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ÁFRICA DO NORTE NO IMPÉRIO ROMANO: REPRESENTAÇÕES MUSIVAS DE IDENTIDADE E ALTERIDADE Profª Drª Regina Maria da Cunha Bustamante Instituto de História (IH) / UFRJ Laboratório de História Antiga (LHIA) / UFRJ Laboratório de Estudos Africanos (LeÁfrica) / UFRJ Introdução Konder 1 já salientara que, mesmo que se tenha consciência da alteridade do passado, quer dizer, mesmo que se saiba que o passado é um outro, devemos insistir em debruçar-se sobre ele, porque percebemos que, no movimento que vem dele e que – heterogeneamente – chega ao presente, está a chave para se compreender um pouco melhor os problemas atuais. No aprendizado da História, é sempre o passado do outro que se torna nosso. O que é decisivo, na realidade, é o presente, do qual ninguém pode fugir. Tentamos conhecer melhor o presente através do estudo da História e da inesgotável diversidade humana, que nela se manifesta. Renunciando à presunção dos julgamentos definitivos e irrevogáveis, empenhamo-nos na observação da dimensão plural da existência dos homens, isto é, no exame crítico das ações e das especificidades das sociedades humanas. Procuramos, de certo modo, dialogar com os antigos, esforçando-nos para nos colocarmos em lugares específicos do passado, onde eles se moviam, mesmo sabendo que os resultados alcançados por essa aventura serão, muitas vezes, precários. Nesta mesma diretriz, posiciona-se Hartog 2 , que defende justamente a “manutenção desse jogo do mesmo e do outro, com sua sucessão de problemas e sua história, com suas tensões e suas reviravoltas”, o que faz com que os antigos despertem interesse no presente por serem paradoxalmente “nem mesmo, nem outros e, ao mesmo 1 KONDER, L. Por que aprender / ensinar História? ENSINO DE HISTÓRIA – REVISTA DO LABORATÓRIO DE ENSINO DE HISTÓRIA DA UFF. FACULDADE DE EDUCAÇÃO / UFF. Niterói, 3 (3): 11-15, out. 1999. 2 HARTOG, F. História Antiga e História. In: _______ . Os antigos, o passado e o presente. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, p. 198.

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ÁFRICA DO NORTE NO IMPÉRIO ROMANO: REPRESENTAÇÕES MUSIVAS DE IDENTIDADE E ALTERIDADE

Profª Drª Regina Maria da Cunha Bustamante

Instituto de História (IH) / UFRJ Laboratório de História Antiga (LHIA) / UFRJ

Laboratório de Estudos Africanos (LeÁfrica) / UFRJ

Introdução

Konder1 já salientara que, mesmo que se tenha consciência da alteridade do

passado, quer dizer, mesmo que se saiba que o passado é um outro, devemos insistir em

debruçar-se sobre ele, porque percebemos que, no movimento que vem dele e que –

heterogeneamente – chega ao presente, está a chave para se compreender um pouco

melhor os problemas atuais. No aprendizado da História, é sempre o passado do outro

que se torna nosso. O que é decisivo, na realidade, é o presente, do qual ninguém pode

fugir. Tentamos conhecer melhor o presente através do estudo da História e da

inesgotável diversidade humana, que nela se manifesta. Renunciando à presunção dos

julgamentos definitivos e irrevogáveis, empenhamo-nos na observação da dimensão

plural da existência dos homens, isto é, no exame crítico das ações e das especificidades

das sociedades humanas. Procuramos, de certo modo, dialogar com os antigos,

esforçando-nos para nos colocarmos em lugares específicos do passado, onde eles se

moviam, mesmo sabendo que os resultados alcançados por essa aventura serão, muitas

vezes, precários.

Nesta mesma diretriz, posiciona-se Hartog2, que defende justamente a

“manutenção desse jogo do mesmo e do outro, com sua sucessão de problemas e sua

história, com suas tensões e suas reviravoltas”, o que faz com que os antigos despertem

interesse no presente por serem paradoxalmente “nem mesmo, nem outros e, ao mesmo

1 KONDER, L. Por que aprender / ensinar História? ENSINO DE HISTÓRIA – REVISTA DO LABORATÓRIO DE ENSINO DE HISTÓRIA DA UFF. FACULDADE DE EDUCAÇÃO / UFF. Niterói, 3 (3): 11-15, out. 1999. 2 HARTOG, F. História Antiga e História. In: _______ . Os antigos, o passado e o presente. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, p. 198.

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tempo, um e outro”. O estudo da Antigüidade produz indubitavelmente um sentido de

alteridade espacial e temporal, que é operada com a intenção de projetar uma reflexão

sobre o presente, estimulando e desenvolvendo um olhar crítico sobre o social.

Problemas urgentes do mundo contemporâneo trazem, para o âmbito da História Antiga,

campos de visibilidade da vida social que nos ajuda a compreender, através do encontro

com a diferença, nossos próprios caminhos e opções. Eis a dialética da duração: como

estudiosos da Antiguidade, ao nos debruçarmos sobre o passado, pensamos no presente

e pensamos o presente.

Assim, questões sobre a construção das identidades/alteridades culturais,

pautaram o nosso trabalho, na medida em que se afastam de uma perspectiva unitária,

monolítica, autônoma, essencialista e a-histórica das culturas. Procuramos tratar desta

questão a partir da relação entre o Império Romano e a África do Norte, mais

especificamente, o antigo território cartaginês, que se tornou a primeira província

romana na região, a Africa Vetus, posteriormente transformada em África Proconsular3.

Nesta região, existiam culturas tradicionais anteriores ao domínio romano, como a

púnica e a berbere. O processo de expansão romana, iniciado ainda na República, fez

com que Roma subjugasse diferentes sociedades e estabelecesse o seu império. O

Império Romano empenhou-se em construir uma identidade entre as múltiplas culturas,

que estavam sob seu domínio, visando a formação de uma comunidade de abrangência

mediterrânea.

3 Em 46 a.C., com as Guerras Civis do 1o. Triunvirato entre os partidários de Pompeu e de César, o reino vassalo da Numídia tornou-se a segunda província romana na região: Africa Noua. Com a ascensão de Otávio, em 27 a.C., o Augusto e o Senado dividiram a administração das províncias do Império: a África conquistada há muito tempo, “pacificada” e ligada à ordem senatorial por múltiplas tradições, tanto econômicas quanto políticas, ficou entre as províncias que seriam administradas pelo Senado. Esta província senatorial abrangia a Africa Vetus e Africa Noua formando a Africa Proconsularis (ver: BROUGTHON, T. R. S. The romanisation of Africa Proconsularis. Witsport: Greenwood Press, 1972; FISHWICK, D. On the origins of Africa Proconsularis, I: the amalgamação of Africa Vetus and Africa Nova. ANTIQUITÉS AFRICAINES 29: 53-62, 1993). Entre 294 e 305, a fim de reforçar a autoridade imperial e, ao mesmo tempo, diminuir a do procônsul, cujo poder em geral fazia o jogo dos usurpadores, e ainda para aumentar os recursos fiscais destinados a enfrentar as ameaças externas, a África Proconsular foi dividida em três províncias autônomas: ao norte, a Zeugitânia ou província Proconsular propriamente dita; ao centro, a Bisacena; e, a sudeste, a Tripolitânia.

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Este processo foi considerado pela historiografia européia de fins do século XIX

a meados do XX como uma via de mão única em que os romanos levavam à civilização

aos povos nativos, retirando-os de sua barbárie através da “romanização”. Prevalecia a

idéia de que uma civilização tinha o direito de conquistar e organizar o mundo,

legitimando assim a constituição e a extensão de um império pela força. Esta concepção

do passado romano foi utilizada nos discursos das potências coloniais européias durante

sua expansão imperialista. A historiografia colonial européia ressaltou, então, o Império

Romano e as suas benesses: os romanos teriam introduzido a cultura da “civilização” –

estradas, cidades, vilas, impostos, língua latina... – da qual a Europa Ocidental se sentia

herdeira. Por meio do processo de “civilização / romanização”, procurava-se estabelecer

uma linha de continuidade entre o expansionismo romano e o europeu. O papel das

populações nativas foi relegado, assim, à recepção passiva dos “frutos da civilização”

ou à anarquia bárbara, que impediu o progresso socioeconômico por si próprias. Para a

corrente historiográfica colonial, a romanização estava baseada em uma definição de

oposição binária: nativos/“bárbaros”/passivos versus romanos/“civilizados”/ativos e se

caracterizou por ser um processo de transmissão pelo qual o “não civilizado” alcançava

a “civilização”4.

Distintamente, a partir de meados do século XX, com o surgimento de

movimentos de independência afro-asiática, a produção historiográfica desenvolveu um

novo viés, uma perspectiva “pós-colonial”5, que resgatou a pluralidade e o dinamismo

4 FUNARI, P. P. A. Brazilians and Romans: colonialism, identities and the role of material culture. In: FUNARI, P. P. A., GOSDEN, C., HINGLEY, R. (org.). Colonialism and identity: origins and otherness. Washington: WAC 5, june 2003, p. 1-13; JONES, S. The Archaeology of Ethnicity: constructing identities in the past and present. London: Routledge, 1997; BUSTAMANTE, R. M. da C. Roma Aeterna. In: COSTA, D., SILVA, F. C. T. Da (org.). Mundo latino e mundialização. Rio de Janeiro: Mauad / FAPERJ, 2004, p. 29-43; BUSTAMANTE, R. M. da C. Práticas culturais no Império Romano: entre a unidade e a diversidade. In: MENDES, N. M.; SILVA, G. V. da (org.). Repensando o Império Romano; perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro – Vitória: Mauad – EDUFES, 2006, p. 109-110. 5 WEBSTER, J.; COOPER, N. (ed.). Roman imperialism: post-colonial perspectives. Leicester: School of Archaeological Studies, 1996; MATTINGLY, D. J. (ed.). Dialogues in Roman Imperialism; power, discourse, and discrepant experience in the Roman Empire. Portsmouth: Journal of Roman Archaeology, 1997. (Supplementary Series, 23); BUSTAMANTE, R. M. da C. A construção da história na África do Norte na Antigüidade: historiografia colonial X historiografia pós-colonial. HISTÓRIA 17/18: 127-145, 1998 / 1999; HUSKINSON, J. (ed.). Experiencing Rome; culture, identity and power in the Roman

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dos elementos nativos, demonstrando uma sensibilidade para a singular hibridez das

experiências histórico-culturais. Existem diversas formas pelas quais os sujeitos/grupos,

em seus comportamentos, práticas, representações, imaginários, coletivamente ou de

modo singular, interagem objetivando dominar, hierarquizar, subordinar, agregar,

excluir, subsistir, resistir, opor e subverter.

Certamente, foi imprescindível desconstruir o discurso “colonial”6. Entretanto,

devemos reconsiderar a participação dos romanos na antiga formação social norte-

africana e não simplesmente anulá-la ou vê-la em mera oposição à resistência nativa. A

compreensão da interação entre as diversas culturas na África do Norte – e dentre elas, a

romana – durante a Antiguidade fornece uma visão mais multifacetada desta complexa

realidade histórica superando uma perspectiva dicotômica e uma generalização de um

único comportamento, como se numa sociedade não pudesse conviver a pluralidade de

comportamentos e não houvesse um dinamismo inerente, desconsiderando os aspectos

Empire. London: Routledge / Open University, 2000; MENDES, N. M. Romanização e as questões de identidade e alteridade. BOLETIM DO CPA 6 (11): 25-42, 2001; HINGLEY, R. Concepções de Roma: uma perspectiva inglesa. TEXTOS DIDÁTICOS 47: 27-62, 2002. 6 No caso da Antigüidade na África do Norte, podemos citar: SAHLI, M. Décoloniser l’histoire. Paris: Payot, 1965; DEMAN, A. Matériaux et réflexions pour servir à une étude du développment e du sous-developpment dans les provinces de l’Empire Romain. AUFSTIEG UND NIEDERGANG DER RÓMISCHEN WELT 2 (3): 3-97, 1975; LAMIRANDE, É. Nords-africaine en quête de leur passé; coups d’oeil sur la période romaine chrétienne. REVUE DE L’UNIVERSITÉ D’OTTAWA 46 (1): 5-23, 1976; CONGRÈS INTERNATIONAL D’ÉTUDES CLASSIQUE (Madrid, septembre 1974). Assimilation et résistence à la culture gréco-romaine dans le monde ancien. Bucaresti / Paris: Editura Academiri / Les Belles Lettres, 1976; BÉNABOU, M. La résistance africaine à la romanisation. Paris: Maspero, 1976; BÉNABOU, M. Les romains ont-ils conquis l’Afrique? ANNALES, ÉCONOMIES, SOCIÉTÉS, CIVILISATIONS 33 (1): 83-88, jan.-fév. 1978; THÉBERT, Y. Romanisation et déromanisation en Afrique: histoire décolinisée ou histoire inversée? ANNALES, ÉCONOMIES, SOCIÉTÉS, CIVILISATIONS 33 (1): 64-82, jan.-fév. 1978; BÉNABOU, M. Quelques paradoxes sur l’Afrique Romaine, son histoire et ses historiens. ACTES DU IIe. CONGRÈS INTERNATIONAL D’ÉTUDE DES CULTURES DE LA MEDITERRANÉE OCCIDENTALE. t. 2. Alger: Société Nationale d’Édition et de Difusion, 1978, pp. 139-144; NORDMAN, D., RAISON, J.-P. (ed.). Sciences de l’homme et conquête coloniale; constituition et usage des sciences humaines en Afrique (XIXe.-XXe.siècles). Paris: Presses de l’École Normale, 1980; BÉNABOU, M. L’Afrique et la culture romaine: le problème des survivences. LES CAHIERS DE TUNISIE 29 (117-118): 9-21, 1981; FENTRESS, E. La vendetta del Moro: ricenti ricerca sull’Africa Romana. DIALOGHI DI ARCHEOLOGIA 1: 197-213, 1982; SHELDON, R. Romanizzazione, acculturazionne e resistenza: problemi concettuali nella storia del Nord Africa. DIALOGHI DI ARCHEOLOGIA 4 (11): 102-106, 1982; BÉNABOU, M. Les survivences préromaines en Afrique Romaine. LES CONFÉRENCES VANIER 1980. L’Afrique Romaine. Ottawa: Les Éditions de l’Université d’Ottawa, 1982, p. 13-27.

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criativos das práticas e a presença de espaços de ambiguidade e de complexas

negociações.

Para tanto, optamos por selecionar dois mosaicos que decoravam uma residência

localizada na antiga cidade de Thysdrus, atual em Djem na Tunísia Privilegiamos o

aspecto cultural, abordando a problemática vinculada à construção de um sistema de

valores compartilhados, que favoreceram a integração imperial através da cooptação das

elites locais, mas que não exclui a cultura local. Objetivamos enfocar as relações

ambíguas e complexas entre Roma e a elite provincial, a partir da análise destes

mosaicos. Os processos de produção de identificação, mesmo os aparentemente mais

óbvios, abrigam negociações e conflitos em permanente curso, pois as identificações

ocorrem no plural, sujeitas a uma diferenciação e hierarquia em relação ao “outro”.

Devemos compreender as estratégias implementadas na construção de identidades com

a elaboração de modelos de comportamento, valores e imagens, que permitam manter

unidos grupos que, se identificando culturalmente, se reconheçam como iguais e se

distingam dos “outros”.

1. Contexto

Os dois mosaicos selecionados decoravam7 uma rica residência, a “Casa da

África”, cuja denominação adveio justamente por sua causa. Esta casa situava-se no

bairro sudeste da cidade Thysdrus, na África Proconsular, a mais antiga província

romana ultramarina, que fora criada no território cartaginês (hoje Tunísia), após a

vitória de Roma em 146 a.C. A posição geográfica da África Proconsular era estratégica

para controlar o Mediterrâneo Ocidental. Possuía uma tradição urbana e intensa

atividade agrícola, em especial, de cereal, vinha e oliveira. Sua importância econômica

manteve-se no Império, sendo considerada um dos “celeiros” de Roma8.

7 Os dois mosaicos foram retirados do lugar onde foram encontrados e, atualmente, compõem o acervo do Museu de El Djem na Tunísia. 8 Para maiores detalhes, ver: MAHJOUBI, A. O período romano. In: MOKHTAR, G. (coord.). História geral da África. v. 2, São Paulo-Paris, Ática-UNESCO, 1983, p. 473-509; MANTON, E. L. Roman North Africa. London: Seaby, 1988; FÉVRIER, P.-A. Approches du Maghreb Romain. 2. t. Aix-en-Provence: ÉDISUD, 1989-1990; PICARD, G.-C. La civilisation de l’Afrique Romaine. 2. ed. Paris: Études

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A ascensão da dinastia afro-síria dos Severos (193-235) ao poder imperial

beneficiou muito a África do Norte. De origem pré-romana, a cidade de Thysdrus

tornou-se município romano em meados do século II e, talvez, colônia honorária em

meados do III9. Localizava-se em uma rica região de oleicultura, o que favoreceu o

financiamento pela elite da atividade edilícia pública (anfiteatro, trabalhos hidráulicos e

restauração dos banhos) e privada através da construção de ricas casas com belos

mosaicos10, como os dois ora analisados. O poder desta elite advinha de suas

propriedades fundiárias; era ela que, comumente, comissionava os mosaicos.

Havia uma tradição púnica na arte do mosaico. Com o domínio romano, houve

sua interrupção, embora subsistisse em algumas cidades púnicas. Por volta do final do

século I e do início do II, mosaístas criavam mosaicos geométricos em preto e branco

com padrões muito simples, semelhantes aos italianos do mesmo período, relegando

suas próprias tradições. Somente em meados do século II, favorecidos pela prosperidade

norte-africana, começaram a se afastar dos padrões romanos com a gradual introdução

da policromia nas bordas e da integração de elementos florais e geométricos.

Produziram-se então mosaicos figurativos, que seguiam a tradição helenística, com

cenas idílicas e mitológicas. O estilo africano chegou a sua maturidade no século III,

com o uso da policromia e cenas cotidianas, caras à elite, sendo disseminado em outras

Augustiniennes, 1990; RAVEN, S. Rome in Africa. 3. ed. London: Longman, 1993; JULIEN, C.-A. Histoire de l’Afrique. 2. ed. Paris: Payot, 1994; DECRET, F.; FANTAR, M. H. L’Afrique du Nord dans l’Antiquité. 2. ed. Paris: Payot, 1998. 9 GASCOU, J. La politique municipale de l’Empire Romain en Afrique Proconsulaire de Trajan à Septime-Sévère. Rome: École Française de Rome, 1972, p. 192-194. 10 LEPELLEY, C. Les cités de l’Afrique Romaine au Bas Empire. t. 2. Paris: Études Augustiniennes, 1981, p. 318-322.

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partes do Império11. Os dois mosaicos analisados pertencem a este estilo: foram datados

ou da segunda metade do século II12 ou do começo do III13.

Em uma sociedade em que o domínio da escrita era privilégio de poucos e os

documentos escritos tinham circulação restrita, a imagem constituiu-se em uma forma

de comunicação com maior amplitude que a escrita. Contemplando ou fabricando-a,

cotidianamente as sociedades antigas a utilizavam, decifravam e interpretavam,

recontando narrativas míticas e familiarizando seus integrantes uns com os outros

através de representações de situações vivenciadas ou idealizadas14. Neste trabalho,

privilegiamos o modo de produção do sentido da imagem, que foi inserida na ordem do

texto, precisando, portanto, ser lida para ser compreendida, o que demanda de seus

leitores uma atitude interpretativa. A imagem é uma ferramenta de expressão e

comunicação, pois transmite uma mensagem visual para outro, composta de diversos

signos; é uma linguagem15. O produtor da imagem encontra-se em uma relação

dialógica com sua sociedade: produz por diversas motivações culturais e sociais e seus

produtos retornam à sociedade reforçando, criticando ou formulando novos valores e

práticas. Dificilmente, se cria algo que não seja compreendido, que não tenha um

significado para os membros da sociedade em que vive16. Para se compreender o sentido

11 KHADER, A. B. A. B. The African Mosaic in Antiquity. In: KHADER, A. B. A. B.; SOREN, D. Carthage: a mosaic of Ancient Tunisia. New York – London: The American Museum of Natural History - W. W. Norton & Company, 1987, p. 132-135; PICARD, G.-C. Genèse et évolution de la mosaïque en Afrique; MANSOUR, S. B. Techniques et écoles. In: FANTAR, M. H. et alii. La mosaïque en Tunisie. Tunis: Les Éditions de la Méditerranée, 1994, p. 16-59; FRADIER, G. Mosaïques romaines de Tunisie. Tunis: Cérès, 1997, p. 9-20; LING, R. Roman Africa. In: Ancient mosaics. London: British Museum Press, 1998, p. 77-97; DUNBABIN, K. M. D. The North African provinces. In: Mosaics of the Greek and Roman World. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 101-129. 12 BLANCHARD-LEMÉE, M. et al. Mosaics of Roman Africa. London: British Museum Press, 1996, p. 285. 13 HUSKINSON, J. Looking for culture, identity and power. In: HUSKINSON, J. (ed.). Experiencing Rome; culture, identity and power in the Roman Empire. London: Routledge - The Open University, 2000, p. 3. 14 THEML, N. Linguagem e comunicação: ver e ouvir na Antigüidade. In: THEML, N. (org.). Linguagens e formas de poder na Antigüidade. Rio de Janeiro: Mauad / FAPERJ, 2002, p. 11-24. 15 JOLY, M. Introdução à análise de imagens. Campinas, SP: Papirus, 1997, p. 48. 16 ECO, U. Les limites de l'interprétation. Paris: Bernard Grasset, 1992.

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das mensagens que circulavam, ou seja, interpretá-las, deve-se conhecer a sociedade,

sua cultura e os seus códigos de linguagem17.

2. Leitura

Abordaremos, inicialmente, o MOSAICO 1, por ser o maior (3,5m²) e decorar o

cômodo anterior e mais amplo (6m x 4,5m)18, inferindo-se por isto a sua proeminência

sobre o MOSAICO 2, fator importante na presente análise. Esta perspectiva diferencia-

se da adotada por Slim19, que iniciou seu estudo com o outro mosaico, tendo em vista a

prioridade temática concedida à África pela publicação.

17 CARDOSO, C. F. S. Iconografia e História. Resgate, vol. 1, Campinas, 1990, p. 9-17. 18 O MOSAICO 2 mede 1,6m² e situava-se em um cômodo de 4m x 4,7m. 19 SLIM, H. África, Rome, and the Empire. In: BLANCHARD-LEMÉE, M. et al. Op. cit., p. 16-35.

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MOSAICO 1 (HUSKINSON, J. (ed.). Experiencing Rome; culture, identity and power in the Roman Empire.

London: Routledge - The Open University, 2000, capa)

O MOSAICO 1 é um grande medalhão circular, subdividido em sete medalhões

hexagonais e emoldurado por motivos florais e figuras humanas. O medalhão central

contém uma mulher sentada, vestindo uma túnica curta, um manto de cor púrpura e um

elmo e segurando uma lança e o globo terrestre (orbis terrarum); ao seu lado, um

escudo de Minerva com a Medusa. Deduzimos que seja a alegoria de Roma derivada de

uma Minerva20 armada (elmo, escudo e lança) e com o manto púrpura do poder

imperial. Seria a domina mundi e poderia “petrificar” homens e deuses com o seu

aparato militar (escudo com Medusa). Destaca-se por estar no centro, ser a única

sentada e ter atributos militares. Em torno desta imagem militarista de Roma, gravita

todo o restante.

Os seis medalhões circundantes contêm também mulheres; em três deles, bustos

femininos: à esquerda de “Roma”, mulher com chapéu de cabeça de elefante (presas,

tromba e grandes orelhas); sobre “Roma”, outra mulher, ornada com brinco, diadema

com torre e fíbula, segura objeto pontudo, talvez um arco; à direita de “Roma”, a

mulher, de cabelo encaracolado e brincos, carrega o sistrum, instrumento musical do

culto a deusa egípcia Ísis. Pelos atributos, inferimos que as mulheres eram as

personificações das províncias da África (cabeça de elefante), da Ásia (riqueza e arco) e

do Egito (cabelo cacheado e sistrum).

Alternadamente aos bustos femininos, há três mulheres em pé: sobre a “África”,

mulher, com diadema de torre, veste túnica curta e manto e carrega um ramo de oliveira

com azeitona e um objeto não identificado; acima do “Egito”, outra, também com

diadema, traja uma longa túnica e manto e segura uma patena ou uma taça, contendo

20 Compunha juntamente com Júpiter e Juno a tríade capitolina, protetora de Roma, cujo templo era erguido em posição de destaque nas cidades romanas. Era a divindade relacionada à sabedoria, às artes e à guerra.

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material avermelhado, talvez brasas incandescentes ou vinho, e estende seu outro braço

em direção a algo; por fim, abaixo de “Roma”, mulher com um triscele21 na cabeça,

veste túnica curta, manto e bolsa, carrega lança e galhada de veado. Alguns dos

atributos escapam a nossa compreensão, impedindo a identificação da província acima

do “Egito”. As outras seriam: Espanha (principal produtora de azeite na época) e Sicília

(triscele lembraria o formato da Sicília, personificada como Diana: aparato de caça e

galhada de veado, possível referência a Actéon).

As alegorias de Roma e das províncias enfatizariam a noção de Império

Romano, sua extensão geográfica, sua diversidade unificada sob o controle de Roma e

sua riqueza. Aventamos alguns critérios na escolha das províncias: África pela

localização do próprio mosaico e por ter sido um dos “celeiros” de Roma e uma das

principais províncias senatoriais junto com a Ásia, que se destacava por sua riqueza e

urbanidade; Egito por sua importância no aprovisionamento de Roma e por ter sido

domínio especial do imperador, governado por um prefeito, diretamente submetido à

sua autoridade; Sicília porque era a mais antiga província e uma das mais férteis;

Espanha por sua produção de azeite e pela proximidade da África. Estas províncias

apareceriam juntas para sublinhar seu papel como exportadoras de produtos essenciais a

Roma.

A personificação das províncias como figuras femininas inseria-se na tradição

clássica de nomear a terra na forma feminina, pois nela se geravam os seus naturais e

sua exploração os sustentava, semelhante à mãe que dá a luz aos filhos e os amamenta.

A terra era vista como potência e reserva inesgotável de fecundidade, gerando filhos e

riquezas. Huskinson22 destaca outro fator também relacionado à questão de gênero:

enquanto Roma foi representada por uma mulher com aspectos considerados

masculinos (força militar e poder), as províncias, também mulheres, tinham um aspecto

visto como feminino: a vulnerabilidade, situando-as em uma posição de inferioridade

em relação a Roma, que as dominava.

21 Do grego triskelés, de três pernas. Variante da suástica, com três pernas em vez de quatro. 22 HUSKINSON, J. Op. cit., p. 7-8.

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As personificações de províncias romanas, um dos elementos essenciais da arte

oficial romana a serviço da ideologia e do poder imperiais, foram, no entanto, utilizadas

para decorar residências particulares, como a “Casa da África”. Pela sua suntuosidade,

inferimos que o seu proprietário era ou um importante funcionário, que utilizou a

decoração de sua residência para manifestar sua ligação com o Império e seu orgulho

em pertencer à comunidade romana, ou um cidadão rico, que, ao exaltar as fontes de sua

fortuna, prestava homenagem a Roma e ao Império pela era dourada, que, em Thysdrus,

assentou-se na produção e no comércio do azeite.

A escolha do suporte das imagens, o mosaico, demandava recursos de seu

comanditário, tornando-o um símbolo de status das elites provinciais do Império, cuja

riqueza estava fundamentada na exploração fundiária. Estas elites, profundamente

romanizadas, afirmavam seu status e valores culturais comuns. Expressavam seu estilo

de vida e ideário na decoração de suas casas, ressaltando seu prazer de viver, poder e

prestígio social23; constituíam-se nos clientes principais dos mosaístas. Havia temáticas

reproduzidas que se inseriam na retórica, que teve papel central no mundo greco-

romano para a construção do pensamento e expressão da elite. Era uma maneira de

representar experiências e acontecimentos dentro de certa espécie de moral ou rede

social, uma forma de expressar “significados compartilhados”24, fundamentados na

cultura da qual se originava, que sedimentava uma identidade romana. Inseria-se, pois,

na romanização, entendida aqui “como um processo de mudança relacionado com as

idéias de controle social e identidade”25.

Evidenciamos, entretanto, outra identidade, tema central na decoração do

cômodo menor que se segue ao do MOSAICO 1. A análise dos dois mosaicos permite

apreender o discurso imagético da “Casa da África” em sua totalidade, o que não foi

realizado por Huskinson, que se restringiu ao MOSAICO 1, acabando por acentuar

apenas a identidade romana, postura condizente com a natureza da sua publicação. Por

23 THÉBERT, Y. Vida privada e arquitetura doméstica na África Romana. In: ARIÈS, P.; DUBY, G. (Org.). História da vida privada. v. 1, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 300-398. 24 HUSKINSON, J. Op. cit., p. 7. 25 MENDES, N. M. Romanização: cultura imperial. Phoînix, vol. 5, Rio de Janeiro, 1999, p. 307.

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sua vez, Slim26, apesar de trabalhar os dois mosaicos, analisou-os mais individualmente,

não se aprofundando na sua inter-relação nem na inferência de uma nuance local no

discurso da ordem hegemônica romana.

26 SLIM, H. Op. cit., p. 16-35.

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MOSAICO 2 (BLANCHARD-LEMÉE, M. et al. Mosaics of Roman Africa; floor mosaics from Tunisia. London:

British Museum Press, 1996, p. 20, fig. 3.)

O MOSAICO 2 compõe-se de um medalhão central quadrilátero com figura

feminina, quatro medalhões circulares angulares com figuras femininas e quatro fusos

laterais com pássaros. No medalhão central, em uma moldura octogonal curva florida,

há um busto de mulher de cabelo frisado, que veste uma túnica e cobre a cabeça com

uma cabeça de elefante. Poderíamos aventar, comparando com o MOSAICO 1, que

fosse a província África. Mas, a imagem está em um contexto diferente do anterior,

apesar do atributo elefantino ser indubitavelmente africano. Há figuras femininas nos

ângulos do mosaico. Cada uma delas representaria uma das estações do ano com seus

frutos típicos: à esquerda, nos cantos inferior e superior, Primavera (coroa de flores) e

Inverno (cabeça velada com coroa de ramos de oliveira) e, à direita, nos cantos inferior

e superior, Verão (coroa de espigas de trigo) e Outono (coroa de ramos de parreira com

uvas). Os quatro fusos laterais reforçariam este simbolismo: os pássaros estão próximos

de azeitonas (esquerda), uva (superior), espiga de trigo (direita) e flor (inferior). A

figura central do MOSAICO 2 seria Dea Africa. Como as grandes divindades, ela

dominava cada uma das Estações, que habitualmente estavam relacionadas à

abundância e à fecundidade. A presença destas e a sua submissão à figura central

mostrariam que se lidava com a Dea Africa, portadora de riquezas e fertilidade, e não

apenas com uma simples personificação da província, como no MOSAICO 1.

Inicialmente, a representação iconográfica da Dea Africa27 era um corpo

feminino leontocéfala. No século I a.C., sob influência romana, houve uma dissociação

27 LE GLAY, M. Encore la Dea Africa. In: Mélanges offerts a André Piganiol. t. 3, Paris: SEVPEN, 1966, p. 1233-1239.

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entre a deusa, humanizada completamente, e o leão, seu atributo. Figurou, desde então,

como uma mulher adornada com cabeça de elefante. Era associada a Tanit, deusa

cartaginesa. Como protetora e Genius da África, estava imbricada em todas as

atividades da vida dos antigos africanos. Foi identificada ao princípio feminino,

presidindo a fecundidade da terra. Objeto de culto público, a divindade encontra-se

referida em documentos epigráficos e arqueológicos. Há numerosas estatuetas em

bronze e em terracota usadas geralmente em cultos domésticos. Sua importância é

demonstrada pela ampla difusão de seu retrato em diferentes meios (moedas, esculturas,

lamparinas, terracotas, pinturas, jóias...). Mas, foi raramente retratada em mosaicos;

talvez porque a elite provincial, comanditária dos mosaicos, buscasse reforçar

prioritariamente sua inserção na ordem imperial, ou seja, sua identidade romana frente à

sociedade local28.

Conclusão

Os mosaicos da “Casa da África” enfatizariam a harmonia do Império Romano,

consolidada na Pax Romana29, e acentuariam especificamente a prosperidade norte-

africana a partir da Dea Africa. No MOSAICO 1, a superioridade romana se embasaria

no domínio militar sobre todos (orbis terrarum), permitindo o enriquecimento do

Império através do comércio interprovincial. No entanto, as províncias manteriam suas

características físicas e atributos, mesmo sob a égide romana. A unidade imperial estaria

28 Em certas passagens da documentação textual literária, o culto a Dea Africa aparece em algumas ocasiões como hostil ao governo de Roma. Na História Augusta (Vida de Pertinace IV. 1-2), há uma passagem que faz referência a rebeliões sufocadas na África por Pertinace em fins do século II, que foram inspiradas pelas profecias emanadas do templo da deusa. Para maiores detalhes, ver: MOMIGLIANO, A. De paganos, judíos y cristianos. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 211-212. 29 Período de paz para o Império, a partir de Augusto até o século II, quando houve uma estabilidade política com a instauração do poder pessoal e centralizado do Princeps, a implantação de uma máquina político-administrativa para gerenciar o Império, a consolidação das fronteiras imperiais e um grande desenvolvimento econômico, beneficiando Roma e as províncias, principalmente, as suas elites (PETIT, P. A Paz Romana. São Paulo: Pioneira, 1984).

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presente no MOSAICO 1 através dos painéis concêntricos e interligados e das vestes de

Roma e das províncias, que se trajam como figuras heróicas da arte clássica; seria uma

expressão iconográfica tradicional greco-romana. Esta roupa significaria cultura

clássica, inserindo-se, portanto, na ordem imperial romana.

O reconhecimento da supremacia romana não impediria que a África também

fosse valorizada. No MOSAICO 2, o domínio africano ocorreria em níveis diferentes

do que o de Roma: não no nível do domínio humano pela hegemonia militar (armas

ofensivas e defensivas), econômica (comércio) e cultural (roupas), mas no nível do

domínio da natureza pelas Estações e seus atributos (uva, flor, azeitona e espiga) e pelo

adorno elefantino (animal selvagem); não em termos de abrangência espacial (orbis

terrarum), mas em termos de abrangência temporal (sucessão das estações). A Dea

Africa seria uma força da natureza: seu território poderia estar contingentemente sob o

poder militar, econômico e cultural de Roma, mas ainda manteria a sua esfera de

atuação na natureza e, como tal, seria cultuada na região. Se, por um lado, haveria uma

identidade romana, por outro, a “africanidade” não seria excluída. Na “Casa da África”,

diferentes identidades coexistiriam ainda que hierarquizadas.

Como beneficiária da ordem romana, a elite norte-africana adotaria um marco

decorativo, que servisse de elemento de identificação e de integração ao modo de viver

romano, manifestando sua participação na gestão do Império Romano e afirmando sua

posição privilegiada na sociedade local. Uma comunidade cultural mediterrânea,

incentivada pela civilização romana através de um intenso intercâmbio econômico,

político e cultural, ocasionaria o desenvolvimento de uma decoração privada própria das

elites em todo o Império. A homogeneidade social e a cumplicidade política das elites

propiciariam a perceptível uniformidade dos princípios básicos de sua decoração

doméstica, sem, contudo, excluir de todo os elementos locais, ainda que

hierarquicamente posicionados.