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FACULADE DE SÃO BENTO FILOSOFIA RICARDO MENDES MACHADO FORMULAÇÃO DA PROPOSTA ONTOLÓGICA FUNDAMENTAL HEIDEGGERIANA São Paulo 2012

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FACULADE DE SÃO BENTO

FILOSOFIA

RICARDO MENDES MACHADO

FORMULAÇÃO DA PROPOSTA ONTOLÓGICA

FUNDAMENTAL HEIDEGGERIANA

São Paulo

2012

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RICARDO MENDES MACHADO

FORMULAÇÃO DA PROPOSTA ONTOLÓGICA

FUNDAMENTAL HEIDEGGERIANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação

da Faculdade de Filosofia de São Bento, como requisito

para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia.

Orientação: Prof. Dr. José Carlos Bruni

São Paulo

2012

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RICARDO MENDES MACHADO

FORMULAÇÃO DA PROPOSTA ONTOLÓGICA FUNDAMENTAL

HEIDEGGERIANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação da Faculdade de Filosofia de São Bento,

como requisito para a obtenção do grau de Mestre

em Filosofia.

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. José Carlos Bruni – Orientador

Faculdade de São Bento

Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva

Universidade de São Paulo

Prof. Dr. Paulo Roberto Monteiro de Araujo

Universidade Presbiteriana Mackenzie

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A amada Jussara.

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Agradeço aos meus pais, Aparecida e Galdino, que sabiamente priorizaram, desde

sempre, minha educação e temor à Deus e a meus irmãos, Cristina e Eduardo, pelo

exemplo da eficiência dessa criação, perpetuada hoje em nossas crianças.

Com especial carinho ao amigo e Professor Doutor Paulo Roberto Monteiro de Araújo

da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que com sensibilidade me apresentou a

ontologia em toda sua beleza e força.

Aos meus pares, Carlos Augusto de Abreu Campos, amigo dedicado e possibilitador

financeiro e Ricardo Ferreira, pelos revigorantes cafés e profícuos diálogos.

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Quanto ao filósofo, é à forma do ser que se

dirigem perpetuamente seus raciocínios, e é

graças ao resplendor dessa região que ele não

é, também, de todo fácil de se ver. Pois os olhos

da alma vulgar não suportam, com persistência,

a contemplação das coisas divinas.

Platão in Sofista.

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Resumo

Esta dissertação consiste no estudo da formulação da proposta ontológica

fundamental de Heidegger. Buscamos compreender o contexto histórico/intelectual no

qual a proposta fora desenvolvida. Em seguida fizemos uma análise da metodologia

utilizada pelo autor, a fenomenológica, para então investigar a proposta propriamente

dita. Para realizar o proposto, adentramos numa direcionada e objetiva incursão no

universo terminológico de Heidegger. Partindo da análise do ente Dasein, tendo como

fio condutor a disposição fundamental da angústia, a abertura privilegiada para suas

possibilidades mais próprias, abordamos conceitos como possibilidade,

impessoalidade, decadência, temporalidade, morte e cuidado, objetivando a

compreensão do tema que pauta nosso trabalho, “a formulação e possibilidade de

uma ontologia epistemológica”.

Palavras-chave: Ontologia; Fenômeno; Angústia; Morte; Cuidado.

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Abstract

This dissertation is the study of the proposed formulation of Heidegger's fundamental

ontology. First we seek to understand the historical / intellectual context in which the

proposal had been developed. Then we make an analysis of the methodology used by

the author, the phenomenological. Then move forward in the study of the proposal

itself. To achieve the proposed objective, we move forward in a direct and objective

foray into Heidegger's terminology universe. Based on the analysis of the existent

Dasein, having to guiding the fundamental disposition of anguish (anxiety), the

privileged opening to your themselves possibilities, we discuss concepts like

possibility, impersonality, decay, temporality, death and care, aiming in this way, to

understand the theme that guide our work, “the formulation and the possibility of an

epistemological ontology”.

Keywords: Ontology; Phenomenon; Anguish (Anxiety); Death; Care.

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Sumário

INTRODUÇÃO................................................................................................9

1. A destruição da ontologia tradicional...................................................12

1.1 A questão do ser...........................................................................12

1.2 A questão do ser no desdobramento da história da filosofia.......19

1.3 A recolocação da questão do ser..................................................30

1.4. O método fenomenológico...........................................................41

2. A hermenêutica da faticidade…..…........……........................................49

2.1 O método fenomenológico heideggeriano....................................49

2.2 A compreensão fática do Dasein, o das-Man...............................58

3. A analítica existencial…..........................................................................67

3.1 A disposição fundamental da angústia.........................................67

3.2 A decadência do Dasein...............................................................72

3.3 A abertura......................................................................................78

3.4 O cuidado......................................................................................83

CONCLUSÃO…….............….……………….................................................91

REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS............................................................94

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Introdução

É por certo que a ontologia heideggeriana, com suas características conceituais

inovadoras, possui as suas dificuldades de compreensão no âmbito do pensamento

filosófico. Por outro lado, cabe ressaltar que tal ontologia nos possibilita interpretar

as práticas humanas em suas diversas dimensões em nossa vivência existencial

contemporânea.

O que Heidegger procura, ao elaborar uma linguagem conceitual própria, é criar

condições de possibilidades para retomar a questão do ser, por ele tão proclamado

em Ser e Tempo. O projeto heideggeriano é, então, a retomada da problemática da

questão do ser a partir do viés fenomenológico do seu mestre Edmund Husserl.

Ser e Tempo, apontado como o trabalho capital de Heidegger, representa a

iniciativa do autor em determinar e fundamentar, pautando-se na metodologia

fenomenológica, pontos chave e indiscutíveis para uma interpretação segura e

eficiente do ser, que em sua filosofia é o fundamento de tudo o que há.

Nosso objetivo foi investigar a ontologia desenvolvida no chamado “primeiro”

momento do autor, se ainda não declaradamente preocupado com as questões

acerca da essência, já - o que nunca deixaria de ser - ontológico. Veremos que esse

primeiro Heidegger analisa um ser cujo existir constitui sua própria essência.

Estruturalmente nossa pesquisa está dividida e se apresenta na seguinte forma:

capítulo um, intitulado A destruição da ontologia tradicional, em que discutimos o

desdobramento e a contextualização histórica da filosofia de Ser e Tempo. Neste

capítulo procuramos fazer compreender o que motivou Heidegger a fazer uma nova

ontologia. O que fez com que ele logo apontasse a necessidade de destruir,

“reconstruindo”, os fundamentos que até então sustentavam a proposta ontológica

exercitada à sua época. Deste momento procuramos abordar os capítulos iniciais de

Ser e Tempo para em seguida, capítulo dois A hermenêutica da faticidade, atentar à

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questão do desdobramento que a visão moderna construiu e, à sua maneira,

legitimou a premência existencial da pós-modernidade.

Procuramos deixar evidente qual fora a leitura que Heidegger fizera dos trabalhos

filosóficos anteriores, principalmente no sentido de mostrar a evidência que a

epistemologia conquistara na Modernidade em detrimento do campo de estudo por

ele tomado como primordial. Buscamos contextualizar nosso texto objetivando expor

as influências que o pensamento de sua época exerceu em seu trabalho, no que diz

respeito à crise sofrida pela ideia de “sujeito” ocorrida nos últimos momentos da

Modernidade.

Buscamos abordar o fato de que Heidegger, em sua proposta ontológica, fez uso da

metodologia de seu mestre Husserl, neste momento em nosso trabalho começamos

a fundamentar a possibilidade que mais a frente será exposta, a saber, se houve um

motivo para a incompletude da sua ontologia fundamental, foi devido ao método,

tendo ele permanecido, mesmo que modificando, no preconizado por essa nova

hermenêutica da consciência.

No terceiro e último capítulo A analítica existencial, aprofundamos a discussão dos

pontos mais específicos de Ser e Tempo, onde Heidegger expõe definitivamente

sua proposta ontológica fundamental, diferenciada - enquanto caminhando para uma

meta-ontologia - das demais propostas até sua época.

A ideia de tratar o projeto ontológico heideggeriano como “proposta” tem por objetivo

trazer e tornar clara a interpretação da ontologia de Ser e Tempo como um trabalho

inacabado, não concluso. Como aludido, tomamos esse ponto ao final de nosso

texto, quando da abordagem da análise existencial, desenvolvido minuciosamente

por toda a obra Ser e Tempo - nesse momento nos apoiamos num texto profícuo de

Alexandre Franco de Sá, escrito em 2008 intitulado “Da Destruição Fenomenológica

à Confrontação: Heidegger e a Incompletude da Ontologia Fundamental”, texto

publicado em Covilhã, Portugal, pela editora LusoSofia da Universidade da Beira

Interior.

Sobre o segundo conceito, “ontológica”, que sabemos ser o escopo de Ser e

Tempo, e a partir do qual iniciamos propriamente nosso estudo no primeiro capítulo,

buscamos compreender que tipo de ontologia Heidegger se propõe a fazer, pois,

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inserido cronológica e contextualmente num momento acadêmico onde os esforços

intelectuais vigentes giravam em torno das pesquisas sobre as possibilidades e

formas do conhecimento, a epistemologia, vemos que não é por acaso que o autor

retoma o estudo do ser aplicando a metodologia fenomenológica, herdada de

Edmund Husserl, só que - como é comum dizer - uma fenomenologia extremada,

levada às últimas consequências. O ponto a cerca das diferenças entre a

fenomenologia husserliana e a heideggeriana merece uma atenção especial e

tomamos o cuidado de desenvolver.

A ideia de “fundamental” refere-se ao fato de que a obra Ser e Tempo diz respeito

ao momento do autor chamado primeiro Heidegger, ou primeira fase e termos

conexos. O “segundo” Heidegger, mais velho e experiente, continuará seu projeto

ontológico, mas lançará mão de outros pressupostos, como a arte e as questões da

linguagem, da origem e da verdade.

Dois pontos estruturais da construção de nosso texto passíveis de atenção: Todas

as vezes que nos referirmos no texto a “ser” no sentido do “todo estrutural”,

“transcendental”, temos que atentar para não confundir com o transcendentalismo no

sentido kantiano1; e todas as vezes que soubemos por bem utilizar a terminologia

em sua língua original, alemão, ou quando da utilização de algum outro vernáculo

que não o português, tomamos o cuidado de no corpo do texto ou em notas de

rodapé disponibilizar a tradução, buscando dessa forma fazer com que o presente

trabalho atinja o propósito para o qual se propôs ser.

1 Ao invés de tomar o eu como uma das várias entidades existentes no mundo, o

transcendentalismo kantiano prevê no ser pensante um “que” do “criador do mundo”. Essa suposição

de Kant leva a ideia de que todos os “eus” assemelham-se uns aos outros em sua compleição

cognitiva, estruturada na tríade: razão, compreensão, sensibilidade, e segundo seus críticos essa

compreensão de sujeito transcendental não teria garantia alguma de validade e poderia resultar em

abusos para se provar o que se supõe. Nessa forma kantiana, o sujeito transcendental não seria o

homem individual, empírico, dotado de psicologia, ao contrário, seria uma instância

caracteristicamente filosófica, universal que adota o funcionamento do homem caso este venha a

exercer sua racionalidade de modo pleno e autônomo (GRENZ, 1997, p.122).

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1. A destruição da ontologia tradicional

1.1 A questão do ser

Ser e Tempo foi escrito e apresentado como um primeiro volume de uma proposta

que seria composta por dois tomos, porém o segundo volume nunca foi concluído. A

obra não fora relegada somente ao círculo dos leitores de textos filosóficos, seu

alcance foi muito maior, sendo que muitos viam nela a radical tentativa do homem de

se posicionar absoluta e unicamente sobre si mesmos; por outro lado muitos viam

nela a possibilidade de se pensar e discutir de uma nova forma sobre Deus. Muitos

ainda tomaram-na como guia apontador do rumo a “intransferível experiência da

morte”, e com ela buscaram conduzir de forma coerente suas vidas. (PÖGGELER,

2001 p. 13).

Heidegger que a contragosto foi considerado um dos pais do existencialismo -

contragosto este que o levou a fixar no texto Carta sobre o Humanismo as

diferenças que o separavam do existencialismo propriamente dito - deixa claro em

Ser e Tempo que seu objetivo foi o de elaborar uma analítica existencial, onde o

escopo - diferentemente do existencialismo, como se faria conhecer por seus

representantes posteriores - seria o de abordar a questão do ser enquanto

representação das noções universais, não individuais, o ser pertencente a noção

evidente por si mesma, tomada por indefinível.

Heidegger em sua proposta de Ser e Tempo não discute metafísica, porém seu

trabalho é método para um seguro estudo por esses caminhos complexos e

fenomenologicamente não apreensíveis (ONATE, 2000, p. 11). O que importa para

o autor é o limiar em que podemos chegar com a nossa estrutura cognitiva do

momento que divide o imanente do transcendente2.

2 No texto Sobre a essência do fundamento de 1928, Heidegger expõe sua

compreensão sobre “transcendência”: “Transcendência significa ultrapassagem. Transcendente

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A questão sobre o significado do ser, Ser e Tempo não deu uma resposta simples e

objetiva. Para Heidegger ser é tempo. “À questão relativa ao significado do ser ele

deu a resposta provisória, em si mesma ininteligível, de que o significado do ser é a

temporalidade” (ARENDT, 1993, p. 28).

Quanto ao conceito de “tempo” da tradição metafísica, seu significado não foi

suficientemente exprimido. O ser do ente fenomenológico era pensado a partir da

presencialidade e do presente, o horizonte de tempo que ficou para trás no passado

e que se encontra a diante, no provável futuro, não fora devidamente considerado.

Contrariamente, o tempo era compreendido a partir da presencialidade e presente e,

desse modo, pensado como uma sequência de momentos-agora presentes e atuais

ou não presentes e não atuais.

Um dos êxtases do tempo, o presente, recebeu um sobreposto em relação

aos outros êxtases e foi estabelecido como um dos traços fundamentais do

tempo; a partir dele, foram também pensados os outros êxtases. Heidegger

busca romper com este predomínio do presente: ele pensa o tempo como a

temporalidade simultânea de passado, presente e futuro ou, como ele

também diz, de passado, presencialidade e pré-sente (Sp, 213).

Temporalidade é o entretecer recíproco de três dimensões do tempo: o

entretecer recíproco é algo assim como uma quarta dimensão, a qual – se

aqui pudéssemos de todo enumerar – é, na verdade, a primeira e inicial, da

qual as outras tem origem (PÖGGELER, 2001, p. 239).

Considerando essa problemática de conceituação e interpretação, podemos dizer

que sua proposta é uma resposta à posição tomada pela filosofia à questão

ontológica desde o pensamento pré-socrático. Sua ontologia, assim, é uma (transcendendo) é aquilo que realiza a ultrapassagem que se demora no ultrapassar. Este é, como

acontecer, peculiar a um ente. Formalmente a ultrapassagem pode ser compreendida como uma

“relação” que se estende “de” algo “para” algo. Da ultrapassagem faz, então, parte algo tal como o

horizonte em direção do qual se realiza a ultrapassagem; isto é designado, o mais das vezes,

inexatamente de “transcendente”. E finalmente, em cada ultrapassagem algo é transcendido. Estes

momentos são tomados de um acontecer “espacial”; e a este que a expressão primeiramente visa”

(HEIDEGGER, 1979, p.104). Ainda, no §28 Verdade ôntica e ontológica. Verdade e transcendência

do ser-aí, das preleções do semestre de inverno de 1928-1929, o autor faz uma longa exposição do

conceito, do que citamos: “Transcendência é a possibilitação daquele conhecimento que não

transpõe de modo ilegítimo a experiência por meio do vôo que conduz além, ou seja, que não é

‘transcendente’, mas é possibilitador da experiência mesma. O transcendental certamente fornece a

definição restritiva. No entanto, por meio da própria restrição surge ao mesmo tempo a definição

positiva da essência do conhecimento não transcendente, isto é, do conhecimento ôntico possível

como tal (HEIDEGGER, 2009, p. 223).

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concepção, em que o ser deixa de ser analisado como inescrutável e passa a ser

matéria palpável, conquanto manifesto por meio de suas evidências

fenomenológicas (ARENDT, 1993, p. 29).

A fenomenologia, tema que abordamos mais detalhadamente à frente, é a via de

acesso e o modo de comprovação para se determinar o que deve constituir tema da

ontologia. Ontologia por sua vez só é possível como fenomenologia. O conceito

fenomenológico de fenômeno propõe, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu

sentido, suas modificações e derivados (HEIDEGGER, 2008, p. 75).

A exemplo de seu mestre Husserl, a ocupação de Heidegger não é especificamente

perguntar o quê é o ser, e sim seu significado. Heidegger não toma o ser como um

ser particular, também não como a união dos seres particulares. Mostra-nos em

contrapartida que o ser é aquilo que faz com que o mundo seja, e que assim se

manifesta ao homem. Ele busca abordar o fundamento de tudo o que existe.

Identificamos no texto de Heidegger que ser não é passível de ser definido, o

método então será estudá-lo na forma como ele se mostra (LEYTE, 2005, p. 167-

168).

Para definir essa forma do ser é necessário tomá-lo como um ente, isto é, em

alguma coisa concreta, determinada, passível de ser analisada à luz de nossa

cognição. Para isso retira-se o caráter universal do ser. A dificuldade dessa questão

remonta uma solução proposta na Idade Média que é a de compreender que o ente

só é por que o ser faz com que ele seja. Antes disso não se atentava para a

diferenciação entre os dois termos.

Para Heidegger o problema do ente é diferente do problema do ser. Essa

problematização sistemática da questão do ente desviou a atenção para a origem do

ponto que deve ser examinado, o ser. Separando-os existe o que a filosofia do autor

chama de diferença ontológica. Porém, mesmo que o tendo como subordinado, o ser

explicita-se no ente (HEIDEGGER, 2008, p. 49).

Esse ente concreto, manifesto, colocado no tempo, aí, é o Dasein, que traduzido do

alemão seria exatamente isso: o ser-aí. Uma existência dotada de presença no

tempo e no mundo. A partir da definição que o Dasein, o ser-aí, é o ser vivendo a

temporalidade, dando-se no mundo material e participando do que este mundo

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apresenta como realidade, que Heidegger consequentemente lançará mão de outro

conceito para caracterizar o ser: das-Man3, traduzindo como “impessoal” (“a gente”).

Esse conceito das-Man constitui a base da inautenticidade experimentada pelo

Dasein no âmbito social, é a vida imprópria que o ente experimenta nessa

inautenticidade determinada pelo mundo a sua volta (BOUTOT, 1991, p. 34).

Angustiado o das-Man acomoda-se na impessoalidade ou procura libertar-se,

conhecer-se. Nessa busca, o ente ôntico busca o fim do ontológico, o ser.

A inautenticidade do Dasein Heidegger sintetiza a formas de se viver, impessoal, em

que o Dasein espelha e comporta-se de acordo com o que o meio espera dele e em

função e compromissado com o que “dizem” dele, o das-Man; ele é envolvido

comprometendo sua autenticidade pelo mundo de valores que cria. (BOUTOT, 1991,

p. 34).

A angústia é a consequente sensação experimentada nessa mundaneidade, a

experiência cotidiana do homem, que em sua temporalidade - característica

fundamental de sua realização - anela, anseia, por um significado superior que dê

resposta e sentido à sua vida.

Existirá tal resposta a essa questão ontológica? Sim, para Heidegger é exatamente

quando o homem questiona sua existencialidade e se vê finito, conscientizando-se

de sua falência na morte, de ser exatamente um ser-para-a-morte - na definição do

autor - que ele se abre para sua realidade mais íntima, a existência idealizada pelo

Dasein, longe de ser simples medo ou o que possa até então ter experimentado e

desconfigurado seu ser íntimo.

O medo tem assento no ente de que se cuida dentro do mundo. A angústia,

porém, brota do próprio ser-aí. O medo chega repentino do intramundano. A

3 O alemão “da” não diz nem aí, nem lá, nem cá. O “da” é etimologicamente palavra de

intensificação, tendo a função primária de avivar, marcar, ressaltar, não possuindo propriamente

nenhuma determinação especial. Importância deve ser dada ao fato de Heidegger ter desenvolvido

uma terminologia propriamente particular para restabelecer uma ontologia frente àquela encontrada

na filosofia tradicional, pois de outra forma, se não desta, talvez pela própria carga de significado

impregnada no uso convencional dos termos convencionais, não seria possível alcançar o objetivo

que é o de propriamente reler conceitos. Essa peculiaridade o colocou em destaque em relação aos

demais autores contemporâneos, no sentido de ser um autor que “revolucionou” o pensamento

filosófico. (N.E.) (HEIDEGGER, 2008, p. 19)

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angústia ergue-se do ser-no-mundo enquanto lançado ser-para-a-morte.

(HEIDEGGER, 2008, p. 201)

O homem, limitado e incomodado, procurando o sentido real e autêntico, livra-se - a

seu modo - do que não faz sentido. Essa busca se dá, como ser temporal.

(HEIDEGGER, 2008, p. 89).

Para sanar e auxiliar na compreensão da ontologia fundamental de Ser e Tempo,

Heidegger nos mostra que o homem - diferentemente da proposta até então

apresentada pelo pensamento ocidental ao qual questiona - não pode simplesmente

ser analisado nos mesmos moldes e utilizando-se os mesmos termos destinados

aos objetos materiais em geral (HEIDEGGER, 2008, p. 89). Ele denomina os

caracteres ontológicos do Dasein de existenciais, que é o diferenciado caráter

ontológico privilegiado do ser realizado no devir, que é capaz de idealizar sua

existência. Diferente dos demais entes dados - pedra, boi, pen-drive - aos quais ele

denomina seus caracteres ontológicos de categorias.

O Dasein só se apropria em sua carência na angústia de ser-aqui no mundo -

angústia que tem seu ápice na conscientização da morte - é definida pelo autor

como cuidado. Porém, a ideia da morte associado às questões da inautenticidade,

pode também em contrapartida, quando tomada negativamente, jogá-lo

definitivamente na tentativa de fuga numa existência supostamente fácil da

subjetividade confortante e impessoal.

Heidegger, lembremos, não se propõe a fazer metafísica, e sim, compreender o

significado do ser e, para isso, é necessário identificar o fenômeno em que ele é

manifesto.

A via que Heidegger procura seguir é uma via da proximidade do ser. O ser

é o tema da forma clássica do pensamento ocidental, da metafísica. O

pensamento de Heidegger, como via na proximidade do ser, não quer ser

outra coisa senão a tentativa de percorrer a via do pensamento ocidental,

Ao percorrer essa via, Heidegger julga dever saber que a metafísica

ocidental nunca resolveu a sua questão, a questão do ser, que o

pensamento ocidental também nunca atingiu o seu fundamento. É legitimo

buscar esse fundamento, e pressentir, achar e desbravar assim um campo,

o qual devido ao predomínio da metafísica deveria permanecer incógnito

(Hw, 194 e seg.). A via, pela qual o pensamento ocidental se supera, é a via

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de regresso ao seu fundamento impensado. A via que Heidegger segue

alcança a sua obrigatoriedade por não querer outra coisa senão exprimir de

modo comprovável os pressupostos impensados do pensamento rotineiro

(PÖGGELER, 2001, p. 15).

A proposta de Heidegger também não era dar respostas às questões relativas ao

saber e à fé, apesar de seu pensamento ser marcado por decisões finais e

transformações que lentamente despertam e por repentinas reviravoltas

(PÖGGELER, 2001, p. 18).

Observando a obra em relação a um suposto traço gnóstico, ou a ideia de ser ela

uma proposta de um tardio retorno a um primórdio em que “mundo” ainda poderia

ser tomado romanticamente como um “lar”, onde mito e poesia se encontrariam, ou

ainda da relação de Heidegger com manifestações contemporâneas, com a teologia

dialética ou com a filosofia existencialista, teremos sempre a tendência de relacionar

sua investigação da questão do ser com algum outro elemento, o que levará ao

equivoco de procurar em Ser e Tempo uma resposta às ultimas questões do

pensamento ou da fé, desviando-se do real escopo do texto (PÖGGELER, 2001, p.

19).

No que diz respeito às últimas questões do saber ou da fé, Heidegger

protege-se expressamente de que o pensamento seja subordinado à

“pretensão superior” de “saber a solução do enigma e de trazer felicidade”.

Ele mesmo só quer, “como aprendiz contínuo”, testar o pensamento até hoje

existente no que ele há de impensado, para assim, talvez, poder descobrir a

seu modo a localização da verdade do ser como a localização de um futuro

construir e habitar. “Porém, nós só podemos, por meio de um construir,

preparar o habitar nesse local. Um tal construir já quase não se poderá

concentrar no edificar da casa para Deus, ou nas habitações para os

mortais. Deverá contentar-se em construir pelo caminho...” (Zur Seinsfrage,

26 41 e segs.) (Sobre a Questão do Ser) (PÖGGELER, 2001, p. 19).

Sendo assim, o que cabe frisar é que Ser e Tempo é a tentativa de retomar

pensativamente o que ficou impensado, o fundamento esquecido da metafísica,

sobre o qual se baseia todo o ser pensado.

A questão do ser visa portanto às condições a priori de possibilidade não

apenas das ciências que pesquisam os entes em suas entidades e que, ao

fazê-lo, sempre já se movem numa compreensão de ser. A questão do ser

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visa às condições de possibilidades das próprias ontologias que antecedem

e fundam as ciências ônticas (empíricas). Por mais rico e estruturado que

possa ser o seu sistema de categorias, toda ontologia permanece, no fundo,

cega e uma distorção do seu propósito mais autêntico se, previamente, não

houver esclarecido, de maneira suficiente, o sentido de ser e não tiver

compreendido esse esclarecimento como sua tarefa fundamental

(HEIDEGGER, 2008, p. 47).

A questão sobre o sentido do ser deverá ser repetida por pertencer a um

fundamento da metafísica que foi relegado. Heidegger inicia sua investigação em

Ser e Tempo retomando esse questionamento, e assim desenvolve sua ontologia,

que nada mais é que a indagação pelo ser do ente.

Lembremos sempre que a filosofia de Heidegger é um reafirmar do caráter

primordial da ontologia. Heidegger parte do ente fenomenológico em suas múltiplas

possibilidades temporais para buscar a compreensão do ser realizado no tempo. O

autor começa o desenvolvimento de sua proposta investigando e discutindo a

problemática do desenvolvimento histórico da questão do ser na filosofia ocidental,

propondo então uma retomada em outros moldes desse questionamento.

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1.2 A questão do ser no desdobramento da história da filosofia

Heidegger inicia sua investigação perguntando os motivos que levaram ao

esquecimento da questão do ser ao longo da história da filosofia. Deste modo, ele

salienta que a questão do ser não é uma questão qualquer; pois, segundo o próprio

autor, foi tal questão que deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles

(HEIDEGGER, 2008, p.37). A partir da retomada da referida questão, o filósofo de

Freiburg começa então a delimitar os pressupostos que determinaram a sua

investigação a respeito da problemática das determinações conceituais do ser.

No primeiro parágrafo de Ser e Tempo, intitulado Necessidade de uma retomada

explícita da questão do ser, o filósofo diz:

Embora nosso tempo se arrogue o progresso de afirmar novamente a

“metafísica”, a questão aqui colocada caiu no esquecimento. E, não

obstante, nós nos consideramos dispensados dos esforços para

desenvolver novamente uma γιγαντομαχία περι της ούσίας (gigantomaquia

sobre o mérito). A questão referida não é na verdade, uma questão

qualquer. Foi ela que deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles para

depois emudecer como questão temática de uma real investigação. O que

ambos conquistaram manteve-se, em muitas distorções e recauchutagens,

até a Lógica de Hegel. E o que outrora se arrancou, num supremo esforço

de pensamento, ainda que de modo fragmentado e tateante aos

fenômenos, encontra-se, de há muito, trivializado (HEIDEGGER, 2008, p.

37).

Em seu viés interpretativo, Heidegger nos chama atenção para as preocupações de

Platão e Aristóteles em relação à estrutura conceitual que determinava e ao mesmo

tempo possibilitava a compreensão do ser. A saber, tomava-se o ser como um

conceito não passível de definição, no sentido de caracterizá-lo como simples ente,

em suas diversas facetas de gênero e qualidades. No entanto, apesar dessa clareza

inicial sobre a problemática do ser, Heidegger vê após esse esforço de pensamento

grego uma derrocada nas investigações sobre a questão do ser. É a partir dessa

derrocada que a questão entrou em um processo de equívocos que gradativamente

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levou ao desvio que em seus primórdios mostrava-se decisivo no processo histórico

da investigação ontológica. Para Heidegger, o conceito de ser “mais universal e, por

isso indefinível” (HEIDEGGER, 2008, p. 37), prescindia de uma definição eficiente.

No solo da arrancada grega para interpretar o ser, formou-se um dogma que

não apenas declara supérflua sobre o sentido de ser, como lhe sanciona a

falta. Pois se diz: “ser” é o conceito mais universal e mais vazio. Como tal,

resiste a toda tentativa de definição (HEIDEGGER, 2008, p. 37).

A preocupação de Heidegger com a questão do ser está expressamente indicada no

início de sua investigação da citação das palavras de Platão encontradas no diálogo

Sofista – diálogo platônico que estudou quando professor em Marburgo: “O que se

quer dizer com a palavra ser?” (LEYTE, 2005, p. 56). Seu questionamento sobre o

ser surgiria no horizonte dos problemas da filosofia contemporânea, porém, estaria

diretamente ligado à questão nuclear que define classicamente a filosofia como um

todo. Temos no Sofista de Platão:

ESTRANGEIRO: Quando algum deles levanta a voz para dizer que o ser é,

que foi, que se torna múltiplo ou uno ou duplo; e quando outro nos conta a

mistura quente ao frio depois de haver afirmado o princípio das associações

e dissociações, pelos deuses, Teeteto, compreendes alguma coisa do que

dizem, um ou outro? Quanto a mim, quando jovem, eu acreditava, todas as

vezes que se falava deste objeto que ora nos põe em dificuldade, o não-ser,

compreendê-lo exatamente. E agora, tu vês que dificuldades ainda

encontramos a seu respeito.

TEETETO: Sim, vejo.

ESTRANGEIRO: Ora, bem pode acontecer que, com relação ao ser, a

nossa alma se encontre em igual confusão; e que nós que acreditamos tudo

compreender, sem dificuldade, quando dele ouvimos falar, e nada

compreender a propósito do outro termo, na realidade estejamos na mesma

situação no que concerne a um e outro (PLATÃO, 1972, p. 170).

Na ótica de Heidegger o ser vinha então ocupando um papel secundário na história

da filosofia. Por filosofia entendamos o iniciado pelos primeiros gregos

(Anaximandro, Heráclito e Parmênides), a Grécia clássica (Platão e Aristóteles) e

toda a filosofia moderna que começa com Descartes e culmina em Nietzsche

(LEYTE, 2005, p. 56-57). Para Heidegger, desenvolveu-se no processo histórico da

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filosofia o obscurecimento do tema, onde o ser passaria então a ser tomado como

algo supostamente conhecido, porém ainda carente de uma definição satisfatória. 4

Todo mundo o emprega constantemente e também compreende o que ele,

cada vez, pretende designar. Assim o que, encoberto, inquietava o filosofar

antigo e se mantinha inquietante, transformou-se em evidência meridiana, a

ponto de acusar quem ainda levantasse a questão de cometer um erro

metodológico (HEIDEGGER, 2008, p. 37).

Se para Platão sua apreensão puramente transcendental privava, de saída, a

ontologia da compreensão de seu objetivo, a forma categorial aristotélica de

determinar o ser - como que tratando de um ente - confundia, tendo, dessa forma,

colocado consequentemente o filósofo estagirita em um caminho equivocado.

Para o filósofo de Freiburg, essas interpretações desenvolvidas nesse período foram

determinantes para a consolidação equivocada da conceitualização de ser, e,

consequentemente, do próprio abandono do questionamento sobre seu sentido no

desdobramento histórico da filosofia.

Mostrou-se, na introdução, que a questão sobre o sentido do ser não

somente ainda não foi resolvida ou mesmo colocada de modo suficiente,

como também caiu no esquecimento, apesar de todo o interesse pela

“metafísica”. A ontologia grega e sua história, que ainda hoje determina o

aparato conceitual da filosofia, através de muitas filiações e distorções, é

uma prova de que o ser-aí se compreende a si mesmo e o ser em geral a

partir do “mundo” (HEIDEGGER, 2008, p. 60).

Heidegger, entretanto, leitor de Dilthey e de seu amigo, o conde Paul Yorck

(HEIDEGGER, 2008, p. 496), não nega nem tampouco refuta a tradição histórica.

Sua concepção de releitura da tradição não pode ser interpretada como a

aniquilação dos pressupostos herdados. Retomar a questão do ser significa para o

autor, primeira e fundamentalmente, elaborar de maneira suficiente e eficiente a

forma como é feito esse questionamento. “O presente tratado visa, em princípio

elaborar a questão do ser. Dentro desse quadro, a destruição da história da

ontologia, essencialmente ligada à colocação da questão e apenas possível dentro

4 Em caráter ilustrativo podemos parafrasear Cecília Meireles a respeito da liberdade -

"...Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta e que não há ninguém que explique e

ninguém que não entenda..." (MEIRELES, 2008, p. 89).

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dessa história, só poderá ser conduzida no que diz respeito às estações decisivas e

fundamentais da história” (HEIDEGGER, 2008, p. 61).

O que Heidegger faz nos primeiros momentos de Ser e Tempo é apontar a

dogmatização nas propostas de abordagem do ser, demonstrando a necessidade da

retomada explícita da questão. Nesse momento ele atenta para três preconceitos5

originados nas raízes da filosofia antiga, os quais, equivocadamente, dariam

margem à dispensa do questionamento sobre o ser. Sua abordagem sobre esses

referidos preconceitos está no intuito de clarificar a necessidade de se repetir a

questão sobre o sentido do ser (HEIDEGGER, 2008, p. 38).

Heidegger aponta primeiramente como um dos entraves para a investigação sobre o

ser a ideia de tratá-lo como um conceito universal, como que se a compreensão do

ser já estivesse sempre incluída em tudo o que se apreende do ente (HEIDEGGER,

2008, p. 38). O filósofo diz que a “universalidade” de ser não é a do gênero

(HEIDEGGER, 2008, p. 38). A universalidade do ser “transcende” toda

universalidade genérica. Segundo a terminologia da ontologia medieval, “ser” seria

um “transcendens”. Esta unidade “universal” transcendental frente à multiplicidade

dos conceitos reais mais elevados de gênero teria sido entendida por Aristóteles

como unidade de analogia (HEIDEGGER, 2008, p. 38).

Na forma aristotélica de compreensão do ser, a manifestação imanente do ente,

interpretado através da sua teoria das categorias, seria o reflexo de um ser

transcendental. Essa teorização, apesar de apresentar-se como novidade, mostrava-

se ainda dependente do - já conhecido - questionamento ontológico transcendental

de Platão (HEIDEGGER, 2008, p. 38).

A teoria das categorias assume a tarefa de delimitar as diversas áreas

objectuais em territórios categorialmente sobrepostos irredutíveis entre si, e

de relacionar depois os territórios desfeitos com a última esfera categorial

do objectual (as transcendências) e de assim os unir (PÖGGELER, 2001, p.

24).

5 Optamos por manter o termo conforme traduzido e constante na edição de Ser e

Tempo de 2008, página 38.

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Heidegger desenvolve a leitura histórica desse “preconceito” dizendo que na

ontologia medieval a problemática aristotélica sobre o ser, como possível unidade

transcendental da variedade categorial dos objetos, já fora discutida, sobretudo nas

escolas tomistas e escotistas, sem se chegar entretanto, a uma clareza e princípio

(HEIDEGGER, 2008, p. 38).

Mais à frente Hegel, nas explicações categoriais de sua Lógica, seguindo o

preconizado por Aristóteles, determinaria o ser como o “imediato indeterminado”.

Dessa forma, historicamente já próximo a nós, Hegel permaneceu na mesma

direção da antiga ontologia com a diferença de que abandonou o problema apontado

por Aristóteles da unidade do ser face à multiplicidade das “categorias” reais

(HEIDEGGER, 2008, p. 38).

Hegel assume o termo “ser” (Sein) em três diferentes extensões do

significado: 1) como início do processo lógico (tese da primeira tríade), 2)

como título do primeiro capítulo da categoria de qualidade, 3) como objeto

de todo o primeiro livro da Lógica, que se divide em lógica do ser, da

essência e do conceito (ROVIGHI, 1999, p. 730).

Para Heidegger, dizer que ser é o conceito mais universal, ou ainda, um “imediato

indeterminado”, não poderia significar clareza, dispensando um significado ulterior,

ao contrário, dessa forma assegurava-se apenas o obscurecimento do ser, carente

ainda de uma definição (HEIDEGGER, 2008, p. 38).

No seguinte preconceito, exposto na máxima “o conceito de ser é indefinível”,

Heidegger diz que uma vez partindo desse postulado na investigação sobre o ser,

corre-se o risco de acabar por confundi-lo com o “ente”. Ser não pode ser

simplesmente tomado como um “ente”. De acordo com o autor, o modo de

determinação do ente, como definição da lógica tradicional que remonta em seus

fundamentos a antiga ontologia, não pode ser aplicada ao ser. Dessa forma, a

indefinibilidade de ser não dispensa a questão de seu sentido, pelo contrário,

justamente por isso novamente a exige (HEIDEGGER, 2008, p. 39).

O terceiro preconceito que daria margem a uma equivocada dispensa do

questionamento poderia ser sintetizado como: “O ser é o conceito evidente por si

mesmo”. Para o autor em todo conhecimento, enunciado ou relacionamento com os

entes e em todo relacionar-se consigo mesmo, faz-se uso de “ser” e, nesse uso

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comum, compreender-se-ia a palavra “sem mais”. Para Heidegger essa suposta

redundante compreensibilidade comum demonstraria apenas a incompreensão:

Todo mundo compreende: “o céu é azul”, “eu sou feliz”, etc. Mas essa

compreensibilidade comum demonstra apenas a incompreensão. Revela

que um enigma já esta sempre inserido a priori em todo ater-se e ser para o

ente como ente. Por vivermos sempre numa compreensão de ser e o

sentido de ser estar, ao mesmo tempo, envolto em obscuridade, demonstra-

se a necessidade de princípio de se retomar a questão sobre o sentido de

“ser” (HEIDEGGER, 2008, p. 39).

Assim, na citação acima, temos Heidegger atentando que, no âmbito dos conceitos

fundamentais da filosofia, é duvidoso recorrer à evidência, sendo que o “evidente”

deve ser e permanecer o tema explícito da analítica (“o ofício dos filósofos”).

O exame desses três preconceitos elencados por Heidegger foi no intuito de deixar

claro a obscuridade e a falta de resposta para o problema do ser, que mostrava-se,

mais do que nunca, carente de uma solução (HEIDEGGER, 2008, p. 39). Solução

proposta em Ser e Tempo.

Deve-se colocar a questão do sentido do ser. Tratando-se de uma ou até da

questão fundamental, seu sentido precisa, portanto, adquirir a devida

transparência. Daí a necessidade de se discutir brevemente o que pertence

a uma questão para, a partir daí, poder-se mostrar a questão do ser como

uma questão privilegiada (HEIDEGGER, 2008, p. 40).

Heidegger, na síntese histórica de Ser e Tempo, mostra em seguida que Kant,

assumindo a posição ontológica de Descartes - esse por sua vez “dependente” da

escolástica medieval (HEIDEGGER, 2008, p. 63) - viria a omitir algo essencial, a

saber, uma ontologia do Dasein, do fenomenológico ser-aí (HEIDEGGER, 2008, p.

62).

De acordo com o filósofo, no “cogito sum”, Descartes pretendia dar à filosofia um

fundamento novo e sólido, porém, acabou por deixar indeterminado, nesse seu

princípio radical, o modo de ser da res cogitans, ou mais precisamente, o próprio

sentido do ser do sum (HEIDEGGER, 2008, p. 63).

René Descartes lançou as bases filosóficas do edifício moderno ao

privilegiar o papel da dúvida, concluindo daí que a existência do ser

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pensante é a primeira verdade que não pode ser negada pela dúvida – um

princípio formulado por meio de sua apropriação da máxima de Agostinho

Cogito ergo sum (Penso, logo existo). Descartes, portanto, definiu a

natureza humana como uma substância pensante e a pessoa humana como

um sujeito racional autônomo. Posteriormente, Isaac Newton deu à

modernidade seu arcabouço científico ao descrever o mundo físico como

uma máquina cujas leis e regularidade podiam ser apreendidas pela mente

humana. O ser humano moderno pode muito bem ser descrito a substância

autônoma e racional de Descartes, cujo hábitat é o mundo mecanicista de

Newton (GRENZ, 1997, p. 18).

Para o filósofo de Freiburg essa elaboração dos fundamentos ontológicos implícitos

no “cogito sum”, depois dos preconceitos já elencados, constitui o ponto de parada

na segunda estação a caminho de um retorno destruidor à história da ontologia

(HEIDEGGER, 2008, p. 63). Heidegger diz que a interpretação comprova que

Descartes, por ter supostamente descoberto uma certeza absoluta, omitiu a questão

do ser como também se mostrou dispensado da própria tarefa do questionar.

Embora Descartes houvesse posto a duvida na base de seu filosofar, ele

não teria sabido levá-la a bom termo. Assim, radicalizar a dúvida

cartesiana, ir além do horizonte deixado pelo cogito, do qual também Kant

não teria se desvencilhado, seria efetuar enfim a crítica peremptória da

metafísica, pois: “Se ‘há apenas um ser, o Eu’, e se todos os outros ‘seres’

(Seienden) são feitos à sua imagem, - se afinal a crença do ‘Eu’ coincide

com a crença na lógica, isto é, na verdade metafísica das categorias da

razão: se, de outra parte, o próprio eu se revela como vindo-a-ser

(Werdendes): então:...” (XII, & (55)). Reconhecer naquilo que se chamou

espírito, alma, ou sujeito apenas um processo de tornar-se, de vir-a-ser

significaria questionar radicalmente os referenciais possibilitadores da

tradição metafísica. A derrocada do eu enquanto Sein, Substanz, seria

acompanhada pela ruína da noção de mundo verdadeiro, seiende Welt

(ONATE, 2000, p. 17).

Ser e Tempo fora escrito à época em que os filósofos - herdeiros de Descartes -

enfrentavam a metafísica questão do universal e dos particulares com um aparato

metodológico variado em suas características, mas abarcados todos na corrente de

pensamento caracterizada como “teorias do conhecimento” ou epistemologia. A

epistemologia compreende o estudo sistemático da natureza. Ela pergunta pela

forma e capacidade de apreensão do conhecimento e do mundo. As respostas

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revelam dois tipos de teorias de conhecimento, que podem ser agrupadas com

relação ao seu grau de ênfase na subjetividade ou objetividade do conhecimento

(HUNNEX, 2001, p. 13). A epistemologia pergunta: “Nós conhecemos um mundo

independente ou simplesmente a nossa experiência”?

As teorias subjetivas do conhecimento respondem: “Não, nós não

conhecemos um independente como a causa de nossas idéias. Nós não

podemos ir além da nossa experiência ou das nossas idéias, e não

podemos falar de um conhecedor que as experimenta”. As teorias

objetivistas do conhecimento respondem: Sim, nós conhecemos um mundo

independente de objetos materiais (algumas formas de materialismo e

realismo) ou de idéias transcendentes (idealismo platônico) (HUNNEX,

2001, p. 13).

As teorias de conhecimento se dividiam natural, teórica e historicamente nas duas

escolas do racionalismo e do empirismo. Para Heidegger, como vimos, o rumo que a

epistemológica abordagem metafísica do ser tomou na filosofia moderna,

independente da escola e forma de investigação, acabou por fim assegurando a

“indefinição” ontológica da questão (HEIDEGGER, 2008, p. 37).

O questionamento metafísico sobre o “que” do ser passava então na modernidade,

há ser substituído pelo seu “como”. Nessa mudança de forma de abordagem, o que

se tornava importante para os filósofos modernos era a possibilidade de

conhecimento e apreensão cognitiva do ser.

Os filósofos modernos, preocupados ainda com a questão da moral, passam a

tomar o homem como um sujeito cognoscente autônomo, capaz de tomar

consciência - partindo de suas faculdades - senão do todo do ser, ao menos de

parte da existência de um “todo”. No desdobramento máximo dessa busca, o homem

seria então capaz da apreensão e do conhecimento da “verdade”. Essa mudança da

forma de questionamento, do “que” para o “como” do ser, demonstra o processo de

“subjetivação” marcante da Modernidade (ONATE, 2000, p. 16-17).

Esse sujeito autônomo em sua subjetividade seria o responsável em fundamentar a

possibilidade do saber (GRENZ, 1997, p.127). A procura pela verdade

transcendental e universal, o “existente”, passa então a não ser mais tomado como

matéria do “pensado”, mas sim, do passível de ser “representado”. A tentativa

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Moderna de identificar pontos estruturais de pensamento e resolver a questão dos

universais, partiu então, primeiramente, da valoração do sujeito individual

cognoscente e da sua essencial ou existencial busca de fundamentar uma

metafísica relação com um todo inexprimível.

Nessa busca de um meio que possibilitasse ao indivíduo humano a representação

dos assuntos metafísicos, emerge a questão da “linguagem” (ONATE, 2000, p. 35-

36). Essa questão é, emblematicamente, o resultado da necessidade de

representação do existente experimentada por esse sujeito moderno.

Este projeto filosófico metafísico da Modernidade, onde a universalidade estaria

intrínseca numa subjetividade que proporcionaria os pressupostos para a apreensão

da verdade - subjetividade essa determinada pelo sujeito empírico – começou no

final do século XIX, principalmente na filosofia de Nietzsche, a se tornar

insustentável.

Sob muitos aspectos, pode-se dizer que René Descartes e Emanuel Kant

escreveram o primeiro e o último capítulos da história da filosofia do

Iluminismo. A máxima cartesiana introduziu o personagem principal - o eu

como substância pensante. Os problemas resultantes dessa visão do eu,

culminado com o ceticismo de Hume foram finalmente resolvidos pelo

postulado kantiano da mente ativa e pela afirmação das categorias

transcendentais como fundadores do conhecimento o que promovia o eu

autônomo ao centro do programa intelectual. A obra desses dois filósofos

fixou os parâmetros que definiriam a empresa moderna. Nenhum dos

pensadores que vieram posteriormente conseguiriam escapar da longa

sombra por eles projetada. Parecia que haviam deixado o eu firmemente

entrincheirado na paisagem intelectual. Todavia, nem todos os seus

seguidores ficaram totalmente satisfeitos com o legado que herdaram

desses dois gigantes da filosofia (GRENZ, 1997, p.127).

Nietzsche, na crítica da concepção de sujeito da era Moderna e do primado

epistemológico desse período, arquitetou e desenvolveu sua filosofia oposicionista,

fundamentado-a nos pressupostos presentes na questão da moralidade. Com a

teoria do “niilismo” ele apresentava o equivocado legado da tradição no processo de

construção do homem europeu com seu legado metafísico.

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Para Nietzsche, o niilismo é o resultado do esvaziamento das categorias

metafísicas que funcionavam com os valores supremos até aqui, porquanto

determinavam radicalmente o modo de estruturação da existência do

homem ocidental enquanto tal. Nesse contexto, “morte de Deus” é uma

expressão que sintetiza em si o significado mesmo do fenômeno do niilismo.

O que interessa a Heidegger nessa expressão, porém, muito mais que as

consequencias é o que ela traz consigo para a própria dinâmica do

pensamento metafísico. O niilismo em sua associação com o acontecimento

da morte de Deus baseia-se em uma supressão radical da dicotomia

metafísica entre sensível e suprassensível e em uma consequente redução

da totalidade do plano ôntico, ao plano das configurações fugazes de

duração relativa no devir. Exatamente essa supressão e essa redução

trazem consigo um dilema quanto à própria concepção heideggeriana da

essência do pensamento metafísico. Heidegger compreende a metafísica a

partir da noção e esquecimento do ser (CASANOVA, 2000,pp. 210-211).

Em sua crítica, o sujeito da modernidade, com a sua moralidade dos “ressentidos”,

dos “fracos”, dos “escravos”, não passaria de uma ficção da linguagem.

Consequentemente, a apreensão de uma “verdade” metafísica seria para esse

homem moderno, enquanto pautado em seus insuficientes pressupostos lingüísticos,

impossível. A crítica de Nietzsche viria a influenciar marcantemente o trabalho de

Heidegger.

A partir de Nietzsche Heidegger escreve o seu Nietzsche, que é também a

versão literal da história da metafísica entendida como a história do ser do

ente, ou seja, da busca de um princípio reconhecível para o que é, o qual,

poderoso, todo o mais é dependente. Em certo modo, é também um ajuste

de contas do próprio Heidegger consigo mesmo: o reconhecimento de que a

linguagem da metafísica, incluindo seu próprio nome “metafísica”, assim

como ontologia, essência – existência, forma – matéria, natureza – espírito,

constituem resistências insuperáveis para o pensar que se sugere como

“verdade do ser”. A palavra “verdade” inclui-se nessa leitura, podendo até a

cair com os demais conceitos, porém essa queda deve ser entendida

sempre não como abandono da questão, mas precisamente o expediente

para coletá-la na perspectiva que se acha mais clara, e não tapada por um

nome (LEYTE, 2005, p. 221).

No processo de busca da compreensão do mecanismo da existência temporal do

homem no mundo, da sua existência fática, Heidegger, de acordo com seus

estudiosos, teria sido o primeiro filósofo a tomar Nietzsche como um pensador sério

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6. Poderíamos identificar, ainda, as influências nietzschianas no trabalho do autor de

Freiburg na forma como ele desenvolveu a própria releitura genealógica do processo

sobre a construção histórica do ser, a qual consta sinteticamente em Ser e Tempo,

releitura a partir da qual fundamentaria sua nova e original abordagem da

investigação do ser (GRENZ, 1997, p.154).

O problema da metafísica obteve importante realce na cena interpretativa do

trabalho nietzschiano com a publicação dos cursos e digressões a ele

dedicados por Heidegger, reunidos na densa obra Nietzsche. Nela

encontramos o pensador da Floresta Negra procurando construir seu

próprio caminho através da discussão profunda e original das perspectivas

abertas pelos escritos do filósofo de Sils-Maria. Propondo-se a “questionar

com ele, através dele e também contra ele, a única e comum questão, a

mais interior da filosofia ocidental (Nietzsche, 1961, Tomo I, p. 30), esta

leitura acaba por inscrever o pensamento analisado na esteira da

interrogação milenar sobre o significado último da realidade, do ente. Vistas

por este ângulo, as doutrinas da vontade de potência e do eterno retorno,

embora tivessem o grande mérito de instaurar o estágio derradeiro do

acabamento da metafísica em que se encerram suas possibilidades de

realização ou recomeço, levando assim aquela interrogação às últimas

consequencias, não teriam obtido êxito na abertura à questão, ao horizonte

do Ser. Decorre daí que Nietzsche seja considerado o “último metafísico do

ocidente”, encerrando definitivamente o circuito de reflexão que há milênios

domina nosso horizonte. Contudo, fechar o círculo não significaria escapar

dele e ainda menos superá-lo, apontando para novas tarefas, que

Heidegger pretende acolher e explorar na esfera de seu pensar essencial, e

sua ontologia fundamental (ONATE, 2000, p. 11).

Heidegger pretendia na segunda parte de Ser e Tempo voltar a Aristóteles,

passando novamente por Kant e Descartes, no intuito de apontar os traços

fundamentais de uma destruição fenomenológica da história da ontologia segundo o

fio condutor da problemática da temporalidade. Essa parte da obra, porém, nunca foi

escrita (PÖGGELER, 2001, p. 19).

6 HEIDEGGER, “The word of Nietzsche: God is dead”, in: “The question concerning

technology” and other essays, trad. Willian Lovitt (New York, Harper & Row, 1977, p. 54-55), in

GRENZ, 1997, p.154.

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1.3 A recolocação da questão do ser

Ser e Tempo é a proposta de Heidegger de retomar o processo de desenvolvimento

da questão do ser. É a proposta de recuperar o que foi relegado, o fundamento

esquecido da metafísica, sobre o qual se baseia todo o ser pensado. Para o filósofo,

a retomada da indagação pelo significado do ser pressuporia, primeiramente, o

cuidado de elaborar de forma suficiente a própria questão. A questão do ser pedia

uma reformulação da forma de indagação. Ser e Tempo nos fornece então uma

nova e original forma de indagação do como, do sentido, do ser.

Heidegger diz que a indagação pelo sentido do ser deve ser repetida, porque ela

pertence ao pensamento metafísico desde o seu início como o impensado, porém

ela deve ser recolocada a partir das razões objetivas, nas quais a “dignidade” da

origem da questão possui sua raiz (PÖGGELER, 2001, p. 50).

Como vimos, o filósofo de Freiburg reconhecia a importância que a questão do ser

representava para o mundo grego. O que não teriam feito, e que propõe em sua

ontologia fundamental, é perscrutar o conceito de ser e procurar um modo suficiente

de compreendê-lo. Sobre a citada indagação dos Sofistas o autor coloca: “Hoje, não

só não temos qualquer resposta àquela indagação, como nem sequer sentimos a

necessidade de indagar assim. Por esse motivo, não só deverá hoje ser colocada de

novo a indagação pelos sentido do ser, mas também deverá despertar uma

compreensão para esta indagação” (PÖGGELER, 2001, p. 50).

Em sua cunhagem escolástica, o essencial da ontologia grega se transpôs,

através das Disputationes metaphysicae, de Suárez, para a metafísica e

filosofia transcendental da Idade Moderna, chegando ainda a determinar os

fundamentos e objetivos da Lógica de Hegel, porque no curso dessa

história, focalizam-se certas regiões privilegiadas de ser que passam então

a guiar, de maneira primordial, toda a problemática (o ego cogito de

Descarte, o sujeito, o eu, a razão, o espírito, a pessoa), essas regiões

permanecem inquestionadas quanto ao ser e à estrutura de seu ser, de

acordo com o constante descaso da questão do ser. Ao invés disso,

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estende-se a este ente o acervo categorial da ontologia tradicional mediante

uma formalização correspondente a delimitações meramente negativas; ou

então, recorre-se à ajuda da dialética com vistas a uma interpretação

ontológica da substancialidade do sujeito (HEIDEGGER, 2008, p. 60).

Heidegger tinha por certo que até então o que vinha sendo feito - remontando o

Platão transcendental, o Aristóteles categorial, passando pelos escolásticos,

agostinianos ou tomistas, com a reviravolta renascentista, os vislumbres iluministas

chegando finalmente aos modernos e sua proposta de perscrutação racional – era

perguntar pelo ser tímida e medianamente. Para o filósofo, enquanto tomado como

transcendentalmente obscuro e sua “universalidade” como inalcançável, fadava-se

ao insucesso o empreendimento de investigação do ser (CASANOVA, 2000,p. 78).

Do mesmo modo, vimos que para o pensador de Freiburg, colocar a

responsabilidade da interpretação do ser sobre o tanto quanto subjetivo indivíduo

moderno, com sua racionalidade aos moldes cartesianos e sua controversa

transcendentalidade, seria, mais uma vez, decretar o fracasso da ontologia e

decretar também que o ser continuasse tão encoberto quanto vinha estando até

então.

A tradição assim predominante tende a tornar tão pouco acessível o que ela

“lega” que, na maioria das vezes e numa primeira aproximação, ela encobre

e esconde. Entrega o que é legado à responsabilidade da evidência,

obstruindo assim, a passagem para as “fontes” originais, de onde as

categorias e os conceitos tradicionais foram hauridos, em parte de maneira

autêntica e legítima. A tradição até fez esquecer essa proveniência. Cria a

impressão de que é inútil compreender simplesmente a necessidade do

retorno às origens. A tradição desarraiga de tal modo a historicidade do ser-

aí que ele acaba se movendo apenas no interesse pela multiplicidade e

complexibilidade dos possíveis tipos, correntes, pontos de vista da filosofia,

no interior das culturas mais distantes e estranhas. Com esse interesse, ele

procura encobrir seu próprio desarraigamento e ausência de solidez. A

consequência é que, com todo o seu interesse pelos fatos historiográficos e

em toda sua avidez por uma interpretação filologicamente “objetiva”, o ser-aí

já não é capaz de compreender as condições mais elementares que

possibilitam um retorno positivo ao passado, no sentido de sua apropriação

produtiva (HEIDEGGER, 2008, pp. 59-60).

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Para a filosofia ontológica de Ser e Tempo, dentro dessa problemática, a própria

forma do questionar seria tão fundamental quanto o objeto questionado. Tão

importante quanto propriamente investigar o ser, seria ter bem claro como a

investigação seria feita.

Todo questionar é um buscar. Toda busca retira do que se busca a sua

direção prévia. Questionar é buscar cientemente o ente naquilo que ele é e

como é. A busca ciente pode transformar-se em “investigação” se o que se

questiona for determinado de maneira libertadora (HEIDEGGER, 2008, p.

40).

Heidegger propõe, ao recolocar a questão do ser, buscar o máximo de “certeza de

um fato de que apenas temos provas morais7”. Para o autor, essa tarefa poderia ser

realizada somente através do ente. Porém não um ente qualquer e sim um ente

dotado de características exclusivas e específicas, com uma estruturação prévia

coerentemente própria e preparada para esse tipo do questionamento.

Com o ente que se constrói no tempo, no devir, e que acontece no mundo, o Dasein,

Heidegger, como fizera Nietzsche, viria a formular sua negação ousada do conceito

cartesiano-kantiano do eu, o sujeito conhecedor que depara com o mundo como

objeto. Heidegger mostra em sua proposta ontológica fundamental que o ponto de

partida da filosofia não é a existência de um ser pensante consciente de si mesmo,

mas simplesmente em “ser aí” (GRENZ, 1997, p.155).

A substituição do ser pensamente que confronta seu objeto pelo “ser-aí”

abre caminho para a compreensão mais holista da realidade. Com isso,

tem-se um meio para evitar o dualismo sujeito-objeto e a experiência dupla

do “eu” e do “mundo” em favor de um fenômeno unitário, o “o-ser-presente-

e-acessível-junto” do sujeito e do objeto. Essa visão de ser-no-mundo como

um todo sem costuras possibilita a Heidegger atacar incansavelmente o

dualismo que, em sua opinião, tem dominado a filosofia (e a teoria literária)

desde Descartes. Seu objetivo é desalojar dicotomias tais como mente e

corpo, o eu e o mundo, sujeito e objeto, o eu e o outro. De modo particular,

ele quer se livrar da noção do sujeito como substância independente que

existe acima do tempo e da sociedade humana e que habita algum reino

transcendente à parte da vida. A insistência de Heidegger em que nos

7 Conforme a definição de “convicção” em: http://www.priberam.pt (22/07/11,

16hs22min)

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alicercemos no mundo conduz ao que, talvez, tenha se tornado o aspecto

mais importante de seu pensamento para os filósofos pós-modernos que

reivindicam sua herança; ele oferece uma crítica desafiadora à

compreensão filosófica do que seja a “presença” (GRENZ, 1997, p.156).

O autor, ao apresentar o conceito do Dasein, desenvolve um questionamento do ser

diferente enquanto uma ontologia pautada sobre um método epistemológico

moderno, o fenomenológico. Sua ontologia assume então, nas palavras do autor, um

caráter destrutivo, no sentido de que consiste coerentemente não em superar, negar

ou aniquilar a tradição e a epistemologia, mas em compreendê-las no âmbito da

história da compreensão do ser (SÁ, 2008, p.6).

A destruição também não tem o sentido negativo de arrasar a tradição

ontológica. Ao contrário, ela deve definir e circunscrever a tradição em suas

possibilidades positivas, e isso quer sempre dizer em seus limites, tais como

de fato se dão na colocação do questionamento e da delimitação, assim

pressignada, do campo de investigação possível. Negativamente, a

destruição não se refere ao passado; a sua crítica volta-se para o “hoje” e

para os modos vigentes de se tratar a história da ontologia, quer esses

modos tenham sido impostos pela doxografia, quer pela história da cultura

ou pela história dos problemas. Em todo o caso, a destruição não se propõe

a sepultar o passado em um nada negativo, tendo uma intenção positiva.

Sua função negativa é implícita e indireta (HEIDEGGER, 2008, p. 61).

Heidegger propõem, com a ideia de destruição da ontologia tradicional, o início da

releitura da história da interpretação do ser, dada dentro da história da cultura

ocidental. Dentro desse processo de destruição, presente em toda sua obra, não só

em Ser e Tempo, fica evidente a construção e manifestação estrutural da própria

história do ser. O filósofo procura identificar como é possível construir uma nova

ontologia situada nesta compreensão de ser legada pela tradição ontológica

ocidental. Para isso tem agora que procurar o ponto base a partir do qual pode-se

preparar solidamente o fundamento da sua nova ontologia. A esta procura poder-se-

ia chamar a fase edificante ou construtiva da sua ontologia fenomenológica (SÁ,

2008, p.8).

Esta construção pressupõe automaticamente uma confrontação com a tradição

ontológica da qual surge. Esta confrontação - mediante a nova metodologia

epistemológica empregada por ele, a fenomenológica - é necessária para a

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construção de sua nova ontologia (SÁ, 2008, p. 6). A construção da nova ontologia

fenomenológica heideggeriana, pressuporá então a destruição da tradicionalmente

praticada pela filosofia do ocidente.

Heidegger atenta para o cuidado de tomar essa construção como ela realmente é, a

saber, destrutiva, porém não destruidora. A observância desse pressuposto garante

o caráter explícito que sua nova proposta procura garantir ao ser. Sendo o ser,

dentro da ontologia fundamental heideggeriana, analisado através do ente que se

constrói no tempo, seria incoerente a rejeição da herança histórica na qual esse ente

acontece e se compreende (SÁ, 2008, p. 6).

Em seu processo destrutivo / construtivo, o filósofo atenta para o desenvolvimento

das ciências, carente de uma revisão de suas noções fundamentais e que,

consequentemente, exige um indagar primordialmente ontológico. Heidegger aponta

a primazia ontológica da questão do ser:

Indicando-se na psicologia, antropologia e biologia a falta de uma resposta

precisa e suficientemente fundada, do ponto de vista ontológico, para a

questão do modo de ser deste ente que nós mesmos somos, não se

pretende emitir um julgamento sobre o trabalho positivo destas ciências. Por

outro lado, deve-se ter sempre em mente que estes fundamentos

ontológicos não podem ser obtidos posteriormente a partir de hipóteses

sobre um material empírico. Pois quando o material empírico está sendo

simplesmente coletado, os fundamentos já estão sempre “presentes”. Se as

pesquisas positivas não vêem esses fundamentos, considerando-os

evidentes, isso prova que eles não se achem à base e que não sejam

problemáticos, num sentido mais radical do que poderá ser uma tese das

ciências positivas (HEIDEGGER, 2008, p. 95).

Na rearticulação da questão, ao invés de simplesmente tomar a ideia do ente e

prepará-lo com um arcabouço conceitual próprio para atender à sua proposta,

Heidegger toma antes - parágrafo de número dez de Ser e Tempo - o cuidado de

poupar o ente da carga de características desnecessárias, prejudiciais à pesquisa,

que lhe foram incorporados pela influência da tradição no qual se desenvolveu.

Como resultado dessa preocupação, ao introduzir na filosofia o conceito Dasein,

Heidegger substitui o termo “homem” por um análogo, porém livre dos atributos

impregnados historicamente e que sistematicamente vinham impedindo a filosofia,

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enquanto ontologia, de corresponder com uma busca eficiente da compreensão do

ser (CASANOVA, 2000,p. 90).

Com o Dasein, o específico ente ser-aí, e ciente da natureza insondável do “que” do

ser, o filósofo predispõe-se, em sua proposta ontológica fundamental - enquanto

fenomenológica - a seguir o preconizado pelo contexto moderno em que surge,

propondo-se assim a investigar a possibilidade do “como” do ser. A busca pelo

sentido, o “como” do ser, faz parte da fase edificante ou construtiva da sua ontologia

fenomenológica.

Caso a questão do ser deva ser colocada explicitamente e desdobrada em

toda a sua transparência, a sua elaboração exige, de acordo com as

explicações feitas até aqui, a explicação da maneira de visualizar o ser, de

se compreender, escolher, aceder a são atitudes constitutivas do questionar

e, ao mesmo tempo, modos de ser de um determinado ente, daquele ente

que nós mesmos, os que questionam, somos. Elaborar a questão do ser

significa, portanto, tornar transparente um ente – que questiona – em seu

ser. Como modo de ser de um ente, o questionar desta questão se acha

essencialmente determinado pelo que nela se questiona – pelo ser.

Designamos com o termo Dasein esse ente que cada um de nós mesmos

sempre somos e que, entre outras coisas, possui em seu ser a possibilidade

de questionar. A colocação explícita e transparente da questão sobre o

sentido do ser requer uma explicação prévia e adequada de um ente

(Dasein) no tocante a seu ser (HEIDEGGER, 2008, p. 42).

O Dasein então é estruturalmente fundamental dentro da proposta ontológica do

autor, pois somente com este ente especial e através dele, dado sua natureza

ôntica, é possível o processo da construção da nova ontologia de cunho

fenomenológico.

A análise do Dasein é, enquanto preparatória, determinante de toda

construção fenomenológica da ontologia. O ser não é nada fora da

compreensão do ser. O ser não é senão no Dasein. E, consequentemente,

a constituição ontológica do Dasein – constituição essa que tem, enquanto

determinante do ente que é Dasein, uma dimensão ôntica – determina o

próprio ser na sua intrínseca constituição. Assim, embora a análise

publicada em Sein und Zeit possa ser considerada, para questões de

natureza ôntica, incompleta e insuficiente, ela não pode deixar de ser, para

a elaboração da ontologia fenomenológica, vinculante e paradigmática. E se

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o método fenomenológico da ontologia fundamental se espraia por dois

momentos essenciais – uma construção fenomenológica e uma destruição

fenomenológica - momentos esses que mutuamente se pertencem, tal quer

dizer que a análise preparatória do Dasein deve fundamentar não apenas a

elaboração construtiva da ontologia fundamental, mas também a sua

elaboração destrutiva. Por outras palavras, se a construção fenomenológica

consiste numa cabeça de Janus, arrastando sempre atrás de si o rosto

inevitável da destruição, é nessa mesma construção fenomenologica, e na

análise preparatória do Dasein que a possibilita, que se torna possível a

Heidegger fundamentar a destruição fenomenológica que a construção

necessariamente encerra (SÁ, 2008, p. 8).

Estabelecendo esta terminologia, Dasein, Heidegger livra-se da expressão “homem”.

A terminologia não é arbitrária, sua intenção com isso é dividir as propriedades do

conceito comum da palavra para com o novo termo possibilitar a apreensão de uma

gama de elementos fenomenologicamente demonstráveis. Por exemplo: enquanto

Kant coloca como características definidoras e inerentes da ideia de homem

propriedades como liberdade e dignidade que inerentemente pressupõe

espontaneidade da natureza humana, Heidegger oferece primordialmente uma

interpretação na qual o homem aparece como um conglomerado de possibilidades

de ser (ARENDT, 1993, p. 29). Assim, o ser procurado e interrogado pelo Dasein é o

seu próprio ser:

O ente que temos a tarefa de analisar somos nós mesmos. O ser deste ente

é sempre e cada vez meu. Em seu ser isto, isto é, sendo, este ente se

relaciona com o seu ser. Como um ente deste ser, o ser-aí se entrega à

responsabilidade de assumir seu próprio ser. Ser é o que neste ente esta

sempre em jogo (HEIDEGGER, 2008, p. 85).

O Dasein, o ser-aí, é o fenômeno analisado da existência humana manifesta em

cada um de nós. Dasein é o homem enquanto presente temporal e espacialmente

no mundo. Na continuação do trecho citado acima, Heidegger deixa bem claro a

influência de Heráclito em sua definição de homem, pois o ente analisável do

homem, uma vez realizando-se no tempo, é devir.

O elemento “temporalidade”, fundamental na filosofia de Ser e Tempo, constitui este

“ser”, objeto da ontologia, que acontece no tempo - quando procurado através do

ente temporalmente finito - pois, nas palavras do autor: “A essência deste ente está

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em ter de ser” (HEIDEGGER, 2008, p. 85), ainda “A essência do ser-aí está em sua

existência” (HEIDEGGER, 2008, p. 85).

Uma vez associados estes dois conceitos - ser-aí e temporalidade - entre si,

postula-se que Dasein é temporalidade. Podemos dizer que o ser-aí é um ser-sendo.

O autor chama nossa atenção, entretanto, para termos cuidado em não tomar as

qualidades desse ser-sendo como propriedades simplesmente dadas para um ser

igualmente, e simplesmente também, dado - pedra, boi (HEIDEGGER, 2008, p. 85).

Consequentemente, este não ser simplesmente dado, constitui uma propriedade do

Dasein de ser ele sempre um modo possível de ser e somente isso. Essa

possibilidade de ser é o que nos torna o que somos. Somos possibilidades de ser.

Fundamental também o conceito de possibilidade, pois o Dasein é possibilidade

enquanto sendo existencialmente (HEIDEGGER, 2008, p. 87).

Enquanto vivos estamos abertos as diversas possibilidades de ser, porém, temporal

que somos, estamos vinculados a um fim, isto é, a morte. O Dasein é livre para ser,

no entanto ele tem a sua estrutura existencial determinada à finitude da morte.

Ciente disso, o Dasein, sabe-se como ser-para-a-morte. Dentro da ontologia

fundamental heideggeriana em Ser e Tempo, a morte é o horizonte da finitude que

faz com que o Dasein volte-se para a tarefa de questionar sua existência

(HEIDEGGER, 2008, p. 320).

Da mesma forma que o ser-aí, enquanto é, constantemente já é o seu

ainda-não, ele também já é sempre o seu fim. O findar implicado na morte

não significa o ser e estar-no-fim do ser-aí, mas o seu ser-para-o-fim. A

morte é um modo de ser que o ser-aí assume no momento em que é. “Para

morrer basta estar vivo” (HEIDEGGER, 2008, p. 320).

Dessa forma, o Dasein é o homem como fenômeno existencial humano. Vimos que

Heidegger não faz psicologia nem antropologia muito menos biologia (HEIDEGGER,

2008, p. 89), sua preocupação filosófica é retomar o questionamento ontológico do

ser do homem, que remonta o pensamento pré-socrático, em que o particular, o

individual, expressa o ser em sua totalidade. Vimos, que sua crítica aos

desdobramentos que a filosofia desenvolvera até sua época estava exatamente

nesse relegar do problema do ser para um segundo plano, deixando às teorias de

conhecimento o foco de atenção.

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Com o Dasein, Heidegger retomou e reconstruiu a antiga simbiose entre ser e

pensamento, entre essência e existência, existente na filosofia antiga, entre o ser

existente e o quê do ser existente concebível pela razão (ARENDT, 1993, p. 29).

Nesse ser essência e existência são imediatamente idênticos. Sua essência é sua

existência. Em sua filosofia a substância do homem que importa não é um espírito,

mas sim a existência analisável (ARENDT, 1993, p. 29). Quando falamos de

“homem”, então não nos interessamos pelo quê e sim pelo quem:

Em meio às ruínas da antiga harmonia pré-estabelecida entre Ser e

pensamento, entre essência e existência, entre o ser existente e o Quê do

ser existente concebível pela razão, Heidegger afirma que ele encontrou um

ser no qual essência e existência são imediatamente idênticos e este ser é o

Homem. Sua essência é sua existência. “A substância do Homem não é o

espírito ... mas a Existenz.” O homem não tem substância, o importante a

seu respeito é isto que ele é; não se pode perguntar pelo Quê do Homem

como se pergunta pelo Quê de uma coisa, mas apenas pelo seu Quem. O

Homem como identidade de Existenz e essência pareceu ter fornecido uma

nova chave para a questão relativa ao Ser em geral. Basta apenas recordar

que para a metafísica tradicional Deus era o ser em quem essência e

existência coincidiam, em quem pensamento e ação eram idênticos e que

por isso era interpretado como o fundamento em um outro mundo para todo

o Ser deste mundo (ARENDT, 1993, p. 29).

Segundo o pensamento metafísico tradicional, o único ser em que essência e

existência coincidiam era Deus. A partir de Ser e Tempo, podemos pensar que

enquanto Deus por sua natureza, fundamentado num plano transcendente, se faz

soberano Senhor dos seres em geral, o homem, como Dasein, como sendo, realiza-

se existencialmente sem o plano absoluto do divino. Deus é Senhor de tudo porque

sendo atemporal sempre é, já o Dasein - existência temporal que é - se constrói no

devir existencialmente na esfera da finitude. Em sua realização, o Dasein traz

consigo, diferentemente de todos os demais entes, a possibilidade de questionar

sobre seu ser (HEIDEGGER, 2008, p. 260).

Para existir entretanto a possibilidade de um ente questionador da existência ou do

significado de um ser do qual ele, ente, faz parte, se origina ou simplesmente é, não

se teria que supor, a priori, a já existência desse ser possibilitador desse ente que

questiona? Na recolocação da questão, Heidegger apresenta a possibilidade de se

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cair num “círculo vicioso” ao se utilizar uma metodologia que primeiramente tem que

determinar o ente em seu ser para então, a partir daí, querer aprofundar

propriamente a questão do ser. “Para se elaborar a questão, não se está já

pressupondo aquilo que só a resposta à questão poderá proporcionar?”

(HEIDEGGER, 2008, p. 43).

Seria possível fazer uma ontologia, partindo do ente que supostamente é uma

manifestação imanente do ser, o qual questiona a possibilidade? Heidegger diz que

sim, que “não há nenhum círculo vicioso no questionamento da questão. O ente

pode vir a ser determinado em seu ser sem que, para isso, seja necessário já dispor

de um conceito explícito sobre o sentido do ser” (HEIDEGGER, 2008, p. 43).

Ele fundamenta seu pensamento dizendo que se a retomada da questão da

ontologia a partir do ente não fosse viável, não seria sequer possível buscar a

compreensão do ser e consequentemente não se teria até hoje nenhum

conhecimento ontológico, o que significaria que, de certa forma, não estaríamos nem

sequer pensando nisso agora.

“Pressupor” ser possui o caráter de uma visualização preliminar de ser, de

tal maneira que, partindo dessa visualização, o ente previamente dado se

articule antecipadamente em seu ser. Essa visualização de ser, orientadora

do questionamento, nasce da compreensão mediana de ser em que nos

movemos desde sempre e que, em última instância, pertence à própria

constituição essencial do Dasein (ser-aí) (HEIDEGGER, 2008, p. 43).

Heidegger, dessa forma, lançando mão então da fenomenologia herdada de seu

mestre Husserl – veremos que ele fará adaptações profundas, dando ao método

fenomenológico husserliano uma nova leitura e forma de aplicação - e do conceito

de Dasein - o ente e sua compreensão mediana, dada no mundo, de ser - recoloca a

questão sobre o ser propondo uma investigação ontológica fundamentada em

pressupostos passíveis da apreensão dentro da estrutura cognitiva preconizada

pelas teorias do conhecimento. Essa é a característica de sua proposta que a leva a

ser tomada como uma nova ontologia, enquanto fenomenológica.

As investigações que seguem tornaram-se possíveis apenas sobre o solo

estabelecido por Edmund Husserl, cujas Investigações Lógicas fizeram

nascer a fenomenologia. As explicitações do conceito preliminar de

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fenomenologia demonstraram que o que ela possui de essencial não é ser

uma “corrente” filosófica real. Mais elevada do que a realidade está a

possibilidade. A compreensão da fenomenologia depende unicamente de se

apreendê-la como possibilidade (HEIDEGGER, 2008, p. 78).

Para compreender essa nova ontologia, a recolocação do questionamento,

compreender também, consequentemente, a existencialidade do Dasein no mundo

fático - quando ele, ser-aí, vivendo em contato com os demais entes na

temporalidade, se torna (como veremos), o impessoal das-Man, o ente assumindo-

se no outro que não é ninguém – e, finalmente, compreender a formulação da

proposta ontológica fundamental de Ser e Tempo no todo, é necessário conhecer os

fundamentos e os pressupostos fenomenológicos herdados pelo autor e a sua

própria concepção de método elaborada a partir dessa herança.

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1.4 O método fenomenológico

A demanda pelo tipo de conhecimento privilegiado na Modernidade, fez com os

pesquisadores deste momento buscassem métodos que, pautados na

sistematização da racionalidade, demonstrassem a correção fundamental das

doutrinas filosóficas em geral, como também das doutrinas religiosas, morais,

políticas e científicas.

Esse comportamento foi o natural desdobramento do modo de se fazer e encarar o

conhecimento num contexto que era oriundo da tradição que remontava a

valorização do homem dada na Renascença e da metodologia iluminista, que

colocava muitos aspectos da realidade - ao menos no mundo acadêmico – sob a

égide da razão, partindo do princípio que este tipo de leitura da possibilidade do

conhecimento fiava-se nas capacidades racionais do ser humano (ONATE, 2000, p.

25-26).

A fenomenologia, por sua vez, sinteticamente, é a descrição daquilo que aparece ou

a ciência que tem como meta ou projeto a descrição do fenômeno que se manifesta

(ABAGGNANO, 2000, p. 437).

A probabilidade histórica é que este termo tenha sido empregado inicialmente no

mundo acadêmico pela influência do filósofo alemão Christian Wolff no início do

século XVIII, cuja aplicação na esfera dos estudos jurídicos tornava clara a – como

vimos natural na época - pretensão do termo.

Em jus naturae, é exatamente a filosofia jurídica do absolutismo esclarecido

que está presente; o Príncipe, segundo Wolff, deve reconhecer uma moral e

um direito fundados na razão, fora dos poderes temporais. E cabe à

psicologia (de que Wolff é um dos iniciadores) a tarefa de explicar as

necessidades do homem e de definir seus direitos imprescindíveis. Sobre

esses alicerces, Wolff tenta construir cientificamente o direito positivo,

aplicando a esse domínio particular o rigor lógico que Kant e Hegel tanto

admiraram em sua obra (HUISMAN, 2002, p.438).

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Historicamente, até este momento primordialmente, a fenomenologia era tomada

como a prática da apreensão da aparência ilusória do fenômeno. Kant – que, como

vimos, conhecia essa leitura do fenômeno - vem na obra “Primeiros Princípios

Metafísicos da Ciência da Natureza” de 1786, a utilizar o termo para indicar a seção

na esfera da teoria do movimento que considera o movimento ou o repouso da

matéria somente em relação com as modalidades em que eles aparecem ao sentido

externo da consciência do sujeito (ABAGGNANO, 2000, p. 438). Kant, em seu

entendimento de transcendentalidade, por exemplo, parte do pressuposto que a

filosofia não se dedica a desenvolver um conhecimento novo - nem velho - do

mundo, mas sim, propriamente, a explicar em que consiste “ver” o mundo (LEYTE,

2005, p. 28).

Certamente o eu cartesiano, como coisa aparte, inaugura a compreensão

segundo a qual a consciência se encontra no princípio, tanto do conhecimento

como da ação, porém não deixa de ser uma consciência limitada. De fato, toda

a história da modernidade filosófica se pode ler como o desenvolvimento ou a

história dessa consciência que, paradoxalmente, chega em uma de sua

culminações ao Idealismo alemão, que entende a consciência como sendo -

antes que uma substância - precisamente sua própria história , seu

desdobramento. Em efeito, a consciência , que após a crítica Kantiana perdeu

seu caráter de coisa para supor-se como o que se encontra mais além de todas

as coisas, porém, precisamente por isso, constituindo-as, não é nenhuma

coisa, nenhuma substância, senão seu próprio movimento, o qual, como em

uma odisséia, a conduz desde seu ser imediato e natural (no qual é

simplesmente consciência, sem sabê-lo), para provar-se fora dela mesma,

alienadamente, na natureza e mesclada com as coisas, para logo regressar

triunfalmente a “si mesma”, a casa, já constituída absolutamente depois de sua

viagem e graças a ela (LEYTE, 2005, p. 30).

Hegel, por sua vez, fundamentou sua ideia da consciência “Universal” ou “Infinita”

em sua história romanceada da consciência: “Fenomenologia do Espírito” de 1807,

onde narra as experiências que na apreensão das primeiras aparências sensíveis a

consciência consegue ver a si própria em sua verdadeira natureza. Neste sentido a

fenomenologia hegeliana é a identificação da consciência com o “devir da ciência ou

do saber”, onde através da fenomenologia o indivíduo repercorreria, movendo-se,

relendo, os graus de formação do tal “Espírito Universal” (ABAGGNANO, 2000, p.

438).

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Esse é o movimento da consciência que o Idealismo, sobretudo com Hegel,

reconheceu como absoluto, fazendo valer o princípio de que a consciência

supõe o todo, pois contém e agrega toda a realidade, que deixaria de ser

fora desse movimento. Essa consciência absoluta, também chamada

“espírito”, que não consiste em algo senão em seu próprio movimento, é

uma compreensão de consciência como figura absolutamente consciente e

racional. E, nesta racionalidade, depois da odisséia do espírito, a

consciência se reconcilia coma realidade e com as demais consciências em

uma espécie de razão universal segundo a qual tudo - a natureza, como

também a história – se modela e se compreende (LEYTE, 2005, p. 30).

Entre 1859 e 1860 em suas “Preleções sobre Metafísica e Lógica” o escocês Willian

Hamilton deu outro rumo de interpretação ao termo. Tomando-o mais positivamente

como um processo psicológico de descrição – precisamente, “psicologia descritiva” –

e foi essa interpretação de fenomenologia, como a pura descrição da aparência

psíquica, anterior a explicação dos fatos psíquicos, que viria a tornar-se comum na

cultura filosófica alemã da segunda metade do século XIX e nos primeiros anos do

século XX. Essa interpretação viria a influenciar e levar o mestre de Heidegger,

Husserl, a desenvolver a base metodológica da ontologia aqui estudada.

A concepção que Husserl começaria a desenvolver sobre a fenomenologia em suas

“Investigações Lógicas” de 1900 e 1901 - a partir da interpretação de Hamilton -

tornar-se-ia a leitura comum e usual do termo até os nossos dias (GALEFFI, 2000, p.

15). Segundo o próprio Husserl, “fenomenologia é um método de crítica do

conhecimento universal das essências”, método que seria a própria ciência da

essência do conhecimento, ou uma doutrina universal das essências (HUSSERL,

1990, p. 22). Assim, para ele, sendo a fenomenologia um método de crítica do

conhecimento universal das essências, ela teria então por meta a constituição da

ciência da essência do conhecimento.

A busca da compreensão da fenomenologia husserliana leva inevitavelmente ao

questionar sobre o sentido de uma “crítica da razão fenomenológica”, ou seja, como

se daria uma crítica do conhecimento a priori, transcendentalmente puro. Surge

então a questão: qual a diferença entre a fenomenologia de Husserl e a filosofia

transcendental kantiana?

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A “Ideia da Fenomenologia” apresenta as principais teses que deram início à fase

transcendental da filosofia de Husserl, precisamente as concernentes ao método

fenomenológico. Nela Husserl apresenta os fundamentos da sua crítica da razão aos

modos kantianos, o que de pronto já impede a identificação de diferenças essências

entre os dois fenomenólogos, principalmente no que diz ao fundamental ponto da

ideia da constituição do conhecimento crítico, puro, a priori (GALEFFI, 2000, p. 16).

A partir de 1907, Husserl começa a distanciar-se de Hamilton, assumindo então uma

nova leitura gnosiológica da interpretação psicológica descritiva da fenomenologia,

interpretação essa referente à simples esfera das vivências do “eu” que vive

relacionado empiricamente às objetividades manifestas da natureza. Importava

agora distinguir as formas de fenomenologia empírica e transcendental.

Heidegger é um tardio herdeiro dessa concepção que por diversos e até

diferentes caminhos (os caminhos que separam Marx e Nietzsche, por

exemplo, de Dilthey) chega até 1900, quando Husserl reelabora a

concepção de consciência moderna produzindo a que em certo modo bem

pode ser considerada sua figura culminante, a qual ele chamou “ego

transcendental” (LEYTE, 2005, p. 30).

A passagem da fenomenologia empírica para a fenomenologia transcendental marca

a nova posição de Husserl em relação as suas “Investigações Lógicas”. Num

manuscrito de 1907 ele apresenta o porquê da mudança, dizendo que “As

Investigações Lógicas” fariam passar a fenomenologia por psicologia descritiva

(embora fosse nelas determinante o interesse teórico-cognoscitivo). Era, porém, de

fundamental importância distinguir essa psicologia descritiva, entendida como

fenomenologia empírica, da fenomenologia transcendental. Para ele, o que nas

“Investigações Lógicas” designava-se como fenomenologia psicológica descritiva

seria o referente à simples esfera das vivências, conforme o seu conteúdo incluso.

As vivências então, seriam vivências do eu que vive, e dessa forma condizeriam

empiricamente às objetividades da natureza. Mas para uma fenomenologia poder

ser gnosiológica, e para poder ser tomada como uma doutrina da essência do

conhecimento (a priori), ela deveria estar desligada da referência empírica. Com

essa conclusão, desenvolveria então efetivamente sua fenomenologia

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transcendental que até então figurava em um papel introdutório nas “Investigações

Lógicas” (HUSSERL, 1990, p. 13).

Nessa nova fenomenologia transcendental não lidar-se-ia com uma ontologia

apriórica, nem com lógica formal e matemática formal, nem com geometria como

doutrina apriórica do espaço, nem com cromometria e foronomia apriórica, nem com

ontologia real apriórica de qualquer espécie coisa, mudança, etc. (GALEFFI, 2000, p.

17). A fenomenologia transcendental seria a fenomenologia da consciência

constituinte, portanto não lhe caberia um único axioma objetivo (referentes a objetos

que não são consciência).

O interesse gnosiológico, transcendental, não se dirige ao ser objetivo e ao

estabelecimento de verdades para o ser objetivo, nem, por conseguinte,

para a ciência objetiva. O elemento objetivo pertence justamente às ciências

objetivas, e é afazer delas e exclusivamente delas apenas alcançar o que

aqui falta em perfeição à ciência objetiva. O interesse transcendental, o

interesse da fenomenologia transcendental dirige-se para a consciência,

enquanto consciência vai somente para os fenômenos, fenômenos em

duplo sentido: 1) no sentido da aparência (Erscheinung) em que a

objetividade aparece; 2) por outro lado, no sentido da objetividade

(Objektität) tão só considerada, enquanto justamente aparece nas

aparências e, claro está, transcendentalmente, na desconexão de todas as

posições empíricas... Dilucidar estes nexos entre verdadeiro ser e conhecer

e, deste modo, investigar em geral as correlações entre acto, significação e

objeto, é a tarefa da fenomenologia transcendental (ou da filosofia

Transcendental) (HUSSERL, 1990, p. 14).

A fenomenologia acima apresentada - a qual, mais à frente, Heidegger iria reler - é

uma gnosiologia da consciência, enquanto consciência; é uma filosofia

transcendental como crítica da razão, enquanto fenômeno da consciência

constituinte (GALEFFI, 2000, p. 18).

Assim, desde 1907, a fenomenologia de Husserl já se mostra nos moldes de um

idealismo transcendental, evidência que se tornará fato em 1913 da publicação das

“Ideias para uma Fenomenologia e uma Filosofia Fenomenológicas Puras”

(GALEFFI, 2000, p. 18).

Diante da “crise da razão gnosiológica” do seu tempo, que vinha solapando

qualquer pretensão de se dar seguimento a uma ciência da “constituição” do

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conhecimento puro (a priori), Husserl restaura a atitude transcendental

como “retorno às coisa mesmas”, provocando, assim, profundas mudanças

no horizonte teórico do fazer filosófico do século XX. Reclamando,

renovadamente, uma nova tarefa para a Filosofia do Sujeito, precisamente

aquela capaz de superar o amadorismo empírico ou o transcendentalismo

ingênuo (ou realista) das épocas anteriores, Husserl projeta para a Filosofia

a possibilidade de desfazer-se dos “tormentos da obscuridade”, e isto

através do método fenomenológico (ou redução fenomenológica) levado às

suas extremas consequências, a saber: o retorno à consciência (GALEFFI,

2000, p. 19)

Para Husserl, esse estratégico conceito, “redução fenomenológica”, proporcionaria o

acesso ao “modo de consideração transcendental”. Em outras palavras, permitiria

um “retorno à consciência”. Através da redução fenomenológica, os objetos se

revelariam em sua constituição.

Na redução fenomenológica, retornando à consciência, os objetos apareceriam na

sua constituição como correlatos dessa consciência. Esse retorno permitiria, então, o

assimilar do ser na consciência, ou, em outras palavras, permitiria que o ser do ente

- ente apreensível, observável, manifesto – nesse movimento de retorno, tornasse-

se consciência. Essa ideia de retorno à consciência - “às coisas elas mesmas” -

constitui o fundamento da fenomenologia husserliana (GALEFFI, 2000, p. 19).

As diferenças identificáveis entre essa sua nova proposta fenomenológica

transcendental, daquela preconizada pela fenomenologia psicológica descritiva, que

tanto o influenciara no começo de seus estudos, devem ser ressaltadas:

O próprio Husserl preocupou-se em eliminar a confusão entre psicologia e

fenomenologia. Esclareceu que psicologia é a ciência de dados de fato; os

fenômenos que ela considera são acontecimentos reais que, juntamente

com os sujeitos a que pertencem, inserem-se no mundo espácio-temporal.

A Fenomenologia (que ele chama de “pura” ou “transcendental”) é uma

ciência de essências (portanto, “eidética”) e não de dados e fato,

possibilitada apenas pela redução eidética, cuja tarefa é expurgar os

fenômenos psicológicos de suas características reais ou empíricas e levá-

los para o plano da generalidade essencial. A redução eidética, vale dizer, a

transformação dos fenômenos em essências, também é redução

fenomenológica em sentido estrito, porque transforma esses fenômenos em

irrealidades (Investigações Lógicas, I, Intr.). Com esse significado a

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Fenomenologia constitui uma corrente filosófica particular, que pratica a

filosofia como investigação fenomenológica, ou seja, valendo-se da redução

fenomenológica e da epoché8 (ABAGGNANO, 2000, p. 438)

A redução fenomenológica, ou método fenomenológico, é o “ato” da consciência de

voltar-se “às próprias coisas”. Dessa forma, seria um caminho para se alcançar

filosoficamente a essência universal do conhecimento absoluto. Lembremos que

para Husserl: “fenomenologia é um método de crítica do conhecimento universal das

essências, método que seria a própria ciência da essência do conhecimento, ou uma

doutrina universal das essências”. E como vimos, neste processo a “atitude natural”

(psicológica, Wolff, Hamilton) é posta em questão, o que significa o exercício crítico

do próprio conhecimento (GALEFFI, 2000, p. 20).

Esta figura (o “ego transcendental”) é a que mais nos interessa se queremos

descobrir o alcance heideggeriano de um pensar fora da consciência, que

se ganha por meio de Husserl,embora diretamente contra ele. Com efeito,

Husserl entendeu por consciência o que ele chamou, recuperando certa

tradição medieval, “intencionalidade”, que define a estrutura da consciência,

em outras palavras, que define a consciência como uma estrutura em se

encontra inextricavelmente vinculados à consciência que pensa algo e

aquele pensado pela consciência (LEYTE, 2005, p. 31).

Temos então outro termo de especial importância dentro da filosofia husserliana, a

questão da “intencionalidade”. O que a fenomenologia de Husserl faz é estruturar a

construção de uma nova compreensão - mais precisa - dos “atos intencionais” que

constituem a consciência, de modo que se possa a vir edificar um conhecimento,

8 Suspensão do juízo, que caracteriza a atitude dos céticos antigos, particularmente de

Pirro; consiste em não aceitar nem refutar, em não afirmar nem negar. O contrário dessa atitude é o

dogmatismo, em que se dá assentimento a alguma coisa obscura, que constitui objeto de pesquisa

científica. Segundo o ceticismo, essa atitude era a única possível para se atingir a imperturbabilidade.

Na filosofia contemporânea, com Husserl e a filosofia fenomenológica em geral, a Epoché tem

finalidade diferente: a contemplação desinteressada, ou seja, uma atitude desvinculada de qualquer

interesse natural ou psicológico na existência das coisas do mundo ou do próprio mundo na sua

totalidade. Com a Epoché, diz Husserl, “pomos fora de ação a tese geral própria da atitude natural e

pomos entre parênteses tudo o que ela compreende; por isso, a totalidade do mundo natural que está

sempre “aqui para nós”, “ao alcance da mão” e que continuará a permanecer como “realidade” para a

consciência, ainda que nos agrade colocá-la entre parênteses. Fazendo isso, como é de minha plena

liberdade fazê-lo, não nego o mundo, como se fosse um sofista, não ponho em dúvida o seu existir,

como se fosse um cético, mas exerço a Epoché fenomenológica, que me veta absolutamente

qualquer juízo sobre o existente espácio-temporal” (ABAGGNANO, 2003, p. 339).

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filosófico (enquanto não simplesmente natural) independente do conhecimento

produzido pelas ciências da natureza.

A fenomenologia husserliana assim, enquanto exercício da intencionalidade da

consciência, é um projeto transcendental capaz de validar uma autêntica ciência

filosófica, ciência que tem por ocupação a crítica da própria consciência, e que tem

como objetivo esclarecer sistematicamente, e cada vez mais eficientemente, a

própria consciência dos objetos na sua constituição fenomenal.

Deste modo, ao provocar o retorno radical à consciência pura, a redução

fenomenológica institui a suspeição de todos os dados da consciência

empírica (consciência psicológica, existencial, ôntica), e isto de tal forma

que a própria consciência supera a sua identificação com o conhecimento

natural, mostrando-se como consciência das coisas, de fatos, de ideações,

de afetos, etc., podendo, assim, ser rigorosamente investigada na sua

constituição, ou melhor, no modo como constitui os objetos e é constituída

por eles, segundo uma indissolúvel relação dialética (GALEFFI, 2000, p.

21).

O conhecimento filosófico mostra-se como a dúvida sistemática do conhecimento

natural. É o conhecimento que põe em dúvida o seu próprio modo de conhecer.

“Portanto, um conhecimento capaz de duvidar de si mesmo e de tornar-se o lugar de

alcance das formas a priori da sua constituição, através da “suspensão” de todos os

dados empíricos que, então, se mostram fenômenos da consciência, mas não a

própria consciência” (GALEFFI, 2000, p. 21). E é através da “redução

fenomenológica” que se retorna à própria consciência, que se mostra consciência de

objetos constituídos no próprio ato cognoscente.

Clarifica-se o motivo de comumente tomar-se na fenomenologia husserliana, o

retorno à consciência como o retorno “às próprias coisas”. O ato intencional do

retorno é o que vem a viabilizar a edificação da tal “ciência da essência do

conhecimento”. O conhecimento dessa forma será sempre conhecimento de

“coisas”, e será sempre um conhecer de fatos conscientemente dados.

Cabe agora compreender como Heidegger irá aplicar a fenomenologia como

método de investigação e compreensão do ser.

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2. A hermenêutica da faticidade

2.1 O método fenomenológico heideggeriano

Heidegger supunha que o conhecimento não somente deveria ser exato (racional)

como também objetivo (GRENZ, 1997, p.19). Dessa forma, podemos compreender a

sua aplicação do método fenomenológico (ou “redução fenomenológica”), como

podemos também conceber o motivo de sua premente necessidade de - haja vista o

nível das críticas à epistemologia de sua época encabeçadas por Nietzsche e

Wittgenstein (HEIDEGGER, 1979, p. 88) - radicalização da metodologia husserliana.

A fenomenologia husserliana, preocupada em sondar a constituição da essência do

conhecimento, tem em si, como qualquer epistemologia, uma preocupação com a

doutrinação e apreensão da universalidade das essências. O que o autor de Ser e

Tempo faz, uma vez de posse desse arcabouço metodológico herdado é, como

comumente dito, radicalizá-lo e levá-lo ás ultimas consequências.

Heidegger então é tomado como o radicalizador da fenomenologia de seu mestre.

Se procedente a afirmação, qual sua fundamentação? Em que sentido Heidegger

radicaliza a fenomenologia husserliana? A apresentação de seu método encontra-se

no sétimo parágrafo de Ser e Tempo, O método fenomenológico de investigação.

Para Heidegger, o método de investigação empregado em sua ontologia já estaria

evidenciado da caracterização se seu objeto alvo, a saber, o ser dos entes ou, em

outras palavras, o sentido do ser em geral (HEIDEGGER, 2008, p. 66). O autor

alerta para o perigo desse método, uma vez aplicado no sentido ontológico,

continuar com seu caráter questionável - sua crítica que já vimos aqui – uma vez que

continue recorrendo às ontologias historicamente dadas ou a tentativas similares.

“Tendo em vista que, nessa investigação, o termo ontologia é usado em sentido

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formalmente amplo, não se pode seguir o caminho da história das ontologias pra se

esclarecer o método” (HEIDEGGER, 2008, p. 66).

O filósofo diz que o termo “ontologia” não vem a designar uma determinada

disciplina filosófica entre outras, e não deve pretender vir a cumprir a tarefa de uma

disciplina como que previamente dada, mas, a partir da necessidade de resolução

da questão do ser, e do que essa tarefa exige - conquanto o modo como se

manifesta - a disciplina pode vir a ser elaborada (HEIDEGGER, 2008, p. 78).

Ontologia e fenomenologia não são duas disciplinas distintas da filosofia ao

lado de outras. Ambas caracterizam a própria filosofia em seu objeto e em

seu modo de tratar. A filosofia é uma ontologia fenomenológica e universal

que parte da hermenêutica do Dasein, o qual, enquanto analítica da

existência, amarra o fio de todo questionamento filosófico no lugar de onde

ele brota e para onde retorna (HEIDEGGER, 2008, p. 78).

A fenomenologia a ser empregada em sua ontologia, no sentido e no objetivo, não

vem a ser utilizada, conforme previne, no intuito de vir a prescrever um “ponto de

vista” ou uma “corrente”. A fenomenologia significa pontualmente um conceito de

método. Não caracterizando a quidade9 dos objetos da investigação filosófica, mas

sim seu modo, o como deles.

Heidegger mostra que quanto mais autenticamente se operar um conceito de

método, como também, quanto mais abrangentemente se determinar o movimento

dos princípios de determinada ciência, maior a originariedade em que esse método

virá a se radicar numa discussão com “as coisas mesmas” e mais se afastará de seu

caráter técnico comum nas disciplinas teóricas (HEIDEGGER, 2008, p. 66).

Exposta essa ressalva quanto ao método, ele então cita a famosa frase capital: “A

palavra fenomenologia exprime uma máxima que se pode formular na expressão:

“para as coisas elas mesmas” (HEIDEGGER, 2008, pp. 66-67), frase com a qual ele

pretende erradicar qualquer possibilidade de cair em “construções soltas no ar, às

descobertas acidentais, à admissão de conceitos só aparentemente verificados,

9 Termo introduzido pelas traduções latinas do século XII (do árabe) a partir das obras

de Aristóteles; corresponde à expressão aristotélica quod quid erat esse. O termo significa essência

necessária (substancial) ou substância (ABBAGNANO, 2000, p. 820).

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ainda, às pseudoquestões que muitas vezes se apresentam como problemas ao

longo do tempo.”

A suposta “evidência” da temática da fenomenologia ele então detalha, atentando à

importância e atenção que a questão pede:

O termo tem dois componentes: fenômeno e logos; ambos remontam a

étimos gregos. Exteriormente, o termo fenomenologia corresponde, no que

respeita a sua formação, à teo-logia, bio-logia, sócio-logia, termos

traduzidos por ciência de Deus, da vida, da sociedade. Fenomenologia

seria, portanto, a ciência dos fenômenos. Vamos expor uma concepção

preliminar da fenomenologia de duas maneiras: primeiro, caracterizando o

que designam os dois componentes do termo, a saber, “fenômeno” e “logos”

e, segundo, fixando o sentido da expressão, resultante de sua composição.

A história da palavra, que apareceu segundo se presume na Escola de

Wolff, não tem aqui importância10

(HEIDEGGER, 2008, p. 67).

Heidegger articula a continuação de sua exposição do método pontuando-o em três

momentos: no primeiro discorre, como proposto na citação acima, sobre o conceito

de “fenômeno”, em seguida aborda o “logos”, para, finalmente sintetizar o “conceito

preliminar de fenomenologia” (HEIDEGGER, 2008, p. 67).

Fazendo a análise filológica de “fenômeno”, Heidegger diz que a expressão remonta

do grego phainómenon sendo traduzido pelo termo “mostrar-se”, e assim, fenômeno

diz respeito ao que se mostra, se revela. Ainda, do grego phainomenai, um verbo, o

termo comporta a interpretação “trazer para a luz do dia”, “pôr no claro”, “claridade”,

ou seja, o termo representaria o elemento, o meio, em que alguma coisa pode vir a

se revelar e se tornar visível em si mesma (HEIDEGGER, 2008, p. 67).

Deve-se manter, portanto, como significado da expressão “fenômeno” o que

se revela, o que se mostra em si mesmo. (...), “os fenômenos”, constituem,

pois, a totalidade do que está à luz do dia ou se pode pôr à luz, o que os

gregos identificavam, algumas vezes, simplesmente com “os entes”, a

totalidade de tudo que é (HEIDEGGER, 2008, p. 67).

10

Christian Wolff, conforme vimos na seção anterior, e o desdobramento psicológico

descritivo de Willian Hamilton.

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Este ente que “se mostra”, entretanto, pode vir a mostrar-se de vária maneiras,

segundo sua via e modo de acesso. Heidegger postula que há até a possibilidade do

ente mostrar-se como aquilo que, em si mesmo, ele não é (HEIDEGGER, 2008, p.

67). “Aparência”, é esse o termo usado pelo autor para definir quando o ente “se faz

ver assim como” - mais à frente, quando viermos a estudar o das-Man, o ente no

mundo, perceberemos a importância desta possibilidade de interpretação – “Em

grego, a expressão que origina a tradução “fenômeno” possui também o significado

do que “se faz ver assim como”, da “aparência”, do que “parece e aparece”; designa

um bem, que se deixa e faz ver como se fosse um bem, mas que “na realidade” não

é assim como se dá e apresenta” (HEIDEGGER, 2008, p. 68). Importante ter claro

que a compreensão posterior de fenômeno dependerá da visão de como ambos os

significados de fenômeno – fenômeno como o que se mostra, e fenômeno como

aparecer, parecer e aparência – se relacionam em sua estrutura (HEIDEGGER,

2008, p. 68).

Heidegger, terminologicamente, reserva a palavra fenômeno para designar o

significado “positivo” da ideia do “mostrar-se” do original grego, em detrimento da

segunda interpretação que diz respeito a “aparecer”, “parecer” e “aparência”,

entendidos como modificações privativas do termo. Dessa forma, fenômeno, oriundo

do grego phainómenon, significaria “aquilo que aparece”, derivando respectivamente

do verbo phainomenai: “eu apareço” (GALEFFI, 2000, p. 21).

Heidegger segue problematizando a questão da interpretação, apontando para

cuidados terminológicos que devem ser tomados, principalmente - citando Kant - no

que diz respeito a outra possível interpretação de fenômeno como “manifestação”.

Importante o caráter e o sentido da correlação da ideia do “empírico” feita por ele,

uma vez sendo - e se dando - dessa forma, espaço temporalmente, o Dasein:

Se, nesta apreensão do conceito de fenômeno, ficar indeterminado que ente

está sendo chamado de fenômeno e se ficar em aberto se o que se mostra

é um ente ou um caráter ontológico de um ente, então ter-se-á penas um

conceito formal de fenômeno. Mas, se por aquilo que se mostra,

compreende-se o ente, que no sentido de Kant se torna acessível na

intuição empírica, então consegue-se usar devidamente o conceito formal

de fenômeno. Neste uso, o fenômeno satisfaz o conceito vulgar de

fenômeno. O conceito vulgar, porém, não é o conceito fenomenológico de

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fenômeno. Dentro da problemática de Kant, o que, fenomenologicamente,

se entende por fenômeno, pode-se elucidar, com ressalva das demais

diferenças, através das seguintes palavras: o que já sempre se mostra nas

manifestações, no sentido vulgar, de maneira prévia e concomitante,

embora não temática, pode mostrar-se tematicamente. E o que assim se

mostra em si mesmo (“formas de intuição”) são fenômenos da

fenomenologia. Pois é evidente que, se Kant, ao afirmar que o espaço é

continente a priori de uma ordem, pretende fazer uma afirmação

transcendental fundamentada, espaço e tempo devem poder mostrar-se

assim, ou seja devem poder tornar-se fenômenos (HEIDEGGER, 2008, p.

67).

Em seu caráter duplo - retomando o preconizado por Husserl - a ideia de fenômeno,

apesar de designar comumente o que aparece, é usada preferencialmente para

designar o próprio aparecer, ou seja, como vimos, o fenômeno da consciência

(subjetivo, psicologicamente falando).

O fenômeno trata-se portanto, de uma relação interdependente entre o aparecer e o

que aparece, entre o sujeito do conhecimento e o mundo conhecido, entre a

consciência que conhece e o mundo ou objeto que aparece ou se mostra

cognoscível (GALEFFI, 2000, p. 25).

Heidegger finaliza a apresentação de seu método ressaltando que faz-se mister

compreender o fenômeno tanto em seu sentido formal, filosófico, como de seu

sentido vulgar, do conhecimento natural – atentando sempre cautelosamente para

sua característica “empírica” - pois essa relação de sentidos é o pressuposto para a

compreensão do conceito fenomenológico de fenômeno.

“Logos” em sua filosofia será tomado e interpretado na sua função primária de “fala

apofântica” (HEIDEGGER, 2008, p. 74). Esse termo, exposto dessa forma, remonta

a Aristóteles, no sentido de se tomar um enunciado em seu caráter declarativo ou

revelativo. Esse tipo de enunciado, segundo Aristóteles, seria o capaz de ser tomado

como verdadeiro ou falso, sendo o único objeto da lógica, excluindo-se, dessa forma

as orações - e consequentemente, as ideias - cujo estudo pertencem à retórica ou à

poética. Esse significado, aristotélico, seria o que viria a permanecer fixo no uso

filosófico (ABAGGNANO, 2003, p. 73).

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Finalmente, Heidegger expressa com toda a clareza o caráter de “fenomenologia”

quando novamente afirma “para as coisas elas mesmas” (HEIDEGGER, 2008, p.

74).

Determinante na compreensão das diferenças estruturais das fenomenologias de

Husserl e de Heidegger é a própria concepção de “consciência” dos filósofos. A

estrutura da consciência, entendida para Husserl como “intencionalidade, a qual

pode ser tomada nos termos “a consciência é sempre consciência de algo”, e que

essencialmente significa dizer que fora desse “de algo” não há consciência, será

decisiva para Heidegger por vários motivos, dos quais se destacam dois:

primeiramente, graças a essa dupla constituição, de alguma maneira supera-se uma

divisão que arrasta a consciência moderna desde Descartes, enfrentando o sujeito

que pensa e o objeto pensado (LEYTE, 2005, p. 31). Ainda há algo mais. Em

segundo lugar, Heidegger reconhece um papel decisivo no que Husserl chamou de

“intencionalidades anônimas”, que são o suporte da consciência como um “fluxo

interior”, que pode ser compreendido como consciência de um tempo interno, a

consciência da vida tal como ela ocorre ordinariamente, que é normal na medida em

que não reparamos nem refletimos apenas vivemos (LEYTE, 2005, p. 31).

Assim, caminhar, comer, inclusive falar de determinada maneira, e em geral

quase todas as condutas que manifestamos, são abrangidas nessa forma

de “intencionalidade anônima” (LEYTE, 2005, p. 32).

Na busca de um modo de pensar fora da “consciência moderna”, Heidegger

deparou-se com a poderosa imagem de um sujeito, de um eu, que não parece viver

mais além e a parte das coisas do mundo, nos moldes cartesianos, mas sim mais

próximos a elas, antes que o mundo se constitua reflexivamente como conhecimento

e ciência (LEYTE, 2005, p. 32). A consciência intencional se aproxima mais da

realidade da vida consciente, aquela que nos encontramos normalmente. Heidegger,

porém, separa-se de Husserl por considerar também insuficiente esse seu

posicionamento.

Para Husserl, a razão está constituída de forma tal que uma análise de cada

um de seus atos de consciência poderia esclarecer qualquer de seus

conteúdos, inclusive esses mesmos que ele chamou “anônimos”. Neste

caso, o “anônimo” é apenas funcionalmente, porque ontologicamente, de

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acordo com o seu ser, o anonimato desapareceria se a razão assim

pretendesse (LEYTE, 2005, p. 32).

Heidegger vai mais além. Ele pergunta: E se na realidade ocorresse que o “anônimo”

fosse constituído da mesma consciência de modo que viesse a definir a sua própria

essência e funcionamento? O que ocorreria se a consciência, além de ser

reconhecível em sua racionalidade, que esclarece e desoculta as coisas, fosse ela

mesma também o oculto e o obscuro, fosse ela também sombra? (LEYTE, 2005, p.

32). Se atentarmos que essa “intencionalidade” Heidegger segue entendendo por

“consciência”, e que para ele consciência não é simplesmente um eu que pensa,

mas sim uma mesma estrutura em que se encontra vinculado pensamento e mundo,

chega-se a conclusão que se esse lado oculto, a sombra - de certo modo também,

de erro – é inerente ao mesmo ser da consciência, da intencionalidade (LEYTE,

2005, p. 32). O desdobramento dessa questão levantada por Heidegger será

manifesta em Ser e Tempo na indissociável vinculação entre os conceitos de

autêntico e inautêntico, e, mais à frente em seus escritos posteriores, entre o oculto

e o desoculto, ou o velado e o desvelado (LEYTE, 2005, p. 33). Neste momento, que

investigamos a questão prévia da possibilidade de se construir um pensamento fora

da consciência moderna, o mais importante é clarificar um caminho alternativo ao

legado pela tradição.

Da mesma forma que Heidegger questiona a consciência em Husserl, ele questiona

igualmente a noção de “fenômeno” de seu mestre. Se para Husserl, por cima e além

das intencionalidades anônimas, a razão pode decompor analiticamente e assimilar

todos os conteúdos da consciência – o que vem a supor o mundo – significa que a

consciência pode realmente objetivar, ou seja, está apta para analisar qualquer

pensamento, ideia e, finalmente, coisa (LEYTE, 2005, p. 33). Por esse caminho

assegura-se um meio para o fenômeno, em outras palavras, a coisa tal como ela se

apresenta a uma consciência, e a sua realização depende exclusivamente de se

atentar ao caminho. Trata-se então de uma questão de método, onde um bom

método garante uma boa análise. A fenomenologia garantiria assim a assimilação do

mundo que se lhe apresenta (LEYTE, 2005, p. 33). Para Husserl, não importa a

escolha do método, nem sorte na definição do caminho analítico ou do objeto

analisado pois, no fim das contas, a assimilação do “em si” dos objetos é impossível,

porque para ele - essencial e constitutivamente - as coisas são ocultas, e não

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simplesmente “estando” ocultas. Sendo assim, a objetivação total é impossível, e o

que é mais importante, o fenômeno, longe de ser o que supostamente se apresenta

claramente a uma consciência, é na verdade fundamentalmente oculto (LEYTE,

2005, p. 33).

Para ser mais exato, o fenômeno, é o que aparece na mesma medida em

que é aquele que se recusa a aparecer (LEYTE, 2005, p. 33).

A evocação de Heidegger para o anúncio fenomenológico “às coisas elas mesmas”

não varia, o que ocorre é que o filósofo reconhece no fenômeno uma resistência

intransponível, ao menos se considerado o propósito aludido da fenomenologia

(LEYTE, 2005, p. 33). Para Heidegger, à luz de seu questionamento sobre o sujeito

moderno – e consequentemente sobre a consciência - a máxima acima cobra um

novo e duplo sentido: por um lado, a busca das coisas tem que passar pelo

reconhecimento de sua constituição, que reside em seu caráter oculto, por outro lado

talvez seja necessário reconhecer que não há nem seja possível a própria existência

das coisas, precisamente porque o ideal da consciência moderna estaria na

apreensão de propriedades claras e distintas, segundo Descartes, ou absolutamente

descritíveis fenomenologicamente, segundo Husserl (LEYTE, 2005, p. 34). Nesse

sentido, significa que quando Husserl fala de coisas está se referindo ao “conteúdo”

da consciência ou, num sentido mais amplo, dos objetos. Um objeto, porém, não é

uma coisa, pelo contrário, para Heidegger, enquanto tomado metafisicamente como

um “mais além”, ele é a sua negação (LEYTE, 2005, p. 34).

Um objeto, como se verá, é uma realidade metafísica, e a busca em

Heidegger não se refere a nada metafísico no sentido de um mais além

(LEYTE, 2005, p. 34).

Heidegger enquanto permanece no propósito e pretensão fenomenológica de buscar

às coisas mesmas, pensa precisamente nas coisas e não nos objetos (LEYTE, 2005,

p. 34).

Para Heidegger o fenomenológico encontra-se indissociavelmente unido ao

hermenêutico, principalmente a partir do momento em que se compreende o

fenômeno não só como o que aparece mas também - fazendo parte de sua

estrutura, constituindo-o - o que se recusa a aparecer, não obstante, revelador

nesse seu obscurecimento (LEYTE, 2005, p. 34). Na busca do desvelamento desse

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velado obscuro, desenvolve-se a hermenêutica fenomenológica. Heidegger dessa

forma afasta-se da consciência moderna na qual, em sua leitura, as coisas se

tornaram impossíveis. De certo modo, sair fora da consciência moderna significa

também salvar as coisas.

Temos assim em Ser e Tempo a preocupação de Heidegger em bem delimitar os

conceitos que emprega em sua ontologia fundamental. Sua retomada do

questionamento então apresenta-se como o indagar sobre a forma e sobre o próprio

agente que questiona. Em sua preocupação em clarificar e pré-estabelecer a

definição dos conceitos, tomamos conhecimento do rigor ao qual submete o Dasein -

o ente ôntico, em sua possibilidade fenomenológica - possibilitador da hermenêutica

do ser, retomando e pautando-se nos pressupostos husserlianos.

De maneira um tanto genérica, podemos dizer que são três os elementos do

projeto fenomenológico husserliano que interessam de início efetivamente à

Heidegger: em primeiro lugar, a noção de intencionalidade; em segundo

lugar, a noção de redução ou de έποχή fenomenológica e, em terceiro lugar,

o lema husserliano “rumo às coisas mesmas” (CASANOVA, 2000,p. 40).

“Radicalizar” o método fenomenológico husserliano, compreendido da aplicação

heideggeriana, tem um caráter duplo que consiste sinteticamente em: Primeiramente

Heidegger determina que no Dasein, o ente que analisa o ser - neste ato intencional

de sua consciência - analisa, enquanto sendo, o ser, seu, a si mesmo, voltando-se

dessa forma, “à coisa mesma” que é a sua consciência que se descobre, na redução

fenomenológica, consciência do ser sendo, nele, Dasein. Em segundo lugar, a

aplicação de Heidegger é fundamentalmente radical enquanto sendo uma

metodologia epistemológica utilizada na esfera ontológica. Em outras palavras,

Heidegger radicaliza ao tomar o método fenomenológico de seu mestre - até então

aplicado sobre entes inanimados - e, pela primeira vez, aplicá-lo no homem, gerando

nesse ato consequências decisivas na hermenêutica ontológica da cultura da

humanidade.

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2.2 A compreensão fática do Dasein, o das-Man

Ser e Tempo é um trabalho composto de três subprojetos que se relacionam

constantemente em função de estruturar a ontologia fundamental proposta por seu

autor. Os três momentos contidos na obra são: destruição da história da ontologia,

hermenêutica da faticidade e analítica existencial (CASANOVA, 2000,p. 79). A

fenomenologia do Dasein é a metodologia desenvolvida por Heidegger no intuito de

garantir a harmonização desses três momentos e de possibilitar a hermenêutica do

ser, dentro da sua proposta de radicalização da questão fundamental da ontologia:

O que se busca é responder à questão do sentido do ser em geral e, antes

disso, a possibilidade de elaborar radicalmente essa questão fundamental

de toda a ontologia. Liberar o horizonte em que o ser em geral é, de início,

compreensível equivale, no entanto, a esclarecer a possibilidade da

compreensão do ser em geral, pertencente à constituição desse ente que

chamamos de Dasein. Como momento de ser essencial do Dasein, a

compreensão de ser só deixa esclarecer radicalmente caso o ente que a

possua seja interpretado originariamente na perspectiva de seu ser

(HEIDEGGER, 2008, pg. 303-304).

Ser e Tempo, então, é a busca da compreensão - da hermenêutica - do ser. A

palavra “Hermenêutica” é utilizada por Heidegger no sentido da interpretação fática

do Dasein. Ao fenomenológico Dasein cabe a tarefa de se compreender,

faticamente, enquanto sendo no mundo.

Heidegger faz um breve histórico de Hermeneutik, “hermenêutica”, em LXII,

Ontologia : a hermenêutica da faticidade. Ele começa com o lon. de Platão,

onde Sócrates chama os poetas de “intérpretes”, hermenes, dos deuses

(lon. 534e4-5). Hermeneuein é a palavra grega para “interpretar”, e

hermeneia, “intrepretação”, Auslegung, que descobre o previamente

escondido (LXIII, 11). Hermeneutik não é, atualmente, interpretação e, sim,

teoria ou estudo da interpretação. Esta disciplina foi sistematizada por

Schleiermacher como “(a teoria da) arte de comprenssão {Kunst (lehre) das

Verstehens}”, primordialmente os textos escritos (LXIII, 13). Dilthey, biógrafo

de Schleiermacher, estendeu a hermenêutica às “ciências humanas

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(Geisteswissenschaften)”, que incluem filologia , mas também o estudo da

história, teologia, arte, instituições sociais etc. A hermenêutica é, agora, a

metodologia, o estudo do método de tais ciências. Heidegger usa

Hermeneutik para significar “interpretação”, interpretação da “faticidade”,

isto é, de nosso próprio Dasein (LXIII, 14) (INWOOD, 1999, pg. 79).

Essa tarefa filosófica de compreensão é um desenvolvimento que o Dasein cotidiano

faz primeiramente a si mesmo. “Um soldado, por exemplo, ao se interpretar dessa

forma, torna-se o que é” (INWOOD, 1999, pg. 79). Essa auto-interpretação nem

sempre condiz com a realidade, pois raramente é feita - utilizando a terminologia de

Ser e Tempo - de modo “autêntico e próprio”.

Heidegger argumenta em Ser e Tempo que a hermenêutica do Dasein,

primordialmente interpretativa, enquanto propiciadora do desvelamento do ser e das

estruturas básicas do fático ser-aí (HEIDEGGER, 2008, pg. 77-78), pode assumir

certas variações, ampliando sua aplicabilidade. Sendo que a hermenêutica em seu

sentido principal “apresenta o horizonte para qualquer outro estudo ontológico dos

entes que não são do tipo de Dasein, também há a hermenêutica no sentido de

Schleiermacher”, ou seja, ela elabora as “condições de possibilidade de qualquer

investigação ontológica” (INWOOD, 1999, pg. 80). Ainda, a prioridade ontológica do

Dasein sobre os outros entes depende de sua possibilidade de existência. Dessa

forma, ao interpretar o ser do Dasein, a hermenêutica heideggeriana em seu sentido

primordial (desvelar o ser e as estruturas do Dasein) precisa analisar a

“existencialidade da existência”.

O sentido de hermenêutica “filosoficamente primordial” da ontologia fundamental

heideggeriana parte dessa forma - sendo que todo o questionamento filosófico surge

da existência e para ela retorna - da fenomenológica interpretação do existente e

analisável Dasein (INWOOD, 1999, pg. 80).

Em seu conteúdo, a fenomenologia é a ciência do ser dos entes - é

ontologia. Ao esclarecer as tarefas de uma ontologia, surgiu a necessidade

de uma ontologia fundamental, que possui como tema o Dasein, isto é, o

ente dotado de um privilégio ôntico-ontológico. Pois somente a ontologia

fundamental pode colocar-se diante do problema cardeal, a saber, da

questão sobre o sentido do ser em geral. Da própria investigação resulta

que o sentido metodológico da descrição fenomenológica é interpretação. O

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λόγος (logos) da fenomenologia do Dasein possui o caráter de έρμηνεύειν

(interpretação). Por meio deste έρμηνεύειν anunciam-se o sentido próprio de

ser e as estruturas fundamentais de ser que pertencem ao Dasein como

compreensão de ser. Fenomenologia do Dasein é hermenêutica no sentido

originário da palavra em que se designa o ofício de interpretar.

Desvendando-se o sentido de ser e as estruturas fundamentais do Dasein

em geral, abre-se o horizonte para qualquer investigação ontológica ulterior

dos entes não dotados do caráter de Dasein. A hermenêutica do Dasein

torna-se também uma “hermenêutica” no sentido de elaboração das

condições de possibilidade de toda investigação ontológica. E, por fim, visto

que o Dasein, enquanto ente na possibilidade de existência, possui um

primado ontológico frente a qualquer outro ente, a hermenêutica do Dasein

como interpretação ontológica de si mesmo adquire um terceiro sentido

específico – embora primário do ponto de vista filosófico - , o sentido de

uma analítica da existencialidade da existência. Trata-se de uma

hermenêutica que elabora ontologicamente a historicidade do Dasein como

condição ôntica de possibilidade da história fatual. Por isso é que, radicada

na hermenêutica do Dasein, a metodologia das ciências históricas do

espírito só pode receber a denominação de hermenêutica em sentido

derivado (HEIDEGGER, 2008, pg. 77-78).

Como já aludido, o fenomenológico Dasein, do qual sua compreensão possibilita a

“hermenêutica” no sentido de elaboração das condições de possibilidade de toda

investigação ontológica, se caracteriza por ser sempre meu, segundo este ou aquele

modo de ser. O ente, cujo ser, sendo, está em jogo o próprio ser, relaciona-se e

comporta-se com o seu ser, com a sua possibilidade mais próxima, assim, como

citado, o Dasein é sempre sua possibilidade (HEIDEGGER, 2008, p. 86).

Essa possibilidade de ser para Heidegger não é tida como propriedade

simplesmente dada, e sendo possibilidade, o ser-aí pode “escolher-se”, ganhar-se

ou perder-se ou ainda dissimular um determinado ganho ou perda (HEIDEGGER,

2008, p. 86). O ser-aí fático, porém, acontecendo no mundo, só pode perder-se ou

ainda não se ter ganho por ser uma possibilidade própria, ou seja, é um ser

vocacionado a apropriar-se de si mesmo (HEIDEGGER, 2008, p. 86). Sendo, o

Dasein tende a escolher o que será, esta escolha pode ser uma escolha pensada e

própria, que lhe faça sentido, após uma análise de si mesmo ou, pode ele também,

simplesmente levar uma vida imprópria.

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Os termos “próprio” e “impróprio” são usados por Heidegger em seu sentido literal.

Importante ressaltar que apesar de intuitivamente relegarmos ao impróprio um

sentido pejorativo, não é o caso aqui, pois a manifestação imprópria do ser-aí não o

coloca numa posição menor na filosofia heideggeriana, pelo contrário, esse

posicionamento em sua auto-compreensão pode determinar a concreção de seus

estímulos interesses e preferências.

O Dasein se constitui pelo caráter de ser sempre meu, segundo este ou

aquele modo de ser. De alguma maneira, sempre já se decidiu de que modo

o ser-aí é sempre meu. O ente, em cujo ser, isto é, sendo, está em jogo o

próprio ser, relaciona-se e comporta-se com o seu ser, como a sua

possibilidade mais própria. O ser-aí é sempre a sua possibilidade. Ele não

“tem” a possibilidade apenas como uma propriedade simplesmente dada. E

porque o Dasein é sempre essencialmente sua possibilidade ele pode, em

seu ser, isto é, sendo, “escolher-se”, ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca

ganhar-se ou só ganhar-se “aparentemente”. O Dasein só pode perder-se

ou ainda não ser ter ganho porque, segundo o seu modo de ser, ele é uma

possibilidade própria, ou seja, é chamado a apropriar-se de si mesmo. Os

dois modos de ser propriedade e impropriedade – ambos os termos foram

escolhidos em seu sentido rigorosamente literal – fundam-se em o ser-aí

determinar-se pelo caráter de ser sempre meu. A impropriedade do Dasein,

porém, não diz “ser” menos e nem tampouco um grau “inferior” de ser. Ao

contrário, a impropriedade pode determinar toda a concreção do ser-aí em

suas ocupações, estímulos, interesses e prazeres (HEIDEGGER, 2008, p.

86).

O ser-aí acontece na vida cotidiana, e nessa cotidianidade ele pode muito bem,

envolvido pelo fluxo das influências e estímulos que o cercam, simplesmente

participar indiferentemente ao questionamento do que venha a lhe ser próprio ou

não. Essa indiferença cotidiana experimentada pelo Dasein, vivendo na

mundaneidade, Heidegger, chama de medianidade:

Não se deve, porém, tomar a cotidianidade mediana do ser-aí como simples

“aspecto”. Pois a estrutura da existencialidade está incluída a priori na

cotidianidade e até mesmo em seu modo impróprio. De certa forma, nele

está igualmente em jogo o ser do ser-aí, com o qual ele se comporta e

relaciona no modo da cotidianidade mediana, mesmo que seja apenas

fugindo e esquecendo-se dele (HEIDEGGER, 2008, p. 88).

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Independente da postura que venha o Dasein a assumir no mundo - para firmar-se,

para proteger-se, para fugir, de qualquer forma - para a analítica existencial, o

importante, que devemos tomar como uma positiva constituição da estrutura do ser,

é que essa estrutura, da forma como se dá, por mais provisória que venha se

mostrar, é nosso ponto de partida conveniente na tentativa de acessar o ser do

homem.

No parágrafo vinte e sete de Ser e Tempo, Heidegger postula que na cotidianidade

nos comportamos de forma impessoal envolvidos pela influência do meio. “Este

conviver dissolve inteiramente o próprio Dasein no modo de ser dos “outros”, e isso

de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em sua possibilidade de

diferença e expressão. O impessoal desenvolve sua própria ditadura nesta falta de

surpresa e de possibilidade de constatação” (HEIDEGGER, 2008, p. 184).

O Dasein, como vimos, é a manifestação fenomenológica do ser do homem, da ideia

de uma realidade humana transcendente manifesta sensorialmente na figura de

cada um de nós mesmos, enquanto vivendo, sendo, no mundo como humanos,

donos de uma existência temporal e gozando de certa margem de escolha.

Com o fator “mundo”, passa-se então, na ontologia fundamental de Heidegger, a

considerar o Dasein na coletividade, ou seja, o ser-aí na convivência com os outros

seres-aí, que, juntos, compõe a ideia de vida social. Desse momento, o autor analisa

as consequências que a interação social exercem na existência fática.

A caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo o

próprio Dasein. Será que essa caracterização não provém de uma distinção

e isolamento do “eu”, de maneira que se devesse buscar uma passagem do

sujeito solado para os outros? Para evitar esse mal-entendido, é preciso

atentar em que sentido se fala aqui dos “outros”. Os “outros” não significam

todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros,

ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não se

consegue propriamente diferenciar, são aqueles entre os quais também se

está. Esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de

um ser simplesmente dado “em conjunto” dentro de um mundo. O “com” é

uma determinação do Dasein. O “também” significa a igualdade no ser

enquanto ser-no-mundo que se ocupa dentro de uma circunvisão. “Com” e

“também” devem ser entendidos existencialmente e não categorialmente. À

base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre o

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mundo compartilhado com os outros. O mundo do dasein é mundo

compartilhado. O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano

desses outros é co-presença (HEIDEGGER, 2008, p. 175).

O conceito “mundo11” em Ser e Tempo é tomado no seu sentido comum e corrente,

como o lugar em que vivemos e nos relacionamos com os demais entes

fenomenologicamente percebidos; ainda também, como o meio-ambiente que indica

o conjunto das coisas que circundam o homem, palco da realidade em que este(s)

se encontra(m) (INWOOD, 1999, pg. 120).

Das-Man é o conceito utilizado por Heidegger para definir como o ser-aí é tomado

em sua relação intramundana com os demais seres iguais a ele, dito de outra forma

seria: este-ser-aí, o impessoal. Das-Man é como somos tomados, como temos

nosso personagem cotidiano definido pelos outros.

Na figura do das-Man reside a inquietação do Dasein – no mundo - de como é visto

por seus pares. Se a imagem que o Dasein passa condiz ou não com a realidade do

que realmente é pouco importa, o importante é postular que ele se preocupa em

passar uma imagem, e esse fato, julgando ser ele normal, é um dos determinantes

elementos para a consolidação da angústia em sua experiência temporal, pois

resolvido a cumprir o papel X ou Y, condizente com o que esperam dele, e

engajando-se, uns mais outros menos, em corresponder a essa expectativa alheia,

muitas vezes - ainda que sem tomar consciência disso - ele se comporta em

desacordo com o que realmente lhe faz, ou viria a lhe fazer, sentido.

A preocupação do Dasein em agradar e ser aceito socialmente será, entre outros,

fator decisivo a levá-lo a um estado passional aflitivo perante a expectativa externa

circundante.

A filosofia de Heidegger se propõe a ser absolutamente mundana (ARENDT, 1993,

p. 30), visto que o estudo do Dasein diz respeito à analítica do ser preocupado no

mundo. Sua constituição como ente fenomenológico fundamentalmente se

apresenta por ser-no-mundo, sendo este mundo provido da mundanidade.

11 Genericamente é possível distinguir três conceitos fundamentais de Mundo: 1º.

Mundo como ordem total; 2º. Mundo como totalidade absoluta; 3º. Mundo como totalidade de campo.

(ABAGGNANO, 2000, p. 687)

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“Mundanidade” é um conceito ontológico e significa a estrutura de um

momento constitutivo de ser-no-mundo. Este, nós o conhecemos como uma

determinação existencial do Dasein. Assim, a mundanidade já é em si

mesma um existencial. Quando investigamos ontologicamente o “mundo”,

não abandonamos, de forma nenhuma, o campo temático da analítica do

Dasein. Do ponto de vista ontológico, “mundo” não é determinação de um

ente que o ser-aí em sua essência não é. “Mundo” é um caráter do próprio

Dasein. Isto não exclui que o caminho de investigação do fenômeno

“mundo” deva seguir os entes intramundanos e seu ser (HEIDEGGER,

2008, p. 112).

O Dasein se aflige por perceber-se socialmente dependente e vinculado a laços

interpessoais que excedem sua capacidade de livre ação – vale lembrar que muitas

vezes esse fenômeno acontece sem que o ser-aí se de conta disso. O das-Man,

entretanto, não é um estado a ser transposto, a filosofia de Heidegger não faz juízo

moral em relação à postura própria ou impróprio que o Dasein venha a assumir em

sua vivência, ou ainda, que o fato do ser-aí tomando-se socialmente pressionado e

refugiando-se na fuga à medianidade, seja mais ou menos que outro que aja de

forma autêntica em relação à suas convicções.

O das-Man, este-ser-aí, impessoal, medido pelo crivo alheio, terá, independente da

postura que venha à assumir, independente da possibilidade que venha a apropriar-

se, a angústia como companheira constante, pois esta “disposição fundamental” -

como veremos mais detalhadamente à frente, quando da análise dos pontos

determinantes da “analítica existencial” de Ser e Tempo - é inerente à constituição

cognitiva de seu ente temporal.

(...) Este conviver dissolve inteiramente o próprio ser-aí no modo de ser dos

“outros”, e isto de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em

sua possibilidade de diferença e expressão (HEIDEGGER, 2008, p. 185).

O impessoal tira o encargo de cada ser-aí em sua cotidianidade. E não

apenas isso; com esse desencargo, o impessoal vem ao encontro do ser-aí

na tendência de superficialidade e facilitação. Uma vez que sempre vem ao

encontro de cada ser-aí, dispensando-o de ser, o impessoal conserva e

solidifica seu domínio teimoso. Todo mundo é o outro e ninguém é si

mesmo. O impessoal que responde à pergunta quem do ser-aí cotidiano, é

ninguém, a quem o ser-aí já se entregou na convivência de um com outro

(HEIDEGGER, 2008, p. 185).

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Para compreender a ontologia fundamental de Heidegger é importante fixar que o

das-Man é o Dasein assumindo-se no outro que não é ninguém. Para o ser-aí, o

outro é este-ser-aí, e, sendo social, intramundano, no-mundo, o Dasein se aflige em

assumir um modo de ser compatível ao que esperam dele, ou o que ele acha que

corresponda coerentemente à sua personalidade frente ao mundo e realidade a sua

volta, seu mundo “circundante”. “O mundo mais próximo do ser-aí cotidiano é o

mundo circundante” onde ele acontece e involuntariamente se aflige (HEIDEGGER,

2008, p. 86).

Definimos assim o conceito do das-Man, determinante para a investigação proposta

em Ser e Tempo, como o ente Dasein tomado pela atenção externa da consciência

dos outros. Esses conceitos, Dasein e das-Man são caracterizados por serem,

enquanto realizados no mundo, passíveis de exame e apreensão fenomenológica

pela cognição. Devemos lembrar, entretanto, que o que a fenomenologia mostra é

aquilo que, acima de tudo e na maior parte dos casos, não se manifesta, o que está

escondido, mas que é capaz de expressar o sentido e o fundamento daquilo que,

acima de tudo, e na maior parte dos casos se manifesta (ABAGGNANO, 2000, p.

439).

Concluindo esta seção sobre o ser-no-mundo, sintetizando o já visto, foi Heidegger

quem retomou na contemporaneidade o estudo da relegada questão do ser,

demarcando nessa retomada o limiar do ôntico e do ontológico, partindo da análise

da manifestação temporal do ente - que chamou de Dasein - lançando mão do

método fenomenológico de Husserl, e que, agora, avançando na via apontada por

Kierkegaard (ARENDT, 1993, p. 28), aprofunda e fundamenta o momento da análise

existencial do Dasein lançando mão de um conceito que - posteriormente à Ser e

Tempo - tomaria outro sentido do comumente percebido dentro da ontológica busca

pelo sentido do ser até então realizada na história da filosofia ocidental.

Este novo conceito, analisado agora em nossa investigação, é o que caracteriza a

situação fática do Dasein enquanto no mundo (das-Man). Dotado de um sentido

composto, misto de elementos de duas naturezas, o termo que analisaremos agora

viria há ser a ponte de acesso para se pensar a possibilidade de uma realidade

humana transcendental. A “angústia”, conceito decisivo na análise da existência

fática de Ser e Tempo, é uma interface situada entre dois mundos. Angústia na ótica

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heideggeriana expressa algo que sentindo aqui, em nossa realidade física humana,

remete-nos para “lá”, outra realidade, metafísica e misteriosa.

O medo, a ansiedade, a excitação, a alegria, a expectativa, todas as disposições

experimentadas na cotidianidade pelo Dasein, são propriedades diretamente ligadas

à apreensão cognitiva dadas no mundo espacial e temporal de sua realidade prática

e experimental. Nelas, porém, nessas disposições e através delas, tem-se

consequentemente o elo manifesto do que está oculto no verdadeiro plano do ser -

que é extramundano - o aprofundamento dessa extramundana possibilidade do ser

do Dasein excede a proposta ontológica fundamental de Ser e Tempo.

A possibilidade de se pensar a natureza extramundana da angústia, está

proporcionalmente ligada à possível interpretação da transcendentalidade do ser. Na

“angústia”, a hermenêutica de Ser e Tempo abre a possibilidade de se diagnosticar

na natureza cognitiva, sensorial e temporal do Dasein, a apreensão de um indicativo

a uma realidade contingente.

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3. A analítica existencial

3.1 A disposição fundamental da angústia

Enquanto Heidegger foi tomado como um dos precursores da filosofia existencialista,

a de linha humanista, Kierkegaard figura representando outra vertente, a cristã

(MAGEE. B, 2000, p. 209). Porém para ambos a predisposição dos indivíduos à

angústia é consequência de a existência humana ser uma questão de “possibilidade”

(ABBAGNANO, 2000, p. 60).

Vimos que o Dasein é possibilidade, que o homem enquanto temporal vive de

possibilidades, e sendo esse estado um constante remeter-se ao futuro, a angústia

tem como qualidade e essência o fato de não referir-se a algo determinado,

específico (HEIDEGGER, 2008, p. 254).

Não podemos dizer que sentimos a angústia por causa disto ou daquilo

precisamente, ou, colocando de outra forma - podemos ser mais exatos utilizando

uma terminologia mais precisa -, não podemos condicionar a predisposição do ser-aí

à angústia, relacionando-a a algum fenômeno específico (HEIDEGGER, 2008, p.

254).

Com exceção do evento do fim da existência temporal - a morte - não temos,

enquanto possibilidades que somos - excluindo argumentos de natureza religiosa -

garantia de concretude de nenhuma de nossas idealizações e planos. Apenas pela

nossa capacidade de abstração procuramos imaginar as melhores opções na gama

de possibilidades para o nosso futuro - isso enquanto gozando de certa saúde

mental. O fato é que não temos certeza alguma de um porvir agradável livre de

percalços trágicos. A realidade - no âmago sabemos - é que a possibilidade de “nos

darmos bem” na vida é diretamente proporcional a de “nos darmos mal”. Para o

Dasein ter consciência disso não é agradável.

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Assim sendo, enquanto para o espiritualista Kierkegaard sobra ao homem pecador,

certo da inexorável opressão da existência - por mais habilidoso que seja, ainda um

impotente frente ao destino - apenas dois caminhos libertários: o suicídio ou a fé

(ABBAGNANO, 2000, p. 60); para Heidegger, um humanista em sua proposta

ontológica secular, por outro lado, resta ao Dasein, nessa experiência temporal

incondicionalmente aflitiva, principalmente sabendo-se um ser-para-a-morte -

diuturnamente chamado à reflexão - a oportunidade redentora do auto-

conhecimento, que apontará à possibilidade de gradativamente adquirir um

conhecimento de si que lhe faça sentido e, de alguma forma, bem.

Na angústia Heidegger focalizou o ser-para-a-morte da existência humana, e isso

significa – tendo em mente o peso que a ideia “de morrer” sugere a um ser temporal

- que nela, nesta disposição fundamental, o Dasein (inautêntico das-Man) tem um

genuíno motivo de refletir sobre sua existência:

A angústia, porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta a

ameaça absoluta e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio

e singular do ser-aí. Na angústia, o ser-aí dispõe-se frente ao nada da

possível impossibilidade de sua existência. A angústia se angustia pelo

poder-ser daquele ente mais determinado, abrindo-lhe a possibilidade mais

extrema. Porque o antecipar simplesmente singulariza o ser-aí e, nessa

singularização, torna certa a totalidade de seu poder-ser, a disposição

fundamental da angústia pertence ao compreender de si mesma, próprio do

ser-aí. O ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia. Isso é

testemunhado, de modo indubitável, embora “apenas” indireto, pelo ser-

para-a-morte já caracterizado, quando a angústia se faz medo covarde e,

superando, denuncia a covardia à angústia (HEIDEGGER, 2008, p. 343).

Destaquemos que angústia é diferente de medo. O Dasein teme o que possa vir a

seu encontro na esfera intramundana que vive, por outro lado, angustia-se por algo

“além” de sua compreensão, algo que excede suas definições e apreensões

ordinárias (HEIDEGGER, 2008, p. 256).

Pode-se sintetizar dizendo que o que angustia o ser-aí é a certeza da morte? A

resposta não é tão simples. Para Heidegger o assentamento da angústia não está

em apenas saber-se ser-para-a-morte, a angústia do Dasein está, na verdade, em

sua consciência de saber que não sabe como responder positivamente às questões

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básicas de sua ontologia: “De onde vim?”, “Para onde vou?”. O ser-aí, desprovido de

qualquer certeza metafísica, ou seja, impossibilitado de experimentar

fenomenologicamente uma experiência pós-morte, vê-se fadado a uma única

certeza: a realidade é essa que vivemos, na qual existimos.

Do mesmo modo que não podemos, positivamente, apontar a origem de nossa

consciência - enquanto aspiração transcendental - não podemos igualmente

asseverar seu destino após a intransferível experiência da morte. Sendo assim,

sobra apenas a certeza de que após a morte, despojado da química que o compõe,

ao Dasein, fenômeno temporal que é, não sobra nada, a não ser ter essa matéria

que compõe seu corpo tornada em pó – ou plâncton.

A angústia está em saber que, da mesma forma como especulamos sobre a origem

metafísica desses elementos, e do Universo onde eles se encontram, especulamos

sobre a origem metafísica de nossa consciência, e da mesma forma como

especulamos sobre a origem dessa nossa consciência, e do possível Universo

desconhecido à qual sua essência pertença, especulamos igualmente sobre o seu

destino.

Por mais que especulemos, por mais virtuoso que seja nosso raciocínio, ou ainda,

por mais complexa que seja nossa teoria sobre o apreender do conhecimento, a

verdade é que fenomenologicamente não obtemos prova alguma de uma realidade

contingente extraordinária que transcenda a ordinária experenciável.

Encontrando-nos neste turbilhão especulativo, a ontologia fundamental de

Heidegger fulmina o que possivelmente restou de ingenuidade, sumariando com a

ideia que pautará nosso pensamento, tirando-nos do talvez tranquilo e tentador

mundo decadentemente alienado do das-Man, forçando-nos a trocar a falação e a

curiosidade ambíguas do mundo circundante pelo amadurecer refletido sobre o que

realmente importa: a questão ontológica e suas consequências. A questão do ser no

que se puder apreender.

Ciente disso, como cabe ao Dasein se comportar? Existe um determinado modo pré-

estabelecido que assegure o fim desse estado incomodativo da angústia? Não.

Heidegger determina e postula, em sua proposta ontológica fundamental de Ser e

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Tempo, uma conduta específica que assegure o alívio para o enjôo de ter de ser

dessa forma como o ser-aí é? Não.

O que Ser e Tempo nos oferece, no tocante a esses questionamentos, é um método

hermenêutico que consiste na capacidade de compreender e interpretar o evento da

angústia como a autêntica predisposição privilegiada que o ser-aí dispõe como

acesso para adentrar no mundo de seu verdadeiro ser, um mundo que - admitamos

ou não - na contingência de sua essência, excede o conhecimento científico, sendo

assim, por excelência, inalcançável pela teoria, podendo porém, com o método

fenomenológico, tornar-se uma qualidade de possibilidade transcendental.

A angústia é a pista que nos coloca a abstrair sobre novos caminhos

existencialmente possíveis. Das conclusões sobre sua existencialidade na angústia

de ser-para-a-morte, o Dasein vê-se, num piscar de olhos, passando de simples

criatura num mundo estranho, para um possível criador de uma realidade

propriamente sua, pautada em um verdadeiro ser, seu, que começa a se lhe

desvelar (ARENDT, 1993, p. 28).

O fascínio peculiar que o pensamento do Nada exerceu sobre a filosofia

moderna não é simplesmente característico do Niilismo. Se olharmos pra o

problema do Nada no contexto de uma filosofia que se revolta contra a

filosofia como pura contemplação, então o veremos como um esforço para

tornar-se “Senhor do Ser” e, dessa forma, como um esforço para questionar

filosoficamente de forma tal que progrida imediatamente para o ato; assim, o

pensamento de que o Ser é realmente o Nada leva uma grande vantagem.

Baseando-se nisso o Homem pode imaginar-se, pode relacionar-se com o

Ser que é dado, tanto quanto o Criador antes da criação do mundo, que,

como sabemos, foi criado a partir do nada. Na caracterização do Ser como

Nada há finalmente a tentativa de livrar-se da definição do Ser como o dado

e de transformar as atividades do homem que eram semelhantes às divinas

em atividades divinas. Esta é também a verdadeira razão pela qual em

Heidegger o Nada subitamente torna-se ativo e começa a “nadificar”. O

Nada tenta, por assim dizer, reduzir a nada o fato-de-ser-dado do Ser e pôr-

se no lugar do Ser. Se o Ser que eu não criei é a ocasião de uma natureza

que eu não sou e que eu não conheço, então talvez o Nada seja o

verdadeiro domínio do Homem. Já que eu não sou um criador-de-mundo,

talvez a minha natureza seja de um verdadeiro destruidor-de-mundo. (Tais

conclusões estão agora desenvolvidas de forma bastante livre e clara em

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Camus e Sartre). Isto, em todo o caso, é a base filosófica do moderno

Niilismo, sua origem na antiga ontologia; a tentativa de vazar a novas

questões e os novos temas no antigo quadro vinga-se aqui (ARENDT, 1993,

p. 28).

Nesse vislumbre de um si-mesmo, potência criadora, o das-Man liberta-se da

impropriedade do mundo circundante e começa a caminhar sozinho,

fenomenalmente realizado, no mundo. Uma vez atento à pista transcendental da

angústia, que a cada passo nesse rumo vai perdendo seu caráter de doença para

dar lugar a um novo de cura, este ser-aí começa a descobrir-se num mundo além

dos fragmentos do velho mundo já conhecido seu, um novo mundo de

possibilidades, cheio de respostas disponíveis, cabendo-lhe para alcançá-las apenas

formular de forma correta as perguntas para o desconhecido ele mesmo, que vem à

seu encontro nessa nova, e mais própria, realidade.

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3.2 A decadência do Dasein

Vimos que o ser-aí, dado no mundo assume um modo de ser impróprio determinado

pelo contexto do mundo circundante. Cabe agora determinar quais os caracteres

existenciais da abertura do ser-no-mundo quando o ser-no-mundo cotidiano se

detém no modo impessoal.

Será que esse modo de ser possui uma disposição própria e especifica, uma

compreensão, uma fala e uma interpretação especiais? (HEIDEGGER, 2008, p.

230).

Se o compreender deve ser entendido primordialmente como poder-ser do

ser-aí, as possibilidades de ser que o Dasein, enquanto impessoal, abriu e

das quais se apropriou devem ser extraídas de uma análise do

compreender e da interpretação próprias do impessoal. Essas

possibilidades próprias revelam assim uma tendência essencial do ser da

cotidianidade (HEIDEGGER, 2008, p. 230).

Esse modo de ser é caracterizado por três elementos dominantes e Heidegger os

define como “tagarelice” ou falação, “curiosidade” e “ambigüidade” ou equívoco.

Esses três elementos determinam o modo impróprio do ser-aí, sob o jugo do critério

alheio, das-Man. Devemos lembrar entretanto que Heidegger não faz nenhuma

valorização preferencial dizendo qual o ideal a ser buscado, tomando o impróprio

como ruim ou o próprio como bom.

O modo de ser impróprio, composto pela tríade de elementos descritos acima, são

características intrínsecas do Dasein, uma vez no mundo; portanto, o que importa

para a ontologia fundamental de Heidegger é a manifestação enquanto um caráter

do fenômeno analisado, sendo assim, primeiramente sobre a falação, para a

compreensão correta do sentido, devemos lembrar de não tomá-la em sentido

pejorativo. Terminologicamente significa um fenômeno positivo que constitui o modo

do compreender e da interpretação do ser-aí cotidiano (HEIDEGGER, 2008, p. 231).

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A falta de solidez da falação não lhe fecha o acesso ao que é público, mas o

favorece. A falação é a possibilidade de compreender tudo sem se ter

apropriado previamente da coisa. A falação se previne do perigo de

fracassar na apropriação. A falação que qualquer um pode sorver

sofregamente não apenas dispensa a tarefa de um compreender autêntico,

como também elabora uma compreensibilidade indiferencial da qual nada é

excluído (HEIDEGGER, 2008, p. 233).

Tratando-se de parte constituinte ao meio que pertence, essa postura do Dasein é

tomada como positiva a partir do momento que compreende-se assim o

funcionamento estrutural do ser-no-mundo. Comportando-se dessa maneira o ser-aí

está seguro dentro do meio que vive. Quanto à curiosidade segue-se o mesmo

raciocínio:

A curiosidade liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o

que vê, ou seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver. Ela busca

o novo a fim de por ele renovada, correr para uma outra novidade. Esse

acurar em ver não trata de apreender e nem de ser e estar na verdade

através do saber, mas sim das possibilidades de abandonar-se no mundo.

Por isso a curiosidade caracteriza-se, especificamente, por uma

impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso também não busca

o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e inquietação

mediante o sempre novo e as mudanças que vem ao encontro. Em sua

impermanência, a curiosidade se ocupa da possibilidade contínua de

dispersão (HEIDEGGER, 2008, p. 237).

A curiosidade é regida pela falação, ela que determina o que deve ser lido e visto.

Ambos caminham no mesmo sentido, um arrastando o outro consigo, para além da

tendência de simples desenraizamento. “A curiosidade que nada perde e a falação

que tudo compreende, dão ao ser-aí, que assim existe, a garantia de uma “vida

cheia de vida”, pretensamente autêntica. Com essa pretensão, porém, mostra-se um

terceiro fenômeno característico da abertura do ser-aí cotidiano” (HEIDEGGER,

2008, p. 237).

A ambigüidade, o equívoco, é o resultado dessa apreensão do mundo. Esse

equívoco não se aplica apenas à compreensão do mundo fenômeno, mas também

às relações interpessoais e mesmo à própria interpretação do ser-aí em relação si

próprio.

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Se, na convivência cotidiana, tanto o que é acessível a todo mundo quanto

aquilo de que todo mundo pode dizer qualquer coisa vêm igualmente ao

encontro, então já não mais se poderá distinguir, na compreensão autêntica,

o que se abre do que não se abre. Essa ambiguidade não se estende

apenas ao mundo, mas, também, à convivência como tal e até mesmo ao

ser do Dasein para consigo mesmo (HEIDEGGER, 2008, p. 237).

Sendo assim, a falação, a curiosidade e ambigüidade caracterizam o modo que o

Dasein cotidianamente se realiza no mundo, e, importante, como determinações

relativas à sua existência – existenciais - essas características não são

simplesmente e superficialmente dadas no ser-aí temporal, mas, como mostrado,

acabam constituindo seu próprio ser.

“Falação, curiosidade e ambiguidade são as manifestações essenciais da existência

impessoal cotidiana. Essas manifestações caracterizam o Dasein no mundo

circundante, que é o mais próximo a si, ao qual pertence, onde ele disperso se

realiza em possibilidades sempre novas” (ABBAGNANO, 2000, p.229).

Nelas e em seu nexo ontológico, desvela-se um modo fundamental de ser da

cotidianidade que Heidegger define na analítica existencial de sua proposta

ontológica como “decadência” do Dasein. O filósofo diz que a decadência não

exprime qualquer avaliação negativa, pretende apenas indicar que num primeiro

momento, e na maioria das vezes, o ser-aí está junto e no “mundo” das ocupações,

e este estar junto e empenhado com as ocupações cotidianas é o que chamamos e

já citamos aqui de “impessoal”, o estar lançado no público. “Por si mesmo, em seu

próprio poder ser si mesmo mais autêntico, o ser-aí já sempre caiu de si mesmo e

decaiu no “mundo” (HEIDEGGER, 2008, p. 240).

A decadência na impropriedade não pode ser tomada como um estado de queda de

uma situação superior mais pura e original do Dasein, quanto a isso Heidegger diz

que não dispomos onticamente de nenhuma experiência e ontologicamente de

nenhuma possibilidade de interpretação.

Decair no mundo indica o empenho na convivência, na medida em que esta é

conduzida pela falação, curiosidade e ambiguidade. O que anteriormente chamamos

de “impropriedade”, a partir deste momento define-se mais precisamente com este

termo, “decadência”.

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A decadência é uma determinação existencial do próprio Dasein e não se refere a

ele como algo simplesmente dado, nem a relações simplesmente dadas com o ente

do qual ele “provém”, ou com o qual ele depois acaba se relacionando

(HEIDEGGER, 2008, p. 241).

Sendo assim, a decadência não é um estado ôntico negativo a ser superado, nem

um estágio a ser suplantado por um nível mais desenvolvido de cultura humana. A

decadência é o estado em que o Dasein se alheia de si mesmo e entrega-se ao

modo impessoal de ser, modo determinado pelos caracteres da falação da

curiosidade e da ambiguidade cotidiana.

A realidade humana só seria verdadeiramente ela mesma se pudesse

retirar-se desse ser-no-mundo para si mesma, o que ela nunca pode fazer;

logo, ela é essencialmente um declínio, um decair a partir de si mesma. “A

realidade humana sempre decai a partir de si mesma como uma verdadeira

unidade – declina no ‘mundo’”. Apenas na realização da morte, que o

retirará do mundo, o homem tem a certeza de ser ele próprio (ARENDT,

1993, p. 31).

Heidegger determinou como o ser-aí interpreta o ente vindo ao seu encontro no

mundo, chegando ao ponto de tê-lo, de tomá-lo (o ente) em geral como o si mesmo.

O Dasein assim, na decadência, não vive como ele mesmo, mas sim como se vive

através da ditadura do impessoal das-Man (HEIDEGGER, 2008, p. 184).

Nessa situação ele não se volta naturalmente para o seu ser mais próprio, pelo

contrário envolve-se espontaneamente com o que vem ao encontro neste ser-no-

mundo cotidiano e impróprio. “Todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo. O

impessoal, que responde à pergunta quem do Dasein cotidiano, é ninguém, a quem

o Dasein já se entregou na convivência de um com o outro” (HEIDEGGER, 2008, p.

185).

Neste estado o Dasein desenvolve e formula seu questionamento existencial, mas o

temor perante os eventos desse cotidiano, não é equiparável à verdadeira angústia,

na qual ele pergunta sobre sua natureza mais própria, onde o “quê” do ser-no-

mundo se torna a grande questão (PÖGGELER, 2001 p. 61).

Heidegger realçou penetrantemente como a existência degenera o ente

vindo ao encontro do interior do mundo de tal modo que ela a si mesma se

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compreende e ao ser em geral a partir do ente encontrável. A existência não

vive de todo como ela mesma, mas sim como se vive ela: ela é

vivida através da ditadura do impessoal Se ( 27). Na sua

situabilidade ou afinação ela não se volve habitualmente para que ela seja;

ela afasta-se do Que do seu ser-no-mundo, e somente se volve ainda pra o

que vem ao encontro neste ser-no-mundo. Ela tem temor perante isto ou

aquilo, mas não a verdadeira angústia, na qual o Que do ser-no-mundo se

torna em questão ( §30, §40). O discurso não deixa surgir uma autêntica

abertura do ser-no-mundo, mas torna-se em falatório , que permanece

na ambiguidade (§35, §37). Ao sucumbir à tentação da queda no

denominado mundo e, consequentemente, de esquecer o próprio ser-

no-mundo, a existência afunda-se na inautenticidade. Mas que ela de todo

possa aí afundar-se, isso demonstra que ela é modificável segundo o seu

ser: que ela é inautêntica, mas que também pode ser autêntica. Só na

autenticidade é que ela poderá entender o sentido do seu ser (PÖGGELER,

2001 p. 61).

Na decadência no mundo, ao sucumbir à impessoabilidade da vida cotidiana, o

Dasein afunda-se na impessoalidade do das-Man inautêntico, mas isso demonstra

seu caráter modificável segundo o seu ser. Isso denuncia sua possibilidade de, do

mesmo modo que se mostra inautêntico, poder ser autêntico. “O Dasein só pode

decair porque nele esta em jogo o ser-no-mundo, no modo de compreender e dispor-

se. Em contrapartida, a existência própria não é nada que paire por sobre a

decadência do cotidiano. Em sua estrutura existencial, ele é apenas uma apreensão

modificada da cotidianidade” (HEIDEGGER, 2008, p. 245).

O Dasein é essencialmente sua possibilidade, e ele pode, no seu ser, escolher-se e

conquistar-se ou perder-se, ou escolher conquistar-se apenas aparentemente

(HEIDEGGER, 2008, p. 86). Mas é só na autenticidade que o Dasein pode entender

o sentido do seu ser. Este é um estado mais profundo, em contraposição à

superficialidade do inautêntico. O Dasein tem a possibilidade de compreender-se em

seu ser mais próprio, mas essa possibilidade só é realizável na autenticidade, e para

que isso seja possível ele tem de se adiantar na possibilidade mais extrema e

intransferível da morte. A possibilidade da morte cessa todas as outras de qualquer

existir, de qualquer poder ser.

Se a existência é caracterizada como cuidado por meio de ser-se-adiantado e

ainda assim não é algo, então resta a questão de saber se a existência na

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sua totalidade pode de todo ser entendida. Heidegger sublinha como o ser no

adiantar-se para a morte é sempre todo , obviamente não todo no

sentido do ser-todo de um existente. Neste adiantar-se demonstra-se de uma

forma exarcebada como a existência é existência efectiva: a existência é

possibilidade como compreender ou poder-ser, mas ela somente é esta

possibilidade na autenticidade se se adiantar na possibilidade mais extrema e

inultrapassável. Esta possibilidade extrema é a morte. O adiantar-se na morte

aprofunda a possibilidade que a existência é no seu extremo, onde ela se

torna uma impossibilidade desmedida, ou seja, a impossibilidade de qualquer

existir, como um determinado poder-ser (PÖGGELER, 2001 p. 61).

A decadência é dessa forma o estado em que o Dasein se alheia de si mesmo,

fugindo e refugiando-se no mundo impessoal e inautêntico do das-Man, regido pelo

critério de possibilidades inerentes ao mundo circundante, onde o comportamento é

manifestado pelos caracteres da falação, da curiosidade e da ambiguidade, numa

constante fuga da certeza que lhe é mais própria, a da morte (HEIDEGGER, 2008, p.

339).

Quando ciente da limitação de sua existência temporal na morte, de que ela

representa a nulidade das possibilidades, o Dasein angustia-se, restando-lhe a fuga

à decadência confortante da impropriedade ou, por outro lado, pode ele, descobrir

nesse estado um acesso privilegiado para o seu ser autêntico (ABBAGNANO, 2000,

p. 229)

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3.3 A abertura

A angústia não é o medo da morte. O medo acontece no intramundano, a angústia,

por sua vez, brota do próprio Dasein. Na fuga deste estado angustiado vimos no

capítulo anterior que o Dasein refugia-se numa vida inautêntica, envolvendo-se nos

afazeres ordinários do meio em que vive - seu mundo mais próximo, circundante –

sendo essa fuga na impessoalidade decadente, do ponto de vista existenciário, uma

obstrução e o fechamento do ser-aí à propriedade do ser-si-mesmo.

Assim, fenomenologicamente, a característica mais próxima do Dasein está na

decadência, que obstruí e fecha. “Esse fechamento, entretanto, é apenas a privação

de uma abertura que se revela fenomenalmente dado que a fuga do Dasein é a fuga

de si mesmo.” O Dasein enquanto não consciente de si, não sabe do que foge, a

decadência não permite que ele se ganhe. Acaba ocorrendo o paradoxo dele,

equivocado, correr atrás justamente do que foge. Neste estado não podemos dizer

que o Dasein foge de si mesmo por que ainda nem tomou consciência desse “si

mesmo”. (HEIDEGGER, 2008, p. 251).

Somente na medida em que, através de sua abertura constitutiva, o Dasein

se coloca essencialmente diante de si mesmo é que ele pode fugir de si

mesmo. Decerto, tanto no desviar-se como no aviar-se, próprios da

decadência, não se apreende aquilo de que se foge nem se faz a sua

experiência. No entanto, no desvio de si mesmo, descortina-se o “ser” do

ser-aí. Em razão do seu caráter de abertura, o desvio ôntico-existenciário

propicia fenomenalmente a possibilidade de se apreender aquilo de que se

foge como tal, de forma ontológico-existencial. Em meio a esse movimento

ôntico de “para longe de”, inerente ao desvio, pode-se compreender e

conceituar aquilo de que se foge, “aviando-se 12

” para uma interpretação

fenomenológica (HEIDEGGER, 2008, p. 251).

12 Aspas do autor. Aviar-se: 1. Preparar, despachar. 2. Pôr em estado de empreender

caminho ou ir-se embora (em http/www.priberam.pt, 24/10/11, 21.00 hrs).

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No capítulo quarenta de Ser e Tempo, Heidegger aponta a angústia como sendo

disposição fundamental que proporciona a abertura privilegiada do Dasein. Abertura

para quê? Para quem? O que entende-se por abertura?

A característica ôntica do Dasein - enquanto ente fenomenológico espaço/temporal

que é - é o fato dele se realizar no devir, no tempo, e no mundo. No ser-no-mundo

ele constitui o comportamento característico da decadência, que é uma fuga no

“fechamento” a si mesmo no impessoal – das-Man - e no “mundo” das ocupações

(HEIDEGGER, 2008, p. 251). Porém, nem todo retirar-se de..., nem todo desviar-se

de... constitui uma fuga. Foge-se de algo que desencadeia o medo - que é dado no

intramundano – foge-se do ameaçador. Heidegger alerta que a linha que separa a

interpretação do medo e da angústia ainda se nos mostra obscura, e que entre

ambos existe o parentesco fenomenal. “Medo é angústia imprópria, entregue à

decadência do mundo e, como tal, angústia nela mesma velada” (HEIDEGGER,

2008, p. 256).

Consequentemente, o desvio na decadência não é uma fuga do medo e sim se

funda na angústia que, por sua vez, é quem possibilita o medo (HEIDEGGER, 2008,

p. 252). Tornando mais claro, deve-se ter em mente que a constituição fundamental

da decadência como fuga de si mesmo inerente ao Dasein se dá pelo fato de ele

ser-no-mundo, sendo assim, aquilo com que a angústia se angustia é o ser-no-

mundo como tal.

Diferentemente do medo, o “com que” da angústia não é relacionado a nada

determinado. Essa indeterminação decreta não só o caráter infundado do “se sentir

ameaçado” pelos entes como também postula a irrelevância desse ente. “Nada do

que é simplesmente dado ou que se acha à mão no interior do mundo serve para a

angústia com ele angustiar-se” (HEIDEGGER, 2008, p. 252).

Sendo assim, o que caracteriza a angústia é a indeterminação do ameaçador, o fato

dele não se encontrar em lugar algum. Porém, essa indeterminação não significa um

caráter negativo, de inexistência, justamente aí se situa a região, a abertura do

mundo em geral para o ser-em essencialmente espacial. O ameaçador da angústia

esta sempre rondando por um aí indefinido, em lugar nenhum, porém tão próximo,

ao ponto de sufocar a respiração (HEIDEGGER, 2008, p. 252).

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80

Naquilo com que a angústia se angustia revela-se o “é nada e não esta em

lugar nenhum”. Fenomenalmente, a impertinência do nada e do lugar

nenhum intramundanos significa que a angústia se angustia com o mundo

como tal. A total insignificância que se anuncia do nada e no lugar nenhum

não significa ausência de mundo. Significa que o ente intramundano em si

mesmo tem tão pouca importância que, em razão de insignificância do

intramundano, somente o mundo se impõe em sua mundanidade

(HEIDEGGER, 2008, p. 253).

O angustiar-se então abre, de maneira direta e originária, o mundo como mundo. Na

angústia perde-se o que está a mão no mundo circundante. Partindo de que o

Dasein é sempre sua possibilidade (HEIDEGGER, 2008, p. 86), o que surge então

na insignificância do intramundano é um estreitamento sobre a concepção de

possibilidade. O Dasein não acha mais conforto no mundo, nem nas relações de co-

presença com os outros.

Nesta solidão de se ver singularizado em seu próprio ser-no-mundo, não achando

na decadência cotidiana do intramundano consolo pra tal angústia, o Dasein tem

então o tal estado privilegiado de abertura para suas possibilidades mais próprias. A

angústia revela ao Dasein o seu poder-ser mais próprio, que é o ser-livre para a

liberdade de escolher e acolher a si mesmo (HEIDEGGER, 2008, p. 254).

A disposição fundamental da angústia como abertura privilegiada está no fato dela

eficientemente chamar a atenção do Dasein ao sentimento solitário de estar num

mundo estranho - neutralizando automática e consequentemente a influência do

consolo decadente do cotidiano – porém, não o colocando como simples coisa-

sujeito, ente dado, num vazio inofensivo desprovido de espacialidade. Ao contrário,

o que esta abertura angustiante proporciona ao Dasein é o sentido extremo de ser

trazido como mundo para o seu mundo e, assim, “como ser-no-mundo para si

mesmo” (HEIDEGGER, 2008, p. 255). Ou seja, a angústia abre ao Dasein a

possibilidade dele ver sentido numa existência mais própria. Também:

O Ser do Homem é caracterizado como Ser-no-mundo, e o que esta em

questão para esse Ser no mundo é, finalmente, nada mais do que manter-

se no mundo. Precisamente isto não lhe é dado; assim, o caráter

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fundamental do Ser-no-mundo é a ansiedade13

no duplo sentido de

desabrigo e medo. Na ansiedade, que é fundamentalmente ansiedade

perante a morte, o não-estar-em-casa no mundo torna-se explícito. “O Ser-

no-mundo aparece no modo existenciário do não estar em casa.” Isto é

ansiedade (ARENDT, 1993, p. 30).

O estranhamento sentido por ser-no-mundo, se dá ao fato do Dasein, sendo-no-

mundo, não se sentir em casa. O ápice do estranhamento, fato tácito que o

fundamenta, como visto anteriormente, esta no saber-se ser-para-a-morte.

Diante dessas circunstâncias, não sendo mais eficiente, a decadência não supre

mais a necessidade de familiaridade buscada pelo ser-aí na cotidianidade mediana.

A angústia assim retira o Dasein de seu empenho impessoal no “mundo”. “O ser-em

aparece no “modo” existencial de não sentir-se em casa. É isso o que diz a fala

sobre a ‘estranheza’” (HEIDEGGER, 2008, p. 255).

Fica claro agora – fenomenologicamente - do que foge o Dasein como fuga.

Heidegger diz que ele não foge de um ente intramundano, mas justamente para

esse ente é que ele acaba correndo, buscando tranqüilidade nas ocupações do

“mundo” impessoal, ou seja, ele foge buscando qualquer coisa no público que o faça

esquecer-se do chamado intermitente que o faz sentir-se estranho frente ao

impessoal enquanto ser-no-mundo singularizado, lançando-o para si mesmo em seu

ser. Esse chamado é feito pela angústia.

Entretanto Heidegger chama a atenção para a dificuldade de se delimitar

fenomenologicamente a disposição da estranheza. Ele diz que na raridade de um

Dasein autêntico que sirva de referência, geralmente toma-se a angústia por suas

manifestações ôntico/fisiológicas, sendo que o “irromper fisiológico da angústia só é

possível porque o Dasein, no fundo do seu ser, se angustia” (HEIDEGGER, 2008, p.

257). Erra-se ao tomar o sintoma pela causa. O desprezo sistemático pela questão

da análise existencial do Dasein é um fator que colabora para que essa má

interpretação ocorra,

13 A edição utilizada do texto de Hanna Arendt traz uma tradução onde a palavra

ansiedade denota o mesmo sentido da angústia.

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O apontamento desfavorável de Heidegger em relação ao habitual enfoque dado

pela filosofia para com a questão do ser, e especialmente para com o fenômeno da

disposição14, é que o enfoque corrente possibilita a consolidação desse diagnóstico

negligente.

Por outro lado, “essa raridade do fenômeno da autenticidade do Dasein, representa

que em sua propriedade, ele permanece encoberto para si mesmo em vista da

interpretação pública e que, na oportunidade, ele se abre para um sentido originário”

(HEIDEGGER, 2008, p. 257).

A angústia em seu chamado irrecusável, não obstante a fuga, promove a

possibilidade de uma abertura privilegiada do Dasein ao ser. Chamando-o para o

questionamento ontológico, tira-o do estado decadente do impessoal, revelando-lhe

na solidão da singularidade a propriedade e a impropriedade como possibilidades

fundamentais suas, de seu ser.

Pertence, na verdade, à essência de toda disposição abrir, cada vez, todo o

ser-no-mundo, segundo todos os seus momentos constitutivos (mundo, ser-

em, ser-próprio). Só na angústia subsiste a possibilidade de uma abertura

privilegiada uma vez que ela singulariza. Essa singularização retira o Dasein

de sua decadência, revelando-lhe a propriedade e impropriedade como

possibilidades de seu ser (HEIDEGGER, 2008, p. 257).

Neste estado privilegiado da angústia, essas possibilidades fundamentais mostram-

se como elas são em si mesmas, sem se deixar desfigurar pelo ente intramundano a

que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o Dasein se atém

(HEIDEGGER, 2008, p. 257).

14 “Segundo Dewey, ‘a palavra Disposição significa predisposição, prontidão para agir

abertamente de determinado modo sempre que se apresentar a oportunidade: essa oportunidade

consiste na supressão da pressão exercida pelo domínio de algum hábito patente’ (Human Nature

and Conduct, 1922, p. 41).” (ABAGGNANO, 2003, p. 687)

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3.4 O cuidado

Heidegger termina o parágrafo quarenta de Ser em Temo com a seguinte questão:

“Em que medida, com essa interpretação existencial da angústia, conquistou-se um

solo fenomenal capaz de responder à questão diretriz sobre a totalidade do todo

estrutural do Dasein?” (HEIDEGGER, 2008, p. 258).

O que vem a ser a “totalidade do todo estrutural do Dasein”? Partir de uma

recapitulação de alguns pontos fundamentais sobre o ser-aí e a angústia pode ser a

forma mais eficiente de responder a questão.

O Dasein não é um ente dado, como uma planta, um copo. Diferentemente ele é um

ente no espaço/tempo sempre sendo, no devir (sendo-em-si-mesmo), que se realiza

no mundo (sendo-no-mundo) e, no mundo, relaciona-se com os outros entes a sua

volta (sendo-com). Essas características constituem o Dasein em possibilidade e

decadência.

O Dasein é também um ser capaz de formular um questionamento ontológico – que

varia em complexibilidade e profundidade de indivíduo para indivíduo. Esse

“questionamento” que transcende a esfera do ôntico, como vimos, é conceituado em

Ser e Tempo como “angústia”, que é a disposição15 que o remete ao extraordinário –

e no ápice de sua ação, torna-o ciente do seu “ser-para-a-morte” - tirando sua

apreensão da problemática ordinária do cotidiano, levando-o assim, ou a fuga na

impessoalidade da vida imprópria e inautêntica da decadência ou a busca da

realização de suas possibilidades mais próprias numa vida autêntica.

15 Ainda: “A disposição é o humor ou a tonalidade afetiva que alternadamente

possuímos e que nos faz parecer alternadamente o mundo desta ou daquela maneira. A disposição

não é, porém, um simples fenômeno psicológico, colorindo as coisas e as pessoas, mas é, antes,

uma determinação constitutiva do nosso ser. Ela revela ao ser-aí, sempre de maneira diferente, o que

Heidegger chama o seu ser-lançado (die Geworfenheit), a sua faticidade, ou seja, o fato de que ele

está sempre já lá.” (BOUTOT, 1991, p. 35)

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Sendo assim, enquanto o remete para o futuro na temporalidade e possibilidade, a

angústia possibilita ao Dasein “projetar-se”. Esse projetar-se é característico ao

Dasein quando da sua qualidade de sempre poder ser algo além do que já se é, de

sua capacidade de anteceder-se-a-si-mesmo.

O Dasein, em razão da disposição a que pertence de modo essencial,

possui um modo de ser em que ele é trazido para diante de si mesmo e se

abre para si em seu estar-lançado. O estar-lançado, porém, é o modo de ser

de um ente que sempre é ele mesmo em suas possibilidades e isso de tal

maneira que ele se compreende nessas possibilidades e a partir delas

(projeta-se para elas). O ser-no-mundo, ao qual pertencem, de maneira

igualmente originária, tanto o ser junto que está à mão quanto o ser-com os

outros, é sempre em virtude de si mesmo. Todavia, numa primeira

aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo é o impropriamente si-

mesmo. O ser-no-mundo já está sempre em decadência. Pode-se, portanto,

determinar a cotidianidade mediana do Dasein como ser-no-mundo aberto

da decadência que, lançado, projeta-se e que, em seu ser junto ao “mundo”

e em seu ser-com os outros, está em jogo o seu poder-ser mais próprio

(HEIDEGGER, 2008, p. 247).

Optando o Dasein pela autenticidade, a angústia – livrando-o da influência do

intramundano que lhe obstrui e o fecha em si-mesmo – assume-se como a “abertura

privilegiada” para suas possibilidades mais próprias (HEIDEGGER, 2008, p. 250).

Uma vez que o revela em sua total constituição, essa constituição revelada na

angústia é a sua totalidade estrutural.

Assim, a angústia é abertura privilegiada, pois o coloca em condição de apreender-

se nessa totalidade estrutural, estrutura essa composta categoricamente em

existência (o ser-aí-face-a-si-mesmo), faticidade (o ser-já-no-mundo) e decadência

(o ser-junto-aos-entes encontrados no mundo) (BOUTOT, 1991, p. 37). Na união

dessas três determinações ontológicas que o compõe é que ele pode apreender

ontologicamente seu ser como tal (HEIDEGGER, 2008, p. 258).

Os caracteres ontológicos fundamentais desse ente são existencialidade,

faticidade e decadência. Essas determinações existenciais, no entanto, não

são partes integrantes de um composto em que se pudesse ou não

prescindir de alguma. Ao contrário, nelas se tece um nexo originário que

constitui a totalidade procurada do todo estrutural. Na unidade dessas

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determinações ontológicas do Dasein é que se poderá compreender

ontologicamente o seu ser como tal (HEIDEGGER, 2008, p. 258).

As estruturas do Dasein, do “Isto” fenomenológico do ser, Heidegger denomina

“existenciais”; e suas inter-relações estruturais, existencialidade. “A possibilidade

individual de apreender essas estruturas existências e, portanto, de existir em um

sentido explícito, Heidegger chama existenciário.” (ARENDT, 1993, p. 30)

A angústia então, enquanto disposição é um modo de ser-no-mundo; a angústia se

angustia enquanto sendo-no-mundo, ela se angustia com o ser-no-mundo-lançado

(HEIDEGGER, 2008, p. 258). Sabemos que o Dasein é um ser que sendo, arrisca-se

(põe em jogo) o seu próprio ser. Entendemos esse “arriscar-se”, o “colocar-se em

jogo”, a qualidade do Dasein que se projeta para o seu poder-ser mais próprio e

autêntico. Essa qualidade de poder-ser é o que caracteriza o Dasein, independente

dele se realizar própria ou impropriamente. Dessa forma, o Dasein desponta como

um ser lançado em projeto, onde ele é capaz de acessar seu ser, em virtude de sua

qualidade própria de “poder ser”.

Ontologicamente, o ser para o poder-ser mais próprio significa: “em seu ser,

o Dasein já sempre se antecedeu a si mesmo. O Dasein já esta sempre

‘além de si mesmo’, não como atitude frente aos outros entes que ele

mesmo não é, mas como ser para o poder-ser que ele mesmo é.

Designamos a estrutura ontológica essencial do ‘estar em jogo’ como o

anteceder-a-si-mesmo do Dasein (HEIDEGGER, 2008, p. 259).

A união dos três elementos/momentos constitutivos do Dasein - existencialidade,

faticidade e decadência - numa estrutura unitária, Heidegger define então como o

“todo estrutural” do Dasein. O evento que articula e une esses três caracteres

ontológicos fundamentais do Dasein Heidegger define como “cuidado”. E “é na

angústia que o abandono do Dasein a si-mesmo se mostra em sua concreção

originária.” (HEIDEGGER, 2008, p. 259)

A realidade humana é assim caracterizada não pelo fato de que ela

simplesmente é, mas que seu próprio Ser é por seu próprio Ser em questão.

Essa estrutura fundamental é o “Cuidado 16

” que se encontra na base de

16

Diferentemente da solução adotada na tradução para o português de Ser e Tempo, a

saber, cura, achamos mais apropriado traduzir care (sorge) por cuidado.

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nosso cuidado cotidiano no mundo. O cuidar, o ter cuidado, tem

verdadeiramente um caráter auto-reflexivo; ele é apenas aparentemente

dirigido para o objeto de que se ocupa. O Ser para qual a realidade humana

é tomada de cuidado é a “Existenz17

” que perpetuamente ameaçada pela

morte, esta condenada afinal à extinção (ARENDT, 1993, p. 30).

O cuidado é assim a totalidade das estruturas ontológicas do Dasein enquanto ser-

no-mundo. Compreende todas as possibilidades da existência que estejam

vinculadas às coisas e aos outros homens e dominadas pela situação. O cuidado,

entretanto não tem nada a ver com tristeza, aflição ou preocupação da vida em

relação à esfera ôntica, ao contrário, é possível onticamente ao Dasein ser feliz,

porque ontologicamente compreendido ele próprio é cuidado. O cuidado diz respeito

ao ontológico, como a angústia. É a essência do ser-aí. (ABAGGNANO, 2000, p.

224). “Sendo em sua totalidade essencialmente indivisível, toda tentativa de

reconstrução ou recondução do fenômeno do cuidado a atos ou impulsos

particulares tais como querer ou desejar, propensão ou tendência acaba em

fracasso” (HEIDEGGER, 2008, p. 261).

O cuidado precede toda a conduta afetiva do Dasein, e não diz respeito a uma

primazia da atitude prática sobre a atitude teórica. “Teoria” e “prática” para

Heidegger são possibilidades de ser de um ente cujo ser deve ser determinado

como cuidado (HEIDEGGER, 2008, p. 261).

Entretanto, o desejar ôntico no caráter de ser-no-mundo do Dasein compromete o

cuidado, à medida que o desejar é uma “modificação existencial do projetar-se que,

na decadência do estar-lançado, ainda adere pura e simplesmente às possibilidades

próximas.” Essa adesão fecha o Dasein às possibilidades mais próprias, fazendo

com que ele novamente caia no equívoco de tomar o que esta “por aí” como o

“mundo real”. Nessa tendência natural que remonta suas raízes, o fenômeno do

cuidado está sempre comprometido. “Não se pode negar a propensão ‘para viver’,

nem tampouco extirpar a tendência de se ‘deixar viver’ pelo mundo”. Porém, essa

propensão e tendência só existem porque se fundam ontologicamente no cuidado e

17

“O termo Existenz aparece em alemão no original inglês. Não vimos razão para

traduzi-lo, já que qualquer tradução, necessariamente precária, nada acrescentaria à elucidação de

seu significado amplamente discutido no texto pela autora. Provavelmente este é o motivo pelo qual a

autora o manteve em alemão.” (N.E.) (ARENDT, 1993, p. 179)

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se modificam através dela como ôntico-existenciário próprio, afinal, o Dasein,

independentemente do objeto, antecedendo-se-a-si-mesmo se preocupa

(HEIDEGGER, 2008, p. 263).

A expressão “cuidado” significa um fenômeno ontológico-existencial básico

que também em sua estrutura não é simples. A totalidade ontologicamente

elementar da estrutura do cuidado não pode ser reconduzida a um

“elemento primário” ôntico, assim como o ser não pode ser “esclarecido”

pelo ente. Por fim, há de se mostrar que a ideia de ser é tão pouco “simples”

como o ser do Dasein. A determinação do cuidado, como antecerde-se-a-si-

mesmo no já-ser-em..., enquanto-ser-junto-a, torna claro que este fenômeno

está, em si mesmo, articulado estruturalmente (HEIDEGGER, 2008, p. 264).

Heidegger termina o parágrafo quarenta e um do sexto capítulo da primeira seção

de Ser e Tempo questionando se, pelo visto até então, não seria necessário

prosseguir no estudo da questão ontológica levando adiante a pesquisa sobre o

fenômeno mais originário, de modo a dar maior sustentabilidade ontológica a

unidade e totalidade da multiplicidade estrutural do cuidado. Ele propõe ainda que,

antes do cuidado, deve-se aprofundar a questão ontológica fundamental do sentido

do ser em geral. Antes disso, porém, Heidegger lembra a necessidade de ressaltar

que, do ponto de vista ontológico, a “novidade” dessa interpretação abordada,

onticamente, é bastante antiga, já fora abordada anteriormente de outras formas.

O que o filósofo postula, concluindo, é que a explicação do ser do Dasein como

cuidado não força esse “ser” a se enquadrar numa ideia inventada, mas nos torna

possível conceituar existencialmente o que já se abriu de modo ôntico-existenciário

(HEIDEGGER, 2008, p. 264). Lembremo-nos do parágrafo dez de Ser e Tempo. A

proposta é ontológica, não psicológica, não antropológica nem tampouco biológica

(HEIDEGGER, 2008, p. 89).

Neste momento faz sentido a questão: se incompleta a investigação do ser realizada

através da analítica existencial do Dasein, dentro da ontologia fundamental de Ser e

Tempo, porquê?

Se incompleta foi porquanto fenomenológica. O próprio parágrafo dez, relembrado

acima, já abria a suspeição para essa possibilidade final. O ente Dasein, como

vimos, é, enquanto estruturalmente fático, um ente que conhece o seu ser uma vez

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sendo no mundo, e esse conhecer, ato intencional da consciência, é um conhecer

temporário compatível com sua existência finita. Esse tempo em que se conhece

não dura necessariamente, a partir do momento que a disposição fundamental da

angústia lhe possibilita essa abertura privilegiada para o seu ser, próprio, toda a

extensão de sua existência fática.

Em Sein und Zeit, Heidegger é claro relativamente ao estatuto da

inautenticidade. Na medida em que é já sempre lançado numa situação que

o finitiza, na medida em que é ser “lançado-para-a-morte”, o Dasein é

sempre, na faticidade, constituído pela fuga inautêntica diante da sua

finitude. A autenticidade surge assim não como uma alternativa possível à

inautenticidade, não como uma saída da faticidade inautêntica, mas apenas

como uma tomada de consciência instantânea e sem continuidade desta

mesma autenticidade (SÁ, 2008, p. 12).

Dessa forma, a autenticidade que o Dasein porventura venha experimentar, será

sempre, enquanto dada dentro desse ser temporal, igualmente temporária. A

inautenticidade vivida ordinariamente na medianidade seria então

extraordinariamente experienciada via a disposição da angústia.

Por outras palavras: a autenticidade não é uma negação da inautenticidade,

um estado situado acima da inautenticidade, mas apenas, como o próprio

Heidegger explicitamente afirma, “um captar modificado desta”. É a esta

captação modificada da inautenticidade que Heidegger chama de angústia.

Esta traduz então não um modo de compreender diferente da compreensão

inautêntica, mas uma tomada de consciência da própria inautenticidade

inelutável, uma tomada de consciência fugaz, que ocorre “apenas por

instantes” (SÁ, 2008, p. 12).

Nesse raciocínio, pressupostos de cunho científico, fenomenologicamente

analisáveis - por mais preciso que se procure deixar o objeto referência do estudo, o

“corpo de prova” Dasein – evidentemente não dariam conta de responder a questão

do ser. A incompatibilidade da análise do Dasein como propiciador de uma ontologia

fenomenológica final torna-se clara. Heidegger, nas palavras finais da tradução da

preleção do semestre de inverno ministrada entre 1928 e 1929 na Universidade de

Freiburg, diz:

Ainda uma última coisa: precisamente os instantes do ser-aí em que

conseguimos existir de modo completo e essencial não são apenas raros,

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mas de certo modo constituem um cume estreito sobre o qual só nos

mantemos de maneira fugaz. Mesmo quando esses instantes retêm a força

de impactação do ser-aí por meio de uma lembrança autêntica, eles apenas

anunciam tanto mais incisivamente que, na maioria das vezes, a existência

não é dessa maneira, ainda que ela efetivamente aconteça assim

(HEIDEGGER, 2009, p. 359).

Do mesmo modo que a análise do fático Dasein estaria sempre marcada pela

inautenticidade, o próprio projeto da construção de uma ontologia apta a confrontar-

se destrutivamente com a tradição ontológica ocidental tornaria necessária uma

compreensão diferente da compreensão inautêntica determinante da faticidade

característica do Dasein, possibilidade que a análise heideggeriana nega. Quando

de frente a este impasse, o conceito do “tempo” toma força a partir de então e se

mostra como continuidade natural dentro do projeto. “A análise da historicidade do

Dasein busca mostrar que esse ente não é ‘temporal’ porque ‘se encontra na

história’ mas, ao contrário, que ele só existe e só pode existir historicamente porque,

no fundo de seu ser, é temporal” (HEIDEGGER, 2005, p. 468).

Esta incompatibilidade tornar-se-ia manifesta no preciso momento em que a

elaboração do projecto se interrompe: na passagem das duas secções

publicadas sob o título genérico de “ser e tempo” para a terceira secção, a

qual deveria ser intitulada “tempo e ser” (SÁ, 2008, p. 13).

Nessa momento do processo da investigação do ser do Dasein, cuja essência é sua

existência, Heidegger adentra definitivamente a questão do tempo - esse movimento

ficaria mais tarde conhecido (na terminologia do autor) como “kehre” (giro), termo

que usaria pela primeira vez nas preleções do semestre de verão18 de 1928.

Heidegger, assim, a partir da questão da angústia, da decadência e do cuidado,

continua sua investigação ontológica de Ser e Tempo focando-se na temporalidade

e historicidade do Dasein. No §78: A incompletude da presente análise temporal do

Dasein, o filósofo pronuncia:

O Dasein fático, leva em conta o tempo, sem, no entanto, compreender,

existencialmente a temporalidade. Antes da questão do que significa o ente

18

HEIDEGGER, Martin (1990), Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang

von Leibniz [Marbusrg Vorlesung Sommersemester 1928; Gesamtausgabe, vol. 26], Frankfurt am

Main, Vittorio Klostermann, 2ª ed. (Apud. SÁ, 2008, p. 21).

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é e está “no tempo”, faz-se necessário esclarecer a atitude elementar desse

contar com o tempo. Deve-se interpretar toda a atitude do Dasein a partir de

seu ser, isto é, a partir da temporalidade. Cabe mostrar de que maneira o

Dasein, como temporalidade, temporaliza uma atitude que se relaciona com

o tempo, no modo de levá-lo em conta. A caracterização feita até agora da

temporalidade não é, pois, apenas incompleta, porque nem todas as

dimensões do fenômeno foram observadas, mas é, em princípio, deficiente,

já que pertence à própria temporalidade uma espécie de tempo do mundo,

no sentido rigoroso do conceito existencial e temporal de mundo. Deve-se

compreender como isto é possível e porque é necessário. E com isso poder-

se-á esclarecer tanto o “tempo”, vulgarmente conhecido, “no qual” ocorrem

entes, quanto a intratemporalidade desses entes (HEIDEGGER, 2005, p.

499).

Mais a frente, na conferência Tempo e Ser de 1962, o filósofo sumariaria:

A tentativa do §70 de Ser Tempo de reduzir a espacialidade do ser-aí à

temporalidade não pode ser mais sustentada (HEIDEGGER, 1979, p. 270).

Concluímos nosso trabalho neste ponto, lembrando que a proposta desta seção de

nossa investigação foi apontar para que, dentro da ontologia de Ser e Tempo, a

qual buscamos apresentar sua formulação fundamental, o conceito do “cuidado” é

apresentado finalmente como a forma de compreensão e interpretação do ser,

enquanto sendo temporalmente ser-aí. Ainda, que a completude do todo estrutural

do Dasein, alcançado por ele somente através da ação incondicional do fenômeno

da angústia, sendo esta a abertura privilegiada do ser-aí à sua possibilidade mais

própria, onde, antecedendo-se-a-si-mesmo no projeto, lhe é possibilitado apropriar-

se, do seu todo estrutural em questão, completando assim ontologicamente o ciclo

existencial, colocando-se consequentemente numa disposição, em conformidade e

coerência com o seu ser próprio.

Deste momento em diante a obra de Heidegger nos abre um novo horizonte de

caminhos e de possibilidades de estudo. Matéria que abordaremos futuramente, se

nossa existência temporal permitir.

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Conclusão

O objetivo deste trabalho foi apresentar a formulação da proposta ontológica

fundamental heideggeriana presente na obra Ser e Tempo. Procuramos mostrar que

a proposta da filosofia de Heidegger na referida obra consiste em retomar a questão

do estudo ontológico do ser, relegada pela filosofia ocidental. Através da

fenomenologia, uma metodologia epistemológica, ele busca identificar a

manifestação analisável do ser no mundo. Procuramos atentar que se houve um

motivo para a incompletude de sua proposta ontológica fundamental de Ser e

Tempo foi devido à abordagem via a fenomenologia do Dasein.

Analisamos o surgimento do Dasein, o ser-aí, o ente espaço/temporal em toda sua

complexibilidade estrutural e que esse tal Dasein padece na finita existência fatídica

e decadente do ser-no-mundo. Esse contínuo e sempre presente padecer do

Dasein, Heidegger conceitua como angústia.

Ressaltamos a relevância da disposição da angústia como a abertura privilegiada do

Dasein para suas possibilidades próprias. Para tal propósito, abordamos alguns

conceitos fundamentais como: Dasein, das-Man, decadência, abertura e cuidado,

procurando dessa forma situar o leitor no essencial da proposta ontológica

fundamental da filosofia heideggeriana.

Demonstramos que o Dasein é o homem como fenômeno existencial, ou, traduzindo,

o ente, o ser-aí, e que o das-Man, é este ser na sua relação no mundo, expresso

existencialmente na forma impessoal da convivência com os demais entes.

Apontamos o fato de Heidegger sustentar que a questão da angústia nasce da

inquietação do Dasein enquanto ser-no-mundo, e que se dá ordinariamente de

forma inautêntica e temporal. Essa inautenticidade do Dasein no ser-no-mundo,

impropriamente, é conceituada com o termo decadência, situação em que ele se

encontra fechado para sua existência mais própria.

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A angústia é apresentada como a abertura privilegiada do Dasein para sua

originalidade, o que lhe possibilita uma apreensão de sua autenticidade.

Demonstramos também que através do conceito de angústia, o Dasein é colocado

em condição de apreender-se em sua totalidade estrutural, estrutura essa composta

ontologicamente pela existência (o ser-aí-face-a-si-mesmo), pela faticidade (o ser-já-

no-mundo) e pela decadência (o ser-junto-aos-entes encontrados no mundo). Essa

apreensão do seu todo estrutural Heidegger postula como cuidado.

Concluímos assim a pesquisa apresentando o cuidado como a completude

estrutural/existencial do Dasein, alcançada somente através da ação incondicional

do fenômeno da angústia, em que ele, ente temporal, antecedendo-se-a-si-mesmo

no projeto, é possibilitado apropriar-se do seu todo estrutural em questão, abrindo-

lhe a possibilidade de apreender ontologicamente o seu ser próprio.

Mostramos que em Ser e Tempo Heidegger não fez psicologia, nem antropologia,

tampouco biologia, sua proposta foi, filosoficamente, identificar o ente

fenomenológico, o Dasein, em suas múltiplas possibilidades temporais, buscando a

compreensão do ser realizado no tempo.

Nosso interesse, assim, foi analisar os fundamentos básicos da ontologia

fenomenológica heideggeriana, constituinte da obra filosófica Ser e Tempo,

procurando com o resultado desta pesquisa, além dos fins práticos do momento,

contribuir com os estudiosos, como nós, da filosofia heideggeriana e dos autores

nele inspirados.

Assim, é possível falar, por exemplo, de uma leitura fenomenológica

(Merleau-ponty, Held, Sallis, Figal) existencialista (Sartre),

desconstrucionista (Derrida, Krell), pragmatista-wittgensteiniana (Dreyfus,

Haugeland, Brandon) e histórico-crítica (Pöggeler, Gethmann-Siefert) da

obra de Heidegger (HEIDEGGER, 2009, XI-XII).

Assim, relembramos enfim que o interesse de pesquisar os fundamentos da filosofia

ontológica de Heidegger, acreditando que ao abordar conceitos como possibilidade,

devir, temporalidade, possibilidade, existencialidade e outros conexos, constituintes

da vigorosa terminologia heideggeriana, desenvolveremos a capacidade de

identificar o desdobramento que sua obra desencadeou no processo histórico na

filosofia contemporânea, e compreender a influência que seu trabalho exerceu e

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exerce não só no pensamento existencialista ou de linhas similares, mas também na

diversidade de teorias e campos de pesquisa atuais, além das expostas acima,

outras, possibilitando-nos, dessa forma, ampliar nossa percepção em relação as

nossas várias possibilidades futuras.

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