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Fora Dos Eixos - Julio Verne

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Fora Dos Eixos - Julio Verne

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Jlio Verne

    FORA DOS EIXOSTtulo original: Sans Dessus Dessous (1889)

    Traduo: Augusto Fuschini (1843-1911)2013 Centaur Editions

    [email protected]

  • ndice

    CAPTULO 1CAPTULO 2CAPTULO 3CAPTULO 4CAPTULO 5CAPTULO 6CAPTULO 7CAPTULO 8CAPTULO 9CAPTULO 10CAPTULO 11CAPTULO 12CAPTULO 13CAPTULO 14CAPTULO 15CAPTULO 16CAPTULO 17CAPTULO 18CAPTULO 19CAPTULO 20CAPTULO 21NOTAS

  • Captulo 1

    Em que a North Polar Practical Association espalha um documento pelos dois mundos

    Ento, Sr. Maston, pretendeis que a mulher nunca ser capaz de fazer progredir as

    cincias matemticas e experimentais? Com extrema mgoa sou obrigado a confess-lo, Mrs. Scorbitt respondeu J. T.

    Maston. Que tenha havido, ou que haja, algumas matemticas notveis, particularmente naRssia, estou de acordo; mas, dada a sua constituio cerebral, no h mulher que possachegar a ser um Arquimedes e muito menos um Newton.

    Oh, Sr. Maston, permiti-me que proteste em nome do meu sexo... Sexo tanto mais encantador, Mrs. Scorbitt, que no foi criado para se entregar aos

    estudos transcendentes! Assim, na vossa opinio, Sr. Maston, vendo cair uma ma, mulher alguma poderia ter

    descoberto as leis da gravitao universal, como o ilustre sbio ingls no fim do sculo XVII? Vendo cair a ma, minha senhora, a mulher no ter outra ideia seno... com-la... a

    exemplo da nossa me Eva! Vamos l, tenho de concluir, pois, que nos negais toda a aptido para as altas

    especulaes... Toda?... No. E, contudo, observar-vos-ei que, desde que existem habitantes sobre a

    Terra e mulheres por consequncia, no se manifestou ainda um crebro feminino a que sedeva alguma descoberta, no domnio cientfico, anloga s de Aristteles, Euclides, Kepler,Laplace...

    Ser isso um argumento, e o passado responder irrevogavelmente pelo futuro? Hum! O que se no fez durante milhares de anos no se realizar... sem dvida. Vejo ento que precisamos decidir-nos, Sr. Maston; no somos realmente boas... Seno para ser boas respondeu J. T. Maston.E disse isto com aquela amvel galantaria de que pode dispor um sbio repleto de xx.

    Alm disso, Evangelina Scorbitt estava perfeitamente resolvida a contentar-se. Pois bem, Sr. Maston continuou ela , a cada um a sua partilha neste mundo.

    Continuai a ser o extraordinrio calculador que sois. Entregai-vos por inteiro aos problemasdessa obra imensa qual, vs e os vossos amigos, ides votar a existncia. Quanto a mim, serei

  • a boa mulher que devo ser, dando-lhe o meu auxlio pecunirio... Pelo que vos dedicaremos um reconhecimento eterno afirmou J. T. Maston.Evangelina Scorbitt ruborizou-se deliciosamente, porque experimentava, se no pelos

    sbios em geral, ao menos por J. T. Maston em especial, uma simpatia realmente singular. Ocorao da mulher no porventura um abismo insondvel?

    Obra imensa, na verdade, aquela a que esta rica viva americana tinha resolvidoconsagrar importantes capitais.

    Eis qual era a tentativa, e qual o fim que os seus promotores pretendiam atingir.As terras rticas, propriamente ditas, compreendem, segundo Malte-Brun, Rclus, Saint-

    Martin e os mais autorizados gegrafos: 1. O Devon setentrional, isto , as ilhas, cobertas de gelos, do mar de Baffin e do estreito

    de Lancastre;2. A Jrgia setentrional, constituda pela terra de Banks e numerosas ilhas, tais como as

    Sabinas, Biam-Martin, Griffith, Cornwallis e Bathurst;3. O arquiplago de Baffin-Parry, compreendendo diversas parcelas do continente

    circumpolar chamadas Cumberland, Southampton, James-Sommerset, Boothia-Felix, Melvillee outras quase desconhecidas.

    Neste conjunto, limitado pelo 78. paralelo, as terras tm uma superfcie de um milho e

    quatrocentas milhas e os mares setecentas mil milhas quadradas.Interiormente a este paralelo, intrpidos descobridores mais recentes conseguiram chegar

    s proximidades do 84. grau de latitude e levantar a planta de algumas costas para alm daalta cadeia de massas de gelo, dando nomes aos cabos, aos promontrios, aos golfos, s baasdestes vastos territrios, que poderiam ser denominados os highlands rticos.

    Para l, todavia, deste 84. paralelo existe o mistrio, o irrealizvel desiderato doscartgrafos, e ningum sabe ainda se so terras ou mares o que esconde, num espao de seisgraus, a inultrapassvel acumulao dos gelos do Plo Norte.

    Ora, neste ano de 189..., o Governo dos Estados Unidos teve a ideia, assaz inesperada, depr em hasta pblica as regies circumpolares ainda no descobertas, regies de que umasociedade americana, que se havia constitudo para adquirir a calota rtica, solicitava aconcesso.

    Alguns anos havia, certo, que a Conferncia de Berlim formulara um cdigo especialpara uso das grandes potncias que desejam apoderar-se dos bens de outrem a pretexto de

  • colonizao ou de criao de mercados comerciais; no pareceu, porm, que este cdigo fosseaplicvel nestas circunstncias, visto no ser o territrio polar ainda habitado. Atendendo,contudo, a que o que no pertence a algum de todos, a nova sociedade no pretendiaapoderar-se, mas adquirir, a fim de evitar futuras reclamaes.

    Nos Estados Unidos no se faz projeto algum, por mais audacioso que seja ou mesmoquase irrealizvel , que no encontre quem desenvolva os lados prticos e capitais para orealizar. Havia-se bem demonstrado isto alguns anos antes, quando o Gun-Club de Baltimorese impusera o encargo de enviar um projtil lua, com a esperana de estabelecercomunicao direta com o nosso satlite.

    No tinham sido estes empreendedores ianques que haviam fornecido as mais fortes somasexigidas por esta interessante tentativa?

    E, se ela tinha sido realizada, no o fora graas a dois dos membros do dito clube, queousaram afrontar os perigos desta experincia sobre-humana?

    Que um Lesseps proponha, qualquer dia, abrir um canal de grande corte atravs da Europae da sia, desde as costas do Atlntico at aos mares da China; que um poceiro de gnio sedecida a furar a Terra para atingir as camadas de silicatos, que ali se encontram no estavafluido, abaixo do ferro em fuso, a fim de extrair a substncia do prprio foco do fogo central;que um empreendedor eletricista pretenda reunir as correntes disseminadas na superfcie doGlobo para formar uma inesgotvel origem de calor e de luz; que um engenheiro ousado tenhaa ideia de armazenar, em vastos recetores, o excesso das temperaturas estivais, para asrestituir, durante o inverno, s zonas aoitadas pelo frio; que um extraordinrio hidrulicotente a utilizao da fora viva das mars a fim de produzir, segundo as convenincias, calorou trabalho; que se fundam sociedades annimas ou em comandita para levar a bom fim cemprojetos desta natureza, sero os Americanos os primeiros na lista dos subscritores! Rios dedlares precipitar-se-o nos cofres sociais, como os grandes rios da Amrica do Norte voperder-se no seio dos oceanos.

    , pois, natural admitir que a opinio tivesse sido profundamente sobre-excitada quandose espalhou esta notcia pelo menos singular de que os territrios rticos iam seradjudicados ao mais forte proponente. Alm disso, no fora aberta subscrio pblica algumapara esta aquisio, cujos capitais haviam sido de antemo reunidos.

    O resto resolver-se-ia quando se tratasse de utilizar o domnio, transformado empropriedade dos novos possuidores.

    Utilizar o territrio rtico! Realmente, semelhante ideia podia apenas ter germinado emcrebros de doidos!

  • Nada mais srio, todavia, do que este projeto.Para este fim foi enviado um comunicado aos jornais dos dois continentes, s folhas

    europeias, africanas, ocenicas, asiticas, ao mesmo tempo que s folhas americanas. Estedocumento conclua com um pedido, por parte dos interessados, de inqurito de cmodo eincmodo.

    O New-York Herald havia sido o primeiro a inserir este documento. Por esta forma osinumerveis assinantes de Gordon Bennett puderam ler, no nmero de 7 de novembro, aseguinte comunicao, que se espalhou rapidamente pelo mundo dos sbios e dos industriais,onde foi apreciada por bem variadas formas:

    AVISO AOS HABITANTES DO GLOBO TERRESTRE

    As regies do Plo Norte situadas dentro do 84. grau de latitude setentrional

    no puderam ser ainda exploradas, pela simples razo de que no foram aindadescobertas.

    Com efeito, os pontos extremos, marcados pelos navegadores de diferentesnacionalidades, so os seguintes:

    1. 82 45, atingido pelo ingls Parry, em julho de 1847, sobre o meridiano

    oeste, ao norte de Spitzberg;2. 83 20 28, atingido por Markhan, da expedio inglesa de Sir John

    Georges Nares, em maio de 1876, sobre o 50. meridiano oeste, ao norte da terrade Grinnel;

    3. 83 35 de latitude, atingido por Lockwood e Brainard, da expedioamericana do tenente Greely, em maio de 1882, sobre o 42. meridiano, ao norteda terra de Nares.

    Pode, pois, considerar-se a regio que se estende desde o 84. paralelo at ao

    plo, num percurso de seis graus, como um domnio indiviso, entre os diferentesestados do Globo, e essencialmente suscetvel de se transformar em propriedadeparticular depois de concurso pblico.

    Ora, segundo os princpios de direito, ningum obrigado a permanecer naindiviso. Por isso os Estados Unidos, apoiando-se nestes princpios, resolveramprovocar a alienao deste domnio.

  • Para este efeito constituiu-se em Baltimore uma sociedade, sob a firma socialNorth Polar Practical Association, representando oficialmente a Confederaoamericana; prope-se esta sociedade adquirir a sobredita regio por ato regular,que ficar constituindo absoluto direito de propriedade sobre os continentes,ilhas, rochedos, mares, lagos, rios, ribeiros e, em geral, sobre quaisquer cursosde gua, de que se compe atualmente o imvel rtico, quer se achem cobertospor gelos perptuos, quer os gelos se desprendam durante a estao estival.

    expressamente declarado que este direito de propriedade no poder sercativo de caducidade, mesmo no caso em que sobreviessem modificaes dequalquer natureza que sejam no estado geogrfico e meteorolgico do globoterrestre.

    Levado isto ao conhecimento dos habitantes dos dois mundos, todas aspotncias sero admitidas ao concurso, que ser resolvido a favor da maiselevada proposta.

    A data do concurso fixada a 3 de dezembro do corrente ano, na sala dasAuctions, em Baltimore, Marilndia, Estados Unidos da Amrica.

    Para esclarecimentos dirigir-se a William S. Forster, agente provisrio daNorth Polar Practical Association, 93, High-street, Baltimore.

    Que esta declarao pudesse ser considerada insensata, seja! Em todo o caso, devemos

    concordar que, pela sua clareza e franqueza, nada deixava a desejar. Alm disso, o que atornava muito sria era que o Governo Federal antecipadamente lhe havia feito concesso dosterritrios rticos, no caso em que a adjudicao o tornasse definitivamente proprietrio.

    Em suma, dividiram-se as opinies. Uns no quiseram ver em tudo isto seno um destesprodigiosos humgugs americanos, que iriam alm dos limites do puffismo se a ingenuidadehumana no fosse infinita. Outros pensavam que esta proposta merecia ser acolhida comseriedade, insistindo precisamente em que a nova sociedade no fazia apelo algum bolsa dopblico. Era com os seus prprios capitais que pretendia tornar-se proprietria das regiesrticas. No procurava, pois, absorver os dlares, as notas de banco, o ouro e a prata dospapalvos para encher os seus cofres. No! Pedia simplesmente para pagar com os seusprprios capitais o imvel circumpolar.

    Aos previdentes parecia que a sobredita sociedade no teria seno a alegar simplesmenteo direito do primeiro ocupante, indo tomar posse desse territrio de que ela provocava avenda. Aqui, porm, residia precisamente a dificuldade, porque at esse dia o oceano do plo

  • parecia completamente interdito ao homem.Por isso, para o caso de os Estados Unidos ficarem senhores desse domnio, os

    concessionrios queriam possuir um contrato em regra, para que, mais tarde, no viessealgum contestar o seu direito. Seria injusto censur-los por este facto. Procediam comprudncia. Quando se trata de tomar compromissos em questes desta natureza, no sodemasiadas todas as precaues legais.

    A declarao continha, alm disso, uma clusula que previa as incertezas do futuro.Esta clusula, que devia dar lugar a bastantes interpretaes contraditrias, porque o seu

    verdadeiro sentido escapava aos espritos mais perspicazes, era a ltima. Estipulava ela que odireito de propriedade no poderia caducar, mesmo no caso em que se operassemmodificaes de qualquer natureza, no estado geogrfico e meteorolgico do globoterrestre.

    Que significava esta frase? Que eventualidade tinha em vista prever? Como poderia aTerra sofrer jamais uma modificao de que tivessem de tomar conhecimento a geografia ou ameteorologia sobretudo no que dizia respeito aos territrios postos em adjudicao?

    Evidentemente, diziam os espritos prudentes, h aqui alguma coisa oculta.Por isso, as interpretaes abundaram; o caso era de molde para excitar a perspiccia de

    uns e a curiosidade de outros.Um jornal de Filadlfia, o Ledger, publicou logo a seguinte nota graciosa:

    Os clculos mostraram, decerto, aos futuros compradores das regies rticas,que um cometa de ncleo duro h de em breve tocar a Terra em condies taisque o choque produzir as mudanas geogrficas e meteorolgicas de que a ditaclusula se ocupa.

    A frase era um pouco longa, como convm s que tm pretenses a cientficas, mas nada

    esclarecia. Alm disso, a probabilidade de um choque com um cometa daquele gnero nopodia ser aceite pelos espritos srios. Em todo o caso, era inadmissvel que osconcessionrios se tivessem preocupado com to hipottica eventualidade.

    Imagina por acaso a nova sociedade dizia o Delta, de Nova Orlees que apresso dos equincios poder um dia produzir modificaes favorveis explorao do seudomnio?

    E porque no, se esse movimento modifica o paralelismo do eixo do nosso esferoide? observou o Harburger Correspondent.

  • Efetivamente respondeu a Revue Scientifique de Paris no afirmou Adhmar, noseu livro sobre As Revolues do Mar, que a precesso dos equincios, combinada com omovimento secular do eixo maior da rbita terrestre, dever produzir uma modificao delongo perodo na temperatura mdia dos diferentes pontos da Terra e nas quantidades de geloacumuladas nos dois plos?

    Isso no certo replicou a Revue dEdimbourg. E, quando menos o fosse, noser preciso um perodo de doze mil anos para que Vega venha a ser, em virtude dessefenmeno, a nossa estrela polar, e para que a situao dos territrios rticos mude sob o pontode vista climatrico?

    Pois bem respondeu o Dagblad, de Copenhaga , daqui a doze mil anos ser entotempo de constituir o capital! Mas, antes dessa poca, arriscar um krone, nunca!

    Se era possvel, todavia, que a Revue Scientifique tivesse razo com Adhmar, era bemprovvel, igualmente, que a North Polar Practical Association no houvesse contado nuncacom esta modificao devida precesso dos equincios.

    O facto era que ningum chegava a saber o que significava a clusula do famosodocumento, nem que mudana csmica previa no futuro.

    Bastaria, talvez, para o saber, dirigir-se algum ao conselho de administrao da novasociedade e, mais em especial, ao seu presidente, mas o presidente era desconhecido!Desconhecidos eram igualmente o secretrio e os membros do dito conselho. Ignorava-se atde quem emanava a declarao. Tinha sido levada aos escritrios do New-York Herald por umcerto William S. Forster, de Baltimore, respeitvel consignatrio de bacalhau por conta dacasa Ardrinell and Co., da Terra Nova evidentemente um testa de ferro. To mudo sobreeste assunto como os produtos consignados aos seus armazns, nem os mais curiosos nem osmais hbeis reprteres puderam jamais tirar dele coisa alguma. Em suma, esta North PolarPractical Association era de tal modo annima, que nem o nome de um s membro se lhepodia citar. verdadeiramente a ltima palavra do annimo.

    Se os promotores desta operao industrial persistiam, todavia, em manter as suaspersonalidades em absoluto mistrio, o seu fim era ntida e claramente indicado pelodocumento que fora distribudo pelo pblico dos dois mundos.

    Era, com efeito, evidente que se tratava de adquirir a propriedade da parte das regiesrticas, limitada pelo 84. grau de latitude, de que o plo constitui o ponto central.

    Nada mais certo, alm disso, do que haverem ficado aqum deste paralelo os viajantes, deentre os mais recentes que se haviam aproximado desse ponto inacessvel: Parry, Markhan,Lockwood e Brainard. Quanto aos outros navegadores dos mares boreais, tinham ficado em

  • latitudes sensivelmente inferiores, assim: Payez, em 1874, atingiu 82 15, ao norte da terra deFrancisco Jos e da Nova Zembla; Leout, em 1870, chegou a 72 47, para cima da Sibria;De Long, na expedio da Jeannette, em 1879, deteve-se a 78 45, sobre as paragens dasilhas que tm o seu nome. Alguns, passando alm da Nova Sibria e da Gronelndia, na alturado cabo Bismarck, no tinham passado alm dos paralelos 76., 77. e 79..

    Deixando, pois, uma diferena de vinte e cinco minutos de arco, entre o ponto seja 8335 em que Lockwood e Brainard tinham tocado, e o paralelo 84., como indicava adeclarao da North Polar Practical Association, no usurpava ela descobertas anteriores.

    O seu projeto compreendia terrenos absolutamente virgens de vestgio humano.Vejamos agora qual a superfcie dessa poro do Globo, circunscrita pelo paralelo 84.:De 84 a 90 medeiam seis graus, que, a sessenta milhas cada um, do o raio de trezentas e

    sessenta milhas e o dimetro de setecentas e vinte.A circunferncia , pois, de duas mil duzentas e sessenta milhas e a superfcie de

    quatrocentas e sete mil milhas quadradas, em nmeros redondos1.Aproximadamente a dcima parte da Europa. Um bocado de belas dimenses!Como se viu, o documento estabelecia tambm o princpio de que essas regies, ainda no

    conhecidas geograficamente, no pertencendo a ningum, eram de todos. Que a maior partedas potncias no pensassem em reivindicar a este respeito coisa alguma, era de supor. Masera, por outro lado, tambm fcil de prever que, pelo menos, os Estados limtrofes quereriamconsidera-las como prolongamento das suas possesses para o norte c se prevaleceriam,portanto, do direito de propriedade. Estas pretenses seriam, afinal, tanto mais justificadasquanto era certo que as descobertas feitas no conjunto das regies rticas haviam sido maisparticularmente devidas audcia dos seus cidados. Por isso, o Governo Federal,representado pela nova sociedade, colocava esses Estados em circunstncias de fazerem valeros seus direitos e pretendia indemniz-los com o preo da aquisio. Fosse como fosse, ospartidrios da North Polar Practical Association no cessavam de o repetir. A propriedadeestava indivisa e, como ningum forado a conservar-se na indiviso, ningum igualmentepoderia opor-se venda desta vasta regio.

    Os Estados que, na qualidade de limtrofes, tinham indiscutveis direitos, eram seis: aAmrica, a Inglaterra, a Dinamarca, a Sucia-Noruega, a Holanda e a Rssia. Outros Estadosainda podiam, porm, alegar as descobertas dos seus marinheiros e dos seus viajantes.

    Assim, a Frana poderia intervir, por isso que alguns de seus filhos tinham tomado partenas expedies que tiveram por fim a conquista dos territrios circumpolares. No se pode,porventura, citar, entre outros, esse corajoso Bellot, morto em 1853, nas paragens da ilha

  • Beechey, durante a viagem da Phenix, enviada procura de John Franklin? Deve esquecer-se o Dr. Octvio Pavy, morto em 1884, perto do cabo Sabine, durante a estada da missoGreely no forte Conger? E essa expedio que, em 1838-39, levou at aos mares de SpitzbergCharles Martins, Marmier, Bravais e os seus audazes companheiros, no seria injusto deix-laem esquecimento? Apesar disso, a Frana no julgou conveniente meter-se nessa empresa,mais industrial do que cientfica, e abandonou a sua parte do bolo polar em que as outraspotncias se arriscavam a quebrar os dentes. Teve talvez razo e bem andou.

    O mesmo sucedia Alemanha. Tinha ela no seu ativo, desde 1671, a expedio dohamburgus Frederico Martens ao Spitzberg e, em 1869-70, as da Germnia e da Hansa,comandadas por Koldervey e Hegeman, que subiram at ao cabo Bismarck, costeando aGronelndia. Apesar, todavia, deste passado de brilhantes descobertas, a Alemanha nopensou dever aumentar o imprio germnico com um bocado do plo.

    O mesmo se deu com a ustria-Hungria, apesar de ser j proprietria das terras deFrancisco Jos, situadas ao norte do litoral siberiano.

    Quanto Itlia, no tendo direito algum a intervir, no interveio, por mais inverosmil queisto possa parecer.

    Existiam tambm os Samoiedos da Sibria asitica, os Esquims, que maisparticularmente se acham espalhados pelos territrios da Amrica Setentrional, os indgenasda Gronelndia, do Labrador, do arquiplago Baffin-Parry, das ilhas Aleutas, agrupadas entrea sia e a Amrica, enfim os que, sob o nome de Tchouktchis, habitam a antiga Alasca, outrorarussa, americana desde 1867. Mas estas tribos realmente os verdadeiros indgenas, osindiscutveis autctones das regies do Norte no deviam ter voz na matria.

    E, depois, como poderiam estes pobres diabos oferecer um lano, por mais pequeno quefosse, no concurso provocado pela North Polar Practical Association? Como poderia pagaresta pobre gente? Em conchas, em dentes e leo de foca? Pertencia-lhe um pouco, todavia, pordireito de primeiro ocupante, essa regio que ia ser posta em hasta pblica. Mas Esquims,Tchouktchis, Samoiedos! Nem mesmo se consultam.

    Assim vai o mundo!

  • Captulo 2

    Em que os delegados ingls, holands, sueco, dinamarqus e russo se apresentam ao leitor

    O aviso merecia resposta. Efetivamente, se a nova associao adquirisse as regies

    boreais, tornar-se-iam estas propriedades definitivas da Amrica, ou, para melhor dizer, dosEstados Unidos, cuja ativa Confederao tende a crescer sem cessar. Havia alguns anos j, acesso dos territrios do noroeste, feita pela Rssia, desde a cordilheira setentrional at aoestreito de Bringue, havia-lhe anexado uma boa extenso do Novo Mundo. Era, pois,admissvel que as outras potncias no vissem com bons olhos esta anexao das regiesrticas Repblica Federal.

    No obstante, como j foi dito, os diferentes Estados da Europa e da sia nolimtrofes destas regies negaram-se a concorrer a esta singular licitao, toproblemticos se lhes antolhavam os resultados. Unicamente as potncias cujo litoral seaproxima do 84. grau resolveram fazer valer os seus direitos por interveno de delegadosoficiais. De resto, ver-se-, no pretendiam comprar alm de um preo relativamente mdico,porque se tratava de uma regio de que, provavelmente, seria impossvel tomar posse. Ainsacivel Inglaterra, contudo, entendeu dever abrir ao seu agente um crdito de algumaimportncia.

    Apressemo-nos em o dizer: a cesso das regies circumpolares no ameaava por formaalguma o equilbrio europeu e dela no devia resultar a menor complicao internacional.Bismarck o grande chanceler vivia ainda naquela poca no franzira mesmo a suaespessa sobrancelha de Jpiter alemo.

    Ficavam, pois, em concorrncia a Inglaterra, a Dinamarca, a Sucia-Noruega, a Holanda ea Rssia, que iam ser admitidas a oferecer lanos perante o corretor de leiles de Baltimore,contraditoriamente com os Estados Unidos.

    Ao maior proponente pertenceria a calota gelada do plo, cujo valor comercial, ao menos,era muito contestvel.

    Eram as seguintes as razes especiais por que os cinco Estados europeus, assazracionalmente, desejavam que lhes fosse feita a adjudicao.

    A Sucia-Noruega, proprietria do cabo Norte, situado alm do 70. paralelo, no ocultouconsiderar-se com direitos aos vastos espaos que se estendem at ao Spitzberg e, para alm,

  • at ao prprio plo. O noruegus Kheilhau e o clebre sueco Nordenskiold no haviam, comefeito, contribudo para os progressos geogrficos destas paragens? Incontestavelmente.

    A Dinamarca afirmava-se: que era j senhora da Islndia e das ilhas Fero,aproximadamente sobre a linha do crculo polar; que as colnias, fundadas mais ao norte dasregies rticas, as ilhas Disko, no estreito de Davis, os estabelecimentos de Holsteinberg, deProven, de Goldhaven, de Uppernavik, no mar de Baffin e na costa ocidental da Gronelndia,lhe pertenciam.

    Alm disso, o famoso navegador Behring, de origem dinamarquesa, bem que estivesseento ao servio da Rssia, no havia, no ano de 1728, atravessado o estreito, a que deu o seunome, antes de ir, treze anos mais tarde, morrer miseravelmente, com trinta homens da suaequipagem, no litoral da ilha que tem igualmente o seu nome? Anteriormente, no ano de 1619,o navegador Joo Munk no havia explorado a costa oriental da Gronelndia e levantadomuitos pontos, antes dele perfeitamente desconhecidos? A Dinamarca tinha, pois, sriosdireitos para ser compradora.

    Quanto Holanda, os seus nuticos Barentz e Heemskerk haviam visitado o Spitzberg e aNova Zembla pelos fins do sculo XVI. Era um dos seus naturais, Joo Mayen, cuja audaciosaexpedio para o norte, em 1611, deu ao seu pas a posse da ilha deste nome, situada paraalm do 71. grau de latitude. O seu passado, portanto, impunha-lhe obrigaes.

    Quanto aos Russos, com Alexis Tschirikof, tendo Behring sob as suas ordens, comPaulutski, cuja expedio, em 1751, passou alm dos limites do mar Glacial, com o capitoMartinho Spanberg e o tenente William Walton, que se internaram nestas paragensdesconhecidas em 1739, haviam tomado uma parte importante nas investigaes feitas noestreito que separa a sia da Amrica. Alm disso, pela disposio dos territrios siberianos,compreendendo cento e vinte graus at aos limites extremos do Kamtchatka, na extenso destevasto litoral asitico, em que vivem Samoiedos, Iacutes, Tchouktchis e outras populaessujeitas sua autoridade, no dominam eles metade do oceano rtico? Depois, sobre o 75.paralelo, a menos de novecentas milhas do plo, no possuem eles as ilhas e as ilhotas daNova Sibria, o arquiplago das Liatkov, descoberto no princpio do sculo XVIII? Enfim,desde 1764, antes dos Ingleses, dos Americanos e dos Suecos, o navegador Tschitschagoff nohavia procurado uma passagem do norte, a fim de abreviar os itinerrios entre os doiscontinentes?

    No fim de tudo, parecia, porm, que os Americanos eram mais particularmenteinteressados a tornar-se proprietrios deste ponto inacessvel do globo terrestre. Haviam eles,tambm, tentado muitas vezes atingi-lo, procurando Sir John Franklin, com Grinnel, Kane,

  • Hayes, Greely, De Long e outros arrojados navegadores. Igualmente podiam alegar a situaogeogrfica do seu pas, que se estende para alm do crculo polar, desde o estreito deBringue at baa de Hudson.

    Todas estas terras, todas estas ilhas, Wollaston, Prncipe Alberto, Vitria, Rei Guilherme,Melville, Cockburne, Banks, Baffin, sem contar as mil ilhotas deste arquiplago, no eramcomo o prolongamento que os ligava ao 90. grau? E depois, se o Plo Norte se prende poruma linha, quase ininterrupta, de territrios a um dos grandes continentes do Globo, no serantes Amrica do que aos prolongamentos da sia e da Europa? Era natural, pois, que aproposta para o adquirir houvesse partido do Governo Federal em proveito de uma sociedadeamericana; se alguma potncia tinha direitos menos discutveis posse do domnio polar eramsem dvida os Estados Unidos da Amrica.

    necessrio reconhecer, todavia, que o Reino Unido, que possua o Canad e a Colmbiainglesa, e cujos numerosos navegadores se haviam distinguido nas expedies rticas,apresentava slidas razes para querer anexar esta parte do Globo ao seu vasto impriocolonial. Por isso, os seus jornais discutiram longa e apaixonadamente a questo.

    Sim! Sem dvida respondeu o grande gegrafo ingls Kliptringan num artigo doTimes, que fez sensao , sim, Suecos, Dinamarqueses, Holandeses, Russos e Americanospodem prevalecer-se dos seus direitos! A Inglaterra, porm, no poderia, sem quebra dedignidade, deixar fugir este domnio. A parte norte do novo continente porventura no lhepertence j? As terras, as ilhas que a compem no foram conquistadas pelos seusdescobridores desde Willoughi, que visitou o Spitzberg e a Nova Zembla em 1739, at Mac-Clure, cujo navio atravessou, em 1853, a passagem do noroeste?

    E, depois declarou o Standard pela pena do almirante Fize , por acaso Frobisher,Davis, Hall, Weymouth, Hudson, Baffin, Cook, Ross, Parry, Bechey, Belcher, Franklin,Mulgrave, Scoresby, Mac-Clintock, Kennedy, Nares, Collinson, Archer, no eram de origemanglo-saxnica? Que pases podero reivindicar mais justamente as terras das regies rticasque estes navegadores no puderam atingir?

    Seja! respondeu o Correio de San Diego (Califrnia). Ponhamos a questo nosseus verdadeiros termos, e, visto que se ateia o amor-prprio entre os Estados Unidos e aInglaterra, diremos: se o ingls Markhan, da expedio de Nares, atingiu 83 20 de latitudesetentrional, os americanos Lockwood e Brainard, da expedio Greely, excedendo-o emquinze minutos de grau, fizeram cintilar as trinta e oito estrelas do pavilho dos EstadosUnidos at 83 35. Aos Americanos, pois, cabe a honra de se terem aproximado mais do PloNorte!

  • Tais foram os ataques e tais rplicas.Por ltimo, enumerando a srie dos navegadores que se aventuraram nas regies rticas,

    deve ainda citar-se o veneziano Cabot 1498 e o portugus Corte Real 1500 , quedescobriram a Gronelndia e o Labrador. Nem a Itlia nem Portugal, porm, pensaram emtomar parte no concurso projetado, preocupando-se pouco em saber qual o Estado que deletiraria benefcio.

    A luta, como se podia prever, apenas seria energicamente sustentada, a golpes de dlares ede libras esterlinas, pela Amrica e pela Inglaterra.

    Os pases limtrofes das regies boreais, todavia, apenas formulada a proposta pela NorthPolar Practical Association, haviam-se reciprocamente consultado por meio de congressoscomerciais e cientficos, e tinham resolvido, depois de longas discusses, concorrer licitao, cuja data fora determinada para 3 de dezembro, em Baltimore, fixando, aos seusrespetivos delegados, crditos que no podiam ser excedidos. A soma resultante da alienaoseria dividida entre os cinco Estados no adjudicatrios, a ttulo de indemnizao,renunciando eles a todos os direitos futuros.

    No se conseguiu isto sem alguma discusso; mas, enfim, o negcio ficou combinado. OsEstados interessados concordavam, alm disso, em que a adjudicao tivesse lugar emBaltimore, como o Governo Federal havia indicado.

    Os delegados, munidos das cartas de crdito, deixaram Londres, Haia, Estocolmo,Copenhaga e S. Petersburgo, e, trs semanas antes do dia fixado para o concurso, chegaramaos Estados Unidos.

    Nesta data, a Amrica era apenas representada pelo agente da North Polar PracticalAssociation, esse William S. Forster, cujo nome figurava s no documento de 7 de novembro,publicado no New-York Herald.

    Quanto aos delegados dos Estados europeus, eis os que haviam sido escolhidos e queconvm definir por alguns traos caractersticos:

    Pela Holanda: Jacques Jansen, antigo conselheiro das ndias neerlandesas, cinquenta anos,gordo, baixo, mais corpo do que pernas, braos curtos, pernas pequenas e arqueadas, cabeaornada de culos de alumnio, rosto redondo e corado, cabelo em resplendor, suas grisalhas um bom homem, um tanto ou quanto incrdulo acerca de uma empresa de que no via bemas consequncias prticas.

    Pela Dinamarca: Eric Baldenak, ex-subgovernador das possesses gronelandesas, estaturamdia, um pouco desigual dos ombros, estmago proeminente, cabea enorme edesengonada, mope a ponto de gastar a ponta do nariz sobre os manuscritos e sobre os

  • livros, intransigente em tudo que se referia aos direitos da sua ptria, que considerava comolegtima proprietria das regies do Norte.

    Pela Sucia e Noruega: Jan Harald, professor de cosmografia em Cristiania, que haviasido um dos mais ardentes sectrios da expedio Nordenskiold, o verdadeiro tipo doshomens do Norte: cara avermelhada, barba e cabelo de um louro que lembrava o dos trigosexcessivamente maduros, dando por certo que a calota polar, no sendo ocupada seno pelomar Paleocrstico, no tinha valor algum. Bastante desinteressado, pois, pela questo, e novindo ali seno em nome dos princpios.

    Pela Rssia: o coronel Karkof, meio militar, meio diplomata, alto, empertigado, grandecabeleira, grande barba, grande bigode, parecendo feito de uma s pea e no estar vontadevestido paisana, levando por isso inconscientemente a mo ao stio da espada, que usaranoutros tempos desejoso sobretudo de saber o que ocultava a proposta da North PolarPractical Association, e se no seria para o futuro causa de dificuldades internacionais.

    Finalmente, pela Inglaterra: o major Donellan e o seu secretrio, Dean Toodrink. Estesrepresentavam juntos todos os apetites, todas as aspiraes do Reino Unido, os seus instintoscomerciais e industriais, as suas tendncias para considerar como seus, por uma lei natural, osterritrios setentrionais, meridionais ou equatoriais que no tenham dono.

    Um ingls em toda a extenso da palavra este major Donellan, alto, magro, ossudo,nervoso, anguloso, com pescoo de narceja, cabea Palmerston sobre ombros descados,pernas de cegonha, muito bem conservado apesar dos seus sessenta anos, incansvel e bemo tinha mostrado quando trabalhara no traado das fronteiras da ndia pelo lado da Birmnia.No ria jamais e era de supor que nunca tivesse rido na sua vida. Para que servia isso? Houvej quem visse rir uma locomotiva, um ascensor ou um barco a vapor?

    Nisto diferenava-se o major essencialmente do seu secretrio Dean Toodrink um rapazfalador, divertido, cabea grande, cabelo cado sobre a testa, olhos pequenos e piscos. Eraescocs de nascena, muito conhecido na Velha Fumada pelos seus ditos alegres e o seu gostopor histrias divertidas. Mas, por mais folgazo que fosse, nem por isso se mostrava menospessoal, exclusivo, intransigente, do que o major Donellan, quando se tratava dasreivindicaes menos justificadas da Gr-Bretanha.

    Eram evidentemente estes dois delegados os adversrios mais ferrenhos da sociedadeamericana. O Plo Norte pertencia-lhes, era seu desde os tempos pr-histricos, como se foraaos Ingleses que o Criador tivesse confiado a misso de assegurar a rotao da Terra em voltado seu eixo. Saberiam impedir que passasse para outras mos.

    Convm observar que, se a Frana no havia julgado oportuno mandar delegado seu,

  • oficial ou oficioso, um engenheiro francs tinha vindo, por amor da arte, seguir de muitoperto este curioso negcio. A seu tempo o veremos aparecer.

    Os representantes das potncias setentrionais da Europa tinham, pois, chegado a Baltimorepor paquetes diferentes, como pessoas que persistem em no se influenciar reciprocamente.

    Eram rivais. Cada um tinha no bolso o crdito necessrio para a luta. Mas podia bemdizer-se, neste caso, que no iam combater com armas iguais. Este podia dispor de soma queno chegava a um milho, aquele outro de quantia que o excedia. E, na verdade, para adquirirum pedao do nosso esferoide, em que parecia impossvel pr o p, afigurava-se ainda muitocaro. O que estava, a esse respeito, de melhor partido, era o delegado ingls, a quem o ReinoUnido abrira um importante crdito. Graas a ele, o major Donellan no teria grandedificuldade em vencer os seus adversrios sueco, dinamarqus, holands e russo. A respeitoda Amrica, o caso era outro; seria menos fcil bat-la no campo dos dlares. Era pelo menosprovvel, com efeito, que a misteriosa sociedade devia ter sua disposio fundosconsiderveis.

    A luta viria a limitar-se, provavelmente, entre a Gr-Bretanha e os Estados Unidos.Com o desembarque dos delegados europeus a opinio tornou-se mais apaixonada.

    Correram pelos jornais as mais singulares verses. Estabeleceram-se estranhas hiptesesacerca desta aquisio do Plo Norte. Para que o queriam? Para que poderia servir? Paranada. A menos que no fosse para renovar as geleiras do Novo e do Antigo Mundo! Foimesmo esta a opinio que um jornal de Paris, o Figaro, sustentou espirituosamente. E aindapara isso seria preciso poder transpor o paralelo 84!

    Entretanto os delegados, que durante a viagem transatlntica tinham procurado evitar-se,comearam a aproximar-se logo que se acharam em Baltimore.

    Eis as razes: cada um deles, logo chegada, tinha procurado relacionar-se com a NorthPolar Practical Association, sem que os outros o soubessem. Desejavam conhecer, para osaproveitar oportunamente, os motivos ocultos deste negcio, e que proveito a sociedade deleesperava auferir. At ento nada indicava, porm, que ela tivesse estabelecido uma agnciaem Baltimore; nem escritrios, nem empregados. Para informaes dirigir-se a William S.Forster, High-street. E no parecia que o honrado consignatrio de bacalhau soubesse mais aesse respeito do que o ltimo carregador da cidade.

    Em vista disto, os delegados, que nada puderam saber, achavam-se reduzidos a conjeturasmais ou menos absurdas, fomentadas pelas divagaes do pblico.

    Pois havia de ficar impenetrvel o segredo da sociedade, enquanto ela o no revelasse?Perguntava-se. Sem dvida, ela, no quebraria o silncio seno depois de realizada a

  • aquisio.Seguiu-se daqui que os delegados acabaram por encontrar-se, visitar-se, sondar-se e

    finalmente por entrar em relaes talvez com o pensamento reservado de se aliarem contrao inimigo comum, isto , contra a companhia americana.

    Uma ocasio, na noite de 22 de novembro, acharam-se em conferncia no Hotel Wolesley,nos aposentos ocupados pelo major Donellan e pelo seu secretrio Dean Toodrink.

    Na realidade, esta tendncia para comum acordo era devida s hbeis manobras docoronel Boris Karkof, o fino diplomata que ns sabemos.

    A princpio a conversa versou sobre as consequncias comerciais e industriais que asociedade pretendia tirar da aquisio do territrio rtico. O professor Jan Harald perguntouse alguns dos seus colegas havia podido obter qualquer esclarecimento sobre o assunto. Etodos a pouco e pouco confessaram que tinham procurado obter informaes de William S.Forster, a quem, nos termos do aviso, quaisquer comunicaes deviam ser dirigidas.

    Mas fui mal sucedido disse Erik Baldenak. E eu nada consegui prosseguiu Jacques Jansen. Pois eu acrescentou Dean Toodrink , quando, em nome do major Donellan, me

    apresentei nos armazns de High-street, encontrei um homem gordo, vestido de preto, dechapu alto, embrulhado num avental branco, que lhe subia dos ps at ao pescoo. Quandolhe pedi informaes acerca do negcio, respondeu-me que o South Star acabava de chegarda Terra Nova com o carregamento completo e que estava habilitado a fornecer-me um fortestock de bacalhau fresco por conta da casa Ardrinell and Co.

    Eh! eh! replicou o antigo conselheiro das ndias neerlandesas, sempre um poucoctico , mais valia comprar um carregamento de bacalhau do que atirar com o dinheiro sprofundezas do oceano rtico.

    No essa a questo declarou ento o major Donellan, com modo seco e altivo. No se trata de um stock de bacalhau, mas da coroa polar.

    Que a Amrica bem desejaria pr na cabea! acrescentou Dean Toodrink, rindo como dito.

    Isso constipava-a afirmou com firmeza o coronel Karkof. No essa a questo repetiu o major Donellan e no sei o que a eventualidade de

    corizas vem fazer nesta conferncia. O certo que, por qualquer motivo, a Amrica,representada pela North Polar Practical Association (notem, meus senhores, a palavrapractical), quer comprar uma superfcie de quatrocentas e sete mil milhas quadradas em voltado plo rtico, superfcie circunscrita atualmente (notem, meus senhores, a palavra

  • atualmente) pelo 84. grau de latitude norte. Sabemos isso, major Donellan retrucou Jan Harald , at de mais! Mas o que no

    sabemos como a dita sociedade tenciona explorar, sob o ponto de vista industrial, essesterritrios, se so territrios, ou esses mares, se so mares...

    No essa a questo interrompeu pela terceira vez o major Donellan. Um Estadoquer, pagando, apropriar-se de uma parte do Globo, que, pela situao geogrfica, parecemais especialmente pertencer Inglaterra.

    Rssia contestou o coronel Karkof. Holanda contestou Jacques Jansen. Sucia-Noruega contestou Jan Harald. Dinamarca contestou Eric Baldenak.Os cinco delegados comeavam a emproar-se e o colquio ia passar s invetivas, quando

    Dean Toodrink tentou intervir pela primeira vez: Meus senhores disse ele em tom conciliador , no essa a questo, empregando a

    frase de que o meu chefe, o major Donellan, de muito bom grado faz uso. Visto estar decidido,em princpio, que as regies circumpolares sero postas venda, necessariamente ficaropertencendo quele dos Estados, representados por vs, que oferecer mais elevado lano.Portanto, visto que a Sucia-Noruega, a Rssia, a Dinamarca, a Holanda e a Inglaterra abriramcrditos aos seus delegados, no seria prefervel formarem estes um sindicato que lhespermitisse dispor de uma soma tal que a sociedade americana no pudesse lutar com ele?

    Os delegados olharam uns para os outros; talvez Dean Toodrink tivesse achado a soluo:um sindicato... Hoje em dia, esta palavra d para tudo. Sindicaliza-se, como se respira, comose bebe, como se come, como se dorme. Nada mais moderno tanto em poltica como emnegcios.

    Uma objeo, ou antes, uma explicao, tornava-se, todavia, necessria. Jacques Jansenjulgou interpretar os sentimentos dos seus colegas, perguntando:

    E depois?...Sim!... Depois de feita a aquisio pelo sindicato? Parece-me, porm, que a Inglaterra!... observou secamente o major. E a Rssia observou o coronel com terrvel sobrecenho. E a Holanda! observou o conselheiro. Quando Deus deu a Dinamarca aos Dinamarqueses... observou Eric Baldenak. Perdo exclamou Dean Toodrink , no h seno um pas dado por Deus: a

    Esccia!

  • Como assim?... retrucou o delegado sueco. No disse o poeta Deus nobis haec otia fecit replicou o trocista, traduzindo a seu

    modo o final do sexto verso da primeira gloga de Virglio.Riram-se todos exceto o major Donellan , e com isto se interrompeu de novo a

    discusso, que j ameaava acabar mal.Ento Dean Toodrink pde acrescentar: No disputem, meus senhores, para que serve isso?... Constituamos antes o nosso

    sindicato... E depois? repetiu Jan Harald. Depois? volveu Dean Toodrink. Nada mais simples, meus senhores: ou, quando a

    houverdes comprado, a propriedade do domnio polar entre vs ficar indivisa, ou, mediantejusta indemnizao, transferi-la-eis a um dos Estados coproprietrios. O fim principal, porm,ter sido obtido: eliminar definitivamente os representantes da Amrica!

    A proposta era aceitvel na ocasio presente pelo menos , porque, num futuroprximo, os delegados no deixariam de engalfinhar-se e sabemos que lhes sobejavamcabelos quando se tratasse de escolher o definitivo possuidor desse territrio to disputadocomo intil. De qualquer modo, porm, como to inteligentemente tinha notado Dean Toodrink,os Estados Unidos ficariam absolutamente fora do concurso.

    Eis o que me parece sensato disse Erik Baldenak. Hbil disse o coronel Karkof. Engenhoso disse Jan Harald. Fino disse Jacques Jansen. Ingls a valer! concluiu o major Donellan.Cada um dissera a sua frase com esperana de embaraar, mais tarde, os seus estimveis

    colegas. Est, pois, perfeitamente assente inquiriu Boris Karkof que, no caso de nos

    sindicarmos, os direitos de cada Estado ficaro inteiramente salvaguardados para o futuro?...Estava assente.Restava, apenas, saber quais os crditos que os diversos Estados tinham posto

    disposio dos seus delegados. Somar-se-iam esses crditos, e no era duvidoso produzir ototal quantia to importante que os recursos da North Polar Practical Association nopoderiam exced-la?

    A pergunta foi feita por Dean Toodrink.Ento sobreveio nova dificuldade. Fez-se silncio absoluto. Ningum queria responder.

  • Mostrar a bolsa? Despejar as algibeiras no cofre do sindicato? Dar antecipadamente aconhecer at que soma cada qual contava cobrir o lano?...

    Ningum se apressava a faz-lo! E se algum desacordo sobreviesse mais tarde entre osmembros do novo sindicato?... E se as circunstncias os obrigassem a entrar na lutaisoladamente?... E se o diplomata Karkof se melindrasse com as subtilezas de Jacques Jansen,se este se ofendesse com as tricas ocultas de Eric Baldenak, este se irritasse com as rabulicesde Jan Harald, este se recusasse a suportar as pretenses altivas do major Donellan, que porsua parte no teria dvida em forjar intrigas contra cada um dos seus colegas? Enfim, declararos crditos seria mostrar o jogo, quando era necessrio conserv-lo oculto.

    No havia, em verdade, seno duas maneiras de responder pergunta justa, masindiscreta, de Dean Toodrink: ou exagerar os crditos o que seria de grave embaraoquando se tratasse de os realizar ou diminu-los de um modo to irrisrio que tudo viesse adegenerar em brincadeira e se no desse seguimento proposta.

    Esta ideia teve-a primeiro o ex-conselheiro das ndias neerlandesas, que, devemosconcordar, no era srio; todos os colegas lhe seguiram as pisadas.

    Meus senhores declarou a Holanda pela sua boca , sinto diz-lo, mas para acompra do territrio rtico no posso dispor de mais de cinquenta rixdalers.

    E eu de trinta e cinco rublos declarou a Rssia. E eu de vinte kronors declarou a Sucia-Noruega. E eu de quinze krones declarou a Dinamarca. Pois bem declarou o major Donellan, em tom que traduzia aquela desdenhosa atitude

    to natural Gr-Bretanha , ser pois em vosso proveito que se realizar a compra, porque

    a Inglaterra no pode dispor para ela de mais de um xelim e seis dinheiros2.Com esta declarao irnica terminou a conferncia dos delegados da velha Europa.

  • Captulo 3

    Em que se faz a adjudicao das regies do plo rtico

    Por que razo se ia efetuar esta venda a 3 de dezembro na sala habitual das Auctions,

    onde, segundo o costume, se vendiam apenas objetos mobilirios, trastes, utenslios,ferramentas, instrumentos, etc., ou objetos de arte, quadros, esttuas, medalhas, antiguidades?Por que razo, visto que se tratava de uma licitao imobiliria, no a faziam perante umtabelio, ou no tribunal institudo para este gnero de operaes? Enfim, para que era ainterveno de um corretor de leiles, quando se tratava da venda de uma parte do globoterrestre? Poder-se-ia assimilar esse bocado do nosso esferoide a um objeto de moblia, e noseria ele o que de mais imvel existe no mundo?

    Parecia isto com efeito ilgico; contudo, assim aconteceria. Ia-se vender, nestascondies, a totalidade das regies rticas, e nem por isso o contrato seria menos vlido.

    No indicava porventura isto que, na opinio da North Polar Practical Association, oaludido imvel participava tambm do mvel, como se fosse possvel desloc-lo?

    Esta singularidade no deixava de intrigar certos espritos eminentemente perspicazes muito raros, at nos Estados Unidos.

    Existia, alm disso, um precedente. Parte do nosso planeta havia sido j adjudicada, emuma das salas das Auctions, em hasta pblica e por intermdio de um corretor de leiles.Precisamente na Amrica.

    De facto, alguns anos antes, em S. Francisco da Califrnia, uma ilha do oceano Pacfico, a

    ilha Spencer3, fora vendida ao milionrio William W. Kolderup, que venceu por quinhentosmil dlares o seu concorrente J. R. Taskinar, de Stockton. Esta ilha Spencer foi paga porquatro milhes de dlares.

    Em verdade era uma ilha habitvel, situada a alguns graus somente da costa da Califrnia,com florestas, cursos de gua, solo produtivo e slido, campos e prados suscetveis decultura, e no uma regio indecisa, talvez um mar coberto de gelos eternos e defendido porinacessveis montanhas de gelo, que muito provavelmente ningum poderia jamais ocupar.

    Era, pois, de supor que o incerto domnio do plo, quando posto em licitao, noatingiria nunca to considervel preo.

    No obstante, nesse dia, a singularidade do negcio havia atrado, se no muitos amadores

  • srios, pelo menos grande nmero de curiosos, desejosos de conhecer o seu desenlace. A luta,em suma, devia ser muito interessante.

    Alm disso, desde a sua chegada a Baltimore, os delegados europeus haviam sido muitoprocurados, muito solicitados e, bem entendido, muito entrevistados. Como o caso sepassava na Amrica, no era para admirar que a opinio pblica houvesse sido excitada nomais alto grau. Daqui provieram apostas insensatas a forma mais vulgar pela qual semanifesta nos Estados Unidos esta sobre-excitao, forma de que a Europa comea a seguir debom grado o contagioso exemplo.

    Se os cidados da Confederao americana, tanto os da Nova Inglaterra, como os dosEstados do Centro, do Oeste e do Sul, se dividiam em grupos de opinies diferentes, todos,evidentemente, faziam votos para que vencesse o seu pas.

    Esperavam que o Plo Norte se abrigaria sob as pregas do seu pavilho de trinta e oitoestrelas.

    E, contudo, no deixavam de experimentar alguma inquietao.No era nem da Rssia, nem da Sucia-Noruega, nem da Dinamarca, nem da Holanda que

    temiam sria competncia; mas o Reino Unido achava-se ali tambm com as suas ambiesterritoriais, as suas tendncias para absorver tudo, a sua reconhecida tenacidade e as suasinvasoras notas de banco.

    Apostaram-se, pois, fortes somas. Apostava-se pela Amrica e pela Great-Britain, comose teria apostado por cavalos de corrida e quase com cotaes iguais.

    Quanto a Danemark, Sweden, Holland e Russia bem que fossem oferecidas a 12 e 13,5 no achavam aceitantes.

    A praa estava anunciada para o meio-dia. Muito cedo j, a multido de curiososintercetava a circulao em Bolton-street.

    A opinio havia sido extremamente excitada desde a vspera.Pelo cabo transatlntico, os jornais tinham sido informados de que a maior parte das

    apostas, oferecidas pelos Americanos, eram aceitas pelos Ingleses, e Dean Toodrink fizeraimediatamente afixar esta nota na sala das Auctions.

    O Governo da Gr-Bretanha, afirmava-se, tinha posto fundos considerveis disposiodo major Donellan.

    O Admiralty Office, observava o New-York Herald, os lordes do Almirantado exigiam aaquisio das terras rticas, previamente indicadas, para que estas figurassem na nomenclaturadas colnias inglesas, etc., etc.

    O que haveria de verdade em todas estas verses e de provvel nestas notcias? Todos o

  • ignoravam.Neste dia, porm, em Baltimore, as pessoas prudentes pensavam que a luta poderia

    terminar em proveito da Inglaterra se a North Polar Practical Association ficasse reduzida aosseus prprios recursos.

    Daqui se originou a presso que os mais ardentes ianques procuravam exercer sobre oGoverno de Washington.

    No meio desta efervescncia, a nova sociedade, encarnada na modesta pessoa do seuagente, William S. Forster, no parecia inquietar-se com a preocupao geral, como seestivesse sem contestao assegurada do sucesso.

    medida que a hora se aproximava, a multido acumulava-se em toda a extenso daBolton-street.

    Trs horas antes da abertura das portas no era possvel penetrar na sala do leilo.J o espao reservado ao pblico estava cheio at quase rebentar as paredes.Apenas um certo nmero de lugares, defendidos por uma balaustrada, haviam sido

    reservados para os delegados europeus.Deviam eles, pelo menos, ter possibilidade de seguir as fases da licitao e de apresentar,

    em ocasio oportuna, os seus lanos.Nesses lugares viam-se: Eric Baldenak, Boris Karkof, Jacques Jansen, Jan Harald, o

    major Donellan e o seu secretrio Dean Toodrink.Formavam um grupo compacto, acotovelavam-se como soldados formados em colunas de

    assalto.Dir-se-ia, efetivamente, que corriam ao assalto do Plo Norte!Por parte da Amrica ningum se havia apresentado, a no ser o consignatrio de

    bacalhau, cuja fisionomia vulgar traduzia a mais completa indiferena.Seguramente, parecia o menos comovido da assembleia e no pensava, sem dvida, seno

    na colocao dos carregamentos, que esperava pelos navios a partir da Terra Nova.Quais eram, pois, os capitalistas representados por este bonacheiro, que ia porventura

    pr em movimento milhes de dlares?Era isto de molde a aguar vivamente a curiosidade pblica.Efetivamente, no podia duvidar algum de que J. T. Maston e Mrs. Evangelina Scorbitt

    tivessem algum interesse no negcio.Ambos se achavam presentes, embora perdidos na multido, sem lugar especial, e

    cercados por alguns dos principais scios do Gun-Club, colegas de J. T. Maston.Simples espectadores, na aparncia, pareciam completamente desinteressados no pleito. O

  • prprio William S. Forster no mostrava conhec-los. intil dizer que, em contrrio aos usos estabelecidos nas salas das Auctions, no

    havia meio de ter disposio do pblico o objeto em leilo.No se poderia passar de mo em mo o Plo Norte, v-lo por todas as suas faces e

    examin-lo lente, esfreg-lo com o dedo para verificar se a ptina seria real ou artificial,como um bibelot antigo.

    E, todavia, antigo era ele anterior Idade do Ferro, Idade do Bronze, Idade daPedra, isto , s pocas pr-histricas, pois que datava do comeo do mundo!

    Se o Plo Norte no figurava sobre a secretria do corretor de leiles, uma grande cartageogrfica, bem vista dos interessados, indicava por meio de cores a configurao dasregies rticas. A dezassete graus para cima do crculo polar, um trao encarnado muito forte,sobre o octogsimo quarto paralelo, circunscrevia a parte do Globo de que a North PolarPractical Association havia provocado a alienao.

    Parecia natural que esta regio fosse ocupada por um mar, coberto por camadas de gelo deespessura considervel; mas esta questo era com os futuros proprietrios.

    Ao menos, no seriam enganados sobre a natureza da mercadoria.Ao meio-dia em ponto, o corretor de leiles, Andrew R. Gilmour, entrou por uma pequena

    porta, aberta nos ornamentos de madeira que revestiam a parede do fundo, e tomou lugar emfrente da sua secretria.

    J o seu pregoeiro, Flint, homem com voz de trovo, passeava pesadamente, commovimentos de urso engaiolado, ao longo da balaustrada que continha o pblico. Um e outrocompraziam-se com a ideia de que as suas horas de trabalho lhes dariam um enorme tantospor cento, que no sentiam desprazer algum em receber.

    Intil ser dizer que a venda seria feita em dinheiro de contado: cash, conforme aexpresso americana.

    Quanto soma da adjudicao, por mais importante que fosse, devia ser por inteiroentregue aos delegados, por conta dos Estados que no tivessem sido adjudicatrios.

    Neste momento, a sineta da sala, tocando desesperadamente, anunciou, para fora ocaso de dizer urbi et orbi que ia dar-se incio ao leilo.

    Que momento solene aquele!Todos os coraes palpitavam, quer nas cercanias, quer em toda a cidade.Um longo rumor, elevando-se de Bolton-street, das ruas adjacentes, e propagando-se pelos

    remoinhos da multido, penetrou na sala.Andrew R. Gilmour, para tomar a palavra, teve de esperar que este murmrio de onda e de

  • multido se acalmasse pouco a pouco.Ento levantou-se, volveu em torno um olhar pela assembleia; depois, deixando cair a

    luneta sobre o peito, disse, com voz ligeiramente comovida: Meus senhores, por proposta do Governo Federal e graas aquiescncia dada a esta

    proposta pelos diferentes Estados do Novo Mundo e do Antigo Continente, vamos pr vendaum lote de imveis, situados em volta do Plo Norte, tal como existe nos limites atuais do 84.paralelo, em continentes, mares, estreitos, ilhas, ilhotas, montanhas de gelo, em geral,quaisquer partes slidas e lquidas.

    Depois, dirigindo o indicador para a parede disse: Tende a bondade de fixar a vista sobre a carta, que foi traada segundo as descobertas

    mais recentes. Vereis que a superfcie deste lote compreende, muito aproximadamente,quatrocentas e sete mil milhas quadradas sem interrupo. Por isso, para facilidade da venda,

    foi decidido que os lanos se refeririam a cada milha quadrada. Um cent4 valer, pois, emnmeros redondos, quatrocentos e sete mil cents, e um dlar quatrocentos e sete mil dlares.Silncio, meus senhores!

    A recomendao no era suprflua, porque as impacincias do pblico traduziam-se porum tumulto que a enunciao dos lanos teria bastante dificuldade em dominar.

    Quando se restabeleceu um meio silncio, graas sobretudo interveno do pregoeiroFlint, que bramiu como uma sereia de alarme em tempo brumoso, Andrew R. Gilmourretomou a palavra nestes termos:

    Antes de comear, devo lembrar ainda uma das clusulas da adjudicao: o imvelpolar ser definitivamente adquirido, ficando a sua propriedade livre de toda a contestaopor parte dos vendedores, tal como hoje existe, circunscrito pelo 84. grau de latitudesetentrional, e, quaisquer que sejam as modificaes geogrficas e meteorolgicas que possamsobrevir no futuro.

    Sempre esta singular disposio, inserida no aviso, que, se excitava as faccias de uns,prendia a ateno de outros!

    Est aberta a praa anunciou o corretor de leiles com voz vibrante.E enquanto o martelo de marfim se agitava na sua mo, arrastado pelos hbitos de calo

    em assuntos de venda pblica, acrescentou em tom nasal: Temos lano de dez cents por milha quadrada!

    Dez cents, ou um dcimo de dlar5, perfaziam a soma de quarenta mil e setecentos dlares

    pela totalidade6 do imvel rtico.

  • Tivesse ou no o agente Andrew comprador para tal preo, o lano foi imediatamentecoberto, por conta do Governo dinamarqus, pelo seu representante, Eric Baldenak.

    Vinte cents! disse ele. Trinta cents! disse Jacques Jansen, por conta da Holanda. Trinta e cinco disse Jan Harald, por conta da Sucia-Noruega. Quarenta disse o coronel Boris Karkof, por conta de todas as Rssias.Este ltimo lano representava j a soma de cento e sessenta e dois mil e oitocentos

    dlares e, contudo, os lanos apenas comeavam!Convm observar que o representante da Gr-Bretanha no tinha ainda aberto a boca, nem

    mesmo descerrado os lbios, que comprimia com fora.Pelo seu lado, William S. Forster, consignatrio de bacalhau, conservava-se em

    impenetrvel mutismo.At este momento parecia absorvido na leitura do Mercurial of New-Found-Land, que lhe

    indicava as chegadas e as cotaes do dia para os mercados da Amrica. A quarenta cents a milha quadrada! repetiu Flint, terminando a frase com um triunfo

    , a quarenta cents!Os quatro colegas do major Donellan entreolharam-se. Haveriam eles, porventura,

    esgotado os crditos logo no princpio da luta? Estavam reduzidos a calar-se? Vamos, meus senhores tornou Andrew R. Gilmour , a quarenta cents! Quem lana

    mais?... Quarenta cents. Vale mais do que isto a calota polar...Sups-se que ia acrescentar: ...garantida, gelo puro.Mas o delegado dinamarqus acabava de pronunciar: Cinquenta cents!E o delegado holands de carregar dez cents. A sessenta cents a milha quadrada! gritou Flint. A sessenta cents? Ningum lana

    mais?

    Ora estes sessenta cents faziam j a respeitvel soma de duzentos e quarenta mil dlares7.A assembleia acolheu o lano da Holanda com um murmrio de satisfao! Coisa

    extravagante e bem humana! Os miserveis cokneys sem vintm, que estavam presentes, ospobres diabos que nada tinham na algibeira, pareciam ser os mais interessados nesta luta agolpes de dlares.

    Depois da interveno de Jacques Jansen, o major Donellan, levantando a cabea, haviaencarado o seu secretrio Dean Toodrink, mas, a um pequeno sinal negativo deste, conservou-se silencioso.

  • Quanto a William S. Forster, sempre profundamente mergulhado na leitura dos seus preoscorrentes, tomava na margem algumas notas a lpis.

    J. T. Maston, pela sua parte, respondia com um pequeno aceno de cabea aos sorrisos deMrs. Evangelina Scorbitt.

    Vamos, meus senhores, mais animao!... Esmorecemos!... Isto est frio... muito frio... continuou Andrew R. Gilmour. Vejamos!... Ningum diz mais nada!... Vamosadjudicar?...

    E o seu martelo abaixava-se e levantava-se como um hissope nas mos de um sacristo. Setenta cents ofereceu o professor Jan Harald, com voz um pouco trmula. Oitenta acrescentou quase imediatamente o coronel Boris Karkof. Vamos!... Oitenta cents gritou Flint, cujos grandes olhos redondos se inflamavam

    com o fogo dos lanos.Um gesto de Dean Toodrink fez saltar como um autmato o major Donellan. Cem cents disse com tom seco o representante da Gr-Bretanha.

    Estas simples palavras comprometiam a Inglaterra em quatrocentos e sete mil dlares8.Os que apostavam pelo Reino Unido soltaram hurras, que parte do pblico repetiu como

    um eco.Os que apostavam pela Amrica olharam uns para os outros, assaz desapontados.Quatrocentos e sete mil dlares?! Era j uma grande soma para essa fantstica regio do

    Plo Norte!Quatrocentos e sete mil dlares de icebergues, de ice-fields e de montanhas de gelo!E o homem da North Polar Practical Association sem dizer uma palavra, sem ao menos

    levantar a cabea! No se decidiria ele, enfim, a cobrir o lano?Se havia querido esperar que os delegados dinamarqus, sueco, holands e russo tivessem

    esgotado os seus crditos, parecia chegado o momento.A sua atitude indicava, com efeito, que, diante dos cem cents do major Donellan, se

    resolviam a abandonar o campo de batalha. A cem cents a milha quadrada! declarou por duas vezes o corretor de leiles. Cem cents. Cem cents. Cem cents! repetiu o pregoeiro Flint, fazendo porta-voz da

    mo meio fechada. Ningum cobre o lano? perguntou Andrew R. Gilmour? Est entendido? Est

    bem assente? No h desgosto? Vai-se adjudicar?E arqueava o brao que agitava o martelo, percorrendo com olhares provocantes a

    assembleia, cujos murmrios se apagavam em silncio comovido.

  • Uma!... duas!... tornou ele. Cento e vinte cents disse ento tranquilamente William S. Forster, sem mesmo

    levantar os olhos e depois de ter voltado a pgina do seu jornal. Hip!... Hip!... Hip!... gritaram os apontadores que tinham sustentado as cotaes

    mais altas pelos Estados Unidos da Amrica.O major Donellan levantou-se a seu turno.O seu comprido pescoo girava mecanicamente no ngulo formado pelos ombros, e os

    lbios alongavam-se-lhe em bico.Fulminava com o olhar o impassvel representante da companhia americana, sem, contudo,

    conseguir resposta mesmo troca de olhares. Aquele diabo do William Forster no se mexia. Cento e quarenta ofereceu o major Donellan. Cento e sessenta disse Forster. Cento e oitenta gritou o major. Cento e noventa murmurou Forster. Cento e noventa e cinco cents! bramiu o delegado da Gr-Bretanha.E, dizendo isto, cruzou os braos, parecendo dirigir um desafio aos trinta e oito Estados da

    Confederao.Ter-se-ia neste momento ouvido andar uma formiga, nadar um peixinho, voar uma

    borboleta, rastejar um verme, mover-se um micrbio. Todos os coraes batiam. Todas asatenes estavam suspensas da boca do major Donellan.

    A sua cabea, to imvel de habitual, j no se mexia. Quanto a Dean Toodrink, coava oocciput a ponto de arrancar o couro cabeludo.

    Andrew R. Gilmour deixou passar alguns instantes, que pareceram longos comosculos. O consignatrio de bacalhau continuava a ler o jornal e a rabiscar algarismos, quenada tinham, evidentemente, com o negcio de que se tratava.

    Estaria ele tambm com o seu crdito esgotado? Renunciaria a apresentar um ltimolano? Porventura a soma de cento e noventa e cinco cents por metro quadrado, ou setecentose trs mil e cinquenta dlares pela totalidade do domnio, parecer-lhe-ia ter atingido osltimos limites do absurdo?

    Cento e noventa e cinco cents! repetiu o corretor de leiles. Vai-se adjudicar...E o seu martelo estava prestes a cair sobre a mesa. Cento e noventa e cinco cents! repetiu o pregoeiro. Adjudique!... Adjudique!Esta intimao foi feita por muitos espectadores impacientes, como censura s hesitaes

  • de Andrew R. Gilmour. Uma... duas... gritou ele.Todos os olhares estavam voltados para o representante da North Polar Practical

    Association.Pois bem! Esse homem extraordinrio preparava-se neste momento para se assoar,

    demoradamente, a um grande leno de seda de quadrados, que comprimia com fora o orifciodas suas fossas nasais.

    Os olhares de J. T. Maston estavam, todavia, fitos nele, e os olhos de Mrs. EvangelinaScorbitt seguiam a mesma direo.

    Poderia conhecer-se pela palidez quanto era violenta a comoo que procuravam dominar.Porque hesitava William S. Forster em cobrir o lano do major Donellan?

    William S. Forster assoou-se segunda, depois terceira vez, com o rudo de uma verdadeiragirndola. Entre as duas ltimas fungadelas, tinha, porm, murmurado com uma voz doce emodesta:

    Duzentos cents!Um longo estremecimento percorreu o auditrio. Depois, os hips americanos soaram a

    ponto de estremecer os vidros.O major Donellan, acabrunhado, esmagado, achatado, havia cado perto de Dean Toodrink,

    no menos desorientado do que ele.

    Este preo por milha quadrada dava a enorme soma de oitocentos e catorze mil dlares9, eera visvel que o crdito britnico no consentia exced-la.

    Duzentos cents! repetiu Andrew R. Gilmour. Duzentos cents! vociferou Flint. Uma... duas! repetiu ainda outra vez o corretor. Ningum d mais?O major Donellan, por um movimento involuntrio, levantou-se de novo e olhou para os

    outros delegados. Estes s nele confiavam para impedir que a propriedade no Plo Norteescapasse s potncias europeias. Este esforo, porm, foi o ltimo. O major abriu a boca,tornou a fech-la e, na sua pessoa, a Inglaterra caiu desfalecida sobre o banco.

    Adjudicado! gritou Andrew R. Gilmour, batendo sobre a mesa com a extremidadedo martelo de marfim.

    Hip!... Hip!... Hip!... pelos Estados Unidos! berraram os partidrios da potnciavitoriosa.

    Num instante, a notcia da aquisio espalhou-se pelos bairros de Baltimore, em seguida,pelos fios telegrficos, pela superfcie de toda a Confederao; finalmente, pelos fios

  • submarinos, fez erupo no Velho Mundo.Era a North Polar Practical Association que, por intermdio do seu testa de ferro, William

    S. Forster, se tornava proprietria do domnio rtico compreendido pelo paralelo 84.No dia seguinte, quando William S. Forster foi apresentar a declarao de procurador, o

    nome que deu foi o de Impey Barbicane, em que se encarnava a dita companhia sob a firmasocial: Barbicane and Co.

  • Captulo 4

    Em que reaparecem antigos conhecidos dos nossos jovens leitores

    Barbicane and Co!... O presidente de um clube de artilheiros! Em boa verdade, o que

    vinham os artilheiros fazer numa operao desta natureza?... Vamos v-lo.Ser, porventura, necessrio apresentar oficialmente Impey Barbicane, presidente do Gun-

    Club de Baltimore, o capito Nicholl, J. T. Maston, Tom Hunter, o das pernas de pau, obulioso Bilsby, o coronel Bloomsberry e os outros seus colegas? No! Se estas excntricaspersonagens tm os seus vinte anos a mais, desde a poca em que a ateno do mundo inteirofoi por eles atrada, ficaram os mesmos, sempre to incompletos fisicamente como bulhentos,audaciosos, entusiastas, quando se tratava de alguma aventura extraordinria. O tempo noteve ao sobre esta legio de artilheiros reformados. Respeitou-os como respeita os canhesfora de servio que guarnecem os museus dos antigos arsenais.

    Se o Gun-Club contava mil oitocentos e trinta e trs membros, na ocasio da sua fundao trata-se das pessoas e no dos membros, tais como braos ou pernas, que a maior parte nopossuam , se trinta mil quinhentos e setenta e cinco correspondentes se orgulhavam com olao que os prendia ao dito clube, estes nmeros no tinham diminudo; pelo contrrio. Graas tentativa inverosmil que havia feito para estabelecer comunicao direta entre a Terra e a

    lua10, a sua celebridade tinha aumentado em enorme proporo.No esqueceu ningum o eco que teve esta memorvel experincia, em que em poucas

    linhas convm resumir.Anos depois da Guerra da Separao, alguns dos scios do Gun-Club, cansados da

    ociosidade, propuseram-se enviar um projtil lua, por meio de uma columbada monstro. Umcanho, de novecentos ps de comprimento e de nove de alma, solenemente fundido em City-Moon, no solo da pennsula floridiana, foi carregado com quatrocentas mil libras de algodo-plvora. Um projtil cilindrocnico de alumnio, lanado por este canho, dirigiu-se para oastro da noite sob a presso de seis milhes de litros de gases. Depois de haver feito a voltado astro, por causa de um desvio na trajetria o projtil tornou a cair na Terra, mergulhandono Pacfico, por 27 7 de latitude norte e 41 37 de longitude oeste. Foi nestas paragens quea Susquehanna, fragata da marinha federal, o pescou superfcie do oceano, com grandeproveito dos seus ocupantes.

  • Ocupantes, de facto! Dois scios do Gun-Club, o presidente Impey Barbicane e o capitoNicholl, acompanhados por um francs, muito conhecido pelas suas audcias de quebra-costas, tinham tomado lugar naquele vago-projtil. Os trs haviam voltado sos e salvos; seos dois americanos, porm, continuavam sempre prontos para arriscar-se em nova aventura, ofrancs Miguel Ardan estava ausente. De regresso Europa, segundo parece, havia feitofortuna o que no deixou de surpreender muita gente e, presentemente, possua as suascouves, comia-as e at as digeria, se devemos acreditar nos reprteres mais bem informados.

    Depois deste prodigioso feito, Impey Barbicane e Nicholl tinham gozado a celebridade emrelativo repouso. Sempre impacientes por grandes empreendimentos, fantasiavam outraoperao deste gnero. O dinheiro no lhes faltava. Do ltimo negcio restavam-lhes aindaperto de duzentos mil dlares, dos cinco milhes e meio que lhes havia rendido a subscriopblica aberta no Novo e no Antigo Mundo. Alm disso, exibindo-se apenas pelos EstadosUnidos no seu projtil de alumnio, como fenmeno numa gaiola, tinham ainda realizadoexcelentes receitas e colhido tanta glria quanto pode comportar a mais exigente ambiohumana.

    Impey Barbicane e o capito Nicholl poderiam, pois, viver sossegados se os no minasseo aborrecimento. E foi, sem dvida, para sarem da inao que acabavam de comprar o lotedas regies rticas.

    No esqueamos, porm, que se esta aquisio pudera ser realizada pelo preo de poucomais de oitocentos mil dlares, fora devido a que Mrs. Evangelina Scorbitt havia contribudopara o negcio com a soma que faltava. Graas a esta generosa mulher, a Europa havia sidovencida pela Amrica.

    Eis ao que era devida esta generosidade. Depois da volta lua, se o presidente Barbicanee o capito Nicholl gozavam de rara celebridade, outro homem existia que partilhava boaparte dela. Trata-se, como fcil adivinhar, de J. T. Maston, o fogoso secretrio do Gun-Club.No era, porventura, a este hbil calculador que se deviam as frmulas matemticas quehaviam permitido tentar a grande experincia acima citada? Se ele no acompanhara os seusdois colegas na extraordinria viagem no fora por qualquer espcie de receio, mas porque odigno artilheiro, alm de maneta do brao direito, tinha um crnio de guta-percha, emresultado de um desses acidentes muito vulgares na guerra. E, sinceramente, mostrar-se assimaos Selenitas era dar-lhes fraca ideia dos habitantes da Terra, de que a lua, no fim de contas,no passa de ser humilde satlite.

    Com profundo desgosto, J. T. Maston foi, pois, obrigado a resignar-se e a no partir.Apesar disso, no ficara ocioso. Aps ter mandado proceder construo de um imenso

  • telescpio, que foi levantado no pncaro de Longs Peak, um dos mais elevados cumes dasMontanhas Rochosas, transportara-se para ali em pessoa. Depois, desde que o projtil sedeixou ver, desenhando no cu majestosa trajetria, no abandonou jamais o seu posto deobservao.

    Ali, diante da ocular do gigantesco instrumento, deu-se ao encargo de seguir os seusamigos, cujo veculo areo fitava atravs do espao.

    Deviam ser julgados eternamente perdidos para a Terra os audaciosos viajantes.Efetivamente, no poderia temer-se que o projtil, mantido em nova rbita pela atrao lunar,fosse obrigado a gravitar, para sempre, em volta do astro da noite como um subsatlite? Noaconteceu, porm, assim! Um desvio, que podemos chamar providencial, modificou a direodo projtil, que, depois de haver dado a volta lua sem lhe tocar, em queda progressivamenteacelerada tornou a voltar para o nosso esferoide, com a velocidade que atingia cinquenta esete mil e seiscentas lguas por hora, no momento em que mergulhou nos abismos do mar.

    As massas lquidas do Pacfico haviam, felizmente, amortecido a queda, de que foratestemunha a fragata americana Susquehanna. A notcia foi imediatamente transmitida a J. T.Maston. O secretrio do Gun-Club deixou a toda a pressa o observatrio de Longs Peak, afim de proceder salvao. Nas paragens em que mergulhara o projtil fizeram-se sondagense o dedicado J. T. Maston no hesitou em vestir o escafandro para descobrir os seus amigos.

    Na verdade, no teria sido necessrio dar-se a to grande trabalho. O projtil de alumnio,deslocando uma quantidade de gua de peso superior ao seu prprio peso, subira superfciedo Pacfico, depois de ter dado um soberbo mergulho. E foi nestas condies que o presidenteBarbicane, o capito Nicholl e Miguel Ardan haviam sido encontrados na superfcie dooceano: jogavam o domin na sua priso flutuante.

    Voltando, agora, a J. T. Maston, necessrio dizer que a parte que tomara nestasextraordinrias aventuras c havia posto muito em evidncia.

    J. T. Maston no era, certamente, belo com o seu crnio postio e o seu antebrao direitoterminado por um gancho metlico. No era novo, tambm, pois j contava cinquenta e oitoanos, feitos e refeitos, na poca em que esta histria comea. Mas a originalidade do seucarter, a vivacidade da sua inteligncia, o fogo que animava o seu olhar, a energia quemanifestava em todas as coisas, tinham feito dele um tipo ideal aos olhos de Mrs. EvangelinaScorbitt. Enfim, o seu crebro, cuidadosamente defendido por uma calota de guta-percha,estava intacto e passava ainda, com justos ttulos, por pertencer a um dos mais notveiscalculadores do seu tempo.

    Ora, Mrs. Evangelina Scorbitt apesar de o menor clculo lhe provocar dores de cabea

  • nutria simpatia pelos matemticos. Considerava-os como seres de espcie particular esuperior. Pensai, pois! Cabeas em que os xx se movem como nozes num saco, crebros que sedivertem com os sinais algbricos, mos que jogam com os integrais triplos, como umequilibrista com copos e garrafas, inteligncias que compreendem alguma coisa de frmulasdeste gnero:

    Sim! Estes sbios pareciam-lhe dignos da maior admirao e prprios para que uma

    mulher se sentisse atrada por eles proporcionalmente s massas e na razo inversa doquadrado das distncias. Ora, precisamente, J. T. Maston era assaz corpulento para exercersobre ela atrao irresistvel; enquanto distncia, seria absolutamente nula se pudessem vir aser um do outro.

    Isto, devemos confess-lo, no deixava de inquietar o secretrio do Gun-Club, que nohavia, jamais, procurado a felicidade em unies to estreitas. De resto, Mrs. EvangelinaScorbitt no estava j na primeira mocidade nem mesmo na segunda com os seusquarenta e cinco anos, cabelos empastados sobre as fontes, como um estofo tinto e retinto,boca excessivamente guarnecida de dentes muito compridos, dos quais no perdera um s,corpo sem perfil, andar sem graa.

    Em resumo, a aparncia de uma solteirona, ainda que tivesse sido casada alguns anosapenas, certo. Era, porm, excelente pessoa, a quem no faltariam os gozos terrestres sepudesse fazer-se anunciar nos sales de Baltimore com o nome de Mrs. J. T. Maston.

    A fortuna desta viva era considervel. No que ela fosse rica como os Gould, os Mackay,os Vanderbilt, os Gordon Bennett, cuja fortuna excede mil milhes e que poderiam dar esmolaa um Rothschild. No que ela possusse trezentos milhes como Mrs. Moses Carper, duzentosmilhes como Mrs. Stewart, oitenta milhes como Mrs. Crocker, trs vivas de se lhe tirar ochapu; nem que fosse rica como Mrs. Hammersley, Mrs. Helly Green, Mrs. Maffitt, Mrs.Marshall, Mrs. Para Stevens, Mrs. Mintury e algumas outras! Todavia, teria tido direito detomar lugar nesse memorvel festim do Fifth-Avenue Hotel, em Nova Iorque, em que se noadmitiam seno convivas cinco vezes milionrios. Na realidade, Mrs. Evangelina Scorbittdispunha de quatro milhes de dlares, ou seja, vinte milhes de francos, que herdara de JohnP. Scorbitt, enriquecido pelo duplo comrcio de artigos de modas e de porcos salgados. Poisbem! A generosa viva dar-se-ia por feliz em utilizar esta fortuna em proveito de J. T. Maston,

  • ao qual daria, ainda, um tesouro de ternura mais inesgotvel.E, esperando isto, Mrs. Evangelina Scorbitt, a pedido de J. T. Maston, havia de bom grado

    concedido em aplicar algumas centenas de mil dlares ao negcio da North Polar PracticalAssociation, sem mesmo saber do que se tratava. Na verdade, envolvendo J. T. Maston, estavasegura de que a obra no podia deixar de ser grandiosa, sublime, sobre-humana. O passado dosecretrio do Gun-Club era garantia do futuro.

    Depois da adjudicao, quando a declarao do procurador lhe indicou que o conselho deadministrao da nova sociedade ia ter por presidente o do Gun-Club, sob a firma Barbicaneand Co., imagine-se se ela devia ter ou no inteira confiana! Do momento em que J. T.Maston fazia parte do and Co. no devia regozijar-se por ser a mais forte acionista?

    Por esta forma, Mrs. Evangelina Scorbitt achava-se proprietria pela mais forte soma dessa parte das regies rticas circunscritas pelo 84. paralelo. Nada melhor!

    Mas que faria delas? Ou, antes, como pretendia a sociedade tirar qualquer proveitodaquele domnio inacessvel?

    Era sempre esta a questo, e se, no ponto de vista dos interesses pecunirios, importavamuito seriamente a Mrs. Evangelina Scorbitt, no ponto de vista de curiosidade geral prendia omundo inteiro.

    Esta excelente senhora tinha tentado alis muito discretamente sondar a este respeitoJ. T. Maston, antes de pr fundos disposio do promotor do negcio; este, porm, havia-seinvariavelmente conservado na maior reserva.

    Mrs. Evangelina Scorbitt havia de saber bem depressa do que se tratava; mas no antes dechegada a hora de pasmar o Universo, fazendo-lhe conhecer o fim da sociedade!

    Sem dvida, na sua opinio, tratava-se de uma empresa, que, como disse Joo Jacques,no teve jamais exemplo e no ter imitadores; de uma obra destinada a deixar na sombra atentativa, realizada pelos scios do Gun-Club, para estabelecer direta comunicao com osatlite terrestre.

    Se ela insistia, J. T. Maston, pondo o gancho sobre os lbios meio cerrados, limitava-se adizer-lhe:

    Querida Mrs. Scorbitt, tende confiana!Ora, se Mrs. Evangelina Scorbitt tinha tido confiana antes, que imensa satisfao no

    experimentou ela depois, quando o fogoso secretrio lhe atribuiu o triunfo dos EstadosUnidos da Amrica e a derrota da Europa Setentrional.

    Mas, enfim, no poderei eu saber agora...? perguntou ela, sorrindo ao eminentecalculador.

  • Sab-lo- bem depressa! asseverou J. T. Maston, que vigorosamente apertou esacudiu americana a mo da sua coassociada.

    Esta sacudidela teve por efeito imediato acalmar as impacincias de Mrs. EvangelinaScorbitt.

    Alguns dias depois, o Antigo e o Novo Mundo no foram menos sacudidos sem falar dasacudidela que os esperava no futuro quando foi conhecido o projeto, absolutamenteinsensato, para cuja realizao a North Polar Practical Association ia apelar para subscriopblica.

    Efetivamente, se a sociedade havia adquirido parte das regies circumpolares fora com ofim de explorar as hulheiras do Plo Norte!

  • Captulo 5

    Em primeiro lugar, pode-se admitir que existam hulheiras prximo do Plo Norte?

    Foi esta a primeira pergunta que se formulou no esprito das pessoas dotadas de alguma

    lgica. Porque existiro jazigos de hulha nas proximidades do plo? diziam uns. Porque no existiro? responderam outros.Como sabido, as camadas de carvo esto espalhadas em muitos pontos da superfcie do

    Globo. Abundam em diferentes pases da Europa. Quanto s duas Amricas, possuem-nasconsiderveis e, talvez, os Estados Unidos sejam os mais ricamente providos delas. Nofaltam, todavia, nem frica, nem sia, nem Ocenia.

    medida que se aperfeioa o reconhecimento da crusta do Globo, descobrem-se estesjazigos em todas as camadas geolgicas, a antracite nos terrenos mais antigos, a hulha nosterrenos carbonferos superiores, a estpite nos terrenos secundrios, a lignite nos terrenostercirios. O combustvel mineral no faltar, pois, num espao de tempo que se conta porcentenas de anos.

    A extrao do carvo, todavia, de que a Inglaterra produz s por si cento e sessentamilhes de toneladas, eleva-se anualmente a quatrocentos milhes de toneladas em todo omundo. Ora, este consumo no parece dever cessar de aumentar com as crescentesnecessidades da indstria. Se a eletricidade se substituir ao vapor, como fora motriz, haversempre despesa igual de hulha para a produo desta fora. O estmago industrial alimenta-seexclusivamente de carvo: no come outra coisa. A indstria um animal carbonvoro; indispensvel aliment-lo.

    E depois o carvo no apenas um combustvel, tambm a substncia telrica de que acincia tira, atualmente, mais produtos e subprodutos para usos diversos. Com astransformaes, por ele sofridas nos cadinhos do laboratrio, pode-se tingir, adoar,aromatizar, evaporar, purificar, aquecer, iluminar e ornar, produzindo o diamante. O carvo to til como o ferro e at mais til.

    Felizmente, quanto a este ltimo metal, no para temer que possa ser jamais esgotado; a prpria composio do globo terrestre.

    Na realidade, a Terra deve ser considerada como uma grande massa de ferro, mais ou

  • menos carbonizado, no estado de fluidez gnea, coberta de silicatos lquidos, espcie deescrias revestidas pelas rochas slidas e pela gua.

    Os outros metais, assim como a gua e a pedra, entram em proporo muito reduzida nacomposio do nosso esferoide.

    Se a produo do ferro, porm, est assegurada at consumao dos sculos, do carvode pedra no acontece o mesmo. Bem longe disso. As pessoas sensatas, que se preocupamcom o futuro, mesmo quando ele se conta por muitos centos de anos, devem, pois, procurarminas de carvo por toda a parte em que a previdente natureza as formou nas pocasgeolgicas.

    Perfeitamente! responderam os contraditores.Ora, nos Estados Unidos, como por toda a parte, encontram-se indivduos que, por inveja,

    ou por dio, gostam de contradizer. Perfeitamente! disseram os mesmos contraditores. Mas porque haver carvo no

    Plo Norte? Porqu? redarguiram os partidrios do presidente Barbicane. Porque, muito

    provavelmente, na poca das formaes geolgicas, o volume do sol era tal, segundo a teoriade M. Blandet, que a diferena de temperatura entre o equador e os plos no era aprecivel.Nesse tempo, imensas florestas cobriam as regies setentrionais do Globo, bem antes daapario do homem, quando o nosso planeta estava sujeito ao permanente do calor e dahumidade.

    Era isto o que os jornais, as revistas, os arquivos, partidrios da sociedade, desenvolviamem mil artigos variados, j sob a forma espirituosa, j sob a forma cientfica. Ora, estasflorestas, acamadas no tempo das enormes convulses que abalaram o Globo antes de eletomar a sua forma definitiva, devem, certamente, transformar-se em hulheiras, sob a ao dotempo, da gua e do calor central. Nada h, por isso, mais admissvel do que a hiptesesegundo a qual a regio polar rica em jazigos de hulha.

    De resto, existem factos factos indiscutveis. Os espritos positivos, que no queremfiar-se em meras probabilidades, no podiam p-los em dvida; eram tais que autorizavam aprocura das diferentes variedades de carvo na superfcie das regies boreais.

    Deste assunto ocupavam-se, exatamente, o major Donellan e o seu secretrio, alguns diasdepois, reunidos em sombrio recanto do botequim dos Two Friends.

    Eh! dizia Dean Toodrink porventura este Barbicane (que Berry um dia enforque)ter razo?

    provvel admitiu o major Donellan , direi mesmo que a deve ter.

  • Mas nesse caso haver fortunas para ganhar na explorao das regies polares? Certamente! asseverou o major. Se a Amrica do Norte possui vastos jazigos do

    combustvel mineral, se frequentemente se descobrem novos jazigos, no ponto de dvidaque muitos e importantes h ainda para descobrir, Sr. Toodrink. Ora, por identidade deconstituio e de aspeto, as terras rticas parecem ser anexos do continente americano. Muitoparticularmente, a Gronelndia o prolongamento do Novo Mundo; certo que a Gronelndiase prende Amrica...

    Como a cabea de um cavalo, de que tem a forma, se liga ao corpo do animal concluiu o secretrio do major Donellan.

    Acrescentarei continuou este que, durante as suas expedies no territriogronelands, o professor Nordenskiold determinou formaes rudimentares, constitudas porgrs e xistos com intercalaes de lignite, que encerravam grande quantidade de plantasfsseis. S no distrito de Disko, o dinamarqus Stoenstrup descobriu setenta e um jazigos, emque abundavam moldes vegetais, indiscutveis vestgios dessa poderosa vegetao que outrorase agrupava, com extraordinria intensidade, em volta do eixo polar.

    Mais acima, porm?... objetou Dean Toodrink. Mais acima, ou mais longe, na direo do norte replicou o major a presena da

    hulha afirmou-se materialmente; parece que basta algum abaixar-se para a colher. Portanto,se o carvo est to profundamente espalhado na superfcie desta regio, no devemosconcluir que os seus files mergulham nas profundezas da crusta terrestre?

    Tinha razo o major Donellan. Como ele conhecia a fundo a questo das formaesgeolgicas no plo rtico, era, por isso, o mais irritvel de todos os ingleses nas presentescircunstncias. Certamente teria falado por longo tempo sobre este assunto se no tivessepercebido que os frequentadores do botequim procuravam escut-lo. Dean Toodrink e elejulgaram prudente conservar-se em reserva, depois do que o sobredito Toodrink fez estaltima observao:

    No vos surpreende uma coisa, major Donellan? Qual? que este negcio, no qual devamos esperar ver figurar engenheiros, ou, ao menos,

    navegadores, visto que se trata do plo e das suas hulheiras, dirigido por artilheiros! Exato concordou o major , para surpreender!Contudo, todas as manhs os jornais voltavam carga a propsito destes jazigos... Jazigos? E quais? perguntava a Pall Mall Gazette, em artigos furibundos, inspirados

    pelo alto comrcio ingls, que declamava contra os argumentos da North Polar Practical

  • Association. Quais? responderam os redatores do Daily News, de Charleston, partidrios

    decididos do presidente Barbicane. Mas, em primeiro lugar, os que foram reconhecidospelo capito Nares, em 1875-76, nos limites do 82. grau de latitude, ao mesmo tempo que osestratos, que indicavam a existncia de uma flora miocena, rica em ulmeiros, faias, brinias,aveleiras e conferas.

    E, em 1881-1884 acrescentou o cronista cientfico do New-York Witness , durantea expedio do tenente Greely baa de Lady Franklin, no foi descoberta, pelos nossoscompatriotas, uma camada de carvo, a pequena distncia do forte Conger, na angraWatercourse? E o Dr. Pavy no pde sustentar, com razo, que estas regies no sodesprovidas de depsitos carbonferos, provavelmente destinados pela previdente natureza acombater um dia o frio destas ermas paragens?

    Compreende-se bem que, citando-se factos to comprovativos, sob a autoridade dosousados descobridores americanos, os adversrios do presidente Barbicane no sabiam bem oque responder. Por isso os partidrios do porque haver jazigos de carvo? comeavam aabater bandeiras diante dos partidrios do porque no haver?. Certamente existiam e,provavelmente, muito considerveis! No solo circumpolar abundam as massas do preciosocombustvel, precisamente escondidas nas entranhas destas regies, em que a vegetao foi,noutros tempos, luxuriante.

    Se o terreno lhes fugia, porm, na questo das hulheiras, cuja existncia no seio dasregies rticas no era duvidosa, os detratores tiravam desforra examinando a questo soboutro aspeto.

    Seja! disse um dia o major Donellan numa discusso oral, que provocou na prpriasala do Gun-Club, e durante a qual interpelou o presidente Barbicane de homem para homem. Seja! Admito-o, afirmo-o at. Existem hulheiras no domnio adquirido pela vossasociedade; mas i