47
Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa Cláudio Pereira de Souza Neto * e José Vicente Santos de Mendonça ** SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Princípio republicano, fundamentalização e imparcialidade constitucional. 2.1. Fundamentalização-inclusão e fundamentalização-releitura. 2.2. Princípio republicano, razão pública e imparcialidade constitucional. 3. O constitucionalismo liberal-abrangente e a interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. 3.1. Imparcialidade e abrangência na interpretação dos monopólios públicos. 3.2. Imparcialidade e abrangência na formulação de um conceito material de serviço público. 3.3. A crítica democrática à constitucionalização-inclusão do princípio da subsidiariedade. 4. Proposições objetivas. 5. Bibliografia. Mas uma coisa são as tendências dominantes na esfera política e outra coisa é a análise da constituição econômica. A questão é que a constituição econômica hoje permite sem dúvida a desintervenção econômica do Estado e a sua tendencial redução a um papel essencialmente regulador, no contexto de uma “economia de mercado regulada”. O que não pode, porém, concluir-se é que tal modelo é o modelo constitucional, como se fosse constitucionalmente imperativo. 1 * Professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). ** Professor de Direito Econômico do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais – Rio de Janeiro (IBMEC– RJ). Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 1 MOREIRA, Vital. A metamorfose da “Constituição Econômica”. Revista de Direito do Estado, nº. 2, 2006. O destaque consta do original. 1

Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

  • Upload
    dinhtu

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa

Cláudio Pereira de Souza Neto* e José Vicente Santos de Mendonça**

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Princípio republicano, fundamentalização e imparcialidade

constitucional. 2.1. Fundamentalização-inclusão e fundamentalização-releitura. 2.2.

Princípio republicano, razão pública e imparcialidade constitucional. 3. O

constitucionalismo liberal-abrangente e a interpretação do princípio constitucional da livre

iniciativa. 3.1. Imparcialidade e abrangência na interpretação dos monopólios públicos. 3.2.

Imparcialidade e abrangência na formulação de um conceito material de serviço público.

3.3. A crítica democrática à constitucionalização-inclusão do princípio da subsidiariedade.

4. Proposições objetivas. 5. Bibliografia.

Mas uma coisa são as tendências dominantes na esfera política e outra coisa é a análise da constituição econômica. A questão é que a constituição econômica hoje permite sem dúvida a desintervenção econômica do Estado e a sua tendencial redução a um papel essencialmente regulador, no contexto de uma “economia de mercado regulada”. O que não pode, porém, concluir-se é que tal modelo é o modelo constitucional, como se fosse constitucionalmente imperativo.1

* Professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). ** Professor de Direito Econômico do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais – Rio de Janeiro (IBMEC–RJ). Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 1 MOREIRA, Vital. A metamorfose da “Constituição Econômica”. Revista de Direito do Estado, nº. 2, 2006. O destaque consta do original.

1

Page 2: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

1. – Introdução

O Direito contemporâneo caracteriza-se pelo incremento constante da força

normativa da Constituição. A tendência vem se acentuando desde o segundo pós-guerra,

apesar das descontinuidades verificadas na história constitucional de muitos Estados. No

Brasil, a marca do constitucionalismo recente é a preeminência normativa da Constituição

de 1988, texto que pôs fim à última irrupção autoritária e já entrou em vigor pretendendo-se

“para valer”.2 Registra-se, desde então, a progressiva ascensão do Direito Constitucional.

Se, há trinta anos, a Constituição brasileira era promessa, e o Direito Constitucional,

literatura fantástica ou sociologia política, hoje o quadro mudou. A Constituição é norma; o

Direito Constitucional, disciplina jurídica.

Nosso estudo se debruça sobre o momento culminante desse longo processo,

em que se dá a chamada “constitucionalização do Direito”. Para além da tradicional

inclusão de conteúdos no texto constitucional (constitucionalização-inclusão), sustenta-se,

hoje em dia, a necessidade de se reinterpretar a ordem infraconstitucional de acordo com a

Constituição (constitucionalização-releitura). A Carta atual consagra, como nenhuma

antes, a dignidade humana. Não é de se estranhar que se queira vê-la incidir sobre o todo da

Ordem Jurídica. Esse movimento se verifica, ainda, no interior da própria Constituição:

além da inserção de conteúdos no sistema de direitos fundamentais (fundamentalização-

inclusão), exige-se a interpretação da totalidade do sistema constitucional à luz desses

direitos (fundamentalização-releitura).

Como regra, essa dinâmica merece ser celebrada. Mas aqui e ali há excessos.

Um deles será examinado em detalhe: a utilização de categorias desenvolvidas no âmbito

da Teoria dos Direitos Fundamentais, a partir do compromisso com a promoção da

dignidade humana, para restringir a possibilidade de o Estado intervir na economia. Isso

tem ocorrido através de interpretações hiper-expansivas do âmbito de proteção do princípio

2 Para a expressão, cf. BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais: por que não uma Constituição para valer? In: Anais do Congresso Nacional dos Procuradores de Estado, 1986.

2

Page 3: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

da livre iniciativa. Se tais interpretações atribuem conteúdo à livre iniciativa

(fundamentalização-inclusão), também orientam a interpretação dos demais preceitos

constitucionais relativos à atividade econômica (fundamentalização-releitura). Nossa tese é

a de que essa dupla fundamentalização viola o princípio republicano e o princípio

democrático, ao limitar as deliberações das maiorias através de uma concepção

“fundamentalista” dos direitos fundamentais.3

No campo de provas estão três assuntos próprios do Direito Econômico: (I) a

abrangência constitucional dos monopólios públicos, (II) a noção de serviço público e (III)

o status constitucional do princípio da intervenção subsidiária do Estado na economia. O

artigo pretende contribuir para a desmistificação de um dos sentidos mais polêmicos da

“constitucionalização do Direito” operada pela dogmática brasileira: sentido que propõe

como ontologicamente necessárias algumas opções, e, num giro retórico, pretende tornar

realidade constitucional um consenso imposto. Confira-se.

2. – Princípio republicano, fundamentalização e imparcialidade constitucional

2.1. – Fundamentalização-inclusão e fundamentalização-releitura

O termo “constitucionalização do Direito” tem sido utilizado em dois

sentidos. A primeira acepção – constitucionalização-inclusão – é imediata. Determinado

assunto, antes tratado pela legislação ordinária, ou simplesmente ignorado, passa a fazer

parte do texto constitucional. É a “constitucionalização-elevação” de Favoreu,

transferência, para a Constituição, da sede normativa da regulação da matéria.4 A

Constituição de 1988 está repleta de exemplos. Originariamente, dentre outros institutos e

instituições, constitucionalizou a autonomia universitária (art. 207) e a Defensoria Pública

3 Alertando para a impropriedade de concepções “fundamentalistas” dos direitos fundamentais, cf. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 170. 4 FAVOREU, Louis. La constitutionnalisation du droit. In: L'unité du droit: Mélanges en homage à Roland Drago. Paris: Economica, 1996. É tradicional a distinção entre Constituições sintéticas e analíticas. As primeiras são Constituições restritas ao estabelecimento de catálogos de liberdades fundamentais e de normas estruturantes do Estado; as segundas vão bastante além disso, regulando amplos e variados aspectos da vida política, econômica e social. Pois bem: os conceitos denotam extremos de constitucionalização-inclusão. Cf.: BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). RDA, vol. 240, abr./jun. 2005, p. 20.

3

Page 4: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

(art. 134), inéditos em nossa história constitucional.5 Depois, suas Emendas

constitucionalizaram os princípios da eficiência administrativa (art. 37, caput) e da

razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII), cujo tratamento se restringia ao plano

ordinário, além de terem instituído o Conselho Nacional de Justiça, com a atribuição de

promover o controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário (art. 103-B).6

A segunda acepção – constitucionalização-releitura – só veio a receber

maior atenção nos dias de hoje. Desde que a Constituição passou a ser compreendida como

norma jurídica dotada de superioridade formal e material em relação às demais, era questão

de tempo até que se passasse a denominar como “constitucionalização do Direito” a

percepção, mais ou menos difusa, de que todas as normas infraconstitucionais deviam pagar

algum tributo de sentido à norma máxima.7 O fenômeno, no Brasil, vem sendo descrito e

justificado em diversos estudos, com ênfase nas pesquisas recentes sobre a “filtragem

constitucional”8, a eficácia privada dos direitos fundamentais9 e a formação de um Direito

5 No tocante à Defensoria Pública, as Constituições anteriores se limitavam a determinar, genericamente, que o Estado criasse órgãos especiais para prestar assistência jurídica gratuita. Cf. Constituição de 1934, art. 113, 32; Constituição de 1946, art. 141, §35; Constituição de 1967/69, art. 150, §32. 6 As Emendas à Constituição de 1988 têm optado não por desconstitucionalizar os temas originariamente tratados, mas por substituir a regulação originária por novas orientações. Foi o que ocorreu com a Emenda Constitucional no 19, aprovada para substituir um modelo de Administração Pública, então caracterizado como “burocrático”, por outro modelo, denominado “gerencial”. A principal exceção é a do sistema financeiro nacional, praticamente desconstitucionalizado pela Emenda n.o 40, de 2003, que revogou todos os incisos e parágrafos do art. 192, preservando apenas algumas disposições genéricas que tinham lugar no caput. 7 Favoreu menciona a “constitucionalização-transformação”, que seria a “impregnação” dos diferentes ramos do Direito pela Constituição (FAVOREU, op. cit., p. 37). Optou-se, contudo, pela ênfase em conceitos e expressões comuns à experiência doutrinária e jurisprudencial brasileira. Diga-se, ainda, que é com fundamento nessa percepção que se tem sustentado que “toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional”. (BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p. XVIII). 8 SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1999; SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do neoconstitucionalismo. Revista Brasileira de Direito Público, ano 3, n.º 10, jul./set. 2005. 9 Cf.: SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, cit.; STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2005; SARLET, Ingo (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006; VALLE, André Rufino. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004; SOMBRA, Thiago. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004; SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.

4

Page 5: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

Civil-Constitucional.10 A jurisprudência já assumiu a idéia, fazendo uso corrente da técnica

da interpretação conforme a Constituição, com a qual procura, dentro das possibilidades

hermenêuticas do texto legal, extrair “uma significação normativa harmônica com a

Constituição”.11

Fenômenos próximos se desenvolvem, no interior da Constituição, com

relação ao sistema de direitos fundamentais. Também há uma fundamentalização-inclusão,

inserção de conteúdos no sistema de direitos fundamentais, e uma fundamentalização-

releitura, interpretação de toda a Constituição de acordo com esses preceitos.12 Explica-se.

O primeiro fenômeno, o da fundamentalização-inclusão, é velho conhecido

dos publicistas. Se a história do constitucionalismo é, em grande medida, a história da

ampliação progressiva do conteúdo constitucional, assim também o é a história particular

dos direitos fundamentais, em que são identificadas sucessivas gerações de reconhecimento

e positivação. Seu termo inaugural é a positivação dos direitos de liberdade no séc. XVIII,

com as declarações de direitos e as primeiras Constituições. No início do séc. XX, verifica-

se a positivação dos direitos sociais. Hoje, há a atribuição de status constitucional a direitos

difusos, sobretudo os relativos ao meio ambiente e à proteção do consumidor. Embora a

história dos direitos fundamentais, nos diversos países, não possa ser rigorosamente

10 A conformação de um Direito Civil-Constitucional não se traduz, apenas, na incorporação de temas tradicionais do Direito privado ao texto da Constituição, i. e., na constitucionalização-inclusão. O que o denota é a afirmação de que o Direito Civil não é regido, com exclusividade, pelo Código Civil e pela legislação esparsa, encontrando na Constituição sua “unidade de sentido”; e a incorporação, pela sua metodologia, de métodos originariamente elaborados pelo Direito Constitucional e pela Filosofia do Direito, especialmente os que concernem à aplicação de princípios. Cf. TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 1-22; TEPEDINO, Gustavo. Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, nºs. 6 e 7, 1998-1999; MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um Direito Civil Constitucional. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. Ano 17, julho-setembro 1993, p. 21-32; FACHIN, Luiz Edson (org.). Repensando os fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998; VON GEHLEN, Gabriel Menna Barreto. O chamado Direito Civil Constitucional. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A reconstrução do Direito Privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no Direito Privado. São Paulo: RT, 2002, pp. 174-210. 11 STF, ADI 3046/SP, Relator: Min. Sepúlveda Pertence, DJ 28-05-2004, p. 492. 12 O termo “fundamentalização” é utilizado por CANOTILHO, J. J. Gomes. Compreensão jurídico-política da Carta. In: Parecer sobre a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia. Coimbra: Faculdade de Direito, 2000.

5

Page 6: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

descrita por esse relato em “gerações”13, é tendência generalizada a progressiva

“fundamentalização formal” de novos e variados conteúdos.14

A fundamentalização-inclusão pode ocorrer, também, em termos materiais.

Para além dos direitos formalmente fundamentais (Título II da Constituição da República),

o sistema comporta direitos fundamentais em razão da importância de seu conteúdo. A

Constituição de 1988 prevê essa possibilidade. De acordo com o § 2º de seu artigo 5º, os

direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e

dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República

Federativa do Brasil seja parte”. Em decisão polêmica, o Supremo Tribunal Federal deu

conseqüência prática ao preceito, ao atribuir o status jusfundamental ao princípio da

anterioridade tributária, positivado no art. 150, III, b, da Constituição da República, isto é,

fora do catálogo expresso.15 Essa fundamentalização-inclusão através da afirmação da

fundamentalidade material demanda recurso a argumentos situados no plano da justificação

dos preceitos constitucionais. No exemplo, a fundamentalização do artigo 150, III, b,

decorreu de se afirmar que o preceito constituía garantia da segurança jurídica.

O processo de fundamentalização-inclusão é decisivo porque, apesar de os

direitos fundamentais não possuírem superioridade formal em relação ao restante do texto

da Constituição16, são superiores sob o prisma material17, daí resultando importantes

13 Há quem diga, por exemplo, com apoio em pesquisa histórica, que, no Brasil, primeiro foram garantidos os direitos sociais, para que depois se garantissem os direitos civis e políticos. Cf. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Sob o prisma formal, contudo, a fundamentalização-inclusão seguiu, no nosso país, os padrões mais gerais do constitucionalismo mundial, com a positivação de direitos civis e políticos nas Constituições de 1824 e 1891, e com a positivação de direitos sociais nas cartas de 1934 e seguintes. A positivação dos direitos de terceira geração, aqui, também só veio a ocorrer quando o século passado já se encaminhava para o seu final, na Constituição de 1988. 14 Essa progressiva ampliação do sistema de direitos fundamentais tem sido objeto de críticas. Aponta-se, especialmente, a tendência a uma “inflação dos direitos fundamentais” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Os direitos fundamentais: problemas jurídicos, particularmente em face da Constituição Brasileira de 1988. Revista de Direito Administrativo, v. 203, jan.-mar., 1996, p. 5). As sucessivas gerações de direitos fundamentais estariam alargando excessivamente a abrangência do conceito, do que resultaria sua desvalorização. 15 STF, ADIN 939-7/DF, Relator Min. Sydney Sanches, DJU 18.03.94. 16 Como é de conhecimento geral, a tese contrária foi formulada por BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra: Almedina, 1994. O STF já teve a oportunidade de rejeitá-la: “A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originarias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de

6

Page 7: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

conseqüências quanto à sua eficácia e estabilidade: (a) os direitos fundamentais, uma vez

que possuem maior “peso abstrato”, gozam de prioridade prima facie na ponderação com

outras normas não inseridas na esfera da fundamentalidade18; (b) além disso, estão

especialmente protegidos (i) como cláusulas pétreas, não podendo ser revogados pelo

constituinte reformador (CRFB, art. 60, §4º, IV); (ii) como princípios constitucionais

sensíveis, justificando a decretação de intervenção federal em caso de sua inobservância

pelos Estados e pelo Distrito Federal (CRFB, art. 34, VII); (iii) como preceitos

fundamentais, cuja proteção conta com o instrumento da Argüição de Descumprimento de

Preceito Fundamental – ADPF (CRFB, art. 102, § 1º); (iv) como normas passíveis de

aplicação imediata, não podendo, em regra, serem interpretados através de conceitos

restritivos de sua eficácia, como o de “norma não-auto-aplicável” (CRFB, art. 5º, § 1º).

umas em face de outras é incompossível com o sistema de Constituição rígida. Na atual Carta Magna, ‘compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição’ (artigo 102, caput), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição.” (ADI 815/DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 10-05-1996). 17 Como esclarece Ana Paula de Barcellos, embora os princípios “não disponham de superioridade hierárquica sobre as demais normas constitucionais, até mesmo por força da unidade da Constituição, é fácil reconhecer-lhes uma ascendência axiológica sobre o texto constitucional em geral” (BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 74). Cf., ainda: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição Federal de 1988. São Paulo Malheiros, 2000, pp. 80-82; SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 123. 18 Como esclarece Alexy, a atividade de ponderação deve considerar o “peso abstrato” de cada princípio envolvido na colisão. Para o autor, os princípios presentes no sistema constitucional não possuem o mesmo “peso abstrato”. Eles conformam um sistema de prioridades prima facie. A Constituição Federal de 1988, quando caracteriza a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político como fundamentos da Republica, atribui-lhes posição hierárquica privilegiada. Isso não significa que escapem à ponderação. Se assim o fosse, perderiam sua característica de princípios. Segundo Alexy, “pode se dizer, de maneira geral, que não é possível uma ordem de valores ou princípios que fixe a decisão fundamental em todos os casos de maneira intersubjetivamente obrigatória. Mas a impossibilidade de uma ‘ordem dura’ deste tipo não diz nada acerca da possibilidade de ordens mais ‘brandas’ e, assim, nada contra a concepção de ponderação. Ordens brandas podem surgir de duas maneiras: (1) através de preferências prima facie em favor de determinados valores ou princípios e (2) através de uma rede de decisões concretas de preferências.” (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 156-7). O peso abstrato, no entanto, é apenas um dos critérios a serem levados em conta na ponderação. Além dele, deve se considerar, ainda, o “grau de interferência” nos princípios e a “confiabilidade das premissas empíricas”. Cf. ALEXY, Robert. On balancing and subsumption: a structural comparison. Ratio Juris, v. 16, nº. 4, dez., 2003.

7

Page 8: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

O segundo fenômeno – o da fundamentalização-releitura –, da mesma forma

que a constitucionalização-releitura, recebe maior espaço apenas no debate recente. Ele

atua através da “eficácia irradiante” dos princípios constitucionais, norteando a

interpretação de todo o restante da Constituição (e, como vimos, da totalidade da ordem

jurídica).19 Hoje, entende-se que os direitos fundamentais, além de sua dimensão subjetiva

tradicional, possuem também uma “dimensão objetiva”.20 Integram não apenas o

patrimônio jurídico de seus titulares imediatos, mas, ainda, o sistema de valores políticos

que compõe a estrutura básica da democracia constitucional.21 Por essa razão, devem se

irradiar por todo o ordenamento. As disposições constitucionais concernentes a matérias

como a administrativa, a tributária, a penal ou a civil devem ser interpretadas de acordo

com as normas jusfundamentais. Assim como há a “interpretação conforme a constituição”,

há também a “interpretação conforme os direitos fundamentais”, aplicável ao interior do

sistema constitucional.22

Os dois processos de fundamentalização mantêm uma relação de implicação

recíproca. Se determinado conteúdo foi incluído no sistema de direitos fundamentais, passa

19 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no Direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 368. 20 Cf.: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 157; SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do novo Estado do Rio de Janeiro, v. XII, 2003, pp. 297ss.; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a aplicabilidade das normas de direito fundamental nas relações jurídicas entre particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 149-156; MENDONÇA, José Vicente Santos de. Neoconstitucionalismo e valores jurídicos: uma proposta de substituição de paradigma (Dissertação de Mestrado em Direito). Rio de Janeiro: UERJ, 2005, esp. capítulo 2. 21 A tese ganhou conseqüência na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. É especialmente citado o caso Lüth (BverfGE 7, 198, J. 15.01.1958). Cf., para o resumo do caso, KOMMERS, Donald. P. The constitutional jurisprudence of the Federal Republic of Germany. 2a ed. Durkham e Londres: Duke University Press, 1997, pp. 361-369. 22 No interior do sistema de direitos fundamentais, Sarlet sustenta, ainda, a necessidade de se proceder a uma “interpretação conforme a dignidade humana”. Cf.: SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem jurídica constitucional brasileira. In: LEITE, George Salomão (org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 199. Cf. também: SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 85ss.

8

Page 9: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

a ser invocado para se interpretar os demais preceitos que compõem a Constituição. Mas o

conteúdo que estes últimos veiculam é eventualmente pressionado por uma força tendente à

sua inclusão, pela via da afirmação de sua fundamentalidade material, no rol daqueles

direitos.

Observe-se o exemplo do direito constitucional ambiental (art. 225 da

Constituição da República). Por um lado, os preceitos constitucionais ambientais devem ser

interpretados em conformidade com o princípio da dignidade humana, deslegitimando-se

interpretações fundadas em teorias ecocêntricas, que desconsiderem a centralidade do

homem na justificação das políticas ambientais. Esse é um movimento de

fundamentalização-releitura do sistema constitucional ambiental pelo princípio da

dignidade humana.23 Há, também, uma justificável pressão discursiva pela

fundamentalização-inclusão do direito a um meio-ambiente ecologicamente equilibrado,

através da afirmação de sua fundamentalidade material. Canotilho chega a caracterizar a

estrutura básica da democracia constitucional como um “Estado constitucional de Direito

democrático e social ambientalmente sustentado”.24 Progredindo a tendência de

fundamentalização-inclusão desse direito, ele certamente exercerá sua eficácia irradiante

sobre o todo do sistema constitucional (fundamentalização-releitura): fundamentalizar-se,

incluindo-se, para fundamentalizar, relendo.

O presente estudo se debruça sobre a abrangência com que a livre iniciativa

se insere no sistema jusfundamental, problematizando a saturação ideológica que

caracteriza essa fundamentalização-inclusão; em seguida, procura estabelecer critérios de

23 No mesmo sentido, as normas constitucionais ambientais devem ser interpretadas em conformidade com o princípio democrático, deslegitimando teorias ecológicas que descredenciam a democracia como arranjo institucional capaz de dar conta da preservação ambiental, como ocorre com as teorias eco-autoritárias, as quais propugnam um governo de tecnocracias ecologicamente comprometidas. Sobre o tema, cf. o excelente estudo de TELLES, Michelle Taveira. Meio ambiente, justificação pública e democracia deliberativa: a legitimação democrática das decisões sobre o risco ambiental (Dissertação de Mestrado em Direito). Rio de Janeiro: UERJ, 2006. Para um inventário do debate entre as teorias ambientais ecocêntricas e as antropocêntricas, cf., também: ALEXANDRE, Agripa Faria. Os ecologistas sabem fazer política? Ambiente e sociedade, nº. 8, jan./jun. 2001. 24 CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado de direito. Lisboa: Gradiva Publicações, 1999, p. 21; CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado constitucional ecológico e democracia sustentada. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

9

Page 10: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

racionalização de sua incidência sobre os demais preceitos que compõem a Constituição

Econômica (fundamentalização-releitura). Contudo, antes de examinar esse objeto, é

necessária uma nota acerca das restrições que devem caracterizar a argumentação jurídica

(sobretudo no exercício da jurisdição constitucional) em um contexto republicano,

democrático e pluralista. É o tema que se passa a desenvolver.

2. 2 – Princípio republicano, razão pública e imparcialidade constitucional

Estabelecidos os sentidos de constitucionalização e fundamentalização,

nosso argumento se apóia nos conceitos de imparcialidade e abrangência constitucional.25

Após apresentá-los, demonstrar-se-á a razão pela qual o constitucionalismo deve se

restringir à esfera da imparcialidade política em uma república democrática e pluralista.

A temática da abrangência e da imparcialidade é central na elaboração

recente da teoria política de John Rawls. As sociedades democráticas contemporâneas são

marcadas pela diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais – “doutrinas

abrangentes”.26 É o fato do pluralismo, resultado inevitável, a longo prazo, do exercício das

faculdades da razão sob instituições livres e duradouras. São doutrinas abrangentes porque

englobam diversos aspectos da existência humana e da organização social, pronunciando-se

não só sobre questões políticas, mas também econômicas e, por vezes, até estéticas e

comportamentais. Tais doutrinas, em muitos casos, divergem profundamente entre si: nosso

contexto se caracteriza pelo desacordo moral. Quando razoáveis27, contudo, apóiam alguns

elementos constitucionais essenciais e princípios básicos de justiça, que se articulam,

25 Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o neoconstitucionalismo econômico e o constitucionalismo democrático. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; BARRETO LIMA, Martônio Mont'Alverne (Org.). Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 26 RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000, p. 45. 27 Há uma distinção entre o fato do pluralismo enquanto tal e o fato do pluralismo razoável. Quanto às visões não-razoáveis – pensemos no fascismo –, Rawls é enfático: “A existência de doutrinas que negam uma ou mais liberdades democráticas é, por si, um fato permanente da vida, ou assim parece. Isso nos impõe a tarefa prática de contê-las – como se contém uma guerra ou uma doença – para que não subvertam a justiça política.” (Ibid., p. 108, nota de rodapé nº. 19).

10

Page 11: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

frente a elas, numa relação de “imparcialidade”.28 Esses princípios e elementos essenciais

movem-se estritamente dentro da categoria do político.29 Por isso, tornam-se objeto de um

consenso sobreposto, consenso político, jamais metafísico, dele excluídos aspectos

particulares de cada doutrina abrangente.30 Considere-se o seguinte comentário de Bobbio

acerca da tradição liberal:

O liberalismo é uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos seus poderes quanto às suas funções. A noção corrente que serve para representar o primeiro é Estado de Direito; a noção corrente para representar o segundo é Estado Mínimo. Embora o liberalismo conceba a Estado tanto como Estado de Direito quanto como Estado Mínimo, pode ocorrer um Estado de Direito que não seja mínimo (por exemplo, o Estado social contemporâneo) e pode-se também conceber um Estado Mínimo que não seja um Estado de Direito (tal como, a respeito da esfera econômica, o Leviatã hobbesiano, que é ao mesmo tempo absoluto no mais pleno sentido da palavra e liberal em economia).31

O liberalismo, além de se pronunciar sobre política, prescreve um modelo

global de organização da sociedade, concebendo, em especial, padrões de regulação

econômica. É, portanto, uma doutrina abrangente, que enfrenta, em muitos aspectos, sérias

críticas. Porém, na sua dimensão política, circunscrita à fórmula do Estado de Direito, foi

capaz de fornecer as bases para o consenso constitucional. No passado, também essa

dimensão enfrentava objeções – sobre elas se erigiram os Estados totalitários e autoritários

do início do século XX. Hoje, a crítica ao Estado de Direito é residual. O arranjo é apoiado,

28 RAWLS, John. Reply to Habermas. The Journal of Philosophy, v. 42, nº. 3, mar., 1995, p. 133. É possível utilizar, sem perda de sentido, a palavra “neutralidade”, ao invés de “imparcialidade”. 29 RAWLS, John. O liberalismo político, cit, p. 27. Sobre o tema, cf. FREEMAN, Samuel. Introduction: John Rawls – an overview. In: FREEMAN, Samuel (ed.). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 32ss. 30 Nas palavras de Rawls: “(...) O liberalismo político procura uma concepção política de justiça que, assim esperamos, possa conquistar o apoio de um consenso sobreposto que abarque as doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis de uma sociedade regulada por ela. A conquista desse apoio permitirá responder à nossa segunda questão fundamental: como os cidadãos, que continuam profundamente divididos em relação às doutrinas religiosas, filosóficas e morais, mantêm, apesar disso, uma sociedade democrática justa e estável? Para essa finalidade, em geral é desejável renunciar às visões filosóficas e morais abrangentes a que estamos habituados a usar para debater questões políticas fundamentais na vida pública. A razão pública – o debate dos cidadãos no espaço público sobre os fundamentos constitucionais e as questões básicas de justiça – agora é mais bem orientada por uma concepção política cujos princípios e valores todos os cidadãos possam endossar” (RAWLS, John. O liberalismo político, cit., pp. 52/53). 31 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 17.

11

Page 12: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

inclusive, por doutrinas que se opõem a outras dimensões do projeto liberal. Isso decorre de

uma importante característica: o Estado de Direito é um dos elementos centrais da

configuração política que permite a cooperação social em um ambiente de pluralismo (o

outro elemento é a democracia). Assim é que se pode afirmar que o Estado de Direito, em

relação às diversas doutrinas abrangentes, está circunscrito à esfera da imparcialidade

política, podendo ser objeto de adesão estável e generalizada.

Na interpretação do texto constitucional, as cortes devem se restringir a essa

esfera. Seu compromisso é com a preservação do Estado Democrático de Direito. Seus

membros só estão autorizados a fazer um “uso público da razão”, recorrendo a argumentos

que possam, ao menos tendencialmente, ser objeto de consenso. Os magistrados não podem

invocar orientações axiológicas cultivadas no interior das doutrinas abrangentes a que se

filiam.32 Do contrário, o exercício da jurisdição constitucional implicaria substituir a

moralidade que obteve adesão da maioria pela moralidade particular dos que compõem um

órgão não-eletivo. Teria lugar um “uso privado da razão” para decidir questões públicas.

Em uma república democrática e pluralista, este é importante critério para a legitimação da

atividade jurisdicional. Figure-se exemplo recente de seu uso.

Na conhecida ADPF nº. 54, requer-se ao STF interpretação conforme a

Constituição do tipo penal do aborto (art. 124 do Código Penal), declarando a

inconstitucionalidade de sua aplicação ao caso do feto anencéfalo. Se a norma penal

32 Cf. RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: RAWLS, John. O Direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Também Habermas analisa o assunto. Só as razões motivadas pela pretensão de entendimento – as que levam em conta o ponto de vista do outro – superam o teste do debate público. Como resultado, excluem-se da argumentação “todos os conteúdos não passíveis de universalização, todas as orientações axiológicas concretas, entrelaçadas ao todo de uma forma particular de vida ou da história de uma vida individual”. De acordo com seu princípio da universalização, “toda norma válida tem que preencher a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo, possam ser aceitos sem coação por todos os concernidos”. Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, pp. 147-149. Da mesma forma que Rawls, Habermas quer explorar as potencialidades de um ponto de vista imparcial em relação às diversas orientações axiológicas. Aqui, também, o consenso se limita à esfera do político: é consenso sobre as “condições procedimentais” que permitem a interação democrática, a despeito da diversidade de valores e formas particulares de vida. Cf. NEVES, Marcelo. Do consenso ao dissenso: o estado democrático de direito a partir e além de Habermas. In: SOUZA, Jessé (org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UNB, 2001, p. 136 ss.

12

Page 13: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

protege a vida humana, e o bem jurídico não está presente, não há razão para limitar a

autonomia privada e a integridade física da gestante. Ao sustentar a tese, a autora alerta

para a impropriedade de se atribuir, na esfera judicial, conteúdo ao bem “vida” de acordo

com doutrinas religiosas particulares, considerando sua alegada “dimensão espiritual”. De

fato: em uma república democrática e pluralista, o Poder Judiciário não pode decidir com

base em argumentos abrangentes; deve se restringir à esfera do político, legitimando-se

pelo uso público da razão. É bastante elucidativa a seguinte passagem do memorial

encaminhado à Corte pela demandante:

O tribunal constitucional deve ser o intérprete da razão pública, dela se valendo para justificar suas decisões. O uso da razão pública importa afastar dogmas religiosos ou ideológicos – cuja validade é aceita apenas pelo grupo dos seus seguidores – e utilizar argumentos que sejam reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais dispostos a um debate franco, ainda que não concordem quanto ao resultado obtido em concreto. O contrário seria privilegiar as opções de determinados segmentos sociais em detrimento das de outros, desconsiderando que o pluralismo é não apenas um fato social inegável, mas também um dos fundamentos expressos da República Federativa do Brasil, consagrado no art. 1º, inciso IV, da Constituição.33

Para além do princípio do pluralismo34, o dever de a Corte Constitucional

fazer um uso público da razão decorre ainda do princípio republicano (artigo 1º da CRFB).

A aplicação imediata do princípio é a vedação da apropriação particular da coisa pública,

mas não só: o princípio é fundamento, também, da imputação às autoridades judiciárias do 33 BARROSO, Luís Roberto. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54: demonstração de seu cabimento. Memorial da autora. In: BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 34 Esse caráter pluralista da República, afirmado logo no art. 1º da Constituição Federal, manifesta-se em diversos outros dispositivos constitucionais. É o que ocorre, por exemplo, quando a Constituição garante a livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV), a liberdade de consciência e de crença (5º, VI), a liberdade de associação (art. 5º), a liberdade sindical (art. 8º), a liberdade de criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos (art. 17), a representação proporcional na Câmara de Deputados (art. 45). Observe-se, contudo, que o pluralismo político não é ilimitado. A Constituição Federal cuida para que não se institucionalizem posições políticas tendentes à negação dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. É por isso que a livre criação de partidos políticos está condicionada à observância do regime democrático, do pluripartidarismo e dos direitos fundamentais (art. 17). Em alguns casos, essa exigência se torna ainda mais contundente. A Constituição proíbe “qualquer discriminação atentatória dos direitos e das liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI) e atribui à prática do racismo a condição de “crime inafiançável e imprescritível” (art. 5º, XLII).

13

Page 14: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

dever de imparcialidade.35 Os juízes devem se manter imparciais em relação aos

jurisdicionados, decidindo os casos não a partir de suas convicções religiosas e filosóficas

particulares, mas com apoio em razões publicamente sustentáveis num ambiente de

pluralismo.36 A questão não é nova. A imparcialidade deriva do próprio caráter secular da

República moderna. Nessa configuração política, Igreja e Estado se separam; e se atribui a

cada indivíduo o direito de professar seu credo com liberdade e segurança. O Estado tratará

a todos com igual respeito, com o que estabelecerá as bases institucionais para que todos se

reconheçam, apesar das divergências, como membros cooperativos de uma mesma

comunidade política.

Todavia, o Estado não decide apenas sobre temas inseridos no campo da

imparcialidade política. Deve organizar a vida econômica e estabelecer padrões mais

específicos de convívio social. No espaço tendente ao consenso não estão todas as questões

que demandam apreciação pública. Por isso, as maiorias eleitas democraticamente não

estão impedidas de dar às leis o conteúdo de suas doutrinas particulares. O que está fechado

ao dissenso é a estrutura básica do Estado Democrático de Direito. Grande parte das

doutrinas que têm lugar no contexto atual são doutrinas razoáveis. Para nosso quadro

35 O tema tem sido especialmente desenvolvido em relação à Administração Pública. Embora a Constituição da República, quando liste, no caput do art. 37, os princípios constitucionais da Administração Pública, não se refira à imparcialidade, mas à impessoalidade, no âmbito infraconstitucional a noção de imparcialidade está prevista na Lei 8.429/92, cujo art. 11 determina: “Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições (...)”. No constitucionalismo estrangeiro, o termo “imparcialidade”, ao invés de impessoalidade, é utilizado, dentre outras, pela Constituição Portuguesa, cujo art. 266, 2 possui a seguinte redação: “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”. O termo aparece, ainda, na Constituição Italiana (art. 97): “As administrações públicas são organizadas segundo as disposições legais, de modo que sejam assegurados o bom andamento e a imparcialidade da administração”. Cf., por todos: ÁVILA, Ana Paula Oliveira. O princípio da impessoalidade da Administração Pública: para uma Administração imparcial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 107 ss. 36 A realização ideal desse dever não é possível. Sabe-se, de longa data, que preconceitos e visões particulares de mundo exercem influência decisiva no processo de tomada de decisões. Daí não resulta que a imparcialidade não possa ser sustentada como idéia regulativa e como dever constitucional, e que não possa se realizar de modo aproximado, dadas determinadas condições institucionais. O controle de seu cumprimento não ocorrerá apenas através do autocontrole metodológico do magistrado, mas, sobretudo, pela troca de argumentos e contra-argumentos. A solução está na intersubjetividade do processo comunicativo. Não é por outra razão que o magistrado tem o dever de justificar publicamente suas decisões: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” (art. 93, IX, CRFB).

14

Page 15: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

teórico, isso significa que elas aceitam os princípios que conformam a democracia

constitucional. No entanto, mesmo essas doutrinas, às vezes, sustentam teses que resultam

em sua violação. Quando tais teses, recepcionadas pela maioria, são convertidas em normas

legais, caberá ao Judiciário invalidá-las. Contudo, como não são eleitos, os magistrados

devem se ater aos padrões republicanos de imparcialidade política, não ostentando a

pretensão de substituir os valores aceitos pela maioria por seus próprios valores

particulares.

É esse esquema conceitual que permitirá a detecção de interpretações

constitucionais “fundamentalistas” da livre iniciativa. A idéia de concepções

fundamentalistas dos direitos fundamentais se traduz pela tentativa de inserir, no campo do

que está fechado ao dissenso político, doutrinas abrangentes particulares. São

fundamentalistas por não tratarem as demais doutrinas como dignas de igual respeito, não

lhes reconhecendo a possibilidade de atribuírem conteúdo às prescrições legais mesmo se

apoiadas pelas deliberações majoritárias. Ao incorporarem pretensões abrangentes ao

conteúdo da livre iniciativa, e, ato seguinte, procederem à fundamentalização-releitura de

diversos dispositivos constitucionais relativos à intervenção do Estado na economia, essas

interpretações cerceiam o espaço democrático e tornam constitucionalmente necessário o

que é politicamente contingente.37 Entre os extremos da abrangência liberal e social-

dirigente38, a última vem deixando de ser base de “fundamentalismos” constitucionais. Se a

metáfora do “retorno do pêndulo” for verdadeira, o Direito Econômico brasileiro caminha

em direção ao extremo do liberalismo econômico-constitucional.39

37 Como um de nós já teve ocasião de registrar, “Constituição não é programa político”. E não é porque isso significaria incorporar, ao plano de uma pretensão de consenso, visões de mundo necessariamente excludentes das demais. Cf. MENDONÇA, José Vicente Santos de. Vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, vol. XII, 2000, pp. 205-236. 38 Para uma crítica ao constitucionalismo social-dirigente a partir dos mesmos pressupostos teóricos, cf.: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 258 ss. 39 Para a metáfora, cf. TÁCITO, Caio. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, vol. 202, out.-dez. 1995, pp. 1-10. É nesse sentido que já se menciona o advento de uma “constituição dirigente invertida”. Cf.: BERCOVICI, Gilberto; MASSONETTO, Luís Fernando. A Constituição dirigente invertida: a blindagem da Constituição financeira e a agonia da Constituição econômica. Boletim de Ciências Económicas, Coimbra, v. XLIX, 2006. No contexto internacional, o advento desse novo constitucionalismo econômico é examinado por JAYASURIYA,

15

Page 16: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

A visão comum da abrangência liberal – é possível chamá-la, numa

especificação terminológica que faz mais sentido para os Estados Unidos, de abrangência

“libertária” ou “libertariana” – relaciona Estado de Direito e liberdade econômica.40 As

conseqüências são variadas, seja a invalidação de políticas redistributivas, a obstrução da

constituição de monopólios públicos ou a vedação de qualquer forma de controle de preços.

Numa postura propositiva, é possível reconduzi-la a vindicações de independência dos

Bancos Centrais – sempre associadas à fórmula do Estado de Direito41 – ou a versões

extremadas de discursos a favor da independência das entidades reguladoras. Voltando

atenção para a dogmática de Direito Econômico, é possível encontrar construções

doutrinárias que, patrocinadas em nosso contexto recente, propõem limitações abrangentes

da liberdade de conformação do legislador ordinário.

Os próximos três itens desenvolvem o ponto.

Kanishka. Globalization, sovereignty, and the rule of law: from political to economic constitutionalism? Constellations, v. 8, n. 4, dez. 2001. 40 Referência obrigatória do constitucionalismo liberal-abrangente é Hayek. O extremismo de algumas de suas posições torna-o uma adequada fórmula-tipo. Em duas obras – O Caminho da Servidão e A Constituição da Liberdade –, propõe uma vinculação ontológica entre o liberalismo econômico e a fórmula do Estado de Direito. Sob o Estado de Direito, o Governo limita-se a fixar regras quanto ao uso dos recursos sociais, deixando aos indivíduos a decisão sobre para quais finalidades serão utilizados. Regras formais, não-indicativas de qualquer fim, que devem ser projetadas para durar por longos períodos, indicando aos indivíduos, de forma geral, sem referência a tempo, lugar ou grupo, qual o curso de ação do Estado em determinadas situações. É por essas razões que o Estado de Direito é incompatível com o planejamento econômico, o controle de preços e a redistribuição de renda. Cf.: HAYEK, Friedrich A. The Constitution of liberty. Chicago: The University of Chicago Press, 2002; HAYEK, Friedrich A. The road to serfdom. Chicago: The University of Chicago Press, 1995. Em outra obra – Direito, legislação e liberdade – reabilita a metafísica jusnaturalista para criticar políticas distributivas de justiça social. Para ele, o mercado é regido por leis naturais; o Estado não pode intervir nos resultados. Enquanto a sociedade permanecer uma ordem espontânea, os resultados particulares do processo social não podem ser considerados justos ou injustos. O papel do Estado se limitaria a garantir a segurança desses resultados espontaneamente obtidos. Cf. HAYEK, Friedrich. Direito, legislação e liberdade. São Paulo: Ed. Visão/UNB, 1985. Em termos ainda mais radicais que os de Hayek, o americano Robert Nozick considera que a redistribuição implica a “violação de direitos das pessoas.” A tributação da renda para efeitos redistributivos assemelhar-se-ia ao “trabalho forçado”. Cf.: NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1991, pp. 188, 191-192. 41 Sobre a derivação da independência de órgãos destinados à gestão da política monetária da noção de rule of law, cf. SEJERSTED, Francis. Democracy and rule of law: some historical experiences of contradictions in the striving for good government. In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (eds.). Constitutionalism and democracy: studies in rationality and social change. Cambridge: Cambridge University Press, 1988, p. 141 ss.

16

Page 17: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

3. – O constitucionalismo liberal-abrangente e a interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa

3. 1 – Imparcialidade e abrangência na interpretação dos monopólios públicos

O tema dos monopólios públicos é exemplo de saturação ideológica na

interpretação da Constituição Econômica. Ao tempo em que se discutia a participação de

empresas privadas brasileiras na construção de gasodutos e no transporte de gás entre a

Bolívia e o Brasil, antes da Emenda à Constituição nº. 9, que resolveu a questão, diversos

juristas foram consultados sobre a possibilidade. A opinião de Nelson Eizirik é exemplar.42

Começa afirmando que, apesar das discussões sobre o caráter social ou liberal da

Constituição de 1988, “não houve modificações de maior relevância, capazes de operar

uma transformação no modelo econômico vigente”.43 Depois, intensifica as conexões

axiológicas entre dispositivos constitucionais que consagram a livre iniciativa. Mas a

proposição liberal-abrangente vem a seguir:

A intervenção estatal na economia, portanto, quando não estiver a serviço do valor liberdade, é excepcional, necessariamente decorrente de dispositivos constitucionais expressos, os quais devem ser objeto de interpretação restritiva, descabendo qualquer aplicação de métodos hermenêuticos analógicos ou que possam importar ampliação da atuação estatal no domínio econômico.44

42 EIZIRIK, Nelson. Monopólio estatal da atividade econômica. Revista de Direito Administrativo, vol. 194, 1993. Cf., para a íntegra: EIZIRIK, Nelson. Monopólio estatal do gás – Participação de empresas privadas na sua execução. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 10, 1995. 43 EIZIRIK, Nelson. Monopólio estatal da atividade econômica, cit., p. 64. 44 Ibid., p. 66.

17

Page 18: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

O parâmetro “interpretação restritiva”45 não ultrapassa o teste republicano,

quando menos porque seria possível intensificar axiologicamente outros dispositivos

constitucionais – por exemplo, os que falam sobre o valor social do trabalho, a redução das

desigualdades regionais ou a soberania nacional –, construindo-se pauta de legitimidade da

intervenção estatal diametralmente oposta. Com os termos amplos da Constituição, é

possível afirmar que a livre iniciativa está funcionalizada aos objetivos constitucionais de

sabor “social”. Como proposição abrangente – de índole social ou liberal –, é viável a

extração de uma pluralidade de sentidos do texto constitucional; mas nenhum configura a

doutrina jurídica que explicará nossa Constituição. Compreendê-la em termos republicanos,

democráticos e plurais significa abri-la a todas as proposições políticas que não contrariem

a estrutura básica da democracia constitucional.

É de fato freqüente a afirmação de que qualquer forma de intervenção do

Estado na atividade privada – seja regulação, intervenção direta, concorrencial ou

monopolística – se expressa em termos constitucionais exaustivos, não admitindo

interpretação extensiva, já que se estaria diante de “exceção à livre iniciativa”.46 A frase

deve ser interpretada com cuidado. As ditas “exceções” à livre iniciativa talvez não 45 Karl Engisch identifica quatro possíveis sentidos em que se pode falar de “interpretação restritiva”. (i) Pode-se falar de interpretação “restrita” no sentido de “imediata”, “rigorosa”, contrapondo-se a interpretação “afastada”. (ii) Também, interpretação “restrita” pode significar a relação entre o sentido de determinado preceito e seu domínio de aplicação: a interpretação restritiva é aquela que refere o preceito a um círculo menor de casos do que a interpretação extensiva. (iii) Ainda, a interpretação restritiva pode se vincular a um conceito material: é nesse sentido que se fala em in dubio pro libertate – nesse sentido, a interpretação “restritiva” equivale ao entendimento de que as leis penais são interpretadas de forma a limitar, tanto quanto possível, o poder punitivo. (iv) Por fim, pode-se falar em interpretação “restritiva” ou “extensiva” vinculando os conceitos às idéias de vontade do legislador e vontade da lei. Assim, é “restritiva” ou “extensiva” a interpretação tanto quanto sejam os processos necessários para adequar o sentido da disposição à vontade de um ou outro. Cf. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 188-197. 46 EIZIRIK, Nelson. Monopólio estatal da atividade econômica, cit., p. 68. Ainda: FERRAZ, Sérgio. Intervenção do estado no domínio econômico geral: anotações. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe (coord.). Direito Administrativo contemporâneo: estudos em memória do professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Belo Horizonte: Fórum, 2004, esp. item 7: “A ênfase repetitiva, aqui abraçada, tem por justificativa a curiosa ocorrência, em lições e julgados, de considerável omissão na aplicação do viés restritivo quando se cuida de regulação ou de fiscalização, como se a interpretação, angusta só se desse no terreno da produção econômica.”; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A ordem econômica na Constituição de 1988. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, vol. 42, 1990, esp. p. 62: “(os institutos de intervenção regulatória) são os mais abundantes, em número de vinte e oito, dispostos taxativamente, como exceções aos princípios gerais acima referidos, e, por isso, não admitem interpretação extensiva ou analógica.”; PEDREIRA, Carlos Eduardo Bulhões. Monopólio – Gás. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 10, 1995, esp. pp. 138-139.

18

Page 19: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

signifiquem exceções em sentido lógico puro, mas, simplesmente, partes do sistema. Não

discreparia do texto constitucional a conclusão de que, na verdade, o constituinte quis

determinar o dever de o Estado atuar nas hipóteses que prevê expressamente, limitando a

liberdade de conformação do legislador ordinário quanto à decisão de não fazê-lo. Além

disso, parece forçado querer invalidar uma atividade interventiva do Estado, expressa

através de lei formal ou de emenda à Constituição, à conta de regra exegética.47 Regras de

interpretação jurídica existem para auxiliar o intérprete no trabalho de reconstrução

normativa. Não podem funcionar como instrumentos de captura doutrinária da vontade

constitucional.48

Nos termos aqui propostos, o que está constitucionalizado e

fundamentalizado não é um conteúdo máximo do princípio – não há nenhuma

“hiperconstitucionalização” da livre iniciativa –, tampouco se preserva um mínimo

insignificante. O que a Constituição garante é a livre iniciativa como fórmula genérica, mas

seus espaços de construção de abrangência são necessariamente polêmicos, e, portanto,

políticos. Calixto Salomão Filho possui inteira razão:

A competência normativa e reguladora atribuída pelo Constituinte ao Estado é ampla o suficiente para incluir intervenções bastante brandas ou bem extremadas na ordem econômica. Essa incerteza não desaparece uma

47 A regra da interpretação restritiva das exceções é geralmente reconduzida, na doutrina brasileira, à obra de MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 227: “As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente”. 48 A questão sobre a correta interpretação “restritiva” das “exceções” é polêmica. Friedrich Muller, por exemplo, critica a regra interpretativa – que ele considera “pseudo-normativa” – por duas razões: a primeira é que se trata de um raciocínio circular, já que olha para o caso concreto, reputa-o como “exceção”, e, só então, “interpreta-o restritivamente”; além disso, porque seu único propósito é “deixar de levar em conta os dados normativos”. Cf. MÜLLER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Paris: PUF, 1996, p. 274. Karl Larenz também não vê o tema com a facilidade com a qual a doutrina brasileira faz uso do mote. Num primeiro momento, afirma que, em termos gerais, a afirmação de que as “disposições excepcionais hão de se interpretar de modo estrito e que não são suscetíveis de aplicação analógica” simplesmente não é correto. O problema já está em saber quando é que se trata de uma “disposição excepcional”. As formulações das proposições jurídicas na lei ou na Constituição de modo algum decidem, desde logo, a este respeito. Nos raros casos em que a tal regra interpretativa tem seu valor, este é “limitado”, não significando que a disposição excepcional deva ser interpretada “tão estritamente quanto possível”, ou que a analogia esteja excluída em todos os casos. O que importa é, na verdade, saber a razão pela qual o legislador excepcionou as hipóteses. Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, pp. 502-503.

19

Page 20: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

vez analisados os princípios gerais estabelecidos no art. 170. De sua dicção não é possível definir com exatidão a extensão nem os limites do intervencionismo. A exata medida em que princípios como ‘livre iniciativa’ e ‘justiça social’ bem como ‘propriedade privada’ e ‘função social da propriedade’ devem conviver é deixada ao trabalho interpretativo do aplicador do Direito. Assim é que a vinculação do princípio da livre iniciativa ao da justiça social tem sido, por exemplo, usada em muitos casos para permitir o controle de preços em áreas sensíveis, como ocorrido com as mensalidades escolares (...).”49

Questão igualmente polêmica é a do veículo formal para a criação dos

monopólios públicos. A Constituição de 1967, com a redação da Emenda Constitucional de

1969, fazia referência à criação por “lei federal”.50 A Constituição da República de 1988

deixou de fazer qualquer menção à criação de monopólios, mas indicou, no art. 177, três

atividades monopolizadas: petróleo, gás, energia nuclear. A doutrina de Direito Econômico,

com exceção de Eros Grau51, entende que, agora, só por emenda à Constituição será

possível a criação de monopólios.52 Ou seja: tratou de enxergar um “silêncio eloqüente”53

no novo texto constitucional. A Constituição não falou da possibilidade de criação de

monopólios porque “evidentemente” seu regime jurídico “é excepcional” ao da livre

iniciativa; sendo assim, criação de monopólios públicos, só por emenda.

49 SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial – as condutas. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 106. 50 Art. 163: “São facultados a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais”. V. ainda, art.146 da Constituição de 1946: “A União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico e monopolizar determinada atividade. A intervenção terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição”. 51 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 285. Eros Grau entende que a ausência de referência a “lei federal” significa que mesmo os Estados, no exercício da competência do art. 24, I da CRFB, poderão instituir monopólios. Em outras palavras, enquanto a maioria da doutrina entende que a ausência de referência significa que agora só por emenda à Constituição Federal é possível a criação de monopólio, o professor paulista centra foco na palavra “federal”. Em estudo recente, a inexigibilidade de emenda é sustentada também por COSTÓDIO FILHO, Ubirajara. O serviço postal brasileiro. Curitiba: J M Editora, 2006, pp. 62 ss. 52 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Monopólio público e domínio público. In: COMPARATO, Fábio Konder. Direito público: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 149; EIZIRIK, Nelson. Monopólio estatal da atividade econômica, cit., p. 63; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Ordem Econômica e desenvolvimento na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: APEC, 1989, p. 69 ss. 53 Sobre o conceito de “silêncio eloqüente”, cf. LARENZ, Karl, op. cit.. p. 525. Veja-se, também, MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade – aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, pp. 318-9. Na Jurisprudência, STF, RE 130.555-SP, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 139/965.

20

Page 21: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

A conclusão não é baseada em argumentos imparciais. Da mesma forma que

a afirmação da “interpretação restritiva” para toda e qualquer restrição à livre iniciativa é

dogmaticamente mistificadora – inventa uma platitude para vender uma proposição

politicamente polêmica –, a sugestão de “silêncio eloqüente” para a vedação de criação de

monopólios por lei ordinária não encontra fundamento numa teoria democraticamente

neutra, que leve a sério os diversos projetos dos membros da comunidade política. A

“intenção constitucional” não é unívoca.54 Sendo assim, há uma preferência em favor dos

instrumentos legislativos que viabilizem maior democraticidade. Se a abrangência liberal

exige emenda à Constituição para a criação de monopólios públicos, e extrema contenção

em sua interpretação, é possível imaginar uma abrangência social-dirigente que buscasse

extrair alguma “exigência de monopolização” para determinados setores, sob o argumento

de que são estratégicos, ou que pretendesse encaixar as atividades do art. 177 da CRFB

dentro de “cláusulas pétreas”. Nenhuma dessas propostas escapa à crítica. São visões

particulares; devem disputar, na arena política, a adesão das maiorias. Vamos a um

exemplo.

A privatização da telefonia no Brasil deu-se com permissão de total

participação de capital estrangeiro (cf. Livro IV da Lei Federal nº. 9.472/92). A Embratel

foi privatizada; seu controle acionário, adquirido, em 1998, pela empresa americana MCI.

A Embratel sempre operou o sistema de satélites Brasilsat, elemento nuclear das

telecomunicações brasileiras e, dentre outras atribuições, responsável pela transmissão das

comunicações militares. Com a privatização, o controle das comunicações militares, antes

feito, do Brasil, através de satélites pertencentes a estatal brasileira, passou a ser realizado,

dos EUA, por empresa privada americana. O tema concerne à soberania nacional: controle

de comunicações militares. Provavelmente muitos sustentariam, aqui, alguma exigência de

monopolização. A soberania está situada nos mesmos espaços constitucionais que a livre

iniciativa: também é princípio constitucional fundamental (art. 1º, I, CRFB) e princípio 54 TÁCITO, Caio. Gás – Monopólio – Concessão. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 7, 1994, pp. 51-57, esp. p. 52: “A vigente Constituição inclina-se, em suma, para o paralelismo de princípios que se devem coordenar em exegese construtiva, integrando a livre iniciativa com a valorização do trabalho, as noções do planejamento estatal e da liberdade de mercado, visando ao equilíbrio harmônico entre liberdade de empresa e a regulamentação da atividade econômica.”

21

Page 22: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

constitucional da ordem econômica (art. 170, I, CRFB). A tese de que a privatização da

telefonia, no Brasil, foi inconstitucional quanto a esse aspecto certamente seria sustentável

se fosse adotada, para a interpretação do princípio da soberania, a mesma interpretação

expansiva com que parte da doutrina brasileira interpreta o princípio da livre iniciativa.

Uma teoria constitucional republicana, democrática e pluralista só se

pronunciaria sobre o assunto para inferir a legitimidade da decisão do legislador ordinário

em um ou em outro sentido. Por um lado, sustentar, nos termos acima, a exigência de

monopolização, é um excesso, pelo fato de o tema estar afastado da esfera de atuação

legítima da jurisdição constitucional. A decisão, ao invés de garantir a autonomia pública (o

que se dá com a preservação do Estado Democrático de Direito), seria autoritária. Por outro

lado, afirmar que o controle do núcleo do sistema brasileiro de comunicações não pode ser

convertido em monopólio público pela via legislativa ordinária é capturar a Constituição

em termos não jusfundamentais, mas fundamentalistas. O princípio da livre iniciativa não

serve para isso. Fato é que não possui nada que o torne materialmente superior aos outros

princípios da Ordem Econômica e aos princípios constitucionais fundamentais; cabe ao

legislador ponderá-los.

Ainda uma palavra sobre o ponto.

O principal argumento utilizado por quem defende a exigência de emenda à

Constituição para a criação de monopólios públicos é, de parte o topos argumentativo da

“interpretação restritiva das exceções”, a própria gravidade da intervenção na livre

iniciativa. Só que o Estado já pode intervir, por lei ordinária, de forma extremamente

intensa: pensemos na Lei Federal nº. 10.826 – o Estatuto do Desarmamento –, que previa,

em seu artigo 35, a proibição de comercialização, em todo o território nacional, de armas de

fogo e de munição.55 De um lado, restrição intensa à liberdade do consumidor e à livre

iniciativa; de outro, a consecução de finalidade pública. E não se falou em emenda à

Constituição. Suponhamos, agora, que o Estatuto do Desarmamento tivesse instituído não a

proibição, mas o monopólio sobre a comercialização de munição. Declarar a 55 Como se sabe, a validade da norma estava condicionada a referendo popular, realizado em outubro de 2005.

22

Page 23: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

inconstitucionalidade do dispositivo, fosse sob o argumento da violação da livre iniciativa,

fosse com base na tese da inadequação do veiculo formal, representaria grave interferência

na esfera de deliberação das maiorias parlamentares, incapaz de superar o teste republicano

da imparcialidade política. A proibição de comercialização é menos grave do que a

instituição de monopólio público: se, num caso, o próprio bem desaparece do mercado, no

outro, o que desaparece é a competição. Se o legislador, respeitado o princípio da

proporcionalidade, pode proscrever o comércio do produto, pode também deferi-lo

proporcionalmente apenas ao Estado.56

3. 2 – Imparcialidade e abrangência constitucional na formulação de um conceito material de serviço público

A busca por um conteúdo material da noção de serviço público é outra arena

na qual constitucionalismos abrangentes de diversos matizes vêm se enfrentando. A questão

está em definir os limites constitucionais à qualificação de determinada atividade

econômica como serviço público, o que repercutirá no regime jurídico aplicável – se

majoritariamente de Direito Público ou de Direito Privado.57 A Constituição da República,

em seu artigo 175, determina que os serviços públicos devem ser estabelecidos por lei e

prestados pelo Estado, direta ou indiretamente. A atividade será submetida,

predominantemente, ao regime de Direito Público, não sendo, em regra, impositiva a

concorrência. 58 Já no seu artigo 173 a Constituição estabelece que o Estado pode exercer

56 O fato de se afirmar que a instituição de monopólios pode ser feita através de lei ordinária não significa desconsiderar que o controle jurisdicional incidente sobre esse veículo deve ser mais rigoroso que o incidente sobre as emendas constitucionais. Na verdade, é possível estabelecer uma escala progressiva de intensidade do controle jurisdicional considerando a legitimidade do órgão que proferiu a decisão impugnada. Sobre esse tipo de parametrização, cf. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 235-238. 57 Cf. JUSTEN FILHO, Marçal. O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre “serviço público” e “atividade econômica”. Revista de Direito do Estado, n. 1, jan./mar. 2006. 58 Por outro lado, não há nada de inconstitucional na admissão da concorrência entre entidades prestadoras, com a formação de um paramercado. Cf. ARAGÃO, Alexandre. Serviços públicos e concorrência. Revista de Direito Público da Economia, vol. 1, n.2, abr./jun. 2003. Em termos práticos, nenhuma prestadora vai aceitar ingressar num mercado submetido a um regime jurídico especial sem garantias contratuais ou sem perspectiva de lucro. A Constituição da República, sob uma ótica não-fundamentalista de interpretação do princípio da livre iniciativa, não impõe ou veda nenhuma dessas composições híbridas; a questão deve ser decidida por deliberação legislativa. O que a Constituição impõe, para certas atividades, é a titularidade pública e a incidência dos deveres especiais de prestação. No particular, concorda-se com Paulo Modesto quanto à impropriedade de se falar num “serviço público prestado sob regime integralmente privado”: nestes casos, a

23

Page 24: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

atividade econômica em sentido estrito, respondendo a “imperativos de segurança

nacional” ou a “relevante interesse coletivo”. Se determinada atividade se caracterizar

como atividade econômica em sentido estrito, submeter-se-á “ao regime jurídico próprio

das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais,

trabalhistas e tributários” (CRFB, art. 173, §1º, II). A concorrência em igualdade de

condições com as empresas privadas é obrigatória.59 A qualificação de determinada

atividade como serviço público ou como atividade econômica em sentido estrito possui,

portanto, grande relevância prática, definindo se a atuação da iniciativa privada está

garantida já no plano constitucional.

No estabelecimento do conceito de serviço público, existem alguns

consensos doutrinários, na maior parte dos casos extraídos de indicações constitucionais

expressas.60 Sem referência a autores, é possível afirmar que determinada atividade

econômica (em sentido amplo) será serviço público quando (I) consistir numa prestação

positiva, com o que se excluem atividades públicas meramente restritivas de direitos (estas

atividades costumam ser classificadas como ínsitas ao “exercício do poder de polícia”61);

(II) sua fruição possa ser, ao menos tendencialmente, aberta ao público em geral; (III) sua

titularidade seja pública, ainda que seu exercício venha a ser delegado a particulares; (IV) despeito das previsões legais, trata-se de atividades privadas submetidas a autorizações modais, vale dizer, autorizações condicionadas ao atendimento de determinadas obrigações de natureza pública. Cf. MODESTO, Paulo. Reforma do Estado, formas de prestação de serviços ao público e parcerias público-privadas: demarcando as fronteiras dos conceitos de serviço público, serviços de relevância pública e serviços de exploração econômica para as parcerias público-privadas. Revista Brasileira de Direito Público, nº. 10, jul.-set. 2005, p. 24. 59 De acordo com o STF, “O artigo 173, par. 1º, (...) visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas que exercem ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem a atividade econômica na mesma área ou em área semelhante.” (STF, RE nº 172.816, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ 09.02.94). O próprio § 2º do art. 173 determina que “as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”. Como enfatiza um comentador refratário à intervenção estatal, “garantiu, assim, o legislador constitucional, zelando pelo primado da livre concorrência, que a ineficiência do Estado empresário não se mascare por trás de privilégios que, em última análise, oneram triplamente o público, como consumidor, como usuário e como contribuinte”. (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 469). 60 Cf. GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003. 61 Não se ignora a crítica à expressão “poder de polícia”. Por todos, cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003. O tema, contudo, não será enfrentado neste momento, optando-se pela terminologia tradicional.

24

Page 25: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

haja submissão, parcial ou, raramente, total, a regime de Direito Público, com a incidência

de obrigações legais específicas – os “princípios” do serviço público: dever de continuidade

da prestação, dever de modicidade das tarifas etc. Como se vê, não há, nesse conjunto,

nenhum elemento que se refira a um âmbito próprio de atuação do Estado como prestador

de serviços. Em vista da variedade de setores em que o Estado, ao longo do tempo, passou a

atuar, grande parte da doutrina acabou entendendo que não era possível formular um

conceito material de serviço público. Preferiu fazê-lo em termos formais: serviço público é

aquilo que o Estado define como tal.62

Nos últimos anos, no entanto, volta-se a tentar definir materialmente o

conceito (ou a “noção”63), vinculando-o a alguma idéia de “essencialidade”64, “coesão

social”65, ou aos direitos fundamentais. Para que determinada atividade seja caracterizada

como serviço público é necessário que ela incida sobre esse âmbito material, caracterizado

pela fundamentalidade. É o conceito proposto por Marçal Justen Filho. Os termos

peremptórios de sua definição de serviço público – “atividade vinculada diretamente a

direito fundamental” – não deixam dúvida: 62 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Natureza e regime jurídico das autarquias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1968, p. 171: “O único critério válido para reconhecer a existência de serviço público consiste em perquirir a vontade legislativa”. Cf. ainda: BARROSO, Luís Roberto. Intervenção no domínio econômico. Sociedade de economia mista. Abuso de poder econômico. Revista de Direito Administrativo, nº 212, 1998, p. 303; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 295; REALE, Miguel. Temas de Direito positivo. São Paulo: RT, 1992, p. 136. 63A palavra “noção”, extraída de Sartre, surgiu como proposta de debilitação teórica de pretensões conceituais fortes. Cf.: GRAU, Eros Roberto. Constituição e serviço público. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 246-267, esp. pp. 264-267. 64 Recorrendo à idéia de “essencialidade”, cf. MUKAI, Toshio. O direito administrativo e os regimes jurídicos das empresas estatais. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 190: “Materialmente, serviço público não pode ser senão aquilo que, dentro de certas circunstâncias de tempo e de lugar, tenha transcendência, pela sua necessidade e essencialidade para a comunidade, além de outros requisitos retirados da natureza das coisas. Portanto, é ele anterior ao Estado mesmo, porque o direito não é exclusivamente criação legal”. Nada obstante o critério venha sendo retomado recentemente, a vinculação da noção de serviço público à de essencialidade tem longa trajetória no Brasil. Cf.: LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo Brasileiro. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1939, p. 69: “Serviço público, - podemos dizer -, é todo serviço existencial relativamente à sociedade ou, pelo menos, assim havido num momento dado.” Agradecemos à Biblioteca da UERJ pelo acesso à coleção Caio Tácito. 65 GRAU, Eros Roberto. Constituição e serviço público, cit., p. 267. Ainda, ARAGÃO, Alexandre Santos de. A dimensão e o papel dos serviços públicos no Estado contemporâneo. (Tese de Doutorado em Direito). São Paulo: USP, 2005, p. 357: “O fundamento último da qualificação jurídica de determinada atividade como serviço público foi e é ser pressuposto da coesão social e geográfica de determinado país e da dignidade de seus cidadãos.”

25

Page 26: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

Há um vínculo de natureza direta e imediata entre o serviço público e a satisfação de direitos fundamentais. Se esse vínculo não existir, será impossível reconhecer a existência de um serviço público. A advertência é relevante porque há atividades estatais que não se orientam a promover, de modo direto e imediato, os direitos fundamentais. Essas atividades não são serviço público e, bem por isso, não estão sujeitas ao regime de direito público. O exemplo é a atividade econômica em sentido estrito, desenvolvida com recursos estatais e sob regime de direito privado. 66

O conceito material exibe duas dimensões: uma positiva – a prestação do

serviço, já que necessária à garantia dos direitos fundamentais, é obrigatória – e outra

negativa – o Estado não pode atuar a esse título se a atividade não se vincula diretamente

aos direitos fundamentais. Vista na sua dimensão positiva, a formulação de um conceito

material se justifica sob o prisma da teoria constitucional democrática: os direitos

fundamentais são condições da democracia, razão pela qual sua prestação é obrigatória, não

podendo ficar aberta à decisão das maiorias. A não-prestação de um serviço público

necessário à concretização de um direito fundamental é anti-democrática, ainda que apoiada

pelos representantes eleitos pelo povo. Trata-se de fundamentalização-releitura do conceito

de serviço público fundada não só na dignidade humana, mas também no princípio

democrático. O exemplo mais evidente, extraído do próprio texto constitucional (art. 208, I,

§§ 2º e 3º), é a prestação de educação fundamental pública e gratuita. Ela deve ser oferecida

pelo Estado, pois é condição para que o cidadão realize seus projetos de vida e participe,

com igualdade de capacidades, do processo político.67 Se o Estado não a oferece, mesmo

que por decisão de representantes eleitos, o Judiciário deve intervir, como vem

regularmente fazendo.

O problema do conceito material de serviço público não está na sua

dimensão positiva, mas em sua dimensão negativa, que consiste em proibir que o Estado

atue, sob o pretexto de estabelecer serviço público, em setores outros que não aqueles

66 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 480. 67 Cf.: BARCELLOS, Ana Paula de. Educação, Constituição, democracia e recursos públicos. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XII, 2003.

26

Page 27: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

vinculados materialmente à proteção dos direitos fundamentais e à promoção da dignidade

humana. Como o conceito não é definido no texto constitucional, não se justifica, sob o

prisma democrático, limitar a possibilidade de o legislador determinar em que áreas o

Estado deve atuar como prestador de serviços públicos. Pelo menos, não é legítimo fazê-lo

com fundamento em construções dogmáticas ideologicamente engajadas, como se a

vontade da doutrina pudesse prevalecer sobre a vontade do legislador. Se a gradação da

intervenção do Estado na economia não está fixada precisamente desde a Constituição,

grande parte dos argumentos que sustentam a inconstitucionalidade da qualificação legal de

determinada atividade como serviço público pressupõe uma interpretação fundamentalista

da livre iniciativa privada. Não se trata de permitir que o legislador subverta o esquema

geral de produção econômico-capitalista desenhado pela Constituição – o que, claro, estaria

vedado: a questão é, antes disso, não desvirtuá-lo até a pretensa fixação constitucional de

um modelo capitalista de intervenção regulatória.

Retornemos ao exemplo do direito à educação. Não há dúvida de que a

educação básica é direito fundamental. Mesmo os que negam fundamentalidade material

aos direitos sociais atribuem-na ao direito à educação básica, lançando mão da construção

do mínimo existencial. Pela própria dicção constitucional (art. 208, I e §1º), o oferecimento

do serviço pelo Estado é obrigatório. O tema da fundamentalidade do ensino médio é mais

controverso, e não será discutido neste momento. Consideremos, agora, o caso do ensino

superior. Raramente alguém o insere na esfera da fundamentalidade material. Não há, aqui,

pretensões de fundamentalização-inclusão. Daí se poderia concluir pela identificação dessa

atividade com a esfera da atividade econômica em sentido estrito? No contexto brasileiro

atual, a tese dificilmente receberia adesão majoritária. Contudo, foi sustentada, de forma

peremptória, no âmbito da OMC. Em sua IV Reunião Ministerial, realizada em novembro

de 2001, em Doha, países como os EUA, a Austrália e a Nova Zelândia propuseram que se

incluísse a educação superior na lista de serviços regulados pelo GATS (General

Agreement on Trade in Services), do que resultaria considerável redução da possibilidade

de atuação dos Estados.

27

Page 28: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

A tentativa foi mal sucedida. A Declaração extraída da reunião de Doha de

2001 previa que os países afiliados deveriam a ela aderir até 31 de março de 2003, o que

não ocorreu. O episódio gerou reações em diversas partes do mundo. No contexto ibero-

americano, por exemplo, foi realizada, em abril de 2002, em Porto Alegre, a IIIª Cumbre

Ibero-americana de Reitores de Universidades Públicas, da qual resultou a Carta de Porto

Alegre.68 Nesse documento, os reitores manifestaram “sua profunda preocupação frente às

políticas implementadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), que favorecem a

comercialização internacional dos serviços de educação, assemelhando-os a simples

mercadorias”. Além disso, reafirmavam “os compromissos assumidos pelos governos e

pela comunidade acadêmica internacional (...) que consideram a educação superior como

um bem público”. A idéia de que a educação superior é um “bem público” foi finalmente

assumida pelo Governo brasileiro, que, no Projeto de Lei de Reforma do Ensino Superior,

recentemente encaminhado ao Congresso Nacional (29 de julho de 2005), fez constar que

“a educação superior é bem público” e “cumpre sua função social por meio das atividades

de ensino, pesquisa e extensão” (art. 3º).

Querer sustentar que a educação superior não pode ser caracterizada como

serviço público, mas como atividade econômica em sentido estrito – sob o argumento de

que não serve diretamente à promoção da dignidade humana, de que não é direito

fundamental, ou de que não é essencial –, e, com isso, buscar limitar a atuação pública –

suscitando, por exemplo, o critério da interpretação restritiva das exceções constitucionais –

, corresponderia a reduzir excessivamente o poder de decisão das maiorias. Mal semelhante

acometeria propostas inversas, no sentido de afirmar que o caráter público da universidade

é cláusula pétrea no Direito Constitucional brasileiro. A tese ora sustentada é a de que, na

definição do que é serviço público, deve-se atribuir ao legislador ampla margem de

conformação. Como reconhecem mesmo os defensores de um conceito formal, o legislador

ordinário deverá respeitar a livre iniciativa, valendo, aqui, “o sentido comum da expressão,

isto é, o prevalente ao lume dos padrões de cultura de uma época, das convicções

68 III Cumbre Ibero-americana de Reitores de Universidades Públicas. Carta de Porto Alegre. Revista Brasileira de Educação, n.º 21, set./out./nov./dez. 2002, pp. 157-158.

28

Page 29: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

predominantes na Sociedade”.69 Mas fazer prevalecer, sobre a vontade do legislador,

doutrinas abrangentes particulares, é, no limite, fraudar a Constituição democrática. Ainda

outro exemplo esclarecerá o ponto.

Na ADPF n. 46, pede-se que o STF declare a não-recepção, pela

Constituição de 1988, da Lei n. 6.538/78, que estabelece o monopólio da União sobre os

serviços postais.70 O principal argumento que sustenta o pedido é o de que a competência

constitucional atribuída à União para “manter o serviço postal” (art. 21, X) não exclui a

possibilidade de o serviço ser prestado, também, pela iniciativa privada. A tese obteve

adesão do Ministro Relator, que, em seu voto, teceu inúmeras considerações que

representam a “abrangência constitucional” que caracteriza a proposta de dupla

fundamentalização da livre iniciativa atualmente ensaiada no Brasil:

A liberdade de iniciativa constitui-se em uma manifestação dos direitos fundamentais do homem, na medida em que garante o direito que todos têm de se lançar ao mercado de produção de bens e serviços por conta e risco próprios, bem como o direito de fazer cessar tal atividade. Os agentes econômicos devem ser livres para produzir e para colocar os produtos no mercado, o que também implica o respeito ao princípio da livre concorrência. Eis uma garantia inerente ao Estado Democrático de Direito.71

Acontece que esse paradigma de Estado interventor, parâmetro para as Constituições brasileiras, de 1934 até o texto primitivo da Constituição

69 MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 648. 70 Embora a lei fale em monopólio, o que poderia levar a se caracterizar a prestação de serviço postal como atividade econômica, o Supremo Tribunal Federal entendeu que se tratava de serviço público, privilegiando o texto constitucional – só que este serviço público seria caracterizado pelo privilégio da exclusividade. Cf. RE 220906/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 14.11.2002: "À empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do artigo 12 do Decreto-lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. Empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido. Execução. Observ ância ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido". 71 ADPF n. 46, Voto (texto sujeito à revisão final) do Relator, Ministro Marco Aurélio de Mello, p. 25-26. Disponível em <http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/arquivosimprensa/VotoRelatorADPF46.pdf>, consulta em 29.06.06.

29

Page 30: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

de 1988, vem sendo alvo de duras e acertadas críticas, porquanto a experiência demonstrou a existência de um Estado ineficiente, paternalista, incompetente ao não atender com presteza à demanda dos cidadãos, causador de vultosos endividamentos públicos, um Estado esbanjador, inchado, incapaz de investir nas demandas sociais mais urgentes – transporte, habitação, saúde, educação, segurança pública –, levando o indivíduo a sentir–se sufocado e cativo nas mãos do Estado-pai e, ao mesmo tempo, achar–se no direito de eternamente ficar clamando do Estado a resposta a todo e qualquer anseio.72

Desse modo, faz-se necessário reconhecer que, diante do texto constitucional de 1988, frente às mutações operadas no Direito Administrativo brasileiro, de acordo com as inovações perpetradas no que tange aos limites de participação do Estado na economia, simplesmente não há mais espaço para se entender recepcionada a Lei nº 6.538/78, especialmente o texto do artigo 9º, no que disciplina o serviço postal como monopólio a ser explorado unicamente pela União.73 Adotemos o modelo de Estado gerencial, em vigor nos países escandinavos, na Inglaterra, na Austrália, como aquele que busca resultados, concede autonomia aos agentes, descentraliza os poderes, muito mais do que a mera observância de regras. Nesse sentido, atender ao princípio da subsidiariedade significa dizer que o que possa ser realizado de maneira satisfatória pelas empresas privadas não deve ser assumido pelo Estado. A eficiência do Poder Público, então, será dimensionada não pelo número de atividades que preste diretamente à população, mas na medida em que consiga manter o mercado plenamente saudável para a livre iniciativa e a livre concorrência das empresas privadas.74

Não pretendemos propor uma solução para o problema suscitado na ADPF –

que é multifacetado, envolvendo desde questões de Direito Constitucional intertemporal até

detalhes sobre as diversas modalidades de serviço postal.75 O que se pretende sustentar é,

72 Ibid., p. 27. 73 Ibid., p. 42. 74 Ibid., p. 50. 75 O julgamento hoje se encontra suspenso em razão de pedido de vista da Ministra Ellen Gracie. Antes, votaram os Ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa e Cezar Peluso, que julgam a ação improcedente. Para os Ministros, o serviço postal é serviço público, não atividade econômica em sentido estrito. Votaram ainda os Ministros Carlos Britto e Gilmar Ferreira Mendes, que deferiam parcialmente o pedido. Para o primeiro, a exclusividade da União se restringia às atividades de comunicação privada e comunicação telegráfica, estando excluídas as eminentemente mercantis. Para o segundo (Min. Gilmar Mendes), não foram recepcionados apenas os artigos 42, 43, 44 e 45 da Lei n. 6.538/78, que estabeleciam o delito de violação do monopólio postal da União. O Ministro entendeu que o caráter aberto dos preceitos violava a reserva legal estrita

30

Page 31: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

tão-só, a inadequação de se argumentar, no exercício da jurisdição constitucional, com

apoio em doutrinas particulares acerca de qual é o melhor modelo de Estado. Em uma

república democrática e pluralista, os espaços próprios desse tipo de argumento são a esfera

pública informal e os fóruns oficiais de decisão majoritária. A vocação dessas razões é

disputar, com outras, a adesão das maiorias. As razões de que podem dispor as cortes

constitucionais são diferentes: razões politicamente imparciais, engajadas na preservação da

estrutura básica do Estado Democrático de Direito. Ao dar a um órgão não-eletivo o poder

de proferir a última palavra acerca de sua interpretação, a Constituição o faz sob a reserva

republicana da imparcialidade política. O poder das Cortes constitucionais é amplo –

envolve, até mesmo, a prerrogativa de anular as decisões do constituinte reformador –, mas

restritas são as razões que legitimam, em concreto, seu exercício. Esse adequado equilíbrio

entre supremacia e contenção é a chave da democracia constitucional.

3. 3 – A crítica democrática à constitucionalização-inclusão do princípio da subsidiariedade

Talvez a tese de maior abrangência liberal seja a que atribui status

constitucional ao princípio da subsidiariedade. De acordo com ele, aquilo que pode ser

feito pelas associações menores e pelos indivíduos não deve ser feito pelo Estado. A idéia

tem origem na doutrina social da Igreja Católica.76 O princípio da subsidiariedade está

formulado na Carta Encíclica Quadragesimo Anno, do Papa Pio XI.77 Na altura de sua

instituída pela Constituição da República em matéria penal. Cf.: STF, ADPF e monopólio das atividades postais – 3, Informativo 409. 76 Também no âmbito do protestantismo podem ser encontradas idéias relacionadas ao princípio da subsidiariedade. Menciona-se, em especial, a noção de “esfera soberana”, formulada pelo teólogo calvinista Abraham Kuyper (1837–1920). No “contexto do Direito Constitucional”, tal noção atua como critério “para identificar instâncias de, por exemplo, totalitarismo político; quer dizer, interferência dos repositórios de poderes governamentais nas vidas privadas dos subordinados e controle excessivo por agências governamentais dos negócios internos de instituições que não o Estado.” (VYVER, Johan D. Van der. The jurisprudential legacy of Abraham Kuyper and Leo XIII. Journal of Markets & Morality, v. 5, n. 1, 2002, p. 211). 77 Os parágrafos em que a Encíclica define o princípio são as seguintes: “Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam até mesmo as pequenas; permanece, contudo, imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem

31

Page 32: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

publicação, em 1931, a Igreja Católica estava engajada na crítica à hipertrofia estatal

promovida pelo socialismo. É como alternativa a esse modelo de Estado que a doutrina da

Igreja assenta, de início, o caráter supletivo da atuação estatal. Sessenta anos depois,

quando o socialismo real já havia sucumbido na Europa do Leste, o princípio da

subsidiariedade voltaria a ser suscitado, na Encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II.

Transpondo os objetivos iniciais, João Paulo II já utiliza o princípio para criticar o Estado

de Bem-estar Social78, tal como vigorava na Europa da segunda metade do Séc. XX:

Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de Estado, o ‘Estado do bem-estar’. Esta alteração deu-se em alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas necessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como ‘Estado assistencial’. As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito, deve-se respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua ação com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum. (§ 48).

A versão contemporânea do princípio da subsidiariedade defende padrões

cada vez mais reduzidos de intervenção estatal.79 Nesse sentido, tem seguido trajetória

bastante similar à do pensamento liberal. Se, na vigência do socialismo real, os liberais

voltavam sua crítica para aquela configuração econômico-política, com seu ocaso, passam a

criticar o próprio Estado de Bem-estar Social. Primeiro, fazem-no pela denúncia da

absorvê-los” (§ 79). “Deixe pois a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam: quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as varias agremiações, segundo este princípio da função ‘supletiva’ dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação” (§ 80). 78 Cf. SILVA, Daniela Romanelli da. Princípio da subsidiariedade. In: BARRETO, Vicente de Paula (org.). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 789-792, esp. p. 790. 79 Cf.: CIMA, Lawrence R.; SCHUBECK, Thomas L. Self-interest, love, and economic justice: a dialogue between classical economic liberalism and catholic social teaching. Journal of Business Ethics, nº. 30, 2001.

32

Page 33: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

ineficiência: mobilizam argumentos pragmáticos centrados no problema dos déficits

públicos. Depois, passam a articular argumentos morais e, para isso, apropriam-se, por

exemplo, das versões mais atuais da doutrina social da Igreja. Sustentada em termos

morais, a subsidiariedade determina que o Estado deixe espaço para a manifestação da

autonomia individual.80 O princípio decorreria da própria dignidade humana.81 Estava

aberto o caminho para se propor sua constitucionalização-inclusão.

Aqui não se pretende discutir o princípio da subsidiariedade como lição de

filosofia moral ou como referência para os projetos de reforma da Administração Pública.

O problema está em que, da Encíclica, alguns desejam alçá-lo à nossa Constituição atual.

Cuidar-se-ia de princípio implícito passível de ser extraído, quando não da dignidade

humana, de alguns preceitos da Constituição Econômica, em especial do art. 1º, IV, que

eleva o valor social da livre iniciativa à condição de princípio constitucional fundamental;

do art. 170, que caracteriza o valor social da livre iniciativa como fundamento da ordem

econômica; e do art. 173, que permite o desempenho estatal de atividades econômicas (em

sentido estrito) apenas para atender a imperativos de segurança nacional e relevante

interesse coletivo.82

80 O argumento central é apresentado da seguinte maneira: “Centesimus Annus é importante porque fornece uma defesa da economia de livre mercado baseada na natureza da pessoa humana. Os seres humanos são livres e buscam a liberdade. Feridos pelo Pecado Original, podemos transcender nossos próprios interesses ao mesmo tempo em que os buscamos. Uma das virtudes da economia de mercado é que ela abre espaço para a liberdade individual e para a livre iniciativa, tornando possível trabalhar para o bem comum de uma maneira que não implique ignorar os interesses pessoais.” (BEABOUT, Gregory R. The principle of subsidiarity and freedom in the family, church, market, and government. Journal of Markets & Morality, v. 1, n. 2, out., 1998, p. 136). 81 Essa fundamentação da subsidiariedade pode ser sintetizada nos seguintes termos: “A subsidiariedade não deriva sua força de um cuidado instrumental com a eficiência social ou uma necessidade de compromisso político. Sua base é personalística, antes que contratual ou utilitária. Ou seja, sua primeira justificação é a convicção de que cada ser humano possui um valor inerente e inalienável – sua dignidade –, e, assim, o valor da pessoa humana é ontológica e moralmente superior ao Estado ou a outros grupamentos sociais. Por causa desse valor, todas as outras formas de sociedade, da família ao Estado à ordem internacional, devem, em última análise, estar a serviço da pessoa humana. Seu propósito deve ser o desenvolvimento do indivíduo.”. (CAROZZA, Paolo G. Subsidiarity as a structural principle of international human rights law. The American Journal of International Law, v. 97, 2003, p. 5). 82 O tema é examinado nos estudos de: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense: 2003; TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 157 e ss.; e MONTEBELLO, Marianna Souza Soares. O princípio da subsidiariedade e a redefinição do papel do Estado no Brasil (Dissertação de mestrado em Direito). Rio de Janeiro: PUC - Rio, 2001.

33

Page 34: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

Os pressupostos necessários à resolução do dilema já foram desenvolvidos:

em uma democracia, a opção por mais ou menos Estado não é, em regra, tema

constitucional, a não ser quando implique a violação comissiva (mais Estado) ou omissiva

(menos Estado) dos direitos fundamentais. No entanto, é fato que a Constituição de 1988

se pronuncia sobre temas econômicos e assume posições no debate ideológico.83 Como já

mencionamos, é recorrente, em setores de destaque topográfico, a referência constitucional

à livre iniciativa. Contudo, a Constituição é igualmente densa na enunciação de princípios

inspirados em ideologias concorrentes à do livre mercado. Logo no artigo 1º, ao lado do

valor social da livre iniciativa, também eleva à condição de princípio constitucional

fundamental o “valor social do trabalho”; no artigo 170, além de voltar a mencionar o valor

social do trabalho, como fundamento da ordem econômica, afirma que esta “tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, e que isso

deverá ser feito observando-se os princípios da “soberania nacional”, da “propriedade

privada”, da “função social da propriedade”, da “livre concorrência”, da “defesa do

consumidor”, da “defesa do meio ambiente”, da “redução das desigualdades regionais e

sociais”; da “busca do pleno emprego”, do “tratamento favorecido para as empresas de

pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no

País”.84 Além desses princípios e objetivos gerais, os elementos de cunho social

conformam, também, regras específicas, que autorizam ou exigem atuação pública.85 Não

há sentido em colher, no texto constitucional, todas as diversas hipóteses em que a

Constituição não apenas permite, mas também determina a presença do Estado. Se

fôssemos identificar as hipóteses em que tal intervenção é requerida no plano social, o rol

ficaria bastante longo.

83 Cf.: SOUZA, Washington Peluso. Conflitos ideológicos na constituição econômica. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 69/70, 1990; BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo Malheiros, 2005, p. 11 ss. 84 Esses compromissos ideológicos podem ser observados em diversos outros preceitos. Ao enumerar os objetivos fundamentais a serem perseguidos pela República (art. 3º), a Constituição menciona: “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (I); “garantir o desenvolvimento nacional” (II); “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (III); “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (IV). Como se vê, a ordem econômica projetada pela Constituição Federal não é ordem liberal, mas compromissória, que, além de possuir elementos liberais, possui elementos marcadamente sociais, intervencionistas e nacionalistas. 85 Cf., p. ex., os artigos 21 e 176 da CRFB.

34

Page 35: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

Podem existir boas razões para que o Estado não assuma tantos encargos

como em outras épocas. Mas esse juízo político não pode ser convertido em imposição

constitucional. Se jamais o seria por exigência abstrata do constitucionalismo democrático,

ainda mais difícil é sustentá-lo com fundamento no texto da Constituição de 1988. De fato:

a Constituição Federal está repleta de “compromissos dilatórios”.86 Como as forças

políticas atuantes na Constituinte não chegaram a um consenso sobre qual seria o modelo

econômico brasileiro, inseriram no texto constitucional disposições abstratas e diretrizes

alternativas, deferindo ao legislador a competência para densificá-las de acordo com as

condições históricas de seu tempo.

Esse caráter dilatório do compromisso constitucional pode ser observado no

caput do art. 173 da CRFB: sem contar os monopólios87, a exploração econômica direta do

Estado será permitida quando decorrente de imperativos de segurança nacional ou de

relevante interesse coletivo. Mas um e outro serão definidos em lei.88 O Constituinte

conferiu ao legislador a possibilidade de determinar quando a intervenção concorrencial do

Estado é admissível. Descartada a alusão hoje pouco freqüente aos imperativos de

86 Sobre o conceito de compromisso dilatório, cf. SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución. Madrid: Alianza, 1996, p. 52 ss. Sobre o caráter compromissório da Constituição Federal de 1988, cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 370 ss.; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo Malheiros, 2003, pp. 44-45, 767-768; SOUZA, Washington Peluso. A experiência brasileira de Constituição econômica, Revista de Informação Legislativa, n. 102, 1989, p. 21 ss.; COMPARATO, Fabio Konder. A ordem econômica na Constituição brasileira de 1988. Cadernos de direito econômico e empresarial - Revista de Direito Público, n. 93, 1990, p. 263 ss.; BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, cit., p. 37 ss. 87 “Quer dizer, o artigo 173 da CF está cuidando da hipótese em que o Estado esteja na condição de agente empresarial, isto é, esteja explorando, diretamente, atividade econômica em concorrência com a iniciativa privada. Os parágrafos, então, do citado art. 173, aplicam-se com observância do comando constante do caput. Se não houver concorrência — existindo monopólio, CF, art. 177 — não haverá aplicação do disposto no § 1º do mencionado art. 173.” (STF, RE 407.099, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 06/08/04). 88 A maioria da doutrina brasileira entende que se trata de lei ordinária, ao passo que Celso Antônio, com base em argumentos próprios, sustenta que é caso de lei complementar. O administrativista paulista entende que, como a intervenção direta concorrencial só pode ser feita por empresas públicas ou sociedades de economia mista, e essas entidades demandam, para sua criação, autorização por lei ordinária, a referência à “forma da lei” do art. 173 só adquiriria sentido quando interpretada de modo a exigir lei complementar. É uma interpretação engenhosa, mas que não conta com muitos adeptos, e, mais ainda, destoa da técnica legislativa constitucional: em todos os casos em que a Constituição exigiu lei complementar para o tratamento de determinada matéria, disse-o com todas as letras. Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 616.

35

Page 36: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

segurança nacional, a polêmica se concentra na expressão “relevante interesse coletivo”. A

expressão não deve ser interpretada de modo a servir como referência constitucional a uma

tese político-econômica de índole liberal. “Relevante” é o que tem importância; o que

sobressai: o termo não possui a mesma valência semântica da expressão “em último caso”.

Assim, é possível reconstruir a norma constitucional do art. 173 em termos imparciais, o

que, de maneira curiosa, significa, simplesmente, interpretá-la em sentido literal. A atuação

econômica direta do Estado está justificada quando existir interesse coletivo

suficientemente importante. O STF89 já teve oportunidade de reafirmar, por conta do caráter

aberto do preceito, a ampla liberdade de conformação legislativa:

Não é possível deixar de interpretar o sistema da Constituição Federal sobre a matéria em exame em conformidade com a natureza das atividades econômicas e, assim, com o dinamismo que lhes e inerente e a possibilidade de aconselhar periódicas mudanças nas formas de sua execução, notadamente quando revelam intervenção do Estado. O juízo de conveniência, quanto a permanecer o Estado na exploração de certa atividade econômica, com a utilização da forma da empresa pública ou da sociedade de economia mista, há de concretizar-se em cada tempo e a vista do relevante interesse coletivo ou de imperativos da segurança nacional.90

89 A jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão segue, de maneira geral, o entendimento aqui proposto. No julgamento do Primeiro Caso sobre Auxílio a Investimentos, em 1954, o Tribunal Constitucional, analisando a constitucionalidade da criação de um fundo destinado ao auxílio à indústria alemã de ferro e carvão, destruída pela Segunda Guerra, através de contribuições compulsórias de industriais e vendedores, sentenciou: “Embora a presente ordem econômica e social seja compatível (...) com a Lei Fundamental, ela não é, de forma alguma, a única possível. Baseia-se numa decisão política defendida pela vontade do legislador, e pode ser substituída ou ultrapassada por uma decisão diferente.” Indo além, em 1971, ao decidir pela constitucionalidade da reprodução, indenizada, mas independente de autorização, de trechos de obras literárias clássicas num manual escolar, concluiu que, “como não existe uma definição prévia e absoluta de propriedade, e porque o conteúdo e a função da propriedade precisam ser ajustados à mudança econômica e social, a Constituição transfere ao legislador a autoridade para definir seu conteúdo e seus limites, (...) desde que respeitado o conteúdo essencial do direito.” Em outras palavras: a linha jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão é a de que, resguardada a estrutura básica do Estado Democrático de Direito, o legislador é livre para traçar as grandes linhas e as práticas específicas da política econômica. Cf. KOMMERS, op. cit., pp. 241-265. Cf., ainda: SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, cit., p. 207 ss. 90 ADI 234, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 15.09.95. No caso, o STF declarou a inconstitucionalidade de normas da Constituição do Estado do Rio de Janeiro relativas à possibilidade de o Estado alienar seu controle acionário sobre sociedades de economia mista: “As ações de sociedades de economia mista pertencentes ao Estado não poderão ser alienadas a qualquer título, sem expressa autorização legislativa” (art. 69, caput); “Sem prejuízo do disposto neste artigo, as ações com direito a voto das sociedades de economia mista só poderão ser alienadas desde que mantido o controle acionário, representado por 51% das referidas ações” (art. 69, parágrafo único). Havia quem entendesse, interpretando esses preceitos, que a alienação de ações das sociedades de economia mista pelo Estado não poderia implicar a perda do controle acionário, ou seja, que as

36

Page 37: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

Observe-se que o princípio da proporcionalidade não pode ser utilizado para

se restringir a possibilidade de o Estado intervir concorrencialmente, ao contrário do que

ocorre, por exemplo, no caso da instituição de monopólio ou no da simples proibição da

atividade. Na hipótese do art. 173, a atuação do Estado, através de empresas públicas e

sociedades de economia mista, submeter-se-á à livre concorrência. As estatais estarão

sujeitas “ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e

obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários” (§1º, inciso II) e “não poderão

gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado” (§ 2º), devendo a Lei

reprimir “o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação

da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. (§ 4º).91 Isso significa que a atuação

estatal não importará limite à livre iniciativa, que também poderá atuar no setor, em

igualdade de condições. Mesmo se atribuindo jusfundamentalidade à livre iniciativa, não há

como mobilizar a proporcionalidade. De fato, nenhum princípio constitucional é limitado

quando o Estado intervém concorrencialmente.

São, portanto, improcedentes as tentativas de se emprestar status

constitucional ao princípio da subsidiariedade. Aqui, como talvez em nenhuma outra área, o

uso de categorias originalmente desenvolvidas para o campo dos direitos fundamentais

converte-se em veículo de captura ideológica do texto constitucional. Não resta dúvida: a

subsidiariedade é proposta como limite não à intensidade, mas à abrangência da

intervenção estatal.92 O princípio se relaciona ao conceito de Estado Mínimo, não ao de

ações com direito a voto só poderiam ser alienadas se “mantido o controle acionário, representado por 51% das referidas ações” (art. 69, parágrafo único). O STF, com razão, entendeu que essa interpretação limitava indevidademente a liberdade de conformação do legislador estadual, dando interpretação conforme ao art. 69, caput, da Constituição fluminense, para determinar que “a autorização, por via de lei, há de ocorrer quando a alienação das ações implique transferência pelo Estado de direitos que lhe assegurem preponderância nas deliberações sociais”. Na verdade, a interpretação afastada configurava verdadeira “vedação de desestatização”, ao estilo do que originariamente dispunha a Constituição Portuguesa. As observações acima valem também em sentido inverso. Se o legislador pretende ampliar a intervenção do Estado na esfera econômica, autorizando a instituição de empresa pública ou de sociedade de economia mista, o Judiciário deve ser bastante contido na apreciação da constitucionalidade dessa iniciativa, pelo menos no que toca aos parâmetros materiais da “segurança nacional” e do “relevante interesse coletivo”. 91 Cf. Lei Federal nº. 8.884/94. 92 Cf., para uma análise sobre o princípio da proporcionalidade como limite à intensidade da regulação, e ao da subsidiariedade como limite à abrangência dos setores regulados: MARQUES NETO, Floriano de

37

Page 38: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

Estado de Direito. Seu compromisso é com o liberalismo econômico, não com o

liberalismo político. A tese da constitucionalização da subsidiariedade não é apenas

insustentável à luz da Constituição atual, mas também sob o prisma do constitucionalismo

democrático. Em suma: trata-se de postulado ideológico particular, não de princípio

constitucional.

4. – Proposições objetivas

Ao final do artigo, é possível apresentar, sob a forma de proposições

objetivas, uma síntese de suas idéias principais.

(I) O processo de dupla fundamentalização por que passa a Constituição de

1988 deve ser legitimado a partir de argumentos restritos à esfera da imparcialidade

política, evitando doutrinas fundamentalistas dos direitos fundamentais. O intérprete

constitucional, em uma república democrática e pluralista, circunscreve-se a um uso

público da razão: não deve recorrer a argumentos compartilhados apenas entre os adeptos

de sua visão de mundo, mas a argumentos que se refiram a valores políticos tendentes ao

consenso entre as diversas doutrinas razoáveis.

(II) Na interpretação constitucional da livre iniciativa, não se deve atribuir

conteúdo ao princípio com base em doutrinas liberais abrangentes de institucionalização do

laissez-faire. Isso corresponderia a excluir doutrinas econômicas razoáveis que, embora

defensoras da economia de mercado, solicitam maior intervenção estatal. Constitucionalizar

o laissez-faire significa afirmar que as maiorias não podem optar por modelos alternativos,

devendo deliberar, apenas, sobre suas formas de implementação. A crítica não difere da que

usualmente é lançada à abrangência social-dirigente: também aqui não se respeita a

possibilidade da divergência razoável.

Azevedo. Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, nº. 4, nov. 2005.

38

Page 39: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

(III) A tese de que os monopólios públicos estabelecidos na Constituição

devem ser interpretados restritivamente, bem como a de que a criação de novos monopólios

só pode ser feita através de emenda constitucional, não se justifica sob a ótica do

constitucionalismo democrático. A Constituição é capitalista, mas não prescreve um

modelo específico de capitalismo. Além da livre iniciativa, a Constituição positiva

inúmeros outros princípios de cunho social, razão pela qual se deve atribuir ao legislador

ampla margem de conformação.

(IV) O mesmo se diga acerca do conceito material de serviço público. A

dimensão positiva do conceito – que institui a obrigação de o Estado atuar quando

necessário para a concretização dos direitos fundamentais – é democraticamente

justificável. Se o Judiciário determina que o Estado deixe de se omitir na prestação de

serviços vinculados à garantia da dignidade humana, age como guardião da democracia. Já

a dimensão negativa do conceito deve ser vista com cautela, pois, em regra, vincula-se a

aportes ideológicos fundamentalistas. O controle jurisdicional, neste campo, deve se

restringir a hipóteses de excesso evidente.

(V) O princípio da subsidiariedade econômica não possui status

constitucional, pois a Constituição da República, tanto em sua redação originária como em

seu texto atual, prevê amplas possibilidades de intervenção do Estado na esfera econômica.

Se não são inconstitucionais as doutrinas que o sustentam, tampouco merecem reprovação

aquelas que o criticam. O lugar do princípio da subsidiariedade é a política ordinária, não a

política constitucional. O princípio pode ser utilizado para que seus defensores conquistem

a adesão das maiorias. Mas estas, em uma república democrática, não podem ter sua

margem de deliberação limitada por ele.

(VI) Na introdução, mencionou-se o consenso imposto. Nossa pretensão foi

a de expô-lo à crítica a partir do exame da abrangência da dupla fundamentalização do

princípio constitucional da livre iniciativa. A rigor, o fundamentalismo na interpretação do

princípio da livre iniciativa contraria o coração do próprio projeto político do liberalismo:

moderação e aceitação da divergência. Como estratégia política, não há problema em se

39

Page 40: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

propor qualquer intensidade razoável à livre iniciativa; mas como razão de decidir, no plano

constitucional, é preciso concebê-la com responsabilidade e moderação. A dupla

fundamentalização do princípio da livre iniciativa não pode significar marginalização

política ou clandestinidade constitucional de projetos econômicos razoáveis, destino quase

certo quando se pretende extrair, “direto da Constituição”, imposições econômicas não-

universalizáveis e politicamente polêmicas.

5. – Bibliografia

AGUILLAR, Fernando Hellen. Controle social de serviços públicos. São Paulo: Max Limonad, 1999.

ALEXANDRE, Agripa Faria. Os ecologistas sabem fazer política? Ambiente e sociedade, nº. 8, jan./jun. 2001.

ALEXY, Robert. On balancing and subsumption: a structural comparison. Ratio Juris, v. 16, nº. 4, dez., 2003.

______. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

ARAGÃO, Alexandre Santos de. A dimensão e o papel dos serviços públicos no Estado contemporâneo. (Tese de Doutorado em Direito). São Paulo: USP, 2005.

______. Serviços públicos e concorrência. Revista de Direito Público da Economia, vol. 1, n.2, abr./jun. 2003.

ÁVILA, Ana Paula Oliveira. O princípio da impessoalidade da Administração Pública: para uma Administração imparcial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra: Almedina, 1994.

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

______. Educação, Constituição, democracia e recursos públicos. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XII, 2003.

BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais: por que não uma Constituição para valer? In: Anais do Congresso Nacional dos Procuradores de Estado, 1986.

40

Page 41: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

______. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54: demonstração de seu cabimento. Memorial da autora. In: BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

______. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004,

______. Intervenção no domínio econômico. Sociedade de economia mista. Abuso de poder econômico. Revista de Direito Administrativo, nº 212, 1998.

______. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). RDA, vol. 240, abr./jun. 2005.

BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no Direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

BEABOUT, Gregory R. The principle of subsidiarity and freedom in the family, church, market, and government. Journal of Markets & Morality, v. 1, n. 2, out., 1998.

BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo Malheiros, 2005.

BERCOVICI, Gilberto; MASSONETTO, Luís Fernando. A Constituição dirigente invertida: a blindagem da Constituição financeira e a agonia da Constituição econômica. Boletim de Ciências Económicas, Coimbra, v. XLIX, 2006.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Compreensão jurídico-política da Carta. In: Parecer sobre a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia. Coimbra: Faculdade de Direito, 2000.

______. Estado constitucional ecológico e democracia sustentada. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

______. Estado de direito. Lisboa: Gradiva Publicações, 1999.

CAROZZA, Paolo G. Subsidiarity as a structural principle of international human rights law. The American Journal of International Law, v. 97, 2003.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

41

Page 42: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

CIMA, Lawrence R; SCHUBECK, Thomas L. Self-interest, love, and economic justice: a dialogue between classical economic liberalism and catholic social teaching. Journal of Business Ethics, n. 30, 2001.

COMPARATO, Fabio Konder. A ordem econômica na Constituição brasileira de 1988. Cadernos de direito econômico e empresarial - Revista de Direito Público, n. 93, 1990.

_____. Monopólio público e domínio público. In: COMPARATO, Fábio Konder. Direito público: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1996.

COSTÓDIO FILHO, Ubirajara. O serviço postal brasileiro. Curitiba: J M Editora, 2006.

EIZIRIK, Nelson. Monopólio estatal da atividade econômica. Revista de Direito Administrativo, vol. 194, 1993.

______. Monopólio estatal do gás – Participação de empresas privadas na sua execução. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 10, 1995.

ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

FACHIN, Luiz Edson (org.). Repensando os fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

FAVOREU, Louis. La constitutionnalisation du droit. In: L'unité du droit: Mélanges en homage à Roland Drago. Paris: Economica, 1996.

FERRAZ, Sérgio. Intervenção do estado no domínio econômico geral: anotações. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe (coord.). Direito Administrativo contemporâneo: estudos em memória do professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Belo Horizonte: Fórum, 2004.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Os direitos fundamentais: problemas jurídicos, particularmente em face da Constituição Brasileira de 1988. Revista de Direito Administrativo, v. 203, jan.-mar., 1996.

FREEMAN, Samuel. Introduction: John Rawls – an overview. In: FREEMAN, Samuel (ed.). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2003

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2006.

______. Constituição e serviço público. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003.

42

Page 43: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

JAYASURIYA, Kanishka. Globalization, sovereignty, and the rule of law: from political to economic constitutionalism? Constellations, v. 8, n. 4, dez. 2001.

HAYEK, Friedrich A. The Constitution of liberty. Chicago: The University of Chicago Press, 2002.

______. The road to serfdom. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.

______. Direito, legislação e liberdade. São Paulo: Ed. Visão/UNB, 1985.

JANSEN, Rodrigo. Princípio da Eficiência Administrativa e Legalidade. Conceituação teórica do princípio da eficiência administrativa e releitura da legalidade e da discricionariedade administrativa à luz da teoria dos princípios. (Dissertação de Mestrado em Direito). Rio de Janeiro: UERJ, 2004.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.

______. O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre “serviço público” e “atividade econômica”. Revista de Direito do Estado, n. 1, jan./mar. 2006.

KOMMERS, Donald. P. The constitutional jurisprudence of the Federal Republic of Germany. 2a ed. Durkham e Londres: Duke University Press, 1997.

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo Brasileiro. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1939.

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, nº. 4, nov. 2005.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Natureza e regime jurídico das autarquias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1968.

______. Curso de Direito Administrativo. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

43

Page 44: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade – aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990.

MENDONÇA, José Vicente Santos de. Neoconstitucionalismo e valores jurídicos: uma proposta de substituição de paradigma (Dissertação de Mestrado em Direito). Rio de Janeiro: UERJ, 2005.

______. Vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, vol. XII, 2000.

MODESTO, Paulo. Reforma do Estado, formas de prestação de serviços ao público e parcerias público-Privadas: demarcando as fronteiras dos conceitos de serviço público, serviços de relevância pública e serviços de exploração econômica para as parcerias público-privadas. Revista Brasileira de Direito Público, nº. 10, jul.-set. 2005.

MONTEBELLO, Marianna Souza Soares. O princípio da subsidiariedade e a redefinição do papel do Estado no Brasil (Dissertação de mestrado em Direito). Rio de Janeiro: PUC - Rio, 2001.

MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um Direito Civil Constitucional. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. Ano 17, julho-setembro 1993.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

______. Ordem econômica e desenvolvimento na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: APEC, 1989.

______. A ordem econômica na Constituição de 1988. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, vol. 42, 1990.

MOREIRA, Vital. A metamorfose da “Constituição Econômica”. Revista de Direito do Estado, nº. 2, 2006.

MUKAI, Toshio. O Direito administrativo e os regimes jurídicos das empresas estatais. Belo Horizonte: Fórum, 2004.

MÜLLER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Paris: PUF, 1996.

NEVES, Marcelo. Do consenso ao dissenso: o estado democrático de direito a partir e além de Habermas. In: SOUZA, Jessé (org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UNB, 2001.

NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

PEDREIRA, Carlos Eduardo Bulhões. Monopólio – Gás. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 10, 1995.

44

Page 45: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a aplicabilidade das normas de direito fundamental nas relações jurídicas entre particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

RAWLS, John. A idéia de razão pública revista. In: RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

______. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000, p. 45.

______. Reply to Habermas. The Journal of Philosophy, v. 42, nº. 3, mar., 1995.

REALE, Miguel. Temas de Direito positivo. São Paulo: RT, 1992.

SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial – as condutas. São Paulo: Malheiros, 2003.

SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem jurídica constitucional brasileira. In: LEITE, George Salomão (org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003.

_____. (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

_____. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do novo Estado do Rio de Janeiro, v. XII, 2003.

______. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1999.

______. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do neoconstitucionalismo. Revista Brasileira de Direito Público, ano 3, n.º 10, jul./set. 2005.

SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución. Madrid: Alianza, 1996.

SEJERSTED, Francis. Democracy and rule of law: some historical experiences of contradictions in the striving for good government. In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (orgs.). Constitutionalism and democracy: studies in rationality and social change. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

45

Page 46: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

SILVA, Daniela Romanelli da. Princípio da subsidiariedade. In: BARRETO, Vicente de Paula (org.). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo Malheiros, 2003.

SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005.

______. A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.

SOMBRA, Thiago. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004.

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o neoconstitucionalismo econômico e o constitucionalismo democrático. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; BARRETO LIMA, Martônio Mont'Alverne (Org.). Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

______. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

SOUZA, Washington Peluso. A experiência brasileira de Constituição econômica, Revista de Informação Legislativa, n. 102, 1989.

______. Conflitos ideológicos na constituição econômica. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 69/70, 1990.

STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2005.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003.

TÁCITO, Caio. Gás – Monopólio – Concessão. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 7, 1994.

______. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, vol. 202, out.-dez. 1995.

TELLES, Michelle Taveira. Meio ambiente, justificação pública e democracia deliberativa: a legitimação democrática das decisões sobre o risco ambiental (Dissertação de Mestrado em Direito). Rio de Janeiro: UERJ, 2006.

46

Page 47: Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação ...§ão.pdf · BARROSO, Luís Roberto. ... com a atribuição de promover o controle administrativo e financeiro do ... O

TEPEDINO, Gustavo. Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, nºs. 6 e 7, 1998-1999.

______. Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

VALLE, André Rufino. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004.

VON GEHLEN, Gabriel Menna Barreto. O chamado Direito Civil Constitucional. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A reconstrução do Direito Privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no Direito Privado. São Paulo: RT, 2002.

VYVER, Johan D. Van der. The jurisprudential legacy of Abraham Kuyper and Leo XIII. Journal of Markets & Morality, v. 5, n. 1, 2002.

***

47