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Fragmentos pre modernistas

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Page 1: Fragmentos pre modernistas

Triste fim de Policarpo Quaresma

Lima Barreto

Veja aqui, no mesmo romance, a forma como o autor descreve a cidade do Rio de

Janeiro em um dia de domingo.

“O bonde tardou um pouco. Chegou.

Tomaram. Desceram no Largo da Carioca.

É bom ver-se a cidade nos dias de

descanso, com as suas lojas fechadas, as

suas estreitas ruas desertas, onde os

passos ressoam como em claustros

silenciosos. A cidade é como um esqueleto,

faltam-lhe as carnes, que são a agitação, o

movimento de carros, de carroças e gente.

Na porta de uma loja ou outra, os filhos do

negociante brincam em velocípedes, atiram

bolas e ainda mais se sente a diferença da

cidade do dia anterior.”

“Não havia ainda o hábito de procurar os

arrabaldes pitorescos e só encontravam,

por vezes, casais que iam apressadamente

a visitas, como eles agora. O Largo de São

Francisco estava silencioso e a estátua, no

centro daquele pequeno jardim que

desapareceu, parecia um simples enfeite.

Os bondes chegavam preguiçosamente ao

largo com poucos passageiros. Coleoni e

sua filha tomaram um que os levasse à

casa de Quaresma. Lá foram. A tarde se

aproximava e as toilettes domingueiras já

apareciam nas janelas. Pretos com roupas

claras e grandes charutos ou cigarros;

grupos de caixeiros com flores

estardalhantes; meninas em cassas bem

engomadas: cartolas antediluvianas ao

lado de vestidos pesados de cetim negro,

envergados em corpos fartos de matronas

sedentárias; e o domingo aparecia assim

decorado com a simplicidade dos humildes,

com a riqueza dos pobres e a ostentação

dos tolos.”

Veja também como ele descreve a vida nos subúrbios cariocas:

“Além disto, os subúrbios têm mais

aspectos interessantes, sem falar no

namoro epidêmico e no espiritismo

endêmico; as casas de cômodos (quem as

suporia lá!) constituem um deles bem

inédito. Casas que mal dariam para uma

pequena família, são divididas,

subdivididas, e os minúsculos aposentos

assim obtidos, alugados à população

miserável da cidade. Aí, nesses caixotins

humanos, é que se encontra a fauna

menos observada da nossa vida, sobre a

qual a miséria paira com um rigor londrino.

Não se podem imaginar profissões mais

tristes e mais inopinadas da gente que

habita tais caixinhas. Além dos serventes

de repartições, contínuos de escritórios,

podemos deparar velhas fabricantes de

rendas de bilros, compradores de garrafas

vazias, castradores de gatos, cães e galos,

mandingueiros, catadores de ervas

medicinais, enfim, uma variedade de

profissões miseráveis que as nossas

pequena e grande burguesias não podem

adivinhar. Às vezes num cubículo desses

se amontoa uma família, e há ocasiões em

que os seus chefes vão a pé para a cidade

por falta do níquel do trem.”

Page 2: Fragmentos pre modernistas

Urupês

Monteiro Lobato

Fragmentos do capítulo 1 de Urupês Nada o esperta. Nenhuma ferretoada o põe de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida, antes de agir, acocora-se. Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie. Ei-lo que vem falar ao patrão. Entrou, saudou. Seu primeiro movimento após prender entre os lábios a palha de milho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada d’esqguicho, é sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares. Só então destratava a língua e a inteligência. (...) De pé ou sentado as idéias se lhe entramam, a língua emperra e não há de dizer coisa com coisa. (...)Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade! (...) Seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor esforço — e nisto vai longe. Começa na morada. Sua casa de sapé e lama faz sorrir aos bichos que moram em toca e gargalhar ao joão-de-barro. Pura biboca de bosquímano. (...) Às vezes se dá ao luxo de um banquinho de três pernas — para os hóspedes. Três pernas permitem equilíbrio, inútil, portanto, meter a quarta, que ainda o obrigaria a nivelar com o chão. Para que assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados calcanhares sobre os quais se sentam?

Nenhum talher. Não é a munheca um talher completo — colher, garfo e faca a um tempo? (...) Seus remotos avós não gozaram de maiores comodidades. Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso. (...) Remendo... Para quê? Se uma casa dura dez anos e faltam “apenas” nove para que ele abandone aquela? Esta filosofia economiza reparos. (...) Todo o inconsciente filosofar do caboclo grulha nessa palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga a pena. Nem culturas, nem comodidades. De qualquer jeito se vive.

Page 3: Fragmentos pre modernistas

Eu e Outras Poesias -

Augusto dos Anjos

“Desde então para cá fiquei sombrio

Um penetrante e corrosivo frio

Anestesiou-me a sensibilidade

E a grandes golpes arrancou raízes

Que prendiam meus dias infelizes

A um sonho antigo de felicidade!”

“Meu coração, como um cristal, se

quebre,

O termômetro negue minha febre,

Torne-se gelo o sangue que me abrasa,

E eu me converta na cegonha triste

Que das ruínas duma casa assiste

Ao desmoronamento de outra casa!”

“Bati nas pedras dum tormento rude

E a minha mágoa de hoje é tão intensa

Que eu penso que a alegria é uma doença

E a tristeza é minha única saúde.”

"Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes

Tudo que sentes. A infelicidade

Parece às vezes com a felicidade

E os infelizes mostram ser felizes!"

"(...)

Ah! Se me ouvisses falando!

(E eu sei que às dores resiste)

Dir-te-ia coisas tão tristes

Que acabarias chorando.

Que mal o amor tem me feito!

Duvidas?! Pois, se duvidas,

Vem cá, olha estas feridas

Que o amor abriu em meu peito.

Passo longos dias, a esmo...

Não me queixo mais da sorte

Nem tenho medo da Morte

Que eu tenho a Morte em mim mesmo!

(...)"

"Homem, carne sem luz, criatura cega,

Realidade geográfica infeliz

O Universo calado te renega

E a tua própria boca te maldiz!

O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o

ômega

Amarguram-te. Hebdômadas hostis

Passam... Teu coração te desagrega,

Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!

Fruto injustificável dentre os frutos,

Montão de estercorária argila,

Excrescência de terra singular.

Deixa a tua alegria aos seres brutos,

Porque, na superfície do planeta,

Tu só tens um direito: - o de chorar!"

Page 4: Fragmentos pre modernistas

Euclides da Cunha - parte II

O HOMEM

A segunda parte de Os Sertões é a mais

polêmica porque nela aparecem questões como

a da formação racial do sertanejo e a dos males

da mestiçagem. Euclides vê na mistura de raças

um retrocesso:

De sorte que o mestiço - traço de união

entre as raças, breve existência

individual em que se comprimem

esforços seculares - é quase sempre um

desequilibrado. (...) E o mestiço -

mulato, mameluco ou cafuzo - menos

que um intermediário, é um decaído,

sem a energia física dos ascendentes

selvagens, sem a altitude intelectual

dos ancestrais superiores.

Contrastando com esta quase

impossibilidade do mestiço para a

civilização moderna, os sertanejos

nordestinos (embora também

resultantes de amplo caldeamento

étnico) seriam diferentes por terem há

muito se isolado no grande interior do

país. Abandonados há três séculos, sem

contatos maiores com o litoral

desenvolvido, “nossos patrícios

retardatários” – inversamente aos

mestiços urbanos – não haviam sido

corrompidos:

O abandono em que jazeram teve

função benéfica. Libertou-os da

adaptação penosíssima a um estágio

social superior e, simultaneamente,

evitou que descambassem para as

aberrações e vícios dos meios mais

adiantados.

Por isso, apesar de seu atraso mental, o

sertanejo surge como um titã:

O sertanejo é, antes de tudo, um forte.

Não tem o raquitismo exaustivo dos

mestiços neurastênicos* do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao

primeiro lance de vista revela o

contrário. Falta-lhe a plástica

impecável, o desempeno**, a estrutura

corretíssima das organizações atléticas.

É desgracioso, desengonçado, torto.

Hércules-Quasímodo, reflete no

aspecto a fealdade típica dos fracos. O

andar sem firmeza, sem aprumo, quase

gingante e sinuoso, aparenta a

translação de membros desarticulados.

Agrava-o a postura normalmente

abatida, num manifestar de displicência

que lhe dá um caráter de humildade

deprimente. (...)

É um homem permanentemente

fatigado.

Reflete a preguiça invencível, a atonia

muscular perene, em tudo: na palavra

remorada, no gesto contrafeito, no

andar desprumado, na cadência

langorosa das modinhas, na tendência

constante à imobilidade e à quietude.

Entretanto, toda esta aparência de

cansaço ilude.

Naquela organização combalida

operam-se, em segundos,

transmutações completas. Basta o

aparecimento de qualquer incidente

exigindo-lhe o desencadear das

energias adormidas. O homem

transfigura-se. Empertiga-se.

Page 5: Fragmentos pre modernistas

Euclides da Cunha - parte II

O HOMEM

“Antônio Conselheiro há vinte e

dois anos, desde 1874, era famoso

em todo o interior do Norte e

mesmo nas cidades do litoral até

onde chegavam, entretecidos de

exageros e quase lendários, os

episódios mais interessantes de sua

vida romanesca; dia a dia ampliara

o domínio sobre as gentes

sertanejas; vinha de uma

peregrinação incomparável, de um

quarto de século, por todos os

recantos do sertão, onde deixara

como enormes marcos,

demarcando-lhe a passagem, as

torres de dezenas de igrejas que

construíra; fundara o arraial de

Bom Jesus, quase uma cidade; de

Chorrochó à Vila do Conde, de

Itapicuru a Jeremoabo, não havia

uma só vila, ou lugarejo obscuro,

em que não contasse adeptos

fervorosos, e não lhe devesse a

reconstrução de um cemitério, a

posse de um templo ou a dádiva

providencial de um açude;

insurgira-se desde muito,

atrevidamente, contra a nova ordem

política e pisara, impune, sobre as

cinzas dos editais das câmaras de

cidades que invadira; destroçara

completamente, em 1893, forte

diligencia policial, em Macete, e

fizera voltar outra, de oitenta praças

de linha, que seguira até Serrinha;

em 1894, fora, nu Congresso

Estadual da Bahia, assunto de

calorosa discussão na qual,

impugnando a proposta de um

deputado, chamando a atenção dos

poderes públicos para a "parte dos

sertões perturbada pelo indivíduo

Antônio Conselheiro", outros

eleitos do povo, e entre eles um

sacerdote, apresentaram-no como

benemérito do qual os conselhos se

modelavam pela ortodoxia a cristã

mais rígida; fizera voltar, abortícia,

em 1895, a missão apostólica

planeada pelo arcebispo baiano, e

no relatório alarmante a propósito

escrito por frei João Evangelista

afirmara o missionário a existência,

em Canudos — excluídas as

mulheres, as crianças, os velhos e

os enfermos — de mil homens, mil

homens robustos e destemerosos

"armados até aos dentes"; por fim,

sabia-se que ele imperava sobre

extensa zona dificultando o acesso

à cidadela em que se entocara,

porque a dedicação dos seus

sequazes era incondicional, e fora

do círculo dos fiéis que o rodeavam

havia, em toda a parte, a

cumplicidade obrigatória dos que o

temiam... E achou-se suficiente

para debelar uma situação de tal

porte uma força de cem soldados.”

Page 6: Fragmentos pre modernistas

Canaã - Graça Aranha

A obra discute a situação em mim dos

imigrantes alemães no Espírito Santo,

bem como os conflitos decorrentes

desta colonização.

Fragmento:

Milkau, alemão, recém-chegado, o a uma

colônia de imigrantes europeus, no Espírito

Santo, aluga um cavalo para ir do Queimado à

cidade de Porto do Cachoeiro. Junto com ele vai

o guia, um menino de 9 anos, filho de um

alugador de animais, no Queimado. O imigrante

observa a paisagem e, ao passar por uma

fazenda abandonada, entregue aos poucos e

pobres escravos, nota o ritmo daquela gente

desamparada. Finalmente, chega ao sobrado do

comerciante alemão, Roberto Schultz, em

Cachoeiro. Na parte inferior do edifício fica o

armazém, onde é negociada toda sorte de

produtos, desde fazenda até instrumentos

agrícolas.

É apresentado a outro imigrante, von Lentz,

filho de um general alemão. Milkau deseja

arrematar um lote de terra para se estabelecer.

Schultz apresenta-lhe o agrimensor,

Sr.Felicíssimo, que está para ir ao Rio Doce

fazer medições de terra. Milkau, desejando aí se

estabelecer, decide se juntar ao agrimensor e

convida o indeciso Lentz para acompanhá-lo.

Pelo caminho, Lentz e Milkau discutem a

paisagem e a raça brasileiras. Milkau crê que o

progresso só se dá quando os povos se

misturam. Vê, na fusão das raças adiantadas

com as selvagens, o rejuvenescimento da

civilização. Enquanto acredita na humanidade,

pensa encontrar no Brasil Canaã, "a terra

prometida". Lentz só se ocupa da superioridade

germânica, ficando enaltecido com o triunfo dos

alemães sobre os mestiços. Para ele, a mistura

gera uma cultura inferior, uma civilização de

mulatos que serão sempre escravos e viverão em

meio a lutas e revoltas. Acrescenta que está no

Brasil, porque o estava forçando a se casar com

a filha de um general, amigo do pai. Preferiu

começar vida nova, longe dos deveres e

obrigações impostos por sua sociedade. Milkau

conta-lhe que também não encontrava graça no

viver, ansiava por uma vida mais independente,

em que pudesse dar vazão à sua individualidade.

À noite, reúnem-se a Felicíssimo e ouvem de

alguns homens da terra e dos trabalhadores

alemães lendas, evocando o Reno e despertando

saudades. Os planos dos dois imigrantes

diferem; Milkau deseja manter seu pedaço de

terra e anseia por uma justiça perfeita sem

ganâncias ou lutas. Lentz está determinado a

ampliar sua propriedade, ter muitos

trabalhadores sob seu comando. Sonha com o

domínio do branco sobre o mulato, numa

confirmação de seu poder.

Após as medidas tomadas por Felicíssimo,

Milkau pode levantar sua casa e Lentz deixa-se

ficar, triste e angustiado, incapaz de abandonar

o companheiro, dedicando-se às viagens e

compras da casa. No trajeto, encontra-se sempre

com um velho colono alemão taciturno, em

companhia de seus cães ferozes, mas fiéis. Mais

tarde, encontrará esse velho morto em casa,

guardado pelos animais e devorado pelos

urubus.

Um dia, ao retornar de Santa Teresa, Lentz traz

a notícia de que, em Jequitibá, o novo pastor vai

celebrar seu primeiro serviço. Os colonos

preparam uma festa e Milkau resolve juntar-se a

eles como forma de se familiarizar com os

costumes do povo. Pelo caminho, os amigos

encontram famílias inteiras de colonos. As

mulheres se vestem com o modelo usado na

partida para a nova terra, sendo possível fixar,

pelo vestuário, a época de cada imigração.

Felicíssimo os convida para, depois do culto,

festejarem no sobrado de Jacob Müller. Ouvem

música e vêem o povo dançando. Milkau diz a

Lentz que era isso o que buscava: uma vida

simples em meio à gente simples, matando o

ódio e esquecendo da dor. Os homens de outras

terras estavam possuídos pelo demônio,

devastando o mundo. Lentz vê em tudo aquilo

uma existência vazia e inútil.

Milkau conhece, nesse dia, no sobrado de

Müller, uma colona, Maria Perutz, que não

consegue mais esquecer o encontro com o

rapaz. A história de Maria é triste e solitária. O

pai morreu antes que ela pudesse conhecê-lo. A

mãe viúva, criada da casa do alemão Augusto

Kraus, logo falece e Maria fica sob os cuidados

de Augusto, seu verdadeiro amigo. Moravam

com o velho, seu filho, a nora Ema e o neto,

Moritz Kraus. Repentinamente, Kraus falece e a

situação na casa de Maria se modifica.

Ema e o esposo decidem separar a moça do

filho, temendo uma aproximação amorosa. A

família quer ver Moritz casado com a rica

Emília Schenker e o enviam para longe de

Jequitibá. O rapaz parte com certa alegria,

deixando Maria desgostosa, pois os dois já eram

amantes.

Franz Kraus é procurado por um Oficial de

Justiça que, desejando saber porque a morte do

velho não foi notificada, passa-lhe um

documento sobre a necessidade de arrolamento

dos bens de Augusto Kraus. Solicita que lhe

Page 7: Fragmentos pre modernistas

prepare alojamento e comida para cinco

pessoas, pois darão plantão em sua casa,

recebendo todos os que estiverem na mesma

situação de Franz.

O grupo se instala na casa e passa a chamar os

colonos, amedrontando-os com extorsões e

violências. Após a visita, cobram de Franz

Kraus a alta importância de quatrocentos mil

réis, além de demonstrarem certo interesse em

Maria, notadamente o procurador Brederodes.

Kraus sente-se ultrajado e roubado. A vida de

Maria por essa época piora. Dia-a-dia, teme que

seu estado se revele, por isso aguarda

desesperadamente o retorno de Moritz para lhe

contar sobre o filho que espera.

Os pais do rapaz não tardam perceber o que se

passa. Vendo-a mover-se pela casa

languidamente, sentem ódio e temem pelo

casamento do filho. Passam o dia a cochichar, a

tramar para se verem livres dela. Tratam-na com

mais rigor, não lhe dão quase comida, dobram-

lhe os trabalhos. Resignada, Maria resiste para

desespero dos velhos. Uma manhã, trêmula e

exausta deixa cair um prato. Encolerizada, Ema

grita para que ela abandone a casa. O marido

ameaça-lhe com um pedaço de madeira.

Amedrontada, arruma uma trouxa e sai. Pede

auxílio ao pastor, mas esse, dominado pela

cunhada, docemente afasta Maria que parte para

a vila em busca de abrigo.

Ao verem a triste figura, os colonos tomam-na

por louca, enxotando-a. Na floresta, seu único

refúgio, cai prostrada e adormece. No dia

seguinte, encontra uma estalagem, onde

empenha a trouxa de roupa em troca de comida

e abrigo. A dona do estabelecimento lhe dá dois

dias para encontrar um emprego, mas a busca é

em vão. Certo dia, na hora do almoço, Milkau

reconhece Maria na estalagem. Ao saber de sua

história, prontifica-se a ajudá-la, levando-a para

a casa de uns colonos. A moça é aceita, mas

tratada com desdém.

Um dia, trabalhando, solitariamente, no cafezal,

começa a sentir as dores do parto. Temendo

retornar à casa e ser maltratada, resiste até cair

e, esvaindo-se em sangue, dá luz ao bebê.

Alguns porcos, que estavam nas proximidades,

correm para lambê-los, mordendo o bebê que

falece. A filha dos patrões chega nesse instante

e, sem nada perguntar, volta à casa, dizendo que

Maria tinha matado o bebê e dado a criança aos

porcos. Dois dias depois, Perutz estava presa na

cadeia de Cachoeiro.

A população germânica, horrorizada com o

crime de Maria, prepara-se para a vingança e o

exemplo. Roberto Shultz procura os mesmos

representantes da Justiça que amedrontaram e

extorquiram os colonos, durante o arrolamento

de bens. Pede-lhes que deixem a punição da

mãe assassina para os alemães. O procurador

Brederodes, ignorado por Maria na época,

insiste em puni-la para que aprenda a não ser tão

orgulhosa. Chama todos os alemães de

hipócritas e parte, deixando Shultz

desmoralizado.

Milkau fica sabendo do destino de Perutz e o

encontro com ela em Cachoeiro choca-o. Maria

tinha a face lívida e os olhos cintilantes

dançavam ao sabor da loucura. Volta a vê-la

dias seguidos, passando a ser olhado com

desprezo e desconfiança, pois, talvez, fosse o

amante. Repelido pelos moradores, resigna-se

com a condição de inimigo, permanecendo ao

lado de Maria.

Certa manhã, estando em companhia de

Felicíssimo, Milkau encontra Maria, sendo

levada por dois soldados para o tribunal. Em

cada fase do julgamento, é apontada culpada.

Milkau acompanha todas as sessões, chegando a

ficar amigo do juiz Paulo Maciel. Este lhe diz

que o final não será feliz, pois os depoimentos

não deixam brecha para a inocência. O

imigrante e Maciel aproveitam os encontros

para analisar a justiça brasileira, os brasileiros e

seu patriotismo.

A avaliação não é das melhores. O juiz

impossibilitado de fazer justiça por uma série de

circunstâncias observa que a decadência ali

existente é um "misto doloroso de selvageria

dos povos que despontam para o mundo, e do

esgotamento das raças acabadas. Há uma

confusão geral". Milkau crê que se pode chegar

a algo melhor. Entretanto, à medida que

acompanha o definhar da amiga, vai se

deixando tomar pela tristeza.

Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da

prisão e foge com ela, correndo pelos campos

em busca de Canaã, "a terra prometida", onde os

homens vivem em harmonia.

Page 8: Fragmentos pre modernistas

Cidades Mortas

Um homem de consciência

Monteiro Lobato

Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para joão Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro. Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor. Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o deperecimento visível de sua Itaoca. - Isto foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons - agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando... João Teodoro entrou a incubar a ideia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível. - É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui. Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada... Ser delegado numa cidadinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca! ... João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou num cavalo magro e partiu. - Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo,

assim de armas e bagagens? - Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim. - Mas , como? Agora que você está delegado? - Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus. E sumiu.