13
ARTIGOS 181 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004 O trabalho terapêutico fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos Claudia Perrotta * Lucia Masini ** Maria Laura Wey Märtz *** Resumo Duas situações cotidianas em que erros ortográficos causaram impasse na interlocução são aqui apresentadas e analisadas a partir do conceito de gêneros discursivos. Este conceito permite a compreensão dos impasses na construção de sentidos que é própria da linguagem cotidiana. Tais impasses também se apresentam com freqüência no trabalho terapêutico fonoaudiológico com a escrita. A proposta de visitação aos gêneros discursivos mostra-se fecunda pois permite que o paciente, ao explorá-los, seja apresentado a motivações, desejos e capacidades ainda desconhecidos, podendo transformar e ressignificar sua história de sofrimento com a linguagem. Palavras-chave: gêneros discursivos; erros ortográficos; terapia fonoaudiológica. Abstract Two ordinary situations which orthographical mistakes have been caused impasse at the conversation are presented and analyzed from the concept of discoursives genders. This concept allows the comprehension of impasses on the construction of meanings which pertains to the ordinary language. Such impasses frequently are also present at the speech-language therapy on writing. The proposal of leading with discoursives genders is very fruitful as it allows to the patient, when exploring them, to be presented for motivations, wishes and capacities still unknown and could be transformed and meaning again its language’s history of suffering. Key-words: discousive genders; ortographical mistakes; speech-language therapy. * Fonoaudióloga clínica do Contraponto; mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); assessora na elaboração de textos; autora do livro Um texto pra chamar de seu – preliminares sobre a produção do texto acadêmico (Martins Fontes, 2004). ** Fonoaudióloga clínica do Contraponto; docente do curso de fonoaudiologia da PUC-SP; doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP; *** Fonoau- dióloga clínica do Contraponto; docente do curso de fonoaudiologia da PUC-SP; doutora em lingüística pelo Lael-PUC-SP. As três autoras publicaram Histórias de contar e de escrever – a linguagem no cotidiano (Summus, 1995).

fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

  • Upload
    trannhi

  • View
    219

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

AR

TIG

OS

181Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004

O trabalho terapêuticofonoaudiológico com a linguagem

escrita: considerações sobre avisitação a gêneros discursivos

Claudia Perrotta*

Lucia Masini**

Maria Laura Wey Märtz***

Resumo

Duas situações cotidianas em que erros ortográficos causaram impasse na interlocução são aquiapresentadas e analisadas a partir do conceito de gêneros discursivos. Este conceito permite acompreensão dos impasses na construção de sentidos que é própria da linguagem cotidiana. Taisimpasses também se apresentam com freqüência no trabalho terapêutico fonoaudiológico com a escrita.A proposta de visitação aos gêneros discursivos mostra-se fecunda pois permite que o paciente, aoexplorá-los, seja apresentado a motivações, desejos e capacidades ainda desconhecidos, podendotransformar e ressignificar sua história de sofrimento com a linguagem.

Palavras-chave: gêneros discursivos; erros ortográficos; terapia fonoaudiológica.

Abstract

Two ordinary situations which orthographical mistakes have been caused impasse at the conversationare presented and analyzed from the concept of discoursives genders. This concept allows thecomprehension of impasses on the construction of meanings which pertains to the ordinary language.Such impasses frequently are also present at the speech-language therapy on writing. The proposal ofleading with discoursives genders is very fruitful as it allows to the patient, when exploring them, to bepresented for motivations, wishes and capacities still unknown and could be transformed and meaningagain its language’s history of suffering.

Key-words: discousive genders; ortographical mistakes; speech-language therapy.

* Fonoaudióloga clínica do Contraponto; mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); assessora na elaboração de textos; autora do livroUm texto pra chamar de seu – preliminares sobre a produção do texto acadêmico (Martins Fontes, 2004). ** Fonoaudióloga clínicado Contraponto; docente do curso de fonoaudiologia da PUC-SP; doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP; *** Fonoau-dióloga clínica do Contraponto; docente do curso de fonoaudiologia da PUC-SP; doutora em lingüística pelo Lael-PUC-SP. Astrês autoras publicaram Histórias de contar e de escrever – a linguagem no cotidiano (Summus, 1995).

Page 2: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

Claudia Perrotta, Lucia Masini, Maria Laura Wey MärtzA

RT

IG

OS

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004182

Resumen

Dos situaciones cotidianas en que los errores ortográficos causaran impasse en la conversación sonaqui presentadas e analizadas a partir de lo concepto de géneros discursivos. Este concepto permite lacomprensión de los impasses en la construción de los sentidos que es própia de la lenguaje cotidianas.Estos impasses también se presentan con frecuencia en el trabajo terapéutico fonoaudiologico con la esescrita. La propuesta de la visitación a los géneros discursivos mostrase fecunda pués permite a elpaciente, a los explotalos, sea presentado a motivaciones, deseos y capacidades aún desconocidos,pudiendo transformar y significar de nuevo su história de sufrimiento con la lenguaje.

Palabras claves: géneros discursivos; errores ortográficos; terapia fonoaudiologica.

Este artigo está estruturado da seguinteforma: num primeiro momento, apresentamos umaproposta de análise de duas situações discursivascotidianas em que a escrita está presente. Ainda quedistintas, as situações apresentam um ponto emcomum: erros ortográficos de um dos interlocuto-res em cada situação geraram impasse na interlo-cução. A partir dessa análise, discorremos sobre umaspecto do trabalho fonoaudiológico e, em segui-da, buscamos ilustrá-lo com dois momentos tera-pêuticos distintos.

Vejamos cada uma das situações cotidianas.

E-mail enviado...ai!será que tinha algo para arrumar?!

Atualmente, a maioria dos eventos científicose culturais produzidos pelas mais diversas institui-ções utiliza-se da informatização, tanto na etapa deelaboração quanto na de veiculação. Foi durante ascomunicações via e-mail para a elaboração de umevento da área fonoaudiológica, cujo tema era Fo-noaudiologia e Educação, que a referida situaçãoaconteceu.

Após o envio de diversos comunicados, os pro-fissionais que participariam das mesas de debate epalestras receberam um em que os organizadoresdo encontro, dois fonoaudiólogos renomados naárea, faziam um pedido de divulgação do folder. Oe-mail terminava com um sincero agradecemoscom “ç”. Uma de nós, autoras deste texto, partici-pante do evento, só percebeu o erro quando che-gou um novo e-mail, vindo logo em seguida, comum pedido de desculpas pelo deslize da cedilha.

Trabalhando com a hipótese de que um dosorganizadores tenha escrito o e-mail, e como já dis-semos tratava-se de profissionais reconhecidos naárea, alguém duvidaria da capacidade de ambospara escreverem agradecemos corretamente? Porque não relevar, então, o deslize? Por que a neces-sidade da reparação tão imediata, se o erro nemestava no material de divulgação e sim no próprioe-mail?

E-mails têm sido foco de estudo de diversosanalistas do discurso, dadas suas peculiaridades eatualidade no âmbito da comunicação. Trata-se deum discurso realizado em condições especialíssi-mas de produção, na medida em que a Internet, comespaço e tempo virtuais, permite a combinação decaracterísticas próprias da escrita com as da orali-dade. Quem já entrou numa sala de bate-papo ouvive plugado no ICQ sabe que não se escreve pro-priamente nessas horas e, sim, conversa-se ou, parasermos mais precisas, tecla-se. Tente ser um poucomais verborrágico nesse contexto e logo será cha-mado de chato e sumariamente deletado. A própriaescrita de algumas palavras ganha outra forma: nãoé naum, é é eh, beijos é bjos, estou feliz é ☺ ou : ).

O tempo da escrita na Internet não é omediato, como o da escrita de um romance, de umtexto acadêmico ou mesmo de uma carta, que per-mite releituras, retomadas e certo distanciamentodo ato da escrita. Ele é imediato, como o da orali-dade, tanto que chegamos a observar, em alguns e-mails ou conversas nas salas de bate-papo, inter-nautas preferindo escrever ops ou sorry a apagar oque foi escrito, quando percebem algo que precisaser retomado.

Page 3: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

AR

TIG

OS

183Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004

Poderíamos dizer que está tudo errado, que issoé o fim da escrita ou algo mais catastrófico?

Acreditamos que não. Diríamos simplesmen-te que estamos diante de novas condições de pro-dução e uso da linguagem que nos levam a novasformas de composição dos recursos lingüísticos jáconhecidos. Nossa interpretação para o deslize dacedilha é a de que o corpo do e-mail tinha mesmoo caráter da informação oral e igualmente o seutempo de produção, sem espaço para revisões ereelaborações, que possivelmente levariam o es-critor a corrigir a palavra errada. Além disso, amenos que estejamos enganadas, ainda que o su-jeito da enunciação tenha sido nós (os dois organi-zadores do evento), o sujeito empírico, o escribado texto, foi um só e o agradecemos foi atravessa-do pela força da memória visual de agradeço, estesim com “ç”.

Estava tudo muito claro na receita.Ela não sabe ler, resolveu inventarou o quê?

Temos um amigo muitíssimo metódico e quepossui dotes culinários realmente invejáveis! Acertano ponto da carne, na dureza dos grãos do risoto etambém dos legumes, na medida dos temperos,embora tenda a acentuar a pimenta. O que não acei-ta, como todo bom gourmet, são sugestões de quais-quer natureza e mesmo auxílios como picar a ce-bola ou a salsinha, pois certamente apenas ele etalvez alguns poucos outros sabem como fazê-lo àperfeição.

Sendo assim, obviamente, sempre foi nossoamigo quem preparou a própria comida, o que, dadaa correria de seu dia-a-dia, acabou por se tornaruma atividade desgastante. Decidiu, então, embo-ra contra seus princípios culinários, contratar umaempregada para também cozinhar, mas, pela en-trevista inicial, desconfiou de que ela não era umaexpert no assunto...

Adotou então um método que julgou eficien-tíssimo: toda manhã, enquanto tomava café, escre-via passo a passo o que a moça deveria fazer nacozinha:

1º pegue o pote de arroz na parte de cima do armá-rio da pia2º meça uma medida de arroz3º descasque meia cebola e pique-a em pequenoscubos

4º pegue a panela embaixo do armário da pia e leve-a ao fogo5º coloque na panela uma colher de sobremesa de azeite6º frite a cebola no azeite até ficar transparente7º despeje o arroz na panela8º frite por alguns minutos, mexendo sem parar9º despeje na panela duas medidas de água10º não mexa mais11º tampe a panela12º desligue o fogo quando a água secar

Tudo ia correndo bem, até que, um dia, pediuque a moça lhe preparasse escarola refogada:

1º abra a gaveta da geladeira, do lado esquerdo2º pegue o maço de escarola3º lave as folhas da escarola....

Porém, tomado por um arroubo literário, depoisdo 13º item, escreveu: “E pra terminar, salzinho!”.

No meio da manhã, para conferir se estava tudocerto, telefonou para casa:

– Sim, está tudo bem, já fiz o arroz, a carne, eu sónão encontrei uma coisa que o senhor pediu pracolocar na escarola...– O quê? – perguntou nosso amigo, surpreso, poisimaginava ter sido bastante claro.– A salsinha.– Mas que salsinha? Não vai salsinha na escarola,de onde você tirou isso? – perguntou, já um tantorevoltado com a suposta ousadia da moça, de alte-rar uma de suas receitas clássicas.– Tava na receita...– Não pode ser! Lê pra mim.– Aqui, ó: “e pra terminar, salsinha!”– Não, não, você leu errado: é salzinho, sal-zi-nho,viu?, com z, de salzinho e não com s, de sal-si-nha,si, ouviu?, salsinha, salzinho, se fala diferente, seescreve diferente.– Salzinho?– É.

E diante do silêncio um tanto constrangido damoça, esclareceu:

– Sal. Uma pitada de sal.– Ah.– Esquece a salsinha, ouviu?

Quando nos contou esse episódio de sua vidadoméstica, nosso amigo estava indignado com oque considerou uma tremenda ignorância da moça.Como ela poderia confundir salzinho, escrito com

Page 4: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

Claudia Perrotta, Lucia Masini, Maria Laura Wey MärtzA

RT

IG

OS

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004184

“z”, com salsinha, escrita com “s”? “E olha queminha caligrafia é perfeita”, lembrou-nos, concluin-do em seguida: “A educação neste país vai mesmomuito mal!”.

De fato, impossível não concordar com ele: aeducação não anda nada bem e sua letra era impe-cável! Mas nossas concordâncias pararam por aí.Parabenizamo-lo pelo domínio da ortografia e dotraçado da letra, ainda que na era do computador edos corretores automáticos isso não conte muito.Mas na avaliação do fato ele estava equivocadíssi-mo. Vejamos.

Em primeiro lugar, dado o tipo de comunica-ção que nosso amigo estabeleceu com sua novafuncionária, a licença poética representada no di-minutivo “salzinho” não fez qualquer sentido, poisnão combinou com o tom que optou por imprimirem seus textos.

Explicamos: receitas pertencem a um grupa-mento de gêneros de discurso caracterizado pordescrever ações, em que o objetivo é o de fornecerinformações ao leitor, passo a passo, de modo apossibilitar que, por meio delas, ele consiga reali-zar determinada tarefa, no caso a de preparar umalimento.

Podemos, porém, descrever uma receita de di-versas maneiras; basta passarmos os olhos nas es-tantes das livrarias que se dedicam ao tema: há li-vros de receitas que, além de cumprir a função deexpor procedimentos, informam sobre a origem doprato a ser preparado ou sobre o valor nutritivo dosalimentos; há também aquelas publicações que pro-curam se aproximar do leitor de maneira mais afe-tuosa, escolhendo muitas vezes um tom lúdico ouainda narrando tradições familiares que originaramos diferentes modos de cozinhar, comunicando quecomida também é cultura... Essa diversidade é cer-tamente exemplo do quanto é possível ser criativodentro dos limites impostos pelas características deum gênero discursivo.

Nosso amigo optou pela estrutura composi-cional mais tradicional do gênero receita caracteri-zada pela relação inicial dos ingredientes seguidado modo bastante objetivo de preparo do alimento.Salzinho foi, como dito anteriormente, uma licen-ça poética, uma ousadia não compreendida por suainterlocutora, que, dada a opção de nosso amigodentro do gênero receita, jamais imaginou que elepudesse usar de açúcar e afeto para orientá-la nacozinha. Óbvio que uma certa ousadia é bem-vin-da, o que nos leva a transgredir, transpondo carac-

terísticas de um gênero para outro, pressupondo quenosso interlocutor irá nos acompanhar na propos-ta. Mas não foi o que ocorreu, talvez também por-que a cozinheira de nosso amigo não tivesse tantodomínio de outros gêneros discursivos.

De qualquer forma, acostumada que estava aoestilo de seu patrão na escrita de suas receitas –uma comunicação econômica, seca, sem qualquertempero – o esperado era ver escrito: 14º uma pita-da de sal. Diante do estranhamento causado pelaleitura do salzinho, procurou dentro dos seus co-nhecimentos lingüísticos e culinários algo que fi-zesse mais sentido. Eis porque leu salsinha em vezde salzinho, bastante próximos visualmente.

É interessante observar, ainda, a confusão denosso amigo-patrão no que se refere à imagem desua interlocutora: por vezes, em seu didatismoexemplar, desconsiderava possíveis conhecimen-tos da moça, como o de que em alimentos salgadosusa-se sal, supondo que sua leitora era alguém des-provido de um mínimo de bom senso. Por outrolado, imaginava que ela tivesse tanto domínio dalinguagem a ponto de apreender sua ousadia lin-güística.

A referência às situações acima, que mostramdeslizes ortográficos de seus interlocutores, tem porobjetivo sublinhar a importância de se compreen-der a linguagem como prática discursiva social e,como tal, compreender sua elaboração sem incor-rer em avaliações precipitadas e até equivocadas.Não há linguagem fora de situações concretas decomunicação, assim como não há atividade huma-na que não seja permeada pela linguagem. Essaidéia foi profundamente trabalhada por MikhailBakhtin em sua teoria enunciativa, com a elabora-ção de vários conceitos.

Gostaríamos de destacar, visando o trabalhoterapêutico fonoaudiológico, o conceito de gêne-ros discursivos, antes trabalhado somente com tex-tos literários e que foi pelo autor ampliado para osmais diversos discursos, inclusive os da esfera co-tidiana. Eis sua definição:

Todas as esferas da atividade humana, por maisvariadas que sejam, estão sempre relacionadas coma utilização da língua. Não é de surpreender que ocaráter e os modos dessa utilização sejam tãovariados como as próprias esferas da atividade hu-mana, o que não contradiz a unidade nacional deuma língua. A utilização da língua efetua-se em for-ma de enunciados (orais e escritos), concretos e úni-cos, que emanam dos integrantes duma ou doutra

Page 5: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

AR

TIG

OS

185Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004

esfera da atividade humana. O enunciado reflete ascondições específicas e as finalidades de cada umadessas esferas, não só por seu conteúdo temático epor seu estilo verbal, ou seja, a seleção operada nosrecursos da língua – recursos lexicais, fraseológi-cos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, porsua construção composicional. Estes três elemen-tos (conteúdo temático, estilo e construção compo-sicional) fundem-se indissoluvelmente no todo doenunciado, e todos eles são marcados pela especifi-cidade de uma esfera de comunicação. Qualquerenunciado considerado isoladamente é, claro, indi-vidual, mas cada esfera de utilização da língua ela-bora seus tipos relativamente estáveis de enuncia-dos, sendo isso que denominamos gêneros do dis-curso. (Bakhtin, [1952-53] 1979, p. 279)

1

Há, portanto, para Bakhtin, uma infinidade degêneros discursivos na medida em que infinitas sãoas atividades humanas. Estamos falando de sim-ples diálogos cotidianos, de documentos oficiais eaté das mais variadas exposições científicas, semesquecer da literatura. É o gênero discursivo, ouseja, o conjunto de enunciados mais ou menos es-táveis relativos a uma esfera de atividade que nosdá a idéia de sabermos mais ou menos o que sepode esperar de uma situação. Por suas palavras,em qualquer situação social vivida:

(...) sabemos de imediato, bem nas primeiras pala-vras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volu-me (...), a dada estrutura composicional, prever-lheo fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis aotodo discursivo (...). (Id., ibid., p. 302)

O que é possível, plausível, esperado em de-terminados momentos não o é, necessariamente,em outros. Para Bakhtin, aprender a falar (e a es-crever) não é adquirir um sistema de normas lin-güísticas invariáveis, mas, sim, aprender a estrutu-rar enunciados nas mais diversas situações sociaisde comunicação.

Nas situações aqui descritas, os deslizes orto-gráficos apareceram em contextos possíveis sim,dadas suas características, mas o que observamosfoi uma intolerância aos mesmos. Ainda há umvalor exacerbado atribuído à ortografia também emsituações cotidianas, provocando impasses em in-terlocuções como as citadas.

Desnecessário o número de e-mails indigna-dos enviados ao autor do pedido de ajuda na divul-gação do evento, que acabou por constranger inu-tilmente o autor do texto, indiscutivelmente reco-nhecido como um sujeito letrado.

Desnecessária também a maneira incisivacomo nosso amigo apontou o erro à sua funcioná-ria. Isso, provavelmente, levou-a a rememorar pos-síveis problemas vividos nos primórdios da esco-laridade: a menina tímida que lutava para seguir àrisca os passos impostos pela professora na pro-messa de que, assim, aprenderia a escrever corre-tamente, mas sempre acabava emperrando em al-gum s, ou z, ss, ç...; ou seja, entre outras, essa éuma relação de poder que se estabelece quando osaspectos normativos da escrita são privilegiados esupervalorizados. É também assim que se contri-bui para a perpetuação dos famigerados problemasde evasão escolar, para os distúrbios de aprendiza-gem, os déficits de atenção, as dislexias.

Num artigo intitulado A escrita na clínica fo-noaudiológica, Masini (1999) discute sobre o quan-to o foco de atenção na avaliação tanto escolar comofonoaudiológica da escrita recai sobre a ortogra-fia, em detrimento de outros aspectos do texto,e o quanto isso prejudica e impede que muitaspessoas e, em especial, nossos pacientes utili-zem-se de seus recursos expressivos para ela-borar seus escritos. O sentimento de não saberescrever com todas as letras generaliza-se parao não saber escrever, independentemente do con-texto em que a escrita apareça.

Embora já seja possível observar os efeitospositivos das práticas educacionais socioconstruti-vistas no que se refere à apropriação criativa dasleis que regem os diversos gêneros discursivos,ainda recebemos na clínica fonoaudiológica crian-ças, adolescentes e adultos que, diante de errosnaturais, pois inerentes a esse processo de apro-priação, passam a desconsiderar os seus acer-tos; muitas vezes, afastam-se então da escrita ouacabam mais preocupados em acertar, subme-tendo-se a ordens estabelecidas, em vez de in-vestir de pessoalidade seus textos, aceitando odesafio de aperfeiçoá-los à medida que forem sen-do criados, lidos e relidos, pelo próprio autor e poroutros interlocutores.

1 Neste artigo, usaremos a data da primeira publicação dos textos citados. No caso de Bakhtin ([1952-53] 1979), as primeiras datasreferem-se ao manuscrito, e a segunda, à primeira publicação. A opção por marcar as duas datas é em respeito à cronologia daprodução do autor. A data da edição usada está nas referências bibliográficas. Assim procederemos em todas as citações.

Page 6: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

Claudia Perrotta, Lucia Masini, Maria Laura Wey MärtzA

RT

IG

OS

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004186

Torna-se, nessa medida, importante ressaltarainda um fato da linguagem escrita: ela permaneceinalterada apenas durante o tempo em que não élida. Toda leitura atualiza o texto escrito, e issoimplica as alterações que o leitor faz do texto con-forme seus próprios pressupostos e necessidadesno tempo-agora da leitura. Os contornos estabele-cidos pelo reconhecimento de diversos gêneros nãogarantem uma compreensão unívoca da comuni-cação, mesmo a que se realiza no cotidiano. Issoporque o texto escrito guarda sempre uma abertu-ra, um inacabamento essencial e imprevisto, po-rém entrevisto nas duas situações acima referidas.Contar com tal inacabamento é saber da impossi-bilidade de domínio do texto escrito de forma tãocabal que nenhuma alteração seja feita no trajetopercorrido pela leitura ou pelos diversos possíveisleitores. O que chama atenção, no entanto, ainda, éa ênfase na ortografia, como se ela pudesse garan-tir um acabamento que o próprio movimento dalinguagem não permite. Com isso não queremosdizer que não há questões importantes a serem tra-balhadas quanto à grafia correta das palavras, bemcomo com os demais aspectos normativos da es-crita, mas sim que tais aspectos só podem ser toca-dos e trabalhados tendo em vista as necessidadesexpressivas de cada texto, dentro de cada propostade elaboração escrita.

E, nesse sentido, o trabalho que propõe o trân-sito entre os diversos gêneros discursivos torna-sevalioso para que o escritor-leitor elabore recursospara o confronto com os impasses próprios da lin-guagem escrita, com o que nela não é estável, ape-sar da norma, posto que dependente do contextosocial e concreto em que se realiza:

De fato, a forma lingüística (...) sempre se apresen-ta aos locutores no contexto de enunciações preci-sas, o que implica sempre um contexto ideológicopreciso. Na realidade, não são palavras o que pro-nunciamos ou escutamos, mas verdades ou menti-ras, coisas boas ou más, importantes ou triviais,agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sem-pre carregada de um conteúdo ou de um sentidoideológico ou vivencial. É assim que compreende-mos as palavras e somente reagimos àquelas quedespertam em nós ressonâncias ideológicas ou con-cernentes à vida. (Bakhtin/Volochinov, 1929, p.81)

Ainda como salienta Bakhtin, compreender éresponder ativamente. Isso ocorre na oralidade etambém na escrita:

Compreender a enunciação de outrem significaorientar-se em relação a ela, encontrar o seu lu-gar adequado no contexto correspondente. Acada palavra da enunciação que estamos em pro-cesso de compreender, fazemos corresponderuma série de palavras nossas, formando uma ré-plica. Quanto mais numerosas e substanciaisforem, mais profunda e real é a nossa compre-ensão. (Id., ibid., pp. 117-8)

As réplicas oferecidas aos textos escritos nassituações acima apresentadas apontam para taisconteúdos ideológicos ou vivenciais. No caso dacedilha, o que toca é o valor da ortografia para apre-sentação e identidade do profissional, num contex-to em que a falha ortográfica poderia ser associadaà falha profissional se não considerássemos as fa-lhas previsíveis possibilitadas pelo uso da Internet.No caso do salzinho, o que se observa é que oconteúdo vivencial da cozinheira criou as ressonân-cias necessárias para a compreensão alterada parasalsinha.

Poderíamos objetar, com razão, que compre-ender os possíveis motivos de alterações de senti-do não alteram, afinal, os equívocos aqui relata-dos. No entanto, o que desejamos enfatizar é quetais equívocos fazem parte dos processos de inte-ração verbal e, ainda, que a busca dessa compreen-são – a cada vez, em cada caso – é o que sustenta oprocesso terapêutico com a linguagem escrita.

Em Histórias de contar e de escrever – a lin-guagem no cotidiano (1995), abordamos alguns dosmitos sobre a forma ideal de escrita que acabam,muitas vezes, por causar entraves na produção detextos, e a necessidade de desconstruí-los no coti-diano do trabalho fonoaudiológico.

Acreditamos que faça parte dessa desconstru-ção a circulação de diferentes gêneros discursivos;porém não estamos, com isso, preconizando seuensino formal na clínica fonoaudiológica, papelreservado à escola, como defendido – corretamen-te – por algumas vertentes educacionais. Sugeri-mos aqui a visitação2 a diferentes gêneros.

2 Denominamos visitação o contato com diferentes gêneros discursivos, apreendendo-lhes as características, sem, no entanto,termos a obrigação de fazê-lo segundo uma seqüência didática. Nosso compromisso é com o interesse que determinado gênerosuscita no paciente.

Page 7: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

AR

TIG

OS

187Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004

Pode parecer antigo, mas ainda se faz necessá-rio dizer: não é apenas retomando tarefas tipica-mente acadêmicas, como resumos, dissertações,interpretações de texto ou mesmo cópias e ditados,que possibilitaremos ao paciente da clínica fonoau-diológica transformar a relação de sofrimento his-toricamente estabelecida com sua linguagem. Aocontrário, é aproximando-o de situações discursi-vas cotidianas, em que práticas de escrita e leiturasignificativas estejam presentes, que podemos levá-lo a desconstruir suas idéias preconcebidas acercade seus processos de elaboração da escrita.

Muitas vezes, pacientes subestimam suas ca-pacidades discursivas por estenderem as dificulda-des que possuem em contextos bastante específi-cos, como o escolar, para outros do cotidiano. Des-valorizam o bilhete que escrevem ou o livro quelêem, ou ainda as horas que navegam na Internetporque têm em mente um único parâmetro: o dosgêneros acadêmicos aos quais estão dolorosamen-te amarrados (infelizmente, vemos ainda que essadesvalorização é, por vezes, partilhada por algunspais, professores e até especialistas da área clíni-co-terapêutica).

Como os interlocutores das duas situações ci-tadas no início do artigo, alguns pacientes tendema generalizar o certo e o errado, sem conseguir, aprincípio, compreender que há variações própriasdos diferentes gêneros na composição da estruturados textos, no estilo e até na escolha de palavras.

Nosso papel com a visitação a diferentes gê-neros é o de abrir novas possibilidades de posturadiante de uma situação. Não há um único modo dese escrever ou ler um determinado texto. É neces-sário, inicialmente, compreender em que situaçãodiscursiva ele se encontra e quais os lugares dosinterlocutores nessa situação.

No caso da terapia fonoaudiológica, a situa-ção é de alguém que se encontra despontecializadoem suas possibilidades de apropriação do conheci-mento da escrita. Sendo assim, visitar os gênerosdiscursivos permite que o paciente, ao explorá-los,seja apresentado a motivações, capacidades e de-sejos ainda desconhecidos, podendo transformar eressignificar sua história de sofrimento com a lin-guagem escrita. Essa história muitas vezes se tra-duz no evitar o contato com diversos tipos de tex-to, na escrita o mais sumária possível para não er-

rar ou para finalizar rapidamente a tarefa, e mesmona negação categórica de expor, por escrito, pensa-mentos e opiniões.

Para tanto, mais do que elaborar exercícios, oque se requer do terapeuta é uma atenção ao que opaciente produz no momento mesmo de sua pro-dução, para que as possíveis intervenções sejamrealizadas em sintonia com as necessidades e ca-pacidades expressivas de cada um.3

Seguem, então, dois momentos de situaçõesvividas no espaço clínico fonoaudiológico e que,acreditamos, podem esclarecer ainda mais nossaproposta de trabalho. Ressaltamos que ambos ospacientes aqui retratados já não se encontram emterapia.

Uma experiência de conhecer

O relato que se segue foi escrito por uma me-nina de dezessete anos que cursava o segundo co-legial, já havia passado por reprovações em sériesanteriores e havia sido encaminhada pela institui-ção escolar por apresentar dificuldades tanto paraler como para compor textos. O trabalho de elabo-ração e aperfeiçoamento desse relato foi realizadocom o terapeuta, tendo em mente a necessidade deacolher o sofrimento da paciente, que se referiaconstantemente à imagem negativa que tinha de sicom relação à sua condição de ler e escrever. Sen-do assim, a intenção do trabalho era a de visitardiversos gêneros discursivos, sem pretender siste-matizar o conhecimento deles, mas propondo, deacordo com o ritmo e tempo de apreensão da pacien-te, possibilidades de aperfeiçoamento que a levas-sem a encontrar e desvendar novas maneiras de serelacionar com a escrita.

1ª elaboração

A viagem para Cuba foi muito boa, porque tive umaexperiência de conhecer, eu acho que ninguém iriadesperdiçar a oportunidade de conhecer um país,que vive na pobreza. Sem ter o que fazer o dia in-teiro que acaba se dedicando ao Ballet, a arte, porter uma educação boa e principalmente com pessoasde outros países sem se importar com eles mesmos.Eles preferem que você esteja bem do que eles fi-carem, na mordomia, como o exemplo do cama-rim, que deixaram para gente.

3 Sobre o tema, cf. Dauden & Mori-de Angelis (1997, pp. 91-101); Perrotta, C. (no prelo).

Page 8: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

Claudia Perrotta, Lucia Masini, Maria Laura Wey MärtzA

RT

IG

OS

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004188

A cidade e as pessoas são tão simples que eles gos-tam do que tem e lógico que preferem ganhar, maseles se contentão pelo que tem, exemplo: da distri-buição de arranjos de cabelo, que depois até asmeninas choram, por você dar uma coisa que nemtem valor para você e que tem para elas, principal-mente a dedicação dos bailarinos ao Ballet como seesforçam e são bons, por estar fazendo alguma coi-sa que gostam, porque diversão para eles é isso oBallet e a educação.

Diante desse texto, pedimos a você, leitordeste artigo, que faça, de imediato, um primeirojuízo de valor. Decerto, a primeira impressão podetê-lo levado a concluir que o texto está confuso,com frases pouco inteligíveis (Sem ter o que fazero dia inteiro que acaba se dedicando ao Ballet;por você dar uma coisa que nem tem valor paravocê e que tem para elas, principalmente a dedi-cação dos bailarinos ao Ballet). De fato, era essatambém a avaliação que, constantemente, a pa-ciente recebia de seus professores; as notas erammuito ruins, seguindo-se observações do tipo: tex-to confuso, procure reler e fazer modificações.

No contexto terapêutico fonoaudiológico,foram sendo abertas, então, outras possibilidadesde diálogo com a paciente a partir de sua produçãoescrita, valorizando-se, nesse momento, mais a suadisposição em relatar uma experiência para, a par-tir dela, propor reelaborações de acordo com o gê-nero de discurso escolhido. Nessa medida, a tera-peuta respondeu e sugeriu:

– Não conheço Cuba, mas pelo que você está mecontando, parece mesmo que a vida lá é bem dife-rente da nossa, principalmente no valor que dão àarte e à educação. Mas você deu um exemplo paracontar da generosidade do povo que não compre-endi bem: o exemplo do camarim. Releia então seutexto e veja se você pode esclarecer melhor suasidéias ao leitor.

2ª versão

A viagem para Cuba foi muito boa, porque tive umaexperiência de conhecer, eu acho que ninguém iriadesperdiçara oportunidade de conhecer um país,que vive na pobreza. Sem ter o que fazer o dia in-teiro, os Cubanos, acabam se dedicando ao Balletou também a arte. Por terem uma educação boa eprincipalmente com pessoas de outros países semse importar com eles mesmos, um ex: Estados Uni-dos, um país desenvolvido, você chega lá, para pe-dir uma informação, eles são tão estúpidos e gros-

sos, você acaba perdendo a vontade de voltar paralá. Como um país subdesenvolvido como Cuba podeser totalmente o aucontrário?

A cidade e as pessoas são tão simples que eles gos-tam do que tem e lógico que preferem ganhar umpresentinho, mas como são pobres eles se conten-tam pelo que tem, exemplo: da distribuição de ar-ranjos de cabelo, que depois até as meninas cho-ram, por você dar uma coisa que nem tem valorpara você e que tem para elas, principalmente adedicação dos bailarinos ao Ballet como se esfor-çam e são bons, por estar fazendo alguma coisaque gostam, porque diversão para eles é isso oBallet e a educação.

Embora a sugestão feita pela terapeutapara que a paciente precisasse um determinado tre-cho do relato não tenha sido realizada, a últimasegue procurando esclarecer ao leitor o tema quepretende abordar em seu texto, deixando nele asimpressões que teve de Cuba, sua surpresa e seuencantamento com outra maneira de viver. O tra-balho de ampliação e precisão do relato continua,pois a paciente mostrava disposição para levá-loadiante.

Nesse sentido, uma próxima resposta daterapeuta ao texto foi:

– Interessante sua comparação entre esses doispaíses: Cuba e Estados Unidos, me fez pensar nasexperiências semelhantes que tive quando viajei aosegundo. Mas fiquei com uma dúvida: afinal, porque você foi para Cuba? Acho que seria interes-sante você reelaborar seu texto, esclarecendo issoao leitor. Discordo numa coisa que você disse, eacho que você poderia rever essa idéia: será quedeveríamos conhecer um país apenas para não des-perdiçar a oportunidade de ver que vive na pobre-za? É isso mesmo que você pensa? Mais uma ob-servação: você escreveu aucontrário; embora agente pronuncie assim, aqui há duas palavras: aocontrário.

3ª e última versão

A viagem para Cuba foi muito boa , porque tive aexperiência de conhecer o Ballet Nacional e prin-cipalmente fazer aulas com eles. Esta experiênciade conhecer Cuba, eu acho que ninguém iria des-perdiçar, um país comunista e que é explorado porum outro país pode se sair tão bem em relação aeducação e a medicina e principalmente o Ballet.Quem um dia poder visitar, ou vai ficar assustadoou impressionado com a pobreza. Sem ter o que

Page 9: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

AR

TIG

OS

189Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004

fazer o dia inteiro, os Cubanos, acabam se dedican-do ao Ballet ou também a arte. Por terem uma edu-cação boa e principalmente com pessoas de outrospaíses sem se importar com eles mesmos, um ex:Estados Unidos, um país desenvolvido, você chegalá, para pedir uma informação, eles são tão estúpi-dos e grossos, você acaba perdendo a vontade devoltar para lá. Como um país subdesenvolvido comoCuba pode ser totalmente o ao contrário?

A cidade e as pessoas são tão simples que eles gos-tam do que tem e lógico que preferem ganhar umpresentinho, mas como são pobres eles se conten-tam pelo que tem, exemplo: da distribuição de ar-ranjos de cabelo, que depois até as meninas cho-ram, por você dar uma coisa que nem tem valorpara você e que tem para elas, principalmente adedicação dos bailarinos ao Ballet como se esfor-çam e são bons, por estar fazendo alguma coisaque gostam, porque diversão para eles é isso oBallet e a educação.

Aqui tivemos a oportunidade de conhecer al-gumas idéias e informações que não aparecem naprimeira versão e que foram sendo construídas coma ajuda do interlocutor. De um interlocutor que pôdeacolher o caos da produção inicial, a confusão, quepôde ler o texto não com um padrão em mente,mas orientado pela história pessoal da paciente-autora, procurando então ampliar suas possibilida-des de dizer. Ainda havia muito a ser trabalhadopara que seus textos correspondessem à extensãode suas idéias, de seus conhecimentos e de suasinformações, para que, relendo-se, ela pudesse es-tar suficientemente livre para revê-los, modificá-los, aprofundá-los, por, a partir da escrita, percebê-los falhos ou incompletos.

Porém, o que foi aqui trabalhado e que, comodissemos anteriormente, parece-nos essencial quan-do o tema é linguagem, foi a possibilidade de apaciente vivenciar o tempo de produção de um re-lato, garantindo-se um espaço para revisões e ree-laborações, de acordo com o sentido ideológico queas palavras que escolhemos para apresentar nossosdizeres carregam. Antes da sistematização do co-nhecimento, para essa paciente era fundamentalperceber-se em condições de, a despeito das im-

precisões de seu texto, despertar em seus interlo-cutores a necessidade de formular respostas, res-soar réplicas, objeções e/ou concordâncias.

Nessa experiência compartilhada no espaçoclínico fonoaudiológico que a paciente foi desen-volvendo a condição de aperfeiçoar seus textos deacordo com as situações dialógicas presentes tam-bém em outros contextos que não só o terapêutico.Foi-lhe dada a oportunidade de viver o que háde prazeroso e também de conflituoso no apro-fundamento de uma idéia, de uma impressão, deum relato, na ampliação de dizeres, exercitandoa tolerância ao não saber, ao erro, às impreci-sões, às confusões, permitindo que sua potenci-alidade se articulasse com vivências efetivas ecriativas com o ato de conhecer.

O santista se emociona

Pietro4, garoto de nove anos, estava cur-sando a terceira série do ensino fundamental de umaescola particular, quando sua mãe procurou terapiafonoaudiológica. Bastante apreensiva, apresentouo filho como um menino hiperativo que pouco seconcentrava em atividades de leitura e escrita, poisapresentava muita dificuldade em realizá-las. Paraa mãe, que acompanhava palestras dadas na escolasobre desenvolvimento infantil e aprendizagem, seufilho tinha todas as características de uma criançacom problemas de aprendizagem e, embora nãonomeasse, guardava no íntimo a idéia de que elefosse disléxico.5

Logo no primeiro encontro com a terapeuta,Pietro se mostrou, de fato, muito ativo na sala. Foilogo lhe dizendo que não conseguia parar quieto eque ficava se mexendo o tempo todo. A terapeutafalou-lhe, então, sobre sons que poderíamos pro-duzir em nosso próprio corpo e que aqueles movi-mentos que ele fazia tinham sentido dentro de umaprática chamada barbatuque. Pietro mostrou-secapaz de manter a atenção naquilo que a terapeutaestava lhe apresentando e por algum tempo ambostrocaram seqüências de sons típicas de uma apre-sentação dessa modalidade musical.

4 O nome do paciente foi trocado, assim como aspectos mais particulares de sua história, a fim de se preservar sua identidade.5 Para quem navega na Internet, tem sido muito fácil encontrar sites que auxiliam o cidadão na identificação de determinadaspatologias pela descrição de algumas de suas características mais comuns. Não raro, os fonoaudiólogos têm recebido, em seusconsultórios, crianças e adolescentes que já vêm com um diagnóstico de dislexia fechado pelos próprios pais, depois de navegarempelas informações oferecidas nesses sites. Sem entrar no mérito dessa questão, pois corremos o risco de nos desviarmos do focoprincipal, gostaríamos de registrar que essa disseminação de diagnósticos é polêmica e merece maior atenção.

Page 10: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

Claudia Perrotta, Lucia Masini, Maria Laura Wey MärtzA

RT

IG

OS

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004190

Isso fez com que Pietro ficasse menos tenso,olhando ao seu redor com mais vagar, procurandoconhecer o que tinha à disposição na sala. Interes-sou-se por uma revista, a Revista dos Curiosos, quetrazia na capa uma foto de golfinhos, um de seustemas preferidos. Folheou-a e mostrou outros as-suntos que também lhe interessavam. Demonstra-va certo desejo em saber o que estava escrito nasreportagens, mas seus olhos fugiam do texto. Lersozinho, nem pensar. Pietro sempre tinha uma ex-plicação para o fato de não saber ler, mas, apesardisso, leu com a terapeuta algumas pequenas re-portagens, divertindo-se com os assuntos.

Logo descobriu os jogos e não hesitou em es-colher os que envolviam leitura. O primeiro deles:Imagem e Ação.6 Pietro iniciou o jogo pegando duascartelas, lendo corretamente: orelha de abano erelógio digital. Nem bem terminou de ler disse nãosaber o que significavam, como se a tarefa de de-codificar já tivesse sido imensa para ele. Descar-tou a possibilidade de tentar compreender e dese-nhar as palavras e pegou outra cartela, em que es-tava escrito concha para sopa. Apressadamente,leu colchão de sapo, dizendo não saber desenharpor não saber do que se tratava. A terapeuta, estra-nhando a palavra, pediu nova leitura. Nessa segun-da tentativa, Pietro percebeu que se tratava de con-cha para sopa, dizendo que havia visto parte dapalavra e já inventado o resto. Não há aí uma difi-culdade propriamente com a decodificação, mas ouso de um recurso de leitura (a antecipação) pró-prio de leitores proficientes em uma língua e utili-zado, nesse momento por Pietro, como estratégiapara se livrar de uma situação para ele perturbado-ra. A pressa por livrar-se da aflição que uma leituralhe provocava ainda fez com que Pietro não dese-nhasse uma concha de sopa, mas sim uma tampade panela. Apontar seu equívoco, nesse momento,equivaleu a confirmar sua tese de que não sabia lerou escrever, mesmo que a terapeuta tivesse salien-tado que ele compreendeu o significado da palavraem sua segunda leitura.

No decorrer do jogo, Pietro mostrou maior se-gurança e desenvoltura para ler, desenhar e escre-ver as palavras, ainda que com alguns erros orto-gráficos como em camera fortogarfica (câmera

fotográfica). Mostrou capacidade também em dardicas para a terapeuta, quando ela não conseguiuadivinhar seu desenho, aceitando sua sugestão defazer o jogo da forca com a palavra.

A cada início de atividade que envolvesse lei-tura ou escrita, Pietro necessitava dizer que nãosabia ler ou escrever, atribuindo sua dificuldade aum possível problema orgânico. Como as ativida-des propostas no espaço terapêutico configuravam-se como situações discursivas significativas paraele, Pietro via-se sempre diante de um dilema: de-sistir daquilo que lhe interessava para ficar com acerteza da incapacidade ou procurar ver como po-deria lidar com o conhecimento que tinha.

Na seqüência dos encontros terapêuticos,Pietro foi optando, com a ajuda do terapeuta, pelasegunda alternativa. Mostrou com isso a existên-cia de recursos integrados dentro de si e, por vezes,a possibilidade de serem reconhecidos por ele paralidar com as dificuldades que encontra na vida.

Será possível observar, na continuidade do re-lato do caso, que um processo terapêutico volta-do para práticas discursivas significativas, nasquais circulem gêneros discursivos presentes nocotidiano do paciente, pode contribuir para atransformação da relação de sofrimento que osujeito estabelece com sua linguagem, nesse casoa escrita.

À época do atendimento terapêutico, a CopaMundial de Futebol estava em sua primeira fase,tema de bastante interesse para Pietro, que colecio-nava revistas Placar. Ele costumava acompanhar osmais diversos campeonatos preenchendo as tabe-las que a revista publica no decorrer de cada umdeles. Eis uma prática discursiva que envolvia lei-tura e escrita a que Pietro se dedicava com regula-ridade, porém pouco valorizada como tal, tanto porele quanto por seus pais.

O terapeuta sugeriu-lhe então que fizessem umbolão, os dois, de todos os jogos da Copa. A pro-posta foi imediatamente aceita, mas Pietro se viunovamente diante do dilema: teria de escrever osjogos das fases do campeonato? Sim, era necessá-rio o registro dos palpites de ambos, mas o tera-peuta tranqüilizou-o dizendo que ele mesmo pode-ria fazê-lo.

6 Jogo de tabuleiro que contém cartelas com palavras classificadas nas seguintes categorias: nome, lugar ou animal, ação, objeto,lazer, difícil e todos jogam. Essas duas últimas categorias trazem palavras por vezes difíceis de serem representadas pelo desenhoou mímica, como sim ou ar.

Page 11: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

AR

TIG

OS

191Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004

O registro dos palpites, a espera pelos resulta-dos, a confirmação de quem tinha acertado e dequem estava à frente no placar final do bolão fo-ram o mote para as sessões subseqüentes. Não foia única atividade desenvolvida ao longo do pro-cesso, mas foi fundamentalmente a que deu senti-do à continuidade do processo terapêutico. A cadasessão, Pietro trazia alguma idéia sobre o assuntocomo resposta ao que havia sido apresentado oudiscutido na sessão anterior. Ele não se dava conta,mas estava se aproximando mais de situações emque a escrita estava presente. Cada jogo, princi-palmente os que o Brasil jogava, não era somenteassistido na televisão. Havia sempre um artigo dejornal, revista ou Internet que abordava algum as-pecto interessante do jogo. Por vezes, Pietro che-gava, na terapia falando sobre determinado artigoque tinha lido na sua Placar. O terapeuta procuravareportagens sobre o assunto, em jornais, para veroutros enfoques, outras opiniões. Vale ressaltar queaquilo a que Pietro se referia ter lido não era valori-zado como tal pelos pais. Em entrevista paralelas como terapeuta, os pais afirmavam que o filho não lia,apenas valia-se de informações que ele escutava natelevisão, no rádio ou mesmo nas conversas que tinhamem família. Havia sempre um alerta dos pais para o te-rapeuta: não acredite nas coisas que Pietro fala.

Não acreditar, porém, era negar-lhe a possibi-lidade de viver o desejo, de viver a ilusão da potên-cia necessária para seu processo de crescimento.Pietro dizia ter lido a Placar, e era a partir dessainformação que o terapeuta agia, acolhendo-a ecomplementando-a com novas referências advin-das de outras situações discursivas.

Como dito anteriormente, a aproximação dePietro com o ato de escrever, tão doloroso para ele,deu-se então pelo registro do palpites.

Vejamos como ele ocorreu.Ante o medo inicial de ter de escrever, tam-

bém como já foi dito, o terapeuta prontificou-se aregistrar os palpites. Pietro ditou os seus e o tera-peuta escreveu os dele. Ao lado destes últimos, oterapeuta abriu uma chave e escreveu: palpite T.Pietro pegou a folha e repetiu o gesto: fez a chavee escreveu palpite P.

Essa mesma folha serviu para anotações pos-teriores de outros jogos até o final da Copa doMundo. A marcação de palpites não se caracteri-zou apenas como um exercício mecânico de escri-ta, mas como uma verdadeira interlocução. Pietrofez-se participante da interação, na medida em quepartilhava com seu terapeuta um horizonte comum.Sentiu-se seguro para mostrar-se não apenas pelagrafia do outro (como nos primeiros palpites), maspor sua própria, deixando-se ver (o modo como aspalavras eram grafadas deixava mais explícita sualógica de construção da ortografia, evidenciandoao terapeuta que sua dificuldade real estava, porele e pela família, superdimensionada) e tambémpodendo ver-se de uma outra perspectiva.

E que perspectiva era essa? A de estar viven-ciando situações de escrita distantes da idéia de ava-liação e correção como era o entendimento que ti-nha da escrita escolar e, por que não dizer, familiartambém. É curioso notar que o valor atribuído àleitura e à escrita, por famílias em que há um maiorgrau de escolaridade, aumenta consideravelmentequando existe um de seus membros – geralmenteum filho – fragilizado pelo processo escolar. Se,ainda hoje, nem sempre “é permitido brincar deler/escrever”, como nos fala Rojo (1995, p. 69),quando se trata de uma criança com dificuldadesdessa natureza, o rigor parece triplicar. O que évalorizado pela família é o letramento escolar. Ain-da que haja presença de práticas de escrita no coti-diano familiar, uma maior aproximação da criançaa essas práticas não é valorizada.

Há, ainda, exemplos de outras atividades de-senvolvidas durante o processo terapêutico.

Numa sessão em que Pietro propôs jogar Caraa Cara7, porque era fácil e não tinha que ler, oterapeuta sugeriu-lhe uma nova regra, que exigiriade ambos uma outra organização das respostas ob-tidas, dizendo-lhe que poderia se organizar comoquisesse. Completou dizendo que, de sua parte,usaria a escrita, para não esquecer as informaçõesobtidas. Como era esperado, o primeiro movimen-to de Pietro foi o de se afastar de seu uso, ainda quetenha percebido que, naquele momento, ela tenhasido um facilitador.

7 O jogo Cara a Cara consiste de dois tabuleiros que trazem plaquetas móveis com figuras humanas (iguais nos dois tabuleiros,embora dispostas em posições diferentes em cada um deles) e seus respectivos nomes. As mesmas figuras compõem um baralho àparte. Cada jogador pega uma carta desse baralho e coloca diante de seu tabuleiro sem que seu oponente a veja. O objetivo do jogoé acertar a figura que o oponente tirou, fazendo perguntas que facilitem essa descoberta, do tipo: é loiro?; tem olho azul?, entreoutras. A cada resposta, o jogador abaixa as plaquetas que não correspondem à descrição dada pelo outro jogador. Ganha o jogoquem primeiro acertar a figura do outro jogador.

Page 12: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

Claudia Perrotta, Lucia Masini, Maria Laura Wey MärtzA

RT

IG

OS

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004192

Numa sessão posterior, quando jogavam outrojogo, que também exigia a retenção de uma sériede respostas, Pietro lançou-se a usar o recurso peloterapeuta utilizado anteriormente. De início, dei-xou na escrita marcas de sua relação conflituosa aooptar pelo registro da resposta mais curta (o jogotinha a mesma estrutura do Cara a Cara; no entan-to, cada jogador tinha de descobrir sua própria iden-tidade, que estava estampada em sua testa e por-tanto visível somente ao outro, por meio de per-guntas do tipo é de comer? Tem dentro de casa?etc. Num primeiro momento, Pietro apenas regis-trava sim ou não). Ao perceber que isso pouco oajudava na situação e também ao avaliar que a po-sição de interlocutor de seu terapeuta ali era a dejogador tanto quanto ele, estando mais interessadoem suas próprias respostas que em corrigir as dele,Pietro ousou escrever mais. Vejamos seu registro:

Sou de cone, é duro, não é furta as cirança gostamnão nacha aropa, não é futura, não é parecida comtorta.[Sou de comer, não é fruta, as crianças gostam, nãomancha a roupa, não é fruta, não é parecida comtorta.]

Foi no interior de situações orais e escritas sig-nificativas para ele que Pietro pôde rever, valorizare ampliar seus conhecimentos sobre a escrita, po-dendo também transformar sua relação conflituosacom a linguagem. Como um último exemplo, otexto que se segue foi produzido em uma sessãoem que ele e seu terapeuta conversavam sobre osúltimos acontecimentos nos estádios de futebol, asbrigas entre torcidas. Entre uma opinião e outra, oterapeuta sugeriu que escrevessem juntos uma nar-rativa em que ele passaria sua sugestão sobre ocomportamento dos torcedores. Sem mecanismosde fuga, Pietro aceitou a proposta, desenvolvendoseu personagem a partir do que lhe era propostopelo terapeuta. Eis o resultado (as partes elabora-das por Pietro estão em itálico):

Na fila para comprar ingressos para o jogo SãoPaulo e Santos, dois torcedores se encontraram.

– Ei cara, você aí na minha frente. Você não é são-paulino?– Não, claro.

– Claro, por quê? Se não é são-paulino não podiaestar nessa fila.– Claro porque eu sou santista e eu já tenho o meuingerso, eu esto comprando paro o meu amigo!– E ele é são-paulino?– Não ele é paumerence, só veio ver o jogo.Mas que mistura! Ta bom, você até pode comprar oingresso aqui, mas não vá sentar no meio da minhatorcida, hein? O São Paulo vai ganhar e você vaificar mal.Os três entraram e o jogo está para começar. Poracaso, os três sentaram do outro lado do campo,que quase não tem ninguém.– Eu to emocionado!!!– Emocionado por que? Eu estou enrascado. Co-nheço tanto o Morumbi e vim sentar justo aqui, lon-ge da minha torcida e do seu lado!– Azar o seu! Ah!– Ah é? Olha lá... Gol!! É tricolor, ô ô ô!Kaká de cabeça marca o primeiro gol. E o santista...– Não, eu que comemoro. Olha! Gol!!O Diego empatou o jogo!E foi assim mais duas vezes para cada lado. Placarfinal: 3 x 3.Na saída, são-paulino e santista se abraçaram, di-zendo:– Bom jogo!E o paumerence fica queto.

No transcorrer dessa atividade, ficou níti-do para o terapeuta que não só o personagem quePietro construiu estava emocionado, como ele pró-prio o estava ante a possibilidade de estar escre-vendo com uma segurança pouco vivenciada ante-riormente. Em um processo terapêutico, é funda-mental que o paciente possa viver experiênciascomo essa para que se consolide um processo dereelaboração do texto segundo características pró-prias do gênero discursivo em questão.

Os dois casos relatados de processos terapêu-ticos em diferentes momentos apontam para a idéia,defendida neste artigo, de que viver práticas de es-crita diferenciadas daquelas presentes na escola tra-dicional, optando ainda por aquilo que denomina-mos visitação a diversos gêneros discursivos, mos-tra-se como um caminho frutífero para o trabalhoterapêutico fonoaudiológico.

Page 13: fonoaudiológico com a linguagem O trabalho terapêutico ... · O trabalho terapêutico ... mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); ... 1º pegue o pote de arroz na parte de cima do arm

O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

AR

TIG

OS

193Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004

Referências

Bakhtin M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criaçãoverbal. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes; 1997. (1952-53/1979)Bakhtin M, Volochinov. Marxismo e filosofia a linguagem(1929). 3.ed. São Paulo: Hucitec; 1986.Masini MLH A escrita na clínica fonoaudiológica. Rev DistComun 1999;10(2):193-204.Perrotta CM, Märtz LW, Masini L. Histórias de contar e deescrever: a linguagem no cotidiano. São Paulo: Summus; 1995.Rojo, RHR. Concepções não-valorizadas de escrita: a escritacomo ‘um outro modo de falar’. In: Kleiman A. Os significadosdo letramento. Campinas (SP): Mercado das Letras; 1995.

Recebido em fevereiro/04; aprovado em agosto/04.

Endereço para correspondênciaClaudia PerrottaRua Artur de Azevedo, 1537, ap. 103, São Paulo,CEP 05404-014

E-mail: [email protected]