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CuPAUAM 31-32, 2005-2006, pp. 117-136 FORMAS DE OCUPAÇÃO RURAL EM ALCOUTIM (SÉCULOS V-X) Helena CATARINO Universidade de Coimbra Resumen O concelho de Alcoutim, pobre e periférico do Algarve, situa-se numa região rica em vestígios arqueológicos e em estreita relação com o rio Guadiana, principal eixo de comunicações com o Mediterrâneo, desde a Antiguidade. As prospecções arqueológicas têm vindo a mostrar uma grande densidade de ocupação romana, tardo- antiga/visigótica e islâmica, de que apenas se ilustram aqui alguns exemplos pontuais: povoados de altura, relacionados com a exploração mineira; villae tardo-romanas, que permaneceram ocupadas nos períodos visigótico e muçulmano; as fortificações islâmicas do Castelo das Relíquias e do Castelo Velho de Alcoutim. Da diversidade de sítios arqueológicos, com cronologia entre os séculos V e X, são de salientar os que revelaram elementos arquitectónicos de mármore e edifícios religiosos, por exemplo a igreja visigótica do Montinho das Laranjeiras e a mesquita do Castelo Velho de Alcoutim. Palavras-chave: Villae tardo-antigas; povoados de altura; minas; igreja visigótica; mesquita; Castelo Velho de Alcoutim. 1. Considerações prévias Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos em Alcoutim (CATARINO, 1997/98) permitiram constatar um património arqueológico rico e diversificado: monumentos megalíticos, necrópoles de cistas e povoados pré e proto-históricos; abundantes vestígios de época romana, com particular destaque para dois castella do período republicano e inícios do Império, um em Alcaria Cova e o outro perto do Montinho das Laranjeiras; villae situadas principalmente junto ao Guadiana e seus afluentes, em rechãs propícias à prática da pequena agricultura, algumas das quais com ocupação que se prolonga pela Antiguidade tardia e época islâmica; pequenas povoações de altura, de cronologia pouco precisa – entre a Antiguidade e o Islão -, situadas nos espaços de montanha, no interior do concelho, com boas condições para a prática da pastorícia e, sobretudo, para a actividade de exploração mineira; enfim, numerosos povoados do período muçulmano, alguns deles correspondentes a grandes alcarias, e dois castelos de época omíada, que distam cerca de 24km entre si: o das Relíquias, situado numa elevação sobre a ribeira do Vascão, na freguesia de Giões; e o Castelo Velho de Alcoutim, debruçado sobre o rio Guadiana, a cerca de 1 km para norte da vila actual. Apesar da densidade de vestígios registados, não é tarefa fácil realizar uma análise exaustiva de todas as formas de ocupação rural em Alcoutim, entre os séculos V e X, em parte devido à falta de escavações

FORMAS DE OCUPAÇÃO RURAL EM ALCOUTIM (SÉCULOS V-X)

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CuPAUAM 31-32, 2005-2006, pp. 117-136

FORMAS DE OCUPAÇÃO RURAL EM ALCOUTIM (SÉCULOS V-X)

Helena CATARINO

Universidade de Coimbra

ResumenO concelho de Alcoutim, pobre e periférico do Algarve, situa-se numa região rica em vestígios arqueológicos e emestreita relação com o rio Guadiana, principal eixo de comunicações com o Mediterrâneo, desde a Antiguidade.As prospecções arqueológicas têm vindo a mostrar uma grande densidade de ocupação romana, tardo-antiga/visigótica e islâmica, de que apenas se ilustram aqui alguns exemplos pontuais: povoados de altura,relacionados com a exploração mineira; villae tardo-romanas, que permaneceram ocupadas nos períodosvisigótico e muçulmano; as fortificações islâmicas do Castelo das Relíquias e do Castelo Velho de Alcoutim.Da diversidade de sítios arqueológicos, com cronologia entre os séculos V e X, são de salientar os que revelaramelementos arquitectónicos de mármore e edifícios religiosos, por exemplo a igreja visigótica do Montinho dasLaranjeiras e a mesquita do Castelo Velho de Alcoutim.

Palavras-chave: Villae tardo-antigas; povoados de altura; minas; igreja visigótica; mesquita; Castelo Velho de Alcoutim.

1. Considerações prévias

Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos emAlcoutim (CATARINO, 1997/98) permitiramconstatar um património arqueológico rico ediversificado: monumentos megalíticos, necrópolesde cistas e povoados pré e proto-históricos;abundantes vestígios de época romana, comparticular destaque para dois castella do períodorepublicano e inícios do Império, um em AlcariaCova e o outro perto do Montinho das Laranjeiras;villae situadas principalmente junto ao Guadiana eseus afluentes, em rechãs propícias à prática dapequena agricultura, algumas das quais comocupação que se prolonga pela Antiguidade tardia eépoca islâmica; pequenas povoações de altura, de

cronologia pouco precisa – entre a Antiguidade e oIslão -, situadas nos espaços de montanha, no interiordo concelho, com boas condições para a prática dapastorícia e, sobretudo, para a actividade deexploração mineira; enfim, numerosos povoados doperíodo muçulmano, alguns deles correspondentes agrandes alcarias, e dois castelos de época omíada,que distam cerca de 24km entre si: o das Relíquias,situado numa elevação sobre a ribeira do Vascão, nafreguesia de Giões; e o Castelo Velho de Alcoutim,debruçado sobre o rio Guadiana, a cerca de 1 km paranorte da vila actual.

Apesar da densidade de vestígios registados, não étarefa fácil realizar uma análise exaustiva de todas asformas de ocupação rural em Alcoutim, entre osséculos V e X, em parte devido à falta de escavações

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arqueológicas com projectos de investigaçãodireccionados para este período. A dificuldade reside,desde logo, em determinar com precisão o ponto departida e definir as sucessivas transformaçõesocorridas no povoamento, durante esse longo períodocronológico, tendo como provas materiais as merasrecolhas de superfície. Tentarei, no entanto, fazeruma breve síntese, com sugestões de trabalho ehipóteses interpretativas, tomando como exemplosalguns dos povoados do interior do concelho, que seencontram em estreita relação com áreas deexploração mineira, as principais villae situadas pertodo Guadiana e os vestígios arqueológicos queapontam para a existência de espaços religiosos deépoca paleocristã, visigótica e islâmica, estando oúltimo caso representado na mesquita do CasteloVelho de Alcoutim.

2. Povoados e minas entre a Antiguidade e operíodo islâmico

Em Portugal, a ideia, de há muito enraizada, de que aexploração mineira da Península Ibérica decaiu noséculo III, para desaparecer no século V, após asinvasões bárbaras, deve ser repensada. No Algarve,as condições geológicas da faixa piritosa do Alentejoatingem a Serra em manchas de minério, exploradasdesde o Calcolítico e que, ainda que de formadescontínua, laboravam no período tardo antigo eislâmico. Um desses exemplos é a mina de SantoEstevão, em Silves, com exploração tardia, do séculoIV (DOMERGUE, 1990: 216), data sugerida a partirdo achado de uma lucerna tardo-romana. Esta mina,porém, estava em exploração na época islâmica, jáque também aí se encontrou um candil, decorado acorda seca parcial, hoje depositado no Museu dosServiços Geológicos, em Lisboa.

Para o período em questão, apesar da escassez defontes arqueológicas, é de crer que algumas dasminas de Alcoutim continuassem a ser exploradas, jáque se identificaram, no mesmo local, ou em áreasadjacentes, povoados a que pode atribuir-se umacronologia entre a tardo-antiguidade e a épocaislâmica. Além disso, não podemos esquecer o factode as fontes escritas árabes, nomeadamente em IbnSaíde, referirem as minas de Ossonoba,designadamente as de estanho, de excelentequalidade, semelhante à prata.

Alguns desses sítios arqueológicos devem ter sidopequenas povoações familiares/comunitárias, cujapopulação, pela relação de proximidade, se dedicariaà exploração mineira, certamente que a uma escalalocal, à medida das suas necessidades, bem como aopastoreio, tecelagem e pequena agricultura de

subsistência. Do inventário já antes elaborado para asminas e povoados deste tipo (CATARINO, 1997/98:263-302, 690-701), apenas se ilustram aqui três casosde nítida relação de proximidade.

1. Os sítios do Cerro do Lírio (nº 2 da Fig. 1) e daCerca das Alcarias do Laborato (nº 21 da Fig. 1)situam-se perto do Cerro da Mina, também conhecidopor Cerro das Ferrarias e Cova dos Mouros, entreMartinlongo e Laborato. Pelas descrições do séculoXIX, esta mina tinha vestígios de trabalhos antigosde exploração e de fundição e encontrou-se, aodesentulhar uma galeria, um denário de prata, comcunhagem de Antonino Pio (136-161 D. C.), que dataa lavra romana (VEIGA, 1889: 68-69; ALARCÃO,1988: 204).

Próximo desta, o Cerro do Lírio, implantado numcabeço bem destacado na paisagem, é nitidamenteum povoado de altura, eventualmente com muralhas.Abundam à superfície as telhas decoradas, blocos deescória e argamassas queimadas, de fornos defundição, assim como fragmentos de cerâmicacomum grosseira, que inclui as decorações incisas edigitadas, estando ausentes as cerâmicas tipicamenteromanas e as de superfícies vidradas, plenamenteislâmicas.

A noroeste deste povoado, numa área de colinaspouco elevadas, está o sítio da Cerca das Alcarias,junto da actual povoação do Laborato. A prospecçãorevelou aqui, por sua vez, alinhamentos de paredes,telhas digitadas, ladrilhos e grande quantidade decerâmicas islâmicas, incluindo as de superfíciesvidradas e decoradas, assim como blocos de escórias.Segundo indicação oral, também aí havia umcemitério, hoje destruído pela lavoura.

Para além dos vestígios romanos directamenterelacionados com a mina, podemos colocar a hipótesede ao Cerro do Lírio corresponder uma ocupaçãotardo-antiga e do período visigótico, podendo o sítioter sido abandonado na fase islâmica antiga, antes dadifusão das cerâmicas vidradas. Por outro lado, aalcaria ter-se-á desenvolvido no califado, ou desde osreinos de taifa, para continuar como povoação ruralaté à actualidade, embora se tenham observadoalgumas deslocações topográficas nos espaçoshabitados.

2. Os vestígios arqueológicos da Corga dos Coiros(nº 18 da Fig. 1) e do Curralão (nº 3 da Fig. 1)encontram-se nas imediações da mina da Couraça,que teve exploração a céu aberto, sobre o Barrancodo Bem Parece e a ribeira do Ribeirão, na área daactual povoação de Santa Justa.

Na Corga dos Coiros havia sepulturas, numa zonahoje muito destruída pela lavoura. Nesta área, entre

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os achados de superfície, destacam-se algumascerâmicas comuns grosseiras, fragmentos de ânforas(dois fundos de tipo Almagro 51C) e uma moeda doséculo IV-V, provavelmente da época de Arcádio.

Por sua vez, o povoado do Curralão estende-se porum cabeço e colinas até ao vale do Ribeirão, ondeestá a mina. Uma enorme cerca de gado aproveitamateriais de construção e recolheu-se cerâmicacomum, de fabricos grosseiros, algumas decoraçõesincisas e cordões plásticos digitados, bem comoblocos de escória, que evidenciam a existência deactividade metalúrgica.

Também nestes dois casos parece ter havido umarelação estreita entre o habitat e a exploração mineira,na época tardo-romana e no período que podemosdesignar de visigótico-emiral, ainda mal definido emtermos materiais. Se as cerâmicas de superfíciespintadas e vidradas estão ausentes no Curralão,aparecem, porém, no sítio dos Alcariais de SantaJusta, ou Barreiros (nº 29 da Fig. 1), onde se teráinstalado um pequeno povoado plenamente islâmico.

3. Na área da actual povoação de Alcaria Queimadahouve intensa exploração mineira antiga. Porexemplo, a mina (em galerias e a céu aberto)designada por Moricão, ou do Barranco do Zambujal,estaria associada ao sítio romano de S. Bento Velho(nº 19 da Fig. 1), a 0,5 Km para norte da mina. Estepovoado, que pode ter correspondido a uma villaromana, estende-se pelas duas margens da ribeira daFoupana e, apesar de se encontrar muito destruído,recolheram-se abundantes materiais de construção(tégulas, imbrices, telhas digitadas, ladrilhos),fragmentos de sigillata, incluindo clara D, e cerâmicacomum romana e da Antiguidade tardia. Por outrolado, a tradição oral localiza aí um primitivo templo,dedicado a S Bento, culto mais tarde transferido paraAlcaria Queimada. Os achados de superfície nãorevelaram, porém, quaisquer elementosarquitectónicos de mármore, ou paredes que tivessempertencido a um edifício cristão.

Tal como nos casos anteriores, este sítio arqueológicoparece ter-se despovoado, em data incerta, um poucoantes ou nos inícios da ocupação islâmica, tendo-severificado que, para este período, os Alcariais deAlcaria Queimada (nº 60 da Fig. 1) revelaram, porseu lado, muitas escórias e materiais de construção,alinhamentos de paredes e cerâmica, que indica umaocupação, pelo menos, a partir dos séculos X/XI,mantendo-se a povoação actual nas proximidades daantiga alcaria islâmica.

Para além de outros sítios não comentados no texto,estes modelos de povoamento, cuja cronologia podeestabelecer-se entre os séculos V/VI e IX/X,localizam-se em cabeços elevados, por vezes com

encostas abruptas, correspondendo a povoados dealtura, ou em áreas de colinas e pequenas elevações,junto de meandros das ribeiras afluentes doGuadiana. Pelos vestígios de superfície, depreende-seque as comunidades rurais que aí habitavam sededicavam à exploração das minas e ao pastoreio,nomeadamente de ovinos, e subsequente prática datecelagem, se tivermos em atenção o facto de emalguns dos povoados deste tipo, onde estão quasesempre ausentes a sigillata e as tégulas, serecolherem pesos de tear, para além de abundantesfragmentos de dolia e cerâmica comum.

A cerâmica mais representativa para o período emanálise caracteriza-se por fabrico manual/torno baixo,ou de rotação muito irregular, em produções locais eregionais, de pastas grosseiras, ocre acastanhadas eavermelhadas, normalmente mal cozidas, comcomponentes não plásticos que incluem pequenosgrãos de xisto e de quartzo. O leque de formas émuito reduzido: potes e/ou panelas de perfil em S,bordos boleados, ou com sulco em barbela interna,para encaixe da tampa, colos muito curtos e oblíquos,corpos globulares e fundos planos; pratos ealguidares com fundo plano e paredes rectilíneasdivergentes e tampas manuais planas. As decoraçõessão feitas basicamente a partir da aplicação decordões plásticos digitados, linhas incisas emondulado, ou em ziguezague, e impressões comcorda.

3. As villae ao longo do Guadiana

Deixando de parte os núcleos de povoamento tardo-antigo e islâmico mais afastados do Guadiana, ésobretudo ao longo da margem direita deste rio que adinâmica de ocupação parece ter sido maiscontinuada, por vezes com poucas oscilaçõestopográficas de habitat até à actualidade. Comopontos de referência, indicam-se os sítiosarqueológicos localizados na Freguesia de Alcoutim,onde nos apercebemos de um ritmo regular deimplantação, em meandros e plataformas poucoelevadas. De sul para norte, encontramos os seguintesexemplos:

1. A villa do Álamo, com a sua barragem tardo-romana e restos de edifícios, foi escavada no séculoXIX, por Estácio da Veiga, que aí recolheu tambémuma estátua de Apolo. Para além de restos de casas,identificaram-se sepulturas, escavadas nos seuspavimentos, assim como uma necrópole deincineração, localizada junto da antiga estrada, acerca de 100 m dos edifícios (SANTOS, 1972: 368).As prospecções de superfície mostram que o sítio terácontinuado habitado no período islâmico. Parapoente, os vestígios tardo-antigos e visigóticos

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concentram-se também em torno da povoação deCorte das Donas (nº 16 da Fig. 1), por onde seguiauma antiga via de comunicação que, para sul, passavajunto do povoado de altura do Fadagoso (nº 18 daFig. 1), de onde se recolheram, para além defragmentos de dolia e de pesos de tear, telhasdigitadas e cerâmica comum, decorada com cordõesplásticos e incisões, que apontam para uma ocupaçãovisigótica.

2. O Montinho das Laranjeiras, também identificadoe escavado pela primeira vez no século XIX, nasequência das cheias do Guadiana, fica a escassos3/3,5 km para norte do Álamo e foi igualmenteocupado no período islâmico, facto que serácomentado no ponto 4 deste estudo.

3. Vale de Condes, a 4 km para norte, foiseguramente outra villa, na qual se recolheramelementos arquitectónicos romanos e onde, para alémde um cemitério visigótico, teria existido um templocristão. Pelos achados de superfície não parece,porém, que o local tenha continuado habitado noperíodo muçulmano.

4. O Vale da Lourinhã fica aproximadamente a 5 kmpara norte de Vale de Condes e, do outro lado do rio,a ocupação romana está igualmente comprovada nosítio de Huerta Torres, a norte de Sanlúcar delGuadiana. Na Lourinhã, os vestígios de superfície sãoabundantes, desde os fragmentos de cerâmica deparedes finas à sigillata clara D e à cerâmica comumgrosseira tardia. A densa e vasta área de ocupaçãoaponta para a existência de outra villa, que teria umastermas, denunciadas pelos materiais de construção -os tijolos típicos dos arcos de hipocausto - e restos deuma fornalha, aproveitada, mais tarde, em épocaindeterminada, como forno de fundição. Pelo tipo demateriais arqueológicos aí encontrados, parecedepreender-se que o abandono do sítio estarádirectamente relacionado com a construção doCastelo Velho de Alcoutim, localizado a cerca de0,5km.

5. O Enxoval, situado a sul da foz do Vascão, é outrosítio que pode ter sido, embora com mais dúvidas,uma villa tardo-romana, que dista cerca de 5 km paranorte da Lourinhã e está quase em frente do povoadomineiro de Puerto de la Laje, na outra margem doGuadiana. Junto do rio, onde pode ter existido umcais, os achados de superfície incluem sigillata claraD tardia, sendo que, no cabeço próximo, aparecemrestos de paredes e blocos de opus signinum. Aocupação islâmica está um pouco mais afastada dorio, no cabeço dos Alcariais do Enxoval.

Como estes exemplos mostram, algumas villae tardo-romanas do concelho situam-se em estreita relação

com a importante via fluvial do Guadiana e distamentre si aproximadamente 3,5/4 km a 5 km, numamalha regular de distribuição. Mantiveram uma certadinâmica de ocupação, continuando a importarsigillata, sobretudo a Clara D tardia, e apresentam,entre os achados de superfície, cerâmicas de fabricogrosseiro, que apontam para cronologia de épocavisigótica. Se alguns destes sítios arqueológicos,como Vale de Condes, não parecem ter sidoocupados no período islâmico, na maioria, porém,devem ter continuado habitados ou, pelo menos, a terpovoações deste período nas suas imediações.

4. Elementos arquitectónicos e edifícios religiosos

É impossível que a adopção do cristianismo, porparte dos habitantes dos sítios tardo-romanos deAlcoutim, passasse, em todos eles, pela cristianizaçãode anteriores espaços públicos ou privados. Noentanto, algumas sepulturas, com orientaçãonascente/poente, como acontece no Álamo, podemser paleocristãs, ou mesmo visigóticas, já que seencontravam afastadas da necrópole de incineração ea sua abertura provocou destruição nos pavimentosde edifícios romanos. Mais razoável será pensar quealguns achados de elementos arquitectónicos demármore apontam, sobretudo pela sua decoração,para a existência de edifícios de culto de época tardo-antiga e visigótica, de que se apontam os exemplosmais significativos:

1. Em Clarines (Freguesia de Giões), os vestígiosarqueológicos parecem confirmar a existência de umaigreja muito mais antiga do que a capela construídanos finais da Baixa Idade Média. Em torno da actualpovoação, as prospecções revelaram uma grandedensidade de núcleos de povoamento, desde a Pré-História à época islâmica (CATARINO, 1997/98:182-185). Um dos sítios, a Cerca das Oliveiras, teveocupação romana e muçulmana, aparentementecontínua, que se estendia até às proximidades dacapela tardo-medieval, cujas ruínas foram restauradasnos inícios dos anos 90 do século XX. Quando acapela estava em ruínas podiam ver-se, aproveitadasnas paredes, algumas pedras decoradas, de épocavisigótica, pertencendo seguramente a esse conjuntouma placa de mármore referida por D. Fernando deAlmeida (1962: 213, fig. 190).

A maior parte dessas pedras perdeu-se durante asobras de restauro, que não tiveram o devidoacompanhamento arqueológico. Consegui, noentanto, recuperar a base de uma coluna de mármoreacinzentado, de base quadrada, com 40 cm de lado, earranque de fuste, com 28 cm de diâmetro.Conservaram-se duas pedras, também de mármore

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cinzento, incrustadas nas paredes, no lado direito daporta: um friso, ou pilastra muito estreita, com 10/11cm de espessura e 50/52 cm de comprimento,decorada com rosetas quadrifoliadas inscritas emcírculos (Fig. 7); a outra pedra, colocada na esquinada parede, devia pertencer a uma placa, com 10/12cm de espessura e 43 cm por 55 cm de lado,estreitando para 6 cm de espessura, na ponta do ladomais longo. Apresenta, junto do ângulo do lado maisestreito, uma decoração floral inscrita em círculo, de8/10 cm de diâmetro, e roseta interna de seis pétalas(CATARINO, 1997/98: 544 e Est. CLXVIII.2 e Est.CLXIX.1 e 2).

Os quadrifólios inscritos em círculos secantes sãobastante comuns na decoração de época visigótica eMaria Cruz Villalón enquadra a pedra de Clarines,publicada por D. Fernando de Almeida, no grupo Bdas pilastras visigóticas de Mérida, de Idanha-a-Velha e de Beja. Segundo a autora, este grupocorresponderá às novas tendências bizantinas esassânidas, numa cronologia que se alonga peloséculo VII, podendo ultrapassar este século (CRUZVILLALÓN, 1985: 172, 176 e mapa III).

A quantidade e a qualidade dos elementosarquitectónicos, de mármore, encontrados emClarines, levam a acreditar que aí tenha existido umtemplo cristão, talvez mesmo de uma paróquia ruralvisigótica, com continuidade moçárabe, num cultoainda hoje dedicado a Nossa Senhora da Oliveira.

Por outro lado, os vestígios arqueológicosidentificados nesta região da freguesia de Giões,grosso modo atribuídos ao período que medeia entrea época tardo-antiga e o processo de islamização,estão bem representados não só em Clarines, mastambém em outros núcleos de habitat próximos, porexemplo no sítio tardo-romano de Alvragil (nº 4 daFig. 1), no povoado de altura de Balrões (nº 6 da Fig.1) e nos alcariais do Cerro do Major (nº 32 da Fig. 1).Finalmente, a islamização do território foiacompanhada da edificação do Castelo das Relíquias,hisn de fundação omíada (emiral/califal) que passa aser o centro urbano (cerca de 4ha de áreaamuralhada) de um distrito rural da kura deOcsonoba.

2. O sítio da Cerca das Oliveiras de S. MartinhoVelho, em Cortes Pereiras (CATARINO, 1997/98:168-196), a 4/5 km para poente do Castelo Velho deAlcoutim e da villa romana de Vale da Lourinhã,pode mesmo ter correspondido a um vicus mineiro. Adensidade de vestígios, que incluem uma ara doséculo II d.C. (ENCARNAÇÃO, 1984: 149-150),espalha-se por vários cabeços, até aos CurraisVelhos. No ponto mais elevado estão as ruínas de

uma capela, edificada na Baixa Idade Média ededicada ao culto de S. Martinho.

Nas proximidades da capela, conservava-se, há anos,um grande bloco de mármore acinzentado, deelemento arquitectónico provavelmente romano. Poroutro lado, na Fonte do Povo, podia ver-se umpequeno tanque, que aproveitava uma pia incompleta,sub-rectangular, de mármore também acinzentado(Fig. 6.). Tem, no fundo interno, 45/46 cm por 70/72cm de lado e, no exterior, junto do bordo, 55/60 cmpor 108/110 cm (no lado partido). A altura externa éde 43/45 cm e a interna tem 30/32 cm. Apresentarebordo alto e bem marcado, devido a rebaixamentoda parte inferior externa (CATARINO, 1997/98: Est.CLXVI).

Segundo a tradição, fazia parte de uma pia debaptismo trazida da zona da capela. Pelo facto de estaermida, que teve visitações da Ordem de Santiago, noséculo XVI, nunca ter sido sede de paróquia, éprovável que o fragmento da pia tivesse pertencido aum edifício religioso mais antigo, eventualmente doperíodo paleocristão. Assim sendo, seria talvez umapiscina baptismal rectangular que estava, na posiçãooriginal, semi enterrada, o que pode explicar orebaixamento inferior externo, pois só o rebordosuperior estaria acima do solo. Por estar incompleta efora de contexto, não podemos, porém, garantir quala sua função original. No estado actual dainvestigação, embora o hagiotopónimo S. Martinhoseja antigo, é difícil, portanto, dizer até que pontoterá existido, ou não, um edifício religiosopaleocristão em Cortes Pereiras.

3. Como já indiquei, é junto do rio Guadiana que seencontram as principais villae romanas, onde seconstata uma certa continuidade de ocupação tardo-romana e visigótica, como mostraram as prospecçõesna área de Vale de Condes. Este sítio arqueológicofica situado numa plataforma, entre o rio e umapequena elevação, passando-lhe a meio a estradamarginal do rio. A vila de Alcoutim está a cerca de3,5/4 km a norte e o Montinho das Laranjeiras fica a4 km para sul (CATARINO, 1997/98: 205-206).

As obras de alargamento da estrada municipalpuseram a descoberto parte de uma necrópole etrouxeram à superfície a base de grande colunaromana, de mármore (ibid.: Est. CLXVII 1 e 2),depositada na Câmara Municipal de Alcoutim eentretanto desaparecida. De um muro de divisão depropriedade, recolhi também um fuste de coluna, com25 cm de diâmetro e 75 cm de altura conservada. Portoda a plataforma, entre a estrada e o rio, podemrecolher-se materiais de construção, fragmentos decerâmica comum e sigillata tardia, estando ausentesas cerâmicas islâmicas.

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Junto de uma parede, paralela à estrada, aparecem osrestos de uma construção, de que são visíveis algunsmuros, um dos quais com 5,5 m de comprimento. Asparedes, com 65 cm de espessura, são feitas de xistoe aproveitamento de ladrilhos, argamassadas comforte componente de cal. Uma violação efectuada nolocal trouxe à superfície uma pedra, de mármorebranco com veios cinzentos, que pertencia a metadeda base de uma mesa de altar, actualmente exposta nonúcleo museológico do castelo de Alcoutim. Tem112 cm por 75 cm de lado e 20 cm de espessura eapresenta, nos lados maiores, respectivamente, umnegativo de 22/23 cm de diâmetro, para o encaixe dopé central e, no lado oposto, dois negativosquadrados, com 16 cm de lado, onde assentavam ospés laterais.

Do outro lado da estrada, a escavação de emergência,realizada por Isabel Inácio, na zona da necrópole,revelou um conjunto de vinte sepulturas, embora nãose tivesse escavado integralmente toda a áreacemiterial. As sepulturas têm uma orientação anascente/poente, são estruturadas em caixa, nãocontinham espólio no interior, e atribuem-segenericamente ao período visigótico. Infelizmente, ocarácter de emergência da escavação não permitiu umestudo continuado e a estação não voltou e terqualquer intervenção arqueológica.

Pelos vestígios de superfície na área da villa e pelocemitério a ela associado, é de crer que neste sítiotivesse existido um templo romano, possivelmentecristianizado em época paleocristã, ou visigótica. Aausência de quaisquer vestígios medievais àsuperfície levam a considerar que o local não tenhacontinuado habitado durante a época islâmica. Talfacto, porém, pode não invalidar a sobrevivência, poralgum tempo, do edifício religioso, já que a tradiçãooral também nomeia o local por Igrejinha.

4. O Montinho das Laranjeiras (Fig. 2.1.), pelo factode ter sido objecto de várias intervençõesarqueológicas, pela importância da sua igrejacruciforme e longa diacronia de ocupação, representaum caso particular.

Esta estação arqueológica situa-se na povoação domesmo nome, numa plataforma sobranceira aoGuadiana, a 8 km para sul de Alcoutim e a cerca de3,5 km a norte do Álamo. O sítio foi descoberto eescavado, pela primeira vez, no século XIX, porEstácio da Veiga (VEIGA, 1887), e reescavado nosfinais do século XX, por Justino Maciel (MACIEL,1993, 1996, 2000), que reinterpretou o edifíciocruciforme como tendo pertencido a uma igrejapaleocristã de influência bizantina. Maisrecentemente, no âmbito do projecto de musealizaçãodas ruínas, foram escavadas, sob a direcção de Helder

Coutinho, as casas de época islâmica, situadas nolado noroeste do edifício religioso (COUTINHO,2003: 265-278).

Nesta villa romana, com ocupação, aparentementeininterrupta, até ao século XIII, foi edificado, nosfinais do século VI, ou inícios do seguinte, umtemplo cristão, que parece assentar num edifícioanterior, facto denunciado pela sobreposição deparedes (Fig. 2.2.). A igreja tem planta cruciforme, debraços assimétricos, com paredes de xisto,argamassadas com forte componente de cal, e o soloestava revestido a opus tessellatum. Noprolongamento do braço noroeste, um corredor davaacesso à sala onde estava o baptistério, de pequenapiscina rectangular, com degraus laterais, tambémrevestida a mosaicos. A existência de um baptistérioleva a crer que o edifício não seria uma mera basilicaprivada, mas sim um edifício com função litúrgica ebaptismal, certamente de uma paroquia rural.

Como descreve Justino Maciel, o braço sudoeste erao eixo maior da igreja e articulava-se com umaespécie de átrio que tinha, na origem, duas entradaslaterais. O braço sudeste era mais curto e teráfuncionado como cabeceira, embora não se conserveno solo qualquer marca da localização do altar. Obraço nordeste é mais curto do que o situado asudoeste e teria um espaço articulado, sendo por aquia entrada no templo (MACIEL, 1996: 94).

Este braço está hoje totalmente arrasado, mas eraainda visível na planta do século XIX. Porque estávoltado para o rio, portanto sensivelmente a nascente,penso que a entrada por este lado seria poucocoerente com a orientação canónica dos templos deépoca visigótica. Pelo contrário, o eixo oposto, sendoo braço mais amplo, deve ter servido de naveprincipal. Além disso, porque tinha um átrio externo,de duas entradas, parece-me mais condicente com alocalização da porta de acesso à igreja que, assimsendo, teria a primitiva cabeceira a nascente (braçonordeste) e não a sudeste, onde não existem, sequer,vestígios do encaixe da base do altar. Pelo contrário,nessa área, há uma sepultura, precisamenteatravessada na sua frente, entre o cruzeiro e o braçosudeste, que apresenta uma orientação sensivelmentea nascente/poente. Este facto também não me parecemuito conforme com a relação de orientação entresepultura e cabeceira a sudeste, mas seria mais lógicase o altar estivesse voltado para nascente, nesse casono braço nordeste.

A igreja sofreu transformações, numa segunda fase.Para Justino Maciel são desta fase, atribuída aoséculo VII, as seguintes alterações: abertura desepulturas, que assentavam “quer directamente sobreo mosaico, quer em covas antropomorficas escavadas

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na rocha de xisto” (MACIEL, 1996: 94); porta doátrio noroeste entaipada, com parede de xisto eargamassa de terra; acrescento de uma segundacabeceira, mais pequena, com construção idêntica depedra e terra, situada no prolongamento do braçosudeste, onde também não se registaram as marcas daexistência do altar (ibid.: 94 e 96).

Da confrontação atenta dos vestígios aindaconservados no terreno, com as descrições e asplantas do edifício, do século XIX e actuais(SANTOS, 1972; MACIEL, 1996), sou levada aquestionar a hipótese de esta segunda fase ter doismomentos distintos.

Devem pertencer ao século VII, as nove sepulturas,abertas no exterior e interior da igreja, que assentame cortam os mosaicos e apresentam uma orientaçãosensivelmente a nascente/poente. Têm orientação suisgeneris em relação à suposta cabeceira, voltada asudeste, mas não a teriam se a cabeceira estivesse anascentre, voltada para o rio. Podemos ainda ver,além da que se situa em frente do braço sudeste, duasoutras, em cada lado da entrada do eixo mais amploda igreja, sendo que uma delas assentava sobre osrestos do mosaico e tinha os “ cantos revestidos aopus signinum” (ibid.: 96). Se acrescentarmos o factode Estácio da Veiga ter exumado nove jarrinhosinteiros1, um dos quais decorado com pinturavermelha sobre superfícies esbranquiçadas, detipologia idêntica a outros exemplares, datados definais do século VI e do século VII, provenientes denecrópoles visigóticas, em particular da Andaluzia eEstremadura espanhola, mais se reforça a hipótese deque essas peças tenham vindo das referidassepulturas.

Em contrapartida, sugiro que devem pertencer a umaterceira fase, posterior ao período visigótico, todas asoutras alterações. Em primeiro lugar, os aparelhosconstrutivos das remodelações/fecho da porta doátrio, transformado em mausoléu, e da segundacabeceira, são iguais aos das construções islâmicasadjacentes ao edifício religioso, tendo as mesmasespessuras e argamassas de terra, ao contrário dosedifícios romanos e da primeira fase da igreja, quetêm paredes mais largas e argamassas de cal; emsegundo lugar, uma cabeceira pequena orientada asudeste estará mais em conformidade com os cânonesdo Islão do que com uma orientação de um edifíciocristão; finalmente, dez sepulturas têm orientaçãonoroeste/sudeste, o que também está mais de acordocom a época muçulmana.

1 Estas peças estão depositadas no Museu Nacional deArqueologia e em curso de estudo, por parte de HelderCoutinho.

Como é de conhecimento geral, foi hábito em Al-Andalus continuar a usar-se, num primeiro momento,edifícios e cemitérios cristãos, nos quais podeobservar-se a islamização do espaço. Essaislamização está patente, respectivamente, nadiferença de orientação das sepulturas, numa primeirafase com sentido norte/sul e depois anoroeste/sudeste, e na partilha inicial dos edifícios deculto que, quando são transformados em mesquitas,apresentam o acrescento de um mihrab voltado a sulou a sudeste.

As dez sepulturas do Montinho das Laranjeiras, quetêm orientação diferente das outras nove já indicadas,podem ter paralelos nas chamadas necrópoles mistas,referidas, entre outros, por Juan Zozaya (1999: 92),ou serem já posteriores ao século VIII, se tivermosem atenção a sua orientação clássica. Por outro lado,as diferentes orientações que se observam nasdezanove sepulturas até agora encontradas têmsimilitudes marcantes, para só citar um casogeograficamente próximo, com as do cemitério doRossio do Carmo, em Mértola, onde o bemconhecido espaço funerário de época tardo-antiga evisigótica foi depois islamizado (TORRES eMACIAS, 1993: Fig. 19).

Quanto ao espaço, entretanto fechado, do átrioexterior ao braço maior do templo cruciforme, o factode conter seis sepulturas com orientação anoroeste/sudeste confirma a hipótese de ter-setransformado em mausoléu. Embora este tipo deconstruções, salvo no caso das cubas funerárias, sejaaparentemente raro nos cemitérios islâmicos deâmbito rural, a verdade é que podem ocorrer emalguns cemitérios urbanos. Dá-se como exemplos asduas mesquitas funerárias do cemitério de YabalFaruh, em Málaga (FERNÁNDEZ DOMÍNGUEZ,1995: 77, Foto 1 e 2), bem como o panteão, de plantarectangular, identificado na necrópole de Sari‘aQadima, em Almeria, e interpretado como fazendoparte de uma específica organização familiar decemitérios, em que as pessoas sepultadas no mesmomausoléu teriam relações de parentesco(MARTÍNEZ GARCÍA et al.: 1995: 105, Fig. 1).

Finalmente, tem-se considerado que a igrejacruciforme faria parte de uma ecclesia monasterium,certamente por ter-se em consideração a relação decontiguidade com as construções adjacentes aotemplo. Questiona-se, portanto, se o espaço terá“sobrevivido no período moçárabe, como o atestamsignificativos exemplos de cerâmicas muçulmanasencontradas no desenrolar das escavações, (ou) talveztenha sofrido com as invasões muçulmanas, tão pertoestava do rio Guadiana, designadamente na épocaomíada, na segunda metade do século VIII, em que

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são destruídas igrejas cristãs em Toledo, Mérida eBeja” (MACIEL, 1996: 100).

Quanto a esta questão, já tive ocasião de argumentarque o templo pode ter-se conservado ao culto de umacomunidade moçárabe ou ter-se, mais possivelmente,transformado em pequena mesquita rural(CATARINO, 2001: 697). O certo é que, se a igrejase mantivesse aberta ao culto cristão, não sejustificava que tivesse havido uma tão radicalalteração na orientação das sepulturas. Além disso, ascasas situadas no prolongamento noroeste do edifícioreligioso não são de um espaço monástico, nemforam destruídas no decurso do processo deislamização, já que pertencem a vivendas islâmicas,que apresentam os típicos pátios centrais e tiveramocupação até à época almóada, sendo certamenteabandonadas só depois da reconquista.

O actual estado de destruição do braço da igreja quese prolonga para a sala do baptistério não permitesaber se este continuou em uso. Pode considerar-se ahipótese de a piscina baptismal se ter convertido empia de abluções. No entanto, também pode teracontecido que esta ala da primitiva igreja tivessesido anulada, visto que, como pode ver-se nareprodução da planta do século XIX (SANTOS,1972), há paredes de uma casa islâmica queaproveitam este espaço. Assim, pode ter havido,inclusivamente, uma alteração da primitiva plantacruciforme, que terá passado a uma plantarectangular, quando se anula este braço do lado dobaptistério e a igreja se converteu em mesquita.

Sabe-se que foi comum a partilha de espaçosfunerários e religiosos e a transformação de igrejasvisigóticas em mesquitas, como acontece, porexemplo, em Milreu, Casa Herrera, El Gatillo, etc.No primeiro caso, a basilica paleocristã ter-se-átransformado em mesquita, ou oratório islâmico, e asinscrições árabes indicam a existência de um espaçofunerário, de tipo familiar (SIDARUS e TEICHNER,1997: 184-185). Em Casa Herrera (Badajoz) foifechada a primitiva porta, a norte, e abriu-se, no ladooposto, um espaço quadrangular, que terá funcionadocomo mihrab; acrescentou-se também um, orientadoa sul, no edifício de El Gatillo (Cáceres), onde a zonado segundo baptistério foi convertida em mesquita;em ambos os casos, as transformações foramacompanhadas da abertura de sepulturas, orientadas anorte/sul (CABALLERO ZOREDA, 1998: 154,MATEOS e CABALLERO, 2003: 33-37, 67-72).

Relacionando o conjunto dos vestígios arqueológicosainda conservados no Montinho das Laranjeiras,podemos observar que os edifícios romanos, quetambém revelaram ocupações posteriores, seconcentram na zona meridional do templo e este, pela

sobreposição de um dos muros, parece assentar numedifício anterior, cujas paredes também eramargamassadas de cal. A uma primeira fase, com solosde mosaico, seguiu-se, certamente no século VII, aabertura de sepulturas, três das quais no interior daigreja. Também deve pertencer a esta fase ofragmento de imposta, de mármore de S. Brissos,decorada com círculos secantes gerando quadrifólios(MACIEL, 1996: 98, Fig. 7), motivos idênticos aosidentificados em Clarines.

Finalmente, o fecho de uma das portas do átriosudoeste, que penso ter sido a localização daprimitiva entrada no templo, e o acrescento dacabeceira sudeste, que interpreto como mihrab,parecem, pelo tipo de construção e espessura dasparedes, ser contemporâneos das casas islâmicassituadas junto do edifício religioso. As sepulturas,que apresentam orientação canónica para Meca, serãodo mesmo período e fariam parte de um pequenocemitério, que incluía um panteão familiar, para osmuçulmanos que habitaram essas casas até ao séculoXIII.

5. A mesquita do Castelo Velho de Alcoutim

Bem destacado na paisagem, e numa localizaçãoaprazível, em estreita relação com o rio, o CasteloVelho de Alcoutim (Fig. 3.1.) situa-se a 1 km paranorte da vila actual. Os trabalhos arqueológicos,iniciados em 1985, e ainda em curso de investigação,têm vindo a revelar um conjunto fortificado eedifícios habitacionais, com ocupação centrada entreo período emiral, porém com cerâmicas que ainda sepodem filiar na época visigótica, e os finais do séculoXI, ou os inícios do século XII (Fig. 3.2). Oabandono definitivo deve ter ocorrido, em data aindamal definida, na transição para o período almorávida,ou na fase conturbada que antecede a época almóada,já que, até ao momento, não se recolheram ascerâmicas típicas deste último período.

O conjunto amuralhado do Castelo Velho inclui umfortim superior, com as características de pequenopalácio, ou alcácer rural, de planta rectangular, com34 m por 22 m de lado, ocupando uma área internacom 704 m2. Está implantado no topo de uma cristarochosa previamente nivelada, tendo muralhas com1,60/1,80 m de espessura, defendidas por torresmaciças, quadradas e rectangulares, construídas aespaços regulares: uma rectangular, em cada tramomenor; duas em cada lado maior.

Uma segunda linha de muralhas, aparentemente amais antiga, rodeia o reduto superior, que se lhesobrepõe no canto sudoeste. Esta cerca inferior, commuralhas entre 1,30 m a 1,50 m de espessura, tem

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igualmente planta rectangular, aproximadamente com40/50 m por 80/90 m de lado, sendo protegida portorres quadrangulares, que se conservam no ladonorte.

As escavações realizadas no alcácer e no recintoinferior permitiram identificar um conjunto deespaços habitacionais e/ou armazéns, bem como umapequena mesquita privada. A ocupação do local, quepoderá recuar ao período bizantino/visigótico, ou àfase inicial do emirado, sofreu sucessivasremodelações, reconstruções e acrescentos nosedifícios e nas muralhas, em especial na defesa dasduas portas já identificadas, que eram de ingressodirecto na primeira fase e sofreram, certamente noséculo XI, o acrescento de torres e antemuros quelhes deram a feição de entradas em cotovelo.

As maiores obras de reconstrução ter-se-ão verificadono século X. Estas obras mostram um programaconstrutivo califal, que reflecte um certo discurso depoder: no alcácer, as casas distribuíam-se ao longodas muralhas, deixando livre o espaço central, oupátio; no topo poente, existia um amplo salão, comcerca de 10 m de comprimento por 2,90/3 m delargura, a que se acrescentaria uma possível alcova,mais tarde fechada. Este devia ser o espaço nobre,usado como sala de recepção, ou de audiência.Também no recinto inferior se verificaram obras namesma época, com reconstrução de casas, que sesobrepõem às mais antigas, numa reorientação dosnovos edifícios e a construção de uma mesquita.

Acedemos ao interior do circuito amuralhado inferiorpor um vão de porta, a sudeste, que abria sobre oGuadiana, numa zona de forte inclinação do terreno.Inicialmente de entrada directa, entre duas torresquadradas, passa a ter um antemuro, reforço que sedata do século XI. O vão de acesso é em degraus,sendo que um deles tem uma coluna de mármore,seguramente trazida da villa romana do Vale daLourinhã, próxima do castelo.

Quando entramos neste recinto, deparamos com umarua, bastante inclinada, que se dirigia directamentepara a entrada no alcácer superior. Perto da porta, nolado direito de quem entra, podemos ver, em primeirolugar, uma construção (espaço habitacional 13) daprimeira fase de ocupação do castelo (Fig. 4.3.). Temparedes que se prolongam sob as de uma salainterpretada como mesquita e a sua orientaçãoaproxima-se da observada para outras construções dafase mais antiga. Num plano mais elevado está apequena mesquita (Fig. 4. 1 e 4.2.), que se sobrepõe eaproveita parte de uma das paredes desta casa.

O espaço de oração foi construído perto da porta deentrada na área amuralhada inferior, apresenta umaorientação que corta completamente com o plano

urbanístico anterior e impõe-se como construçãoisolada em relação aos espaços habitacionais que seencontram nas proximidades, junto do pano demuralha norte.

A sala da pequena mesquita está bastante destruída,quase ao nível dos alicerces. As paredes são de xistoargamassado com terra e têm 55/60 cm de espessura.É de nave única, de planta rectangular, com 7,60 mde comprimento por 2,90/3 m de largura, definindoum espaço interno de apenas 22,8 m2. A paredevoltada a sudeste, corresponde à qibla e tem umaorientação a 165 grados. É nesta parede que seencontra o mihrab e a porta de entrada, que abre paraum pequeno átrio.

O mihrab, visto do exterior, tem planta quadrada,com paredes de 55/60 cm de espessura e o nichointerno, com piso de argila. Define um espaço comcerca de 1 m de lado, mas é provável que, em altura,no interior, definisse uma planta em ábside. Entre osaspectos que permitiram interpretar a função desteespaço como nicho de oração, contam-se a orientaçãocanónica, a sul/sudeste, bem como as suascaracterísticas, de plataforma elevada vista doexterior, com paredes que ainda conservam 1 m dealtura, apresentando grande desnível em relação à ruaque se dirige para a porta do castelo.

A entrada na mesquita fazia-se por uma porta, abertana parede da qibla. O vão de acesso, já muitodestruído, teria cerca de 80 cm de largura, masconservava, no lado direito, a laje onde encaixava ogonzo da porta. O desnível em relação ao exterior foisolucionado com cortes na rocha e a colocação delajes que, embora um pouco deslocadas pelasconstruções posteriores e destruições após oabandono do castelo, parecem ter definido, pelomenos, um ou dois degraus. Abria-se num pequenoátrio lajeado, no exterior nordeste da sala de oração.

Este espaço (mais tarde fechado e transformado emespaços habitacionais 11 e 12 – Fig. 4.3.) teria umpequeno pórtico, definido, do lado esquerdo daentrada, por um pilar de alvenaria de xisto, de plantaquadrada, com cerca de 60 cm de lado, e, do ladodireito, um pilar e/ou segmentos de paredes, comaparente forma de L, sendo este pilar e osalinhamentos em L que definem o átrio/pórtico, quetem cerca de 2 m por 3 m de lado (Fig. 4.2.).

Este pequeno pátio seria certamente em pórtico etalvez possuísse uma coluna assente no pilar dealvenaria, visto ter-se encontrado, embora fora decontexto, já no exterior sul da mesquita, umfragmento de base de coluna, em mármore branco.Assim sendo, este pequeno pátio, ou antecâmara,situado do lado nordeste do mihrab, era o únicoacesso à mesquita e resguardava a entrada do espaço

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sagrado da oração em relação a quem passasse pelarua que, da porta do castelo se dirigia para as casassituadas do lado norte da muralha. O carácter privadodesta mesquita/oratório justificaria as suas reduzidasdimensões e o facto de não se ter identificado umtípico pátio de abluções, indispensável nas grandesmesquitas urbanas.

Pelas características da planta, orientação,localização, junto da porta, e rodeado porarruamentos, o edifício foi, sem dúvida, o local deoração deste hisn/alcácer, ou palácio rural. Porquecorta com a planificação dos edifícios anteriores, terásido edificado durante as remodelações de épocacalifal, quando também as casas do sector nortelevaram obras que alteraram, sensivelmente parasudeste, os anteriores eixos de orientação anascente/poente. Pode depreender-se, assim, que oespaço sagrado do Castelo Velho reflecte bem oexpoente da plena islamização, no século X.

A construção, bastante simples, com paredes poucoespessas, de xisto argamassado com terra, são domesmo tipo das que existem nas transformações daigreja e nas casas islâmicas do Montinho dasLaranjeiras.

A tipologia do edifício aproxima-se, por sua vez, daobservada nas mesquitas do mosteiro califal daRábita de Dunas de Guardamar, em Alicante(AZUAR RUIZ, 1989: 19-27), onde também algumasentradas, sobretudo nas mais pequenas, se fazem naparede da qibla ao lado do mihrab e apresentamdimensões semelhantes à de Alcoutim. Do mesmomodo, algumas das mesquitas que têm vindo a serescavadas, sob a direcção de Rosa e Mário VarelaGomes, no mosteiro islâmico da Ponta da Atalaia, emAljezur, têm paralelos com a do Castelo Velho,caracterizando-se por sala de oração de nave única,de planta rectangular, e mihrab de plantaquadrangular.

O mesmo acontece em espaços urbanos, por exemploem Mértola, onde recentes escavações, levadas acabo no exterior da mesquita, revelaram um anteriormihrab, de planta quadrada, atribuído à época califal,sobre o qual assentou o de época almóada2. Quantoao tipo de entrada e posição topográfica, também amesquita principal da cidade islâmica de Vascos(Toledo), embora sendo de maiores dimensões, comquatro naves, tem um átrio de entrada e umalocalização junto da porta da alcáçova. Na mesmacidade há, porém, outra mesquita, de pequenasdimensões, com sala de oração rectangular, de 6,40 mpor 2,80 m de lado (IZQUIERDO BENITO, s./d.: 47-

2 Agradeço a Susana Goméz a visita guiada às escavaçõesdeste sector da zona da alcáçova.

53), superfície que se aproxima muito da mesquita-oratório do Castelo Velho de Alcoutim.

Finalmente, há ainda que considerar algunsfragmentos de elementos arquitectónicos de mármoreencontrados durante a escavação. O Castelo Velhoestá, como já se disse, bastante próximo do Vale daLourinhã, onde terá existido uma villa romana, peloque é de crer que tenham vindo deste local ofragmento de base de coluna (Fig. 5.1.) encontradono exterior sul da mesquita, o fuste de coluna queserve de degrau na porta de entrada no castelo, outracoluna integrada numa das paredes de um doscompartimentos escavados no fortim superior, e umfragmento de colunelo, com 15 cm de diâmetro,recolhido na rua, perto da porta do alcácer, entre acisterna e os degraus de acesso à muralha.

No exterior poente do castelo, junto de um caminho,encontraram-se vários fragmentos de uma placa demármore, de tom branco acinzentado. O achado maissignificativo encontrou-se, porém, na encosta sul, amais íngreme, já quase no barranco. Trata-se de umfragmento de coluna de mármore branco (Fig. 5.2 e5.3), possivelmente de Estremoz, que teria entre25/30 cm de diâmetro e conserva apenas 25 cm dealtura. Esta coluna tinha a particularidade de estardecorada em relevo. Duas molduras, ou frisos, emanel sobressaído, dividem três espaços: o inferior,pouco perceptível, é natural que tivesse decoraçãovegetalista; a faixa do meio apresenta decoraçãoperlada, em três “lágrimas” que caem a partir damoldura; a parte superior, também muito destruída,apresenta as patas, parte do corpo e do pescoço deuma ave, possivelmente uma pomba.

O achado reveste-se de particular interesse: emprimeiro lugar por ter sido encontrado, embora àsuperfície, na encosta sul, numa zona onde, no topo,fica a rua e a mesquita, entre as portas dos doisrecintos amuralhados; em segundo lugar, por ter sidonessa rua que se encontrou o fragmento da base decoluna, também de mármore branco, que poderia terpertencido à mesma peça; em terceiro lugar, porpoderem ter pertencido a uma coluna, que assentavano pilar de alvenaria colocado na entrada do átrio damesquita.

Esta peça é, sem dúvida, um elemento arquitectónicode características paleocristãs e/ou visigóticas, departicular influência bizantina. A representação deaves, mormente a pomba, é bastante significativa nadecoração arquitectónica de edifícios religiosos, emplacas, frisos, pilastras, colunas, etc. São abundantesos exemplares onde aparece a simbologia de aves, acomeçar por Ravena, em especial na primorosadecoração do púlpito que se conserva na Catedral(PALOL e RIPOLL, 1988: 33).

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Esta inluência estende-se pelo Norte de África,dando-se como exemplo o capitel “berbero-cristão”da região de Tiaret, no limes da Mauritânia Cesareia(CADENAT, 1979: 253). Em Espanha, os exemplosmelhor conhecidos encontram-se nas igrejas de SanPedro de la Nave (BARROSO CABRERA e MORINDE PABLOS, 1997) e de Quintanilla de las Viñas(ibid.: 2001).

Em Portugal, para além dos pavões afrontados deLisboa, podemos apontar, entre outros casos, a regiãode Beja, respectivamente com as aves da colunaproveniente de Vale de Aguieiro (OLIVEIRA eCORREIA, 1993: 32-33), e do frontão triangular deTrigaxes (ibid.: 36). Também em Idanha-a-Velha seencontrou uma pequena pilastra que tem, num doslados, a representação de uma ave (informações deJosé Luís Gil Cristóvão).

Finalmente, resta saber de onde e quando foi trazidaesta coluna e os outros fragmentos de mármore para oCastelo Velho de Alcoutim. As hipótese deproveniência só podem estar relacionadas com aexistência de templos paleocristãos, ou visigóticos,que tivessem existido nas villae mais próximas: oVale da Lourinhã, que fica a cerca de 500 m, numaplataforma junto do Guadinana, a nordeste do cabeçoonde está o castelo; a zona de S. Martinho de CortesPereiras, que fica a cerca de 4,5 km para poente.Acontece, porém, que em nenhum destes sítiosforam, até agora, encontrados elementosarquitectónicos do mesmo tipo da coluna decorada docastelo. Menos provável, por estarem mais distantes,mas onde se confirma terem existido temploscristãos, teriam vindo, eventualmente, de Vale deCondes, a 5 km para sul, ou do Montinho dasLaranjeiras, que fica a 8,5/9 km para sul do CasteloVelho.

O aproveitamento destas peças parece ter acontecidodurante as remodelações urbanas da segunda fase deocupação do castelo, embora pela sua posição, aservir de degrau, a coluna da entrada na muralhabaixa possa ter sido aí colocada logo no primeiromomento de construção. Mais condicente com asobras que se atribuem ao período califal é acolocação da coluna que está numa das paredes deum dos compartimentos habitacionais do alcácer(compartimento S). Por fim, a descontextualizaçãoestratigráfica da base e da coluna decorada nãopermite senão colocar a hipótese de que tenham feitoparte do pórtico de entrada na mesquita califal.

6. Em síntese

No estado actual da investigação, este texto é apenaso ponto de chegada possível para se poder vir a

compreender melhor as diversas formas de habitarem Alcoutim, no longo período situado entre aAntiguidade tardia (séculos V/VI) e o processo deislamização. No entanto, as prospecções permitiramobservar diferentes modelos de implantação nosnúcleos de povoamento que antecedem as alcarias, jáplenamente islâmicas, cujos vestígios de superfícieapontam para uma ocupação a partir dos séculosX/XI.

As villae e outros sítios nitidamente de origemromana, localizados sobretudo perto do Guadiana,mas também no interior do concelho, em valesabertos e zonas pouco elevadas, revelaram, para operíodo em questão, cerâmicas de importação, queincluem as formas tardias de sigillata clara D, emcirculação nos séculos V/VI, bem como algunsfragmentos de ânforas, de tipo Almagro 51C, e umamoeda, possivelmente do reinado de Arcádio,encontrada no sítio de Corga dos Coiros.

Outros sítios, normalmente localizados em cabeçoselevados, por vezes perto de minas com exploraçãoantiga, parecem obedecer a uma diferente estratégiade ocupação, em povoados de altura. Aqui, osachados de superfície são as cerâmicas comuns, porvezes decoradas, para além de abundantes telhasdigitadas, fragmentos de dolia e de pesos de tear.

Nestes últimos povoados, a ausência de cerâmicatipicamente romana e de cerâmica islâmica vidrada,levam a colocar a hipótese de corresponderem apequenas comunidades agro-pastoris e mineiras, queaí habitaram, num período cronológico relativamentecurto, entre o período visigótico e os inícios da épocaislâmica, eventualmente até ao século IX, ou aosinícios do período califal.

Para o século VII refira-se, inclusivamente, que sãoprovenientes de Alcoutim, achadas em local nãoespecificado, duas moedas visigóticas, que estavam àvenda, em 1949, numa ourivesaria de Lisboa: uma,do reinado de Recaredo (586-601), foi cunhada emSevilha; a outra, do reinado de Recesvinto (649-672),foi cunhada em Toledo (FERREIRA, 1949).

Alcoutim, apesar de estar hoje afastada dos grandescentros urbanos, teve no rio Guadiana, como já sedisse, um eixo privilegiado de intercâmbio com omundo mediterrânico, não só ao nível demercadorias, mas também de novas ideias. Assimsendo, é de crer que, nos séculos V/VI, oCristianismo tenha começado a expandir-se tambémno mundo rural do interior, já que a Diocese deOssonoba foi uma das mais antigas da PenínsulaIbérica, com a presença do Bispo Vicêncio (ouVicente) no Concílio de Elvira, logo nos inícios doséculo IV. Por outro lado, entre os meados do séculoVI e o primeiro quartel do seguinte, o Algarve esteve

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sob a alçada dos Bizantinos, sendo natural que estesnão tenham exercido a sua influência só a Ossonoba ezonas adjacentes do litoral, mas também a tenhamfeito chegar mais a norte, via Guadiana, pelo menosaté Mértola, como parece estar provado em muitosdos vestígios arqueológicos até agora aí exumados(LOPES, 2003).

De momento, porém, apenas podemos tecer algumasconsiderações sobre a cristianização e a islamizaçãona região de Alcoutim. Em relação à Arqueologia daReligião, os objectivos que me guiaram foram muitodirectos e concisos: em primeiro lugar, dar aconhecer de forma mais sistematizada os exemplosarqueológicos identificados no concelho e colocaralgumas questões em torno da igreja cruciforme doMontinho das Laranjeiras; em particular, dar aprimeira notícia da identificação de uma mesquitacalifal no Castelo Velho.

Entre Mértola e o litoral, o Montinho das Laranjeiras,com a sua igreja cruciforme visigótica, deindiscutível influência bizantina, não será um casoisolado no concelho. Indicaram-se outros exemplos,cujos vestígios apontam para a existência de edifíciosde culto na mesma época, ou até de inícios dopaleocristianismo. Mas estão localizados em sítiosque não foram objecto de escavações arqueológicasconducentes a análises estratigráficas e diacrónicasde ocupação, pelo que só pudemos dar algumas pistaspara futuras investigações.

No interior, a mais de 20 km do Guadiana, oselementos arquitectónicos de Clarines apresentamdecoração de filiação bizantino/sassânida e visigóticae terão pertencido a um templo cristão, cujacronologia pode estende-se para além dos séculosVI/VII, numa continuidade de culto moçárabe.

Em Vale de Condes, junto do rio, uma necrópoleatribuída ao período visigótico e o achado da pedraque pertenceu a uma mesa de altar são as razões queme levam a indicar este sítio como também tendosido cristianizado, numa fase indeterminada, entre aAntiguidade tardia e a transição para a Alta IdadeMédia. No entanto, esta villa, ao contrário deClarines, não mostra à superfície sinal ter sidoocupada no período islâmico.

Mais arriscado seria indicar presença de edifíciospaleocristãos em S. Bento Velho e S. MartinhoVelho, embora no último caso questionemos se a piade mármore, que existia na Fonte do Povo, não teriapertencido a uma piscina baptismal. Por outro lado,também com dúvidas, será que a coluna decorada,assim como os outros fragmentos encontrados noCastelo Velho foram levados do Vale da Lourinhã?

A islamização de espaços sagrados e funerários deépoca visigótica aparece recorrentemente, como é deconhecimento geral, no território de al-Andalus.Reviu-se, neste aspecto, a interpretação da igreja doMontinho das Laranjeiras, que terá sidotransformada, em data incerta, numa mesquita, a queestá associado um pequeno cemitério, cujassepulturas se posicionam de forma completamentedistinta em relação às que atribuímos ao períodovisigótico.

É possível que o edifício cristão se tenha mantido aoculto moçárabe durante os séculos VIII e IX. Mas astransformações aí ocorridas e a sua relação com ascasas muçulmanas, que se encontram bem visíveis,sobretudo no prolongamento do lado do baptistério,levam a colocar a hipótese de a igreja cruciforme seter convertido em mesquita. Eventualmente, a partirdo califado e reinos de taifas, já estavamcompletamente islamizados os indivíduos quehabitavam nessas casas, onde as escavaçõesrevelaram ocupação até ao século XIII.

Finalmente, também a sagração de uma mesquita noCastelo Velho parece ter ocorrido só no século X,durante as obras califais que provocaram alteraçõesna anterior planificação urbana. Esta é a primeiramesquita identificada no concelho; mas é natural quetivessem existido outras, não só porque se conservamtopónimos Mesquita mas, fundamentalmente, porqueexistem sítios arqueológicos com consideráveldensidade de ocupação islâmica, quecorresponderiam a grandes alcarias, sendo naturalque tivessem o respectivo lugar de culto.

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