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[Capa] FRANCISCO A L V E S minha V I D A

Francisco Alves - Minha Vida

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Autobiografia por Francisco Alves - 1936.

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Page 1: Francisco Alves - Minha Vida

[Capa] FRANCISCO A L V E S

minha V I D A

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MINHA VIDA

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F R A N C I S C O A L V E S

MINHA VIDA

(AUTO-BIOGRAPHIA)

1 9 3 6 Editora

Brasil Contemporaneo Rio de Janeiro – Brasil

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[Sem número] [Foto Dedicatória impressa: Ofereço a minha idolatrada mãe, como lembranças de seu filho. Francisco Alves Rio – 19-9-921 Legenda: Francisco Alves em 1921.]

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E S T E L I V R O Não tem nenhuma pretensão literaria. Fil-o, apenas, para attender a innumeros e insistentes pedidos de minhas admiradoradas, cujos applausos generosos têm influido de modo decisivo em todas as phases de minha carreira artistica. Foram ellas que me animaram sempre, que me incentivaram atravez das vicissitudes de uma vida humilde e agitada, a trabalhar e a destruir os obstaculos que têm de enfrentar todos os que aspiram vencer. Si eu tivesse nascido em berço de ouro, facil me seria galgar rapidamente uma posição de destaque em nossos meios artisticos. O dinheiro, com seu prestigio fascinante, colloca tudo ao alcance de seus possuidores. A unica fortuna, porém, que trouxe para a vida foi a minha voz. Todavia, a minha situação éra, paradoxalmen

[VI] te, a de um homem que tem um diamante em bruto e não possue recursos para lapidal-o.

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Caruso, o maior dos cantores italianos, foi em sua infancia um modesto vendedor ambulante. Si não fosse a argucia e o faro artistico de um professor de canto que o foi buscar no anonymato das ruas, elle teria sido apenas o cantor desconhecido da arte lyrica da Italia. Eu, entretanto, não encontrei nenhum Mecenas que quizesse offerecer-me uma opportunidade para educar a voz e apparecer em publico. Os meu paes eram pauperrimos. Não puderam, a despeito de me quererem muito, dar-me uma educação aprimorada. Passei pelos bancos das escolas primarias com a rapidez de um trem expresso. Não pude frequentar o Instituto de Musica e muito menos os cursos particulares onde, em regra, os professores cobram muito e ensinam pouco. Vim para a vida desamparado e pobre. Lutei, soffri e venci com os meus proprios esforço. Este livro tem, pois, a exemplo de “Me-

[VII]

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morias”, de Humberto de Campos, guardadas as devidas proporções, o merito de ser “uma licção de coragem aos timidos, de audacia aos pobres, de esperança aos desamparados, e, dessa maneira, um roteiro util á mocidade que a manuseie”. Afóra essa finalidade, quiz, como accentuei acima saisfazer a romantica curiosidade da mulher brasileira, a quem devo as emoções mais encantadoras de minha longa jornada artistica pelas ribaltas e pelo radio. Aliás, estou certo de que ella, pelo menos, saberá compreender a sinceridade destas paginas, que são um tributo de meu reconhecimento ao muito que lhe devo. FRANCISCO ALVES

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Minha Infancia

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MINHA INFANCIA Nasci em 19 de Agosto de 1898, na rua da Prainha, na cidade do Rio de Janeiro. Folheando as paginas do livro de meu passado, as minhas recordações tornam-se bem vivas dos sete annos para cá. Nessa época, lembra-me como se fosse hoje, morava na rua Evaristo da Veiga, 49. Não fui uma creança prodigio. Ao contrario. Sempre me revelei um pequeno peralta e alegre que queria, apenas, gozer a vida, que não via com bons olhos os livros, que não achava nenhuma attração nos estudos. A rua era a minha grande preoccupação.

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Viver ao ar livre, correr e brincar, empinar papagaios e jogar pião com os meus companheiros de infancia, eis o que constituia os unicos objectivos de meu sete annos.

[12] Os meus paes tinham-me verdadeira adoração. Tudo elles me perdoavam, achando proprio da minha edade. Em casa, sempre que chegava alguma reclamação dos visinhos, todos já sabiam que eram “artes” do Chico, apellido com que era chamado pelos meus e que conservo até hoje, mesmo nos meios artisticos. As primeiras relações que travei com o alphabeto, aliás contra a minha vontade, foram por intermedio de uma senhora das relações da minha familia, mãe de um amigo de infancia, hoje jornalista. Sabendo já alguma coisa da cartilha, os meus paes resolveram que eu devia frequentar a escola publica, onde o rigor da disciplina deveria

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despertar o estudioso que parecia adormecido no bosque de minha infancia. Não raro, fiquei de castigo por causa de minha má vontade com os livros. Minha mãe procurava orientar melhor os meu passos. Vendo o inutilidade de seus bons conselhos, ás vezes appellava para os castigos corporaes. Não pou-

[13] cas vezes enfrentei a palmatoria e outros instrumentos disciplinares. No entanto, as mais vivas saudades de minha longinqua infancia são precisamente as de meus paes, hoje mortos e que tudos fizeram para que os meus primeiros contactos com a vida fossem agradaveis. Fui creado nnum ambiente profundamente religioso. Todos nós frequentavamos, pelo menos, aos domingos, a igreja. Como meus irmãos, fui obrigado a aprender o cathecismo. A religião catholica, a religião de meus paes ficou desde essa época remota arraigada em meu espirito.

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Os annos correrram vertiginosamente. Lutei. Soffri. Fiquei homem. A minha vida teve modificações radicaes. Todavia, continúo o mesmo catholico fervoroso. A proposito, lembro-me de um facto assás expressivo, occorrido comigo, por occasião de uma tournée artistica que realizei ao sul, em companhia de Mario Reis, Noel Rosa e Nonô.

[14] Uma noite, elles entraram no meu camarote e surpreenderam rezando. Acharam graça e commentaram o facto de vêr “um bohêmio, um artista rezando como uma criança!” Então expliquei que “aquillo” era um velho habito que eu tinha. Todos os dias costumava rezar pelos meus parentes e principalmente pelos meus queridos paes. Algum tempo depois, passei a frequentar o Collegio da Ajuda. Apesar de continuar a ser um mau estudante, eu ia progredindo.

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A insistencia e os conselhos dos meus progenitores iam vencendo, pouco a pouco, a aversão que eu tinha á escola e aos professores. E’ claro que os meus costumes e as minhas tendencias “libertarias” se acentuavam cada vez mais. O meu amôr á rua e a liberdade empolgavam por completo o meu espirito. A não ser as horas em que eu me julgava um prisioneiro, sentado nos bancos escolares, lendo livros que só me interessavam pelas suas

[15] illustrações coloridas, o resto do dia e da noite eram inteiramente dedicados aos brinquedos e ás distrações. De manhã, ás vezes, até antes do café matinal, eu já estava na rua em companhia dos amigos, jogando bola de gude e fazendo girar o meu pião. A’ tarde, mudava de roupa e ia ouvir o ensaio da banda de musica do 1.º ou do 2.º batalhão que, naquella época, faziam retretas todos os dias.

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O meu gosto pela musica, a minha inclinação pela arte de Carlos Gomes começava, então, a se manifestar.

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Carnaval

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CARNAVAL

Quando attingi 9 annos continuava um garoto sadio e esperto, dotado de vivacidade e famoso, no meu bairro, pelas traquinadas que fazia, pelas vidraças que quebrava, treinando foot-ball. Lembro-me de que, naquelles tempos, a influencia pelos clubs carnavalescos tornara-se uma coisa séria, um verdadeiro delirio. Toda cidade deixava-se empolgar pela paixão dos partidos, em que se dividiam as preferencias collectivas. A’s vezes, o antagonismo das predilecções e sympathias determinava scenas de aggressão e brutalidade. Na ausencia de outros argumentos, trocavam-se sopapos. Até na intimidade dos lares

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ocorriam desintelligencias entres os membros da mesma familia. Se o pae era Fe-

[20] niano, a mãe era pelos Democraticos e os filhos Tenentes do Diabo. A cosinheira tambem entrava resolutamente no cordão, prestigiando o gosto do patrão ou da patrôa, ou divergindo de ambos. Um verdadeiro inferno domestico. Minha casa não se recusara a acompanhar a sanha dos partidos em collisão. Era tambem um reflexo da chamma geral, uma onda bulhenta do mar agitados que inundava a cidade de alegria. Meu pae torcia pelos Fenianos, a minha mãe e irmãos pelos Democraticos. Quanto a mim, tomara, incondicionalmente o partido dos Democraticos. Batia por elle com firmeza e eloquencia incommuns em garoto da minha idade. Talvez essa circumstancia toda sentimental contribuisse para que, mais tarde, no coração do homem, perdurasse, sempre querida e inapagada, a saudosa predilecção de infancia.

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Meu pae não perdia opportunidade para dar expansões ao seu bom humor. Um dos traços caracteristicos do seu temperamentos era a

[21] alegria constante, a jovialidade com que encarava a vida. Mesmo nos momentos de maiores difficuldades elle tinha um sorriso. Creio que foi um precursor da campanha de bôa vontade... Conhecendo o meu “beguin” pelos Democraticos, dizia-me, em tom ironico, mas illuminando a physionomia com a nitidez de um sorriso dôce: — Chico: Só te darei phantasia que tenha as côres Fenianas. E’ inutil “estrillar”. Eu ficava furioso e respondia com altivez: — Vou rasgar a minha phantasia! Mas, passado o susto, refazia o animo e esperava confiante pela decisão final, que era sempre favoravel ao meu club. E note-se que a phantasia era bonita e enchia de inveja os meus companheiros de infancia.

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Naquella época, as musicas populares já se faziam ouvir com enthusiasmo durante a quadra carnavalesca. Não apresentavam ainda, o sabor das canções que caracterizam os carna-

[22] vaes cariocas da actualidade. Mas já definiam, nitidamente, o espirito irreverente e os sentimentos affectivos das multidões empolgadas pelo ardor da folia. Quem, ao passar em revista os dias trepidantes do carnaval daquelle tempo, não se recor dará com melancolia e saudade das canções que fizeram vibrar a nossa infancia e adolescencia? Yayá me deixa subir nesta ladeira... Eu sou do grupo mas não pego na chaleira. E outra: Vem cá mulata, Não vou lá não...

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Sou Democrata, De coração. Com esta musica saltitante, os gloriosos Democraticos rompiam, na terça-feira gorda, as ondas populares que se agitavam, em plena Ave-

[23] nida Central, num tumultuar incessante e colorido. Vem cá mulata, Não vou lá não... E o “refrain” tomava conta da garganta do povo carioca que não cessava de cantar com grande espectaculosidade e alegria. Quando alguem passava ao meu lado dizendo: -— “Gato comeu carapicú”— podia contar com as erupções silenciosas de minha raiva juvenil. Ficava por conta. Mas tinha que suffocar os impetos da minha indignação.

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Se fosse homem já feito, dono de uns musculos poderosos, pensava com os vistosos botões de minha phantasia, castigaria o atrevido, revidando o insulto, ao pé da letra. Foi nesse ambiente que embalei os primeiros sonhos de minha infancia. O tempo foi se passando rapidamente. Dizem os entendidos em materia sociologica que o

[24] homem é o produto do meio em que vive. A arvore plantanda á beira do rio, deve ser differente em fecunidade e seiva da que mergulha as suas raizes no subsolo de uma região escassa de liquido fertilisante. A seiva que mais tarde teria de me nutrir a voz, traçando-me o destino de cancioneiro da cidade, veiu-me, para bem dizer, das sensibilidades domesticas que me cercavam. Minha mãe e meus irmãos viviam enganando a modestia, a pobreza do nosso lar, com a toada de nossas canções. Guardo, ainda, os livros de

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modinhas daquella época que, em casa, andavam de mão em mão. Papae tinha por sua vez um quinhão na unanimidade lyrica da familia. Tocava diversos instrumentos. Como se póde avaliar a nossa casa era, dessa forma, um paraiso musicado, onde se revelava um viveiro de passaros alacres que o mundo ignorava. Dobraram-se os annos.

[25] Fomos obrigados a procurar outra residencia, em virtude do predio em que habitavamos ter sido condemnado pela Saude Publica. Installamo-nos na rua Frei Caneca, 141. Este predio, aliás, ainda existe. Pouco demoramos ahi, mudando-nos para á rua Riachuelo, 112. Dir-se-ia que não pagavamos os alugeis, em consequencia da instabilidade dos nossos domicilios. Mas essa supposição deve ser afastada pelos leitores intelligentes. Meu pae foi um chefe de familia exemplar e um cidadão trabalhador e

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cumpridor dos seus deveres. Talvez, por isso mesmo, a unica herança que me legou foi um nome digno, mantido nobremente através de difficuldades de toda sorte.

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Na Escola Tiradentes

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NA ESCOLA TIRADENTES Alguns dias depois de fixarmos residencia na rua Riacuelo, meu pae tomeou energicas providencias afim de que eu fosse encaminhado para uma escola publica. Juntamente com meus irmãos Lina, Carolina e Juca, fui matriculado na “Escola Tiradentes”. Julgo desnecessario accentuar que nesta altura ainda não tinha me reconciliado com os livros. O professor apparecia aos meus olhos infantis com ares terriveis de um carcereiro, cujas funcções eram controlar os meus instinctos da liberdade, a minha vontade de ir para as ruas brincar e correr livremente.

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Sempre que podia fazia “gazeta”, a pretexto de “doença” que passava logo que o

[30] ponteiro do relogio indicava que já haviam começado as aulas. Ficava em casa satisfeito e feliz. Para me distrahir, para matar o tempo, eu cantava o “Vem-cá-mulata”, a canção dos “Democraticos” e á noite ouvia, com enlevo, o bombardino do meu pae, que estava sempre em grande actividade musical, ensaiando um dobrado qualquer. Esse bombardino era uma especie de “lampeão” metallico, a vociferar coleras synchronisadas. Era o terror da pacata visinhança, onde não existia, ao que me constasse, nenhuma creatura victima de surdez, isto é, devidamente munida com “habeas-corpus” auricular. O mundo para mim se resumia nessas pequenas cousas. Os primeiros livros, em que estudei, inspiraram-me a principio uma certa curiosidade pittoresca.

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Varios dias fiquei preso ás suas paginas que me encheram de enthusiasmo.

[31] Depois fatiguei-me. A paysagem tornara-se monotona e insipida. A’ medida que me iam impondo a obrigação de entrar em estreita intimidade, de me familiarisar com aquelles caracteres, cada vez mais complicados e difficeis de serem assimilados pela minha memoria, experimentava, não digo relutancia em acceitar as exigencias do ensino, mas accessos de displicencia. Tive, na “Escola Tiradentes”, a minha primeira “fan”. Era uma garota magra e feia, cheia de sardas, que gostava de me ouvir cantar. Fazia tudo para me incutir o amôr aos livros. Talvez pensasse que, mais tarde, por gratidão, eu pudesse tambem gostar um pouco della. Mas a vida é profundamente ironica. Acabei gostando mais della do que dos livros. Todavia hoje penso que a minha amizade não era de todo desinteressada: ella me presenteava constantemente com doces e bon-bons...

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A minha falta de applicação, o meu pouco interesse pelos estudos acabaram repercutindo em casa. Meu pae, depois de pensar seriamente

[32] sobre o caso, acabou afastando por completo a idéa antiga de me fazer um dia doutor. Fiquei triste e alegre com o facto. Triste por desagradar aos meus paes e alegre por ter satisfeito a mim mesmo. De reto, eu andava muito apprehensivo. Alguem contara em casa, um desses casos dolorosos de pessôas que se martyrisam para alcançar o gráu de doutor. Tratava-se de um medico bahiano, se não me falha a memoria. Toda a noite para estudar e afim de evitar o somno, collocava os pés numa bacia de agua fria. O processo deu resultados magnificos. Elle conseguiu formar-se com distinção em todas as cadeiras á custa daquelle original lava-pés nocturno. Entretanto, pouco tempo depois, appareceu-lhe uma

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tossezinmha secca e impertinente que o forçou, dentro de pouco tempo, a ir clinicar no outro mundo. Eu, francamente, não havia nascido disposto a esse martyriologio. [Foto com legenda: Francisco Alves e Sylvio Caldas tambem são, nas horas vagas campeões de foot-ball.]

[33] Minhas tendencias “libertarias” são se submettiam, de modo algum, aos supplicios culturaes do medico bahiano. Acabaria por dar um vigoroso ponta-pé na nefanda bacia de agua fria.

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Na “Villa”

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NA “VILLA”

Onze, doze, annos... Os poetas acham que é a melhor quadra da vida. Não resta menor duvida que elles têm razão. O mundo se nos apresenta tão bom, tão interessante, tão curioso. Nossa vida domestica decorria no mesmo ambiente festivo, onde havia muitas notas de música... Um acontecimento inesperado veio modificar-lhe o rythmo, pelo menos, quanto a mim. Tivemos necessidade de mudar para uma nova casa, na mesma rua. Essa situação, a principio, trouxe-me amarguras indefiniveis. Já estava habituado á amplitude de um quintal cheio e sombras amigas.

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O preido para onde nos transferiramos, não apresentava a vantagem de uma area fol-

[38] gada, onde eu pudesse levantar o meu palco de barricas. Isso me contrariava sobremodo. Todavia esas nuvens que enconbriram, então, o sol radioso de minha infancia foram passageiras. O tempor é uma esponja qua apaga, na lousa de nossa vida, os acontecimentos bons e maus. Nada resiste á sua acção destruidora. Aliás, as contrariedades que me trouxeram a nossa nova residencia foram compensadas por outra attracção que surgiu para o encantamento de meu espirito irrequieto: a barreira do Senado. Passava alli, quasi todos os dias, brincando em companhia da garotada do bairro. Algum tempo depois, meu pae, mais uma vez, resolveu mudar. Desta feira nos transferimos para Villa Izabel. Minha alegria foi intensa. Esse bairro, naquelle tempo, já desfructava de grande prestigio e popularidade. Nelle morava os maiores do samba.

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Os bohemios e noctivagos, apreciadores do canto e das serenatas andavam altas horas da noite perambulando pelas ruas, illuminadas lyricamente pelo luar.

[39] Confraternisando com o meio, a minha alliança com a guitarra tornou-se mais forte. No entanto, deixei-me dominar por uma idéa bizarra: a de transformal-a num bandolim. Todos achavam interessante essa innovação que aliás, deu resultados satisfactorios. Em Villa Izabel, a minha maior preoccupação foi o foot-ball. Jogavamos partidas sensacionaes, em campos improvisados no meio da rua. A bola de meia, pulava de pé em pé, á procura do “goal”. Muitas vezes ella fazia “goal” nas vidraças da visinhança. Ahi, então, havia uma debandada geral. Ninguem queria assumir a responsabilidade do chute mal dirigido. A’ noite, fatigado das pugnas esportivas, eu me recolhia a casa, após a victoria ou a derrota do meu “club”.

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Apesar dos grandes esforços physicos, ainda tinha appetite para dedicar alguns momentos á minha guitarra solitaria.

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Amei, Soffri

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AMEI, SOFFRI Entre as mais lindas canções que lancei no carnaval de 1936, figura “Amei”, de E. Frasão e Antonio Nássara, nomes consagrados pelo brilho invulgar de suas produções que, não raro, têm saido victoriosas em pleitos populares e officiaes. Nos estudios da “Cinédia”, fazendo o film “Allô, Allô, Carnaval!” cantei essa marcha com a collaboração de um grupoo de jovens e graciosas alumnas. Eu interpretava o papel de professor e cantava: Eu que nunca tive professor Para me ensinar o verbo amar

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Aprendi o A.B.C. do meu amôr Na cartilha azul do teu olhar. Insensivelmente, ao cantar os versos bonitos, cheios de lyrismo, dos dois azes de nossas

[44] canções populares, evoquei o meu passado, percorri com os olhos da imaginação os caminhos floridos e distantes da minha juventude. Quem me ensinou as primeiras letras do alphabeto do amôr foi uma visinha, uma linda morena, de grandees olhos verdes, dona de umas tranças longas e romanticas. Creio que foi a primeira moradora do meu coração. Chamava-se Suzanna. Não raro, ella me dava beijos furtivos e deliciosos. Foi, em assumptos sentimentaes, a minha primeira professora. Eu era ainda muito joven e bastante inexperiente. Tinha, apenas, theoria... Ella, ao contrario, era um Greta Garbo precoce, tal a arte e o calor de seus beijos.

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Separamo-nos, pouco tempo depois, por incompatibilidade de genios... Eu era demasiadamente egoista. Não quiz concordar com a prodigalidade sentimental de Suzanna que dividia o seu coração com os rapazes do bairro.

[45] Um dia, tivemos um scena violenta por causa dos seus “flirts”. Suzanna, no ardor da discussão, teve um sorriso ironico e me disse com profundo despreso: — Ora, Chico, não me amole. Não dou confiança a fedêlho. Fui para casa furioso e revoltado. Nesse dia, não jantei. E se não fosse o gosto ruim da criolina, teria renunciado muito cedo ás batalhas do amôr... Fedêlho! “Por causa della”, eu andei muito tempo de “parada” com as morenas.

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Ser ou não ser

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SER OU NÃO SER Toda infancia possue as suas inclinações. O tempo, ou aviva essas tendencias, quando a creança já traz um destino certo, uma vocação decidida, ou traça-lhe novos rumos, conforme as suggestões e influencias do meio. Uns, amam as caçadas de borboletas, attraidos pelo colorido de suas azas; outros, preferem a “punga” dos bondes e as fitas de aventuras em que o classico “mocinho” enfrenta “bandidos” para salvar a dona de seus pensamentos. Outros, de sensibilidade menos esportiva e mais lyrica preferem uma musica dolente ou um samba farfalhante.

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Posso dizer que a minha verdadeira vocação foi o theatro. A esse respeito guardo recordações bem gratas e commovidas.

[50] Commetteria uma falta, se não evocasse, aqui, esse typo bonissimo que se chamou Camillo e que, durante muitos annos, exerceu as funcções de porteiro do Theatro “Recreio”. Julgo não haver necessidade de descrever-lhe a figura sympathica. Basta salientar-lhe as virtudes do coração. Acamaradei-me com elle. Fiz-me um dos seus mais impertinentes amigos. Existem creaturas, cujo espirito magnanimo compraz-se em absequiar e favorecer a vontade das creanças. Camillo gostava immensamente de mim.. Elle offerecia á minha gulodice infantil o prato de minha predilecção: um espectaculo. Outros meninos de minha idade talvez preferissem ganhar tamaras, ameixas, balas ou mesmo um vulgar pé de moleque. Commigo era no violão e no theatro.

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Com a autorisação dos meus paes, de quando em vez, lá estava eu repimpado numa cadeira

[51] do Theatro “Recreio”. Quasi sempre levava em minha companhia as duas irmãs mais velhas. Eu era um carona que me dava ao luxo de levar convidados... A’s vezes, o “senhor Camillo”, era assim, com todo o respeito, que eu o tratava, sentava-se ao nosso lado, enchendo-me de satisfação e orgulho.

* * *

O “Recreio” foi o primeiro theatro que conheci. Ali ouvi o celebre tenor Almeida Cruz e assisti aos mais ruidosos sucessos de Palmyra Bastos, Enrique Alves e outros “astros” das platéas cariocas daquelles tempos. A primeira peça que o prazer de ouvir e applaudir foi a opereta “Amores de Principe”.

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Nunca, até então, eu sentira uma impressão tão forte, um enthusiasmo tão grande. Ao assistir á representação da linda opereta viennense, os artistas e os scenarios vistosos

[52] surgiram deante de meus olhos deslumbrados como a concretização dos contos de fadas.

* * *

Certa vez, fui apresentado ao grande actor Henrique Alves. Contei-lhe, sem cerimonia, as minhas predilecções de garoto. E para demonstrar-lhe, ao pé da letra, as minhas “habilidades” artisticas, cantei diversos trechos de “Amores de Principe”. Henrique Alves achou-me interessante e animou, com palavras de sympathia, o futuro “actor”.

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* * *

Meu pae era admirador fervoroso de Angela Pinto e Eduardo brazão. Por isso, não perdiamos nenhuma temporada no tradicional Theatro “Carlos Gomes”. Eduardo Brazão e Angela Pinto tinham, no “Hamlet”, as suas maiores creações artisticas.

[53] Um a noite, durante a representação, meu pae não poude reprimir os impulsos de sua admiração e commentou alto: — Mas que colossos! Mal sabia elle que, no meu espirito ainda em formação, agitava-se um drama talvez egual ao do personagem de Shakespeare. Sim, eu tinha dentro de mim um Hamlet cujos olhos inquietos procuravam rasgar as nevoas de meu futuro, numa interrogação angustiosa: — Serei ou não um grande artista?

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Minha paixão pelo Theatro

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MINHA PAIXÃO PELO THEATRO Em nossa residencia á rua Riachuelo havia um quintal de larga área, com fartura de sombra. Muitas arvores frutiferas tornavam-no poetico com a belleza das suas copas farfalhantes. Empolgado pela idéa de ser artista, eu re-solvera passar do sonho á realidade. Vira no quintal de casa, o sitio apropriado para o audacioso emprehendimento que me empolgava. A força de vontade realisa milagres. Basta dizer que consegui improvisar com algumas barricas velhas um palco. O aspecto era, sem duvida, grotesco, mas o meu objectivo estava executado. Organisei, então, uma “companhia” com a collaboração de alguns garotos,

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meus amigos. Fiz primeiro um estudo rigoroso dos varios elementos “artisticos”, dando os papeis de maior res-

[58] ponsabilidade aos mais capazes e intelligentes. Só houve protecção na hora de preencher o lugar de “estrella”, que coube a uma menina muito faceira de quem eu gostava “pedaço”. Apezar de cobrar os ingressos que variavam de cem até duzentos réis, conforme a localidade occupada pelo “espectador”, os “actores” trabalhavam por amôr á arte. A renda eu “abafava”. Como se vê, eu era um pequeno emprezario que agia com a intelligencia dos grandes... O peior era que eu desconhecia, por completo, a fórma do ensaio e da marcação. A representação acabava não dando certo. Os “artistas” chegavam ao palco e falavam todos ao mesmo tempo. Os espectadores protestavam. Havia tumulto.

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* * *

Ao correr dessa época, a minha irmã Lina, tendo ido a Portugal, em tratamento de saúde, de la trouxera, ao regressar, uma bonita guitarra.

[59] Foi este o primeiro instrumento com que entrei em contacto intimo. Com umas lições ligeiras que meu pae me dera, não me foi difficil tocar alguma cousa. Dedilhando o instrumento da saudade lusa, eu treinava, com minha irmã, as cantigas que ella aprendera em Portugal. Mais do que nunca eu sentia a vontade de ser artista. Todas as forças do meu pensamento concentravam-se nessa aspiração. Tomava da guitarra e, no quintal, pulava sobre as barricas arvoradas em palco. E trechos de “Amores de Principe” e “Balance” sahiam de minha garganta, ainda inexpressiva, de menino. Mas as

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Operario

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OPERARIO Ao traçar a sua auto-biographia, Henry Ford focalisou com excepcional carinho a sua origem humilde. Espirito plastico, com uma nitida visão das cousas, o poderoso industrial americano viu que a hora da aristocracia já passou. a mentalidade que governa o mundo contemporaneo é outra. E’ preciso envolver os meios proletarios numa aureola de sympathia e admiração. Dahi apparecer constantemente figuras de relevo da industria e da politica que se ufanam de suas origens proletarias...

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Eu, entretanto, não preciso appellar para esses trucs da popularidade facil.

* * *

Até os dezoito annos, os meus paes não consentiram que eu trabalhasse. Attingindo es-

[64] sa idade, porém, decidi a ajudal-os de qualquer modo. Foi na popular fabrica de chapéos “Mangueira” que empreguei, pela primeira vez, a minha actividade de proletario. Naquelle tempo, o gerente era um senhor chamado Francisco, mais conhecido pelo apellido de “Chiquinho”. Aliás, era um bom camarada, muito amavel com todos os auxiliares da fabrica. O meu mestre, que, hoje, é funccionario da Prefeitura, chamava-se Henrique. Elle nunca fez fé commigo. Mostrava-se muito importante. Não queria

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intimidades com os operarios. Parece que tinha um pouco de sangue azul em suas veias... Na fabrica “Mangueira”, trabalhei quase um anno. Dos companheiros daquelles dias longinquos de labor arduo, lembro-me, apenas, de dois: Antonio e Claudio, que foram os mais intimos. Um trabalhava no escriptorio, e o outro, exercia as funções de caixeiro viajante. [Foto: “Team” Cremilda de Oliveira que fez sucesso em nossos meios sportivos, do qual fazia parte Francisco Alves.]

[65] Um dia, ousei discordar do meu autoritario mestre. Para evitar maiores complicações, despedi-me e fui trabalhar na fabrica de chapéos Julio Lima. O mestre, aqui, era outro temperamento. Tratava os operarios como amigos. Chamava-se Paulino. A mim, pelo menos, elle fazia toda a concessão possivel. Só não queria que eu faltasse ás segundas-

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feiras. Elle sabia que era por causa do foot-ball. Não tolerava esse esporte. Mestre Paulino era um grande coração. Perdoava-me qualquer falta na fabrica, mas não perdoava que eu jogasse foot-ball. Um domingo, tendo me machucado sériamente num jogo disputadissimo, quiz tapear o bondoso mestre phantasiando, no dia seguinte, um “accidente de trabalho”. Elle, porém, não se deixou “embromar”. Ficou furioso commigo e suspendeu-me durante uma semana. Um anno depois, deixei a fabrica Julio Lima, dando um novo rumo a minha vida.

[66] O destino não quiz que eu continuasse operario. Mestre Paulino ficou livre dos meus enthusiasmos pelo foot-ball.

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Experiencia...

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EXPERIENCIA...

Um dia, cheio de curiosidade, me aventurei a ir á caixa do Theatro “S. Pedro”, actualmente “João Caetano”. Caixa de theatro, todo mundo já sabe mais ou menos o que é: uma colmeia onde há poucas abelhas e muitos abelhudos. Notei que era observado como um intruso. Fiquei constrangido. Estava nesta situação desagradavel e já me preparava para uma retirada estrategica, quando fui chamado pelo maestro Roberto Soriano, que, depois de me fazer algumas perguntas, em tom cordial, mandou que eu falasse

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ao maestro de côros, Sr. Lago. Sem saber do que se tratava, attendi. Ao chegar á sala de ensaios do corpo corál, que era composto de cerca de 40 figuras, entre homens e mulheres, o maestro pediu para eu

[70] cantar uma canção, por signal, bem aguda. Cantei em quatro tons. Terminada a experiencia levaram-me, novamente, á presença do maestro Roberto Soriano. Este, informado pelo seu collega dos côros, que experimentara a minha voz, convidou-me a visital-o em sua residencia. Não me fiz de rogado, e, certo dia, appareci em sua casa. Elle recebeu-me com muita distincção e, pela segunda vez, interessou-se pela minha voz. Disse-me que havia gostado della.Offereceu-se para ser meu professor de canto. Acceitei o offerecimento, mas quando saí da residencia do maestro não pensava mais nisso.

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Como não lhe apparecesse mais, o maestro Soriano declarou a varios amigos meus que era uma penas eu abandonar os estudos, adeantando que uma perspectiva risonha se desenhava deante de mim. Que o timbre de minha voz era bastante promissor e bonito.

[71] Fiquei satisfeito com esses commentarios que chegaram até os meus ouvidos como um lenitivo para o desconforto e as difficuldades que eu vinha enfrentando. Houve, porém, alguem que não gostou dos elogios desinteressados do maestro. E’ claro que esse alguem só podia ser o tenor da companhia do Theatro S, Pedro.

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Os Mestres

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OS MESTRES

Toda existencia soffre influencias bôas e más. Embora tendo me feito, principalmente com os meus proprios esforços, não esqueci, aqui, osamigos sinceros e dedicados que me foram uteis. Tambem não quero deixar sem uma referencia especial certos cavalheiros que tentaram botar pedras no sapato de meu destino. Tive um professor que uma verdadeira calamidade. Era um barytono aposentado por falta de ouvintes, que resolvera ensinar o que nunca conseguira aprender: cantar.

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O seu curso funccionava num predio da rua 7 de Setembro. As installações eram confortaveis e elegantes. O mobiliario, quasi lu-

[76] xuoso. Grandes photographias authenticadas por Caruso e outras celebridades lyricas ornavam as paredes. Deslumbrados com aquella vistosa “mise-en-scene”, os alumnos só podiam suppôr que estavam deante de um notavel professor de canto. O homem, no entanto, não passava de uma “blague”. A mim, pelos menos, parece que elle jurára arrancar a voz, em vez de educal-a e fortalecel-a. E se não realizou esse seu inglorio objectivo, devo á intervenção amiga e opportuna do maestro Bento Mossoranga, que me chamou a attenção, dizendo: — Que é que você tem, Chico? Cada dia a sua voz está mais defeituosa. Respondi-lhe que estava estudando com um professor de canto.

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Bento Mossoranga aconselhou-me, então, que tomasse cuidado. Com tal professor eu acabaria soffrendo da garganta.

[77] Larguei o barytono aposentado. Um dia convidaram-me a ir á casa de Santh Athos, pae do baixo brasileiro João Athos. Em sua mocidade, fôra um barytono de grande valor e prestigio. Santh Athos sympathisou commigo. Contei-lhe as minhas esperanças e os meus desenganos. Elle gostou de minha franqueza e prometteu-me ajudar. Alguns dias depois, reiniciei os meus estudos, já, agora, sob a direcção de um professor que não precisava, para recommendar-se, de problematicos autographos de Caruso. Estudei tres mezes com elle. Encontrou minha voz cheia de defeitos e procurou corrigil-a. O barytono da rua Sete caira como um furacão sobre a minha garganta.

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Fiz grandes progressos. O meu novo professor mostrava-se muito satisfeito commigo.

[78] Sempre que algum critico ou pessôa entendida em canto visitava o seu curso, elle me apontava com orgulho, dizendo: — Aqui está a pinta de um bom cantor. No fim de tres mezes, abandonei novamente os estudos. Santh Athos, porém, que já me estimava muito, tentou reconduzir-me ao bom caminho, mandando recados por diversas pessôas, inclusive pelo tenor Francisco Pezzi. Que eu apparecesse em casa delle. Insistiu para que não abandonasse os estutos . Achava que era um crime. De parte delle tudo faria em meu favor.Não pleiteava mesmo nenhuma remuneração. Quando somos moços quasi sempre nos descuidamos do futuro. A despeito dos insistentes e generosos offerecimentos do velho mestre, a quem, hoje,

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recordo com respeito e emoção, não voltei a procural-o.

[79] Justificando o meu procedimento, mandava-lhe dizer que não tinha recursos nem tempo para continuar frequentando as suas aulas. Santh Athos foi um dos nossos melhores professores de canto. E’ certo que não dava voz a quem não possuisse, mas dava a naturalidade de cantar, que é um dos segredos da arte. Apenas com tres mezes, as suas licções, os seus methodos praticos me fizeram um bem enorme. Durante esse curto espaço de tempo, elle expurgara os defeitos da minha voz, uniformisando-a tornando-a mais harmoniosa. Ainda hoje conservo bem vivas as palavras de Santh Athos. — No Brasil — costumava dizer-me o saudoso professor — o artista deve fazer como a formiga, guardar prudentemente o fruto de seu labor, para não ser pegado desprevenido no inverno...

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Eu não esqueci as suas lições e os seus conselhos.

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Meu companheiro

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MEU COMPANHEIRO O violão foi sempre o meu amigo dilecto, meu companheiro inseparavel. Era com elle que eu desabafava as maguas e festejava as alegrias. Habituei-me ao seu convivio desde muito creança. Eu era, ainda, adolescente quando obtive o meu primeiro violão á custa de uma transação original, isto é, em troca de uma bicycleta. Nunca mais me separei delle.

* * *

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Foi nas noites de serenata, quando passeava pelos pittorescos arrabaldes cariocas, em alegres jornadas de bohemia e de sonho, que mais fortemente me identifiquei com o violão. Os poetas daquelles tempos eram os Cyranos cujos versos maravilhosos abriam-me os

[84] corações mais insensiveis. Eu me aproveitava bem do prestigio e da fascinação de suas rimas. Psychologo por intuição dentro de mim havia a certeza de que, para vencer e dominar a alma feminina, necessitava audacia. Mas, o meu temperamento era tímido e retraido. Tinha difficuldde em dizer que gostava. Faltavam-me as palavras precisas e convincentes. Dahi a minha tactica. Cantando eu me sentia forte e dominador. O que as minhas palavras não sabiam dizer, diziam com eloquencia os poemas que eu interpretava com emoção.

*

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* * Só me lembro de ter cantado inutilmente uma vez. Foi no aristocratico bairro de Botafogo, debaixo das janelas de um “bungalow” recatado e florido. Havia um lindo luar passeando lyricamente pelas ruas ermas. Dei os agudos mais fortes, sem que a eleita de meu co-

[85] ração de trovador apparecesse entre as trepadeiras romanticas de sua janella. Ensarilhei as armas ou melhor, botei o violão debaixo do braõ e fui para casa com a amargura de um general que soffre a sua primeira derrota. Entrementes, um companheiro de bohemia que me viu muito desapontado com o facto, confortou-me, explicando que a minha inaccessivel Dulcinéa era surda como uma porta. Talvez por isso não tivesse aberto a janella... Acceitei a informação. Foi um saida honrosa para a minha vaidade de trovador famoso.

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*

* * Certa vez, no “café Nice”, falei a Orestes Barbosa a proposito de meu violão. Pedi ao consagrado poeta de “Agua Marinha”, que já naquella ocasião “abafava”, nos meios da nossa musica popular, com “Flor do asphalto” e

[86] “Verde e amarello”, que me fizesse uma canção sobre o meu companheiro das horas bôas e más. O fulgurante chronista de “Phantasma dourado” accedeu promptamente ao meu pedido, numa phrase ironica: — Está bem, Chico. Vou vêr o que posso fazer por você. No dia seguinte, pela manhã, recebi uma carta de Orestes Barbosa acompanhada da letra da canção:

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MEU COMPANHEIRO Foste, talvez, uma arvore frondosa harmonisando a voz do violão. E hoje, na minha vida dolorosa, só tu me entendes, triste violão. Sorrisos, ilusões, phrases perdidas, um vestido ligeiro que passou, olhares, beijos, sonhos, despedidas, tudo meu violão crystalisou.

[87]

Estribilho Meu companheiro dilecto violão, és meu affecto, és minha consolação. De tanto roçar meu peito tens hoje o timbre perfeito da voz do meu coração.

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Foi umas das maiores emoções de minha vida. Os versos do mais carioca de nossos escriptores traduziam com rara felicidade os meus sentimentos affectivos. Aliás, melhor do que as minhas palavras, falam do extraordinario successo de “Meu companheiro” o acolhimento enthusiastico que teve, entre nós, essa linda canção que marcou o feliz inicio da miha parceria com Orestes Barbosa. Depois de “Meu companheiro”, lancei com a collaboração do victorioso autor de “Samba” as seguintes producções: “Ha uma forte corrente”, “Palhaço do luar”, “Dona de minha vontade”, “Adeus”, “A

[88] mulher que ficou na taça”, “Não sei”, “A abelha da ironia”, “Adeus mocidade”, “Ouve esta canção”, “Ciume”, “Romance”, “Por teu amor” e “Balão do amôr”. Dessas canções não sei qual foi a que alcançou maior exito. Só posso dizer convictamente que

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todas ellas tiveram grande resonancia na alma lyrica do nosso povo.

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Vinte Annos de Ribalta

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VINTE ANNOS DE RIBALTA Foi no antigo e popular “Pavilhão do Meyer” que fiz a minha estréa como actor. Uma festa intima, realisada em casa de uma familia de minhas relações, offerecera-me o ensejo de concretisar a maior aspiração de minha vida. Depois de ter cantado para o pequeno auditorio de amigos, uma senhora de nome Aida, que me ouviu com o maior interesse, perguntou-me: — Você quer trabalhar em theatro? Ora aquilo foi mesmo que cair mosca no mel. Dominando o meu jubilko intimo, disse, apparentando displicencia: — Quero, sim.

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No dia seguinte, conforme a combinação, dirigi-me ao encontro da minha protectora artistica.

[92] Esperava-me no antigo “Palacio-Theatro”. Ahi estavam ensaiando diversos artistas. Logo que me viu, apressou-se em me receber. Feitos os cumprimentos de praxe, lecou-me aos empresarios que eram os actores João Martins e João de Deus. Sem pensar em retribuição monetaria, nitidamente lyrico, cavalheiro do sonho ingressei na Companhia. Chegou o dia da estréa. Eu fazia um papel que tinha duas palavras e outro em que eu cantava com o violão. Entrei em scena, muito nervoso, já se vê. Nunca me tinha visto naquelles apuros. Cantei, entretanto, os meus numeros. Creio que foi muito bem porque me applaudiram. Sai com o rei na barriga, todo satisfeito. Depois da temporada no “Palacio-Theatro”, a Companhia veiu ter ao “Circo Spinelle”. Começou, então, para mim, a opportunidade de ser em breve homem de circo...

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Trabalhavamos normalmente, quando entrou, em scena, uma “compére” absolutamente desconhecia e indesejavel: a Hespanhola. Ape-

[93] sar de sermos de circo, a gripe atacou-nos derijo. A Companhia viu-se obrigada a parar. Os artistas entregaram os pontos. Ao cabo de uma semana fomos irremediavelmente dissolvidos pela Hespanhola. Falta de artistas, é, sobretudo, ausencia de publico. Os empresarios, nessas condições, desistiram. Fiquei desanimado, Mas como não há bem que sempre dure nem mal que não se acabe, recebi convite para trabalhar numa Companhia dirigida pelo sr. Baptista, pae da actriz Amelia de Oliveira, esposa, agora, do actor Arthur de Oliveira. Esta companhia exhibiu-se no “Polytheama”, de Nictheroy. Lá estivemos cerca de tres mezes, que foi a duração da sua existencia. Desta vez não fomos dispersados pela Hespanhola, mas morremos

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de insufficiencia cardiaca, que no caso era a falta de “notas”... Fiquei á espera de dias melhores, acompanhado do meu violão. algum tempo depois, appareceu-me um convite do sr. José Segreto

[94] para o elenco do “Theatro São José”. Quase endoideço, de alegria! Apalpei-me todo para ver se era realidade ou se estava sonhando. Sem pensar em outra cousa, fiquei ansioso aguardando o dia da estréa ao lado de Ottilia Amorim, Alfredo Silva e demais artistas daquella casa de espectaculos. Afinal, entrei em scena com o meu velho companheiro, sua magestade, o violão. Saime com galhardia. No dia seguinte, porém, um jornalista metteu-me o pão. Apesar disso, a minha boa estrella protegeu-me e eu não perdi o animo. Prosegui no elenco. Os annos correram. Fui vencendo. Fazia até o repertorio do tenor Vicente Celestino, nas peças “Adão e Eva”, “Morro da Favella”, etc.

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Dois annos depois, a Companhia fez uma viagem a S. Paulo, onde exhibiu-se no “Cine Theatro Braz Polytheama”. Tal excursão obedeceu á necessidade de ser reformado o Theatro “S. José”.

[95] Eu ganhava 250$000 de ordenado, e, para viajar a S. Paulo, augmentaram-me para 350$000. Em S. Paulo, fizemos uma temporada no referido theatro e outra no “Appollo”, onde, em ultima representação, levamos á scena a revista “Aguenta, Felippe”. Nesta altura, surgia, nos bastidores, uma forte intriga que visava me indispor com a administração. Não dei nenhuma importancia ao caso. Quem não deve não teme. No entanto, certo dia o meu amigo José Segreto veio me interpellar de modo áspero. Respondi-lhe no mesmo tom. Dahi surgiu uma discussão violenta. No calor da polemica, o sr. José Segreto descontrolou-se e acabou me dando tres tiros. Felizmente tudo acabou bem. O rapaz era um optimo empresario, mas um péssimo atirador...

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Este incidente occorreu nas vésperas da Companhia embarcar para o Rio. Logo que cheguei á capital da Republica, fiz uma carta á empresa, despedindo-me. Depois do que acon-

[96] tecera, só me cabia essa providencia. A empresa não acceitou a minha demissão e eu comtinuei, provando dessa forma que não guardo rancor. Sou, ainda, amigo de José Segreto. A vontade de vencer no theatro não me abandonava. Para isso, lançava mão de todos os esforços, afim de ganhar maior salário, e consegui, nesse particular, o augmento para 450$000. Todos lamentavam que eu ganhasse tão pouco, fazendo como eu fazia diversos papeis, e , modestia á parte, agradando ao publico, até me numeros marcados por mim, com por exemplo, o Maxixe Acrobático, numero meu e da fallecida Antonia Denegri, na revista “Olha o Guedes”, que obteve grande sucesso. Em outra revista, fiz o “Veterano do

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Paraguay”. Aliás, este typó, fel-o, pela primeira vez, o velho amigo e bom collega Asdrúbal Miranda. Achei-me um dia deante de uma peça carnavalesca. Como é da praxe nessas peças, entram os tres grandes clubs da cidade. Na destribuição dos papeis, coube-me – ironia da sor- [Foto com legenda: Francisco Alves na aphoteose da revista carnavalesca “Tatu subiu no pau”, levada á scena pela companhia da empresa Paschoal Segreto em 1923.]

[97] te! – o club dos Fenianos. Muito pesaroso porque preferia desempanhar a missão dos Democraticos, comecei a ensaiar. Um dia o director Izidro Nunes, já fallecido, chamou-me para dizer que fora avisado das minhas preferencias “Democráticas” e que, entretanto, teria de representar, em scena, os Fenianos. E enérgico:

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– Veja lá o que você vae fazer. tal advertencia afastou-me, mas prosegui no ensaio. Veiu a estréa, e, para evitar aborrecimentos, cada dia um club entrava por ultimo. Entrando em ultimo ou primeiro logar eu procurava agradar ao publico e fazer notar ao meu director que estava, realmente, tomando interesse pelo Club dos Fenianos. Todavia, por azar ou cousa que o valha, dei um esbarrão no par que fazia o meu glorioso Democráticos. Quando desceu o panno, a dona Lêna Vieira chamou-me a attenção. Desculpei-me. Como é natural em nervos femininos, dona Leda exaltou-se. E eu também, perdendo a calma, segui-

[98] lhe o exemplo. O meu fallecido collega Martins Veiga, que era o par da distincta actriz, em vez de acalmar a encrenca, ainda collocou gasolina no foco do incêndio, que era dona Leda. A contenda travara-se renhida. Um dos directores da empreza, o sr. João Segreto, sem,

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entretanto, saber, ao certo, como se passara o facto, despediu-me por tabella na mesma hora. Lembor-me disso como se fosse hontem. Fui para o camarim desolado. Sozinho me lamentava. Preso por ter cão por não tel-o. Se eu não tomasse interesse pelo Club que representava, certamente, seria objecto de advertência ou censura; porém, como eu havia tomado, a infelicidade de um esbarro involuntário no par que dansava ao meu lado, complicar a minha situação. Resolvera-me a arrumar as minhas cousas, e, conversava com as coristas que eram as minhas maiores camaradas, quando uma dellas approxima-se, para me avisar que dona Leda havia lido a tabella e exigira que a retirassem, pois,

[99] o que occorrera entre nós dois, não constituía motivo sério para dispensarem os meus serviços. Tratava-se de uma discussão entre artistas,affirmando mesmo a actriz que se no dia seguinte eu não trabalhasse, ella também não

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trabalharia. Deante dessa nobre attitude a empresa achou conveniente retirar a tabella. Teve dona Leda um procedomento correcto. Entrara no cartaz a revista “Secos e Molhados”, do sr. Luis Peixoto e Marques Porto, sendo o primeiro naquella ocasião, director artísitico. Ia já para cinco annos que eu trabalhava na Companhia. Era justo, pois, que fosse melhor recompensado. Fallei, a esse respeito, com o sr. Luis Peixoto, explicando-lh o motivo pelo qual eu pedia o augmento. Prometteu-me que dentro de alguns dias o meu pedido seria attendido. Recommendou-me, porém, não dizer mais a ninguém. Disse-lhe que sim, mesmo porque não tinhá que dar satisfação da minha vida. Dias de_

[100] pois mandou chamar-me, declarando que me fizera o augmento de 25$000 por quinzena. Não tolerei a pilheria. Na mesma hora, declarei-lhe que só trabalharia naquelle dia. O sr. Luiz Peixoto não se incommodou. Terminando o espectaculo, arrumei

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os meus “troços” e não fui mais no theatro, a não ser para receber alguns dias do meu ordenado. Tive a honra de ser substituído por quatro artistas, e, sem exagero nem jactancia das minhas qualidades, esses mesmos elementos não fizeram os papeis ao gosto dos autores. Chegaram até os meus ouvidos as palavras de um delles, o sr. Marques Porto que dissera que o “Chico” era canastrão, mas que ninguém fazia esse quadro como elle. A convite do dr. Isaac Cerquinho, ingressei numa companhia que estreou em Nictheroy, mas que fracassou. Dahi fomos a Petrópolis. Em tal companhia, esse doutor theatral, gordo como um capado mineiro, entendeu, emergindo das suas tremendas banhas, de bancar o “bamba” commigo. Depois de saber que eu queria sahir da Com-

[101] panhia, por estar sendo perseguido pelo director de scena, essa grotesca figura representativa do bacharel-empresario, empenhava-se em me convencer para que eu ficasse, quatro dias depois de

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me despedir por tabella e em frente de toda a Companhia, onde, dentre muitos artistas, só tive a solidariedade de dois, o tenor Mafra e a actriz Thereza Patti. O director a Companhia soffria da mania de cantar. Uma doença como outra qualquer. Com todos estes contratempos, eu não desanimava. Procurava ganhar a vida honestamente. Poucos companheiros, porém, me ajudavam. Mais tarde fui chamado para trabalhar na Companhia “Antonio de Souza”. Immediatamente acceitei as condições que o director me estabeleceu.Tratava-se do desempenho de pequenos papeis e substituir o applaudido collega Arthur Castro, possuidor, aliás de uma voz lindíssima. Nas vésperas do embarque da Companhia para S. Paulo, assisti ao enterro de minha sem-

[102] pre lembrada mãesinha. Aliás, desde esse dia, não dei mais pezames a ninguem e o motivo

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passo a explicar. Estava triste, na porta do theatro, penalizado pelo fallecimento de minha genitora, quando encontrei um idiota que me perguntou o que eu tinha, pois, notára o meu pezar. Disse-lhe a grande perda que acabara de soffrer. E elle, com displicência, apresentou-me pezames, dizendo textualmente: – Conforme-se, isso é da vida. Fiquei irritado. Tive ímpetos de applicar-lhe uns cascudos para que aprendesse a ser mais discreto e sensato. No emtanto, ao chegar á porta do antigo café “Criterium”, encontrei um gesto de sólidariedade que bastante me confortou. A mãe de Aracy Côrtes, com quem eu andava meio “politico”, veio me dar os pezames da festejada artista. Mais tarde, ao chegar á casa, encontrei uma bonita coroa enviada por Aracy Côrtes. Mão esqueci

[103]

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nem esquecerei nunca a delicadeza de sentimentos desta minha brilhante collega. Como já disse, segui para S. Paulo com a Companhia do Sr. Antonio de Souza. Minha estréa é até ridículo dizer. Foi a seguinte: havia um quadro na platéa e, eu, entrava , então, nesse quadro, com uma blusa e um bonet muito velho, dizendo: –“O senhor está se portando mal recinto. Retire-se”. Foi esse o papel com que fiz a minha estréa nesta Companhia. E só cantei um numero, que apresentava o final do 1.º acto, naturalmente porque viram que não tinham outro. E as indirectas que eu ouvia? –Oh! como o Castro ninguém faz esses números! Elle tem uma voz admirável. A todo o instante ouvia isto. Como precisava cavar a vida, sujeitava-me a tudo. Vieram outras peças e, graçs aos meus esforços, os papeis que me confiavam, agradavam á platéa. De S. Paulo, seguimos para Curityba.

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Na capital paranaense, fiz algum sucesso. Demandamos o sul. As piadas continuavam. Não brigava, esperando dias mais auspiciosos. E elles chegaram. Despedi-me da Companhia. Tudo fizeram para que eu ficasse. Ri por ultimo, e, se bem que minha situação financeira não fosse boa, o momento era propicio para que eu os mandasse arranjar substituto. De resto, foi um pouco difficil. A companhia deixou a cidade e fiquei no hotel a pensar no que ia fazer. Dei umas voltas em Pelotas. Fui a Porto Alegre. Organisei espectaculos em vários cinemas. Arranjei algum dinheiro. Estava mais ou menos remediado para regressar ao Rio, quando tive a infeliz idea de jogar. Vi-me depennado, sem um vintem. Para embarcar, consegui recursos á custa da generosidade de alguns amigos, cada um dando-me o que podia com boa vontade. Comprei uma passagem de 3.ª classe. Ainda me lembro do vapor que era da Costeira, o “Itassucê”. Logo que eu cheguei a bordo o commissario me reco-

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[105] nhecendo pediu-me que eu passasse para a 1.ª classe e, assim, vim distraindo os passageiros e a tripulação do “Itassucê”, até o Rio. Chegando á cidade maravilhosa, mantive-me é espera de chamado para outra companhia. Trabalhei num “mambembe” que durou, apenas, sete dias. O desanimo já me contaminava o espírito, quando fui para em um elenco organisado pelo fallecido José do Patrocinio Filho. Exhibimo-nos no theatro Phenix, Durante 15 dias, período de tempo em que durou. O elenco era formado de bons artistas, entre os quaes Alfredo Abranches, Adriana Noronha e Brandão Filho. Fiz o “Moleque namorador”, creação e marcação minhas. Extincta a Companhia, sou chamado pela actriz Alda Garrido para trabalhar no Cine Gloria, em companhia della. Depois de dois dias de ensaio deram-me a entender que não me queriam... e, eu não fiz cerimônias.

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[106] Com a chegada de Jardel Jercolis e a sua Companhia, do Sul, a convite delle, recomecei o trabalho theatral. Estreamos no Lyrico. Representei sete dias, a razão de 30$000. Disse-me, depois, que não precisava mais dos meus serviços. A este tempo, eu comecei a gravar. Minha boa “estrella” surgiu com novo fulgor. Melhorei. Participei de duas peças com Alda Garrido, no Carlos Gomes. Segui com Jardel Jercolis para S. Paulo. Mais uma vez fui jogado para a linha de “off-side” da vida, mas a minha taça de soffrimento já se havia exgottado. Embora o elenco fosse composto de “estrellas” como Auzenda de Oliveira e o barytono Sylvio Vieira, consegui receber applausos do publico. Nessa epocha eu já tinha o “ Samba de verdade”, “Voz do Violão”, “Lua Nova” e outras canções. Após uma temporada de quasi um anno,vim para o Rio definitivamente. Mesmo durante a minha estadia em S. Paulo, vinha varias vezes ao Rio,para gravar.

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[107] Um anno mais tarde fui convidado pelo empresário Pinto para trabalhar na Companhia Margarida Max, que fez uma temporada em S. Paulo. A felicidade sorriu-me nesta temporada. Terminado o meu contracto em S. Paulo, retornei á Capital Federal. as gravações continuavam com grande acceitação do publico. Dispuz-me a fazer, por minha conta, varias excursões a S. Paulo. Da mesma forma fui ao Sul. Levei um “beiço”, como se diz na gíria, de 800$000, mas todos os elementos que foram por mim contractados receberam os seus ordenados, sendo que alguns mais até do que havia sido combinado. Nessa excursão participaram Mario Reis, Noel Rosa, Nono e Pery Cunha. Estive, em Buenos Aires, pela primeira vez, com Jardel Jercolis, chefiando um conjunto de artistas, entre os quaes se destacavam Carmen Miranda,

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Mario Reis, Celia Zenatti, Tute e Singerce e um rapaz mais conhecido por Americano,

[108] fóra a orchestra organisada em Buenos Aires. Ultimamente, trabalhei numa peça, no theatro Recreio, da qual o publico deve, ainda, se lembrar: Da Favella ao Cattete. A revista agradou sobremaneira, indo o sucesso além da expectativa. Participei della, também em S. Apulo, onde foi representada com êxito. Tenho recebido optimos convites para o theatro. Recusei-me sempre porque desejo ser grato aos meus ouvintes. Não quero deixal-os. A canção e o disco foram os alicerces da minha carreira artística. Valorisaram-me, elevaram o meu nome e as minhas finanças. E’ por esse motivo que, hoje, sou artista de radio e continuo a gravar na R. C. A. Victor.

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Gravando discos

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GRAVANDO DISCOS O Disco teve, em minha vida, uma influencia capital, sem trocadilho. Foi com o concurso delle que eu alcancei os meus maiores successos artísticos e financeiros. A primeira gravação que fiz, em disco, foi com João Gonzaga que acabava de deixar os estúdios da Fabrica Odeon e resolvera trabalhar por conta própria. Os processos de gravação ainda eram primitivos. O cantor tinha que altear bem a voz, tornando-a muito forte. Compareci ao estudio improvisado de João Gonzaga, acompanhado de Juvenal Fontes e minhas sobrinhas, cuja missão era fazer coro.

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“Pé de Anjo” foi o primeiro disco meu que andou rolando vertiginosamente pelo Brasil. Depois, gravei outras musicas populares daquelles tempos, em que “Sinhô” empunhava o

[112] bastão de leader, nas rodas do samba carioca. Dessas gravações não tive nenhum resultado material. A única cousa que ganhei foi experiencia... Annos depois, já cansado de trabalhar para os emprezarios theatraes, acceitei um convite de Freire Junior para fazer uma experiência na Casa Edison, distribuidora dos discos Odeon. Gravei o samba de Sinhô “Ora, vejam só!” Foi um sucesso. Venderam-se mais de 25... mil réis, que o sr. Figner me pagou com ares, de philanthropo... Como eu tivesse agradado, convidaram-me para continuar gravando. Acceitei o convite de bom grado. Nem siquer discuti condições. A remuneração de meu trabalho ficou por conta do critério dos “generosos” emprezarios de minha

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garganta... Gravei mais quatro discos a 25$000, cada um. O chefe das gravações era um allemão de nome Roeder. Bom technico, elle seria um opti-

[113] mo auxiliar se quizesse metter-se na seara alheia. A sua pretensão era demasiada. Quis me ensinar a cantar até as nossas canções e sambas. Eu achava graça. Era a melhor maneira de me livrar de suas impertinências artísticas. O sr. Roeder, que falava mal o portuguez, costumava me dizer, em sua meia língua, que eu não sabia interpretar. Mas, na hora de gravar, o publico preferia os meus discos... Decorridos alguns mezes fui convidado para ser cantor exclusivo da Odeon, ganhando 100 réis por disco. Concordei. Depois a situação melhorou. Augmentaram-me para 150, 200 e 300 réis. Assim, de tostão em tostão, cheguei a ganhar 600 réis por disco. O grande desenvolvimento do mercado de discos animou a Victor que resolveu montar uma fabrica. Convidaram-me. Rogério Guimarães

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trouxe-me a proposta de 25 contos para eu cantar na nova fabrica. Expuz, lealmente ao sr. Figner a minha situação. Ou elle me augmentava ou perdiria o cantor que não sabia interpretar... O sr. Figner, porém, não entregou os

[114] pontos. Fez-se de victima. Disse-me que eu não podia abandonal-o. Emfim, tanto se lamentou o finório do judeu que eu acabei com pena delle e assignei um contracto de um anno. Quando estava para terminar o contracto que me foi arrancado pelas lagrimas do sr. Figner, adverti-o que não desejava continuar a trabalhar na Odeon. Respondeu-me que não se conformaria, absolutamente, com essa attitude, visto que o meu contracto era de dois annos! Com effeito. Ao examinar o famoso contracto, verifiquei que tinha assignado de boa fé, um compromisso de dois annos! Fiz ver isso ao sr. Figner. Elle não tomou conhecimento de meu protesto. Tive ímpetos de “desencarnar” o

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insaciável judeu da Casa Edison. Mas, contive-me. Eduardo Souto, a quem contei o caso, prestou-se as servir de intermediário. Resolveu, então, o sr. Figner dar-me uma ajuda de custo de um conto e quinhentos, de accôrdo com a Fabrica Odeon, da qual era distribuidor geral.

[115] Assim fiquei nas mãos do sr. Figner até 1931. Nessa época, elle deixou a representação da Odeon, que me conservou como seu cantor exclusivo. Terminado esse compromisso, fui chamado pela Victor, na qual permaneço até hoje, satisfeito com os seus directores e com a boa acceitação que os meus discos têm tido.

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Fazendo samba

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FAZENDO SAMBA Nunca me aconteceu sentar na secretaria, em meu escriptorio, e fazer, burocráticamente, uma musica ou uma letra. Quasi sempre a inspiração me vem na rua, de uma impressão qualquer. Uma mulher que passa, uns olhos bonitos que me fitam, um perfume subtil são, muitas vezes, o motivo emocional de um samba ou de uma canção que se tornam mais tarde populares. Entre outros, lembro-me que a segunda parte do samba “Se você jurar”, foi feita num bonde que me levava a Villa Isabel.

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*

* * Certa vez, estava na “Casa Edison”, ensaiando com Mario Reis o samba de minha auto-

[120] ria “Soffrer é da vida”. Ao nosso lado, ouvia-nos com interesse Newton Bastos, que foi um dos melhores autores de seu tempo. Terminado o ensaio, Newton começou a cantar o estribilho do sambar “Se você jurar”, que era delle. O Mario Reis achou-o notável e ficamos os três a repetir os versos a meia voz. Mas o tempo corria. Chegou a hora de fechar a loja e nós não tínhamos, ainda, conseguido fazer a segunda parte do samba. Saímos. Na rua, cada um seguio caminho differente, Eu fui tomar o meu bonde de Villa Isabel, na Praça Tiradentes. Estava preoccupado

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com a nova creação do Newton. Sentei-me no banco da frente, e emquanto o bonde rodava vertiginosamente dentro do tumulto da tarde, eu puxava pela intelligencia. De repente, gritei um Eureka tão alto que chegou a assustar os meu companheiros de viagem.

[121] A inspiração tinha se sentado amavelmente ao meu lado. E a segunda parte do “Se você jurar” foi feita, mentalmente, alli mesmo. Em casa, não quis jantar e fui directamente ao meu escriptorio. O meu appetite estava todo concentrado no samba que eu queria escrever logo, antes que a inspiração désse o fóra. Peguei o violão e só o larguei quando a letra e a musica estavam promptas. E foi assim que acabei o samba que fiz de parceria com o saudoso Newton Bastos, samba que, dias depois, gravei com Mario Reis, em disco Odeon.

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No Radio Nacional

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NO RADIO NACIONAL

Minha estréa como cantor de radio foi feita há annos, na “Radio Sociedade Rio de Janeiro”. Não me ocorre o dia exacto, nem mesmo o anno da primeira exibição que fiz para o ouvinte carioca. Sei, apenas, que isso aconteceu logo que comecei a gravar discos para o sr. Fred Figner, da “Odeon”. Cantei, depois, na ”Mayrink Veiga”. Mais tarde transferi-me para a “Radio Club”. Indo a S. Paulo, trabalhei na “Radio Educadora”, da capital bandeirante. Regressando ao Rio, continuei a actuar nas estações do “broadcasting” carioca. Entre outras, cantei na “Guanabara”, a

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popular estação que obedece á orientacão intelligente dos irmãos Manes, no “Programma Cazé” e na “Educadora”, num pro-

[126] gramma organisado pelo “speaker” Christovam de Alencar. Quasi sempre essas mudanças foram motivadas pelos meus interesses econômicos. A minha actuação nos microphones cariocas estava interessando aos ouvintes e eu procurei tirar partido disso. Já me sentia cançado de trabalhar para os Figner da arte nacional. Voltei varias vezes a S. Paulo em actividade radiophonica. De preferência, trabalhei na “Radio Record”. Os seus directores e auxiliares dispensaram-me sempre a maior consideração. Cantei tambem na “Radio Diffusora”. E isto por um motivo particular. Tendo saído da “Mayrink Veiga”, suppuz que a “Radio Record” não se interessaria mais por mim, em virtude de manter um programma de inter-cambio isto é, de ida e volta

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com a estação que o valor e o prestigio de Cezar Ladeira impoz como um baluarte do radio nacional. Foi por esta circumstancia que acceitei a proposta da “Radio Diffusora”, a ultima vez

[127] que cantei em S. Paulo. Aliás, nessa ocasião, fui convidado também pelo dynamico Jorge do Amaral para a “Radio Cruzeiro”. Na “Radio Farroupilha” fiz ultimamente uma rápida temporada, de que trato, com detalhes, num capitulo especial. Fiz parte ainda do quadro de artistas da fracassada “Cajuti”, na qual mantive, algum tempo, com sucesso, um programma sob a minhá direcção artística. Saindo dessa estação, fiquei aguardando a inauguração da “Radio Transmissora” que fez questão de assignar contracto commigo muito antes de iniciar as suas irradiações. Terminado esse contracto, procurei me orientar de accôrdo com as sympathias de meus queridos ouvintes. Dahi decidir-me pela “Mayrink Veiga” que é, incontestavelmente, a preferida do povo carioca.

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[ Foto: Companhia Antonio de Souza. Aspecto do festival de Francisco Alves e Celia Zenatti, realisado e, 13-9-926.]

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Eu e a Mayrink Veiga

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EU E A MAYRINK VEIGA Houve quem interpretasse mal o meu afastamento da estação Mayrink Veiga. Sobre esse caso, fizeram-se vários commentarios. Todavia é muito simples esclarecei-o. Sempre fui e continuo amigo de todos quantos trabalham na Radio Mayrink Veiga, incluindo os directores que me honraram, invariavelmente, com a sua estima e amisade. O que houve de verdadeiro foi o seguinte: apenas um disse me disse, que, ao certo, não sei de quem partiu. Como todos sabem fui durante muito tempo cantor da popular estação. Certo dia tive uma contrariedade com um dos auxiliares que trabalhava commigo. Por esse motivo, sahi. Passado algum

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tempo recebi convite do director da Mayrink, o sr. Joaquim Antunes, para ingressar novamente no quadro dos artistas. Não

[132] accedi logo. Fil-o mais tarde, attendendo a instancias do meu prezado amigo Cesar Ladeira. Cumprindo a minha obrigação, enquadrada no contracto de um anno, certa vez, um cavalheiro que exercia a sua actividade no studio, pretendeu dar-me umas ordens, as quaes julguei inacceitaveis porque se achavam fora dos limites determinados pelas clausulas contractuaes. Ainda assim, com o proposito de evitar aborrecimentos, pedi ao s. Joaquim Antunes, a rescisão do meu contracto. Sabedor do occorrido, elle ponderou-me não ter importancia o caso. Não devia tomar essa decisão. Continuei, então, a cantar na Mayrink, mas o cavalheiro, autor das ordens que eu não acceitara, ao que parece, ficou de prevenção commigo.

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Comtudo, sem levar em conta essa circumstancia, prosegui na execução do meu contracto. Para mim, a situação estava longe de ser a de um mar de rosas. Nada transparecia, directamente, contra a minha pessoa, Deixei correr o marfim. Eis senão quando, certo dia, surge uma

[133] empresa denominada “Propalam”. Fui convidado com alguns collegas para uma reunião, cujo assumpto objectivava a elaboração de um programma destinado a fazer propaganda da mencionada empresa. Eu e meus collegas, comprometidos pela fé da palavra empenhada e dos contractos, fomos obrigados a recusar a proposta. Não deixamos, porém, de agradecer a preferencia com que nos distinguiam. O director-chefe de “Propalam”, todavia, não se conformou com as nossas excusas. Chegou a declara até que pagaria a multa imposta pela exclusividade do meu contracto.

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Agradecendo mais uma vez, fiz-lhe sentir que não era só esse o motivo que me levava a declinar o convite, e, sim, a amiz\ade que me dispensavam os directores da Radio Mayrink Veiga. Em virtude da minha resolução, o chefe de “Propalam”, tendo um contracto com um o escriptor Paulo Magalhães, appelou para este, no sentido de, por seu intermédio, conseguir que a Radio Sociedade Mayrink Veiga désse consentimento,

[134] ao menos, para que eu tomasse parte no programma a ser executado. Paulo Magalhães promptificou-se a promover esse entendimento. Nesse interim, o director da “Propalam” precipitou-se. Começou a annunciar o meu nome nos jornaes com a noticia de que se tratava de uma irradiação para uma nação irmã, isto é, para a capital da Argentina. As notas fornecidas pelo director da “Propalam”, de certo modo, comprometiam-me.

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Meu nome estava em jogo. Entretanto, eu não participaria da irradiação. Como se vê, a situacão era bastante seria. Os ouvintes do Brasil e Buenos Aires, naturalmente, iriam ficar supresos e poderiam attribuir a mim a falta de bom senso de outros. Eu, que sempre fui bem recebido na Argentina, não quiz passar por ingrato. Emfim, a leviandade do director da “Propalam” refletiu-se principalmente sobre mim. Procurei explicar a situação aos directores da Mayrink Veiga. Não me foi possivel convencel-

[135]

os. Afinal de evitar desgostos maiores, dirigi-me ao director da “Propalam”. Disse-lhe francamente, que eu não podia cantar. Podia ajudal-o, somente, no que fosse possivel. De facto, o ajudei, arranjando, á ultima hora, elementos para o programma. Vi-me, assim, em circumstancias delicadas e tudo fiz para honrar o nome do nosso broadcasting, e, sobretudo, do Brasil.

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Na noite da irradiação para Buenos Aires, por intermédio da “Propalam”, cantei na Mayrink Veiga. Tive, porém, o necessario excrupulo de expor a miha situação e o que eu havia resolvido. Dispunha-me, apenas, a solucionar da melhor maneira uma situação melindrosa para nosso paiz. Fiz o que minha consciência e o meu cavalheirismo de brasileiro dictavam. Estive presente á irradiação da “Propalam”, mas não cantei. No dia seguinte, embarquei para São Paulo. No regresso, encontrei o disse-me-disse. Solicitei, então, a rescisão do meu contracto, o que foi feito de commum accordo. Eis ahi, o que houve.

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“Programma Francisco Alves”

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“PROGRAMMA FRANCISCO ALVES” Quando, em 1934, me lancei ao emprehendimento do “Programma Francisco Alves”, a convite de meu prezado e brilhante parceiro Orestes Barbosa, não me passou pela mente a idea de fazer concorrencia aos cantores e directores de outros programmas. Pensei, sómente, em collaborar com todos elles na obra commum. O radio no Brasil, sob o ponto de vista artístico, pareceu-me ainda nos primeiros passos. Quis também fazer força. Desejei trabalhar num campo mais amplo e efficiente, no qual eu tivesse a necessaria autonomia para incentivar o desenvolvimento do nosso “broadcasting”.

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Até aquella occasião não me fôra possivel pôr em pratica umas idéas que martelavam ha muito em meu cérebro e que visavam, principal-

[140] mente, uma propaganda mais intensa e melhor orientada as nossas musicas e canções.

* * *

Dentre os elementos do nosso “broadcasting” que collaboraram para o êxito artístico do “Programma Francisco Alves”, lembro-me dos seguintes: Luiz Barbosa, Dyrce Baptista, Pixinguinha, Ary Barroso, Moacyr Bueno Rocha, Bill Don, Luci Maria, Mario Cabral, Orlando Silva, Manoel Monteiro, Anninha Goulart, Aracy de Almeida, Sonia Carvalho, Marly Cadaval, Malena de Toledo, Haroldo Brown, Linda Baptista e o victorioso speaker Christovam de Alencar.

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Infelizmente, a minha iniciativa, recebida com grande enthusiasmo pelo povo carioca, foi prejudicada pela falta de correcção dos directores da “Cajuti”, que, deixando de satisfazer as principaes clausulas do contracto que assinaram

[141] commigo, deram-me vultosos prejuízos Moraes e financeiros. Protelei, emquanto foi possivel, uma acção mais enegica contra á má fé desses cavalheiros da industria radiophonica. Mas, vendo que toda a contemporisação era inutil, resolvi suspender a irradiação do “Programma Francisco Alves” e appellar para a acção da Justiça. Aliás, ainda hoje estou aguardando pacientemente a solução deste caso, que está sendo patrocinado pelo meu amigo e talentoso causidico dr. Carlos Lossio da Silva. Apesar de sua vida ephemera, o “Programma Francisco Alves” realizou algo em pról do radio nacional.

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Os elementos novos que lancei e que estão ahi, actuando com successo em nossas principaes estações, attestam de modo positivo que o meu esforço foi util e fecundo. Orlando Silva, actualmente artista exclusivo da “Transmissora”, é um exemplo bem expressivo disso. Sempre que procurou se appro-

[142] ximar dos nossos microphones encontrou obstaculos invenciveis. Linda Baptista, eleita há pouco Rainha do Radio, cantou pela primeira vez no meu programma. E a propria Dyrcinha Baptista estava afastada do radio. Fui eu que a trouxe para a popularidade que desfructa agora.

* * *

No “Programma Francisco Alves”, eu vivia assediado constantemente com os candidatos a cantores de radio.

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Havia pêssoas então de uma tenacidade e teimosia desconcertantes. Certa vez, appareceu no nosso escriptorio uma encantadora senhorita com uma carta de um influente politico, meu amigo. Experimentei a sua voz. Era um dos maiores “facões” que eu já ouvira. Desculpei-me da melhor maneira. Disse-lhe que ella tinha uma voz aproveitavel, mas não estava educada.

[143] – Não faz mal, Francisco Alves – contestou-me com vivacidade – eu não me incommodo de cantar voz mal educada. – Mas, me incommodo eu, senhorita. Ela, porém, insistiu: – Faço questão de cantar em seu Programma, Chico. Nem que seja uma só vez, eu tenho que occupar o microphone. Estou disposta mesmo a pagar generosamente. Na hora em que eu cantar é como se você fizesse um na-

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nuncio de “O Dragão”, o rei dos barateiros. – A idéa não é má. Mas por que esse capricho? – Eu lhe conto. Tenho um noivo que é um grande creador de bovinos em Barra Mansa. Elle, apezar do meio rustico em que vive, é um temperamento muito caprichoso e sentimental. Faz questão fechada de me ouvir pelo radio. Se eu não cantar, elle é capaz de desmanchar o nosso noivado. – Seria uma pena...

[144] – Uma calamidade! Imagina que elle tem... – Um bom coração? – Não, isso é o menos. Tem mais de dez mil cabeças de gado. – Está bem, senhorita. Em homenagem ás cabeças de gado, seu noivo ouvirá hoje a sua linda voz... Com effeito. Nesse mesmo dia, depois de encerrarmos a irradiação do Programma mandei desligar o microphone e a encantadora senhorita pôde, então, “cantar”, especialmente para a

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sensibilidade romantica do creador de gado de Barra Mansa...

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Boátos que se Desfazem

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BOATOS QUE SE DESFAZEM Depois da minha accidentada passagem pela “Cajuti”, cantei algum tempo na “Radio Sociedade”. Vieram, então, diversas propostas que me offereciam ensejo de exercer actividade artistica em outras estações do “broadcasting” carioca. Acceitei a da “Radio Transmissora”. Emquanto se ultimavam os preparativos para a inauguração dos estudios, dei uma festa no “Carlos Gomes”, em que fui bastante feliz. Segui, então, para S. Paulo, onde cantei uma semana, na “Radio Diffusora”. Regressei ao Rio, e, pouco dias após, estavamos em pleno carnaval. Passou-se o ruidoso e ephemero reinado de Momo.

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Novamente fiquei afastado dos microphones, aguardando a inauguração da “Radio Transmissora”.

[148] Os boatos começaram a fervilhar nas portas dos cafés e nos estudios de radio: – O Francisco Alves decaiu! – O Francisco Alves não tem mais voz! – O Francisco Alves está tuberculoso! Eu sabia que havia uma forte corrente contra mim, mas ouvia os commentarios com a maior serenidade deste mundo. E prosseguia, calmo e displicente, gravando os meus discos na “Victor”. Graças a Deus, de maneira geral, a vida me corria serena e desafogada sob todos os pontos de vista. Nesse interim, surge-me uma proposta dos emprezarios do “Theatro Recreio”, para eu trabalhar numa peça que era a burleta-revista: “Da Favella ao Cattete”

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Em face de tantos boatos de que eu não agradaria mais ao publico, de que havia perdido a voz, resolvi acceitar o convite. Os ensaios correram muito bem. Apenas o director de scena pedia-me que eu não cantasse tão alto durante as provas, afim de não en-

[149] rouquecer. Parece que elle tambem se deixara influenciar pela campanha. No entanto, não dei nenhuma importancia á advertencia e continuei a ensaiar no mesmo tom de voz. Quando chegou o dia decisivo do ensaio geral, notei que quasi todos os artistas estavam decepcionados. A peça não agradava, a não ser a mim e ai seu autor, meu amigo Freire Junior. Primeira representação. Mais uma vez a minha estrella brilhou. A peça fez successo. O meu papel foi desempenhado a contento de todos, merecendo bôas referencias da critica e applausos calorosos do publico.

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Os boateiros, que sonhavam com o meu fracasso, ficaram por “conta”, e foram desabafar as maguas, ou melhor, o despeito, nas portas dos cafés. “Da Favella ao Cattete”, que os meus collegas e os technicos de theatro julgaram um desastre, ficou trinta e seis dias no cartaz.

[150] Ainda valendo-se da mesma revista. Alda Garrido um dos mais brilhantes elementos da companhia, fez a sua festa artistica, tomando eu parte nella, gentilmente, no papel que criei. E não foi mais representada, porque tive de viajar para Porto Alegre, cumprindo, assim, um compromisso que havia assumido com a “Radio Farroupilha”.

*

* * Em toda classe ha gente que fica damnada com o successo dos outros. Aliás, geralmente essa raiva não é mais do que o reflexo dos proprios fracassos.

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Dias depois da morte de Marques Porto, passei, por accaso, pelo “Café Opéra”, na Praça Tiradentes. Alli está installado ha muito tempo a séde do Club da Má Lingua do nosso theatro. Convidado por alguns collegas, entrei e sentei numa mesa, disposto a tomar uma chicara da rubiacea e ouvir as novidades.

[151] No decorrer da palestra, alguém falou a respeito da morte de Marques Porto, focalisando os seus grandes serviços ao theatro nacional. Um da roda, a quem o saudoso escriptor chamara certa vez, com muita felicidade, “um tenor confidencial”, não se conteve: – Marques Porto, era um sujeiro mau. Vivia fazendo “blagues” e irreverencias com os collegas. – Você queria que elle fizesse com elle proprio? – Eu não perdôo essas cousas. E, no enttanto, estou vendo aqui, no jornal, innumeros convites para missas por alma desse sujeito.

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– Você não tem razão – respondi ao “tenor confidencial”. – O Marques Porto, não era mau? – Sim. Uma pessima lingua. – Então mais um motivo para que a classe theatral mande dizer missas por sua alma. – Por que?

[152] Logico. Só os maus precisam dos bons officios dos religiosos, no outro mundo. Você, por exemplo, quando morrer não vae precisar de missas para entrar no reino do céo...

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Em Porto Alegre

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EM PORTO ALEGRE Durante os festejos do Centenario Farroupilha, fui convidado pelo sr. Luiz Aranha para ir ao Rio Grande do Sul. Atendi, com prazer, ao gentil convite do illustre politico, que vinha ao encontro de um desejo meu. Dias depois seguia para a terra de Pinheiro Machado, na companhia de Mario Reis e Lamartine Babo. Em Porto Alegre, a primeira visita que fiz, como era natural, foi aos directores da “Radio Farroupilha”.

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Fui bem recebido, amavelmente mesmo, mas sem aquella intimidade espontanea que é um dos traços característicos dos valorosos filhos dos Pampas. Posto que tivesse notado essa restricção minima no cavalheirismo gaucho, não me preoccupei com o facto e preparei-me para entrar em actividade.

[156] O primeiro ensaio com orchestra correu bem. A irradiação inicial, optima. Obedecendo a uma clausula do meu contracto, estreei, depois, no popular “Cine-Imperial”. Esforcei-me por agradar e, parece, consegui plenamente o meu objectivo, por isso que a platéa se manifestou, ruidosamente em palmas calorosas. Na noite seguinte repetiu-se o mesmo enthusiasmo. Senti-me em lua de mel com o publico. Aliás, supponho que a preferencia dos applausos para a minha voz, obedecia a uma questão de sympathia. Os outros artistas, meus companheiros de excursão, também foram muito applaudidos.

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Satisfeito o contracto, na parte que se refe- ria á minha actuação no palco, voltei a irradiar, afim de completar o compromisso que tinha as- sumido. A “Radio Farroupilha”, no emtanto, recebeu innumeras cartas dos seus ouvintes, pedindo que organisasse outro espectaculo. Os dire-

[157] ctores decidiram, então, convidar-nos para essa festa extra, que se realizou, ainda, no “Cine Imperial”. Fiz a minha despedida nessa noite. Mario Reis tambem. O theatro exgotou as lotações. Um successo amplo, admiravel, absoluto. Fui alvo de uma ovação que devéras me commoveu – uma ovação que ficará para sempre retida na minha memoria. Foi uma das noites mais felizes da minha vida de artista. Os gauchos pediram-me que não esquecesse a sua terra. (como se fosse possivel esquecer uma terra tão linda e um povo tão generoso!) Prometti que voltaria a Porto Alegre,

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antes do carnaval. A promessa, porém, não poude ser cumprida. A estação de radio da qual era eu, até ha pouco, cantor exclusivo, não permitiu a realização desse meu desejo. Agora um episodio curioso. Numa das noites do espectaculo, no “Cine Imperial”, quando eu sahia do theatro, encontrei um grupo de conhecidos, no qual se desta-

[158] cavam os directores da “Radio Farroupilha”, drs. Luiz Flores da Cunha e Antonio Flores da Cunha e outras pessoas de relevo na sociedade Riograndense. O dr. Luiz Flores da Cunha, abrançando-me, disse, sorrindo: – Francisco Alves, tive uma grande decepção com você. – Por que? – indaguei surpreso. – Deram-me, a seu respeito, más informações. Vejo, agora, que você é muito differente do que me disseram.

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Accentuou, então, sem espirito de lisonja, a minha actuação nos espectacuos e no radio, dizendo-me que fôra eu o elemento que mais fortemente impressionára o publico. Que teria nelle e em todos os directores da “Farroupilha”, amigos sinceros e admiradores da minhaarte, pois, eu bem merecia. E concluindo: – Você, Francisco Alves, Deixa saudades a todos quantos tiveram o prazer de ouvil-o.

[159] O Rio Grande lhe receberá sempre de braços abertos. Fiquei profundamente sensibilisado com as expressões carinhosas do dr. Luiz Flores da Cunha, temperamento nobre e cavalheiresco de gaucho de boa tempera. Só depois deste encontro, todo occasional, é que pude tirar conclusões bastante elucidativas, relacionadas com a frieza da recepçõa com que me acolheram os directores da “radio Farroupilha”.

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Sabia, agora, dos motivos que determinaram as reservas de tratamento que me causaram extranheza. Quem teria sido o autor das más informações? Com certeza algum collega, cheio de qualidades, mas de voz duvidosa... O facto é que o “amavel” collega perdeu o seu tempo e seu latim. Nada adeantou. Porto Alegre applaudiu-me e pediu bis e a “Radio Farroupilha”, ou melhor, os seus illustres directores dispensaram-me toda a consideração. [Foto: Primeira companhia theatral da qual fez parte Francisco Alves, estreando em Abril de 1918, no Polytheama do Meyer.]

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Entre a vibração dos Gauchos e o cavalheirismo dos Paulistas

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ENTRE A VIBRAÇÃO DOS GAUCHOS E O CAVALHEIRISMO DOS PAULISTAS

Deixei Porto Alegre com a saudade no coração. Os dias que passei na bella capital sulina, foram todos magnificos de acolhimento. O povo gaucho é intelligente, vibrante e, sobretudo hospitaleiro. Elle allia, ao impeto enrgico e quixotesco de suas attitudes, uma delicadeza de sentimentos que se manifesta em gestos de rara fidalguia. Dahi explicar-se, talvez, a razão do meu grande successo. Com os ouvidos ainda cheios dos applausos delirantes da culta platéa do “Cine-Imperial”, encetei a viagem de regresso. Antes, porém,

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emquanto o navio se afastava lentamente do caes de Porto Alegre, dei á cidade invicta e aos seus valorosos filhos o mais commovido dos meus adeuses.

[164] Deve haver um pouco de pieguice, deve háver muito do sentimentalismo de nossa raça nessa emoção singular que nos empolga quando partimos de uma terra em que fomos bem acolhidos, em que sentimos a sypathia a transbordar da alma generosa do povo. Neste estado de espirito segui para Santos. Ainda estavamos muito longe da encantadora cidade litoranea paulista e já ouviamos, a bordo, pelo radio, annunciar: “Amanhã offereceremos aos nossos ouvintes uma irradiação excepcional com Francisco Alves e Mario Reis. Sociedade Radio Atlantica. – “A voz do mar”. P.R.C. 5”. Depois de uma noite de exhibição na P.R.C. 5, deixei Santos e voltei cheio de

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saudades para o convivio da minha cidade maravilhosa. No Rio, continuei a receber propostas para cantar em varias estações. Mas tinha a palavra empenhada com a “Radio Transmissora”. Aguardava, portanto, a sua inauguração.

[165] Para rever o povo de Piratininga fui, mais uma vez, fazer a burleta-revista da “Favella ao Cattete”, a convite dos empresarios do theatro Sant’Anna. A ventura me acompanhou ainda desta vez na minha visita á mais dynamica das metropoles brasileiras. Fiquei em S.Paulo quatorze dias, em verdadeiro embevecimento, captivo com tantas e tão expressivas provas de sympathia e apreço.

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Entre a cigarra e a formiga

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ENTRE A CIGARRA E A FORMIGA Minha actividade tem sido das mais productivas. E é facil,proval-a com documentação bem farta. Na minha vida, não me seduziu sómente a bohemia imprevidente da cigarra. Attrahiu-me, tambem, a rude prova da formiga. Se não fosse um paradoxo, poderia qualificar a minha arte de lyrismo pratico. Entre os autores da minha época, sem modestia convencional, posso affirmar que tenho sido um dos mais activos e fecundos.

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Considero-me em primeiro plano, não só pela quantidade como pela qualidade de minhas producções. Não será de todo inopportun abrir o meu “dossier” ou expôr a bagagem sentimental que é um resumo da minha vida artistica.

[170] Talvez, amamnhã, os chronistas da cidade desejem registrar o retrospecto das creações da arte popular, mercê das expressões musicaes ou dos enlevos do cancioneiro. Encontrarão neste livro um subsidio valioso. São da minha autoria as musicas das canções: “Lua Nova”, “Voz do violão”, “Não Sei”, “Palhaço do Luar”, “Veio dagua”, “Adeus”, “Minha Serenata”; as valsas, “Dona da minha vontade”, “Ciume”, “Por teu amor”, “A mulher que ficou na taça”, “Romance”; os sambas, “Vadiagem”, “Soffrer é da vida”; marchas, (parceria) “Gosto, mas não é muito”, “Uma forte corrente”.

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Orestes Barbosa foi um dos mais brilhantes collaboradores de meu repertorio. Devo ao illustre chronista e poeta carioca, os meus maiores sucessos. Aliás, noutro capitulo deste livro, faço-lhe a devida justiça. Seria demasiado longo enumerar aqui cento e tantas composições que constituem o meu volume de producções. Em algumas dellas nem o meu nome figura. Mas quem

[171] quizer saber, estou prompto a prestar informações minuciosas. Com relação ás minhs actividades de autor poderão dar testemunho, dizendo a verdade, Noel Rosa, Ismael, Nassara, Orestes Barbosa, Armando Reis e outros. Acho, entretanto, que os nomes citados, são sufficientes para julgar o caso. O leitor, com certeza, se sentiria caceteado se eu pretendesse pormenorisar o conjunto de minha obra de autor. Não quero commetter essa calamidade com espiritos tão tolerantes e amaveis.

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Contento-me com esta synthese. De resto, meus ouvintes conhecem, perfeitamente, talvez melhor do que eu, o meu repertorio. Tenho gravados, até hoje, nada menos de oitocentos discos.

* * *

Mas, voltando a La Fontaine, a verdade é que o espirito previdente e economico da formiga influiu poderosamente em minha vida. A dura

[172] experiencia de meu passado, os dias amargos, de incerteza economica, tornaram-me prudente. Com a venda dos meus primeiros discos, comecei a guardar, tenazmente, as minhas economias de artista, na “Caixa Economica”! Dentro de alguns annos, eu proprio me surprehendia com o meu peculio. Fiz, então, uma casa e pude, finalmente, cantar com a alegria e a confiança dos que têem um

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tecto, dos que não precisam bater á porta da formiga...

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Critica e Criticos

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CRITICA E CRITICOS Em nossos meios artisticos ninguem desconhece o quanto é generosa e acolhedora a opinião. Si é certo que nos tem faltado por parte do governo um apoio menos lyrico e mais efficiente, não é menos certo que devemos aos que mourejam na imprensa uma collaboração desinteressada e brilhante que tem servido de incentivo aos que se batem nobremente em pról do progresso artistico do nosso paiz. De mim posso dizer que, desde o dia cheio de emoções em que pisei pela primeira vez um palco, encontrei sempre o apoio e a sympathia da critica.

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E note-se que appareci modestamente, como um moço pobre, sem nenhum relevo social e artistico.

[176] Recommendava-me sómente por uma voz bonita e melodiosa que, segundo o conceito prudente de alguns criticos anonymos, gastava em noites bohemias, como um perdulario.

* * *

Tenho, na imprensa carioca, affeições sinceras, amigos devotados. Na maioria, são antigos profissionaes que vêm acompanhando a minha actividade nos palcos e no radio. Espiritos cultos e bem intencionados, as suas suggestões, os seus ensinamentos foram-me utilissimos. O modesto cantor, que veio dos bairros humildes, dos meios proletarios e conseguiu vencer, esqueceu ha muito os que o combateram, mas não esquecerá nunca os que o ajudaram a enfrentar os

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preconceitos de uma sociedade que o recebeu com prevenções.

[177] E’ verdade que não me lembro de ter merecido algum dia qualquer referencia do illustre critico Oscar Guanabarino. Mas, esse venerando expoente da nossa cultura artistica vive muito distante do Brasil, preocupado com Gigli, Tauber, Tita Ruffo e outras celebridades estrangeiras e não póde perder o seu precioso tempo com as manifestações incipientes da musica e das canções nacionaes. Aliás, não lhe quero nenhum mal por isso. Acho até que elle é um excellente velho, um curioso e pitoresco representante dos bons tempos coloniaes em que era chic ouvir-se opera, no Theatro Lyrico...

* * *

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Mas, ao lado dos elementos sadios e constructores há, entre nós, alguns “criticos” cujas pennas são molhadas no tinteiro do despeito. Há tempos, soffri uma campanha systematica de um joven poeta e pamphletario nas horas vagas.

[178] Certo dia, um amigo commum procurou-me e me disse radiante: – Sabes, Chico, resolvi a tua “parada”. O fulano não só não atacará mais, como vae fazer um elogio “batatal” á tua voz e ás tuas canções. – Não me diga! – E’ verdade. E sairá no mesmo jornal em que te insultou. – Será que chegou o dia de juizo? – Uma grande victoria, Chico. Muita gente que frequenta o “Café Nice” vae achar ruim... – Está bem. Agradeço a tua habil intervenção diplomatica. – Obrigado. Mas há, ainda, um pequeno detalhe. – Qual é – perguntei, já meio prevenido.

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– Nada de importante – respondeu-me. Tens, apenas, que gravar um samba delle. – Um samba?

[179] – Sim. Não é grande cousa. Elle proprio reconhece, mas está convencido de que a tua interpretação faz milagres. – Não, meu caro – contestei resolutamente – prefiro continuar a ser atacado.

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Boa Bola

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BOA BOLA A primeira vez que mereci, publicamente, louvores do escriptor Paulo Magalhães foi no Republica. O popular theatro da Avenida Gomes Freire era, naquella noite memoravel, uma synthese da cidade maravilhosa. Todas as classes sociaes estavam lá representadas, desde a nossa notavel aristocracia, pauperrima de sangue azul e millionaria de bentinhos, até os sadios elementos populares que se comprimiam, nas torrinhas, como sardinha em lata. O proprio prefeito, sr. Antonio Prado Junior, honrava a festa com sua presença.

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Antes de descer o panno. Paulo Magalhães veio ao palco, produzindo uma brilhante oração, na qual, com a cumplicidade de alguns adjectivos amaveis, rasgou a seda dos elogios mais

[184] calorosos ao artista humilde que escreveu este livro.

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* * Tempos depois, por ocasião de minha passagem pelas ribaltas de Buenos Aires, como um dos principaes elementos da Companhia Jardel Jercolis, certa noite, depois da representação, appareceu em meu camarim o festejado comediographo. Estava commovido até ás lagrimas. E, diante de toda companhia e de alguns collegas argentinos, fez-me uma vibrante saudação, affirmando que eu era o único cantor de sua terra que tinha credenciaes artisticas para representar condignamente o Brasil.

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Confesso que me emocionei profundamente. Não tanto pelas palavras do orador, que achei exaggeradas, mas por razões sentimentaes. Paulo Magalhães é uma figura decorativa da nossa cidade. A sua visita, naquelle momento, em que eu vinha recebendo do nobre povo ar-

ta do radio”. Nesta curiosa entrevista, Paulo Magalhães disse que o maior artista do “broad-

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casting” nacional era Mario Reis, meu fulgurante collega e talentoso official de gabinete do conego Olympio de Mello.

* * *

As contradições do illustre e conceituado escriptor patricio não me parecem dignas de grande importancia. Em todo caso, ellas serviram de pretexto a que eu focalisasse aqui o nome de seu autor, que anda, ultimamente, muito esquecido... Correspondo, assim, áquellas lagrimas que Paulo Magalhães derramou civicamente, em Buenos Aires, em homenagem ao obscuro autor destas memorias.

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O Telephone

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O TELEPHONE

– Allô! – Quem fala? – Francisco Alves. – E’ com você mesmo que estou falando? – Sim, senhorita. – Meu Deus! Que sorte! – Sorte foi a minha. E’ um prazer ouvir uma creatura de voz tão suave. – Como você é amavel, Francisco Alves. – O que ordena ao mais humilde de seus creados? – Eu queria que você me dissesse... – O que?

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– E’ certo que você tem feito soffrer muito as mulheres? – Não é verdade. Ellas é que têm jogado foot-ball com o meu coração.

[190] – Não creio. – Faz mal. – Você quer me marcar um encontro? – Não, senhorita. Não me julga capaz de crueldades contra os innocentes represetantes do sexo fraco? – Precisamente, por isso... Queria fazer uma experiencia. – Muito obrigado. Não sou cobaia. – Chico: Quem é a “dona de sua vontade?” – Todas as minhas “fans”. A senhorita, por exemplo, deve ser uma pequena acionista do meu coração. – Sabe que gosto muito de você? – Duvido. A senhorita me conhece?

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– Conheço, apenas, a sua voz. Tenho na minha cabeceira um radio “Pilot”, que está sempre florido nos dias em que você canta. – Então não póde gostar de mim. – Por que? – Naturalmente. No maximo, me apreciará como cantor.

[191] – Neste caso, por que não me marca o encontro? – Para não decepcional-a. – Não seja prosa, Chico. O seu retrato anda espalhado pelos jornaes e revistas. Você é da “pontinha”. – Não creia em photographia, senhorita. – O Paul é um excellente photographo. – Sim, mas me cobra uma fortuna para me fazer bonito, para não desagradar as minhas “fans”. – Todavia, insisto em falar pessoalmente a você. – Impossivel. Não vou quebrar o meu encanto. Não quero perder a sua admiração. – Você é mesmo feio, Chico?

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– Não. Sou feiissimo. – Não exaggere. – Já matei uma admiradora... – De paixão? – Não. De susto! – Que graça...

[192] – De accôrdo. Em toda tragedia ha um pouco de humorismo. – Quer dizer que você não quer ser mais do que o meu cantor predilecto? – Sim. Isso é bastante para me fazer feliz. Depois é mais original e romantico. – Seja. Você será para mim um canario caprichoso, que está sempre á minha cabeceira, mas que só canta em horas certas. – Um canario caprichoso e economico, senhorita, que não come alpiste nem alface... – Mas que gasta energia...

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* * *

A influencia do telephone, na vida de um cantor de radio, é grande. Não ha um só momento em que o nosso apparelho, ou o da estação em que trabalhamos, não nos chame. Ha admiradoras de todo o genero e feitio. Algumas, intelligentes e espirituosas. Outras, ficam horas inteiras, no telephone, perguntando as cousas mais banaes deste mundo.

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Todavia, apesar de alguns inconvenientes, o telephone é um amigo deligente e prestimoso que, muitas vezes, nos proporciona momentos bem agradaveis. Existem estações que controlam a popularidade de seus astros através do telephone. Quando não há nenhum pedido para bisar qualquer canção de seu repertorio, é signal evidente de que o artista não está agradando.

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*

* * Certa vez conheci, no estudio de uma de nossas mais populares estações de radio, uma jovem bastante sympathica e insinuante. O seu sonho dourado era ser “estrella” do broadcasting carioca. Moça intelligente, ella lançava mão de todos os trucs para realisar o seu objectivo, para apparecer aos olhos do director artistico como uma cantora de prestigio, dona de um publico numeroso. No dia em que estreou, attendendo a um insistente pedido seu tive que lhe telephonar.

[194] Eu não ouvira ella cantar, Não sabia nada, absolutamente, de suas possibilidades artisticas. Mas quiz ser gentil com a nova “estrella”. Depois de muitas tentativas (as linhas com certeza estavam tomadas por outros “admiradores”)

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consegui finalmente a ligação. Quando a jovem e intelligente artista ouviu a minha voz, ficou radiante e me agradeceu, bem alto, de modo que todos, na estação, ouvissem: – Agradeço-lhe muito as felicitações, Francisco Alves.

* * *

Outro facto curioso occorreu commigo há tempos. Eu tinha uma admiradora que não me dava uma folga no telephone. Tinha uma voz agradavel e sabia dizer umas cousas amaveis que soavam bem aos ouvidos. Habilmente, creara em torno de sua pessôa um ambiente de mysterio que me enchia de curiosidade e interesse. Eu apenas tinha sido informado de que ella se chamava Julieta e que era casada.

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De vez em quando, combinava encontros, mas no dia marcado achava sempre um pretexto para adial-os. Talvez, por isso mesmo, o meu enthusiasmo por ella crescia, tomava vulto. Além das telephonemas, passou a me enviar diariamente flores e cartas perfumadas, escriptas romanticamente, com tinta roxa. Depois de grandes difficuldades, uma noite ficou combinado definitivamente que nos iamos encontrar na Praia da Saudade. Foi a minha maior decepção amorosa. Eu nunca podia imaginar que Julieta, com um nome tão romantico e uma voz tão dôce, tivesse uma pelle tão escura e um corpo tão pesado... Ella parece que notou a má impressão que me causara e procurou attenual-a, dizendo-me carinhosamente: – Não repare, Chico. Estou muito queimada. Ultimamente tenho abusado dos banhos de sol em Copacabana!

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Minha Correspondencia

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MINHA CORRESPONDENCIA

Naquella manhã clara e luminosa, acordei cêdo e me dispuz a continuar a escrever as minhas memorias. Estava bem disposto. A influencia do tempo fizera-se sentir de modo promissor sobre os meus nervos. Sentei-me em meu “bureau”, defronte ás janellas abertas, de par em par, por onde entrava, como uma caricia, o halito suavel da manhã primaveril. Mentalmente, comecei a rebuscar, nas prateleiras de meu passado, os factos marcantes de minha vida.

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Mal tinha redigido as primeiras linhas, o empregado veio me interromper. O que deseja – perguntei com modo brusco. – Não lhe disse que não queria se importunado?

[200] – Sim. De facto. Mas, é que... – Afinal, de que se trata? – Está ahi uma senhorita que insiste em lhe falar. – Quem é? – Não quis dar o nome. Mas affirma que tem um assumpto importante a tratar. Fiquei de mau humor e pensei, com os meus botões, se devia desagradar a ella ou a mim. Acabei acceitando a segunda hypothese. – Mande entrar. Momentos depois, entrava, no meu gabinete de trabalho, uma jovem alta e loura. Tudo nella tinha uma nota invulgar de elegancia e bom gosto. – A que devo a honra de sua visita, senhorita? – Primeiro, quero lhe explicar que não sou senhorita. Sou casada.

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– Oh! Muito obrigado pela participação...

[201] – Esse detalhe, tem grande importancia, conforme verá no decorrer de nossa palestra. – Muito bem, minha senhora. Póde continuar. – E’ certo que você está escrevendo as suas memorias, Francisco Alves? – Sim. Agora mesmo acabo de interrompel-as em sua homenagem. – Perdão! – O prazer de conhecer uma creatura tão encantadora é muito mais interessante que o de escrever memorias. Afinal, a vida de um simples cantor é uma pagina vulgar. – Mas você não é um simples cantor. A sua vida deve ser cheia de encantos e aventuras. Quantas mulheres fascinantes não vão reviver nas paginas de seu livro? – Ao certo, eu não sei. Mesmo porque a gente nunca sabe quando as mulheres gostaram realmente. – Não seja pessimista.

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– Não é o pessimismo que me faz falar assim, é a experiencia. – E a “Dona de sua vontade” existe? – Sim. Estamos distanciados por conveniencias sociaes. A nossa separação, porém, é motivo de grande magua para mim. – E ella? – Creio que soffre tambem. – Sabe que eu tenho uma profunda curiosidade de conhecer os pormenores de sua vida? – Não duvido. Creio, porém, que essa curiosidade vae ser desfeita, em breve, com a leitura do meu livro. Nada tenho de original, de differente. Sou, apenas, um temperamento um tanto esquisito. Gosto pouco dos salões. Vivo uma vida interior. Muita gente me censura por esse retraimento. Preferiam que eu apparecesse a miude nas recepções elegantes. Mas, ha, no meu espirito, qualquer cousa de monge. Aprecio os passeios

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solitarios. A’s vezes, altas horas da noite, saio de casa e vou para a praia deserta.

[203] Ha uma profunda melancolia em todos os meus actos. – No entanto, você podia brilhar em nossos meios sociaes. – Não creio. O meu destino é outro, muito differente. Cada um deve consultar sobretudo o seu intimo, deve obedecer aos seus instinctos e tendencias. Se eu não conseguir brilhar nas ribaltas e no radio, muito menos nos salões... Depois, os soffrimentos e as desilusões de meu passado não me reconciliarão nunca com a aristocracia... – Acredite, Francisco Alves, que está errado. Hoje, felizmente, as nossas canções e os seus interpretes já reivindicaram o logar a que têm direito na sociedade. E’ possivel. Mas, nada me demove de meus habitos. Já me sinto velho para mudar a directriz de minhas convicções. Gosto do radio principalmente

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porque ninguem nos ouve contrariado. A um simples movimento de mão,

[204] vae-se um cantor e vem outro... Nos salões, ha muita hypocrisia e fingimento. – Mas, afinal, estou vendo que, a senhora mudou o rumo de nossa conversa. Em vez de falar a respeito de sua interessante pessôa, estou me preoccupando demasiado commigo. – Bem. Já que deseja, falarei, agora, do que me trouxe até aqui. – Sou todo ouvidos. – Pretende você referir-se nas memorias á sua correspondencia, ás cartas que tem recebido de suas “fans”? – Sem duvida. Não iria esquecer essas amigas generosas e desconhecidas, que me confortam com as suas palavras de enthusiasmo e sympathia. Seria uma ingratidão. – Mas, não vae publicar o nome dellas?

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– Não. Não farei nenhuma indiscreção. Depois, devo dizer-lhe sinceramente que nunca acreditei no amôr de que me falam algumas dessas cartas. – Por que?

[205] – Simplesmente porque tenho a convicção de que as suas autoras não amam Francisco Alves. Amam, apenas, uma voz. – Engana-se. Asseguro-lhe que todas nós lhe queremos muito. Olhei-a com maior interesse. O calor com que ella dissera aquellas palavras me encheu de surpresa e curiosidade. Ah! Se eu pudesse penetrar na alma daquella estranha creatura e desnudar-lhe todos os seus segredos... Depois de um ligeiro silencio, perguntei-lhe: – Porventura, a senhora tambem me escreveu alguma missiva? – Não – respondeu-me. E – continuou um tanto nervosa – não se trata de mim. Vim aqui a pedido de uma amiga, que tem um marido cimento e feroz

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como um Othelo. Se o nome della apparecesse no seu livro, no minimo iria haver um divorcio. – Tranquilize-se, ou melhor, póde tranquilizar a sua imprudente amiga. Não publicarei nenhum nome legitimo.

[206] – Não me surprehende essa sua nobre atTitude, Francisco Alves. Sempre o idealizei assim, com esse “penacho” de perfeito cavalheiro. Sorri da ingenua affirmação da minha mysteriosa visitante e respondi-lhe: – Sim. Um cavalheiro perfeito e prudente...

[207] Francisco Alves: Hoje, ao abrires as cartas que te levam, diariamente, um pouco do perfume e da alma de tuas “fans”, vaes te surprehender, de certo, com

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esta missiva humilde, que vem de um suburbio distante e esquecido. Apezar de ter, na minha infancia, vivido com conforto e recebido boa educação, com a morte de meu pae fui forçada a fazer-me operaria. Vejo passar os dias tristemente, dentro das paredes sombrias de uma fabrica de tecidos, ouvindo, apenas, o ruido monotono e incessante dos teares. As minhas mãos são aranhas inquietas empenhadas na confecção de tecidos finissimos e bizarros que vão enfeitar as mulheres elegantes – essas creaturas cheias de encantos que te rodeiam nos estudios e nos salões doirados da alta sociedade. O meu destino é igual ao destino inglorio de todos os proletarios, que constroem arranha-céos gigantescos, predios modernos e confortaveis e moram em casebres que se equilibram, como ar-

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tista de circo, nas encostas ingremes de nossos morros.

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Eu fabrico sedas e visto organdi. A’ tarde, quando consigo reconquistar um pouco da liberdade, o sol já declina no horizonte. A vida perdeu seus melhores encantos. Regresso, então, á pobreza franciscana do meu lar. Os meus passos são apressados e nervosos. Tudo me é indifferente. Tambem o que poderia me deter neste passeio obrigatorio de todos os dias? As mesmas ruas quietas e humildes onde, só de raro em raro, apparece um bungalou florido, que é um oasis de alegria dentro da pobreza da paysagem? Em casa, o meu primeiro gesto é ligar o radio – meu companheiro e confidente – e procurar, cheia de ansiedade, a tua voz. No dia em que não cantas, elle fica desligado e solitario, na cabeceira do meu leito, com uma profunda saldade das horas felizes em que embalou a rede de meus sonhos com o rythmo das tuas lindas e suggestivas canções. [ Foto:

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Pery Cunha, Mario Reis, Francisco Alves, Noel Rosa e Nonô, por ocasião de uma excursão artistica ao sul do paiz.]

[209] Francisco Alves: Quero que, quando cantares no proximo programma “Por teu amor”, penses um momento nesta tua admiradora suburbana. Não sei se é audacia aspirar a tanto. Sei, apenas, que és bom, que tens um bom coração. A melancolia de tua voz não me engana: ella traduz um pouco de solidariedade e sympathia por todos que soffrem. Tua admiradora Lais

* * *

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Francisco Alves: Todas as minhas collegas aqui, no colegio, gostam de você. Não calcula como estas garotas falam da sua voz. Já chega a ser mania, aliás perdoavel, não acha? Eu, então, estou seriamente atacada da deliciosa “molestia”. A mim nenhum cantor interessa. Você é o meu “Fasanello”. Só você me satisfaz e me alegra. Principalmente,

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nas canções sentimentaes, a sua voz apresenta-se com toda a pujança, com toda a belleza da expressão apaixonada. A’s vezes, de noite, quando acontece não ouvir as suas mágicas canções, não posso estudar, não posso dormir. Fico, horas inteiras, junto ao radio, esperando ansiosamente a visita do meu trovador preferido. Se eu for reprovada nos exames, pode ter a certeza de que a culpa cabe a você, que canta com tanta alma, fazendo a cabeça da gente andaar em reboliço.

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Perdoa a minha curiosidade, ma eu desejava que você me dissesse confidencialmente quem é a “dona da sua vontade”? Quando você canta esta canção, nota-se que a sua voz adquire uma emoção excepcional, dando a impressão de que existe dentro de seu coração um segredo. Talvez um amor infeliz! Terei, porventura, adivinhado? Quem sabe se a “dona de sua sua vontade” não estará ouvindo e não terá remorsos? Mas em que logar? Em Copacabana? Em Botafogo? Emm Vila Isabel?

[211] Você vae sorrir da minha criancice. Mas a verdade é que eu tenho ciume della. Em dezembro, por occasião das férias, assisti ao fil “Allô, Allô, Carnaval!” Não gostei. Você não estava bem. Parece, até, que tinha sahido do leito, depois de uma grave molestia. Em “Allô, Allô, Brasil!”, sim, a minha impressão foi optima. Vou parar. Já devia estar no leito. A disciplina aqui é rigorosa. Não quero ser punida. Antes,

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porém, desejo saber se posso realizar um dos meus maiores sonhos: obter uma photographia sua com autographo. E’ facil ou difícil? Terei o necessário cuidado de ser discreta, senão todas as collegas quererão também o seu retrato. Da admiradora Odila.

[212] Francisco Alves: A minha admiração, o meu enthusiasmo pela tua voz vem de longe. Foi no “Theatro S. José”, durante a representação de uma revista,que te ouvi pela primeira vez. Eu era ainda, garota. Usava vestido curto e sapato de salto baixo. No momento em que appareceste no palco, empunhando o violão e cantaste, eu senti um deslumbramento. Os meus olhos ficaram humidos de emoção. Nunca eu ouvira um cantor de voz tão bonita e hamoniosa. Com o correr vertiginoso dos annos, o prestigio de tua voz

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privilegiada cresceu. Fiquei moça. Hoje, estou casada. O meu marido é joven e rico. Todavia, tem um temperamento muito differente do meu. E’ um espírito profundamente materialista. Vivê occupado e preoccupado com os seus negocios, com a cotação de suas ações na Bolsa. Quando me queixo de sua frieza e indifferença, elle costuma dizer que é um marido, que não me falta nada...

[213] Acredite que elle é mais amável e carinhoso com os seus cavallos de corrida do que commigo. A’s vezes, na penumbra melancólica de meu quarto, illuminado suavemente pela luz rósea do abat-jour, eu reflicto tristemente sobre o meu destino inglório. Todas as aspirações de minha juventude foram desfeita. Fui educada num ambiente bem brasileiro. Os meus sonhos de moça, nasceram e cresceram á sombra amiga da arvores secular da tradição. Acostumei-me assim a olhar a vida pelo seu lado poético e sentimental.

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E’ certo que, no meu lar, não me falta nada, conforme costuma dizer, com a arrogância de um senhor feudal, o meu querido esposo... E, no entanto, preferia que elle fosse pobre, que não tivesse tantos juros para sommar, mas que possuísse um bocadinho de sensibilidade que me olhasse com mais considerações do que aos seus famosos cavallos de puro sangue.

[214] A não ser os negocios, só o foot-ball o interessa e enthusiasma. Aliás, eu acho logica essa sua preferencia. Entre meu marido e esses rapazes que se julgam importante só porque são mestres em ponta-pés, ha certa affinidade. O meu marido usa o talento no bolso e elles usam nos pés... Parodiando Antonio Torres, eu posso dizer, sem receio de errar, que nós nos detestamos cordialmente. Francisco Alves: Neste ambiente de profundo desencanto,em que vivo, é que me vem, como uma dadiva do céo, a

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doce emoção de tua voz, na interpretacão magistral de nossas canções. Tua admiradora Sonia

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* * Francisco Alves: Não tenho prazer de conhecel-o pessoalmente. Possuo, entretanto, no meu album, um

[215] retrato seu, aliás, bem nitido. Os seus labios estão abertos num sorriso espontaneo e feliz, sorriso que é uma photographia bem expressiva de sua alma bôa e generosa. Escrevo-lhe de Theresopolis, esta região maravilhosa, onde vim buscar alento á minha saúde sériamente abalada. Creio que estou condemnada á um fim doloroso e proximo. Em todo caso, anima-me a esperança de que os ares sadios da serra

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collaborem para que eu refaça o meu organismo, debilitado pela enfermidade que me martyrisa. Longe do “brouhaha” da cidade, tudo aqui concorre para aggravar o melancolia de meu destino. De que serve a belleza da paysagem que me circumda, se experimento a angustia da solidão e a dôr dos que soffrem moral e physicamente. No tumultos das preoccupações em que vivo, dos terríveis anseios em que me debato, do temor que me causa o futuro, só tenho, para bem dizer, um momento de suave enlevo quando ouço a sua voz através do radio, que é minha unica alegria de moça desil-

[216] ludida e enferma. Sua voz tão melodiosa, tão rica de sentimentos faz-me esquecer todas as angustias de minha vida, embala-me, cariciosamente, num delicioso sonho de felicidade. Peço-lhe que cante sempre a “Dona da minha vontade” e a “Mulher que ficou na taça”.

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Não deixe de satisfazer sempre que puder o pedido de quem lhe estima e admira sinceramente. Se o destino que tem sido injusto para mim, apesar do conforto material que me deu, accelerar o fim de meus dias, zombando de todos os esforços da sciência, uma unica aspiração me acompanha: desapparecer deste mundo ouvindo a sua voz encantadora, como o ultimo adeus da terra. Carmen DOIS POEMAS DE GILKA MACHADO A Francisco Alves – o mais interprete da modinha brasileira – que só conheço através do radio.

* * *

Canta, que tua voz ardente e moça faz com que eu ouça,

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faz com que eu sinta a meiguice das palavras que a vida não me disse!... Para te ouvir melhor, abro as janellas e fico a sós com tua voz sonhando que a Noite está cantando pelos labios de fogo das estrellas

[218] Canta bocca febril que eu não conheço que nunca me falaste e que me dizes tudo!... – Ave estranha, de garras de velludo, entôa para mim uma canção sem fim!... Canta que ao teu canto eu vejo,

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em tudo, a quietude atroz do insatisfeito desejo!... Canta! – cada ouvido é um beijo para tua linda voz!...

[219] Pensa que ha alguem a quem a tua voz consola, pensa que alguem na solidão, vive a esperar dos labios teus a esmola de ouro de uma canção... Canta, que tua voz, como um thesouro rola na miseria de amor de cada coração Meu sonho ao teu silencio não resiste, manda-me sempre tua voz humida e triste que, por ser tão triste é linda...

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solta essa voz, que me parece vinda de um banho estranho de pranto... sinto ás vezes, por encanto, minha alma nos teus labios presa, misturada com a tristeza da tristeza de teu canto!...

[220] O’ de todas sonoro namorado, tua voz é do Amor a invisivel visita; ao teu canto angustiado, em que abysmo de mel a alma se [precipita!... Canta, que, dessa voz á embriagante expressão, bailam perfumes mil palpita na amplidão um suspenso jardim primaveril... Canta que tens a voz ligada ao coração

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de todas as mulheres do Brasil!...

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ÍNDICE Este livro ................................................................ 5 Minha Infancia ........................................................ 9 Carnaval ................................................................ 17 Na Escola Tiradentes............................................. 27 Na “Villa”.............................................................. 35 Amei, Soffri........................................................... 41 Ser ou não ser ........................................................ 47 Minha paixão pelo theatro..................................... 55 Operario................................................................. 61 Experiencia............................................................ 67 Os mestres ............................................................. 73 Meu companheiro.................................................. 81 Vinte annos de ribalta............................................ 89 Gravando discos .................................................. 109 Fazendo samba .................................................... 117 No Radio Nacional.............................................. 123 Eu e a Mayrink Veiga ......................................... 129 Programma Francisco Alves ............................... 137 Boatos que se desfazem ...................................... 145 Em Porto Alegre.................................................. 153 Entre a vibração dos gauchos e o cavalheirismo dos paulistas............................................................... 161

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Entre a cigarra e a formiga ..................................167 Critica e criticos ..................................................173 Bôa bola...............................................................181 O telephone..........................................................187 Minha correspondencia........................................197 Opiniões sobre Francisco Alves ..........................221