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FURET, François. A Oficina da História. 1º v. (Trad. Adriano Duarte Rodrigues) Lisboa, Gradiva, 1986, p. 109-35. O nascimento da história * Uma dupla tradição Se a história não existe no ensino, e portanto como disciplina escolar, na época clássica, é simplesmente porque não existe como disciplina. Está dividida em duas actividades intelectuais que se ignoram quase sempre ou se desprezam: a erudição e a filosofia. A primeira está nas mãos dos antiquarii, que os antigos textos franceses também chamam de antiquários: ou seja, especialistas do antigo e naturalmente da Antiguidade, escondidos por detrás de conhecimentos estreitos, esotéricos, eruditos, e manejando línguas desaparecidas. É desta tradição que nos vem, não a história, como a entende o século XIX, mas o facto histórico, tal como deve ser estabelecido como material constitutivo da história. Velha tradição, que remonta ao Renascimento, e que, na sua origem, não é uma tradição crítica. 1 Não toca nos textos sagrados. Se diz respeito à Antiguidade greco-romana, na qual a Europa do século XVI procura apaixonadamente uma nova identidade, não é porque queira reescrever a história: essa história já foi escrita pelos Antigos, e quem __________________________________ * H - Histoire, n. o 1, Março de 1979, Hachette. 1 A melhor exposição desta questão é a de A. Momigliano: «Ancient History and the Antiquarian», in Journal of the Warburg anil Courtauld Institutes, Londres, vol. 13, 1950. pp. 285-315. 109

FÜRET, François. A oficina da história

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FURET, François. A Oficina da História. 1º v. (Trad. Adriano Duarte Rodrigues) Lisboa, Gradiva, 1986, p. 109-35.

O nascimento da história *

Uma dupla tradição

Se a história não existe no ensino, e portanto como disciplina escolar, na época clássica, é simplesmente porque não existe como disciplina. Está dividida em duas actividades intelectuais que se ignoram quase sempre ou se desprezam: a erudição e a filosofia. A primeira está nas mãos dos antiquarii, que os antigos textos franceses também chamam de antiquários: ou seja, especialistas do antigo e naturalmente da Antiguidade, escondidos por detrás de conhecimentos estreitos, esotéricos, eruditos, e manejando línguas desaparecidas. É desta tradição que nos vem, não a história, como a entende o século XIX, mas o facto histórico, tal como deve ser estabelecido como material constitutivo da história.Velha tradição, que remonta ao Renascimento, e que, na sua origem, não é uma tradição crítica.1 Não toca nos textos sagrados. Se diz respeito à Antiguidade greco-romana, na qual a Europa do século XVI procura apaixonadamente uma nova identidade, não é porque queira reescrever a história: essa história já foi escrita pelos Antigos, e quem

__________________________________* H - Histoire, n. o 1, Março de 1979, Hachette.1 A melhor exposição desta questão é a de A. Momigliano: «Ancient History and the Antiquarian», in Journal of the Warburg anil Courtauld Institutes, Londres, vol. 13, 1950. pp. 285-315.

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faria melhor do que Tucídides, Tito Lívio ou Tácito? Os «modernos» limitam-se a comentar os historiadores antigos, a trabalhar nas suas margens: a isto se consagram as «belas-letras». Ou então, quando querem escapar a este jogo de espelhos, escrevem «antiguidades», e não «histórias» romanas (ou gregas). Mas essas «antiguidades» são também duplamente marginais em relação à via real da história: descrevem fontes não literárias, exumam partes de monumentos, moedas, pedras, inscrições, vestígios aleatórios de um irremediável naufrágio. Alimentam comentários e estudos que não são verdadeiramente história, visto que dizem respeito a costumes, instituições, arte, e a história é feita da análise cronológica dos regimes e dos governos.Assim, o antiquário não é um historiador. Mas na segunda metade do século XVII, no momento em que vacila a idéia de que existe uma história universal no interior da qual cada história foi escrita de uma vez por todas, o antiquário toma-se um crítico da história. O campo da sua «arte» (a ars antiquaria) estende-se para lá da Antiguidade clássica e alcança a Antiguidade sagrada, por exemplo. Sobretudo emancipa-se da espécie de tutela que sobre ele exercia a historiografia antiga, o modelo dos Antigos. O antiquário nem sempre é um historiador. Mas visto que o passado não foi fixado eternamente por Tito Lívio ou Plutarco, ele pode escrever história.O que significa que os materiais que exuma e classifica deixaram de ser marginais: representam, tal como as fontes literárias, elementos constitutivos da história. E as próprias fontes literárias tomaram-se objecto da crítica erudita. A filosofia não serve apenas para os restituir, mas para os discutir. E as moedas, as inscrições, os fragmentos de arcos e colunatas permitem cotejar-lhes as informações. A crítica interna e externa do documento nasce com a integração dos diferentes tipos de fontes numa busca do verdadeiro.Deste modo, a segunda metade do século XVII não inventa a história. Retrabalha os seus materiais e, ao fazê-lo, desloca as suas linhas que pareciam fixadas para sempre. Bossuet ainda escreve uma História Universal, mas teve uma certa dificuldade em fazer entrar na cronologia sagrada a história profana dos povos antigos da qual as descobertas dos «antiquários» alargam doravante os limites. A própria história sagrada, esse bloco intangível, imóvel no fluxo indefinido

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do tempo, é reexaminada pelos cronologistas modernos. O oratoriano Richard Simon publica, em 1678, uma História Crítica do Antigo Testamento, que lhe custa a exclusão da ordem.No entanto, é a própria Igreja que dá o exemplo da investigação erudita, mesmo que não controle sempre o seu desenvolvimento. "Não só é apanhada no espírito do tempo, como ainda se vê obrigada, pôr necessidade da controvérsia antiprotestante, a inventariar e exaltar o conjunto da tradição cristã: e em primeiro lugar esses seis primeiros séculos que constituem a Antiguidade cristã e que dão a interpretação fundamental da Escritura. A erudição eclesiástica diz antes de tudo respeito aos Padres da Igreja. Floresce em Port-Royal, sobretudo através da obra de Tillemont. Vai encontrar o seu centro nos beneditinos de Saint-Maur que, mais de um século antes da historiografia alemã, estabelecem os cânones da crítica histórica.A arte do antiquário culmina assim, no fim do século, na empresa sistemática dos monges de Saint-Germain-des-Prés para distinguir o verdadeiro, o verossímil e o falso. De acordo com a divisa de Mabillon: «A verdadeira piedade só gosta daquilo que se funda na verdade», a investigação histórica moderna nasceu da aplicação dos processos da razão crítica à exploração da Antiguidade cristã; assim, a Antiguidade pagã, que não se pode separar dela neste aspecto, porque está incluída na mesma cronologia, é susceptível do mesmo tratamento.Mas se a divisão canônica entre história sagrada e história profana tende a desaparecer por esta razão, a própria história continua a distinguir-se da investigação histórica. Constitui um gênero literário, do qual uma das regras é precisamente excluir qualquer referência ao aparelho crítico e às «provas». Os antiquários publicam cronologias, «anais», «compilações», «memórias»; a história é uma narrativa continuada, que não se incomoda com originais e que apresenta ao mesmo tempo uma lição de moral e uma forma regular e ornamentada. A história perdeu a sua rigidez de conteúdo, mas conserva todas as suas regras estéticas e morais. É um trabalho de escritor.Quando Tillemont quis publicar aquilo que serão as suas Mémoires pour servir à l'histoire ecclésiastique, hesitou no título que daria ao seu trabalho. Se escolheu «mémoires», foi porque nelas utiliza um método de exposição que é o dos antiquários: «Parece o mais sólido e o mais

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seguro. É como apresentar peças de um processo; ao leitor caberá escolher. Mas este método obriga a uma grande extensão e a repetições freqüentes [...]. É mais a matéria da história do que a própria história.» No entanto, o mesmo autor aceitou o termo «história» para a parte profana da sua obra, publicando três anos antes, em 1640, a Histoire des empereurs, com um título que merece ser citado por inteiro: História dos imperadores e dos outros príncipes que reinaram durante os seis primeiros séculos da Igreja, das perseguições que fizeram aos cristãos, das suas guerras contra os judeus, dos escritores profanos e das mais ilustres pessoas do seu tempo, justificada por citações dos autores originais, com notas para esclarecer as principais dificuldades da história. Deste modo, Tillemont mescla, e é um dos primeiros a fazê-lo, história e erudição. Mas como se desculpa por isso na sua advertência! Escutemo-lo, para poder avaliar a tirania dos «gêneros» na época clássica: «Hesitou-se durante muito tempo em dar a esta obra o título de memórias, mas é certamente o que mais lhe convém, seja pelo modo como se compõe, seja pela visão com que foi empreendida. Ainda se pensou no de anais, porque, na realidade, nela se segue tanto quanto possível a ordem dos tempos e quase sempre está dividida por anos; para além de que parece que um estilo sem elevação nem ornamento, como aqui se encontrará, convém melhor a anais do que a uma história. No entanto, o título de história prevaleceu, como aquele em relação ao qual se é menos obrigado a dar razões, por ser o mais comum e porque qualquer narrativa é de certo modo uma história. Mas pede-se aos leitores que não o tomem senão nesse sentido e que não esperem encontrar aqui uma história regular. Nunca o autor teve a intenção de fazer uma história desse tipo e gostaria que se soubesse que sempre viu essa intenção como muito difícil em si e extremamente acima do talento e das luzes que pode ter2.»

_______________________________2 B. Neveu, Un Historien à l'école de Port-Royal. Sébastien Le Nain de Tillemont 1637-1698, Haia, 1966, pp. 182-185.

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O século XVIII: um ensino impossível

Poderia, no entanto, inferir-se desses protestos tão modestos que o fosso entre historiadores e antiquários está a fechar-se. Pelo contrário, o século XVIII francês vai abri-lo ainda mais, pondo em moda a «história filosófica» da vez mais afastada da investigação dos antiquários, que desdenha.Na realidade, são os próprios progressos desta investigação que se viram contra ela, à passagem do século XVII para o século XVIII.Pelo facto de haver criticado uma parte das crenças históricas tradicionais, de ter, por exemplo, destruído milagres, diminuído o número dos mártires cristãos, remodelado a cronologia bíblica, o individualismo racionalista atrai uma dúvida sistemática sobre o próprio facto histórico. Bayle dedica um Dicionário inteiro, de A à Z, à destruição dos fundamentos históricos das crenças religiosas, mas deixa o indivíduo racional apenas com incertezas. Fontenelle constata simplesmente a impossibilidade de uma história verdadeira: «Acostumaram-nos com tanto apego durante a nossa infância às fábulas dos Gregos que, quando estamos em idade de raciocinar, já não as achamos tão admiráveis como o são. Mas se acabarmos por nos desfazer dos jogos do hábito, não podemos deixar de nos apavorar ao ver toda a história antiga de um povo que é apenas um acervo de quimeras, de sonhos e de absurdos. Será possível que se tenha dado tudo aquilo por verdadeiro? Com que fim no-lo teriam dado por falso? Qual teria sido esse amor dos homens pelas falsidades manifestas e ridículas e porque não duraria ainda?»Mas sobretudo este derrotismo histórico é feito de uma obsessão do moderno, ou seja, do presente. As elites européias viveram, desde o Renascimento, com uma identidade retirada da Antiguidade, cujos artistas e autores constituíam inultrapassáveis modelos e cujos gêneros, literários formavam as molduras obrigatórias do belo e do verdadeiro. Ora, eis que a Europa põe a questão da sua autonomia cultural: a querela acadêmica dos Antigos e dos Modernos, na França do fim do reinado de Luís XIV, exprime no fundo esse pensamento de que a cultura clássica não é um passado, mas um presente, e a história, não, um recomeço, mas um progresso. Sendo assim, ela também se organiza

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em volta da percepção do presente, o que vai relegar a curiosidade dos antiquários para a gaveta de um período ultrapassado.Aliás, os «filósofos» anexaram às suas novas histórias as fontes e as «provas» não literárias. Ao quebrar a tirania da história política como a Antiguidade a tinha transmitido e a sucessão dos imperadores, utilizam a arte, a religião, as instituições: escrevem a história da «civilização». Mas escrevem-na para compreender o seu tempo. Montesquieu procura na história romana os segredos da estabilidade ou da decadência dos regimes. Voltaire compara o século de Péricles com o de Luís XIV. O século procura na história dos povos não só o espectáculo da diversidade das religiões e dos costumes, mas o sentido de um devir liberto da Sagrada Escritura e indefinidamente aberto ao progresso.A história filosófica tem outro pólo conceptual para além dos progressos da civilização: é a origem da nação. Os Franceses do século XVIII procuram na sua história nacional simultaneamente a fonte do seu «contrato» com o rei e a legitimidade da nobreza. Supõe-se que as invasões germânicas trouxeram para a Gália romana uma realeza electiva e uma aristocracia de guerreiros. A polêmica em tomo de Clóvis traduz deste modo, à sua maneira, o drama de uma sociedade em busca da sua representação. Mas a história de Boulainvilliers, assim como a de Voltaire, já não tem nada que ver com os «antiquários». A França do século XVIII não tem nenhum Gibbon. Os filósofos e os eruditos estão separados por uma linha intransponível, que aliás exalta os primeiros para atirar os segundos para o gueto da academia das inscrições. A tradição da investigação crítica e a da grande narrativa filosófica e literária só irão reconciliar-se com os historiadores da Restauração.Basta observar um pouco as bibliografias daquela época para compreender até que ponto a história nelas constitui um gênero heterogêneo, em plena evolução: as classificações das bibliotecas, por exemplo, agrupam em nome dela um vasto sector na classificação dos conhecimentos. A história reúne tudo aquilo que se relaciona com o saber nas sociedades humanas: como cabeçalho de rubrica epistemológica, acumulou todas as contribuições eruditas ou simplesmente descritivas da cultura européia desde o Renascimento. Reina sobre

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o conjunto, com a sua divisão canônica, história sagrada-história profana, a preponderância cultural da Antiguidade, o modelo de narrativa moral à Tito Lívio. Mas subordinou, como subgêneros, não só as técnicas e as aquisições da ars antiquaria - a cronologia, a diplomática, a arqueologia, etc - mas também o inventário do espaço - aquilo que não é ainda a geografia, mas as «viagens». Com efeito, as sociedades não européias, perdidas na superfície do Mundo, e progressivamente descritas pelos viajantes, testemunham igualmente, à sua maneira, da história: o «selvagem» é a infância do homem. O espaço e o tempo oferecem deste modo ângulos complementares para a constituição de um saber sobre a evolução. E é a partir desta cumplicidade epistemologia que a geografia vai avançar ao mesmo tempo que a história, como que ligada a ela, nas futuras reformas do ensino francês.Mas no século XVIII a indiferenciação do campo histórico é suficiente para mostrar a que ponto o estudo do passado está longe de ser uma disciplina escolar: se a história não é ensinada, é porque não está em constituída em matéria ensinável.Os dois tipos de actividade intelectual que abrange são demasiado, estranhos um ao outro para formarem um saber homogêneo. Um e outro são, aliás, pouco talhados para o ensino, mesmo secundário. A erudição é ao mesmo tempo uma arte demasiado incerta e demasiado sábia para ser objeto de uma transmissão escolar. É uma ocupação de gentlemen e de um pequeno mundo de especialistas que discutem os seus achados longe do público, até do público culto. Será que se ensina a numismática na escola ou no colégio? A História filosófica, por seu lado, atrai numerosos leitores, mas constitui um gênero demasiado moderno em todos os sentidos da palavra, para não ser, escolarmente, um produto perigoso. De facto, é demasiado recente, no século XVIII, para ter criado legitimidade e, por conseguinte, o respeito que envolve as matérias da aprendizagem escolar. Está sobretudo em contradição com aquilo que representa a história para a tradição clássica e que não passa de um anexo das belas-letras: uma bela narrativa no modelo de Tito Lívio ou de Tácito. É que os colégios jesuítas são fiéis à sua carta, que data do fim do século XVI: o modelo antigo constitui neles a identidade cultural da Europa. Os alunos só aprendem a história - para além da história sagrada - nas páginas de Cícero.

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Houve e há excepções a esta regra. As pequenas escolas de Port-Royal fizeram da história uma disciplina central, à qual se devia consagrar uma parte do tempo quotidiano. Mas o seu carácter muito provisório, visto que foram encerradas na altura da perseguição dos «Messieurs» de Port-Royal por Luís XIV, ao mesmo tempo que estritamente elitista, visto que agrupavam apenas filhos da alta burguesia jansenista, ilustra mais o carácter excepcional da história do que a sua presença no ensino. Também os colégios oratorianos tiveram remorsos de não falar mais dela. E as escolas militares, criadas no terceiro quarto do século pela monarquia, para formar soldados profissionais, procuravam incluí-Ia no currículo. Mas até à expulsão dos Jesuítas do reino, em 1762, são os seus colégios que dão o tom ao ensino secundário; e posto que continuem conservadores nos seus programas e só integrem, por exemplo, o cartesianismo no século XVIII, seria um erro pensar que são particularmente «reaccionários». As universidades da época - e antes de tudo a de Paris - são ainda infinitamente mais insensíveis às deslocações nos campos do saber. No fim do século XVIII, os professores de retórica da Faculdade das Artes, em Paris, não vêem o que é que poderiam modificar nas suas práticas: apontamentos de história antiga na periferia do sacrossanto discurso latino.Acontece que a expulsão dos Jesuítas marca o início de um grande debate de idéias sobre o sistema educativo nacional. Os famosos colégios, abandonados pelos seus mestres, são colocados sob a jurisdição do Parlamento de Paris, que tem portanto de os preencher com professores e ideais novos. Daí o florescer de planos de educação, entre os quais o mais o mais conhecido é o de La Chalotais, e cujo presidente Rolland d'Erceville procura fazer a síntese num relatório de l768. É um pouco uma desforra jansenista, na medida em que os parlamentares do século XVIII nunca aceitaram verdadeiramente a condenação do jansenismo por Roma e prezam muito os aspectos políticos do que foi uma das raras resistências à autoridade absoluta de Luís XIV. É portanto também uma desforra da história, que estivera em tão grande plano em Port-Royal. Mas sobretudo os parlamentares tinham detestado na Companhia de Jesus uma ordem estranha ao reino, totalmente dependente do papa. Pretendem a partir de então uma educação «nacional», controlada pelo Estado. Esta grande nobreza de toga, apaixo-

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nadamente galicana, exprime à sua maneira, e com a sua própria cultura, o forte surto do sentimento de nacionalidade, enraizado num passado muito antigo: não é tanto a história que ela deseja ver aparecer nos programas escolares, mas a história de França, garante do contrato original entre a nação e o rei e depositária de uma tradição imprescritível.De facto, encontramos aqui e ali, no currículo dos colégios franceses reorganizados no fim do Antigo Regime um alargamento do ensino da história. No famoso colégio Louis-le-Grand no monte de Sainte-Geneviève, a partir de 1769, existe meia hora obrigatória para a história nos «dias feriados – domingos e festas». Muitos temas históricos são propostos como matérias nos «exercícios» dos alunos, esses concursos públicos que se realizavam nos dias sem aulas e que tinham por finalidade pôr à prova as faculdades de exposição e raciocínio. Em 1772, um exercício do colégio de Arras tem por tema demonstrar que «só o estudo sobretudo da história de França pode fixar no espírito do advogado os verdadeiros princípios do nosso governo». Em Lille, a história de França está incluída no próprio currículo, a partir do terceiro ano e abrange o estudo da Gália, das invasões germânicas e das duas primeiras dinastias (Merovíngios e Capetíngios), para no segundo ano ir até ao século XVI.3

O melhor exemplo, a este propósito, porque é talvez o mais precoce, é o do famoso colégio de Juilly, vitrina do ensino oratoriano e freqüentado por crianças da alta sociedade do reino. Esses velhos rivais dos Jesuítas que são os Oratorianos têm como ponto de honra oferecer à sua clientela um currículo escolar mais «moderno». Já no fim do século XVII um dos padres recomendava «o grande cuidado, segundo o uso desta academia, em ensinar o brasão, a geografia, um pouco de cronologia e a história». Esses diferentes saberes já têm, portanto, aos seus olhos, um estatuto escolar independente; estão, por outro lado,

____________________________________3. Retiro estes exemplos de um artigo infelizmente inédito de Louis Trénard. «L'enseignement de l'histoire en France de 1770 à 1885», que é o texto de uma conferência pronunciada em Junho de 1968 sob a égide da Federação Belga dos Professores de História.

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emancipados da relação exclusiva que mantinham com a Antiguidade: ensina-se em Juilly tanto a história nacional como a geografia da América. O ensino da história apresenta, para a época, o carácter distintivo de ser cronológico e de culminar, digamos assim, na história de França: passa-se da história sagrada à história de França, através da Antiguidade greco-romana, indo dos «mínimos» até aos «grandes». Conserva, no entanto, um carácter relativamente marginal, visto que não faz parte dos programas regulares das aulas. É dispensado nas «câmaras», ou seja, nas salas onde os vários grupos de alunos vivem e estudam (Juilly é um colégio Interno), fora das aulas oficiais. Também faz parte dos «exercícios» públicos nos dias feriados, as quintas-feiras e aos domingos, mas são exercícios obrigatórios; parece, aliás, que têm um grande sucesso entre os alunos no século XVIII.Estes exemplos, que se poderiam multiplicar, mas não indefinidamente, mostram que o ensino da história avança a pouco e pouco, no fim do Antigo Regime, ao nível do ensino secundário, e tende progressivamente a quebrar a dupla tirania da história sagrada e da Antiguidade clássica. Mas a evolução é lenta, e os progressos tímidos: como disciplina ensinável, a história é a maior parte das vezes um passageiro clandestino dos programas oficiais, oferece mais temas para dissertações do que matéria que se baste a si própria; não existe no ensino elementar; mesmo no mais avançado da época, o dos irmãos das escolas cristãs. Noutro extremo do sistema educativo, até o alto ensino parisiense, quero dizer o College de France, quase especializado na inovação visto que foi criado, no século XVI, para contrabalançar a inércia da Sorbonne, não tem ainda no século XVIII uma cadeira de história especializada. Surge apenas um ensino intitulado «História e Moral», que vai sobreviver no século XIX na sexta categoria do cartaz: «Ciências Morais e Políticas», e ao lado do «Direito da Natureza e das Pessoas», da «História das Legislações Comparadas», da «Economia Política». A histólia encontra-se emancipada da tirania das línguas

_________________________4 Tiro estas informações sobre o colégio de Juilly de uma tese muito recente (1978), ainda inédita, de Etienne Broglin: De l'Académie royale à l'institution, le College de Juilly, 1745-1828.

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antigas (que formam a segunda categoria de cadeiras). Mas continua como história filosófica, separada da erudição. A contribuição indirecta, e de certo modo negativa, do College de France na especificação da disciplina passa sobretudo pela definição de áreas culturais específicas, progressivamente separadas do tronco comum da história, porquanto são marginais em relação à experiência européia, como a sinologia.Assim, o contraste entre a efervescência reformadora a propósito da modernização dos estudos e a lentidão da evolução pedagógica mostra que haveria um certo perigo em confundir história das idéias sobre educação com história da educação propriamente dita: as duas ordens de factos não obedecem aos mesmos ritmos, não possuem as mesmas cronologias; é também verdade que não deparam com as mesmas inércias.

A Revolução: ruptura e continuidade

Esta observação aplica-se muito especialmente ao período da Revolução Francesa. Na verdade, a Revolução legislou muito mais sobre a educação nacional do que transformou duradouramente as instituições de ensino: o que é facilmente explicável tanto pela brevidade cronológica do período revolucionário como pela ilusão, precisamente típica da época, de uma renovação completa dos homens e das coisas.Na realidade, a escola secundária sai praticamente impoluta do colapso aparentemente universal das instituições, e nada é mais parecido com um colégio do Antigo Regime do que um liceu imperial. A história, em particular, continua a ser neles apenas um complemento dos estudos clássicos e da aprendizagem do latim.Vale a pena, no entanto, deitar uma olhada pela legislação revolucionária para medir a evolução das mentalidades e as aspirações das novas elites políticas. A Constituinte esperou pelos últimos dias da sua existência (Setembro de 1791) para ouvir um vasto relatório de Talleyrand sobre a educação. O bispo retoma as idéias dos parlamentares do fim do Antigo Regime: enquanto conserva a ossatura do currículo secundário clássico (gramática, humanidades, retórica, lógica), introduz a história e a geografia. Condorcet, que o substitui durante a Legis-

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lativa, é, por seu lado, um herdeiro directo dos homens da Enciclopédia; é um espírito extenso e profundo, um matemático e filósofo, atormentado pela separação dos conhecimentos em disciplinas e pela unidade do saber humano. Constrói um projecto de uma ambição bem diferente, que consiste em reorganizar todo o ensino nacional em função de uma classificação «filosófica» dos conhecimentos, de modo a situá-lo na vanguarda da inovação intelectual. Logo a partir do ensino secundário, os alunos deverão abordar «os elementos de todos os conhecimentos humanos», repartidos em quatro grupos: ciências matemáticas e físicas, ciências morais e políticas, aplicações das ciências às artes (por exemplo, a anatomia comparada, os partos, a arte militar, os princípios das artes e ofícios), finalmente a literatura e as belas-artes (nas quais vamos encontrar, reduzidas à sua parte congruente, as humanidades dos antigos colégios). A história encontra-se portanto abrangida pelas «ciências morais e políticas», que para além disso agrupam a análise das sensações e das idéias, a moral, o direito natural, a ciência social, a economia política, o direito público, a legislação. É exactamente aquilo que os homens do século XVIII tinham baptizado de «história filosófica»: uma reflexão sobre a evolução dos povos e das civilizações, um estudo do passado indispensável para a análise do progresso da humanidade nas vias da razão. É acompanhada pela cronologia e pela geografia, decifrações complementares de tempo e do espaço. De Condorcet, pode-se passar a Lakanal5, porque os debates dedicados à educação durante o período montagnard são obcecados pelo aspecto puramente político da questão, e de resto não acrescentam nada de interessante.Foi depois do 9 Termidor que a sociedade política revolucionária retoma os seus direitos durante uns tempos abandonados ao Comité de Salvação Pública. A lei de Frimário ano III (Dezembro de 1794), revogada por Lakanal, institui dois graus de ensino, as escolas pri-

_______________________________________5 Podem encontrar-se os principais discursos dedicados pelos autores das assembléias revolucionárias às questões da educação nacional em: C. Hippeau, L'lnstruction publique en France pendant Ia Révolution, 1881. Para uma informação mais ampla, ver: J. Guillaume, Proces-verbaux du Comité d'lnstruction Publique de Ia Convention national e, 6 vols., Imp. Nat.

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márias, para todos, e as escolas centrais, para instruir a elite da nação. Essas escolas centrais, que são ao mesmo tempo secundárias e superiores, rompem com o sistema das aulas ordenadas desde o 1º ano até à filosofia, por grupos de níveis. Instituem um sistema de cursos paralelos, destinados a cobrir a totalidade dos conhecimentos, e no interior dos quais os alunos podem circular com toda a liberdade. Das catorze cadeiras que uma escola reúne e que reconstituem a enciclopédia dos conhecimentos de Condorcet, revista pelos ideólogos, uma delas é dedicada à «história filosófica dos Povos». Nos anos seguintes, os termidorianos, desejosos de estabelecer novamente um nível superior de ensino, sob a forma de escolas especiais, organizadas em tomo de determinada disciplina, imaginam que algumas seriam consagradas à história, reunindo a legislação, a economia política, a filosofia, a crítica e as antiguidades.Assim, a Revolução fez triunfar, antes e depois da ditadura de Robespierre, a concepção da história que tinha sido a dos enciclopedistas, sistematizada por Condillac e Condorcet. Trata-se no fundo de fazer aa história um dos terrenos privilegiados de demonstração do sentido da existência social. A história filosófica é um «discurso sobre a história universal» laicizado. A questão que se põe é a de compreender porque que essa burguesia revolucionária, que tantas energias e sentimentos patrióticos investiu na guerra com a Europa, não manifestou mais gosto pela tradição parlamentar e legista da história nacional, tão forte no fim do Antigo Regime. Para isto vejo várias séries de razões. Umas de ordem epistemológica: a história pertence, tanto para Condorcet como para os outros ideólogos, ao domínio do raciocínio científico, e a exaltação da particularidade nacional não se enquadra bem com uma visão científica do universo, no interior da qual essa particularidade forma uma espécie de resíduo irredutível. Por outro lado, no plano da ideologia política, os revolucionários franceses também não se pensaram no interior de um quadro estritamente nacional: combatendo pela liberdade e pela igualdade, a França jacobina e termidoriana constitui uma vanguarda da própria humanidade. Mesmo quando os seus exércitos espoliam os países conquistados, a França revolucionária nunca abdica do universal democrático. Por fim, e talvez sobretudo, para que lhe servia esse interminável passado nacional, que pertence

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à monarquia e à feudalidade? Só esteve durante muito pouco tempo ligada à restauração de uma idade de outro entre a monarquia e a nação; todas as ideais de um contrato popular, de direitos originais e de uma constituição primitiva desaparecem logo que se mostra e dá a conhecer aquilo que é: é ela que é a origem, que constitui o contrato e a constituição primitiva, e que funda a história nacional arrancando os Franceses do seu passado. Visto que corta a nossa história ao meio porquê narrar a sua parte maldita, que pertence aos inimigos? Mas a outra parte é demasiado curta para formar um passado; é apenas a celebração de uma origem.Para os revolucionários franceses, a história não é portanto uma genealogia, como o vai ser para as ideologias nacionalistas do século XIX. Constitui um quadro universal de referências em relação ao qual se revela a excelência e a racionalidade suprema da experiência francesa. É o laboratório de uma ciência social que tem a seu cargo organizar os materiais, e não um saber constituído como tal em volta do estudo cronológico dos anais da nação. Daí que a Revolução Francesa não legue às gerações que lhe sucedem nenhum corpo doutrinário duradouro sobre a história. A ideia de uma «ciência social» vai continuar a viver graças a Saint-Simon e a Auguste Comte, mas como corrente marginal, ilegítima, suspeita, da nossa cultura; o conceito enciclopédico começa a tomar-se antiquado já no tempo do Directório e nunca passou para o ensino. Quanto à história nacional, que vai representar o terreno por excelência da constituição da disciplina e da legitimidade escolar, a Revolução Francesa fez dela um campo de guerra civil intelectual. Os Franceses do século XIX são esse povo que só pode prezar metade da sua história; não pode amar a Revolução sem detestar o Antigo Regime e amar o Antigo Regime sem detestar a Revolução.

A Constituição de uma disciplina

A história toma-se assim um problema e uma aposta escolar tanto mais agudos quanto a sua linha de desenvolvimento, como saber e como disciplina, vai ser a genealogia da nação e, por isso, se toma cada vez menos ensinável à generalidade dos Franceses. O Primeiro

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Império pôde ignorar a questão e reinstaurar o estudo da história como um simples anexo do latim: essa «colocação entre parêntesis» indica a vontade e a capacidade de amnésia do regime imperial, mas não é uma solução duradoura. Na mesma época em que a Restauração traz de volta ao poder, com Luís XVIII e os emigrados, as imagens concretas do passado, a história recebe a consagração de disciplina instituída, ao mesmo tempo no ensino e na nossa vida intelectual. Guizot, quase meio século depois de Gibbon (que traduz para o francês), funde a tradição dos historiadores com a dos antiquários, ao mesmo tempo que reconcilia a história nacional e história da civilização. A «filosofia» fora o tribunal do século XVIII. A história toma-se o magistério do século XIX.Mas, ao certo, que história? A Restauração, que é o primeiro regime a estabelecer um ensino sistematicamente cronológico dela, procura recuperar a sua própria genealogia, a da tradição monárquica. Um texto de 1814, preparado por Royer-Collard, por conseguinte de inspiração constitucional e moderada, divide o ensino da história em fatias cronológicas para as aulas dos liceus e dos colégios: história sagrada no primeiro ano, Egipto e Grécia no segundo, Roma (até ao Império) no terceiro, de Augusto a Carlos Magno no quarto, a Idade Média no quinto, Tempos Modernos e história de França no sexto. É uma tentativa de síntese entre o antigo ensino, baseado na história sagrada e na Antiguidade, e as exigências de uma cronologia laicizada, mais moderna e mais «nacional». O espírito do programa consiste em sublinhar a dupla tradição católica e dinástica de França e formar os espíritos para a monarquia segunda a Carta. A história não é nunca inocente, e é o menos do que nunca na cultura francesa do século XIX. Mas é significativo que se tenha tomado ponto de passagem obrigatório para a monarquia constitucional.Aliás, sobrevive à passagem autoritária de 1820 e à queda dos Constitucionais. É que, mesmo que se interrompessem os programas em 1789, é preciso compreender esse terminus ad quem que é a Revolução Francesa e que domina toda a paisagem para montante. Ora, para tal, a direita ultra-realista não utiliza nenhum dos conceitos que estão disponíveis, nem o progresso, nem a democracia, nem a nação. Propõe apenas o direito divino, a Providência, o regresso a Bossuet. É por isso que inaugura um período durante o qual a história se torna

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uma disciplina suspeita, que deve ser mantida sob a estreita vigilância dos poderes públicos não só nos estabelecimentos de ensino secundário, como também nas faculdades de letras, cujas conferências são nessa altura acontecimentos políticos e mundanos. Enquanto a história vegeta nos colégios, Guizot enobrece a Sorbonne atacando o regime de Villèle em nome do terceiro estado, da antiga monarquia e da marcha da civilização. Quando é destituído, em 1822, é de novo a antiga grande burguesia do terceiro estado, a tradição protestante, a liberdade, 1789 enfim, que são atingidos por intermédio dele. A queda de Villèle, em 1827, consagra também a desforra da história, que não tarda a ser emancipada da tutela das humanidades, sendo-lhe atribuído, nas classes secundárias, um professor especial (cedo admitido por agregação particular).Mas é em 1830, com o regime de Julho, que se abre um período decisivo para o ensino da história. Não só, evidentemente, porque os dois maiores historiadores franceses do século XIX, Guizot e Michelet, brilham então com todo o seu esplendor, um no poder (o que, injustamente aliás, vai comprometer a sua fama de historiador), o outro na oposição erudita e republicana do Collêge de France. Mas sobretudo porque o regime de Órleans, nascido da sublevação parisiense, tem por única legitimidade a que retira ao mesmo tempo do Antigo Regime e da Revolução Francesa. Ao contrário do bonapartismo, não dispõe, para esconder a sua miséria jurídica, de nenhuma lenda, de nenhum assentimento prévio ao despotismo. Tem de se situar no ponto exacto em que se justapõem e se somam as duas tradições liberais da história nacional, a da nobreza e a da burguesia, ou seja, re-estabelecer 1789, mas como traço de união entre o passado e o futuro e não como linha de divisão e despojo de guerra Civil. Louis-Philippe transforma o palácio de Versailles em museu das glórias nacionais e manda regressar o caixão do Imperador aos Invalides. A história de França torna-se assim a grande instância de legitimação do regime que a envolve em atenções como criança mimada, e testemunho disso é o enorme esforço de conservação do patrimônio arquivista nacional que foi empreendido nesses anos.Essa vontade política traduz-se igualmente ao nível do ensino. Em 1838, o ministro da Instrução Pública, Salvandy, remodela os programas de história deslocando-os cronologicamente 'para: história sagrada,

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Ásia e Grécia no primeiro ano; Grande Grécia, Macedónia, Judeus no segundo; Roma no terceiro; Idade Média no quarto; Tempos Modernos (1453-1789) no quinto; história de França de 406 a 1789 no sexto. Já aqui se desenha uma cronologia universitária de que ainda somos tributários, visto que na nossa consciência historiográfica nacional, o «moderno» acaba em 1789, como se isso fosse uma evidência universal. Por outro lado, o facto de reservar todo o sexto ano do ensino secundário à história de França sublinha o carácter definitivamente central dessa pedagogia, em oposição à tradição das humanidades. Quando Louis-Philippe recebe em 1838 no palácio de VersailIes os alunos de dois colégios parisienses, para lhes dar a honra de atravessarem consigo o passado, não esconde as suas intenções: «Quis que pudésseis usufruir de todos estes belos exemplos da nossa história, de todas estas gloriosas recordações da antiga monarquia francesa que bem valia essas repúblicas de Atenas e de Roma, com as quais vos ocupam talvez demasiado.» Mas com este jogo, a história inteira, e não só história a história da França, torna-se um dos centros essenciais do debate político e intelectual francês. A história ecumênica e meio-termo de Guizot esbarrá à sua direita na tradição reaccionária, possuída pela ideia da politicização dos espíritos jovens, e à sua esquerda nos dois grandes intérpretes democráticos da história nacional e europeia: Michelet e Edgar Quinet. Não cabe no quadro deste artigo traçar novamente a famosa batalha dos dois professores contra os Jesuítas e contra o domínio clerical da Universidade.Mas aquilo que importa para a minha intenção é compreender a que ponto essa batalha desestabiliza uma história que o regime de Julho quisera fixar em volta de 1789 e do seu remake de 1830. Guizot vira na Revolução de Julho um novo enraizamento das conquistas de 1789, uma espécie de 1688 francês, destinado a abrir para a França uma era de concórdia e de prosperidade social comparável com a que tinha inaugurado para a Inglaterra a Glorious Revolution. Eis que Michelet e Quinet exumam da história a dinâmica da Reforma, o inacabamento da Revolução e a promessa indefinida da democracia. O consenso dos Franceses em tomo da sua história não parece mais profundo do que o seu acordo acerca do regime de Julho. Desaparecem em conjunto em 1848.

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No entanto, aquilo que fora iniciado com Louis-Philippe é irreversível - a história e o ensino da história, mesmo que continuem a ser objecto de ruidosos conflitos políticos, permanecem no centro de qualquer pedagogia nacional. Por fim a II República, apesar do alarido do partido da ordem, e o Segundo Império, apesar da sua desconfiança no pensamento crítico, irão no sentido da reforma de Salvandy. Em 1848, Carnot inclui o período 1784-1814 nas classes de seconde e de Retórica *: eis a Revolução e o Império no ensino secundário. Em 1852, o decreto que estabelece a bifurcação entre estudos literários e estudos científicos (outro aspecto da modernização do currículo) remodela igualmente os programas de história. A história sagrada é daí em diante reservada para os mais jovens, na terceira e quarta classes. Os primeiro, segundo e terceiro anos do secundário são dedicados à história de França até 1815. Por fim, nos quarto, quinto e sexto anos, a tríade já clássica: Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos.Mas esta reforma de Fortoul é por sua vez transformada pela reorganização dos programas por Victor Duruy, em 1865. História sagrada na terceira classe, história de França na quarta: esta progressão da história de França nas classes mais jovens representa o sinal de um acordo crescente sobre a necessidade pedagógica desse ensino e sobre o seu conteúdo. Para cima, Duruy instaura uma divisão muito moderna, a Antiguidade do primeiro ao terceiro ano, a Idade Média no quarto, os Tempos Modernos no quinto, o período 1661-1815 no sexto ano, e o século XIX, até ao Segundo Império, no sétimo ano, chamado de filosofia. Ganha assim a batalha da história contemporânea, que anexa ao ensino secundário. Ao mesmo tempo que dá ao século XIX a dignidade histórica, estende, graças ao século XIX, o campo escolar da história aos factos econômicos e sociais. Com efeito, a história não é só a genealogia da nação, mas também o estudo do progresso científico e material da humanidade. E é assim que se prepara, em novas condições, a reconciliação da ideia nacional com a ideia enciclopédica.

____________________________________* As classes de seconde e de Retórica equivalem aos anos terminais do ensino secundário francês. (N. do R.)

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A partir de então a história aparece como o veículo privilegiado por duas séries de razões. As primeiras são de ordem científica e dizem respeito ao seu estatuto como tipo de conhecimento e como disciplina. Os meados ou este terceiro terço do século XIX marcam, em França, uma etapa-chave do desenvolvimento dos estudos históricos, a mais importante, talvez, desde os beneditinos de Saint-Maur. Taine, Renan, Fustel, Gabriel Monod fundam de novo a história como ciência. Victor Duruy cria, em 1866, a Escola Prática de Altos Estudos, para ambientar em França a investigação à alemã, na qual a transmissão de um método rigoroso e de um saber crítico do mestre para o aluno substitui a conferência mundana em voga nas universidades.Mas se a história aparece revestida do prestígio intelectual da ciência, permanece essencialmente, do 1ado da exigência social, não aquilo que a sociedade sabe sobre si própria, mas aquilo que nação conhece do seu passado. É o outro aspecto da sua eminente dignidade. Ora, depois dos anos de «ordem moral», que fizeram reviver os receios reaccionários sobre os perigos de que ela é veículo, a República vitoriosa traz aos Franceses, ao mesmo tempo que um consenso duradouro em torno do regime, uma interpretação cumulativa das suas tradições em confronto. Ao contrário da Monarquia de Julho, que procurava sobretudo um lugar geométrico comum às classes dirigentes do país, aquela integra Michelet em Guizot e oferece a toda a nação uma história democrática de si própria. Os reis de França não foram todos modelos de virtude ou de consciência profissional; mas, melhor aqui, pior ali, construíram a França, asseguraram o seu progresso e a sua irradiação. A própria Revolução teve os seus excessos; mas a Declaração dos Direitos do Homem e os exércitos do ano II fazem da nossa história uma espécie de modelo universal. Assim as duas metades da nossa história não são tanto rivais como complementares: não, como escrevera Tocqueville, porque em comum têm o Estado administrativo centralizado, mas porque partilham o culto do estado-nação, instrumento de progresso. A III República nascente assume por fim toda a herança nacional em nome do povo, porque ela própria é, finalmente e quase ao fim de um século, a Revolução Francesa no poder: essa figura provisória, mas que vai revelar-se bastante duradoura, é constituída por um poder conservador que governa em nome dos valores revolucionários.

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O Magistério no século XIX

A partir deste momento a história já não constitui apenas uma matéria de ensino secundário ou superior; é também indispensável aos mais pequenos, cujo juízo e patriotismo devem ser formados cedo. A partir do momento em que é conhecida a sua economia geral, assente no encaixe de uma história de França numa história universal cujo sentido é o progresso material e moral da humanidade, o mestre pode abandonar nas classes mais jovens as ideias abstractas: a «filosofia» geral da evolução poderá nascer de uma anedota, de um pormenor, ou, como se diz tão bem, «de uma história». Ouçamos, por exemplo, Lavisse recomendar o ensino da história antiga, nas suas célebres «Instruções» de 1890, e meçamos o caminho percorrido desde os colégios jesuítas: «A história de Grécia e de Roma é já a nossa história, visto que as origens da inteligência e da política moderna já nelas se encontram. É necessário mostrar ao aluno essas origens e explicar-lhes, mas quase sem que ele dê por isso, não lhe propor considerações filosóficas nem o embaraçar com nenhum pormenor de instituições.» A Antiguidade já não é um modelo; é uma introdução à história da Europa e de França. Já não dá ao mundo moderno o seu sentido; recebe-o dele.A capacidade de Lavisse de escrever a história a todos os seus níveis, não do mesmo modo, mas com a mesma certeza (e aliás com uma grande felicidade de expressão) testemunha que ponto se trata de um saber e de uma disciplina que atingem então uma espécie de classicismo escolar. Não é que Lavisse seja superficial: as suas leituras são imensas, mas sabe sempre para onde vai. Escreve à sua maneira, ele "que tanto admira a Enciclopédia e o século XVIII, uma história «filosófica», dominada pela burguesia esclarecida e erudita, progressivamente emancipada da Igreja e dos reis, estendendo rapidamente ao mundo as conquistas das ciências e do progresso. Mas esta «história filosófica» apresenta em relação à sua antecedente diferenças capitais: integrou a ars antiquaria, sob a forma aperfeiçoada do positivismo; fez do estado-nação a figura central da evolução. Em suma, tem um método e um objecto; é aquilo a que se chama uma disciplina.Pouparei ao leitor o comentário do famoso «pequeno Lavisse», no qual dezenas de gerações de franceses aprenderam, para a vida inteira,

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o essencial da sua história. O seu testemunho é, evidentemente, capital no que respeita à utilidade pedagógica e social da história na França republicana do fim do século XIX: na verdade, é a esse nível que os efeitos da escrita histórica devem ser particularmente visíveis, para ter o máximo de impacto nos espíritos jovens. Mas o próprio Lavisse, muito claramente, escreveu a meta-história da sua história de França contada às crianças, no seu célebre texto de 1885 sobre o ensino da história nas classes primárias. Nele explicou, melhor do que ninguém, aquilo que fazia. A República nascente não tinha má consciência: nunca a visão de conjunto foi tão explícita. Primeiro há o lento nascimento da França, com o esforço dos reis, lutando contra o caos feudal: a viragem decisiva é a Guerra dos Cem Anos: «Expulso o Inglês, a nossa França aparece. Mas, nesta França, a personagem principal é aquele em que punha as suas esperanças Jeanne d’Arc, é o rei. Pelo facto de ter feito a unidade e reconquistado o seu reino ao inimigo, concentra por assim dizer nele a França inteira. E eis aquilo que os alunos devem saber bem: no século XV, quando já não há vassalos poderosos, quando Luís XI reuniu as ótimas grandes províncias independentes e as comunas foram desamparadas pelos agentes do rei e arruinadas pela guerra, o rei já não é um suserano e um protector, mas um mestre.» Segue a história do desenvolvimento do poder absoluto, história ambígua, visto que leva a França até à preponderância européia, embora a mine também e oprima os Franceses. A Revolução prolonga o «lado bom» da monarquia, enquanto elimina o lado mau: «E uma indiscutível verdade que a Revolução Francesa um esforço heróico para substituir a monarquia antiga pelo reino da justiça e da razão. É uma indiscutível verdade que abriu o mundo a uma era nova e que quase toda a Europa foi de certo modo refundida por ela. O mestre não irá portanto ferir qualquer consciência quando expuser os princípios dessa Revolução e mostrar como, pela força das nossas ideias e das nossas armas, os governos absolutos foram transformados por todo o lado e novos poVos adquiriram, ao longo da nossa história contemporânea, o direito à existência.» Mas cuidado! A advertência que segue é capital para os futuros cidadãos: «É uma indiscutível verdade o facto de o regime ideal sonhado pela Revolução Francesa ser, de entre todos, aquele que é mais difícil

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de pôr em prática: a revolução e os golpes de Estado que se seguiram mostram-no com bastante clareza. É uma indiscutível verdade [a repetição destas palavras é por si só reveladora de que precisamente todas estas verdades são discutidas e não deveriam sê-lo] o facto de que essas revoluções e esses golpes de Estado enfraquecem a França e que, a processarem-se de novo, a matariam. O mestre não irá portanto enganar qualquer consciência se ensinar que toda a violência contra a lei é um atentado contra o país e que a condição da salvação da França é a estabilidade política.» Por fim, um pensamento sobre a Alsácia-Lorena: «O mestre que tiver traçado perante os seus alunos os destinos da França, de toda a França, a antiga e a nova, saberá falar da mutilação que ela sofreu, há quinze anos.» A finalidade do ensino da história é tão clara que a escola se tomou laica, obrigatória e gratuita: formar «um cidadão compenetrado dos seus deveres e um soldado que ama a sua arma».Com o segundo grau, os programas tomam-se mais vastos e as directivas mais diferenciadas. Permitem sobretudo tomar o pulso a essa parte da transformação pedagógica que não é devida à ideologia republicana, mas antes à própria disciplina. Neste campo, a III República consolidou primeiro a obra de Victor Duruy, ameaçada durante a ordem moral. Sobretudo, com a reforma de 1902, que modifica completamente o ensino secundário francês, reformulou novamente os programas, fundamentados a partir de então - e até hoje - em dois ciclos no interior do secundário: Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos (até 1789), período contemporâneo do primeiro ao quarto ano. E de novo história moderna no quinto e no sexto ano (mas até 1815: esse no man's land entre 1789 e 1815 continua difícil de baptizar), e contemporânea no último ano. Existe sobre os considerandos desta reforma um interessante comentário, redigido pelo homem que desempenhou o papel principal na sua concepção: Charles Seignobos. Trata-se aliás de uma introdução geral às suas «aulas», que estava incluída nos manuais de todos os anos, do primeiro ao último.Seignobos não separa aquilo que ele apelida de «revolução» surgida na concepção do ensino da história desde as famosas «Instruções» de Lavisse, daquilo que se tornou a própria disciplina. Separa mal as

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duas ordens de factores cuja distinção nos parece evidente e necessária: a autonomia pedagógica da história cobre a sua emancipação como saber. Outro modo de dizer que a escolarização triunfante da história naquela época coroa uma disciplina constituída a todos os níveis, possuindo método, objecto e utilidade social específicos - as três coisas estão indissoluvelmente ligadas.A sua «matéria» já não se reduz ao comentário da grande literatura greco-romana, como nos colégios jesuítas, ou à análise dos tratados e das guerras, como na tradição da Escola Militar. Já não prepara para uma carreira especial. Forma, em cada um dos Franceses, o cidadão. «O estudo das ciências permite conhecer o mundo material; o estudo das letras desvenda o mundo das formas e das ideias; a história introduz o aluno no mundo social e político. As letras anteriormente ignoravam este mundo que as mantinha afastadas; um francês, destinado a viver numa democracia, precisa de a compreender.» Trata-se portanto de formar, através do ensino da história, uma ciência social geral, que ensine ao mesmo tempo aos alunos a diversidade das sociedades do passado e o sentido geral de sua evolução. Mas esse passado continua a ser «genealógico», escolhido em função daquilo que se pretende anunciar ou preparar: a Antiguidade clássica, a Idade Média cristã, a Europa moderna e contemporânea. As outras sociedades, espalhadas no espaço, são abandonadas a outras disciplinas. A história só concede a honra de se interessar por aquelas que participem da «evolução», que é o outro nome do progresso. Daí advém o relevo posto ao período contemporâneo, em detrimento da Antiguidade e da Idade Média: não só para marcar a independência finalmente conquistada pela história sobre as humanidades, como ainda por ser o contemporâneo que dá sentido ao passado e, por conseguinte, justifica o seu estudo. «Os Tempos Modernos desde o século XVI fornecem agora a matéria essencial do ensino; desses tempos data a maioria dos factos que importa conhecer para compreender, o estado actual do mundo.» Mas no próprio interior daquilo que é «moderno», as proporções tradicionais são invertidas: o século XVII, «durante o qual não se produziu nenhuma transformação profunda para além das revoluções de Inglaterra», é reduzido a uma proporção congruente, em proveito do século XVIII, «durante o qual se formaram

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os grandes Estados contemporâneos, o Império Russo, a Prússia, os Estados Unidos, a Inglaterra parlamentar, a França revolucionária», e do século XIX, «durante o qual a vida material e intelectual foi subvertida pela constituição definitiva das ciências e a vida política transformada pelo regime representativo e pela igualdade democrática». A história não é só uma genealogia; é igualmente o estudo da mudança, daquilo que é «subvertido», «transformado», campo privilegiado em relação àquilo que permanece estável. Genealogia e mudança são aliás duas imagens gêmeas: a investigação das origens da civilização contemporânea só tem sentido através das sucessivas etapas da sua formação.Este fechamento do campo da matéria histórica implica uma modificação da natureza dos factos nos quais incidem o estudo e o ensino. É preciso renunciar a essas intermináveis nomenclaturas cronológicas, e em particular a essas enumerações de reis, de personagens ministeriais, de generais, de batalhas e de tratados que sobrecarregam sem proveito a memória dos alunos. O essencial é acentuar duas ordens de factos: aqueles que dizem respeito à civilização material, primeiro, porque é o fundamento da civilização propriamente dita; e aqueles que permitem compreender o carácter específico de um período em relação outro, ou seja a mudança, E esses factos serão naturalmente apontados, datados e descritos segundo o método celebrado pelo positivismo, que deve despertar o espírito dos alunos para a análise crítica, em lugar de se dirigir apenas à sua memória. Deixando de ser lima lição de moral, ou a ocasião para um lugar-comum literário, o novo ensino deve por fim renunciar ao estilo oratório ou filosófico: «Agora que a história começou a instituir-se como ciência, chegou o momento de romper com a tradição oratória romana e acadêmica e de adoptar a língua das ciências naturais.»

Uma pedagogia do cidadão

O que faz portanto com que a história seja, no fim do século XIX, uma matéria ensinável de pleno direito é inseparavelmente um método científico, uma concepção da evolução e ainda a eleição de um campo

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de estudos ao mesmo tempo cronológico e espacial. As regras elementares da ars antiquaria, codificadas pelos positivistas, entram no ensino secundário por intermédio de um consenso provisório quanto ao sentido da história. Para chegar a esse consenso, Lavisse e Seignobos retomam os dois temas da história filosófica desde o século XVIII: a história é a nação; a história é a civilização. Mas reúnem-nos de um modo muito mais orgânico do que o puderam fazer, cinqüenta anos antes, Guizot e os homens de Julho. Esses mantinham-se prisioneiros de uma concepção estritamente burguesa da evolução e da «civilização»;parando a história em 1830, ou seja, em 1789, ou ainda no habeas corpus inglês, apresentavam uma base demasiado estreita para o campo histórico aberto pela ReYQlução Francesa. Os Franceses nunca foram tão entusiastas do regime representativo que fizessem dele a cúpula da história universal.Em contrapartida, «a evolução da humanidade», ao estilo de Seignobos ou de Lavisse, propõe-lhes uma série de figuras em que investem mais facilmente um consenso colectivo. A economia interna dessas figuras pode ser decomposta em três níveis sucessivos: a «civilizacão» é o outro nome da profecia científica reinante nesse fim de século.Leva os homens, pelas conquistas do espírito, ao domínio sobre a natureza. Desta marcha para o progresso intelectual e material, o principal agente histórico é a nação ou, mais precisamente, o Estado nacional, essa invenção da essa invenção da Europa moderna. Ora, desse Estado nacional, portador de progresso, a história da França oferece o exemplo por excelência, por intermédio da monarquia absoluta e da Revolução Francesa. É que não é correcto dizer-se que a historiografia republicana desse tempo seja estritamente patriótica; o que ela tem de nacionalista nunca esquece, segundo o exemplo jacobino, o universal democrático. A característica de eleição da história de França é a de possuir, como história real e como ensino da história, um valor e um alcance pedagógico específicos desse ponto de vista. Foram necessários cem anos para reunir Mably e Condorcet pela escola republicana.A outra vertente desta análise consistiria em ver porquê e como é que este consenso se desfez, desde então, e em especial depois da Segunda Guerra Mundial, simultaneamente pelo exterior e pelo interior, em razão da evolução da disciplina e das ciências sociais em geral, e como

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conseqüência do fim da preponderância da Europa no Mundo. Apesar de, ou em virtude de, os programas escolares sobreviverem sempre durante muito tempo às conjunturas que explicam o seu nascimento, toda a gente sente hoje que o nosso ensino da história deve ser retomado. E talvez que a primeira coisa a fazer seja, antes de avançar com propostas, compreender aquilo que se desfez em cem anos. Mas para isso é necessário o conhecimento prévio dos diferentes elementos da síntese; a viagem de ida é uma condição prévia; eis como vejo as suas principais etapas.Para existir como disciplina escolar, a história teve de sofrer várias mutações, de modo a constituir um campo do saber ao mesmo tempo intelectualmente autônomo, socialmente necessário e tecnicamente ensinável. De facto, ela não tem por natureza objecto específico (visto que tudo é «histórico»), sem linguagem autônoma (visto que é narrativa), sem limites fixáveis: existe em todo o lado e em lugar nenhum. Apresenta portanto dificuldades específicas a ser pensada em termos de disciplina, e mais ainda em termos de disciplina escolar. Ou não é ensinável, ou então é ensinada, como durante vários séculos passados, unicamente à margem das letras clássicas, e até, quando se tomou «matéria» escolar, passou a ser objecto de meticulosas delimitações, com receio de que o aluno se perca no oceano dos «factos históricos», sem por isso ganhar a aprendizagem de uma linguagem ou de um método.Desde o século XVII que o processo de autonomização da história se desenvolveu em duas direcções paralelas, ou seja, independentes uma da outra. A história filosófica ganhou a batalha do «moderno» sobre o «antigo» e acabou por elaborar, com Condorcet e os ideólogos, uma doutrina do progresso. Por seu lado, desde Port Royal aos beneditinos de Saint-Maur, passando pela Academia das Inscrições, a ars antiquaria construiu um método de localização e de pesagem do facto histórico. Mas na ausência de um Gibbon francês, o Século das Luzes nunca uniu as duas tradições eruditas; lega à Revolução e ao século XIX, por um lado, um conjunto de técnicas sobre a história-universal e, por outro lado, um conjunto de técnicas e de saberes descritivos distintos, cronologia, diplomacia, viagens, etc.

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São essas tradições distintas que o século XIX vai remodelar profundamente e especificar para delas fazer, no início da III República, a história que se ensina aos jovens franceses. Remodelar significa antes de mais excluir. A cultura clássica tinha indicado o caminho começando por colocar fora da história certos sectores do imenso espectáculo dado pelas sociedades humanas. As «viagens» representam um inventário do espaço, antes de se tornarem geografia e antropologia. As civilizações não européias, do passado e do presente, que exigem investimentos lingüísticos especiais, tendem a constituir campos específicos. Esta tendência prossegue com a Restauração e a Monarquia de Julho, como se pode ver ao nível do ensino mais elevado, no Collège de France. A história das religiões, na mesma época, separa-se igualmente do tronco geral da história para se tomar um campo separado da erudição. Em sentido inverso, em razão da decadência do latim como língua escolar, a história erudita tende a recuperar progressivamente a Antiguidade greco-romana como matéria que deve ser ensinada sob um ângulo que não seja o de um modelo literário. Aquilo que constitui a identidade cultural da Europa das letras tomou-se agora a sua genealogia. É que a grande mutação do século XIX, e em particular dos anos 1820 e 1830, está aí: a história é a árvore genealógica das nações européias e da civilização de que são portadoras. Guizot ainda tem como modelos a França e a Inglaterra, Michelet já só tem a França. A partir do momento em que o discurso enciclopédico do século XVIII recebe essa significação, a história nacional é liberta da maldição «feudal» que a Revolução fez pesar sobre ela e da condenação que a envolvia.Constitui ao mesmo tempo uma imagem privilegiada (mas não única) do progresso da humanidade e uma «matéria» que deve ser estudada, um patrimônio de textos, de fontes, de monumentos que permitem a reconstituição exacta do passado. É na confluência dessas duas ideias que se instala a «revolução» positivista: dá-lhes, às duas, a bênção da ciência. A história dali em diante já tem o seu campo e o seu método. Toma-se, sob os dois aspectos, a pedagogia central do cidadão.

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Furet, Francois 1927- "Democracy and Utopia"Journal of Democracy - Volume 9, Number 1, January 1998, pp. 65-79 The Johns Hopkins University Press

ExcerptJournal of Democracy 9.1 (1998) 65-79

The subject of democracy and utopia may be approached in a philosophical fashion. Since the eighteenth century, democracy has presented itself to the modern individual as a promise of liberty, or more precisely, of autonomy. This is in contrast to earlier times when men were viewed as subjects, and consequently were deprived of the right of self-determination, which is the basis of the legitimacy of modern societies. Ever since the democratic idea penetrated the minds and peoples of Europe, it has not ceased to make inroads nearly everywhere through a single question, inherent in its very nature, that crops up continuously and is never truly resolved. That question, which was posed very early on by all the great Western thinkers from Hobbes to Rousseau and from Hegel to Tocqueville, was as follows: "What kind of society should we form if we think of ourselves as autonomous individuals? What type of social bond can be established among free and equal men, since liberty and equality are the conditions of our autonomy? How can we conceive a society in which each member is sovereign over himself, and which thus must harmonize the sovereignty of each over himself and of all over all?" [End Page 65]

In the course of these probings into the central question of modern democracy, one is necessarily struck by the gap between the expectations that democracy arouses and the solutions that it creates for fulfilling them. In the abstract, there is a point in political space where the most complete liberty and the most complete equality meet, thus bringing together the ideal conditions of autonomy. But our societies never reach this point. Democratic society is never democratic enough, and its supporters are more numerous and more dangerous critics of...

Furet, Francois 1927- "Democracy and Utopia" Journal of Democracy - Volume 9, Number 1, January 1998, pp. 65-79 The Johns Hopkins University Press Excerto Journal of Democracy 9.1 (1998) 65-79 O assunto democracia e utopia pode ter chegado de um modo filosófico. Desde o século dezoito, a democracia se apresentou ao indivíduo moderno como uma promessa de liberdade, ou mais precisamente, de autonomia. Isto está em contraste com tempos antigos quando os homens foram vistos como sujeitos, e por conseguinte eram privados do direito de autodeterminação que é a base da legitimidade de sociedades modernas. Desde então a idéia democrática penetrou as mentes e povos de Europa, não deixou de fazer descaminhos em quase todos os lugares graça a uma única pergunta, inerente em sua mesma natureza que semeia continuamente para cima e nunca é solucionada verdadeiramente. Aquela pergunta que foi posada muito cedo em por todos os grandes pensadores Ocidentais de Hobbes para Rousseau e de Hegel para Tocqueville, qual seja: "Que tipo de sociedade nós deveríamos formar se consideraramos-nos como indivíduos autônomos? Que tipo de laço social pode ser estabelecido entre homens livres e iguais, desde que liberdade e igualdade são as condições de nossa autonomia? Como nós podemos conceber uma sociedade na qual cada sócio é soberano sobre si, e no qual tem que se harmonizar a soberania de cada sobre ele e por toda parte? " [Fim Página 65] No curso deste sondagens na pergunta central de democracia moderna, a pessoa é golpeado necessariamente pela abertura entre as expectativas que democracia desperta e as soluções que cria pelos cumprir. Em teoria, há um ponto em espaço político onde a liberdade mais completa e a igualdade mais completa se encontram, assim reunindo as condições ideais de autonomia. Mas nossas sociedades nunca alcançam este ponto. Sociedade democrática nunca é bastante democrática, e seus partidários são mais numerosos e mais perigosos críticos de...