis o que nos ensina este Dédalo por um fio.

 

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Baudelaire, Eliot, Dylan Thomas: três visões da modernidade, de Ivan Junqueira

 

O poeta Ivan Junqueira, que sempre se dedicou ao exercício do ensaísmo e da tradução, e certamente não haverá distinção entre essas três atividades que tão bem desenvolve, ao traduzir a poesia de Baudelaire, Eliot e Dylan Thomas, em distintas épocas de sua vida, sempre as acompanhou de criteriosos estudos acerca da obra de cada um. Tais estudos encontram-se agora reunidos em uma valiosa edição, que tanto confere o irrestrito entusiasmo do brasileiro no tocante a seus íntimos interlocutores, como propicia – e eis aqui sua condição essencial – uma leitura conjunta de três momentos decisivos na poesia no Ocidente.

Se é verdade que nos três poetas de que trata o livro encontramos uma imperiosa presença, que os torna paradigmáticos, deve também ser compreendido que não constituem as três vozes principais da modernidade, mas antes – como o próprio título alerta – três visões desse mesmo espectro. Se a voz de Baudelaire é a que mais se aproxima de uma condição cimeira, hoje inequívoca, de fundação da modernidade, igual importância, ainda que salvaguardando os desdobramentos de época e estilo, não se pode dizer de Eliot e Dylan Thomas, sem dúvida poetas de notável envergadura, mas que encontram em alguns de seus contemporâneos igual ressonância.

De qualquer maneira, é outra a intenção da presente edição, sequer afeita a instâncias idiomática ou geracional. Logo no prólogo Junqueira evoca aquelas condições imperiosas que individua cada um dos poetas eleitos por sua própria compreensão estética. Seria interessante verificar se as distinções entre eles superam as aproximações.

Eliot era mais direto em suas afirmações no tocante ao convívio do poeta com a realidade à sua volta. “Em épocas diferentes existem possibilidades diferentes de se ganhar a vida ou limitações diferentes para se ganhar a vida”, dizia em entrevista a Donald Hall. Segundo Paul Éluard, Baudelaire havia feito uma opção lúcida pela afirmação do contraditório: “Este imenso poeta desvela, simultaneamente, os rostos contrários, que refletem seu gênio”.

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Thomas, por sua vez, defendia que a poesia deveria ser pessoal mas não particular, “dissolvendo o indivíduo na massa e a massa no indivíduo”.

Evidente que as palavras de Dylan Thomas o aproximam daquilo que Junqueira nos lembra ser característica primordial de Baudelaire: o “trânsito do lirismo pessoal ao lirismo da persona”. Mas não o aproxima, e nem a Baudelaire, daquela condição de “caso-limite de poeta consciente” em que situa Eliot. Não que tenhamos nos dois outros uma espécie de antagonismo. Mesmo a “indestrutível ordem interna” a que se refere Junqueira como inconfundível na poética de Thomas é fruto de uma desordem existencial, o que o aproxima daquele “fundo orgânico do ser” que Breton mencionara em relação a Baudelaire.

Por alguma razão que não cabe aqui tentar entender, mas antes seguir evidenciando, o Surrealismo tem sido mal compreendido no Brasil. Logo no prólogo de seu livro, Junqueira se mostra incrédulo quanto à influência de Baudelaire no que respeita ao Surrealismo – o mesmo em relação ao Expressionismo. Breton via em Baudelaire o tradutor das “poderosas emoções” que nos possuem a todos, para “uma linguagem que modela sem deixar-se romper por elas”. Uma lição tão cara aos surrealistas, que outro paradigma encontraria na poesia francesa?

Já no caso de Dylan Thomas, sua reputação, decerto que bem mais do que a poesia, o aproximou da Beat Generation e não do Surrealismo, no que pese suas relações com David Gascoyne, que Junqueira apropriadamente lembra ser o “líder inglês do surrealismo naquela época”. O entendimento do rigor com que um poeta se lança sobre sua escrita, com que se determina a desvelar um dilema existencial a partir dela, por vezes tem levado a um engano na leitura de qual seja – se é que há uma em isolado – a raiz da poesia.

Baudelaire, Eliot e Thomas constituem mais apropriadamente um rol de dissidências internas, ou de consubstanciação de distintas visões de uma mesma modernidade, entidade algo improvável de ser postergada, sendo bastante verificar o engodo que constitui a chamada pós-modernidade. De alguma maneira, os três poetas evocados por Ivan Junqueira são o que Karl Shapiro disse a respeito de Thomas, comparando-o a Hopkins: lobos solitários. Fundamentais em suas épocas, simbolizam o que há de mais valioso – que não se resume a eles –, a compreensão de que a existência humana se revela sempre para além dela mesma, que a história se faz conjugando a simultaneidade de seus tempos.

Eis o que este livro de Junqueira propicia em sua essência: a condição de leitura conjugada da importância da obra e do comportamento de três poetas fundamentais ao que hoje entendemos por modernidade em se tratando de poesia. Trata-se de um livro que pede outros. Assim são os livros. Não querem jamais se encerrar em si mesmos.

 

A tessitura dissimulada (O social em Clarice Lispector), de Neiva Pitta Kadota

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A publicação de um livro sempre se revela o momento ideal para revermos o tratamento que se tem dado ao tema ali abordado. Estamos diante de A tessitura dissimulada (1997), estudo de Neiva Pitta Kadota em que busca analisar certos aspectos da obra de Clarice Lispector (1925-1977), cuja ausência entre nós completa exatos vinte anos.

Particularidade essencial na obra de Clarice é a afloração do feminino, anunciação da sensibilidade feminina, sobretudo através daquilo que Sérgio Lima define como “fascinante abertura vertical dos instantes”. Constitui, no entanto, um absurdo restringir a tal pormenor a leitura de sua obra, não podendo jamais ser enclausurada nos limites de uma dicção feminina. Cumpre aqui lembrar que em Gilka Machado vamos encontrar uma outra presença marcante nessa ambiência de uma atenção primeira para com o feminino.

Em Clarice Lispector sempre se manteve clara identidade com os aspectos da narrativa surrealista, em contraposição aos matizes existencialistas apontados pela crítica. É curioso que ela própria em várias ocasiões recusou tal vinculação com o existencialismo. Se formos buscar aproximação estilística com seus pares a encontraremos melhor definida na obra de Georges Bataille, Leonora Carrington e Julien Gracq. Uma vez mais nos esclarece Lima, lembrando que a obra de Clarice lida “com o problema da representação da extrema beleza e do extremo horror do corpo, do seu esgar e maravilhamento, do seu rapto no instante único, na irrupção do transbordamento: automatismo e desvarios que são transgressão, que se apresentam ora capilarmente ora em narrativas mágicas”.

Não são os aspectos sociais, religiosos, morais etc. que importam na constituição de uma obra literária e sim aquilo que Osman Lins chama de “senso de realidade”, as ações de reconstituição e transfiguração do real que leva a termo o escritor. De outra maneira não há obra consistente. A própria Clarice nos dá a chave para a leitura de seu “senso de realidade”, ao afirmar: “Eu quero a coisa em si”. Daí implica confirmar que tal “implacável ceticismo” nada tem a ver com a nadificação sartreana e sim com um acento voluptuoso de um diálogo com a realidade. Basta recorrer a outra assertiva de Lispector, de clara consonância com os postulados do budismo: “A trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos.”

Também a estrutura narrativa de sua obra encontra-se impregnada de transgressões, propiciando, em um acúmulo inebriante de metáforas – por sua vez um confronto de tempos e lugares –, verdadeira confusão entre personagens e narrador, onde a própria

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leitura das coisas e objetos, tão ao gosto de Clarice, se dá sempre de maneira assimétrica. A essas vozes soma-se a dela própria, ao dizer em Água viva (1973): “Gênero não me pega mais”. E nisto também reside sua indiscutível originalidade.

Os aspectos aqui comentados, contudo, parecem de importância menor dentro da análise que busca traçar Neiva Pitta Kadota da obra da autora de Perto do coração selvagem (1943). Ao que parece, o livro constitui a edição de uma tese de doutoramento – graças a uma inaceitável falha editorial, não se ventila quaisquer dados acerca da autora –, por sua vez viciada nos insustentáveis lugares-comuns do mundo acadêmico, com enfoque limitado justamente pelo excesso de teoria literária que impõe débil rigidez a qualquer visão de mundo.

Tal rigidez tem levado os estudos acadêmicos a desempenharem um recriminável papel em nossa sociedade: o de conversão da magia da criação em mero objeto de dissecação estruturalista. Assim é que o livro acaba não cumprindo uma função primeira: ambientar o diálogo possível entre obra literária e correspondente leitura crítica. Não por outra razão malogra a tese de Kadota, orgulhosa de beber na fonte dos formalistas russos, viciada em Todorov e Peirce para explicar o inexplicável tão bem definido por Bachelard. Aliás, a bibliografia a que recorre não inclui justamente o autor mais fundamental para a compreensão da literatura em nossa época: Bachelard.

É verdade que a tese não erra ao falar na circularidade da escritura de Lispector ou mesmo no sentido de uma palavra que funcione além-palavra. Mas estas são obviedades sacralizadas. Absurdo maior comete, no entanto, ao subordinar a definição estética de uma obra ao balcão de ofertas do empório das circunstâncias. Diz ela: “A narrativa que se quer atual tem de acompanhar esse ritmo desordenado, não só para evitar o anacronismo mas para evitar cair na alienação.” É um absurdo supor que a criação artística almeje a atualidade.

Disse em um de seus livros Clarice que “a beleza pode ser uma grande ameaça”, justamente ela, notável farol de uma insurrecta voluptuosidade do ser, da magia do mergulhar em si mesmo e dali ainda extrair uma soberba definição estética. Que mais se pode querer da beleza? Que mais se pode exigir de um artista?

 

Ascese: os salvadores de Deus, de Nikos Kazantzákis

 

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Não temo nada. Não espero nada. Sou livre.“ Estas palavras compõem o epitáfio de Nikos Kazantzákis (1883-1957), o poeta e romancista grego que os brasileiros conhecem mais pela adaptação cinematográfica de Zorba, o grego e A última tentação de Cristo do que propriamente por seus romances homônimos que originaram tais filmes. Morto na Suíça, seu corpo não foi enterrado em Atenas graças a uma recusa do arcebispo local. De nada importou o duplo contributo de Kazantzákis: sua obra literária e sua ação política, tanto pela oficialização do demótico quanto pela campanha de repatriação dos milhares de gregos banidos no decorrer da primeira guerra mundial. Levou-se em conta tão-somente seu ateísmo comunista.

Leitor atento de Nietzsche, a quem traduziu para o demótico, domina a obra de Kazantzákis a presença de um niilismo heróico, acentuado largamente pelo jorro metafórico e o predomínio de uma linguagem simbólica. Em seu ambicioso poema épico Odisséia (1938) põe nos lábios do herói que considera essencial ao homem “lutar sem tréguas contra o fado e apagar o que estava escrito”, segundo ele a única maneira que cabe ao homem de ultrapassar seu próprio deus. Versos à frente, acrescenta: “Deus é argila nos meus dedos, sou eu próprio quem o molda”, ao mesmo tempo em que agradece a Deus “o insaciável coração que me deste: / ele festeja tudo sobre a terra e não se apega a nada.”

Além da clara presença de Homero, a obra poética de Kazantzákis também estabelece diálogo vigoroso com Santa Teresa d’Ávila, Dante e Henri Bergson. Acerca de seu niilismo heróico disse José Paulo Paes tratar-se de “uma religiosidade sem deus cuja expressão mais sistemática está nos versículos de Ascese”. Escrito em 1927, porém tornado público somente em 1945, as idéias ali expressas fariam com que Kazantzákis passasse a ser visto como inimigo da fé pela Igreja Ortodoxa. Logo em seguida o próprio governo grego empenhar-se-ia em inutilizar sua indicação ao prêmio Nobel, por sinal uma iniciativa conjunta de Thomas Mann e Albert Schweitzer.

Um dos integrantes da geração de 1905 – ao lado de poetas como Ággelos Sikelianós e Kóstas Várnalis –, Nikos Kazantzákis encontra-se entre os nomes de proa responsáveis pela instauração da modernidade na literatura grega, sendo justamente a sua a primeira geração a contribuir para o surgimento de uma nova visão do mundo na poesia de seu país. Além dos livros aqui mencionados, escreveu os romances Cristo recrucificado, Liberdade ou morte e Os irmãos inimigos, livros que, segundo José Paulo Paes, abafaram um pouco a importância de sua obra poética.

Embora não conheçamos senão uma mínima parcela de Odisséia de Kazantzákis –

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mostrada na excepcional antologia Poesia moderna da Grécia – e absolutamente nada das Terças rimas (1960), traz-nos agora José Paulo Paes (sempre ele) a íntegra dos versículos de Ascese, em edição graficamente elegante da Editora Ática. A melhor idéia da ambientação filosófica deste livro já a encontrávamos em Odisséia, quando afirma Odisseu que “a vida é um relâmpago e a morte infinita”, o que nos remete à postulação exasperada de Rimbaud: “a verdadeira vida está ausente”.

Não se definem, contudo, as idéias de Kazantzákis como uma negação da vida, mas sim como a necessidade imperiosa de uma consciência das ações de tais forças que regem a natureza humana: vida e morte. Trata-se de uma recusa, isto sim, aos cânones do Catolicismo, baseada em uma ampla leitura que inclui tanto a palavra dos santos ocidentais quanto os postulados do budismo, acrescentando aí a visão de mundo de hereges, poetas e heróis. Desta soma de inúmeras vertentes advém a noção extrema de liberdade que permeia toda a obra de Nikos Kazantzákis.

Ascese é um livro poderoso. Trata-se de uma exaltação da vida, de uma profunda demonstração de vitalismo, de uma expressão da síntese como forma única de definição e aprimoramento do humano em nós. Trata-se portanto de uma afirmação de fé no homem, o que naturalmente contraria uma regência dogmática. Investigar os malefícios causados ao homem pela religião católica não constitui ação policialesca, mas sim uma indagação veemente da própria dinâmica do espírito humano. É o que fez Kazantzákis em toda a sua obra, não somente neste Ascese.

 

Geometria da água & outros poemas, de José Kozer

 

Em uma das mais recentes levas, publica a coleção Memo, da Fundação Memorial da América Latina, o volume Geometria da água & outros poemas (2000), de José Kozer. Esta não é a primeira vez que o poeta cubano comparece à mesma coleção. Meses antes se havia publicado o volume Dois poetas cubanos, de Jorge Rodríguez Padrón, oportunidade em que o crítico espanhol comenta a obra de José Lezama Lima (1910-1976) e José Kozer

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(1940), ambos paradigmáticos no tocante à tradição poética daquele país.

Rodríguez Padrón observa um lugar comum na leitura comparativa desses poetas, o hábito de assemelhá-los em uma escrita barroca, advindo da pressa com que se esboça tal leitura, tendo sempre em conta a aparente dificuldade de penetração no universo poético de cada um e a coincidência da nacionalidade. Tais parâmetros são evidentemente falhos, e têm contribuído para um falso entendimento de muitas instâncias na poesia hispano-americana.

A insistência em se observar a poética de Kozer como que vinculada a um novo barroco atende tão-somente a uma distorção de ordem acadêmica. A arte combinatória ali não se desvencilha da esmerada construção de uma saga familiar ou mesmo dos jorros de imagens disparados por um automatismo psíquico. Há uma complexa rede estilística que requer mais do que vício escolástico para seu entendimento.

A referência à natural condição de exílio de toda escrita, em seu caso é um dado duplamente concreto, por se tratar de um homem que esteve sempre em exílio (origem polaca, diáspora, revolução cubana, Estados Unidos etc.). Há naturalmente uma mitologia Kozer, que interessa glamourizar. Em descompasso, temos uma obra impressionante elaborada obsessivamente ao largo de quatro décadas, e que os brasileiros apenas levemente começam a apreciar.

Aqui estabeleço um ponto de discordância com o prólogo de Geometria da água, escrito por Cláudio Daniel, organizador e tradutor (tarefa em parceria com Luiz Roberto Guedes), quando vê apenas montagens (pintura, cinema) em uma escrita que, por definição, busca a totalidade. É quando menos ingênuo crer identificar consciência e inconsciência no ato criador. Daniel afiança, assim, uma débil linha corrente entre nós do criador como dominador pleno da criatura, descartando a possibilidade do tiro pela culatra.

O mais recente livro de José Kozer é Farándula (México, 1999), não mencionado na presente edição brasileira de Geometria da água. Tendo iniciado a publicação de sua poesia com Padres y otras profesiones (EUA, 1972), ao largo de vinte livros publicados, percorreu países como Estados Unidos, México, Argentina e Espanha, sem contudo chegar às mãos de nenhuma grande editora que o fizesse circular internacionalmente.

Livros como La rueca de los semblantes (Espanha, 1980), Bajo este cien (México, 1983), La garza sin sombras (Espanha, 1985), El carrilón de los muertos (Argentina, 1987), Carece de causa (Argentina, 1988) e Et mutabile (México, 1995), são expressivos de uma poética que certamente propiciaria um diálogo valioso com nossa própria tradição poética.

Em relação às traduções dos poemas de Kozer neste Geometria da água, creio que foi respeitada a obsessão vocabular do poeta cubano, e que talvez se tenha perdido um pouco em ritmo ou nas alternâncias (injustificadas) entre plural e singular de algumas imagens. Nada que comprometa a aproximação deste poeta, já de muito meritório de uma edição brasileira de mais ampla abrangência e circulação.

 

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Obra completa, de Lautréamont

 

A primeira voz eficaz a referir-se a Lautréamont no continente americano foi a do poeta nicaragüense Rubén Darío, em ensaio incluído em Los raros, de 1896. Lautréamont havia morrido 26 anos antes e sua obra permanecia ainda inadvertida. Nascido em Montevidéu, em 1846, Isidore-Lucien Ducasse (Conde de Lautréamont) deixou raras pistas de sua brevíssima passagem pela terra, inquietando até hoje a seus biógrafos.

Contemporâneo de Rimbaud, Mallarmé, Villiers de l’Isle-Adam, Tristan Corbière e Gérard de Nerval, Lautréamont é considerado um dos mais relevantes autores surgidos entre as agitações do Romantismo e do Simbolismo, valendo-lhe também a legenda de precursor do Surrealismo. Tornou-se memorável a frase cunhada por Maldoror: “A poesia deve ser feita por todos não por um”, cultuada irrestritamente pelos surrealistas.

Sua obra caracteriza-se, segundo a crítica, pela rebeldia e a transgressão, e costuma situar-se na linhagem dos poetas malditos. Cantos de Maldoror – escritos originalmente em francês em 1867 – teve a primeira edição em 1869, uma segunda em 1890 e a terceira tão-somente em 1921. Nesta mesma época o descobria tanto a Europa, através dos surrealistas, quanto a América Hispânica, segundo o romancista guatemalteco Miguel Ángel Asturias, que refere-se, ao comentar os Cantos, ao “sagrado fogo que a palavra encerra”.

A publicação da obra completa de Lautréamont na América Latina alcança dois momentos cruciais: o primeiro deles na Argentina, em 1964, aos cuidados do poeta, tradutor e ensaísta Aldo Pellegrini. O trabalho pioneiro de Pellegrini recupera para o continente a voz deste francófono de origem uruguaia. Registra-se a segunda edição somente agora, em 1997, desta feita no Brasil e sob a lúcida condução do também poeta, tradutor e ensaísta Claudio Willer.

Não foi, contudo, a primeira entrada de Lautréamont entre nós, brasileiros. Em 1970, o próprio Willer publica a tradução de Cantos de Maldoror, cuja segunda edição sairia em 1986. A exemplo de outras aventuras tradutórias, o trabalho de Claudio Willer caracteriza-se pela criteriosa investigação historiográfica e estética. Exemplares, neste sentido, são os

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trabalhos realizados em torno de Antonin Artaud e Allen Ginsberg.

Esta primeira edição brasileira da Obra Completa de Lautréamont vem precedida de um extenso estudo, onde o crítico não se ocupa da falácia de inventar uma obra, e sim de apontar-lhe vínculos e perspectivas. Entre os vários aspectos que enfoca, destacam-se a originalidade, o vínculo equívoco com o Barroco, o rigor da escritura, os elementos paródicos e o conceito de autoria.

A modernidade nos traz um antagonismo básico entre a idéia da criação como comunhão de identidades e a refutação de toda identidade individual. Lautréamont referia-se à essencialidade do plágio, desconsiderando completamente a autoria. Assinar é uma trivialidade egocêntrica, tanto quanto citar é um pudor ignóbil. Tendo que Octavio Paz e Jorge Luis Borges podem ser considerados emblemáticos da dicotomia acima mencionada, seria de grande interesse uma analogia entre ambos e o criador de Maldoror.

O ponto básico dessa analogia concentrar-se-ia no fato de que a identidade de uma obra interessa fundamentalmente, ao passo que a do autor quando muito interrompe o fluxo de diálogo delas entre si. Lautréamont já sabia que importam as relações e não suas fontes, sua identidade. Depreende-se daí que a discussão entre ser e não ser parte sempre do pressuposto do ego.

Supostamente a publicação da Obra Completa de Lautréamont entre nós deve permitir um entendimento outro acerca da criação poética. O estudo introdutório de Claudio Willer é sedutoramente lúcido ao tratar de assuntos como o rigor e a paródia, aspectos recorrentes na leitura da obra traduzida. Sobre o primeiro, nos diz que “não está em sua aplicação, mas em sua transgressão sistemática”. Quanto ao segundo, situa que a paródia, embora subversiva, não passa de “uma subversão consentida”.

Tal estudo não propõe, ressalto, propriamente a invenção de uma literatura, embora sugira pertinências inúmeras. Não pode a loucura da genialidade ser convertida em esplendor, tanto quanto não pode o esplendor alucinante ser convertido em genialidade. Lautréamont está na outra ponta dessa quermesse finissecular que atravessamos. Seguimos sendo os equívocos, os moralistas, os medíocres.

Diante da fatura formal de mais um século, talvez seja boa idéia ter à mão alguns conceitos básicos destilados por autores como André Breton, John Cage, Guimarães Rosa. Não fará mal algum levar em conta situações clássicas gentilmente ofertadas por Shakespeare, Dante e Lautréamont. Não se trata de um cânone. Recordo apenas que não terão função, na exasperação da queda, as balas de amendoim e os manuais de auto-ajuda. Como entendia o próprio Lautréamont, graças à poesia – diria que somente graças a ela – é possível escapar da condição de “mero reflexo das coisas”.

 

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Os olhos do deserto, de Marco Lucchesi

 

Ao escrever sobre L'ocell imperfecte (Ediciones del Bronce, 2000), livro do poeta catalão Josep-Ramón Bach, o crítico Àlex Broch comenta que “a capacidade de criar uma obra cujos referentes abram mundo novos, inéditos ou pouco transitados” é o que pode haver de mais valioso e sugestivo no âmbito da criação.

Broch chama a atenção para a singularidade da poética de Josep-Ramón Bach no entrelaçamento de “delicadeza e mistério”, encarnada em uma prosa poética que percorre o universo de todos os pássaros, os mil pássaros da diversidade, que outro poeta, o brasileiro Marco Lucchesi (1963), identifica com Simurg (cujo rosto “era um espelho, que refletia a essência de todos”), e um outro mais, o nicaragüense Pablo Antonio Cuadra, ao dedicar um poema a Carlos Drummond de Andrade, o aproximou do Zenzontle de sua terra natal (palavra que em náhuatl quer dizer 400 ou multidão).

Assim começamos a compreender a mescla de encarnação, memória e viagem que constitui Os olhos do deserto (Record, 2000), de Marco Lucchesi, seja pelo contraste revelador com que move narrativa, apontamentos de viagem e prosa poética, ou pela condição de mergulho em uma cultura outra, misturando-se a ela, para ser com ela, descobrir-se nela. Assim também entenderíamos a poesia de Pablo Antonio Cuadra (1912) e Josep-Ramón Bach (1946), se acaso fossem poetas conhecidos no Brasil.

Em uma passagem de Os olhos do deserto se revela uma obsessão do protagonista – “não serei mais um herói sem poema” –, logo seguida de uma reflexão: “o belo regressou ao poema épico”. O belo a que se refere radica nessa condição da viagem (“Viver é peregrinar. Voltar ao Pai.”), de maneira que Lucchesi não faz senão evocar uma compreensão da épica como afirmação da essência humana, recordando Carol Delaney, a título de epígrafe, quando distingue a peregrinação vista pelo Ocidente cristão daquela percebida pelos muçulmanos.

Seria necessário identificar com precisão o âmbito desse “Ocidente cristão” a que se refere Delaney para que pudéssemos contrapor uma peregrinação a esmo, consagrada ao vazio, a uma busca do lugar de origem, essa “imagem da volta”, segundo ele inaugurada pela cultura muçulmana. Por sua vez, a viagem que traceja Lucchesi entre a experiência vivida

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em Damasco e suas infinitas leituras, o diálogo transbordante com páginas, areias, idiomas, olhares, nos leva a um vertiginoso sentido de encontro consigo mesmo.

Referi-me a um protagonista. Chama-se Mahr, o peregrino que retorna a seu lugar de origem, e que está sempre a escrever à amada, Leila, uma escrita que é a um só tempo a do exílio e a de conquista de uma nova condição de ser. “Tudo aqui é mais livre, mais puro e cruel”, escreve a seu amor, cruzando um território marcado por muitos deuses.

Lucchesi conheceu o mihrab, marco onde se indica a direção da Meca. A partir dali deve ter compreendido que todo o objeto de nosso desejo não se localiza em parte alguma. Não pode sequer, como observou Calvino, ser nomeado. Seu livro, contudo, não aponta para essa diretriz de acasalamento com o vazio. Não é o livro de um deslumbrado por efeitos espaciais, silêncios, fundos brancos etc. Arrisca-se a queimar-se de si mesmo. Este é seu fogo sagrado: mais do que experiência isolada da escrita, uma soma arriscada de traço e vertigem.

Acrescente-se que Marco Lucchesi começa a se tornar um grave problema em nossa rampa literária. Com uma obra tão extensa quanto meritória ao menos de um correspondente diálogo que vem traçando com outras obras (ensaios, traduções), avança afinal no sentido de mostrar-se um criador. Com o livro Saudades do paraíso (1997), esteve mais próximo do que nos casos de Bizânzio (1998) e Poesie (2000), este último uma edição italiana.

Já com Os olhos do deserto, a condição de criador supera experiências anteriores justamente por mesclar-se ao apaixonante exercício de tradutor e leitor/ensaísta, fundindo, de uma vez por todas, as diletas personae, revelando-se afinal. Quando mesclamos línguas (em “uma alquimia de palavras”, como se refere Per Johns no prólogo do livro), mesclamos vivências, chafurdamos na raiz do idioma, mas sobretudo naquele engodo de origens em que consiste a própria aventura humana.

Essa busca de uma sensibilidade que nos desvele, de uma forma ou de outra, está consubstanciada em Os olhos do deserto. Ali o entendimento de que a beleza se encontra vinculada a uma essência que não se revela senão no epos é algo fundamental em uma tradição essencialmente lírica como a nossa. Ao mesclar (este será verbo insistentemente caro ao autor) prosa poética, relato de viagem, obsessões lingüísticas, versos inocentes, Marco Lucchesi contribui essencialmente para que percebamos que é possível um sem número de planos estilísticos na compreensão do que seja uma obra literária, particularidade que torna Os olhos do deserto uma leitura fascinante.

 

O sorriso do caos, de Marco Lucchesi

 

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O primeiro que se pode dizer deste novo livro de Marco Lucchesi, O sorriso do caos (1997) é que se trata de uma leitura de leituras, não por labiríntica aventura mas sim pelo que seus fragmentos guardam de vigorosa identidade. Decompõe-se na leitura de múltiplos livros, sem que lhe falte a unidade essencial. Disse Calvino que “a coisa mais importante do mundo são os espaços vazios”. É o que parece haver aprendido, até aqui, Marco Lucchesi de suas inúmeras leituras. E busca então preencher tais espaços com a paixão pela síntese. Através da prodigiosa polifonia de suas leituras não busca senão a literatura, guiado pelo que chama de “a instância do diálogo e a chama da diferença”. Refiro-me à literatura como totalidade.

Este O sorriso do caos não se evita, contudo, a aventura labiríntica. Trata-se de uma leitura lendo outras, da sagrada virtude das correspondências, onde – e o diz o próprio autor, embora referindo-se à obra do italiano Carlo Emilio Gadda – “toda aventura repousa no texto”. Coletânea de artigos publicados em grande parte na imprensa carioca, pode-se dizer dela o que já salientam acerca de um livro de Luís Costa Lima: que não oriunda das partes o encanto mas sim do “sistema que as configura”.

Ardente defensor da identidade a partir da diferença, Marco Lucchesi (1963) propõe a leitura de dois princípios essenciais: a unidade e a pluralidade. Melhor: só se alcança a primeira graças ao banho ao natural da segunda. Por todo o livro nos fala de aspectos que confirmam tal visão. Ao escrever sobre Auden destaca a “variedade temática de seus ensaios”. Diz de Pasolini que foi “o mais aguerrido defensor da diferença”. Sobre uma exposição de Fernando Diniz comenta o “brilho secreto e fugaz da unidade”. Em uma entrevista com Roger Garaudy reporta-se ao “radical elogio da diferença”. Igual universo em expansão, a malha de exemplos.

Mesmo se nos detivermos nas particularidades dos artigos em si, não temos senão o descortinar fascinante de um tecido múltiplo, o ritmo com que deveria agir a cultura. Ou melhor: ação de determinados criadores – tecendo a diferença justo a partir da unidade – cuja obra vai ultrapassar o front de previsibilidade que se instalou em nossa contemporaneidade. Ardem as leituras de Lucchesi em uma urgência de realçar o que ele chama de “riscos plantados na Diferença”. Ao escrever sobre Henri Michaux, Harold Bloom, Hermann Broch, Nise da Silveira, Umberto Eco e Alfred Döblin, define uma rede de interligações entre esses autores. Trata-se de um “sistema de sistemas”, como diz ao referir-se à visão de mundo de Gadda.

Flagrante a pluralidade – anárquico, busca a diferença na unidade e seu revés –, recai sobre

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a literatura italiana especial atenção, o que o leva a escrever sobre Gadda, Alberto Moravia, Mario Tobino, Leonardo Sciascia, Pasolini, Giorgio Manganelli e Umberto Eco. Sendo resíduos fascinantes que buscam definir a identidade a partir da diferença, serão válidos os comentários:

Caracteriza a obra de Emilio Gadda (1893-1973) o intenso jorro metafórico, proliferando a imagem através de vertiginosos espasmos. Operam uma raivosa tensão entre o grotesco e o trágico, escritura furiosa que Lucchesi chama de “uma pluralidade de causas, quase um emaranhado”. Alberto Moravia (1907) abole as fronteiras entre o ensaio e o romance, rejeitando violentamente códigos que limitem a ambos. A obsessão por um sentido extremo de depuração crítica fez com que os traços narrativos praticamente desaparecessem de um livro como La vita interiore (1978). Diz Lucchesi que “a vida, segundo Moravia, é um perfeito caos, do qual se pode extrair apenas algum fragmento ordenado, e todavia misterioso”.

Seguindo entre italianos: Mario Tobino (1922-1963) e Leonardo Sciascia (1921). Morto prematuramente aos 41 anos, Tobino foi um médico que dialogou radicalmente com a loucura, dali extraindo um livro magnífico, que é Le libere donne di Magliano (1953) – talvez tenha faltado ao livro de Lucchesi uma avaliação acerca das relações entre o trabalho de Tobino e o da brasileira Nise da Silveira. Sciascia merece destaque pelas parábolas metafísicas. Contemporâneo de Calvino, sua obra entrava em choque com a ruinosa presença do neo-realismo nas letras italianas. Calvino resgatou a sugestibilidade da fábula e da alegoria fantástica, enquanto Sciascia, mesclando a narrativa à pesquisa histórica, deu-lhe inconfundível sabor.

Também nos fala Lucchesi de Pasolini e Giorgio Manganelli, ambos nascidos em 1922. De exaustiva discussão entre nós o cineasta e o mito Pasolini, deixamos escapar a grandeza dos escritos para imprensa, reunidos em Scritti corsari (1975) e o póstumo Lettere luterane, publicado um ano depois de um brutal assassinato. Nada sabemos também da fascinante estranheza de um livro como Poesia in forma di rosa (1964). Já o surrealista Manganelli, cujo humour noir como que esfola viva a linguagem, cabe o que Lucchesi chama de uma “selva de ramificações”, obsessão pela precisão, que trama uma estratégica labiríntica, onde cada passagem se multiplica em inúmeras outras.

Tais passagens como que definem o livro, embora Lucchesi alcance uma dimensão mais profunda para o exercício crítico, sempre um diálogo, jamais um julgamento. Ao escrever sobre alguns autores pertencentes ao mundo árabe, ressalta a “pluralidade fascinante” que constitui aquela literatura, posta em choque com uma cultura do previsível disseminada violentamente entre nós. Não é à toa que Lucchesi, ao dialogar com brasileiros, mostra-se atento à obra de Nise da Silveira, Fernando Diniz, César Leal e Foed Castro Chamma. Embora raras as substituições – melhor: equivalências –, poderíamos pensar em uma outra face da destruição intencional de um determinado patrimônio cultural: a falta de oportunidade.

Nada se esgota em si. O abismo sempre invocará o abismo. O centro da diferença está em toda parte. Não se trata de uma condição irrevogável, e sim do pleno exercício de uma multiplicidade. Compreende Lucchesi que o ser encontra-se acima da ciência do ser.

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Empenha-se em abrir portas. Sobre os romances policiais de Sciascia disse: “todas as pistas apontam novas e mais imbricadas realidades”. Recordou que em Alfred Döblin “sua base é a enciclopédia”, alertando, com Artaud, que a anarquia – e “o esforço para reduzir as coisas, reconduzindo-as à unidade” – é a grande chave para liquidarmos o culto ao shopping center instalado em nosso tempo, quando se reduz o pulso da atividade humana a uma barra de código. Ou, no dizer de Cioran: “o derivado substitui em tudo o original, o essencial”.

O sorriso do caos não faz senão sugerir algumas pistas para darmos em uma “pluralidade de causas” que nos vá recompondo, humanidade sem centro. Apenas a identidade, mas toda a identidade. Sugere, portanto, aquilo que Spinoza chamava de “pequenos modos da substância infinita”, espaço-tempo onde se alcança fundamento naquilo que se nomeia. Em raros momentos na atualidade a crítica literária no Brasil lê-se tão carregada de sentido em si mesma.

 

Melhores poemas, de Dante Milano

 

Dante Milano pertence àquela plêiade de poetas cuja existência os brasileiros raramente recordam, embora ali encontremos algumas das mais importantes de nossas vozes poéticas. Refiro-me a nomes como Emílio Moura, Augusto Meyer, Henriqueta Lisboa e Joaquim Cardozo. Uma reduzida bibliografia não corresponde à grandeza de sua poesia, embora tenha contado com a lucidez crítica de Franklin de Oliveira, Sérgio Buarque de Hollanda e Otto Maria Carpeaux entre os comentaristas. Autor de uma poesia reflexiva, que se punha em estado de diálogo com tudo o que abordasse, chamou para si pouca reflexão no que se refere aos estudos críticos a respeito.

Juntamente com Manuel Bandeira, Dante Milano (1899-1991) não adere formalmente ao Modernismo de 1922. E há nisto uma razão essencial: a modernidade de ambos era anterior e já encontrava-se bem fundada. Aliás, o caso de Dante Milano deve irritar aqueles que julgam a rima como um recurso redutor da linguagem poética, uma vez que tal recurso

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esteve presente em toda sua poesia, mesmo nos últimos momentos. A verdade é que a consciência poética supera qualquer submissão a modismos ou preconceitos de turno. E a breve, porém intensa e reveladora, obra poética de Milano nos ensina, entre outras tantas coisas, exatamente isto.

Autor de um único livro, Poesia (1948), editado contra sua vontade, e que seguiu sendo ampliado a cada reedição, deixou como inesquecíveis duas outras aventuras: a tradução de alguns cantos do “Inferno”, da Divina Comédia, e uma conferência sobre Leopardi. Em 1979, Virgílio Costa preparou para a Civilização Brasileira uma edição abrangente de seus textos em prosa e verso. Ali encontramos também as traduções de vários poemas de Baudelaire e a prosa publicada na imprensa carioca. Milano, na verdade, só não passou por inteiro despercebido graças a uma entrevista de Carlos Drummond, em 1987, onde questiona a popularidade como elemento definidor da qualidade de uma obra artística. A entrevista o situa entre os melhores poetas brasileiros.

Já em 1980, o poeta Ivan Junqueira expressava a mesma opinião na crítica carioca, situando Milano, ao lado de Drummond, Cecília Meireles, João Cabral e Jorge de Lima, entre “os maiores poetas brasileiros do presente século”. Claro que não teve a mesma repercussão da declaração de Drummond, porém nos mostra a atenção que uma voz tão lúcida quanto a de Junqueira mantinha em relação à poesia brasileira. E faço aqui esta menção unicamente em face da publicação da coletânea Melhores Poemas. Dante Milano (1998), cuja seleção e prefácio vêm assinados justamente por Junqueira.

Esta antologia, que reúne pouco mais de setenta poemas de Dante Milano, traz consigo dois aspectos importantes. Em primeiro plano, uma nova difusão da obra deste importante poeta brasileiro. Aliada a isto a presença de um largo estudo introdutório, que mergulha como em nenhum outro momento nos aspectos mais pertinentes e reveladores da poética de Milano. São mais de trinta páginas de observações críticas onde se menciona tanto a defesa de uma poesia reflexiva quanto aquela multiplicidade um tanto controversa dos recursos de linguagem utilizados pelo poeta.

Como disse, Ivan Junqueira sempre manteve estreito vínculo com a poesia de Dante Milano. Não somente movido por um exercício ensaístico, mas antes por afinidades poéticas. Em entrevista que lhe fiz para meu livro Escritura Conquistada (1998), disse-me: “Se poetas como Bandeira, Drummond ou Dante Milano são os mais altos de nossa literatura, cabe dizer aqui que só ostentam essa condição porque, à parte seu talento pessoal, foram poeticamente os mais cultos. A propósito, não sei de nenhum grande poeta de qualquer língua que não fosse poeticamente culto, ou seja, que não conhecesse a fundo seu ofício e os segredos de seu idioma.” E conhecimento do ofício não entra em choque com inspiração. O poeta tanto é tomado por forças como é o tomador de forças.

Dante Milano buscou tornar a vida um poema. Não por um artifício, uma forma fria de convencimento, mas antes pela identificação intensa entre existência e consciência. Buscou tornar a vida, tanto quanto o poema, necessária. Tinha um profundo respeito pelo sentimento de essencialidade das coisas, do momento preciso e inadiável das coisas se revelarem. E descria tanto da imortalidade quanto da importância humana depois da morte. E disse isto com todos os versos.

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Poesias, de Alvaro Mutis

 

A publicação recente de uma antologia poética do colombiano Alvaro Mutis no Brasil (Poesias, Ed. Record, Rio de Janeiro. 2000) é novamente oportunidade para a discussão de dois aspectos: nosso crônico desconhecimento da literatura dos países vizinhos e os excessos cometidos talvez em nome de um equívoco facilismo quando se trata da tradução do espanhol para o português.

Mutis já foi publicado entre nós em duas outras ocasiões, através das novelas A neve do Almirante e Ilona chega com a chuva, ambas pela Companhia das Letras. Talvez seja curioso que tais livros não tenham alcançado o êxito merecido, mas está claro que isto não tem a ver com a obra em si, mas antes com a falta de perspectiva do mercado editorial. Basta pensar no volume de 702 pgs editado pela espanhola Alfaguara, contendo todas as novelas de Mutis: Siete novelas (Empresas y tribulaciones de Maqroll el Gaviero).

Na Colômbia, é possível encontrar um volume de 734 pgs dedicado à poesia e à prosa de Mutis, livro editado pelo Instituto Colombiano de Cultura, como prova de que a ação institucional, no âmbito cultural, não pode ser desconsiderada por governo algum. A frase não é gratuita se pensarmos tanto no descaso dado ao tema no Brasil como em sua recente capitulação por parte do governo colombiano.

Não há dúvida de que Alvaro Mutis (1923) seja um dos autores mais consistentes e renovadores na literatura hispano-americana deste século findo. No prólogo do livro aqui comentado, William Ospina acentua a necessidade da América se fazer presente na obra de seus escritores, afirmando que “o toque de vastidão que a América impõe” não se encontra na obra dos modernistas, a exemplo de Leopoldo Lugones ou Rubén Darío.

Ao falar de uma correlação entre língua e canto da terra, recorrendo a uma mito-poética defendida, por exemplo, por Ernesto Cardenal, Ospina arrisca a afirmação de que Mutis “é um dos primeiros poetas em que essa correspondência é total”. Uma leitura apressada desse

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aspecto nos levou ao equívoco do realismo mágico. Uma outra segue impondo a inúmeros autores um obscurecimento imperdoável.

Importa referir-se à poética de Alvaro Mutis por uma certa inversão de valores estéticos entre prosa e verso, mais do que pelo vertiginoso mergulho em uma degradação da espécie humana ou uma entrada na vastidão americana. Ali mescla-se o verso, a prosa poética, a crônica, o relato histórico e o ensaísmo, independente do resultado se apresentar como poema ou ficção. Em tal aspecto radica a grande novidade dessa obra.

É curioso que não se faça referência à participação de Mutis no grupo Mito, na Bogotá dos anos 50, onde compartilhou com intelectuais como Fernando Arbeláez, Rogelio Echavarría, Fernando Charry Lara e Jorge Gaitán Durán. segundo recorda Charry Lara, “queríamos conciliar a vigília e o sonho, a consciência e o delírio”, acrescentando que “a exatidão deveria valer tanto como o mistério”.

Dentro de uma tradição colombiana, não se pode deixar de discutir a poética de Mutis por dois ângulos: um deles refere-se ao tratamento da linguagem – no caso de Aurelio Arturo (1906-1974), vinculado ao grupo “Piedra y Cielo”, de excessivo apego formalista – enquanto que o outro está ligado à criação de personagens – e aqui é imprescindível a menção ao grande León de Greiff (1895-1976), de geração anterior, conhecida como “Los Nuevos”.

Se vamos discutir o autor Alvaro Mutis, esta edição da Record é insuficiente por não situá-lo na tradição poética colombiana ou hispano-americana. Mutis, um monarquista irreconciliável, já em 1948 dizia: “o grande fracasso que desde o começo dos tempos é a poesia não creio caritativo compartilhá-lo com ninguém”. Posteriormente declararia: “a única função que deve ter uma obra de arte é criar valores estéticos permanentes”.

Não resta dúvida de que a tradução interfere na compreensão desses valores estéticos. Há casos em que lhes dá uma idéia tão distorcida que compromete tudo o que porventura sabíamos acerca do autor em questão. Até que ponto o casual pode ser considerado menos criminoso do que o intencional? A tradução desta antologia de Mutis nos leva a pensar que não basta ser poeta para ser bom tradutor. É preciso ainda mais do que o conhecimento minucioso da língua, sendo da ordem da identificação a exigência mais radical.

Na prática, a tradução de Geraldo Holanda é oscilante, equivocando-se em abrandamentos (“la sal de los dormidos”, por “o sal do sono”, ou “torrenteras del delta” por “águas do delta”), miopia poética (“madera en sombra” por “tronco encoberto”), presunção que impede ida ao dicionário (“retenido” por “refletido”, “ramas” por “remos”, “cerco” por “círculo”, “subir” por “escapar”), como sobretudo não percebe que a voragem contida da poética de Mutis se opõe à completa submissão estrutural de nossa geração de 45.

O livro acaba resultando em desserviço a um diálogo que devemos estabelecer entre cultura brasileira e hispano-americana. Editores precisam entender que tal diálogo permanece fora do MERCOSUL, de seu princípio gerador, uma vez que não se trata isoladamente de pôr no mercado, mas sim de criar uma relação, ainda que de mercado, consistente, respaldada em profissionais que, em uma e outra margem, sejam considerados pelo trabalho em si e não

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por indicações fortuitas ou conveniências contratuais.

 

Cadernos de Temuco, de Pablo Neruda

 

Disse certa vez o poeta chileno Enrique Lihn (1929-1988) que não via razão na inclusão de Borges entre os fundadores da poesia hispano-americana, por considerá-lo formalmente conservador, inclusive salientando a previsibilidade de seus recursos métricos e rímicos. O contributo inquestionável de Borges seria pautado por aspectos outros que não o da estruturação do poema. Talvez se pudesse fazer observação bem próxima no tocante ao chileno Pablo Neruda (1904-1973). Em entrevista que fiz ao mexicano Gerardo Deniz (1934), disse-me que Neruda dificilmente resistiria ao tempo não fosse seu vínculo com o comunismo, o que implica em dizer que não há sustentação poética em sua obra, mas antes uma fascinação de natureza ideológica por sua pessoa.

Para Deniz: “o prestígio de Neruda” é “um mistério que, por sorte, me é indiferente”, e acrescenta: “estou convencido de que, sem seu comunismo, nem Vallejo nem Neruda seriam tão apreciados”. Em meus diálogos com o crítico espanhol Jorge Rodríguez Padrón, disse-me que “o Neruda dos anos 30, em torno de Residencia en la tierra, vertiginoso e revelador, apagou-se em seu empenho de assumir a impureza como ditado único para sua escritura”. Prossegue: “Este desvio voluntário (eu diria que obrigatório, desde a coerência ideológica que aceita, a partir de então, sua poesia) fechar-lhe-ia todo acesso ao espaço renovador (e verdadeiramente poético) que, nesse mesmo trecho cronológico, abriram e habitaram Lezama e Westphalen e Gorostiza (e não menos Moro, Martín Adán ou Girondo), para configurar essa vanguarda outra que é a que Octavio Paz empenha-se em identificar com o período do segundo pós-guerra, centrado na experiência poética que ele próprio protagoniza.”

Quem situa Neruda entre os “fundadores da nova poesia latino-americana” é o crítico argentino Saúl Yurkievich (1931), em livro homônimo publicado na Espanha em 1971. Antes de tudo, em sua ambição canônica Yurkievich exclui o Brasil da América Latina, ao

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mesmo tempo em que torna discutível sua noção de fundação ao desambientar cronologicamente sua tese. Um exemplo disso é incluir ali o argentino Oliverio Girondo (1891-1967), quando se sabe que a essencialidade de sua poesia radica em um livro publicado em 1954, En la masmédula. Antes disto, para citar um único exemplo, o mexicano José Gorostiza (1901-1973) já havia publicado, em 1939, seu Muerte sin fin.

O livro de Yurkievich traz dois largos ensaios dedicados ao poeta chileno. São duas abordagens do mito: uma fundada na imaginação e outra de cunho histórico. A primeira refere-se a livros como Crepusculario e Tentativa del hombre infinito, enquanto que a segunda detém-se no estudo de Canto general. Em ambos não se situa a poesia de Neruda à luz de sua contemporaneidade. Uma única passagem estabelece alguma conexão, quando o próprio Neruda compara sua poética à de Huidobro. Diz ele: “apesar da infinita destreza, da divina arte de jogral da inteligência e da luz e do jogo intelectual que eu admirava em Vicente Huidobro, me era totalmente impossível segui-lo nesse terreno, devido a que toda minha condição, todo meu ser mais profundo, minha tendência e minha própria expressão, eram a antípoda da destreza intelectual de Vicente Huidobro”.

O crítico venezuelano Guillermo Sucre (1933) – autor de um dos mais fundamentais estudos sobre a poesia hispano-americana: La mascara, la transparencia (1985) – justifica o que digo ao situar a obra poética de Neruda como um dos “grandes e monumentais solilóquios” da poesia hispano-americana, fazendo falta “vê-la em diálogos com outras”. Na verdade, acrescento, bastaria situá-la no universo chileno correspondente àquela geração que verdadeiramente funda a modernidade no Chile: Gabriela Mistral (1889-1957), Vicente Huidobro (1893-1948) e Pablo de Rokha (1894-1968) – ou seja, sua própria geração – à qual integram-se outros nomes de importância cimeira: Rosamel del Valle (1901-1965) e Humberto Díaz-Casanueva (1907-1994).

Mistral soube dosar com argúcia o espanhol herdado de Castella à linguagem nativa de inúmeros países hispano-americanos. Viajante incansável, tinha por declarada essa intenção de “mesclar vocabulários”, de maneira a contribuir – segundo pensava – para a definição de alguma mínima identidade. De Rokha era, por sua vez, tão impetuoso e irregular quanto Neruda. De escrita delirante e profunda, segundo Díaz-Casanueva “escreveu alguns dos versos mais belos da poesia chilena e também alguns de seus piores e mais vulgares”. Quanto a Huidobro, cuja essência poética tem sido erroneamente drenada entre nós, é o poeta da eficácia dessa multiplicidade expressiva buscada por todos, havendo condensado-a em um universo próprio, intrigante e renovador.

Díaz-Casanueva era um desses entranháveis poetas do obscuro, cuja poesia transbordava imagens as mais insólitas, sem no entanto incorrer em uma erupção gratuita das mesmas. Seria interessante por a dialogar o Neruda da série Residencia en la tierra com a escritura abissal de El blasfemo coronado, este último de 1940. Quanto ao Rosamel del Valle, ainda menos difundido fora de seu país, seu largo poema-livro Orfeu (1944) e Fuegos y ceremonias (1952) já seriam suficientes para lhe garantir um lugar de destaque na poesia hispano-americana. Segundo ele próprio, “a poesia obedece a um esforço da inteligência, a um controle vigoroso da sensibilidade e sua expressão extrai o ser do sonho em que se agita”.

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Há aí um contraste com a defesa do alheamento estético que pleiteava Neruda. Basta recordar uma carta sua ao amigo Héctor Eandi, datada de 1928, onde diz: “O poeta não deve exercitar-se, há um mandato para ele e é penetrar a vida e torná-la profética: o poeta deve ser uma superstição, um ser mítico... a poesia deve carregar-se de substância universal, de paixões e coisas.” O curiso é observar que Rosamel del Valle escreveu uma poesia verdadeiramente delirante e carregada de uma maior substância poética.

Se ampliarmos o foco e tomarmos a América Hispânica como um todo, veremos que corresponde à mesma geração de Neruda expressões como os peruanos César Vallejo (1892-1938) e César Moro (1903-1956), os colombianos León de Greiff (1895-1976) e Aurelio Arturo (1906-1974), os argentinos Oliverio Girondo e Jorge Luis Borges (1898-1986), os mexicanos José Gorostiza e Xavier Villaurrutia (1903-1950), o equatoriano Jorge Carrera Andrade (1903-1976) e o guatemalteco Luis Cardoza y Aragón (1904-1992). Não seria arriscado ou irresponsável dizer que a poesia de Neruda não resistiria a uma comparação crítica com a de seus pares hispano-americanos.

Neruda era um poeta desmedido, irregular e sobretudo obstinado pela enumeração, pela quantificação, o que o tornava essencialmente frívolo. Em sua obsessão por escrever sobre tudo e ao estilo de todas as modas literárias, jamais tratou com profundidade nenhum dos problemas básicos da lírica. Exceto pelo fervor imagético da série Residencia en la tierra (1933, 1935) ou passagens ocasionais de livros como Tentativa del hombre infinito (1926) e El hondero entusiasta (1933) – segundo o crítico espanhol Ángel Pariente, “uma das etapas mais valiosas de sua larga produção”, embora não avaliada corretamente por seus exegetas –, rara substância poética encontramos em uma obra tão extensa quanto desnorteada.

Dele disse com exatidão o ensaísta porto-riquenho Joserramón Melendes: “Esse poeta enciclopédico limitou-se à quantidade. Neruda escreveu um poema de cada coisa. O universo tradicional que lhe legaram foi assumido por ele como repertório ou roupeiro, alternadamente: ou vestia uma escola ou mentalizava um objeto.” No epílogo à 2ª edição de Laurel, antologia da poesia moderna em língua espanhola organizada por Xavier Villaurrutia e Octavio Paz, este último, ao situar a recusa de Neruda em participar de tal projeto, observa: “Como tantos, Neruda padeceu o contágio do estalinismo”, acrescentando que “essa lepra apoderou-se de seu espírito porque se alimentava de sua egolatria e de sua insegurança psíquica”.

Sobre a personalidade de Neruda, podemos ler o capítulo a ele destinado no livro O continente submerso (1988), de Leo Gilson Ribeiro. Embora haja um excesso passional no relato da situação, este texto nos informa acerca de exibicionismos e mesquinhezes, não deixando de mencionar o ideário de maquinações do chileno para garantir sua nomeação ao Nobel, o que se deu em 1971. Neruda não possuía o mínimo apreço por seus pares. Pode-se dizer dele que era um cafajeste exemplar – com sua ambigüidade retórica: adorável e indesejável. Pouco entendia de poesia e menos ainda nela estava interessado. No Chile se conhece bem a acusação – tratada como verdadeiro epitáfio – de Pablo de Rokha, que evidenciava os equívocos ideológicos de Neruda.

A publicação recente de Cadernos de Temuco não passa de um acontecimento editorial, sem nenhuma importância poética. Pode fazer a festa entre biógrafos, mas nunca despertar

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interesse entre os cultores de uma grande poesia. São versos de “um rapaz que somente tem quinze anos” e que os escreve “mordido de amargura”, como diz o próprio autor, constituindo uma tediosa seqüência de vulgaríssimo romantismo. Encanta mais o périplo que lhe foi destinado: Neruda pediu à irmã que guardasse seus manuscritos e esta os presenteou a um sobrinho que, por sua vez, os vendeu a um colecionador, que os revendeu a uma editora que os acabaria leiloando a seguir, encontrando na viúva do poeta a recusa em adquiri-los, desfazendo a cadeia que seria retomada posteriormente graças ao enigmático aparecimento de uma cópia dos originais. Uma a mais entre as inúmeras histórias em torno desse “grande mau poeta”, como a ele referia-se o espanhol Juan Ramón Jiménez.

 

João Cabral: a poesia do menos, de Antonio Carlos Secchin

 

Há um desafio implícito ao se escrever sobre João Cabral de Melo Neto (1920-1998). Não por que já se tenha dito tudo sobre este poeta, mas antes pelo fato de que tudo aquilo que foi dito sobre ele o foi sempre sob um mesmo ângulo, cuja massa crítica constitui parcialmente aquela cantilena tão desprezível a ele próprio.

A publicação de uma 2ª edição revista e ampliada de João Cabral: a poesia do menos (Topbooks, 1999), de autoria de Antônio Carlos Secchin, difere em algum sentido desse acúmulo de dizeres reiterativos a respeito do autor de A escola das facas (1980), e junta-se, neste particular, a outro largo estudo, A página branca e o deserto. Luta pela expressão em JCMN (1959), assinado por Othon Moacyr Garcia.

João Cabral sempre teceu sua escritura poética baseada em um rigor da linguagem, rigor tão obsessivo que por vezes o terá conduzido à sensação de esterilidade. É poeta que sempre defendeu a essencialidade da idéia fixa. Em nome dessa obsessão, obstáculo que impôs a si com clara consciência, firmou sobretudo uma ética peculiar, ética de exceção. Tanto que considerava-se estranho à tradição luso-brasileira, “tão marginal como

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Sousândrade e Augusto dos Anjos”.

Em algo seu processo criador recorda o do chileno Humberto Díaz-Casanueva (1907-1992), vindo exatamente da obsessão por um rigor sob o risco constante da esterilidade. Os dois, para dizer com o chileno, podem “dar conta de cada imagem ou idéia poética e da razão de sua existência”. Diz Cabral que impede “tanto quanto possível” a ação do inconsciente sobre sua mão. Já Díaz-Casanueva salienta: “às vezes sinto uma facilidade suspeitosa e me invadem ritmos e até rimas”.

Mais conjunções podemos encontrar em inúmeras afirmações de ambos, sendo inquestionável ao menos uma disjunção: a obra poética de cada um. Poetas que lidaram com o acento arriscado de um rigor construtivo, demasiado cerebral, foram ambos herméticos, porém diferem no aspecto órfico e visionário que encontramos no chileno e que o brasileiro, salvo em algumas imagens destacadas por Secchin em Pedra do sono (1941), raramente alcançaria.

Díaz-Casanueva estava ciente de que a obsessão por anular a subjetividade no ato poético implicava no risco de extravio da lucidez e na conseqüente perda do poder de comunicação, como destaca Guillermo Sucre em ensaio sobre o autor de Vigilia por dentro (1931). Está claro que a recusa de um componente subjetivo na poesia de Cabral tem a ver com o que Sebastião Uchoa Leite apontou como sendo uma “opção anti-romântica”. O próprio poeta dispara: “a maior desgraça que aconteceu para a humanidade talvez tenha sido o romantismo”, observação curiosa, uma vez que Cabral elevou ao paroxismo sua obsessão construtivista.

O livro de Secchin traz ao final uma memorável entrevista com João Cabral, onde não se limita o entrevistador a repetir a fórmula de outros diálogos com o poeta pernambucano. Dele extrai com exímia sutileza algumas pedras novas, ou as mesmas, em distinto polimento. Entre elas, a de que a poesia de Valéry sempre lhe “pareceu secundária, uma espécie de Mallarmé passado por água”, o que contrasta com o entendimento de Othon M. Garcia, de que há em Cabral “uma influência muito viva de Valéry”.

Diz ainda João Cabral: “O que me interessava nela era a explicação teórica de Mallarmé, seu mestre. Só que a poesia do mestre conduziu a um beco sem saída. Todos os que se influenciaram por ele deram um ou dois passos atrás.” É inevitável abordar que o mesmo que diz Cabral acerca de Valéry pode ser observado na poesia brasileira surgida a partir do autor de O cão sem plumas (1950), ou seja, todos aqueles poetas diretamente influenciados por Cabral “deram um ou dois passos atrás” em relação ao que já havíamos conquistado.

Além disto, uma digressão justificada nos remete a um falseamento do real significado da obra de Cabral, onde a defesa da poesia como uma construção verbal foi confundida com um abandono do sentido, uma displicência no tocante à ideologia da escrita, ou seja, uma dimensão ontológica. A imagem poética de alguma forma foi desmembrada da experiência de vida. Não se responsabiliza aqui a aposta de João Cabral, mas sim uma leitura desfocada, algo intencional. A poesia é construção verbal, sim, porém carregada de sentidos.

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De volta à abordagem de Othon M. Garcia, certamente em 1958, quando preparou seu ensaio, não encontrava ainda razões para observar a dissensão entre Cabral e Valéry. Na ocasião, por exemplo, mencionava que a inspiração e o acaso eram aspectos importantes na construção da poética cabralina, o que foi terminantemente minimizado pelo próprio poeta em inúmeras ocasiões.

Cabral sempre foi um turrão diante de determinados temas. Soa risível, por exemplo, seu entendimento de que Gaudí era um anti-arquiteto pelo fato de não haver traçado plantas. Disse certa vez: “pouca coisa ele desenhava e previa”. Niemeyer rigorosamente planejou vãos onde o homem é uma irrelevância, basta ver a dificuldade de deslocamento a pé no interior de seu dimensionamento arquitetônico.

E o afirmava ao mesmo tempo em que considerava Juan Miró “um instintivo puro”, contrapondo-o a um Picasso por demais preso aos “princípios de composição do Renascimento”. Vale recordar que Miró chegou a referir-se a uma impossibilidade de falar de sua pintura, pois a tinha como nascida “no estado de alucinação que provoca um choque qualquer, objetivo ou subjetivo, e do qual sou totalmente irresponsável”.

Revela Cabral a Secchin: “Escrever para mim é um sofrimento”, o que me lembra observação do guatemalteco Luis Cardoza y Aragón sobre Antonin Artaud: “A lucidez foi seu maior sofrimento. Sua lucidez antecede e origina a fadiga.” Não se pode dizer de Artaud que tenha buscado menos sofregamente que Cabral uma ética da linguagem. Também não se pode evitar de mencionar a presença de uma fadiga na obra de Cabral.

O que não conseguiu Cabral? O que recorta com precioso olhar Guillermo Sucre acerca de Humberto Díaz-Casanueva: uma simultaneidade entre “consciência desértica” e “aventura desmesurada”, de uma certa forma aquilo de que nos dava conta, ainda que em estado embrionário, a estréia com Pedra do sono. Nessa obsessão por um estado de exceção, desfez-se de uma idéia já burilada em um poema, de “que o homem / é sempre a melhor medida”, desprendendo a vida do corpo da vida do espírito, para recorrer a uma imagem de Othon M. Garcia.

A leitura da poesia de Cabral levada a termo por Antônio Carlos Secchin tem sua particularidade ao salientar que se trata de “uma poesia sutilmente confessional, urdindo uma espécie de autobiografia em 3ª pessoa”, ao mesmo tempo em que destaca sua hostilidade aos “espasmos da comiseração”. Discordo, entretanto, do vínculo traçado entre lirismo e facilismo, entendido este último como uma distensão do arco.

No decorrer de todo o livro, desmonta verso a verso a relojoaria cabralina, apontando os zelos felizes e sugerindo algumas mazelas. Trata-se da melhor abordagem, do ponto de vista de uma crítica literária, acerca da obra de João Cabral, que permite nas entrelinhas a compreensão das anotações que faço aqui, ao mesmo tempo em que não segue a trilha tendenciosa de parte considerável da bibliografia sobre este poeta.

 

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Poemas da carne e do exílio, de Ovídio

 

Talvez o que mais tenha atraído José Paulo Paes a traduzir Ovídio seja a paixão pela aventura ante o desconhecido como a concebeu o grego Homero. Antes traduzira Kazantzákis, este outro grego que, a exemplo de Dante, Shakespeare, Joyce, enriquecera o mito do viajante como transgressor, esplendidamente configurado pelo orgulho da figura errante. A esta mesma linhagem pertencem, entre outros, Christopher Marlowe e Laurence Sterne. Deste último já traduzira José Paulo Paes o romance Tristam Shandy.

Profundíssima a relação entre Ovídio e Homero, deflagrada na identificação com o protagonista da Odisséia. Valho-me aqui da observação de Harold Bloom, ao destacar que Ovídio, “exilado e amorista, funde-se com Ulisses em uma identidade compósita, legando-nos assim a idéia hoje permanente de Ulisses como o primeiro dos grandes mulherengos errantes”.

Sintomático então o título escolhido por José Paulo Paes para esta seleta de três livros de Ovídio: Poemas da carne e do exílio. Temos aí a contiguidade da errância e da voluptuosidade das paixões que dilaceraram a vida do poeta latino. Condenado ao exílio por ferir uma restrição moral da época, o tema hoje poderia muito bem descarnar a fraude familiar em que se fundamenta toda a civilização ocidental.

A coletânea preparada por José Paulo Paes reúne os livros escritos no exílio e movidos justamente pelas razões da súbita extradição de Ovídio, por édito imperial que assinara Augusto, exibicionista imperador romano que antes o distinguira com méritos honrosos. É fato que a decantada libertinagem romana não passava de uma aventura erótica para compensar os aborrecimentos da rotina familiar. O infortúnio de Ovídio foi precipitar-se sobre o leito da jovem Júlia na mesma noite em que ela já repartia seu amor com o avô, justamente o imperador Augusto.

Ovídio permite, mais do que qualquer outro autor da época, refletir sobre o contraditório registro moral que nos define até os dias atuais. De um lado, a pobreza arrastada pela estereotipação congelada de conceitos exauridos de toda veracidade. De outro, a eterna decadência sublimada da corte. Neste assunto não entra a pena de José Paulo Paes no estudo introdutório, sem que isto debilite o teor crítico das considerações ali traçadas. Bem

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ao contrário, dignifica a poesia de Ovídio, recuperando o poeta da pecha de promíscuo a que recorreram tantos outros críticos.

Recolhe a edição preparada por José Paulo Paes os livros Amores, Tristes e Pônticas. No primeiro deles, já havia antecipado Ovídio o casto apreço pelas cortesãs em Sátiras, ao escrever: “tutior merx libertinarum” [melhor inversão são as libertinas]. Talvez compreendesse melhor do que seus pares o paradoxo social de que foi vítima. Em Arte de amar, de forma menos evanescente, já referia-se à palavra libertinus no conceito original de uma virtude doada. Peso idêntico ao de uma carta de alforria.

Talvez a indignação de Ovídio pela inaceitável razão do exílio tenha provocado um sentido inverso ao da síntese já definida em As metamorfoses. Recordo aqui Italo Calvino, ao definir que “o gesto de Ovídio é sempre o de acrescentar, sem jamais subtrair; o de descrever cada vez mais os detalhes, sem se perder no evanescente.” Sábia, neste sentido, a recolha fragmentária destes livros de exílio do poeta latino. Nas epístolas e elegias finais, embora uma delas ostente uma flâmula de sua poética – “mors nobis tempus habetur iners” [a inércia me é mortal] –, não verificamos a mesma abundância concentrada que caracteriza-lhe a obra máxima.

De volta ao começo, sigo supondo que Kazantzákis tenha sido o condutor de José Paulo Paes a Ovídio. Tradutor já de Pietro Aretino e de William Carlos Williams, doa-nos agora mais um estágio daquele excesso de Deus a que se referira John Dryden ao tratar de Geoffrey Chaucer. Define Ovídio a odisséia a partir do rígido princípio das metamorfoses. E nos chega agora com a não menos instigante “lírica erótica”.

 

Ruidurbano, de Uílcon Pereira

 

Defende Marcel Schwob que “o ponto de partida moral do homem é o egoísmo”. Conclui-se, a partir de então, que a perversão é um atributo natural que determina e aprimora a existência humana. A poesia e seu mundo povoado de imagens alucinantes fundamenta o

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princípio de toda perversão, a partir de um sentido absoluto de descontinuidade. Diz o poeta: “sou todos os homens”. E o diz justamente por compreender, mais do que qualquer outro, a múltipla diferença que existe entre os homens, por habitar com o próprio ser essa morada descontínua e abissal. Sabe que somente no âmbito da criação consegue demonstrar tal diferença, ainda que isto implique – o que verdadeiramente se dá – em seu afastamento do mundo. Julga-se a si mesmo a partir da própria perversão, e da noção extrema de comunhão de todos os seres. Graças ao “ponto de partida moral” defendido por Schwob compreendemos melhor a definição de um eu devorador, obsessivo na fome de imagens e identidades, um “eu interior em perpétua mudança”, essência da genialidade de Shakespeare, segundo a explicação de Harold Bloom. Trata-se, sobretudo, do eu que determina a perversão do criador, não limitando o cenário a um simples jogo de ambivalências, mas sim a um fluir e refluir de egos em combate mortal. Representando a si mesmo, em excessos de descontinuidade, evidencia o poeta o sentido maior da experiência como transitoriedade, passagem contínua de um estado de espírito a outro.

Há muitos casos em que a ironia é um instrumento preciso e inconfundível dessa evidência, expressa em múltiplas faces (personae) a partir da intensidade com que a assume o poeta. Pensemos na ironia corrosiva de Kafka ou na sofisticada agudeza irônica da prosa borgeana. Evidencie o poeta uma verdade alegórica ou a transcendência da própria verdade interior, defenda a originalidade do arbítrio ou o arbítrio da originalidade, sua obra não encontrará radical mais contundente do que o da própria invenção, organismo vital do que quer que venha a violar. Seguramente o leitor não se revelará figura indispensável ao universo de tais aparentes contradições enquanto não entender a harmonia hierárquica com que tais forças interagem. Antes do leitor, é natural, interessa-nos aqui a presença inconfundível do criador, hoje uma espécie de audaz sobrevivente à fanfarra publicitária de uma arte feita para todos – em dissonância brutal com o dístico memorável de Lautréamont.

Define-se a obra de Uílcon Pereira (São Paulo, 1946-1995) dentro daquela obsessiva voracidade do eu shakespereano, obsessão desdobrada a partir da visão peculiar do exercício de auto-ironia e do sentido omnívoro de sua versão da originalidade. Lugar evidente da intertextualidade, ao mesmo tempo em que cenário vertiginoso do saque, da pilha; não pura e simples usurpação divertida do texto alheio – como entende parcela da crítica –, mas sim um exercício de invasão aos prejuízos causados pelos domínios precários e evasivos de um falso sentido de originalidade. Mesmo no que chama de “grande e pacífica diversão”, não busca outra coisa – no fundamento irônico que postula – o texto de Uílcon Pereira que não seja a negação da originalidade como extensão de uma realidade literária. Insiste em dizer: “sou todos os homens”, recusando a deformidade de seu tempo em torno dos falsos atributos da identidade do ser.

Alimentada pela leitura – ele mesmo um sequioso e confesso devorador de textos –, não define-se tal vontade criativa pela violação criminal do alheio, mas sim pelo questionamento corrosivo dos fantasmas que determinam os usufrutos da arte, da criação. Neste sentido, há um grande equívoco na abordagem que se tem feito da obra de Pereira: não reproduz textos alheios, mas sim os deforma a partir de uma consciência irônica de que a diferença somente será evidenciada pela descontinuidade, em um grau zero de transformação constante da matéria prima. Talvez pudéssemos falar em paródia, se acaso mantivesse alguma espécie de diálogo com o alheio convocado. Disse-me o poeta argentino

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Leónidas Lamborghini (1927), em entrevista que lhe fiz: “Interessa-me a paródia como olhadela da qual as coisas são vistas bem distintas... A paródia, penso, é nossa tragédia verdadeira e portanto teria que ser nossa arte verdadeiramente séria.” De fato, há uma distinção crítica estabelecida pela paródia que complementa minha defesa da descontinuidade. Contudo, no caso de Uílcon Pereira não se pode falar em paródia ou, se preferem, no exercício paródico em isolado.

Um de seus pares, o romancista Deonísio Silva, refere-se ao empreendimento de “uma espécie de arqueologia narrativa, na medida em que [seus textos] retomam fios que pareciam meio extraviados da ficção atual”. Também não creio em tal ação isolada, sobretudo porque ponho em discussão a aplicação das usuais delimitações genéricas na leitura crítica da obra de Pereira. Não radica, portanto, a obsessão dessa escrita na busca de um conhecimento dilatado do universo literário ou no diálogo – ainda que movido por uma fina ironia – com pares ou sistemas narrativos que lhes sejam contemporâneos. É outra a ordem de tal perversão, outro o ponto de partida de seu egoísmo criador.

Está certo Camilo Mota, este sim, ao observar a descaracterização “da própria idéia de ficção”, seja ela qual for. É tão amplo o universo de deformação intertextual em que age a escrita de Uílcon Pereira que soaria redutor buscar definição a partir do pastiche, da paródia, da metalinguagem romanesca etc. O que mais se aproximaria seria a collage, de acordo com o entendimento de uma alquimia da imagem defendida por Max Ernst, naturalmente referindo-se ao universo visual. No entanto, não busca Pereira – como esperava Breton que a collage o fizesse, no território plástico – uma reorganização do espaço literário, mas sim a acentuada evidência do caos que determina o sentido de originalidade em nosso tempo, a precariedade com que a arte se move em um universo de ações e reações engendradas por uma noção degradante de servilismo do homem em relação ao próximo.

Não há arte sem perversão, não sobrevive o homem longe do “ponto de partida moral”, eis no que insiste a obra de Pereira ao fundamentar o sentido absoluto da descontinuidade: “sou todos os homens”. Desta maneira, erra ainda Fábio Lucas ao observar que o centro de gravidade dessa aventura poética radica na “tumultuada realidade brasileira”. Sequer a questionante raiz do provincianismo urbano presente em seus livros pode ser observada como um universo limitado pelo prisma do nacionalismo. O desprograma a que se reporta a evidência de tal escrita é de caráter ontológico. Refere-se, portanto, à tumultuada realidade humana.

E qual então a evidência da obra de Uílcon Pereira? Dupla ação: um permanente sentido crítico em relação ao nonsense prefixado pela indústria da arte e a defesa constante de um espaço da diferença, da descontinuidade. Todos os meandros dessa escrita são o território de um diálogo permanente, pensemos na série de entrevistas que compõem Ruidurbano (1992) ou na tessitura fabular que orienta o leitor a circular pelos espaços prismáticos do que ele próprio denomina de “cidade não-lugar”, no caso de A educação pelo fragmento (1996.). No primeiro: a evidência se mostra na forma de uma corrosiva ironia: a articulação jornalística de um romancista que percorre todos os cenários de difusão de sua obra, colhendo os louros da pródiga aceitabilidade no mercado editorial. Alimenta-se o autor – protagonista da própria trama – de um cruzamento múltiplo de reações oriundas do lance

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intrincado dos arquétipos de nossa sociedade. Sujeita-se então a uma série de entrevistas – programas de auditório, revistas especializadas, folhetins de subúrbio, rádios interioranas etc. –, onde cinicamente ilude a todos com um pastiche bizarro que aglutina Cervantes e Blade runner, canções pop e Justine, Guimarães Rosa e Satiricon, tiras de gibi e O jogo da amarelinha.

No segundo: fragmenta-se em infinitos eus que confluem para a formação de uma verdadeira unidade territorial, reverberações de um espaço idealizado com ironia pelo autor, o lugar comum da própria existência humana. Como se fosse um compositor pop com formação clássica, sua escrita articula-se através de compassos insólitos, algo incomuns, quase sempre fora de tempo. As variações, contudo, são todas em torno de um mesmo tema: Àssombradado. O “não-lugar” de que nos fala faz com que essa poética não radique na corriqueira argumentação do fragmentário, mas sim na definição de um espaço indiscutível da unidade. Não perde-se em si. Ao contrário: desorienta a todos para que a partir dessa desordem momentânea possa fundar um território poético.

Seja o escritor-personagem sarcástico de Ruidurbano ou as múltiplas vozes que habitam a fábula de A educação pelo fragmento – e o mesmo se verifica e acentua-se nos seis livros que seu espólio conserva ainda inéditos –, há uma única personagem central na escrita de Uílcon Pereira: o “não-lugar” ou cidade imaginária em que se constitui Àssombradado. Não se trata, contudo, da idealização de um visionário, mas sim da perturbadora visão crítica do espaço habitado pela própria contemporaneidade. Não descreve a angústia da imaginação mas sim o universo de relações inseparáveis entre o grotesco e o banal. Não se trata de transe, mas antes de um diferencial de consciência. A geografia humana é vertiginosa como a própria estrutura biológica de nossa percepção da realidade.

A afeição pelo fragmento? Recordo Italo Calvino ao definir que sua vida funcionava “à base de elencos: listas de coisas que ficaram em suspenso, projetos que não se realizaram”. Confunde-se o lugar do mito com o do fragmento. O próprio Calvino suspeitava que a mente humana “só funciona à base de mitos, e que a única alternativa consiste em adotar um código mítico em lugar de outro”. Tudo nos leva a crer que Uílcon Pereira já solucionou tal suspeita, concluindo pela indevassável permanência do mito e suas articulações peculiares. Assim é que Àssombradado é a cidade-escrita. Não a exemplo da cidade imaginária do construtivismo de Paul Klee ou da idealização fantástica de García Márquez ou mesmo das representações angustiantes da terra inóspita de Eliot. A reflexão acerca de um “não-lugar” é a eleição de um lugar comum a toda sorte de mediocridade que tem definido a ação humana neste final de século. Àssombradado é a epígrafe brutal e inevitável de tudo quanto configure o elenco de contradições e ridicularias de que se alimenta o homem em nosso tempo.

Mesmo na trilogia anteriormente publicada, No coração dos boatos, quando ainda sofria uma acentuada atração por Pierre Menard e as táticas burlescas do palimpsesto, já era possível observar que tal fiação narrativa buscava a síntese de um “não-lugar”. Não nos cabe, no entanto, discutir o quanto que Uílcon Pereira despoja-se de suas obsessões ao ambientar, com ironia convulsiva, os obscuros territórios da comédia humana. Importa, isto sim, salientar o risco que corre ao definir um espaço vertiginoso de descobertas – de si mesmo, afinal – ao leitor que se aventure no desdobramento perene dessa leitura. O

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excitante em tal narrativa fragmentada, na plenitude dos ardis, não é a exigência de uma credibilidade no artifício que tece, mas sim a identificação com o enigma do próprio curso, com a realidade efêmera, ostensivamente banal, de um mundo rotulado justamente pelo desgaste das relações diretas entre os homens.

Há uma teoria da descontinuidade que necessita ser defendida a ferro e fogo. Não há uma linguagem idealizada, ao mesmo tempo em que o mundo dos signos é o mundo das diferenças, do exercício perene da sensibilidade. Não há outra maneira de imaginar senão à luz da diversidade. Somente a diferença toca o indivíduo. Por outro lado, nenhum poeta realiza-se fora da escrita. Ao questionar a fragilidade difusora da obra de Uílcon Pereira – em grande parte resumida a um estóico esforço epistolar –, não faço senão recusar qualquer argumento que impeça o trânsito de uma das mais contagiantes aventuras livrescas que se tenha a dispor entre nós. O envolvimento de sua escrita – sobretudo a partir de um diferencial de consciência crítica a que já me referi – invoca alguns célebres pares, lamentavelmente um tanto ausentes da realidade intelectual brasileira: Francis Ponge, Hermann Broch, Marosa di Giorgio, Robert Graves, William Burroughs. Átomos, claro, mas que garantem a convulsão descontínua em que age o humano em nós. Assim o faz a educação pelo fragmento (alheio) em Uílcon Pereira, justamente em função de uma evidência do descontínuo, raiz de toda poesia.

 

Poesia reunida, de Dora Ferreira da Silva

 

Um enorme entusiasmo pela vida tem sido a característica principal de Dora Ferreira da Silva (1918). Em entrevista concedida a Gilberto Kujawski e Hermes Nery, em 1989, sintetiza: “Nós é que damos sentido ao tempo, e buscamos fazer o melhor nesta fração de tempo que é a nossa vida aqui”, isto a partir de uma anotação de seu marido que havia encontrado em um livro: “Entramos na história quando ela já começou, e saímos antes de ela terminar”.

Corroboração imediata com uma leitura de sua poética sugerida por Euryalo Cannabrava,

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quando ali destaca “a busca obstinada de um rigor que, violentando todos os cânones da linguagem prosaica, instaura sobre as suas ruínas a sintaxe lírica do poema absoluto, sem condições restritivas”.

Abordagens complementares: Cassiano Ricardo sublinhava a presença de um misticismo, “tendendo sempre para o mistério”; Ivan Junqueira salienta o convívio perfeito de ambientações “a um tempo cósmica e celebratória” em suas imagens; tudo indo desaguar em uma “expressão religiosa” percebida por Vilém Flusser.

É ele quem nos dá sua melhor tradução, ao observar que em sua poética “o símbolo não é mediação primeira entre o sujeito e coisa concreta, mas entre o sujeito e o transcendente”, concluindo que “o significado último do símbolo não é uma coisa no mundo vivo, mas o que está do outro lado dos limites do mundo vivo”.

Simbolismo e romantismo, tanto quanto a vertente enriquecida pelo surrealismo, são acentos indispensáveis à compreensão da poesia de Dora Ferreira da Silva, o mesmo valendo para muitos poetas de sua geração, que é a mesma de Vinicius de Moraes, Gerardo Mello Mourão e Manoel de Barros, onde merecem ainda ser recuperadas as obras de Dantas Mota e Manuel Cavalcânti.

Nos versos finais de um poema dedicado a Anaïs Nin reflete: “musa da ventania amiga dos gélidos / consumiu-te o fogo em que ardias”, sugerindo um entendimento de que devemos ser iluminados e não queimados pelo fogo que nos conduz através da escuridão perene que funda todas as coisas à nossa volta. Mergulho no risco, mas não descompasso ante os deslizes eventuais.

Aí radica a “lírica órfica” apontada por Ivan Junqueira ou a busca de um “poema perfeito” que destaca Euryalo Cannabrava. Melhor dirá a poeta ao evidenciar que “há todo um mito da noite, este anoitecer que impregna em você, e anoitece junto com você, e você sente-se em estado de graça por participar da noite no que ela tem de poético e impregnante”. A noite aludida não é senão nossa intimidade com o abismo, a revelação essencial da natureza humana, a restauração do sagrado, um risco.

Todos esses símbolos preciosos encontram-se na obra de Dora Ferreira da Silva, cujo princípio poético aponta para uma meditação constante sobre a condição humana, não sem compreendê-la como indissociável da natureza como um todo. Não se trata de uma solitária na tradição poética brasileira, desde que recuperemos muitos nomes soterrados por intenção ou displicência.

O nome de Dora Ferreira da Silva é bastante conhecido graças à sua incansável atividade tradutória, cujos exemplos de maior fôlego constituem a Obra Completa de Carl Gustav Jung e a poesia de Rainer Marie Rilke, mas onde se incluem traduções de San Juan de la Cruz, Angelus Silesius e Saint-John Perse.

Contudo, outra particularidade de seu envolvimento com a poesia a ser mencionada é o fato de haver fundado e dirigido duas importantes revistas: Diálogo, nos anos 50, ao lado do marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva, e Cavalo Azul, nos anos 80 – publicações já

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esquecidas, mas que representaram, em seu tempo, um essencial repositório da criação e sua reflexão.

Quanto à sua obra poética, vinha já de muito necessitada de uma difusão mais ampla, uma vez que a mesma somente circulava em São Paulo, em livros como Menina seu mundo (1976), Talhamar (1982), Retratos da origem (1988), Poemas da estrangeira (1992) e Poemas em fuga (1997).

Temos finalmente a edição de sua Poesia reunida (Topbooks. Rio de Janeiro. 1999), que recolhe, além dos livros mencionados, Andanças (1970), Uma via de ver as coisas (1973) e Jardins (1979), além de poemas traduzidos para o alemão pelo amigo e exegeta Vilém Flusser que, ao estudo de sua poética, dedica capítulo do livro Bodenlos: eine philosophische Autobiographie (Dullseldorf, 1992).

Tratemos de lê-la. A densidade de sua poética, não diluindo-se ao plano das consternações ou das máximas de efeito, impõe o recolhimento natural à compreensão de toda grande poesia, cujo exemplo temos em poemas como “Garças”, “Ciclo de Teseu” e “Retratos da alma”. Dora Ferreira da Silva teve suficiente paciência para ser lida pelos brasileiros somente aos 80 anos de idade. Que os brasileiros saibam dignar-se diante de tamanha honra.

 

Na trilha de Lagoa Santa, de Henrik Stangerup

 

Em Copenhague, no Museu Real de Ciências Naturais, há uma preciosa coleção de mamíferos quaternários, ao lado de uma vastíssima fauna extinta que inclui marsupiais, morcegos, desdentados, roedores e carnívoros, toda ela oriunda das cavernas de Lagoa do Sumidouro, no interior de Minas Gerais. Este valioso e revelador acervo ali se encontra graças a Peter Wilhelm Lund (1801-1880), paleontólogo dinamarquês que em meados do século passado, em expedição científica por aquela região, identificou inúmeras espécies, culminando com a descoberta de ossadas humanas com mais de 20 mil anos de idade.

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Quase um século e meio depois, um outro dinamarquês, Henrik Stangerup (1937-1998), esmiuça a aventura existencial de Lund e a remonta em uma mescla de romance e biografia, em uma trajetória ousada que enlaça o épico ao lírico e ao dramático. Já não conta ali a perspectiva científica em isolado, mas sua raiz existencial, o esboço humano de um personagem que ao percorrer as entranhas de uma nova terra o fez desentranhando-a em parte de si mesmo.

Por último, uma terceira pessoa, não mais dinamarquês de nascimento, mas filho de, traduz o romance de Stangerup, que se publica agora no Brasil. Trata-se do também romancista Per Johns (1937), que resgata o título de uma certa passividade, como a que se verifica em sua versão para o inglês: The road to Lagoa Santa. Ao traduzir para o português como Na trilha de Lagoa Santa (Editora Record. Rio de Janeiro. 1999), Johns mantém o princípio de um caminho buscado e não de um caminho apenas trilhado, distinção essencial se tratamos de instâncias igualmente vertiginosas como as escavações de Lund, Stangerup e Johns.

Quem é Henrik Stangerup? Decerto os brasileiros não se lembram que em 1980 um outro romance seu foi publicado entre nós: O homem que queria ser culpado. Este livro chegaria aos Estados Unidos dois anos depois, em tradução de David Gress-Wright, porém foi relançado em 1991 graças à enorme aceitação de seu autor naquele país. Ao lado dele, vários outros se encontram hoje publicados, de que são exemplos Brother Jacob, Snake in the heart e It’s hard to die in Dieppe. Stangerup também organizou várias edições da obra de Kierkegaard nos Estados Unidos.

Também a Europa não tem dificuldades em identificar sua importância. Quando de sua morte, no ano passado, houve uma consternação geral. Em um desses momentos, recorda seu tradutor espanhol, Jesús Pardo, que sua meta era “escrever o inefável”, o que não ocorreria se não conquistasse o silêncio.

Essa conquista do silêncio relaciona-se com uma outra declaração de Stangerup: “O dever do escritor é propiciar ao leitor as verdadeiras perguntas existenciais. Se, ao terminar o livro, o leitor começa a indagar sobre o sentido da vida, posso dizer que alcancei meu objetivo.” O recolhimento concentrado em uma aventura – seja a do paleontólogo Lund, do romancista Stangerup ou do tradutor Johns – é que nos dará o direito a essa conquista essencial: o silêncio, a certeza de estar tocando a matéria de que é feita toda existência.

Em um dos capítulos que compõe o romance de Stangerup lemos uma carta de Kierkgaard a Lund onde se declara feliz pelo cientista haver encontrado “um enorme campo para suas observações, onde, a cada novo passo, se lhe oferecem reiteradas estranhezas”. Do que trata Stangerup neste seu livro é justamente dessas reiteradas estranhezas, sobretudo as oriundas do espanto de Lund ante o mistério da terra, seu clima e a forma violenta como a natureza se expande.

Em Na trilha de Lagoa Santa há um Brasil perdido em nossa memória. Está ali uma face da grandeza mestiça que nos caracteriza, mesmo que o passado revelado nos pareça uma fábula. A grande ilusão é o presente, o suposto registro instantâneo de todas as formas possíveis em que a existência humana se deblatera. O passado pertence à fábula e o futuro à

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ficção científica. Emperrados no meio, ficamos os brasileiros, dopados pela ilusão do presente infinito. Quando nos disporemos a decifrar nossa existência?

Henrik Stangerup soube dar dimensão histórica e literária a este desafio que se impôs de converter biografia em romance. Como anota o tradutor em um valioso prólogo, todo romance “radica naquilo que ainda hoje, apesar dos pesares, se chama estilo”, ao que acrescenta: “E caráter”. Não me atrevo a resumi-lo, sob o risco de reduzir sua dimensão. Somente a arte consegue compreender que a vida é indescritível. Somente ela teima em mergulhar em cavernas insólitas no intuito de dali extrair dúvidas que nos levem a pensar em nós.

 

Três livros, três manifestos: Anotações para um apocalipse, Dias circulares e Jardins da provocação, de Claudio Willer

 

Disse certa vez Octavio Paz, em seu Corriente alterna (1967), que “a dificuldade da poesia moderna não provém de sua complexidade [...], mas sim de que exige, como a mística e o amor, uma entrega total (e uma vigilância não menos total)”. Esta entrega total será a condição legítima para a anulação de distinções entre real e imaginário, conforme defendia André Breton. Ambos concordariam que o assunto se resolve mais do ponto de vista de uma ética do que propriamente de uma estética. A necessária subversão da linguagem aqui se aplicaria em um sentido mais amplo, não limitado apenas às relações entre forma e significado. Trata-se de uma afirmação de contradições, desdobrando-as até que operem como reveladores de uma realidade outra. Desde a modernidade, o poeta não pode mais ser o ingênuo fazedor de versos, cabendo-lhe uma sensibilidade mais apurada que lhe permita a descoberta contínua de novos elos entre sua própria identidade e a percepção da presença do outro em sua criação. Nesta simples conduta radica toda a aventura moderna da poesia. A partir de seu desencadeamento, a linguagem poética se reconfigura, estabelecendo novos códigos, afirmando-se como o contradiscurso que a caracteriza em sua raiz.

A noção de contradiscurso está ligada à maneira como percebemos o mundo à nossa volta.

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Se nosso entendimento limita-se a uma condição binária, a formulação de um contradiscurso será a simples contraposição ao discurso dado. Por outro lado, se o compreendemos como uma entidade triádica, onde a presença dos opostos é mediada por uma instância que tanto pode ser sua soma como sua anulação, então o contradiscurso necessita aprofundar seu raio de ação, ciente de que tanto percepção de imagens quanto formação de idéias são aspectos que se encontram ligados a uma aceitação de contradições, formulações que podem ser recortadas por associações, golpes do acaso, acomodações, vislumbres etc.

Quero particularizar estas observações preliminares abordando um momento isolado e até hoje não mensurado em meu país no tocante à afirmação de idéias e convite ao diálogo levados a termo pelo poeta Cláudio Willer no decorrer de toda uma vida, mas sobretudo em seus três livros de poesia, todos acompanhados de manifestos que optam por uma refração à mera exposição ou imposição de vertentes estéticas ou ideológicas. Em três ocasiões – Anotações para um apocalipse (1964), Dias circulares (1976) e Jardins da provocação (1981) –, ladeou a própria poesia com a exposição do pensamento acerca das questões que lhe pareciam fundamentais tanto ao entendimento da Modernidade quanto à maneira brutal como esta mesma Modernidade estava sendo aviltada no Brasil, seguramente em nome de uma oligarquia que, esquizofrênica, tem nos cerceado uma relação mais direta com a história.

O que me parece essencial na recuperação dos referidos manifestos não é tanto o fato de um poeta brasileiro estar se dispondo a refletir sobre as questões básicas que orientam (ou distorcem) a contemporaneidade – este fato, por si só, já seria fundamental, uma vez que vivemos em uma sociedade cuja tônica é que seus componentes se abstraiam de responsabilidades para com ela –, mas antes que o que afirma ao longo de três décadas mantenha-se como um quadro praticamente inalterado. Ou seja, não houve tomada de consciência atrelada à sua indispensável ação (ou mesmo reação) no que diz respeito ao comportamento do poeta brasileiro ao menos no decorrer desse período que abrange a reflexão de Cláudio Willer.

Talvez esta afirmação (minha) cause um certo impacto, se pensarmos em uma sempre relativa difusão de nossa poesia no exterior. Inúmeros aspectos, desde a eclosão dos ismos no princípio do século, propiciaram distorções no entendimento do papel que deveria passar a desempenhar o poeta em nossa sociedade, o mesmo valendo para a própria concepção de novas afirmações estéticas. O que Cláudio Willer põe em discussão nos manifestos é que não se pode distinguir nosso comportamento ético de seu correspondente estético. Quando uma cultura referenda a produção como condicionante para a afirmação de seus valores, já temos aí uma distorção. Em nosso caso, se pode acrescentar um fator ideológico, não na limitação binária usual, mas antes em uma perspectiva que nos define desde a colonização portuguesa: um nepotismo tão arraigado que chega a fazer-se cinicamente imperceptível ou levianamente aceitável.

Nos três manifestos, Cláudio Willer aborda aquelas preocupações que eram suas, naturalmente, correlacionando-as aos itens de ocasião. Em 1964, iniciávamos nosso período histórico sob a guarda de um regime militar. Mesmo assim, Willer já destacava que “analisar a posição de cada uma dessas escolas e tendências seria a tarefa exclusiva e

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jamais executada da crítica literária”, ao referir-se a uma necessidade natural de brasileiros perceberem o que se passa no resto do mundo. Doze anos depois, abordava uma fraude em nosso sistema educacional, que permitia intencionalmente o analfabetismo e a conseqüente desarticulação verbal de toda uma juventude. Naquela ocasião, já afirmava que “o culto esotérico das logorréias tecnocráticas, os cacoetes dos economistas, administradores e semiólogos” eram formas que incapacitavam qualquer diagnóstico lúcido em relação à época.

Cláudio Willer era uma voz praticamente isolada naquela ocasião, onde a poesia brasileira mesclava aderência e isolamento, em nada sendo possível uma perspectiva de subversão de linguagem. É curioso observar que Octavio Paz tenha se deixado encantar pelo Concretismo, chegando a declarar que “em 1920, a vanguarda estava na América Hispânica; em 1960, no Brasil”, uma contradição no mínimo estranha em quem igualmente dizia que o entendimento das vanguardas cabia mais a um plano moral do que intelectual. Fato é que não havia moral alguma, em uma conjuntura ética, seja no manifesto ou em sua decorrência, no que diz respeito ao Concretismo. Talvez Paz estivesse, naquela ocasião, por demais fascinado por um make it new em si e que lhe tenha despertado ainda mais a atenção o fato da novidade vir do Brasil ou dos Estados Unidos.

Com que exemplo de subversão ficamos? Em um dos manifestos, Willer chama a atenção para o fato de que “a poesia é ao mesmo tempo transitória e essencial, ela reporta-se aos fundamentos, ao concreto que está por detrás das aparências, e simultaneamente aponta para seu próprio fim, para seu desaparecimento como forma autônoma de arte ou de comunicação”. Diante disto, como considerar, por exemplo, o Concretismo na condição de uma vanguarda, quando se mostrava em duplo desacordo com essa referência aqui citada? A base do Concretismo não dizia respeito a uma afirmação estética, uma vez que ali se verificava a supressão do elemento humano – Adolfo Casais Monteiro observava na época que abstraído o elemento tempo caía por terra toda a concretude buscada –, mas antes a uma abstração do discurso. Eqüivalia a potencializar um radical intelectual que não encontraria jamais correspondente no plano coloquial.

A condição básica de instauração do Concretismo no Brasil não diz propriamente respeito ao fascínio pela novidade de deslocamento de signos, sua intelectualização exacerbada das teorias epistemológicas em voga, impurezas de tal ordem. Sua afirmação entre nós se dá como uma confirmação de uma tradição atrelada à submissão formalista, onde a poesia se realiza tão-somente como um entramelado de fibras que resultam apenas em uma perspectiva formal. Ao ignorar o outro, se ignora a si mesmo e, por conseqüência, a própria condição de atuação nos domínios de tempo e espaço que nos toca viver.

Em uma relação binária já aqui mencionada, o brasileiro jamais conseguiu entender a si mesmo senão medido por esse absurdo. Mesmo assim, se poderia considerar uma frase de Casais Monteiro, quando diz que “o mal da poesia são os falsos poetas que toda a gente entende e não os revolucionários que toda ou quase toda a gente considera ininteligível”. Embora entendendo o que fala Monteiro, é importante lembrar que o poeta busca mais do que uma comunicação, ou melhor, busca uma afirmação dessa perspectiva de comunicação. A dúvida que nos anima é até que ponto teria sido fraudada uma perspectiva de contradiscurso como característica de nossa cultura. Recorrer aos manifestos de Cláudio

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Willer apenas afirma sua agudez envolvendo os tópicos essenciais de nossa explanação.

Logo no primeiro deles, Willer refere-se a “um equívoco na condenação de posições de isolamento, de marginalidade, de individualismo e intransigência frente ao engajamento político”, lembrando que “este tem implicado uma série de concessões, de nivelamentos, em suma, em um conformismo e uma acomodação apenas dispondo de outro nome e justificados pela promessa de uma mudança social a longo prazo”. O manifesto do poema-práxis, proposto por Mário Chamie em 1961, mencionava uma “realidade escolhida” como área de interesse para a construção de um poema, ou seja, apostava em uma dissensão entre dialética e vivência. Por outro lado, aspectos como onirismo e percepção aguçada da realidade jamais foram bem vistos em nossa tradição literária, e a própria concepção de experiência individual sempre esteve nublada por uma leitura equívoca de experiência coletiva, uma situada em contraposição à outra. Cabe aqui recordar com Willer um comentário de Willer a propósito de Stekel, “de que a sociedade não pode ver livremente concretizada em indivíduos aquilo que seus membros reprimem”.

A menos que tomemos por base a exceção e não a regra, a tradição poética brasileira vincula-se a um formalismo inócuo e exacerbado, raras vezes encontrando-se com a conhecida proposição de Maiakovsky, de que não há arte revolucionária sem forma revolucionária. Embora o manifesto do Concretismo situe parcialmente o Dadaísmo entre seus precursores, nem de longe se pode vincular a vanguarda brasileira àquela “atitude metafísica” ou ao “espírito profundamente anárquico” que, segundo Duchamp e Breton, respectivamente, caracterizava Dadá. O Brasil de então se escondia das perseguições ideológicas, ou aderia às inúmeras variantes reacionárias de ocasião. Uma vez mais nosso alardeado perfil passional encontrava mais facilidades na imitação do que na fundamentação de uma afirmação ou resistência cultural.

No segundo manifesto, Willer chama a atenção para o fato de que a poesia não pode se desvincular de seu componente social, situando que “perder isto de vista leva invariavelmente ao formalismo, ao cultivo de alguma proposta estética como fim em si, desvinculada das reais condições sociais e históricas com as quais se relaciona”, observando ainda que tal circunstância “passa a ser consumismo, o culto reacionário de algum modo de expressão pretensamente contracultural, porém desvinculado de qualquer ação concreta contra esta mesma cultura”. O próprio Willer acrescenta o risco constante de se “estabelecer uma vasta confusão entre antecedentes e conseqüentes”, o que nos leva a exemplificar a risível “permanência livre da negatividade permanente” defendida pelo Poema-práxis, ou a obsessão por transplantar para áreas de concepção dualística da realidade a síntese do hai-kai, efeito distorcido de um “método ideogrâmico” defendido pelo Concretismo.

O consumismo a que se refere Willer revela-se na relação de dependência subjugada entre criação e produção, o estilo invariável com que imprensa e mundo editorial se sustentam em meu país, culto maçônico ao corporativismo, coadjuvantes de uma menos realidade – em contrapartida ao sentido de mais realidade defendido pelo Surrealismo –, à qual se encontra hoje inteiramente comprometida toda a nossa expressão artística ou, como queiram, produção cultural. Vivemos uma realidade absolutamente mascarada. Nossa obsessão pelo cinema, por exemplo, limita-se a um plano competitivo, uma estratégia de

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mercado. O grande negócio em que se transformou a canção popular quase eqüivale à exportação de jogadores de futebol. A única ideologia possível chama-se mercado, com seu pressuposto formalista, ao qual aderimos integralmente.

Em momento algum se percebeu no Brasil que não há maneira saudável de compactuar com os estatutos de uma sociedade repressiva. Hoje o país se descaracteriza a olhos vistos. Mesmo uma imagem criada no exterior, se pensarmos na bossa nova ou no futebol, tende à sua distorção ou diluição. Uma vez mais o que estava presente nos três manifestos de Cláudio Willer se repete. Os mais jovens poetas brasileiros que possam ser mencionados como tais inscrevem-se já em uma tradição formalista, nosso parnasianismo perene, inesgotável, e se drogam daquela “realidade escolhida” como pequenos burgueses satisfeitos da emanação de seus discursos, ainda que sem relacionar-se com o resto do mundo.

Talvez a terra mais inóspita à poesia se chame Brasil. Não que não tenhamos grandes poetas. Mas que somos súditos em demasia. E nosso comportamento se mescla àquela presunção que conspira contra o enriquecimento de uma idéia, sua fundamentação e propagação. Nossa idéia aqui era abordar uma fraude sistêmica no que se poderia chamar de contradiscurso. Uma absurda falta de caráter consubstancia um perfil nacional. Livros como El laberinto de la soledad ou El nicaraguense, respectivamente de Octavio Paz e Pablo Antonio Cuadra, situam um padrão de reação a tópicos internos e externos de uma cultura. Penso que Cláudio Willer, de alguma maneira, se aproxima deles, por uma razão simples: nenhum outro poeta no Brasil tomou para si a tarefa de considerar como indissociáveis as relações entre poesia e sociedade.

De volta ao início, nossa idéia de modernidade esteve sempre mais ligada à complexidade formal, uma vez que nosso beletrismo jamais cedeu à visceralidade exigida pela poesia moderna. Willer tem razão: quando parecemos inovadores o somos tão-somente de um ponto de vista tangencial, ou seja, pendemos “mais para o polo da ironia, da sátira e da paródia, do que da criação de novos códigos, de um verdadeiro contradiscurso”. Tal condição avança e hoje determina uma relação quando muito tangencial entre poesia e sociedade. Nossos poetas seguem escapando de si mesmos, acreditando-se herdeiros de uma tradição que os afasta de um diálogo franco com outras culturas. Creio que juntamente com os tolos que se acreditam partícipes de uma revolução da linguagem a que intitulam neo-barroco, os brasileiros que se excedem em uma debilidade meramente descritiva de cenas ajudam a compor um quadro de estigmatização que afirma, em nosso caso, uma identificação voluntária com essa tradição formalista, aristotélica, causal, que define a poesia brasileira ao longo dos tempos.

 

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Floriano Martins (Fortaleza, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Tem se dedicado, em particular, ao estudo da literatura hispano-

americana, sobretudo no que diz respeito à poesia. É autor de livros como Escritura conquistada (Diálogos com poetas latino-americanos) e

Escrituras surrealistas (O começo da busca), ambos publicados em 1998. Também nesta mesma data publicou traduções de Poemas de amor, de Federico García Lorca, e Delito por bailar o chá-chá-chá, de Guillermo Cabrera Infante, seguidas posteriormente de Dois poetas

cubanos, de Jorge Rodríguez Padrón (1999) e Três entradas para Porto Rico, de José Luis Vega (2000). Na poesia, destacam-se o volume Alma

em Chamas (1998), Cinzas do Sol/Cenizas del Sol/Ashes of the Sun (2001), juntamente com o escultor costarriquenho Edgar Zúñiga, e Natureza Morta (2001), com o artista plástico Hélio Rola. É também

autor da biografia do compositor erudito Alberto Nepomuceno (2000), bem como assina edição e tradução de um livro de contos do

costarriquenho Alfonso Peña (A nona geração, 2000). Com larga trajetória de colaboração à imprensa, no Brasil e no exterior, tem escrito

artigos sobre música, artes plásticas e literatura. Atualmente dirige, juntamente com Claudio Willer, a revista Agulha (www.agulha.cjb.net) e coordena a Banda Hispânica (www.secrel.com.br/jpoesia/bhportal.html), do Jornal de Poesia. Colaborador de jornais como O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e O Globo, integra o conselho editorial da revista Poesia

Sempre, da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), sendo também correspondente das revistas Babel (Venezuela), Común Presencia

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Page 66: Fogo nas Cartas - Teologia pela Internet · Web viewTrata-se da melhor abordagem, do ponto de vista de uma crítica literária, acerca da obra de João Cabral, que permite nas entrelinhas

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(Colombia), Matérika (Costa Rica) e Blanco Móvil (México). 

Fogo nas Cartas © 2001Edições da Agulha/eBooksBrasil

Resenhas © Floriano MartinsCapa & Projeto gráfico © Socorro Nunes

Collage da capa © Floriano MartinsFoto de Floriano Martins © Gustavo Araújo (Panamá)

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