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Frederico - Jornal - "A Tribuna(Santos) 26 de dezembro 2010

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Page 1: Frederico - Jornal - "A Tribuna(Santos) 26 de dezembro 2010

VIVIANE PEREIRA

DA REDAÇÃO

A fala apresenta algumas li-mitações, como os gestos.Em compensação, o pensa-mento é ágil e o raciocíniotão ligeiro, que o corpo nemsempre acompanha. Ah... Ocorpo, esse traidor que limi-ta a alma que abriga.

Há quem aceite as limita-ções que a vida impõe e pare.FredericoMarcondesdeCarva-lho, 29 anos, não se deixa aba-lar pelos obstáculos - quasenunca. As limitações já o inco-modaram mais. Mas aprendeuaconviverconsigomesmo.

Superou muitas adversida-des desde os primeiros mo-mentos de vida, quando o cor-dão umbilical o enforcou. Pa-rece ironia, diz o santista, fi-lho de um neurologista e umaenfermeira.

A falta de oxigênio causoudeficiência apenas em seu físi-co-porissoficachateadoquan-do acham que ele tem tambémproblema mental, por causa dadificuldadenadicçãoenacoor-denaçãomotorafina.

Começou a se tratar cedo, oque foi um diferencial em suamelhora. Por isso, nem recla-ma das infindáveis horas defisioterapia, terapia ocupacio-nale fonoaudiologia.

Uma das preocupações dopai, a dificuldade do filho paraescrever, foi resolvida com aprofecia do médico: “Não sepreocupe com a escrita doFred, que ele vai ser da era dainformática”.

A previsão não poderia sermaisacertada:Fredericofoial-fabetizado usando máquina deescrever. “Nos primeiros diasna escola, cheguei mais cedopara a professora ver como euescrevia”.

Enquanto as primeiras le-tras surgiam ao som do tec tecritmado, os amigos invejavam:queriam também uma máqui-na no lugar de cadernos e lápis.“Matemática eu fazia na mão,mas usava lápis de carpinteiro,que tem a ponta mais grossa enãoquebratão fácil”.

SEM MOLEZA“Vagabundo, na minha casa,não”. A mãe foi taxativa com ojovem de 17 anos que decidiuparardeestudarquandocome-çouoprimeirocolegial.

Frederico não aguentavamais a escola. Apesar de terfacilidade, especialmentecom História, Português eGeografia, nunca gostou mui-to de estudar. Foi aprender agostar depois.

Mas naquele momento, noauge da adolescência, enfren-tava todas as dificuldades tí-picas da idade - e um poucomais. “Eu surtei. Me assusteicom aquele infinito de maté-rias”. Havia ainda outro moti-vo, que Frederico revela, dei-xando transparecer o resquí-cio da tristeza que viveu nes-sa fase. “Adolescente é bichoruim. Naquela época pegoumais eu ser diferente. Algunstiravam sarro do meu jeitode falar. Estava virando umpesadelo ir para a escola. Euperdia até o sono”.

Se a condição para não pre-cisar mais ir à escola eratrabalhar, Frederico não per-deria tempo e no dia seguin-

te estava logo cedo na clínicado pai, onde trabalhou poroito anos. Começou comooffice-boy, foi fazendo ou-tros serviços e chegou a mon-tar toda a rede de computado-res do local e treinar o pes-soal. “Trabalhava das 8 às 18horas. Chegava em casa e iadireto para o computador”,fala, revelando a paixão dequem não sai de perto donotebook, confirmando aprofecia médica feita na ten-ra infância.

SEM DÚVIDASO impulso para seguir adianteviria novamente de um ultima-to da mãe. “Ela bateu no meuombro e disse: ‘Ano que vemvocê faz 21 anos. Ou vai procu-rar um emprego que te susten-

te ou volta a estudar’. Eu suspi-rei fundo e avisei que iria en-trarno supletivo”.

Fez um curso preparatóriopara reforçar algumas maté-rias e estudar três anos em setemeses. Na prova, realizada emSão Paulo, passou em quasetudo: só precisou voltar parafinalizarFísica.

Animado, decidiu arriscar eprestar vestibular no final doano - mesmo sem cursinho.Passou.

Jornalismo era a escolha na-tural para o rapaz que adoravanotícias, lia jornaldesdepeque-no e no domingo ia à bancaespecialmente para comprar aediçãododia.

Apesar da afinidade com asletras impressas, o coração deFrederico batia mais fortequando via os repórteres derádio no campo de futebolnarrando a partida. Por causa

do rádio, passou a gostar doesporte. E era tão apaixonadoque os locutores às vezes colo-cavam o microfone para ojovem dar umas palavras. Eledelirava. “Eles me colocavamno ar”, recorda animado.

Queria trabalhar em rádio,em TV, sentir a notícia vibrarcom a palavra falada. No pri-meiro ano de faculdade perce-beu novamente que as limita-ções físicas poderiam impedirseussonhos.

“Eu tenho problema na fala.Não vou conseguir trabalharemrádio ouTV”.

Essepensamentooatormen-tava, o perseguia. Tanto quepensou em desistir. Os pais,sempreseuportoseguroegran-des incentivadores, não deixa-ram e sugeriram que ele ficasse

pelo menos até o segundoano, para conhecer melhor aprofissão. “Eu achava quequem trabalhava na TV eraquemaparecia”.

A descoberta de que haviaespaçoparaatuar tambémfo-ra dos microfones renovousuas esperanças. Estava deci-dido: iria trabalharem TV.

SEM LIMITESComeçou a realizar seu so-nho já na faculdade, fazen-do estágio na TV Santa Cecí-lia. Sua veia radialista tam-bém se manifestou, com en-trevistas para rádio, inclusi-ve com personalidades, co-mo o ex-presidente portu-guês Mário Soares, o ex-pre-sidente Fernando Henri-que Cardoso e o cantor ecompositor Chico Buarque.O Trabalho de Conclusãode Curso foi um programade rádio de uma hora, todonarrado por ele.

Acreditando que oportuni-dade não se espera, se pro-move, começou ainda comoestudante a preparar a sua.Quando soube que o diretorde jornalismo da ESPN, Jo-sé Trajano, estava em San-tos para a cobertura dos Jo-gos do Interior, resolveu fa-zer contato. “Como eu sabiaque o pessoal da Jovem Panficava no Mendes Plaza Ho-tel, imaginei que eles pode-riam estar lá também”.

A pontaria foi certeira eFrederico logo ficou amigode toda a equipe. Visitava aemissora sempre que ia aSão Paulo e mantinha conta-to com Trajano para falarde tudo - até do SantosFutebol Clube, seu time.“Eu sabia o horário que asecretária dele não estava eele mesmo atendia”. Assim,revela uma das fórmulas doseu sucesso: sagacidade as-sociada à persistência.

No últimoano de faculdadepassou 15 dias na redação daESPN, só olhando. Quando iase formar, ainda em setem-bro, recebeu o convite da che-fe de redação: “No dia 16 dejaneiro você começa com agente”.

Ele conta que desceu a ser-ra sorrindode orelhaaorelha.“Quando cheguei na faculda-de,eunãomecabiadentro”.

Frederico é produtor doprograma Pontapé Inicial daESPN Brasil, que une esportee cultura, áreas pelas quais éapaixonado.

No primeiroano na emisso-ra, logo após a cobertura doPanamericano, Trajano lhefez um convite irrecusável:cobrir os Jogos Parapan-Americanos. Além da produ-ção, toda noite o jovem repór-ter entrava em cena fazendoum comentário.

“Eufui aoar”, comemora.Depois, apresentou ou-

tras reportagens. Ele fazmusculação e aula de canto.Realiza grandes produçõesna TV, terminou uma pós-graduação em JornalismoCultural, planeja dar aulas etem projeto de um progra-ma que mostra vencedorescomoele.

Limitações?Fredericodeci-diu que em sua vida, elas nãoexistem.

“Seria cômico se não fosse trágico”. AssimFrederico comenta alguns momentosdifíceis que já vivenciou.

“Já aconteceu de eu telefonar para falar umassunto sério, a pessoa atendeu e ficouperguntando: ‘Quem é você? Está bêbado?’”

“Meu pai fez uma mala direta e euprecisava entregar as correspondências.Cheguei em um prédio que não tinhaindicações dos números das salas. Eu fuiperguntar ao porteiro e para me responderele falava devagar, soletrando as letras,indicando o número da sala com a mão egritando. “Eu não sou surdo”, avisei. Elevoltou a falar normal’”

“Eu perdi um primo com câncerde cérebro de forma terrível.Entre descobrir e ele falecerforam três meses. Ele aindaestava internado na UTI, emcoma, quando eu fui visitar comminha mãe. Fiz uma oração,falei com ele. Enquanto minhamãe ficou no quarto para ajeitarmeu primo, eu saí do quarto.Um segurança veio falarcomigo. ‘Precisa de ajuda?’. Eudisse que queria achar a saída.Ele me olhou e perguntou: ‘Vocêestá de alta?’. Fiquei com medoque ele chamasse a enfermeira.Eu só queria sair”

O cordão umbilical enroladoao redor do pescoço impôsdiferentes desafios a Frederico.Com quase três décadas deestrada, trabalhando na ESPNBrasil, o jovem mostraque não há limitações paraquem corre atrás dos sonhos

“Nunca fui tratadocomo coitadinho;pelo contrário. Naescola, em casa, osamigos nunca menegaram nada esempre me exigiramtudo. E eu só possoagradecer por isso”

Na ESPN Brasil desde 2007, Frederico é produtor do Pontapé Inicial e já foi ao ar em reportagens, como nos Jogos Parapan-Americanos

RAIMUNDO ROSA

A vida como ela é

Agradecendo

A-8 Baixada Santista A TRIBUNA Domingo 26www.atribuna.com.br dezembro de 2010