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A VELHA E A NOVA JAGUARIBARA (CE): Memórias submersas e novas memórias FROTA JÚNIOR, MAXIMINO B.; DUARTE JÚNIOR, ROMEU 1. Universidade Federal do Ceará. PPGAU+D (Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo + Design do Centro de Tecnologia) Av. Santos Dumont, 2789/803 Aldeota Fortaleza CE CEP 60150-161 [email protected] 2. Universidade Federal do Ceará. PPGAU+D (Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo + Design do Centro de Tecnologia) Av. da Universidade, 2890 Benfica Fortaleza CE CEP 60020-181 [email protected] RESUMO Este artigo é fruto de pesquisas que embasam dissertação em desenvolvimento no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo + Design do Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Ceará. A nova Jaguaribara é a primeira cidade totalmente planejada do Estado do Ceará. Foi inaugurada em 2001 para abrigar a população relocada da antiga sede, hoje submersa pelas águas do Rio Jaguaribe devido a construção da barragem Castanhão, o maior reservatório hídrico do Estado. Ao longo do Rio Jaguaribe deu-se o principal eixo da colonização portuguesa no Ceará a partir do século XVII, que era baseada na pecuária. As origens de Jaguaribara remontam ao século XVIII, com o desenvolvimento de um núcleo urbano a partir da fazenda de gado Santa Rosa. A velha cidade era um testemunho da lógica portuguesa de ocupação do território. Um traçado com malha regular paralela ao rio, desenvolvido a partir de uma praça central onde a igreja de Santa Rosa de Lima era o grande marco. A ambiência urbana era emoldurada por edificações residenciais e comerciais geminadas, com fachadas em platibanda no limite frontal de lotes estreitos. Em 1985 divulga-se a construção da barragem no boqueirão já identificado na década de 1910. Em 1995 é decidido que Jaguaribara seria inundada. Nestes 10 anos a população se organizou em associação e resistiu, buscando alternativas que a mantivessem em seu lugar de origem. O Relatório de Impacto Ambiental reconhece que a relocação da população era o principal trauma a ser mitigado. Os técnicos responsáveis ainda decidem, alegando questão de segurança, que todo o patrimônio edificado deveria ser demolido. O projeto da nova cidade foi desenvolvido por profissionais cearenses e teve como premissa a participação popular. O foco da população organizada, que era de resistir à relocação, passa a ser o de garantir a “terra prometida”. Os moradores influenciaram diretamente em vários assuntos, como na escolha do novo sítio e no projeto das casas. Sobre as questões de memória, pressionaram pela busca da manutenção das relações de vizinhança, e pela construção das igrejas com a mesma forma das antigas. Independente do Governo, organizaram a criação da Casa de Memória, composta por acervo rico de objetos pessoais e familiares doados pelos moradores. Passados 15 anos, o artigo ainda analisa a construção de valores do patrimônio cultural material e imaterial na nova cidade, através da percepção dos ritos, usos, trabalhos, celebrações e lugares. Com a estiagem nos últimos anos, o nível das águas do Castanhão baixou e fez com que as ruínas da velha cidade emergissem. A nova cidade se reencontra com sua história e suas memórias. Nasce um paradoxo: desejar estar próximo de suas raízes é desejar a seca. Refletir sobre a experiência de Jaguaribara significa jogar luz sobre o singelo patrimônio edificado no Estado e mostrar como a memória e o patrimônio cultural têm estado distante do planejamento e do desenho urbano e regional nas pranchetas oficiais, só sendo considerados quando se faz efetiva a participação popular. Palavras-chave: Jaguaribara; Patrimônio, Memória; Memórias submersas; Paisagem Cultural

FROTA JÚNIOR, MAXIMINO B.; DUARTE JÚNIOR, ROMEU · 4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 1. INTRODUÇÃO

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A VELHA E A NOVA JAGUARIBARA (CE): Memórias submersas e novas memórias

FROTA JÚNIOR, MAXIMINO B.; DUARTE JÚNIOR, ROMEU

1. Universidade Federal do Ceará. PPGAU+D (Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo + Design do Centro de Tecnologia)

Av. Santos Dumont, 2789/803 – Aldeota – Fortaleza – CE CEP 60150-161 [email protected]

2. Universidade Federal do Ceará. PPGAU+D (Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e

Urbanismo + Design do Centro de Tecnologia) Av. da Universidade, 2890 – Benfica – Fortaleza – CE CEP 60020-181

[email protected]

RESUMO

Este artigo é fruto de pesquisas que embasam dissertação em desenvolvimento no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo + Design do Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Ceará. A nova Jaguaribara é a primeira cidade totalmente planejada do Estado do Ceará. Foi inaugurada em 2001 para abrigar a população relocada da antiga sede, hoje submersa pelas águas do Rio Jaguaribe devido a construção da barragem Castanhão, o maior reservatório hídrico do Estado. Ao longo do Rio Jaguaribe deu-se o principal eixo da colonização portuguesa no Ceará a partir do século XVII, que era baseada na pecuária. As origens de Jaguaribara remontam ao século XVIII, com o desenvolvimento de um núcleo urbano a partir da fazenda de gado Santa Rosa. A velha cidade era um testemunho da lógica portuguesa de ocupação do território. Um traçado com malha regular paralela ao rio, desenvolvido a partir de uma praça central onde a igreja de Santa Rosa de Lima era o grande marco. A ambiência urbana era emoldurada por edificações residenciais e comerciais geminadas, com fachadas em platibanda no limite frontal de lotes estreitos. Em 1985 divulga-se a construção da barragem no boqueirão já identificado na década de 1910. Em 1995 é decidido que Jaguaribara seria inundada. Nestes 10 anos a população se organizou em associação e resistiu, buscando alternativas que a mantivessem em seu lugar de origem. O Relatório de Impacto Ambiental reconhece que a relocação da população era o principal trauma a ser mitigado. Os técnicos responsáveis ainda decidem, alegando questão de segurança, que todo o patrimônio edificado deveria ser demolido. O projeto da nova cidade foi desenvolvido por profissionais cearenses e teve como premissa a participação popular. O foco da população organizada, que era de resistir à relocação, passa a ser o de garantir a “terra prometida”. Os moradores influenciaram diretamente em vários assuntos, como na escolha do novo sítio e no projeto das casas. Sobre as questões de memória, pressionaram pela busca da manutenção das relações de vizinhança, e pela construção das igrejas com a mesma forma das antigas. Independente do Governo, organizaram a criação da Casa de Memória, composta por acervo rico de objetos pessoais e familiares doados pelos moradores. Passados 15 anos, o artigo ainda analisa a construção de valores do patrimônio cultural material e imaterial na nova cidade, através da percepção dos ritos, usos, trabalhos, celebrações e lugares. Com a estiagem nos últimos anos, o nível das águas do Castanhão baixou e fez com que as ruínas da velha cidade emergissem. A nova cidade se reencontra com sua história e suas memórias. Nasce um paradoxo: desejar estar próximo de suas raízes é desejar a seca. Refletir sobre a experiência de Jaguaribara significa jogar luz sobre o singelo patrimônio edificado no Estado e mostrar como a memória e o patrimônio cultural têm estado distante do planejamento e do desenho urbano e regional nas pranchetas oficiais, só sendo considerados quando se faz efetiva a participação popular.

Palavras-chave: Jaguaribara; Patrimônio, Memória; Memórias submersas; Paisagem Cultural

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1. INTRODUÇÃO

Em 25 de setembro de 2001 foi inaugurada a nova Jaguaribara, primeira cidade totalmente

planejada do estado do Ceará, situada a 227 km ao sul da capital Fortaleza (Figura 01). Um

dia de festa com banda de música, shows musicais e missa campal na frente da igreja matriz

de Santa Rosa de Lima. Solenidade que contou com a participação em massa da população

local e de autoridades estaduais, incluindo o então governador Tasso Jereissati1. Era o início

de outra fase na história desta cidade.

Figura 1: Painel com Mapa do Ceará e do Município de Jaguaribara

Fonte: SRH (Secretaria de Recursos Hídricos) e SEINFRA. Editado pelo autor.

Para um visitante desavisado, o clima festivo na cidade novinha em folha às margens do rio

Jaguaribe, em frente à barragem Padre Cícero, não dava pista do processo que ali culminava.

“...é um momento de alegria, pra todos. Alegria pra própria população

de Jaguaribara, que num gesto muito importante, num gesto acima de

tudo cristão, abre mão desta cidade, deste seu canto, deste seu lugar

1 Tasso Jereissati foi governador do Ceará nos períodos 1987-1990, 1995-1998 e 1999-2002. Sua gestão tinha o

slogan “Governo das Mudanças”, que era caracterizada por abertura comercial e privatizações e seu

“planejamento baseado nas questões macroeconômicas e na atração de investimentos em infra-estrutura e na

criação de cenário favorável a novos negócios” (Braga, 2010)

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do seu torrão natal, pra que sejam beneficiados milhões de

cearenses.”2

Assim foi parte do discurso de governador, referindo-se ao trauma da relocação involuntária

de cerca de oito mil pessoas. Para a construção da barragem popularmente conhecida como

Castanhão, reservatório com capacidade de armazenar cerca de 6,7 bilhões de metros

cúbicos de água e com 328 km² de área, o lar destas pessoas foi submerso.

Segundo Bastos e Zein (2011, p. 319), a década em que o projeto foi desenvolvido é marcada,

no Brasil, por um maior comprometimento com o Lugar:

“A abertura para perceber o que sugere o lugar com suas

características físico-espaciais e sua realidade sociocultural,

prescindindo de partidos norteadores a cada programa, tornou-se um

motivo recorrente na experimentação arquitetônica ,...”

Neste contexto, o presente artigo tem como objetivo analisar como a memória e o patrimônio

fizeram parte do planejamento regional, e do desenho urbano, no sentido de construção do

lugar na nova Jaguaribara. Faz isto buscando a identificação das permanências

materializadas no novo sítio, e como isto se deu, através de uma análise comparativa da

morfologia urbana da velha e da nova Jaguaribara. A análise é apoiada nos conceitos de

dimensões espaciais (setorial, urbana e territorial, respectivamente as escalas da rua, do

bairro e da cidade) e nos elementos morfológicos classificados por Lamas (2014): O solo, os

edifícios, o lote, o quarteirão, a fachada, o logradouro, o traçado, a rua, a praça e o

monumento. Atenta-se à como a população percebe estes elementos:

(...) um dos aspectos mais importantes trazidos pela abordagem

fenomenológica a lugar na pós-modernidade foi, indubitavelmente, o

de fazer refletir com grande atenção sobre o papel desempenhado

pela percepção do ambiente urbano – isto é, por tentar apreender de

modo mais aprofundado como a população percebe o ambiente -,

para assim começar a identificar os estímulos ambientais que mais

2 Discurso do governador Tasso Jereissati no dia da inauguração da nova Jaguaribara. Extraído do vídeo

“Jaguaribara: pelos caminhos da memória” que foi produzido pelo IMOPEC.

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profundamente impressionam as pessoas, a ponto de lhes fazer sentir

a experiência de urbanidade. (CASTELLO, 2007, p.129)

Analisa-se também a apropriação dos espaços por parte da população, pois como afirma

Ferrara (1988, p.04):

“A convergência entre contexto, uso e transformações urbanas implica

em produzir uma Teoria do Espaço Urbano, enquanto sistema, que

rompe com a característica do espaço projetado para transformá-lo

em manifestação sócio-cultural que supera qualquer concepção

abstrata, conceitual.”

2. A VELHA JAGUARIBARA

Entender a história de Jaguaribara é fundamental para que se possa compreender

qualitativamente a ruptura de sua relocação.

O início da urbanização do território cearense está historicamente associada à pecuária. Ao

longo dos rios foram se estabelecendo fazendas de gado. Algumas tornaram-se povoados e

vilas, compondo uma rede com dois grandes eixos, os rios Acaraú no lado oeste e Jaguaribe

no lado leste do Estado (Figura 02). Jaguaribara é um exemplo, “...uma porção peculiar do

território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à

qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores”3. De uma fazenda,

transforma-se em um povoado em torno da igreja de Santa Rosa, tornando-se município

apenas em 1957.

3 Art. 1º. da Portaria 127 do IPHAN, de 30/04/2009, que define Paisagem Cultural Brasileira.

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Figura 2: Capitania do Ceará – Vilas, povoados e fluxos, 1817 , elaborado por Silva Paulet e mapa

elaborado por JUCÁ, C.R. a partir do primeiro.

Deduz-se que sua implantação aconteceu de maneira espontânea, inspirada na lógica da

Coroa Portuguesa de “implantação de vilas fundadas, seguindo os padrões urbanísticos

próprios da Escola do Urbanismo Português setecentista.”(Jucá Neto, 2012). Padrões que

seguem a orientação da escolha do sítio em lugar saudável e com bom provimento de água,

a implantação da igreja e edifícios mais importantes em uma praça e ruas saindo a partir

desta, em malha regular. Padrão que se repete em cidades e povoados que compõem a

antiga rede urbana do vale do rio Jaguaribe (Figura 02).

O Ceará está localizado no semiárido do Nordeste do Brasil, região de regime chuvoso

instável sujeita a longos períodos de estiagem, que comprometem o abastecimento de água

para consumo de cerca de 23 milhões de brasileiros. Segundo Ab`Saber(2003, p.83), “não

existe melhor termômetro para delimitar o Nordeste seco do que os extremos da própria

vegetação da caatinga”. Desde o Império, obras públicas, como barragens de vários portes,

canais, cisternas e outras, vêm sendo construídas no sentido de combater os problemas da

seca.

Em 1985 foi anunciada a construção da barragem Castanhão (oficialmente denominada

Padre Cícero). Os primeiros estudos para implantação da barragem remontam a 1910 e foram

realizados pela Inspetoria de Obras Contra as Secas (atual DNOCS – Departamento Nacional

de Obras Contra a Seca). Seu boqueirão foi identificado pelo engenheiro Roderic Crandall. O

local ficou conhecido como Boqueirão do Cunha.

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A obra, iniciada em 1995, impôs a transferência de cerca de 8.000 pessoas, sendo 3600 da

área urbana de Jaguaribara e o restante da área rural deste e de municípios vizinhos. Em

2001, então, a civitas de Jaguaribara foi obrigada a deixar pra trás a velha urbe para

reencarnar em um novo corpo, uma cidade planejada por equipe técnica cearense

encabeçada pelos arquitetos Marcelo Colares de Oliveira e Luiza de Marillac Ximenes Cabral

e pela socióloga Maria Afonsina Braga Barbosa Lima, todos funcionários da SEINFRA,

Secretaria de Infraestrutura do Estado do Ceará.

Figura 3: Mosáico com paisagem cultural da velha Jaguaribara

Fonte: Fotos de Beth Guabiraba. Montagem do mosáico pelo autor.

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Este processo de ruptura muda a importância do papel de Jaguaribara na rede urbana do

Ceará. Até então era apenas um pequeno núcleo urbano, exemplo do processo civilizatório

brasileiro pelo e no Sertão (Figura 3), situada em um “fim de linha” de uma rede já periférica do

contexto colonial e nacional. Com o Castanhão, Jaguaribara ganha o status de potencial

centro regional, pois passa a se assentar junto a equipamento estratégico para reestruturação

socioeconômica do Ceará, especialmente para a população a jusante da barragem, incluindo

a Região Metropolitana de Fortaleza. O Sertão vai virar mar?

A figura 5 apresenta um quadro comparativo entre as plantas da velha e da nova cidade. A

planta da velha cidade retrata o seu estágio final de evolução, que teve na margem direita do

rio Jaguaribe, e em torno da praça da igreja de Santa Rosa de Lima, o seu núcleo original.

O acesso principal à cidade acontecia a sudeste, a partir da BR-116, descendo

perpendicularmente em direção ao rio, barreira e limite que emoldurava a vida cotidiana e o

lazer na face noroeste da cidade. No cruzamento deste eixo com as ruas paralelas ao rio

ficava o mercado público, importante ponto nodal que compartilhava a praça Tristão

Gonçalves com a igreja de Santa Rosa de Lima, considerados pela população os dois

edifícios mais importantes da cidade. O espaço livre da praça, incorporando a igreja e o

mercado, tinha forma trapezoidal precisa com cerca de 11.000 m². A igreja situava-se na

extremidade com cota mais alta, o que realçava a sua condição de marco visual. O mercado

ocupava extremo oposto mais baixo. O cenário da praça era emoldurado pelas fachadas das

edificações no limite dos lotes.

É visível a regularidade ortogonal do traçado paralelo ao rio, com quadras de tamanhos

ligeiramente diferentes e dimensões próximas de 100,00 x 60,00 m. A orientação deste

traçado acontece a 45 graus em relação ao norte. A mancha total da ocupação pode ser

inserida em uma retângulo de cerca de 800,00 x 400,00 metros, facilmente percorridos à pé.

Os limites deste retângulo, à exceção da face voltada para o rio, não são precisos. São

definidos por fundos de lotes ora construídos, ora desocupados.

No núcleo central, os usos eram variados. Residências, comércios, serviços e instituições

dividiam o espaço, organizado em lotes estreitos e compridos. As edificações, em sua

maioria, eram geminadas com suas fachadas no limite frontal do lote (Figura 3). O conjunto

dessas fachadas eram as principais molduras da ambiência urbana, que tinha nas calçadas

uma extensão da casa, servindo de ponto de encontro e de convivência pública cotidiana.

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3. O PROJETO E A NOVA JAGUARIBARA

Para a análise da nova Jaguaribara (Figura 5), situada a cerca de 50 km da velha pela

BR-116, pôde-se contar com os projetos, artigos e memoriais de seus autores, jornais e

reportagens da época, mas a análise primordial está apoiada na leitura do espaço construído

e em sua apropriação pela população. Segundo Waisman (2013),

“o protagonista - a obra de arquitetura, embora pertença a outro

tempo e lugar, é, em si mesma, o testemunho histórico principal e

imprescindível, o que reúne em si os dados mais significativos para

seu conhecimento.”

Com o anúncio da barragem, a população dá início a um processo de organização e luta para

evitar que a cidade fosse inundada. Foram 10 anos de resistência até a decisão fatídica. A

partir daí os esforços foram concentrados em garantir a “Terra Prometida”, expressão muito

usada pelo Governo, exemplo das estratégias de marketing da então gestão, que apelava pro

imaginário e religiosidade dos moradores. Sobre estas posturas, Castello, (2007, p.33)

reflete:

“...Placemaking” e “placemarketing”, (...) pode ser encarado sob uma

ótica de natureza particularmente pragmática: a de ter se tornado um

instrumento moderno.(...) com poder de exercer uma atuação decisiva

nas circunstâncias gerenciais e econômicas que regulam a construção

de novos lugares para as cidades.

Para entrevista a este trabalho, o arquiteto Marcelo Colares afirma: “antes de iniciarmos o

projeto, passamos 90 dias tomando banho de rio, bebendo e conversando com os moradores

nas calçadas”. A metodologia de projeto participativo norteou o projeto (CABRAL, OLIVEIRA e

LIMA, 2011),. Em sua dissertação, Perote (2006, p.124) comenta a situação de Jaguaribara e

afirma que

“ Se havia por parte do governo interesse na difusão de imagem de

um processo democrático, também havia por parte dos moradores o

interesse e o reconhecimento da necessidade de ocupar esses

espaços deixados pelos governantes. ”

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A participação da organizada população aconteceu através do Grupo Multi-participativo de

Acompanhamento das Obras da Barragem do Castanhão, instância colegiada criada em 18

de julho de 1995, pelo decreto-lei 23.752, formada por representantes do governo do Estado,

do DNOCS, do poder municipal, do poder legislativo e da sociedade civil. Através deste grupo

a população envolveu-se em algumas decisões que tiveram reflexo na forma e na apropriação

da nova cidade. Destacam-se neste processo, a escolha do local da nova Jaguaribara, a

escolha dos modelos das residências, a adoção do modelo de cemitério jardim em oposição

ao formato tradicional que existia na velha cidade, o cadastramento da população com a

manutenção das relações de vizinhança (residencial e comercial) e a recomposição formal

das igrejas de Santa Rosa de Lima e de São Vicente Férrer (igreja da comunidade rural de

Poço Comprido).

Na figura 4 podemos notar a gênese da forma da cidade concebida pelo projeto dos arquitetos

da SEINFRA com seus acessos, eixos estruturantes, sistema viário e quadras padrões. O

desenho da nova implantação também forma um retângulo com a mesma proporção do

retângulo da velha cidade, mas com dimensões maiores, 2.000,00 x 1.000,00 m (Figura 5). O

novo núcleo é implantado em terreno quase plano a pouco mais de um quilômetro do lago, na

cota 148m, enquanto a cota de cheia do lago é igual a 100m. A opção pela implantação mais

distante do rio Jaguaribe é justificada pela preocupação com as eventuais cheias, problema

que já prejudicou bastante as populações que vivem às suas margens. A forma final é precisa,

pois é emoldurada por uma espécie de anel viário que limita e ordena o traçado urbano.

Figura 4: Painel com croquis do partido do projeto da nova Jaguaribara

Fonte: SEINFRA. Montagem do painel pelo autor.

O acesso principal à nova Jaguaribara também acontece a sudeste, mas, como esta situa-se

do outro lado do rio, na margem esquerda, a chegada pela BR-116 nesta implantação é em

aclive.

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O traçado é também ortogonal e implantado a 45 graus em relação ao norte. A maioria das

quadras tem uma medida padrão de 120,00 x 60,00 m, portanto muito similares ao tamanho

médio das quadras da velha Jaguaribara. Os autores argumentam que tal desenho viabiliza

uma melhor circulação da ventilação natural e que, com o lago à montante da ventilação, este

promoveria o acréscimo de umidade ao ar seco do sertão, tornando mais confortável o micro

clima urbano. Este traçado acontece em torno de um grande espaço cívico à semelhança do

que acontecia antes, desenho que remete às preocupações de contextualização de Gregotti

(2006, p. 375):

“Em consequência, o projeto deve condizer com a tradição reguladora

do estilo e do métier. Mas o que confere veracidade e concretude a

essa tradição é sua compatibilidade com o sítio, pois somente

percebendo o local como um ambiente específico podem aflorar as

exceções que geram a arquitetura. (...) uma arquitetura do contexto”.

Além da igreja e do mercado municipal, a prefeitura, a câmara municipal e um centro

comercial e de serviços compõem o novo cuore de Jaguaribara, cerca de dez vezes maior que

a área da antiga praça. Neste novo espaço, a igreja de Santa Rosa de Lima é o coroamento

das perspectivas geradas pelas principais vias. As novas proporções são justificadas pelos

autores pela expectativa de que Jaguaribara, devidamente equipada, pudesse acomodar

população de cerca de 65 mil habitantes e se tornar um centro regional.

Permanece a permissão para usos mistos nos lotes, mas estes sofreram mudança

significativa passando quase a dobrar em largura e a ter as edificações construídas isoladas

dentro deles. A nova parcela fundiária é determinada pelo grande gesto do desenho urbano, e

ilustra a menor parcela da grande ruptura acontecida na escala original mais adensada. As

distâncias entre as pessoas, e entre elas e os espaços, agora é maior, assim como a distância

da cidade para o rio. Situação que se encaixa no que Cullen (2013, p.140) designou como

Desurbanismo e afirma:

“Traduzindo para o vocabulário urbanístico, este vazio transforma-se

numa zona residencial de baixa densidade – os resultados são

deploráveis – donas de casa com os pés doloridos, operários

cansados de ciclismos forçados, ruas intermináveis e insípidas, a

sensação deprimente de se ser um provinciano ou suburbano numa

paisagem que não pertence nem à cidade nem ao campo...”

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Em contraponto a esta nova escala, o Bairro de Fátima. Área da cidade que acomoda cerca

de 200 casas destinadas aos moradores de Jaguaribara velha que não possuíam imóvel

próprio. As casas são geminadas em lotes de 6 x 30 m. O depoimento dos moradores ratifica

que neste bairro a ambiência, dadas proporções equivalentes, é a que mais se assemelha

com a da velha cidade.

Outro contraponto à percepção de distâncias maiores acontece no bairro em volta da igreja de

São Vicente Férrer. Nele foi acomodada a população que vivia no distrito rural de Poço

Comprido, distante da sede. Esta população agora mora na cidade, e não mais longe dela.

A maior permanência formal na nova Jaguaribara talvez seja o desenho da igreja matriz de

Santa Rosa de Lima (Figura 6). A ideia original era a construção de um novo templo com

desenho contemporâneo, mas, sob pressão popular, a nova igreja foi recomposta com as

mesmas formas do templo original, seguindo projeto das arquitetas Cristiane Alves e Aída

Girão.

“(...)Graças ao templo, o deus está presente no templo. (...) Mas o

templo e seu recinto não se desvanecem no indefinido. Ao contrário, a

obra-templo é que primeiro articula e reúne ao seu redor a unidade de

todos os caminhos e relações em que nascimento e morte, desgraça e

ventura, vitória e derrota, permanência e deterioração, conquistam

para o ser humano a forma do seu destino. A extensão reinante desse

contexto de relações abertas é o mundo deste povo histórico; somente

a partir dessa extensão e dentro dela; a nação volta a encontrar-se

consigo mesma para cumprir sua missão. (...) O templo, por

simplesmente estar ali, dá as coisas sua face e aos homens a visão de

si mesmos.” (HEIDEGGER, “A origem da obra de arte”, apud

NORBERG-SCHULZ, 2006, p.463)

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Figura 5: Quadro comparativo entre as plantas da velha e da nova Jaguaribara

Fonte: Elaborado pelo autor.

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Figura 6: Mosáico com demolição da velha igreja de Santa Rosa de Lima e a sua construção na nova

Jaguaribara

Fonte: Fotos do IMOPEC. Montagem do mosáico pelo autor.

A construção da nova matriz, da maneira como se deu, relativiza as questões de

materialidade e autenticidade, sobrevalorizando a verdade da imagem, pois “nas teorias de

restauro há uma relação clássica entre materialidade, autenticidade e verdade”.(Pereira,

2011). Sugere a reflexão e, talvez, a revisão de posturas técnicas associadas ao patrimônio

cultural edificado. A manutenção da sua imagem reflete o vínculo de sua população com seu

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passado e, ao mesmo tempo, com sua relação simbólica com o eterno. Cumpre um papel

importante no sentido de fixar as raízes da população transferida na “Terra Prometida”.

4. CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS

4.1. Memórias submersas

Depois da transferência da civitas de Jaguaribara para a nova urbe, todos os edifícios foram

demolidos, sob a desculpa da segurança. Simbolicamente o gesto parecia dizer: esqueçam o

passado. Sigam em frente e não olhem pra trás. As águas cobriram as ruínas e junto com elas

as memórias de seus moradores. Não mais haveria o substrato físico dos espaços retentores

da memória coletiva deste povo.

Ciente desta ruptura, a população organiza-se no sentido de registar suas memórias,

transformando-as em história para as próximas gerações. Foram coletados depoimentos e

produzidos livros, além da documentação das ações em fóruns diversos. Registros em vídeo

e em fotos. Segundo Anezilany (2005),

“A necessidade de mudar foi um divisor de águas na história dos

jaguaribarenses. O medo, a falta, a mudança, eram acompanhados do

desejo de manter um elo com o tempo e os espaços perdidos. Essa

falta leva à criação da Casa da Memória, fundada em 1998, com o

apoio do Instituto de Memória do Povo Cearense, (IMOPEC).

Na internet circulam fragmentos deste acervo com novas edições e pontos de vista sobre este

drama local e universal. Impossível não se sensibilizar com o vídeo “Demolição da Velha

Jaguaribara – Barragem do Castanhão”, onde assiste-se à demolição da centenária igreja ao

som da música “Castanhão”, de Toninho Horta, na voz de Fagner:

Bate em cada peito uma emoção

Um sentimento que me aperta o coração

De saber que esse chão aonde um dia

A meninada corria

Vai virar mar

Gente contando histórias do sertão

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A lua cheia clareando a imensidão

E a memoria desse povo que vivia

De trabalho e valentia

Vai continuar

Minha cidade vai ficar só na lembrança

Meu sertão vai ter mudança

Novo tempo que chegou

O fotógrafo José Albano ministra oficina de fotografia para os moradores, cujo produto

transforma-se em uma exposição intitulada “Jaguaribara nas lentes de seu povo”. Um

emocionante registro visual coletivo. Memórias de paisagens, lugares, ritos, personagens.

Tudo submerso.

Cada morador viveu intensamente a mudança brusca no tempo e no espaço. Cada vida um

drama, uma paixão digna de um romance ou um filme onde a personagem principal poderia

ser o Rio Jaguaribe.

4.2. Novas memórias

O arquiteto Marcelo Colares narra um episódio ocorrido poucos dias após a mudança para a

nova Jaguaribara: Todos os gatos, animais que se afeiçoam ao lugar, partem em retirada,

contornam o açude e percorrem os 50 km de volta à antiga cidade. Este ocorrido talvez ilustre

qual era o desejo reprimido de cada pessoa em relação à nova morada.

Cada morador recebeu uma casa com área proporcional à área de sua original. Não seria

exagero dizer que o projeto materializou algumas utopias dos urbanistas do século XX, como

uma cidade totalmente dotada de infraestrutura urbana e todos os moradores proprietários da

casa própria. Aqueles que possuíam mais de um imóvel, foi indenizado por todos, mas

recebeu apenas o de seu usufruto. Aqueles que viviam precária e informalmente, nas

periferias desassistidas, foram incorporados à esta materialização coletiva que foi a

construção da cidade nova.

Em função da repetição dos padrões de casas, a aparência original da nova cidade era de um

grande e monótono conjunto habitacional. Um ambiente sem referências formais e confuso,

motivo de desorientação espacial por parte dos moradores, principalmente os mais idosos.

Com as habitações isoladas no lote, entregues com muros baixos, os moradores marcaram

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suas necessidades individuais construindo cada um o seu muro, que passa a ser o principal

elemento na composição do novo cenário urbano, e não mais as fachadas das residências.

Uma grande perda da qualidade plástica, além da perda da qualidade de vida. A dominância

de paredes cegas gerou espaços sem escala humana e baixa qualidade ambiental urbana.

Em janeiro as homenagens vão para o padroeiro São Gonçalo. Em agosto, para a padroeira

Santa Rosa de Lima.

Março é o mês de comemoração da emancipação política do município, momento em que é

promovida uma gincana cultural que revive a história do município, principalmente junto aos

jovens nas escolas.

O rito da feira semanal das segundas-feiras permanece ao lado do mercado, em largo

reservado para tal.

O calendário anual das festas está mais rico, pois foram incorporados os festejos de São

Vicente Férrer da população de Poço Comprido, os festejos de Nossa Senhora de Fátima do

bairro de Fátima (Mutirão) e os festejos de setembro para celebração do aniversário da nova

cidade.

Velhos ritos se adaptaram e novos ritos surgiram com os novos espaços. A presença da

história e do passado, quando acontece, é promovida pela própria população.

A Sra. Adeci Barreto da Silva, moradora de Jaguaribara no vídeo produzido pelo IMOPEC

“Jaguaribara: Pelos caminhos da memória”, comenta:

“A gente não deve dizer que Jaguaribara nova vai levar nossas raízes,

não. Vamos mudar, mas com as raízes. Vamos levar as nossas

raízes. Porque como uma planta, podemos tirar ela com as raízes e

levar.”

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Figura 7: Mosáico com imagens do acervo da Casa da Memória na nova Jaguaribara

Fonte: Acervo do autor (2016). Montagem do mosáico pelo autor.

A associação de moradores criou em 1989 , apoiada pelo IMOPEC, a Casa da Memória, uma

espécie de museu com acervo montado através da doação de objetos da história da

população(Figura 7). Este material é uma parte significativa das memórias trazidas para a

nova terra.

Por solicitação da população, a manutenção das relações de vizinhança virou diretriz de

projeto invisível na morfologia, mas de um papel crucial na minimização dos impactos da

mudança. Um dos reflexos visíveis desta decisão, e de mais fácil percepção, é a permanência

das cadeiras nas calçadas para encontro entre vizinhos. Com as casas implantadas com

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recuo, e devido um novo contexto de violência urbana, muitas cadeiras saem das calçadas e

passam paras as varandas dentro das grades e muros, de onde assistem ao movimento da

rua.

As águas do lago cobriram o monumento a Tristão Gonçalves, herói da Confederação do

Equador morto nas terras de Jaguaribara em 1824. Na nova cidade, permanece a

homenagem em espaços como o parque municipal, espaço apropriado pela população para

caminhadas matinais e no fim de tarde.

Deste parque avista-se a forte presença da barragem e do lago. Um novo horizonte onde

certamente se encontra as principais promessas de futuro próspero com o desenvolvimento

da atividade turística, da agricultura irrigada, da pesca de tilápia em cativeiro, e das

respectivas indústrias. O sertão não virou mar ainda, mas isto pode acontecer e Jaguaribara

se consolidar como centro regional. É lamentável ver que o CVT (Centro Vocacional

Tecnológico), espaço para formação técnica de jovens, foi construído, mas nunca foi

apropriado. Os jovens têm poucas alternativas e precisam deixar a cidade em busca de

oportunidades de trabalho. A cidade tem se tornado “cidade de velhos”.

4.3. Ruínas: A seca devolve as memórias

“Assim, no imaginário popular, o Sertão é concebido em geral como

uma região interior (em oposição ao litoral), de predominante criação

de gado, desértica e dura, mais ou menos parada num tempo do

passado, que se evoca como locus mais ou menos sagrado e como

reserva de tradições ancestrais, depósito cultuado de linguagem e

costumes antigos; é o grande mediterrâneo semiárido...”(MENEZES,

2012, p. 74)

Com a estiagem de 2013, as ruínas da velha Jaguaribara voltaram à tona (Figura 8). Mariane

Souza, 27 anos, Secretaria de Ação Social, tinha apenas 12 anos quando mudou para a nova

Jaguaribara. Em entrevista a este trabalho, depõe: “eu e meus amigos queríamos o futuro que

a nova cidade prometia, mas reencontrar com as ruínas mexeu muito conosco. Veio à tona a

sensação de pertencimento. Eu pertenço a este chão.”

Nos escombros, nenhum vestígio de espaço arquitetônico dos edifícios pode ser percebido,

apenas a presença emocionante de pilhas de tijolos maciços e telhas de barro da cor do chão

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do lugar, moldados artesanalmente pelas mãos e suor de seu povo. Já o traçado está

bastante legível e conservado. A força do desenho no chão impacta e convida ao percurso

pelos cenários da imaginação e da memória.

Um paradoxo se instala. A cada seca mais rig rosa, com o baixar das águas, o reencontro com

as ruínas e com o passado se anuncia como um rito futuro. Desejar a seca?

Qual o papel destas ruínas no presente e no futuro de Jaguaribara? Choay (1996, p.20)

oferece uma pista quando fala dos destinos da cidade européia: “Ela só sobreviverá sob a

forma de fragmentos, imersos nas marés do urbano, faróis e balizas de um caminho a

inventar.”

Figura 8: Painel com imagens das ruínas da velha Jaguaribara

Fonte: Acervo autor (2015).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A materialização de Jaguaribara, primeira cidade planejada do Ceará, por cearenses, é um

evento singular na história da arquitetura e do urbanismo do Ceará conferindo a este artigo

relevante pertinência historiográfica.

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Através do uso dos conceitos de morfologia urbana pôde-se avaliar a apropriação que a

população fez da nova cidade e assim expor o conflito entre o discurso das intenções do

projeto e a realidade do vivido.

A grande ruptura de Jaguaribara comove principalmente pela escala. A escala da grande

velocidade, das grandes dimensões e dos grandes gestos que não dão chance às sutilezas da

escala humana, como o necessário e almejado trato delicado com sua memória e seu

patrimônio imaterial.

Em Jaguaribara as distâncias do cotidiano cresceram. O calor cívico arrefeceu-se. A relação

com o rio perdeu força no cotidiano descomprometido e informal.

Reafirma-se a importância do trato das questões da memória e do patrimônio cultural para

reenraizamento da população num processo de relocação como o de Jaguaribara. Segundo

Varine (2013, p.20):

“O desenvolvimento local é um processo voluntário de domínio da

mudança cultural, sócia e econômica, enraizado no patrimônio vivido,

nutrindo-se deste patrimônio e produzindo patrimônio.

O Patrimônio (natural e cultural, vivo ou sacralizado) é um recurso

local que só encontra sua razão de ser em sua integração nas

dinâmicas de desenvolvimento. Ele é herdado, transformado,

produzido e transmitido de geração em geração. Ele pertence ao

futuro.”

As permanências estudadas pela morfologia são a base física da existência de uma

população. “As pessoas não têm como manter suas raízes espirituais e conexões com o

passado se o mundo físico no qual elas vivem também não sustenta estas raízes” (Alexander,

2013). O fazer contemporâneo não pode ignorar a importância psicológica e emocional dos

espaços sagrados (religiosos ou não) para uma comunidade. Deve-se valorizar o caráter

afetivo dos espaços, mesmo que não tenham méritos estéticos ou plásticos, sob pena da

promoção da sensação “de provisoriedade, de descontinuidade e de anonimato, ou seja,

fatores de ausência do enraizamento cultural”, nas palavras de Waisman (2013).

Entendendo que as permanências em Jaguaribara, quando promovida pelos autores do

projeto, são testemunhas das tentativas de se mitigar os traumas psicossociais gerado pela

ruptura da transferência de um sítio para outro. E, quando promovidas pela própria

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população, como defende Fernandes (1992) podem ser lidos como sinais do projeto que esta

tem para si.

Refletir sobre a experiência de Jaguaribara significa jogar luz sobre o singelo patrimônio

edificado no Estado e mostrar como a memória e o patrimônio cultural têm estado distante do

planejamento e do desenho urbano e regional nas pranchetas oficiais.

“Baseio-me no argumento de que o planejamento se transformou tão

completamente numa espécie de jogo de formas que a experiência

real da arquitetura tem sido negligenciada.” (PALLASMAA, 2006,

p.483)

Só sendo considerados quando se faz efetiva a participação popular.

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