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PESQUISA REALIZADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. É PROIBIDA A REPRODUÇÃO OU A TRANSMISSÃO, CONFORME LEI DE DIREITOS AUTORAIS. A CONFERÊNCIA DE RECONHECIMENTO DE TEXTO (OCR) NÃO FOI REALIZADA. EDITORA PADMA LTDA. Presidente: Osmundo Lima Araújo Revista Trimestral de Direito Civil - RTDC Ano 8, vol. 30, abril a junho de 2007 ISSN 1518-2010 Diretor: Gustavo Tepedino Conselho Editorial António Pinto Monteiro, Antonio Junqueira de Azevedo, Encarn Roca, Jean Beauchard, Luiz Edson Fachin, Pietro Perlingieri, Ri- cardo Pereira Lira, Ruy Rosado de Aguiar Jr. e Sálvio de Figueiredo Teixeira. Editora: Maria Celina Bodin de Moraes Coordenador Editorial: Bruno Lewicki Conselho Assessor Ana Luiza Maia Nevares [Atualidades-Resumos de Teses e Disserta- ções], Anderson Schreiber [Doutrina], Caitlin Sampaio Mulholland [Jurisprudência], Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho [Ensaios e Pareceres], Carlos Nelson Konder [Atualidades-Notrcias], Gisela Sampaio da Cruz [Observador Legislativo], Leonardo Mattietto [Resenha Bibliográfica] Estagiária: Milena Cianni Capa e Projeto Gráfico: Simone Villas-Boas Editoração Eletrônica: TopTextos Edições Gráficas Ltda. Revisão: Fernando Guedes A Revista Trimestral de Direito Civil é produzida no âmbito do convênio de colaboração cientrfica e editorial firmado entre a Edi- tora Padma, a Editora Renovar e o Instituto de Direito Civil-IDe. Contribuições, correspondências e pedidos de intercâmbio pode- rão ser enviados para a Editora PADMA, na Rua Antunes Maciel, 177 - São Cristóvão - RJ -CEP 20940-01 O Tel.: (21 )2580-8596, ou para os e-mails:[email protected]@yahoogroups.com

Fundamentos da responsabilidade civil do terceiro cúmplice

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PESQUISA REALIZADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. É PROIBIDA A REPRODUÇÃO OU A TRANSMISSÃO, CONFORME LEI DE DIREITOS AUTORAIS.

A CONFERÊNCIA DE RECONHECIMENTO DE TEXTO (OCR) NÃO FOI REALIZADA.

EDITORA PADMA LTDA. Presidente: Osmundo Lima Araújo

Revista Trimestral de Direito Civil - RTDC

Ano 8, vol. 30, abril a junho de 2007

ISSN 1518-2010

Diretor: Gustavo Tepedino

Conselho Editorial

António Pinto Monteiro, Antonio Junqueira de Azevedo, Encarn Roca, Jean Beauchard, Luiz Edson Fachin, Pietro Perlingieri, Ri­cardo Pereira Lira, Ruy Rosado de Aguiar Jr. e Sálvio de Figueiredo Teixeira.

Editora: Maria Celina Bodin de Moraes

Coordenador Editorial: Bruno Lewicki

Conselho Assessor

Ana Luiza Maia Nevares [Atualidades-Resumos de Teses e Disserta­ções], Anderson Schreiber [Doutrina], Caitlin Sampaio Mulholland [Jurisprudência], Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho [Ensaios e Pareceres], Carlos Nelson Konder [Atualidades-Notrcias], Gisela Sampaio da Cruz [Observador Legislativo], Leonardo Mattietto [Resenha Bibliográfica]

Estagiária: Milena Cianni

Capa e Projeto Gráfico: Simone Villas-Boas

Editoração Eletrônica: TopTextos Edições Gráficas Ltda.

Revisão: Fernando Guedes

A Revista Trimestral de Direito Civil é produzida no âmbito do convênio de colaboração cientrfica e editorial firmado entre a Edi­tora Padma, a Editora Renovar e o Instituto de Direito Civil-IDe.

Contribuições, correspondências e pedidos de intercâmbio pode­rão ser enviados para a Editora PADMA, na Rua Antunes Maciel, 177 - São Cristóvão - RJ -CEP 20940-01 O Tel.: (21 )2580-8596, ou para os e-mails:[email protected]@yahoogroups.com

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ISSN 1518-2010

C IP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Revista trimestral de direito civil. - v.30 (abril/junho 2007)

. - Rio de Janeiro: Padma, 2000-. v.

Gustavo Tepedino Trimestral

1. Direito - Periódicos brasileiros. 95-1227.

CDU - 34(07)

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Fundamentos da responsabilidade civil do terceiro cúmplice l

_----------PAULA GRECO BANDEIRA

1. Distinção estrutural entre situações jurídicas reais e obrigacionais. Princípio da Relatividade dos Contratos. Noção de parte e de terceiro. Relatividade e oponibilidade dos contratos. Eficácia interna e externa das obrigações. Aplicação direta das normas constitucionais às relações privadas. Funcionalização das situações jurídicas subjetivas patrimoniais aos valores constitucionais; 2. Fundamentos da responsabilidade civil do terceiro cúmplice: a função social do contrato, o abuso de direito e a boa-fé objetiva; 3. Natureza da responsabilidade civil do terceiro cúmplice. Requi­sitos para a configuração do dever de reparar. O problema da cláusula penal. Interpretação do art. 608 do Código Civil. Precedentes judiciais.

I. DISTINÇÃO ESTRUTURAL ENTRE SITUAÇÕES jURfDICAS REAIS E

OBRIGACIONAIS. PRINCfplO DA RELATIVIDADE DOS CONTRATOS. NOÇÃO DE

PARTE E DE TERCEIRO. RELATIVIDADE E OPONIBILlDADE DOS CONTRATOS.

EFICÁCIA INTERNA E EXTERNA DAS OBRIGAÇÕES. APLICAÇÃO DIRETA DAS

NORMAS CONSTITUCIONAIS ÀS RELAÇÕES PRIVADAS. FUNCIONALlZAÇÃO DAS

SITUAÇÕES jURfDICAS SUBJETIVAS PATRIMONIAIS AOS VALORES

CONSTITUCIONAIS

o presente trabalho investigará a possibilidade, no ordenamento jurídico brasileiro, de

responsabilização civil do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual levado a

cabo pelo devedor - o chamado terceiro cúmplice2 - violando o direito de crédito alheio,

ao celebrar com o devedor contrato incompatível com a obrigação por este previamente

1 A autora agradece especialmente ao Professor Gustavo Tepedino, cuja discussão das idéias aqui

expostas revelou-se imprescindível para o desenvolvimento deste trabalho. Ao Anderson Schreiber, pelo

incentivo. E a Milena Donato Oliva, pela preciosa reflexão conjunta.

2 A designação terceiro cúmplice não é unânime na doutrina, tendo sido adotadas referências distintas

ao mesmo fenômeno, como "responsabilidade delitual do terceiro em relação a um contratante" (Henri

Lalou), "tutela aquiliana do credor contra terceiros" (Guido Tedeschi), "tutela aquiliana do crédito",

"tutela externa do crédito" etc.

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assumida. Tal análise não englobará as hipóteses em que o terceiro pratica um ilícito contra

a pessoa do devedor (ex. homicídio ou lesões corporais) ou em relação à coisa objeto da

prestação a qual o devedor se obrigou (ex. destruição ou furto), tornando impossível o

cumprimento da obrigação.

Em primeiro lugar, torna-se imprescindível a análise da distinção estrutural entre as

situações jurídicas reais e as creditórias, que embasou o surgimento do princípio da relativi­

dade dos contratos.

Tradicionalmente, atribui-se especial relevância à distinção entre direitos reais e obriga­

cionais, a qual tem por base a estrutura destas situações jurídicas. Diz-se que os direitos reais

têm por objeto imediato uma coisa, com a qual estabelece seu titular um liame direto, sem

intêrmediári03, podendo dela extrai todas as vantagens e utilidades sem a necessidade de

cooperação de outro sujeito. Além disso, a situação jurídica assim constituída tem caráter

absoluto, criando dever jurídico negativo, prevalecente erga omnes, de respeitar o exercício

do direito real pelo seu titular.4 Afirma-se, ainda, que os direitos reais são taxativos, admitin­

do-se como tais apenas aqueles previstos em lei. Vige, portanto, o princípio do numerus

c/ausus, segundo o qual se confere ao legislador ordinário competência exclusiva para a

• criação de direitos reais, aos quais, por sua vez, atribui conteúdo típico, daí decorrendo um

segundo princípio, corolário do primeiro, o da tipicidade dos direitos reais. Este último

princípio diz com a estruturação dos poderes conferidos ao respectivo titular. 5 Desse modo,

enquanto a taxatividade concerne à fonte do direito real, a tipicidade se refere à modalidade

de seu exercício. 6 Costuma-se fundamentar, assim, que, ao contrário dos direitos de crédito,

3 Segundo Julien SCAPEL, "Ie principal critere de distinction du droit réel et du droit personnel tient à

la structure de ces droits. Le droit personnel est un droit médiat car le créancier ne peut obtenir la

prestation consistant à donner, faire ou ne pas faire, objet du droit, que par I'intermédiaire du débiteur.

A I'opposé, le droit réel est un droit immédiat entre une personne et une chose. Le titulaire de ce droit

peut tirer toutes les utilités économiques de la chose sans intermédiaire. Cette premiere différence est

fondamentale. Elle constitue la base de la distinction" (La notion d'obligation réelle. Aix-en-Provence:

Presses Universitaires D'Aix-Marseille, Faculté de Droit et de Science Politique, 2002, p. 30).

4 TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 58.

5 TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária, cit., p. 82.

6 GONDINHO, André Pinto da Rocha Osório. Direitos reais e autonomia da vontade: o princfpio da

tipicidade dos direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, Biblioteca de teses, 2001, p. 16.

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submetidos ao princípio da liberdade da autonomia privada para a sua criação, os direitos

reais, por serem oponíveis erga omnes, devem ter seus contornos estipulados em lei.7

Os direitos obrigacionais, ao seu turno, possuem, entre o credor e o objeto do direito (a

prestação), o devedor, do qual aquele depende para a satisfação de seu direit0 8 Em outras

palavras, para a satisfação do direito obrigacional afigura-se imprescindível a cooperação do

devedor.9 No mais, as situações obrigacionais possuem caráter relativo, vinculando apenas

credor e devedor, o que se contrapõe à natureza absoluta das situações jurídicas reais w

Assim, afirma-se que os direitos obrigacionais se referem a um dever específico dirigido a

uma pessoa determinada ou determinável, cujo objeto consiste em um comportamento seu

(fazer, não fazer ou dar). Já os direitos reais correspondem a um dever geral de abstenção

(obrigação passiva universal), que atinge toda a coletividade. 11

Conforme leciona Pietro Perlingieri:

A situação creditória, não tendo uma relação de inerência ou de imanência com uma

res, se realiza mediante o adimplemento e o alcance do resultado. Característica

saliente é o comportamento devido: a prestação. Na situação dita real a utilidade, o

alcance do resultado útil para o titular se identifica na relação de imediatidade entre .,

situação e utilidade oferecida pela res, sem que, normalmente, seja necessária a

intervenção por parte de um terceiro; na situação dita creditória o interesse a favor do

titular se realiza exclusivamente mediante a atividade, o comportamento do sujeito

obrigado. Característica única e essencial do direito de crédito é a intermediação

7 TEPEDINO, Gustavo. Autonomia privada e obrigações reais. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006, t. 2, p. 287.

8 TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária, cit., p. 58.

9 v., por todos, NONATO, Orosimbo. Curso de obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. 1, p. 43.

10 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, 10. ed. Coimbra: Almedina, 2000, v. 1,

p.166.

11 João de Matos Antunes VARELA ensina que" não basta, porém, o caráter absoluto do poder do titular

para definir o direito real". Isso porque são poderes absolutos "os direitos de autor e os direitos de

personalidade, por exemplo, que todavia não se confundem com os direitos reais". Dar a doutrina clássica

definir o direito real como" um poder imediato sobre a coisa, não só para caracterizar o objecto especffico

destas relações (as coisas), mas principalmente para destacar a ligação directa do titular com a res" (Das

obrigações em geral, cit., p. 182).

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mediante a prestação; intermediação que, quando está presente nas situações reais,

assume um papel complementar. 12

Na esteira desta distinção estrutural entre situações subjetivas reais e obrigacionais, a

doutrina clássica costuma afirmar que o contrato é res inter alios acta, ali;s neque nocet neque

prades/, vale dizer, os efeitos (aí incluídos direitos e obrigações) dele advindos atingem apenas

as partes que consentiram na criação do vínculo obrigacional, não podendo prejudicar, nem

beneficiar terceiros. Nas palavras de Carvalho Santos,

"em regra, as obrigações não podem ser opostas a terceiros, nem por eles invocadas.

É lógico que assim seja, porque sem o consentimento válido não pode ter existência o

ato Jurídico, nem por conseguinte, a obrigação, que, para essas pessoas que na sua

formação não intervierem, é como se não existísse. 13"

Consagra-se, assim, o princfpio da relatividade dos contratos, que, embora não estivesse

positivado no Código C ivil de 1916,14 foi fartamente desenvolvido pela doutrina pátria,

encontrando guarida também em ordenamentos estrangeiros, a exemplo do art. 406, n° 2

G do Código Civil português,15 do art. 1.372 do Código Civil italiano 16 e do art. 1.165 do

Código Civil francês H

12 Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional. Tradução Maria Cristina De Cieco. 2.

ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 203. v., também, VAHELA, João de Matos Antunes. Das obrigações

em geral, cit., p. 183.

13 CAHVALHO SANTOS, J. M. Código civil brasileiro interpretado, 13. ed. Hio de Janeiro: Freitas Bastos,

1988, v.13, p. 14; grifou-se.

14 O Código Civil de 2002 também não dedicou um dispOSitivo especifico à diSciplina do principio da

relatividade dos contratos. Como ressaltado por Teresa NEGHEIROS, "no Código Civil de 1916, não havia,

como não há no novo código, um dispositivo que expressamente dispusesse sobre a ineficácia do contrato

em relação a terceiros, embora a teoria geral dos contratos a tenha como um verdadeiro dogma em

matéria contratual. A eficácia relativa dos contratos (à falta de disposição expressa no Código Civil) era

dedUZida, a contrario sensu, do disposto no art. 928: 'A obrigação, não sendo personalfssima, opera,

assim entre as partes, como entre os seus herdeiros'" (Teoria do contrato: novos paradigmas, 2. ed. Hio

de Janeiro: Henovar, 2006, p. 213).

15 "Art. 406, n° 2. ( ... ) em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos

especificamente previstos na lei" .

16 "Art. 1.372. Efficacia dei contratto. II contratto ha forza di legge tra le parti. Non puà essere sei oito

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RTOC • VOto 30 • ABRIJUN 2007

Para fins de aplicação deste principio, compreende-se por parte contratual o "centro di

interessi obiettivamente omogenei" 18, podendo ser composta" di una, come di due, tre o

piú persone (che rispetto a quel dato contratto esprimono una comune posizione di interes­

se)" 19 A noção de parte contrapõe-se a de terceiro, assim entendido como "tutti i sogc)etti

che non ne sono 'parti', e che purtuttavia possono essere in qualche modo interessati ad esso

o toccatl indirettamente dai suoi effeti" 20

A partir da premissa, estabelecida pelo principio da relatividade, de que só o devedor

está adstrito ao dever de prestar, a doutrina quase unânime concluiu que o contrato poderia

ser lesionado apenas pelo devedor, não se admitindo que terceiros pudessem violá-lo Z1 Na

doutrina estrangeira, Adriano de Cupis afirma que, em princípio, a tutela do crédito se exaure

no âmbito interno da relação contratual, inexistindo dever geral de abstenção Imposto aos

terceiros no sentido de não lesionarem o crédito alheio, não admitindo, por isso, que terceiros

sejam responsabilizados pela sua violação n

No mesmo sentido, sublinha Antunes Varela que

"Se o devedor não cumprir, porque a tal tenha sido instigado por terceiro, é ele, e não

che per mutuo consenso o per cause ammesse dalla legge (1671,2227).11 contratto non produce effetto

rispetto ai terzi che nel casl previstl dalla legge (1239, 1300 e seguente, 1411, 1678, 1737)".

17 "Art. 1.165. Les conventions n'ont d'effet qu'entre les partles contractantes; elles ne nUlsent pOlnt

au tiers, et elles ne lui profitent que dans le cas prévus par I'article 1.121 "

18 ROPPO, Enzo. /I contratto. Bologna: Socletà Editrice 11 MUlino, 1977, p. 77.

19 ROPPO, Enzo. /I contratto, cit., p. 77.

20 ROPPO, Enzo./1 contratto, Clt., p. 77. Sobre o tema, v. TRABUCCHI, Alberto. /stituzioni di diritto civile.

ventiduesima edizlone agglornata con le riforme. PADOVA: CEDAM. Casa Editrice Dott. Antonio Milani,

1977, p. 676-677.

21 A representar exceção a esta tendência, no direito brasileiro, Serpa LOPES (Curso de direito civil: fontes

das obrigações: contratos, 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001, v. 3, p. 134) e Alvino LIMA (A

interferência de terceiros na violação do contrato. In: Revista dos 7ribunais. São Paulo: editora Revista

dos Tribunais, v, 315, p. 17-18) cogitaram da possibilidade de responsabilização civil do terceiro cúmplice,

com base na oponibilidade dos contratos.

22 DE CUPIS, Adriano. /I danno: teoria generale dei la responsabilità civile. Milano: DOTT. A. Giuffre

Editore, 1970, p. 66-68, O autor, entretanto, admite a responsabilidade de terceiro dentro de certo limite,

na hipótese em que o terceiro obstaculiza a satisfação da prestação devida pelo credor com vistas a

usurpar sua titularidade ou o seu exercfcio do direito de crédito (/I danno: teoria generale dei la respon­

sabilità clvile, cit., p, 72 e 55.).

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este, que terá que indemnizar o credor. Mesmo que o não cumprimento resulte da

colaboração de terceiro com o devedor (realização de compra e venda com violação

do pacto de preferência que vinculava o alienante; celebração do contrato de trabalho

com o empregado que deixa culposamente de cumprir o contrato com outra empresa,

por causa de nova convenção), só este último, e não o terceiro (que nenhum dever

assumiu perante o lesado), responde pela violação cometida [ ... ] Além de nenhum dever

juridico ter assumido ou lhe ser imposto por lei em face do credor, o terceiro pode

inclusiva mente ter partido da idéia de que o devedor prefere sujeitar-se às sanções do

não cumprimento da primeira obrigação contraida, para cumprir a segunda ou celebrar

o contrato posterior. 23 "

Luiz da Cunha Gonçalves, na mesma direção, refuta cada uma das posições dos que

defendem a responsabilidade civil do terceiro cúmplice, entendendo pela irresponsabilidade

do terceiro. De sua minuciosa explicação destaca-se a seguinte passagem:

"Cada contrato é independente de outro. Um contrato só pode ser violado por quem

nêle se obrigou (V. art. 705) e não por um terceiro; e, posto que do contrato tenha

nascido para um dos contraentes determinado direito, êste é relativo, é direito de

obrigação; não é direito real, ou direito invocável erga omnes, que por tôda a gente

haja de ser respeitado. Portanto, um terceiro, não podendo violá-lo, porque não lhe

pode ser oposto, também não incorre em responsabilidade extracontratual. [ ... ] Em

suma, temos por inexacta a construção juridica francesa da responsabilidade do terceiro

na inexecução do contrato. Nos códigos estrangeiros, também, não se encontra o

aspecto civilistico 24"

23 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, cit., p. 179. Contudo, o autor admite a

possibilidade de responsabilização do terceiro nos seguintes termos: "Para que o terceiro, ao impedir ou

perturbar o exerdcio do crédito, aja ilicitamente, violando já o direito do credor, é necessário que a sua

actuação exceda a margem de liberdade que a existência dos direitos de crédito ainda consente a

estranhos à relação, pisando nomeadamente os terrenos interditos pelo abuso do direito (art. 334°)"

(Das obrigações em geral, cit., p. 177).

24 Tratado de direito civil em comentário ao Código Civil português, 2. ed. São Paulo: Max Limonad,

1957, v. 12, t. 2, p. 952-953 e 961. A despeito de seu entendimento, o autor logo em seguida admite

que já se tenham manifestado algumas tendências legislativas que confirmam a responsabilidade do

terceiro na inexecução dos contratos.

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Contudo, tal conclusão não colhe e revela, como constatado por Menezes Cordeiro, uma

petição de princípio, na medida em que se afirma que os créditos não seriam oponíveis a

terceiros porque relativos, sendo que seriam relativos porque apenas oponíveis inter partes. 25

Em outras palavras, a doutrina clássica, partindo da premissa verdadeira de que só o devedor

está adstrito ao dever de prestar, deduz que o terceiro não pode interferir no crédito alheio,

conclusão esta que a premissa adotada não autoriza.

Em doutrina, é possível identificar duas principais linhas de pensamento que procuraram

desmistificar a ilação acima referida de que os terceiros não poderiam interferir nos contratos,

tendo em conta o princfpio da relatividade. A primeira delas, marcadamente francesa, situa

o problema na sede dos contratos, traçando a distinção entre relatividade e oponibilidade. A

segunda, por sua vez, enfrenta a questão em torno do direito de crédito, afirmando a

existência de uma eficácia interna e outra externa das obrigações. De logo, esclareça-se que

independentemente da teoria que se adote, do ponto de vista prático, chega-se ao mesmo

resultado, qual seja, o reconhecimento da existência de um dever de terceiros de não interferir

no contrato ou no direito de crédito alheio. 26

Para os adeptos da primeira teoria, portanto, afigura-se imprescindível diferenciar-se o

princípio da relatividade da oponibilidade dos contratos. O princípio da relatividade significa

que os efeitos do vínculo contratual, vale dizer, a criação, extinção ou modificação de

situações jurídicas subjetivas, situam-se no plano interno dos contratantes, atingindo apenas

as partes que consentiram na formação do contrato. Dito por outras palavras, os direitos e

deveres decorrentes do contrato vinculam apenas as partes, não obrigando, tampouco

beneficiando terceiros. A oponibilidade, todavia, encontra-se em plano diverso, qual seja, o

da existência do contrato, terreno em que o princfpio da relatividade não se aplica, uma vez

que dizer que os efeitos não atingem terceiros não significa que o contrato não exista em

face de terceiros. 27 A oponibilidade decorre do reconhecimento de que o contrato é um fato

social. o qual reflete uma realidade exterior a si próprio, uma gama variada de interesses,

25 CORDEIRO, Menezes. Direitos reais. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1979, v. 1, p. 434.

26 A constatação é de SANTOS JÚNIOR, E. Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de

crédito. Coimbra: Almedina, 2003, p. 436, 438 e 439.

27 Em elucidativa explicação ao teor do art. 1.165 do Código Civil francês, afirma Mazeaud: "L'article

1165 ne dit point que le contrat n'existe pas vis-à-vis de tiers, mais seulement qu'il n'a pas d'effetvis-à-vis

des tiers. II importe de saisir la distinction" (H. e L. MAZEAUD, Traité théorique et pratique de la

responsabilité civile délictuelle et contractuelle, t. I, 3. ed., 1938, p. 296).

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RTOC • VOL. 30 • ABR/JUN 2007

relações, situações econômico-sociais, não se limitando a um mero conceito jurídico, 28 Deste

modo, impõe-se a todos - partes e terceiros - a necessidade de reconhecerem a existência

do contrato e, conseqüentemente, de o respeitarem 29 Na lição de De Page:

"Au seil même de la matiére, et sous peine de la rendre totalement incompréhensible,

une distinction capitale s'impose, en ce qui concerne le principe de la relativité des

contrats: la distinction entre les effets internes de I'acte, et son existence, l.e pnnClpe

de la relativité des contrats n'a pas, en effet, un sens absolu, 11 ne signifie pas que les

tiers peuvent et doivent se désintéresser à tous égards d'un contrat passé entre d'autres

personnes, Le principe de la relativité ne concerne que les effets internes du contrat,

les DROITS et OBLlGAflONS qui en découlent. Ce sont ces droits et obligations seuls

qUi sontpersonnels aux parties, et qui ne concernent pas les tiers, Mais pour le surplus,

si on se place sur le terrain de I'existence du contrat, I'article 1165 ne s'applique plus,

et c'est même un principe tout différent, celui d' opposibilité (et non celui de la relativité)

qui joue, A cet égard, ainsi qu'on I'a três justement remarqué, I'existence du contrat

est un FAIT dont les tiers doivent, en principe, tenir compte 30"

A propósito, Simone Calastreng afirma que os direitos reais, em razão da publicidade

que lhes é inerente, seriam dotados de oponibilidade absoluta, ao passo que os direitos de

28 Neste sentido, confira-se ROPPO, Enzo, /I contratto, cit., p, 9,

29 Como afirma SimoneCALASTRENG: "L'effet d'un contrat, c'est le plein accomplissement, c'est la

réalisation des volontés qui le créent, c'est, nous I'avons vu, d'apporter des changements choisls et

préClSés dans I'activité normale des hommes ou dans leurs biens, L'opposabilité d'un contrat, c'est la

nécessité pour tous, parties et tiers, de reconnaltre son existence et de la respecter, dans sa réalité légale,

C'est par conséquent le devolr qui incombe à tous d'ajouter foi à son contenu" (La relativité des

conventions: étude de I'article 1165 du Code Civil, ci1., p, 363), Na doutrina nacional, v, LOPES, Miguel

Maria de Serpa, Curso de direito civil: fontes das obrigações: contratos, cit., p, 134; e FERREIRA DA SILVA,

Luis Renato, A funçáo social do contrato no novo código civil e sua conexáo com a solidariedade social,

In: SARLET, Ingo Wolfgang (coord,), O novo Código Civil e a Constituiçáo, Porto Alegre: Livrana do

Advogado, 2003, p, 139,

30 DE PAGE, Henri, Traité élémentaire de droit civil belge, 1 Dome ed, Bruxelles: ttablissementes tmile

Bruylant, 1948, 1. 1, p, 154, Confira-se, ainda, na doutnna francesa, BACACHE-GIBEILI, Mireille, La

relativité des conventions et les groupes des contrats, In: Bibliothéque de Oroit Privé, 1. 268, Paris: LGDJ,

1996, p, 85,

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crédito teriam oponibilidade relativa, na medida em que o respeito, por parte de terceiro, a

este direito dependeria de seu prévio conhecimento31

De outra parte, a segunda corrente doutrinária antes referida afirma que as obrigações

são dotadas de um efeito interno, dirigido contra o devedor, e um efeito externo consubs­

tanciado no dever imposto aos terceiros de respeitarem o direito de créditoiJlheio, não lhes

sendo dado impedir ou dificultar o cumprimento da obrigação 32 O direito de crédito en­

quanto direito subjetivo deve ser respeitado por todos, dele se irradiando o dever geral de

abstenção imposto aos terceiros de nele não interferirem. Diz-se, assim, estar-se diante da

projeção externa do direito de crédito.

Tais teorias, conforme aludido anteriormente, buscaram, sob prismas diversos, impedir

que terceiros, ao argumento do princípio da relatividade, se abstivessem de respeitar o direito

de crédito alheio, cooperando com o devedor em sua violação. Repita-se, ainda uma vez, que

o princípio da relatividade, forjado sob a ótica voluntarista e individualista caracterizadora das

codificações oitocentistas, encerrava as partes contratantes como num parêntese, daí a

doutrina tradicional afirmar recorrentemente que o contrato era coisa alheia aos terceiros e

a estes não interessava. Esta concepção convivia pacificamente com as exceções ao princípio

da relatividade - como o contrato em favor de terceiro33 '-, admitidas em razão da crescente

complexidade social da vida moderna, nos planos econômico, financeiro e tecnológiCO, e G conseqüente intensificação e imbricamento das relações contratuais, que reclamavam uma

resposta por parte do ordenamento às situações até então carecedoras de tutela jurídica. 34

31 La relativité des conventions: étude de I'article 1165 du Code Civil, cit., p. 398-399.

32 Em referênCia à doutrina da eficácia externa das obrigações, explica Mario Júlio de Almeida COSTA:

"A exposta orientação clássica opõe-se modernamente a doutrina do efeito externo. Admitem os seus

defensores, além de um efeito interno das obrigações, dirigido contra o devedor e em todo o caso

primacial, um efeito externo, traduzido no dever imposto às restantes pessoas de respeitar o direito do

credor, ou seja, de não impedir ou dificultar o cumprimento da obrigação. Alude-se, a propósito, à

chamada doutrina do terceiro cúmplice" (Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, 1998, p. 76).

33 Orlando GOMES invoca. ainda, outras exceções ao princfpio da relatividade. Confira-se: "O principio

da relatividade dos contratos não é absoluto. Sofre importantes exceções. [ ... ] Há contratos que, fugindo

à regra gerai. estendem seus efeitos a outras pessoas, quer criando, para estas, direitos, quer impondo

obrigações. Tais são, dentre outros, a estipulação em favor de terceiro, o contrato coletivo de trabalho,

a locação em certos casos e o fideicomisso 'inter vivos'" (Contratos, 21. ed. atual. e notas de Humberto

Theodoro Júnior. RIO de Janeiro: Forense, 2000, p. 43-44; grifos no original).

34 Como assevera E. SANTOS JÚNIOR: "A cada vez maior complexidade social da vida nos tempos

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Assim, permitia-se que, em determinadas hipóteses excepcionais, os'direitos e deveres rela­

tivos ao contrato se estendessem a um terceiro, estranho ao vínculo obrigacional, para cuja

formação não concorreu com sua vontade.

Com a nova ordem constitucional de valores, fundada pela Constituição da República

de 1988, e o reconhecimento da força normativa dos princípios, as normas constitucionais

passam a incidir diretamente nas relações privadas, disciplinando os mais variados conflitos

de interesses. As categorias de direito privado, como propriedade, empresa, família e contrato

sofrem o influxo dos valores constitucionais e, neste passo, são remodeladas e funcionalizadas

à realização destes valores, em especial da dignidade da pessoa humana, não mais havendo

setores imunes a tal incidência axiológica, espécies de zonas francas para a atuação da

autonomia privada 35

Neste passo, os principios constitucionais da função social (CRFB, arts. 1°, IV; 170, caput)

e da solidariedade social (CRFB, art. 3°, I), ao incidirem diretamente nas situações jurídicas

subjetivas, remodelam o princípio da relatividade, permitindo, em alguns casos, a extensão

de direitos e a imposição de deveres contratuais a terceiros estranhos à formação do vínculo

obrigacional. A guisa de exemplo, invoca-se o reconhecimento do direito da vítima de

acidente de trânsito de acionar diretamente a seguradora do ofensor e pleitear, em face dela,

• reparação pelos danos sofridos36 Assim, para além das exceções tradicionalmente admitidas

modernos, sob o plano económico e financeiro e sob o plano tecnológico, implicando uma teia cada vez

mais apertada de situações interpessoais, apertou também a malha das relações contratuais - a

expressão natural dessas situações, em tais planos -, que, muitas vezes, surgem ora encadeadas entre

si ora cada vez mais próximas umas das outras ou, mesmo, imbrincadas umas nas outras, unidas por um

fim comum, pela destinação na ou para a realização de uma mesma operação econõmica. Neste contexto,

compreende-se que o princfpio da relatividade sofresse novos 'assaltos' ou tentativas de novas injunções,

já para lhe descortinar novas excepções, já para concebê-lo numa perspectiva mais ampla, que, preten­

samente salvaguardando-o - mas seguramente, afrouxando-o -, permitisse resposta a certas situações

carecidas de solução jurfdica" (Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito. cit.,

p. 169-170).

35 TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direito à pessoa humana. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006. t. 2, p. 342.

36 Tal é o entendimento adotado pelo STJ em diversos precedentes, como se vê de trecho do voto da

Ministra Nancy Andrighi: "De fato, a interpretação do contrato de seguro dentro desta perspectiva social

autoriza e recomenda que a indenização prevista para reparar os danos causados pelo segurado ao

terceiro seja por este diretamente reclamada da seguradora. Assim, sem se afrontar a liberdade contratual

das partes - as quais quiseram estipular uma cobertura para a hipótese de danos de terceiros -

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ao princípio da relatividade, reconhece-se sua mitigação em determinadas hipóteses nas quais

isso se afigure indispensável à proteção de interesses, no caso concreto, merecedores de

tutela, os quais em ponderação com a liberdade de contratar, sejam preponderantes.

No caso específico da lesão ao direito de crédito por terceiro, entretanto, o reconheci··

mento de sua responsabilidade não representa mitigação ao princípio da relatividade. Como

se verificará mais adiante, o dever de abstenção que recai sobre terceiros decorre da cláusula

geral de boa-fé objetiva, informada pelo princípio da solidariedade constitucional, que se

espraia por todas as situações jurídicas subjetivas, contratuais ou extracontratuais. A fonte

deste dever, como se verá, é legal, não já decorrente do contrato, de modo que os direitos e

deveres contratuais não se estendem aos terceiros, os qUJis, ao revés, devem obediência ao

dever legal de não violar o direito de crédito alheio. Apenas em determinadas hipóteses,

entretanto, ao se quantificar o dano pelo qual o terceiro cúmplice irá responder, será possível

adotar como parâmetro deveres contratuais assumidos pelo devedor, verificando-se, aí, certo

esmorecimento do princípio da relatividade, a fim de se evitar que a responsabilidade do

terceiro seja mais gravosa que a do próprio devedor, que se obrigou perante o credor - o

que representaria verdadeiro contra-senso.

Poder-se-ia indagar se, a partir deste dever legal de terceiros não lesionarem o crédito

alheio, se estaria diante de um dever geral de abstenção, oponível erga omnes, tal como

ocorre com os direitos reais. A resposta, como se verá mais à frente, é negativa. Ao contrário

maximiza-se a eficácia social do contrato com a simplificação dos meios jurfdicos pelos quais o prejudicado

pode haver a reparação que lhe é devida. Cumpre-se o principio constitucional da solidariedade e

garante-se a função social do contrato" (STJ, REsp 444.716-BA, 3" I, ReI. Min. Nancy Andrighi, v.U.,

julg.11.5.2004). V. tb.: STJ, REsp. 228840, 3" I, ReI. Min. Ari Pargendler, ReI. p/ acórdão Min. Carlos

Alberto Menezes Direito, julg. 26.6.2000, publ. DJ 4.9.2000. V. também STJ, REsp. 401718, 4" T., ReI.

Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julg. 3.9.2002, publ. DJ 24.3.2003; STJ, REsp. 294057, 4" I, ReI. Min.

Ruy Rosado de Aguiar, julg. 28.6.2001, publ. DJ 12.11.2001; e STJ, REsp. 97590, 4" I, ReI. Min. Ruy

Rosado de Aguiar, julg. 15.10.1996, publ. DJ 18.11.1996. Invoque-se, ainda, a hipótese em que o STJ

impediu a penhora de imóvel hipotecado à instituição de crédito imobiliária em garantia de dfvida da

construtora decorrente do financiamento da construção do ediffcio, tendo em vista o contrato de

promessa de compra e venda celebrado entre o terceiro promitente-comprador e a construtora, mediante

o qual o promitente-comprador já teria adimplido integral ou parcialmente suas prestações. Neste caso,

nitidamente, a financeira, terceiro em relação ao contrato de promessa de compra e venda, foi impedida

de exercer o seu direito de seqüela inerente à garantia real hipotecária por força deste contrato.

Confira-se: STJ, REsp. 187940, 4" I, ReI. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, julg. 18.2.1999, publ. DJ

21.6.1999.

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dos direitos reais, criados por lei e sUjeitos a registro, do qual decorre sua publicidade e

conseqüente oponibilidade erga omnes, os direitos de crédito são criados pela autonomia

privada, sem o necessário consenso social (traduzido por lei) capaz de permitir a produção

de efeitos contra todos37 Assim, o dever legal de abstenção que se está a tratar só recairá

sobre terceiros caso tenham ciência do direito de crédito, que como qualquer outro bem,

deverá ser juridicamente protegid038

Verifica-se, portanto, que a idéia clássica de relatividade segundo a qual o contrato só

produz efeitos inter partes, constituindo negócio jurídico estranho a terceiros, não pode servir

de escudo para que os terceiros se comportem como se o contrato não eXistisse39, contri­

buindo com o devedor para o inadimplemento contratual e permanecendo imunes à

responsabilização. De fato, "a relatividade das obrigações não poderia restar como

justificativa para que pessoas alheias ao vínculo obrigacional venham a violá-lo. Este

merece ser respeitado por toda a coletividade, como qualquer direito subjetivo, seja de

natureza real ou obrigacional" .40

37 TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária, cit., p. 84.

38 "Esta opinião não pode mais ser aceita: é verdade que a obrigação é relação que interessa ao devedor

e ao credor, mas também é verdade que esta relação tem relev!lncia externa. Mesmo o crédito é, de um

certo ponto de vista, um bem [ ... 1. um interesse juridicamente relevante, e enquanto tal deve ser

respeitado por todos" (PERLlNGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional,

cit., p. 142).

39 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Principios do novo direito contratual e desregulamentação do

mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. função social do contrato

e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. Revista dos

Tribunais, São Paulo, v. 750, ano 87, p. 117, 1998.

40 MAURO E SILVA, Roberta. Relações reais e relações obrigacionais: propostas para uma nova delimi­

tação de suas fronteiras. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-cons­

titucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 97. Na doutrina estrangeira, Luis DIEZ-PICAZO ressalta que

"La tesis dogmática de la absoluta irrelevancia de !a relación obligatoria para los terceros y de la total

separación entre la relación obligatoria y la esfera jurfdica de los terceros, se encuentra hoy en gran

medida superada en la doctrina. En general, se propende a admitir la existencia de un deber de respeto

dei derecho de crédito por parte de los terceros que no es nada más que una consecuencia dei deber

general de respeto de todos los derechos subjetivos y de todas las situaciones jurfdicas que forman la

esfera jurfdica ajena. Por ello, se ha pensado que el tercero que viola, dolosa o negligentemente, un

derecho ajeno, asume por este solo hecho una determinada responsabilidad y debe resarcir ai titular dei

derecho los danos que como consecuencia de ello se le siguen" (Fundamentos dei derecho civil patri­

monial: las relaciones obligatorias. 4. ed. Madrid: Editorial Civitas, 1993. v. 2, p. 604-605)

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Hessalte-se que a autonomia privada não é livre arbítrio, tampouco configura um valor

em si mesmo, e será merecedora de tutela somente se representar, em concreto, a realização

de um valor constitucional 41 Daí a necessidade de terceiros respeitarem o crédito alheio do

qual têm ciência, não se admitindo, na legalidade constitucional, que eles exerçam seu direito

à liberdade de contratar de forma ilimitada.

Por oportuno, diga-se entre parênteses, que, na nova ordem constitucional, a distinção

estrutural entre as situações jurídicas reais e obrigacionais, baseada no aspecto estático das

situações subjetivas - e da qual, repita-se à exaustão, o principio da relatividade colhe seu

fundamento -, deve ser rechaçada, impondo-se, ao revés, que se esteja atento à função

desempenhada pelas situações subjetivas. Com efeito, a função permite que se determine a

disciplina jurídica aplicável ao caso concreto que melhor atenda às peculiaridades dos inte­

resses em jogo, se amoldando, portanto, à concreta ordem de interesses que se pretende

regular. Assim, por meio da função dos institutos, é posslvel dar uma resposta por parte do

ordenamento aos mais variados casos concretos que su rgem no seio social e que, por vezes,

não se encaixam numa determinada estrutura predisposta pelo ordenamento.

Nesta linha de raciocínio, o Prof. Perlingieri propõe um estudo unitário das situações

patrimoniais, devendo-se, na verdade, estremar as situações patrimoniais das existenciais,

fundadas em lógicas diversas 42 Na nova ordem constitucional de valores, em que a dignidade CD da pessoa humana representa o valor máximo do ordenamento a ser tutelado, as situações

patrimoniais devem ser funcionalizadas às existenciais, as quais preponderam de forma

absoluta.

Na esteira deste entendimento, revela-se inadmissível que terceiros, cientes da existência

do crédito alheio, cooperem com o devedor ou o induzam ao descumprimento do contrato,

e restem imunes à responsabilização. Tal hipótese representaria verdadeira subversão da

hierarquia de valores proposta pela Constituição, a admitir que a liberdade de contratar seja

exercida sem limites, em violação aos deveres impostos pela cláusula geral de boa-fé objetiva,

informada pelo princípio constitucional de solidariedade social. Como se verá a seguir, a

doutrina e a jurisprudência têm empreendido esforços no sentido de determinar os funda­

mentos para a responsabilização do terceiro cúmplice, sustentando-a ora na função social do

contrato, ora no abuso de direito e, ainda, na boa-fé objetiva. É ver-se.

41 PERLlNGIERI, Pietro, Perfis de direito civil: introdução ao direito civil constitucional, cit., p. 277.

42 PERLlNGIERI, Pietro, Perfis de direito civil: introdução ao direito civil constitucional, cit., p. 201 e 55.

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2. FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO TERCEIRO CÚlvlPLlCE: A

FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO, O ABUSO DE DIREITO E A BOA-FÉ OBJETIVA

A época das codificações liberais do séc. XIX, vigorava a doutrina voluntarista e indivi­

dualista, consagrada pelo Código Napoleão, segundo a qual o sujeito de direito ocupava o

centro do ordenamento jurídico e sua vontade - erigida a dogma consistia no único motor

do direito privado. 43 Em outras palavras, o indivíduo - sujeito anônimo, neutro, abstrato e

titular de patrimôni044 - consistia no valor fundamental do direito privado, o qual buscava

regular, do ponto de vista formal, sua atuação, sobretudo do contratante e do proprietário,

que, por sua vez, "aspiravam ao aniquilamento dos privilégios feudais: poder contratar, fazer

circular as riquezas, adquirir bens como expansão da própria inteligência e personalidade,

sem restrições ou entraves legais" 45 A vontade do indivíduo, portanto, era exercida de forma

quase ilimitada, sofrendo limitações excepcionais por meio da ordem pública e dos bons

costumes.46 De acordo com esta filosofia, os dois pilares do direito privado constituíam-se na

propriedade e no contrato, esferas sobre as quais se exercia a plena autonomia do indivídu047

Na esteira desta concepção, formularam-se os três princípios contratuais clássicos, de­

correntes da autonomia da vontade, a saber: (i) o princípio da autonomia privada, segundo

CD o qual as partes podem convencionar o quê e com quem quiserem, sujeitas apenas aos limites

impostos pelas normas de ordem pública; (ii) o princípio da obrigatoriedade dos contratos ou

intangibilidade do conteúdo do contrato, de acordo com o qual o contrato adquire força de

lei entre as partes, o denominado pacta sunt servanda; e, (iii) o princípio da relatividade dos

contratos, pelo qual o contrato vincula apenas os contratantes, restringindo os seus efeitos

inter partes, não beneficiando, nem prejudicando terceiros.

Note-se que para a doutrina voluntarista e individualista a função social não se configu­

rava em princípio jurídico, sendo entendida como um princípio da ciência política ou meta-

43 GIORGIANNI, Michele. O direito privado e as suas atuais fronteiras. Separata de: Revista dos Tribunais,

Rio de Janeiro, ano 87, v. 747, p. 39, jan. 1998.

44 TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direito à pessoa humana, cit., p. 342.

45 TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: Temas

de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 2.

46 TEPEDINO, Gustavo et alli. Código civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de

Janeiro: Renovar, v. 2, 2006, p. 11.

47 GIORGIANNI, Michele. O direito privado e as suas atuais fronteiras, cit., p. 39.

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jurídico, o qual se traduzia, em matéria contratual, na função econômica desempenhada pelo

contrato no fomento às trocas e à prática comercial como um tod048

No Brasil, tal regime contratual clássico cede lugar a uma nova teoria contratual a partir

da promulgação da Constituição da República de 1988, que, fundando uma nova ordem

jurídica - personalista e solidarista -, consagrou os valores da dignidade da pessoa humana

(CRFB, art. 1°,111), da solidariedade social (CRFB, art. 3°,1), da isonomia substancial (CRFB, art.

3°,111) e o valor social da livre iniciativa (CRFB, arts. 1°, IV e 170, caput). Posteriormente, com

o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990), a

tábua de valores constitucionais foi prestigiada na disciplina legal dos contratos, permitindo­

se a consolidação definitiva de uma cultura contratual que, sob vários aspectos, mostra-se

antagônica à cultura contratual clássica 49 Assim, afirma-se que a Constituição da República

e o CDC constituem os marcos desta transformação do modelo contratual clássico para o

modelo contemporâneo da teoria contratual. 50 Os princlpios contratuais clássicos, a partir de

então, adquiriram novos contornos, remodelados pelos novos princfpios contratuais, vale

dizer, a boa-fé objetiva, o equilfbrio econômico e a função social dos contratosS 1 Na lição de

Gustavo Tepedino:

48 Tal função económica do contrato é referida por Orlando GOMES nos seguintes termos: "A função

económico-social do contrato foi reconhecida, ultimamente, como a razão determinante de sua proteção

jurldica. Sustenta-se que o Direito intervém, tutelando determinado contrato, devido à sua função

económico-social. Em conseqüência, os contratos que regulam interesses sem utilidade social, fúteis ou

improdutivos não merecem proteção jurldica. Merecem-na apenas os que têm função económico-social

reconhecidamente útil" (Contratos, cit., p. 20).

49 MORAES, Maria Celina Bodin de. Prefácio à Teresa Negreiros. in Teoria do contrato: novos paradigmas,

cit.

50 TEPEDINO, Gustavo et alii. Código civil interpretado conforme a Constituição da República, cit., p. 7.

51 Como afirma António Junqueira de AZEVEDO, "estamos em época de hipercomplexidade, os dados

se acrescentam, sem se eliminarem, de tal forma que, aos três princlpios que gravitam em volta da

autonomia da vontade e, se admitido como principio, ao da ordem pública, somam-se outros três - os

anteriores não devem ser considerados abolidos pelos novos tempos, mas, certamente, deve-se dizer

que viram seu número aumentado pelos três novos princlpios. Quais são esses novos princípios? A boa-fé

objetiva, o equillbrio económico do contrato e a função social do contrato" (Princlpios do novo direito

contratual e desregulamentação do mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de

fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o

inadimplemento contratual, cit., p. 117).

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"A boa-fé objetiva atua preponderantemente sobre a autonomia privada. O equilíbno

econômico da relação contratual, por sua vez, altera substancialmente a força obriga­

tória dos pactos, dando ensejo a institutos como a lesão (art. 157, Código Civil), a

revisão e a resolução por excessiva onerosidade (arts. 317,478 e 479, Código Civil). t,

a função social, a seu turno, subverte o princfpio da relatividade, impondo efeitos

contratuais que extrapolam a avença negociaI. 52"

Especificamente no que tange à função social do contrato, embora tenha sido introdu­

zida pela Constituição da República, por força de circunstância histórica já referida, ao lado

do excessivo apego à técnica regulamentar, não suscitou de início maiores debates, vindo à

tona apenas com a promulgação do Código Civil de 2002 que dedicou dispositivo especffico

ao tema, in verbis:

"Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função

social do contrato."

Diante desta previsão, delinearam-se, em doutrina, três principais posições acerca do

conteúdo e do papel da função social do contrato no ordenamento jurídico brasileiro.

A primeira delas sustenta que, a função social, embora prevista em lei, não é disciplinada

de forma sistemática ou especffica, encontrando-se presente de forma difusa dentro do

ordenamento jurídico, expressa por meio dos institutos já positivados. 53 Em outras palavras,

de acordo com este entendimento, o princípio da função social do contrato não assumiria

eficácia Jurfdica autônoma, constituindo, antes, uma espécie de orientação de política legis­

lativa constitucional, que revelaria sua importância e eficácia não em si mesma, mas em

diversos institutos que justificariam soluções normativas especfficas, como, por exemplo, a

resolução por excessiva onerosidade, a lesão, a conversão do negócio jurídico e a simulação

como causa de nulidade 54

52 TEPEDINO, Gustavo. Novos princípios contratuais e a teoria da confiança: a exegese da cláusula to

the best knowledge of the sellers. In: Temas de direito civil, I. 2, cil., p. 250-251.

53 "( ... ) a lei prevê a função social do contrato mas não a disciplina sistemática ou especificamente.

Cabe à doutrina e à jurisprudência pesquisar sua presença difusa dentro do ordenamento jurfdico e,

sobretudo, dentro dos princfpios informativos da ordem econômica e social traçada pela Constituição"

(THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 93).

54 "O grande espaço da função social, de certa maneira, deve ser encontrado no próprio bojo do Código

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Entretanto, tal posição acaba por esvaziar o conteúdo do principio da função social do

contrato, uma vez que os outros institutos positivados, por já expressarem a função social,

dispensariam sua existência como categoria aut6noma. Adotar este entendimento significaria

interpretar a Constituição à luz do Código Civil, subvertendo a hierarquia de valores do

ordenamento.

Por outro lado, a segunda corrente de pensamento, majoritária, defende que a função

social expressa o valor social das relações contratuais, vale dizer, não apenas a vontade dos

contratantes que concorre para a formação do contrato importa, mas também os efeitos que

este contrato projeta na sociedade.55 Assim, o contrato se constituiria em bem que transcen­

deria a esfera individual dos contratantes, alcançando o âmbito social e, portanto, inserindo­

se no encadeamento das relações econ6micass6 Nas palavras de Adriana Schlabendorff:

"[ ... ] O contrato possui em si um valor social - como se fossem dois lados de uma

mesma moeda -, com projeções diferenciadas: uma no âmbito individual (no sentido

Civil, ou seja, por meio de institutos legalmente institucionalizados para permitir a invalidação ou a revisão

do contrato e assim amenizar a sua dureza oriunda dos moldes plasmados pelo liberalismo. 'Parece,

portanto, que a função social vem fundamentalmente consagrada na lei, nesses preceitos e em outros,

mas não é, nem pode ser entendida como destrutiva da figura do contrato, dado que, então, aquilo que

seria um valor, um objetivo de grande significação (função SOCial). destruiria o próprio instituto do

contrato', O campo propicio ao desempenho da função social, assim como à realização da eqüidade

contratual é o da aplicação prática das cláusulas gerais com que o legislador definiu os vicias do negócio

jurldico, os casos de nulidade ou de revisão. Seria pela prudente submissão do caso concreto às noções

legais com que o Código tipificou as hipóteses de intervenção judicial do contrato que se daria a sua

grande adequação às exigências sociais acobertadas pela lei civil" (THEODORO JÚNIOR, Humberto. O

contrato e sua função social, cit., p, 106).

55 Como salienta Adriana SCHLABENDORFF, "ao afirmar que o contrato possui um valor social, não se

quer dizer que ele tenha perdido o seu valor intrlnseco, ao contrário, significa que conjuntamente como

esse 'valor em si', relacionado às partes contratantes, garantindo-lhes a capacidade de livre e conscien­

temente se auto-regrar, o valor social do contrato também possui uma projeção social" (A reconstrução

do direito contratual: o valor social do contrato. 2005. 299 f. Tese (Doutorado em Direito Civil) ,­

Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 229). Na mesma linha de racloclnio, v. MELLO, Adriana Mandin

Theodoro. A função social do contrato e o principio da boa-fé no novo Código Civil brasileiro. In: Revista

Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n. 16, p. 149, mar./abr. 2002.

56 FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. A função social do contrato no novo código civil e sua conexão com

a solidariedade social, cit., p. 132.

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da autonomia privada) e outra no âmbito social (no sentido da importância da conser­

vação dos contratos, instrumentalizada pela boa-fé objetiva, pelo equilíbrio econômico

e pela minoração do relativismo contratual)" S7

Como se vê, segundo esta linha de raciocínio, o princípio da função social dos contratos

deve significar que o contrato não pode "ser concebido como uma relação jurídica que só

interessa às partes contratantes impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que

são por ele próprio afetadas" . 58

Especificamente no que tange à responsabilização do terceiro que colabora com o

devedor ou o induz à lesão do direito de crédito alheio, celebrando com ele contrato

incompatível com obrigação anteriormente assumida, de acordo com esta teoria, o princípio

da função social serviria de fundamento para a responsabilização do terceiro cúmplice, na

medida em que propiciaria a apreensão do contrato como fato social. 59 Dito diversamente,

o princípio da função social, baseado no princfpio da solidariedade constitucional, exigiria a

colaboração entre os contratantes e terceiros, devendo estes últimos respeitar as situações

jurídicas anteriormente constituídas, ainda que desprovidas de eficácia real, desde que a sua

existência seja por eles previamente conhecida. Assim, o princfpio da relatividade não poderia

O servir de pretexto para que terceiros desrespeitassem o direito de crédito alheio, justamente

por não terem consentido em sua criação. Por esta razão, o princípio da função social limitaria

o princípio da relatividade com vistas a garantir a responsabilização do terceiro cúmpliCe.

Como sustenta Teresa Negreiros:

"Numa sociedade que o constituinte quer mais solidária, não deve ser admitido que,

sob o pretexto de que o direito de crédito é um direito relativo, possa tal direito ser

57 A reconstrução do direito contratual: o valor social do contrato, cit., p. 229.

58 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas, cit., p. 207.

59 Nas palavras de Teresa NEGREIROS, "em contraposição à concepção individualista, o principio da

função social serve como fundamento para a relevância externa do crédito, na medida em que propicia

uma apreensão do contrato como fato social" (Teoria do contrato: novos paradigmas, cit., p. 267). No

mesmo sentido, v. SCHLABENDORFF, Adriana. A reconstrução do direito contratual: o valor social do

contrato. cit., p. 246; THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social, cit., p. 29-30;

THEODORO NETO, Humberto Theodoro. O contrato e a relatividade de seus efeitos: direitos e obrigações

na relação entre contratantes e terceiros, 2004, 316 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) -

Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, 2004.

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desrespeitado por terceiros, que argumentam não ter consentido para a sua criação.

Esta ótica individualista e voluntarista deve ser superada diante do sentido de solida­

riedade presente no sistema constitucional. [ ... ] o princípio da função social cumpre o

papel de explicar e limitar o princípio da relatividade, cujo sentido próprio não mais se

deduz exclusivamente do princípio da autonomia da vontade. 60"

Na esteira de tal entendimento, foi editado o enunciado 21 da 1 a jornada de direito civil

do STJ, segundo o qual "a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código

Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do

contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito".

De acordo com Teresa Negreiros, a liberdade de contratar seria dotada de uma função

social, de modo que o exercício desta liberdade em contrariedade a esta função representaria

abuso de direito. Assim, o terceiro que, ciente do direito de crédito alheio, firma contrato

com o devedor incompatível com a obrigação por este anteriormente assumida, exerce sua

liberdade de contratar de forma abusiva, em violação à função social, devendo, por isso

mesmo, ser responsabilizado. Deste modo, o princípio da função social do contrato associado

ao abuso de direito deveriam ser invocados como fundamentos da responsabilização do

terceiro cúmplice.61 Acrescenta a autora, ainda, que a oponibilidade do contrato imporia aos .,

terceiros o dever de respeito ao direito de crédito alheio do qual têm ciência, daí derivando

a obrigação de não violarem este direito.62

Em síntese, esta segunda corrente doutrinária acerca do conteúdo do princípio da função

social atribui ao contrato valor social, que, portanto, projeta seus efeitos no âmbito da

sociedade, de modo a reforçar a proteção do contratante em face de terceiros. Assim, como

se viu, a função social consistiria em fundamento para a proteção do credor na lesão

contratual provocada pelo terceiro cúmplice.

Contudo, tal posição não colhe, pois acaba reduzindo a função social a um instrumento

a mais de garantia da posição contratual do credor, desvirtuando a finalidade do instituto, o

qual pretende impor deveres aos contratantes, não já ampliar-lhes a gama de garantias.

Com efeito, a função social, como sustenta a terceira corrente doutrinária, deve ser

entendida como um novo princípio que, informado pelos princípios constitucionais da digni-

60 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas, cit., p. 208 e 273.

61 Teoria do contrato: novos paradigmas, cit., p. 255.

62 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas, cit., p. 271-272.

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dade da pessoa humana (art. 1°,111), do valor social da livre iniciativa (art. 1°, IV), da igualdade

substancial (art. 3°, 111); e da solidariedade social (art. 3°, I), impõe deveres, e não direitos, aos

contratantes em face de interesses socialmente relevantes alcançados pelo contrat063

Ao propósito, esclareça-se que funcionalização compreende processo que atinge todos

os fatos jurídicos.64 A função do fato corresponde a síntese de seus efeitos essenciais, sua

profunda e complexa razão justificadora: ela refere-se não apenas a vontade dos sujeitos,

mas ao fato em si, enquanto social e juridicamente relevante. Com base na função prático­

social que realiza, é possível qualificar o fato, atraindo, por conseguinte, a disciplina jurídica

aplicável. Em matéria contratual, a função identifica-se com o problema da causa 65

Toda situação jurídica subjetiva possui uma função social. Assim, o interesse só será

tutelado se e enquanto atender não apenas ao interesse do titular da situação Jurídica

subjetiva, mas também àquele da coletividade. 66 /\ função social consiste na própria razão

de atribuição do direito, de modo que o exercício do direito somente será merecedor de tutela

se atender a função social 67 Deste modo, a estrutura interna do direito é remodelada de

acordo com sua função social, concretamente definida, que constitui o próprio pressuposto

de validade do exercício do direito.68

Em outras palavras, a função permite vincular, de forma dinâmica, a estrutura do direito,

em especial dos fatos jurídicos, dos centros de interesse privado e das relações jurídicas, aos

valores da sociedade consagrados pelo ordenamento no lexto Constitucional. Assim, possi­

bilita que o controle social não se limite ao exame de estruturas ou tipos abstratamente

considerados, dando lugar ao exame do merecimento de tutela do tipo no caso concreto.

63 Com efeito, ensina Gustavo TEPEDINO que a função social do contrato deve ser entendida como o

"dever imposto aos contratantes de atender - ao lado dos próprios interesses Individuais perseguidos

pelo regulamento contratual - a interesses extra contratuais socialmente relevantes, dignos de tutela

jurldica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos. Tais interesses dizem respeito, dentre

outros, aos consumidores, à livre concorrência, ao meio-ambiente, às relações de trabalho" (Crise de

fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: Temas de direito civil,

t. 2, Clt., p. 20).

64 PERLlNGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. Napoli: Edlzione Scientifiche Italiane, 1997, p. 64 e ss.

65 PERLlNGIERI, Pietro. Perfis de direito civil: introdução ao direito Civil constitucional, cit., p. 96

66 PERLlNGIERI, Pietro. Perfis de direito civil: introdução ao direito civil constitucional, cit., p. 107.

67 PERLlNGIERI, Pietro. Perfis de direito civil: introdução ao direito Civil constitucional, Clt., p. 226.

68 TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. fn: Temas de direito civil, dt.,

p.318ess.

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Daí afirmar-se que a função é elemento interno e razão justificativa da autonomia pnvada,

tendo em vista que instrumentaliza as estruturas jurídicas aos valores constitucionais, permi­

tindo o controle dinâmico e concreto da atividade privada. 59

No sistema atual, a função social amplia para o domínio do contrato a noção de ordem

pública. Como ensina Gustavo lepedino, "tal como observado em relação à propriedade, em

que a estrutura interna do direito é remodelada de acordo com sua função social, concre­

tamente definida, e que se constitui em pressuposto de validade do exercício do próprio

domínio, também o contrato, uma vez funcionalizado, se transforma em um 'Instrumento

de realização do projeto constitucional' e das finalidades sociais definidas constitucional­

mente".70

Na dicção do art. 421 do Código Civil, considera-se a função social um fim para cuja

realização se justifica a imposição de preceitos inderrogáveis e inafastáveis pela vontade das

partes71 Daí dispor o parágrafo único do art. 2.03~) do Código Civil:

"Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como

os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos

con tratos. "

De acordo com a função que a situação jurídica desempenha, serão definidos os poderes

atribuídos ao titular das situações jurídicas subjetivas. Como dito anteriormente, os legítimos

interesses Individuais dos titulares da atividade econômica só merecerão tutela na medida em

que interesses socialmente relevantes, embora alheios à esfera individual, sejam igualmente

tutelados. Vincula-se, portanto, a proteção dos interesses privados ao atendimento de inte­

resses sociais, a serem promovidos no âmbito da atividade econômica 72

69 Como sustenta Gustavo TEPEDINO, "o sentido a ser atribuldo à função social não pode se limitar a

restrições pontuais e externas à atividade econõmica privada, inserindo-se no próprio fundamento da

Iniciativa econômica. Assim como no direito de propriedade, quis o constituinte tornar a função SOCial

elemento Interno dos institutos jurfdicos de direito privado" (Novos princípios contratuais e a teoria da

confiança: a exegese da cláusula to the best knowledge of the sellers, Clt., p. 2S1).

70 TEPEDINO, Gustavo et alii. Código civil interpretado conforme a Constituição da I?epública, v. 2, cit.,

p.l0.

71 TEPEDINO, Gustavo et alii. Código civil interpretado conforme a Constituição da I?epública, v. 2, cit.,

p.9.

72 PERLlNGIERI, Pietro. Perfis de direito civil: introdução ao direito civil constitucional, cit., p. 121.

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Assim, a flexibilização do princípio da relatividade dos contratos em razão do princípio

da função social dos contratos se efetiva por meio da imposição de deveres aos contratantes

com vistas à promoção de interesses socialmente relevantes e não se destina à utilização como

mera ferramenta para ampliação das garantias contratuais - o que traduziria um contra­

senso. Como argutamente observado por Gustavo Tepedino:

"O esmorecimento do princípio da relatividade indica, como observado no texto, a

imposição aos contratantes de deveres extracontratuais, socialmente relevantes e tu­

telados constitucionalmente. Não deve significar, todavia, uma ampliação da proteção

dos próprios contratantes, o que amesquinharia a função social do contrato, tornan­

do-a servil a interesses individuais e patrimoniais que, posto legítimos, já se encontram

suficientemente tutelados pelo contrato. 73"

Com efeito, no caso específico da lesão contratual provocada pelo terceiro cúmplice,

busca-se tutelar interesses meramente privados do credor que sofreu lesão do seu direito de

crédito, oriundo de relação contratual paritária, e, por isso mesmo, não se poderia cogitar da

presença de interesses sociais relevantes que justificassem um reforço da proteção do credor

• com fundamento na função social dos contratos. Isto constituiria verdadeira desvirtuação da

finalidade do instituto da função social. Como já se afirmou, a função social tem por escopo

a proteção de interesses extra contratuais socialmente relevantes e tutelados constitucional­

mente, por meio da imposição de deveres aos contratantes, como é o caso, por exemplo, da

tutela dos interesses do consumidor e dos interesses coletivos e difusos.

Afastada a função social como fundamento da responsabilidade civil do terceiro cúmpli­

ce, passa-se a tratar da figura do abuso de direito invocada por alguns autores como base

desta responsabilização.

De fato, argumentam seus defensores que o terceiro que coopera ou induz o devedor

ao inadimplemento contratual, celebrando com ele contrato incompatível com a obrigação

preexistente, abusa do seu direito de contratar. Dito diversamente, se o terceiro, ciente do

direito de crédito alheio, celebra com o devedor contrato ofensivo ao direito do credor,

exercerá de forma irregular ou abusiva sua liberdade de contratar, devendo, por isso mesmo,

ser responsabilizado. Nesta esteira, afirma Fernando Noronha:

73 TEPEDINO, Gustavo. Novos princípios contratuais e a teoria da confiança: a exegese da cláusula to

the best knowledge of the sellers, cit., p. 251, nota 14.

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"Assim, nas situações de indução ao inadimplemento de obrigação alheia, se o terceiro

estava agindo no exercício de um seu direito (por exemplo, o direito de contratar um

bom profissional), ele, em princípio, não terá nenhuma obrigação de indenizar, porque

estaremos perante um ato justificado: em princípio todos têm o direito de contratar

com qualquer pessoa. Se, porém, o direito não for exercido de forma regular, isto é, se

houver abuso de direito, haverá responsabilidade. [ ... ] Como se vê, nas situações de

indução ao inadimplemento a invocação da tutela externa só será possível em casos

especiais, quando se configure um exercício abusivo de direitos. 74"

Nesta linha de raciocínio, há ainda quem defenda a responsabilidade do terceiro que,

dolosamente, isto é, com intuito de prejudicar o credor, abusa do seu direito de contratar,

restando caracterizado o ato emulativo. 75

Na doutrina estrangeira, Ferrer Correia, ao analisar especificamente a lesão do direito de

crédito pelo terceiro nos pactos de preferência, isto é, na hipótese em que o terceiro,

conhecendo o direito de preferência do credor, contrata com o devedor em violação frontal

a este direito, sustenta a responsabilidade do terceiro com base no abuso de direito. Afirma

que o devedor busca intencionalmente prejudicar os interesses do credor ao contratar com ® terceiro, pois se o credor quiser exercer a preferência terá de lhe pagar exatamente o mesmo

preço que o terceiro lhe pagaria. Assim, o comportamento do devedor reveste-se de grave

imoralidade, configurando ato emulativo, pelo qual também responde o terceiro. 76

No direito brasileiro, o Código Civil de 1916 não se referiu expressamente ao abuso de

direito, o qual era extraído pela doutrina em interpretação a contrario sensu do art. 160, 1. 77

Posteriormente, foi disciplinado no art. 187 do Código Civil de 2002, o qual dispõe que:

74 Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 464-465.

75 DINIZ, Davi Monteiro. Aliciamento no contrato de prestação de serviços: responsabilidade de terceiro

por interferência ilfcita em direito pessoal. In: Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n. 27, p.

91, jan.- fev. 2004.

76 CORREIA, A. Ferrer. Da responsabilidade do terceiro que coopera com o devedor na violação de um

pacto de preferência. In: Estudos de Direito Civil e Comercial e Criminal, 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina,

1985, p. 50.

77 "Art. 160. Não constituem atos ilfcitos: l-os praticados em legrtima defesa ou no exercrdo regular de

um direito reconhecido".

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"Art. 187. Também comete ato illcito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede

manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou

pelos bons costumes."

No abuso, o comportamento do sujeito, embora formalmente lícito, viola o seu funda­

rnento axiológico-normativo, que justifica o seu reconhecimento pela ordem jurídica e segun­

do o qual se irá afem a validade do ato de exerdcio. 78 Ern outras palavras, o exercício do

direito em contrariedade às suas finalidades econômicas ou sociais configura abuso do direito,

impondo ao agente o dever de reparar os prejuízos causados. 79

Note-se que a abusividade do ato é aferida objetivamente, ou seja, deve-se verificar se

o ato de exerdcio do direito subjetivo viola o sentido deste exerdcio determinado pelo valor

inerente e estrutural a este mesmo direito, prescindindo da análise do elemento intencional

do agente 80 Em outras palavras, a aterição da abusividade da conduta irá depender apenas

da verificação de desconformidade concreta entre o exerdcio da situação jurídica e os valores

tutelados pelo ordenamento civil-constitucional, pouco importando a intenção do agente de

prejudicar outrem ou a cornprovação do elemento culpa. Assim sendo, o abuso de direito

configura ato lícito, ganhando autonomia na ciência jurídica do ato ilícito -~ o qual pressupõe

a violação de um dever legal e, portanto, culpa -, de rnodo a alcançar inúmeras situações

que, justamente por não se enquadrarem no ilícito, exigem valoração funcional quanto ao

seu exerdcio. Deste modo, o art. 187 do Código Civil, ao afirmar que o abuso de direito

consiste em ato ilícito, deve ser compreendido como ilicitude em sentido lato, isto é, deve

significar contrariedade ao ordenamento Jurídico como um todo, não autorizando a equipa­

ração da etiologia do abuso de direito a do ato illcit081

Na hipótese de lesão do direito de crédito provocada pelo terceiro cúmplice, verifica-se,

como se verá adiante, a violação, pelo terceiro, de um dever legal de abstenção imposto pela

78 V, sobre o tema, CARPENA, Heloisa. Abuso do direito nos contratos de consumo. Rio de Janeiro:

Renovar, 2001, p. 56.

79 Como observa Heloisa Carpena, "o comportamento do sujeito só aparentemente constitui exerclcio

do direito, ultrapassando-o exatamente por violar seu sentido e seu fundamento objetivo" (Abuso do

direito nos contratos de consumo, cit., p. 73).

80 CARPENA, Heloisa. Abuso do direito nos contratos de consumo, cit., p. 73.

81 No sentido do texto, ver a elucidativa explicaçâo de TEPEDINO, Gustavo et alii. Código civil interpre­

tado conforme a Constituição da República, v. 1, cit., p. 342.

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cláusula geral de boa-fé objetiva, informada pelo princípio da solidariedade constitucional,

do qual decorre o respeito às situações jurídicas previamente constituídas. Por esta razão, o

terceiro que coopera com o devedor ou o induz ao inadimplemento contratual, celebrando

com ele contrato incompatível com obrigação anteriormente assumida pelo devedor, infringe

este dever legal, praticando, por isso mesmo, ato ilícito. Ora, se de ilícito se está a tratar, o

abuso de direito não pode servir de fundamento para a responsabilização do terceiro cúm­

plice. Hesta, portanto, analisar o papel do princípio da boa-fé objetiva na imputação desta

responsabilidade.

A boa-fé objetiva foi, inicialmente, referida no ordenamento jurídico brasileiro pelo art.

131 do Código Comercial de 1850, atualmente revogado, como critério de interpretação dos

contratos mercantis. 82 Entretanto, o dispositivo teve aplicação insignificante e a acepção por

ele atribuída ao princípio da boa-fé, além de fundar-se em preocupações diversas, era muito

'mais restrita do que aquela conferida hoje à boa-fé objetiva 83 A essa época, compreendia-se

comumente por boa-fé o estado de ânimo do sujeito caracterizado pela ausência de malícia

e pela crença pessoal de estar agindo em conformidade com o direito. Tratava-se, portanto,

de acepção subjetiva da boa-fé

Posteriormente, o Código de Defesa do Consumidor trouxe, em seu art. 4", a primeira @ previsão moderna da boa-fé objetiva, tomada como princípio da política nacional de relações

de consumo 84 A partir de então, a boa-fé objetiva passou a ser entendida como um dever

82 "Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras

sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1. a inteligência simples e adequada, que for mais

conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa

e restrita significação das palavras [ ... ]".

83 Tal é a constatação de fEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de

Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Obrigações: estudos na

perspectiva civil-constitucional, cit., p. 30.

84 "Art. 4°. A Polftica Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessi­

dades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses

econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparênCia e harmonia das relações

de consumo, atendidos os seguintes princfpios: [ ... ] III - harmonização dos interesses dos participantes

das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a neceSSidade de desen­

volvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princfplos nos quais se funda a ordem

econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre

consumidores e fornecedores" .

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imposto às partes contratantes de colaborarem mutuamente para a consecução dos fins

objetivamente perseguidos com o contrato.

O direito positivo brasileiro manteve o princípio da boa-fé objetiva circunscrito às relações

de consumo até o advento do Código Civil de 2002,85 que, ao consagrar o princípio em seu

artigo 422, estendeu sua incidência às relações contratuais paritárias:

"Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,

como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."

Como se vê, a boa-fé objetiva por consistir em cláusula geral, assumiu significados

distintos ao longo do tempo, de acordo com as circunstâncias de tempo e lugar historica­

mente determinadas, representando, por isso mesmo, uma atualização em termos de técnica

leg islativa.

Note-se que o Código C ivil não estabeleceu parâmetros ou standards de conduta que

auxiliassem na concretização do conteúdo da cláusula geral de boa-fé objetiva. Assim, para

que, como advertido por Gustavo Tepedino, a cláusula geral de boa-fé objetiva não se torne

letra morta ou atribua ampla discricionariedade ao intérprete, exigindo construção doutriná­

ria capaz de lhe atribuir conteúdo menos subjetivo, impõe-se a conexão axiológica entre o

dispositivo codificado e a Constituição da República, que define os valores e princípios

basilares do ordenamento.86

Com o intuito de concretizar o conteúdo da cláusula geral de boa-fé objetiva, costuma-se

atribuir-lhe, na esteira da doutrina germânica,87 três funções essenciais: (i) função interpre­

tativa dos contratos; (ii) função restritiva do exercício abusivo de direitos; e (iii) função criadora

de deveres anexos à prestação principal, nas fases pré-negociai, negociai e pós-negociaI.

Como cânon interpretativo, a boa-fé objetiva exige que a interpretação das cláusulas

contratuais privilegie sempre o sentido mais consentâneo com o objetivo comum pretendido

85 Observe-se, entretanto, que a jurisprudência, antes da previsão codificada do princfpio da boa-fé

objetiva, já estendia a sua aplicação às relações contratuais regidas pelo Código Civil.

86 TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de

2002. In: Temas de direito civil, t. 2, cit., p. 7-8.

87 WIEACKER, Franz. EI principio general de la buena fé. Tradução Jose Luis de los Mozos. Madri: Civitas,'

1976, capftulo IV.

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pelas partes com o negóci088, à luz das circunstâncias concretas que o caracterizam. Tal

função encontra-se positivada no art. 113 do Código Civil, in verbis:

"Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos

do lugar de sua celebração."

No que se refere à sua segunda função, a boa-fé objetiva assume conotação negativa,

estabelecendo limites ao exercício dos direitos. Funciona, portanto, como critério para a

diferenciação entre o exercício regular e o exercício irregular ou abusivo de direitos. Como

especificação desta função, faz-se referência ao princípio do nemo potest venire contra

factum proprium, segundo o qual a ninguém é dado vir contra o próprio ato, vale dizer, não

se admite que o sujeito pratique uma conduta em contradição a anteriormente adotada,

violando a legítima expectativa daquele que acreditara na preservação do comportamento

inicial 89 E, ainda, à teoria do adimplemento substancial, de acordo com a qual considera-se

abusivo o direito de resolução do contrato nas hipóteses em que o devedor adimpliu subs­

tancialmente o acordo, ou seja, alcançou um resultado tão próximo ao almejado que o seu

inadimplemento não abala a comutatividade do ajuste, devendo o prejuízo do credor com­

por-se em perdas e danos. 9o Tal função foi incorporada no art. 187 do Código Civil, anterior­

mente referido, que consagra o abuso de direito.

Por fim, a boa-fé exerce a função de fonte criadora de deveres anexos à prestação

principal não previstos pelas partes no contrato. Tais deveres, portanto, decorrem da lei, não

já da vontade dos contratantes, e denominam-se acessórios ou secundários justamente por

não se referirem diretamente ao objeto primordial da obrigaçã0 91 Embora não possam ser

definidos de forma abstrata e apriorística, são, normalmente, exemplificados como deveres

88 TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de

2002, cit., p. 20. No mesmo sentido, MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 432.

89 Sobre a matéria, v. SCHREIBER, Anderson. A proibição ao comportamento contraditório: nemo potest

venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

90 A respeito da teoria do adimplemento substancial, confira-se AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de.

Extinção dos contratos por incumprimento do devedor: resolução. São Paulo: Aide Editora, 2003, p. 248.

91 Veja-se, sobre o tema, FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. A boa-fé e a violação positiva do contrato. 1.

ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 270.

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de informação, lealdade e transparência, que se agregam implicitamente ao regulamento

contratual. A afronta a estes deveres importa em violação positiva do contrato, atraindo as

soluções previstas pelo ordenamento para o inadimplemento contratual, a saber, o direito ao

ressarcimento dos prejuízos, a possibilidade de recusar a prestação com base na exceção de

contrato não cumprido (Código Civil, art. 485) ou de resolver o contrato (Código Civil, art.

486).

Observe-se que esta terceira função desempenhada pela boa-fé objetiva carece de

interpretação associada aos objetivos do negócio, pois "sena absurdo supor que a boa-fé

objetiva criasse, por exemplo, um dever de informação apto a exigir de cada contratante

esclarecimentos acerca de todos os aspectos da sua atividade econômica ou de sua vida

privada. Assim, se é certo que o vendedor de um automóvel tem o dever - imposto pela

boa-fé objetiva - de informar o comprador acerca dos defeitos do veículo, não tem, por

certo, o dever de prestar ao comprador esclarecimentos sobre sua preferência partidária, sua

vida familiar ou seus hábitos cotidianos. Um dever de informação assim concebido mostrar­

se-ia não apenas exagerado, mas também irreal, porque seu cumprimento seria, na prática,

impossível tendo em vista a amplitude do campo de informações" 92

Portanto, pode-se dizer que, no âmbito contratual, a boa-fé objetiva, inde­

pendentemente da função que exerça, almeja sempre a preservação do conteúdo econômico

que as partes pretenderam com o negócio alcançar, obrigando os contratantes a adotarem

comportamento compatível com os fins comuns objetivamente pretendidos pelo ajuste. Em

outras palavras, o princípio da boa-fé objetiva impõe um dever de conduta aos contratantes

de perseguirem o interesse mútuo que se extrai objetivamente da avença e não seus interesses

privados e individuais.

Por outro lado, nas situações jurídicas extracontratuais, a boa-fé objetiva também se

aplica,93 a despeito de vozes doutrinárias em contrário. 94 Em primeiro lugar, a cláusula geral

92 TE PEDI NO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor

e no novo Código Civil, cit., p. 39.

93 Na doutrina estrangeira, Manuel Antônio de Castro Portugal Carneiro da FRADA aponta para a

evolução na aplicação do prindpio da boa-fé objetiva que, embora originado no domrnio do contrato,

expandiu-se, posteriormente, para outros âmbitos. Na dicção do autor, "foi no domrnio dos contratos

(rectius, do cumprimento das obrigações contratuais) que a norma do comportamento de boa-fé

germinou e encontrou a sua guarida mais segura. Acolhida aI como em seu domrnio originário, expan­

diu-se depois por outros âmbitos e por diversas formas de interacção entre sujeitos, de que a relação

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de boa-fé objetiva encontra-se informada por quatro princípios constitucionais fundamentais

para a atividade econômica privada, a saber, (i) o princípio da dignidade da pessoa humana

. (CRFB, art. 1°, 111); (ii) o valor social da livre iniciativa (CRFB, art. 1°, IV); (iii) a solidariedade

social (CRFB, art. 3°, I); e (iv) a igualdade substancial (CRFB, art. 3°, 111). Ao lado disso, como

já se afirmou, as normas constitucionais se aplicam diretamente às relações privadas, sejam

elas patrimoniais ou existenciais. Se assim é, não há fundamento constitucional que autorize

a restrição da aplicação da cláusula geral de boa-fé objetiva às relações contratuais. De mais

a mais, conforme aludido anteriormente, a distinção estrutural entre situações jurfdicas reais

e obrigacionais encontra-se em crise, devendo-se, na legalidade constitucional, estar atento

à função desempenhada pelas situações jurfdicas subjetivas, a qual permite atrair a disciplina

jurfdica aplicável ao caso concreto que melhor se amolde às suas peculiaridades. Do ponto

de vista funcional, deve-se diferenciar as situações patrimoniais das existenciais, fundadas em

lógicas valorativas diversas, justificando tratamento unitário dispensado às situações jurfdicas

patrimoniais conforme proposto pelo Prof. Perlingieri. Sendo assim, a cláusula geral de boa-fé

objetiva deve se aplicar a todas as situações jurídicas patrimoniais - contratuais ou extra­

contratuais -, não se restringindo à órbita dos contratantes 95

Aliás, diverso não se mostra o entendimento dos tribunais pátrios que admitem a

aplicação do princípio da boa-fé objetiva às relações extracontratuais, como se colhe da e seguinte decisão:

"Processual Civil. Civil. Hecurso Especial. Pré-questionamento. Condomínio. Área co­

mum. Utilização. Exclusividade. Circunstâncias concretas. Uso prolongado. Autorização

dos condôminos. Condições físicas de acesso. Expectativa dos proprietários. Princípio

da boa-fé objetiva. O Hecurso Especial carece de pré-questionamento quando a ques­

tão federal suscitada não foi debatida no acórdão recorrido. Diante das circunstâncias

pré-contratual é porventura o exemplo mais significativo" (Teoria da confiança e responsabilidade civil.

Coimbra: Almedina, 2004, p. 431-432).

94 Neste sentido, Humberto THEODORO JÚNIOR restringe a aplicação do princfpio da boa-fé objetiva

aos contratos em oposição à função social que permitiria a projeção de efeitos contratuais na sociedade

(O contrato e sua função social, cit., p. 29-30).

95 Conforme leciona Pietro PERLlNGIERI, "as cláusulas gerais de lealdade e de diligência (arts. 1.175 e

1.176 Cód. Civ.) não se referem exclusivamente às situações creditórias e à noção de adimplemento, mas

tem relevilncia geral" (Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, cit., p. 202).

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concretas dos autos, nos quais os proprietários de duas unidades condominiais fazem

uso exclusivo de área de propriedade comum, que há mais de 30 anos só eram utilizadas

pelos moradores das referidas unidades, pois eram os únicos com acesso ao local, e

estavam autorizados por Assembléia Condominial, tal situação deve ser mantida, por

aplicação do princípio da boa-fé objetiva. 96"

Em sua aplicação extracontratual, a boa-fé objetiva, informada pelo princípio constitu­

cional de solidariedade social, impõe aos terceiros o dever de respeito às situações jurídicas

anteriormente constituídas das quais têm ciência, impedindo-os de colaborarem com o

devedor ou de induzi-lo ao inadimplemento contratual, celebrando com ele contrato incom­

patível com situação jurídica já existente. Em outras palavras, do princípio da boa-fé objetiva

. decorre a obrigação negativa (dever de abstenção) dos terceiros de não lesionarem o direito

de crédito alheio de que têm conhecimento, preservando as obrigações previamente assumi­

das pelo devedor. 97

Como se vê, a fonte do dever de respeito imposto aos terceiros - traduzido no dever

negativo de não interferirem no direito de crédito alheio - deflui da lei (boa-fé objetiva), não

G já do contrato, cujos deveres e direitos permanecem circunscritos à esfera dos contratantes.

Verificada a violação a este dever legal de respeito, impõe-se a responsabilização do terceiro

cúmplice pela prática de ato ilícito extracontratual. Daí afirmar-se que o princípio da boa-fé

objetiva, informado pela solidariedade social, consiste no fundamento da responsabilização

do terceiro que viola o direito de crédito alheio. A corroborar este entendimento, leciona

Gustavo Tepedino que:

96 STJ, REsp. 356.821/RJ, 3a T., ReI. Min. Nancy Andrighi, julg. 23.4.2002. v., tb., STJ, REsp. 107.211,

4a T., ReI. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julg. 3.12.1996; TJDF, Ap. crv. 20020110912155, 4a Turma Crvel,

ReI. Des. Cruz Macedo, julg. 30.6.2005; e, TJRJ, Ap. crv. 2006.001.34796, 5a Cc, ReI. Des. Cristina Tereza

Gaulia, julg. 15.8.2006.

97 Neste sentido, confira-se Patrrcia CARDOSO: "A boa-fé não se restringe à órbita contratual, impon­

do-se também a terceiros. Em relação a terceiros, tal padrão de lealdade expressa-se como um compor­

tamento objetivo a ser por estes seguido diante de contrato celebrado entre as partes, de modo que

estes não podem comportar-se de modo a ignorar a celebração do contrato, surgindo para estes um

dever de respeito aos negócios alheios, um atuar em conformidade com a boa-fé" (A posição do terçeiro

no contrato: uma abordagem não dogmática. 2006. 211 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) -

Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 215).

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[ ... ] O princípio da boa-fé objetiva, informado pela solidariedade constitucional, por não

se limitar ao dominio do contrato, alcança todos os titulares de situações juridicas

subjetivas patrimoniais, vinculando-os ao respeito de posições contratuais, suas ou de

terceiros. Por isso mesmo, fundamenta-se na boa-fé objetiva a proteção do crédito em

face de terceiros, não já no princípio da função social. 98

Repita-se ainda uma vez: o dever de abstenção que recai sobre terceiros advém da lei,

mais especificamente da cláusula geral de boa-fé objetiva, informada pelo princípio da

solidariedade constitucional, que se espraia por todas as situações juridicas subjetivas, con­

tratuais ou extracontratuais, e não do contrato, de modo que os direitos e deveres contratuais

não se estendem aos terceiros. Por isso mesmo, este dever legal de respeito que fundamenta

a responsabilização do terceiro cúmplice não representa uma exceção ao princípio da relati­

vidade dos contratos.

Ao propósito, relembre-se que a doutrina clássica, sob o fundamento do princípio da

relatividade, segundo o qual os efeitos (rectius, direitos e obrigações) provenientes do con­

trato atingem apenas as partes que consentiram na criação do vinculo obrigacional, concluia

que tais efeitos não poderiam beneficiar, tampouco prejudicar terceiros. 99 Em outras palavras,

de acordo com o princípio da relatividade, os específicos direitos e deveres decorrentes do

contrato vinculam apenas os contratantes, e, portanto - concluem -, as obrigações con­

tratuais não poderiam ser oponiveis a terceiros para quem o contrato era como se não

existisse. Assim, sequer cogitavam da possibilidade de responsabilização do terceiro cúmplice.

Entretanto, na legalidade constitucional, tal conclusão não mais se sustenta diante do

dever legal de respeito às situações jurídicas previamente constitufdas imposto aos terceiros

pela cláusula geral de boa-fé objetiva, informada pelo princípio constitucional de solidarie­

dade social. Se assim é, o terceiro, uma vez ciente do direito de crédito alheio, tem o dever

legal de respeitá-lo, sob pena de incorrer em ato ilícito.

Verifica-se, portanto, que a idéia clássica de relatividade não pode servir de escudo para

que os terceiros se comportem como se o contrato não existisse, contribuindo com o devedor

ao inadimplemento contratual e permanecendo imunes à responsabilização.

98 TEPEDINO, Gustavo. Novos principias contratuais e a teoria da confiança: a exegese da cláusula to

the best knowledge of the sellers, cit., p. 251, nota 14.

99 Sobre esta concepção clássica, na doutrina estrangeira, ver elucidativa explicação de BACACHE-GI­

BEIU, Mireille. La Relativité des conventíons et les groupes des contrats. in Bibliotheque de Droit Privé, dI., p. 84.

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Note-se, contudo, que tal dever legal de respeito imposto pela boa-fé objetiva assumirá

contornos especfficos de acordo com as peculiaridades do caso concreto que auxiliarão na

determinação da responsabilidade civil do terceiro cúmplice. Dito de outro modo, este dever

legal somente incidirá no caso concreto se estiverem presentes determinados pressupostos

necessários à responsabilização do terceiro. Assim, para que se admita a responsabilidade do

terceiro cúmplice impõe-se a análise da disciplina contratual e das circunstâncias de fato que

autorizarão a aplicação deste dever legal de respeito ao caso concreto.

Nesta esteira, também no momento da quantificação do dano pelo qual o terceiro

cúmplice irá responder, o intérprete deverá analisar a disciplina contratual do qual se origina

o crédito violado, investigando a responsabilidade do devedor no caso concreto. Ao se

proceder ao confronto entre a responsabilidade do devedor e a do terceiro, em determinadas

hipóteses, a exemplo dos contratos que estipulam cláusula penal compensatória, será possível

adotar como parâmetro deveres contratuais assumidos pelo devedor, verificando-se, aí, certa

relativização do princípio da relatividade. Entenda-se bem: a admissão da responsabilidade

do terceiro cúmplice não representa, por si só, esmorecimento do princípio da relatividade,

uma vez que resulta da violação de um dever legal. Entretanto, em determinados casos

especfficos, para que a responsabilidade do terceiro não seja mais gravosa que a do próprio

devedor, que se obrigou perante o credor - o que representaria verdadeiro contra-senso-,

será possível ao intérprete utilizar como parâmetro algumas cláusulas constantes do contrato.

E, então, nestes casos, o princfpio da relatividade restará mitigado.

Assentado o fundamento da responsabilização do terceiro cúmplice na boa-fé objetiva,

passa-se, a seguir, a analisar a natureza desta responsabilidade - se contratual ou extracon­

tratual -; os requisitos deste dever de reparar; a problemática da cláusula penal; a interpre­

tação do art. 608 do Código Civil; e, por fim, de forma sintética, as decisões paradigmáticas

sobre o tema, aqui e alhures, ilustrando os seus atuais contornos na jurisprudência pátria.

3. NATUREZA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO TERCEIRO ClIMPLlCE. REQUISITOS

PARA A CONFIGURAÇÃO DO DEVER DE REPARAR. O PROBLEMA DA CLÁUSULA

PENAL INTERPRETAÇÃO DO ART. 608 DO CÓDIGO CIVIL PRECEDENTES JUDICIAIS

Admitida a responsabilidade civil do terceiro cúmplice, surge acalorado debate doutri­

nário acerca de sua natureza - se contratual ou extracontratual- lOO, embora majoritaria-

100 Ao propósito da distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual, confira-se a crftica de

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mente defenda-se a responsabilidade extracontratual. Tal conclusão dependerá, a evidência,

do fundamento que se adote para embasar dita responsabilização.

Para os adeptos da aludida teoria da oponibilidade dos contratos, de origem francesa,

a responsabilidade do terceiro cúmplice é extracontratual. Como se disse, a oponibilidade

decorre do reconhecimento de que o contrato é um fato social e, como tal, existe em face

de terceiros, que devem, por isso mesmo, respeitá-lo. Tal dever de respeito não representaria

exceção ao princípio da relatividade dos contratos, pois que não se confundiria com os direitos

e deveres especfficos decorrentes do negócio (efeitos internos do contrato) - os quais

permaneceriam circunscritos aos contratantes -, mas, antes, se imporia em razão da exis­

tência do contrato em sociedade. Assim, o fato de o contrato vincular diretamente apenas

os contratantes não significa que o direito de crédito dele proveniente não seja oponfvel a

terceiros. 10

1 Ou, como afirmou Savatier, a obrigação vincula somente o devedor, no sentido

de que os terceiros não são obrigados a qualquer ato positivo de execução; entretanto, se

eles não estão pessoalmente obrigados, também não estão autorizados a causar delitualmen­

te prejufzos ao credor. 1 02

Deste modo, se o terceiro viola o direito de crédito alheio, celebrando com o devedor

contrato incompatível com a obrigação por este anteriormente assumida, não o fará na

qualidade de devedor, pois não assumiu obrigação contratual frente ao credor, não podendo,

portanto, ser responsabilizado contratualmente. Daí buscar-se o fundamento da responsabi­

lidade do terceiro cúmplice na oponibilidade dos contratos, de natureza aquiliana. Assim, a

responsabilidade delitual do terceiro será invocada para completar a responsabilidade con­

tratual do devedor, com vistas a evitar que haja um vácuo por onde o ilícito possa impune­

mente passar. 1 03

Gustavo TEPEDINO acerca da dicotomia, in A responsabilidade civil por acidentes de consumo na ótica

civil-constitucional. In: Temas de direito civil, dI., p. 268.

101 A respeito do significado do princfpio da relatividade, na concepção francesa da teoria da oponibi­

lidade dos contratos, v. WEIL, Alex et TERRt:, François. Droit civil: les obligations. 12. ed. Paris: Dalloz,

1975, p. 579-580.

102 SAVATIER, M. RENt. Le prétendu principe de I'effêt relatif des contrats. In: Revue Trimestrielle de

Droit Civil. Paris: Dalloz-Sirey, 1934, p. 541.

103 SAVATIER, M. René. Le prétendu principe de I'effêt relatif des contrats. In: Revue Trimestrielle de

Droit Civil, 1934, p. 541-542. Em defesa da responsabilidade extracontratual do terceiro, v. CALASTRENG,

Simone. La relativité des conventions: étude de I'article 1165 du Code Civil, cit., p. 334; LALOU, Henri.

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Da mesma forma, os que sustentam a eficácia externa ou reflexa das obrigações defen­

dem a natureza extracontratual da responsabilidade do terceiro cúmplice. Na mesma linha

de raciocfnio, afirmam que apenas o devedor está adstrito ao dever de prestar, de cuja violação

decorre a responsabilidade contratual, não já o terceiro, que, ao não observar um dever geral

de respeito ao direito de crédito alheio, proveniente da eficácia externa das obrigações,

incorre em responsabilidade aquiliana. Em outras palavras, a violação de um dever geral de

abstenção que irradia do direito de crédito enquanto direito subjetivo importa em responsa­

bilidade extracontratual do terceiro. Como esclarece E. Santos Júnior:

"A responsabilidade de terceiro, sendo subjectiva, é, só pode ser, delítual ou aquílíana.

Uma asserção em que somos hoje praticamente acompanhados por todos quantos

defendem a responsabilidade civil de terceiro por lesão do crédito. De facto, a respon­

sabilidade de terceiros não é nem pode ser uma responsabilidade contratual, porque

o terceiro não está adstrito a qualquer dever de prestar, que apenas incumbe ao

devedor, o sujeito passivo da relação obrigacional, apenas este podendo, pois, incorrer

em responsabilidade contratual. A responsabilidade de terceiro é responsabilidade

delitual ou aquiliana, por isso que resulta da violação de um dever geral de abstenção,

que irradia do direito de crédito mesmo, enquanto direito subjectivo (ainda que esse

dever geral de respeito haja de concretizar-se na esfera jurfdica do terceiro de que se

trate, nem por isso se estabelece qualquer relação entre o terceiro e o credor). 104"

Por outro lado, minoritariamente, alguns autores se filiam à responsabilidade contratual

do terceiro cúmplice. Neste sentido, Demogue afirma que o terceiro, ao ajudar o devedor a

descumprir o contrato quando dele tem conhecimento, adere a este contrato e, por esta

razão, deve ser responsabilizado contratualmente. 105

H. Mazeaud, por sua vez, sustenta que a responsabilidade do terceiro e do devedor

seriam extracontratuais. A responsabilidade delitual do terceiro cúmplice mudaria a natureza

da responsabilidade do autor principal do dano que se tornaria também delitual. Tal enten-

Tráité pratique de la responsabilité cMle. 6. ed. par Pierre Azard. Paris, 1962, p. 449-451); e, WEIL, Alex

et TERRt, François. Droit civil: les obligations, cit., p. 582.

104 SANTOS JÚNIOR, E. Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, cit., p. 501.

105 DEMOGUE, René. Traité des oblígations en general, 11. Effets des oblígations, cit., p. 599-600.

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dimento estaria de acordo com os princípios de direito penal e permitiria a responsabilidade

solidária entre o devedor e o terceiro pois que esta só poderia existir na hipótese de culpa

extracontratual. 106

De outra parte, esclareça-se que ao se sustentar a responsabilidade do terceiro cúmplice

com base no abuso de direito, está-se a afirmar que, embora o terceiro pratique ato lícito ao

celebrar com o devedor contrato incompatrvel com obrigação preexistente, tal conduta gera

prejulzos ao credor que devem ser ressarcidos. Assim, com vistas a reparar os danos prove­

nientes da violação do direito de crédito invoca-se a figura do abuso de direito que não se

enquadra na classificação, própria para os atos ilicitos, de responsabilidade contratual ou

extracontratual.

Na verdade, como já se assentou, a responsabilidade do terceiro cúmplice resulta da

violação do dever legal de respeito às situações jurídicas preexistentes das quais tem conhe­

cimento imposto pela cláusula geral de boa-fé objetiva informada pelo princípio constitucio­

nal de solidariedade social. não já de deveres contratuais. Ou seja: a fonte de seu dever de

reparar é a lei e não o contrato. Ora, a infração a este dever legal, como a de qualquer outro,

pressupõe culpa e importa na prática de ato ilícito extracontratual pelo terceiro, 107 albergada

pela cláusula geral de responsabilidade civil subjetiva prevista no caput do art. 927 do Código

Civil. 108

Assim, ao lado da pretensão de reparação dirigida em face do devedor, fundada no ilícito

contratual, o credor prejudicado será titular de outra pretensão contra o terceiro que contra­

tou com o devedor em afronta ao seu direito de crédito, baseada no ilicito extracontratual.

Portanto, de um mesrno fato, qual seja, a celebração de contrato incornpatível corn a

obrigação preexistente, advirá dupla responsabilidade, a títulos distintos: a do devedor

106 MAZEAUD, H. Responsabilite civile délictuelle et responsabilité contractuelle. In: Revue Trimestrielle

de Droit Civil. Paris: Dalloz, 1929, p. 609-610.

107 Com efeito, José Aguiar DIAS esclarece que a responsabilidade fundada na culpa contratual e

extracontratual se difere na "natureza do direito violado. Na primeira, é dentro do contrato cuja existência

precisa ser demonstrada, que se deve 'buscar, encontrar e precisar o direito violado pelo devedor'. Na

culpa extracontratual, essa indagação se dirige ao direito positivo. [ ... ] Culpa, em sentido amplo, existe

em todo ato ilfcito que lese o direito alheio, e a culpa se classifica em contratual ou extracontratual,

conforme a fonte de que promana este direito" (Da responsabilidade civil, 11. ed. rev. e atual. por Rui

Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 160).

108 "Art. 927. Aquele que, por ato ilrcito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a

repará-lo" .

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li: 11:"0

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(contratual), por não adimplir a prestação, e a do terceiro (extracontratual), por cooperar ou

induzir o devedor ao inadimplemento. Sendo assim, devedor e terceiro serão ambos respon­

sáveis pela lesão do crédito, dar decorrendo obrigação subjetivamente complexa de reparar

os preJurzos causados ao credor. 1 09 Dito diversamente, o devedor será autor e o terceiro

co-autor da lesão do direito de crédito alheio,110 respondendo solidariamente pelos danos

provocados ao credor, a teor do que dispõe o parágrafo único do art. 942 do Código Civil,

in verbis: "São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas

designadas no art. 932".

No que tange aos requisitos necessáriOS à configuração do dever de reparar do terceiro

cúmplice, para além dos requisitos do ilfcito em geral, exige-se, em primeiro lugar, que o

terceiro conheça o direito de crédito alheio, pois só então o dever geral de respeito às situações

jurrdicas preexistentes se concretizará em sua esfera jurfdica, exigindo-se que se abstenha de

nele interferir. 111 Nesta direçao, E. Santos Júnior afirma que por conhecimento do crédito

deve-se entender o conhecimento dele na sua existência e configuraçao essencial. Vale dizer:

109 Tal é a constatação de E. SANTOS JÚNIOR: "Há, pois, dois responsáveis perante o credor, a tftulos

diferentes, mas ambos responsáveis: responsáveis, um, é certo, por não realizar a prestação, o outro por

instigar ou auxiliar o devedor a não cumprir, normalmente celebrando com ele um contrato incompatfvel

com a satisfação do crédito anterior, mas, também assim, participe no mesmo acto lesivo; responsáveis,

finalmente, pela mesma lesão, a lesão do crédito. Estamos, pois, seguramente perante um concurso

subjectivo e real (não aparente) de imputações de responsabilidade, perante uma complexidade subjec­

tiva, que necessariamente cabe ser resolvida, pois o credor não pode ser duplamente ressarcido pelo

mesmo dano, não lhe sendo possfvel exigir reparação a um dos responsáveis, se o outro houver reparado

integralmente o dano, nada havendo então que indemnizar. O regime de tal obrigação subjectivamente

complexa ou é o de parciariedade ou é o de solidariedade" (Da responsabilidade civil de terceiro por

lesão do direito de crédito. cit., p. 555-556). Por outro lado, Luis DIEZ-PICAZO sustenta inexistir respon­

sabilidade solidária entre o terceiro e o devedor, devendo-se, na verdade, considerar o ato de violação

conjunta do direito de crédito como um ato unitário, submetido a um regime também unitário de

responsabilidade (Fundamentos dei derecho civil patrimonial: las relaciones obligatorias. cit., p. 606).

110 Apesar da denominação terceiro cúmplice que remontaria, no direito penal, à figura do partfcipe

que auxilia materialmente ou moralmente o autor do crime, o terceiro que celebra com o devedor

contrato incompatfvel com situação jurídica preexistente deve ser considerado autor do ilreito civil.

111 SANTOS JÚNIOR, E. Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito. eit., p. 485.

Para René DEMOGUE bastaria que o terceiro pudesse saber da existência do direito de crédito alheio,

não se lhe exigindo o conhecimento efetivo (Traité des obligations en general, 11. Effets des obligations,

cit., p. 602)

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não basta que o terceiro saiba quem é o credor do devedor, mas conheça minimamente o

regulamento contratual até por força do principio da atipicidade dos créditos. Assim exem­

plifica que:

"Se Afonso sabe que Bento é credor de Carlos, isso em nada limita a liberdade de

Afonso contratar com Carlos, não há ai um verdadeiro conhecimento, para o efeito da

efectivação da oponibilidade do crédito a Afonso, enquanto terceiro. Apenas se Afonso

souber que o direito de crédito de Bento em relação a Carlos consiste, p. ex., no direito

de exigir a Carlos que lhe venda a coisa x, que este lhe prometeu vender, é que uma

limitação concreta existirá na esfera de Afonso: se se propunha a adquirir a Carlos

aquela coisa, deverá, então, abster-se de o fazer, porque conhece o crédito de Bento

- conhece-o na sua existência e configuração essencial __ o e deve, in concreto,

abster-se de interferir com ele .112"

Deste modo, preserva-se a distinção estrutural entre os direitos reais e os direitos de

crédito, uma vez que o contrato não produzirá efeitos erga omnes, mas, ao contrário,

restringirá seus efeitos às partes contratantes, já que o dever legal de respeito somente será

exiglvel de terceiros nas hipóteses destes conhecerem o direito de crédito derivado do

contrato ll3 üra, não seria razoável exigir de terceiros que conhecessem todos os contratos

em vigor no mercado, o que significaria impor-lhes um ônus demasiadamente pesado, além

de representar entrave ao desenvolvimento da vida econômica. Note-se que o conhecimento

pelo terceiro do direito de crédito alheio se trata de uma questão de fato cujo ônus de provar

incumbe ao credor.

Além disso, o terceiro deve praticar um ato comissivo, isto é, auxiliar o devedor ou

induzi-lo ao inadimplemento, celebrando com ele contrato incompatlvel com obrigação

previamente assumida, não bastando que nada faça para impedir o devedor de violar o direito

de crédito. 114

112 SANTOS JÚNIOR, E. Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, cit., p. 505,

nota 1.729.

113 Nesta direção, v. CALASTRENG, Simone. La relativité des conventions: étude de I'article 1165 du

Code Civil, cit., p. 332.

114 DEMOGUE, René. Traité des obligations en general, 11. Effets des obligations, cit., p. 601-602.

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Por outro lado, a doutrina discute acerca da necessidade do elemento intencional do

agente, vale dizer, se haveria necessidade de o terceiro agir com dolo. 115 A este respeito, E.

Santos Júnior afirma que se o terceiro conhece o direito de crédito alheio, e, portanto,

encontra-se, in concreto, adstrito ao dever de abster-se de com ele interferir, ao infringir este

dever, estará agindo, necessariamente, com dolo, isto é, com a intenção ou consciência de

lesar ° crédito alheio (como fim direto ou eventual de sua conduta).116

Entretanto, tal entendimento não colhe por duas ordens de razões. Em primeiro lugar,

porque impõe à vítima prova diabólica no sentido de demonstrar a intenção de prejudicar do

agente, o que equivaleria, na prátka, à impunidade do terceiro cúmplice e a conseqüente

irreparabilidade do dano em inúmeras situações. Assim, estar-se-ia indo de encontro à

mudança de foco da responsabilidade civil ocorrida no século XX, o qual se deslocou do

agente causador do dano à necessidade de reparação mais ampla possível dos prejuízos

sofridos pela vítima. De mais a mais, adotar esta posição significaria se distanciar da tendência

contemporânea de objetivação da culpa que, cada vez mais, se afasta do conceito subjetivo

de previsibilidade do resultado danoso e caminha na direção da idéia de violação a parâmetros

objetivos (standards) de conduta l17

Deste modo, não se exige que o terceiro cúmplice aja com dolo, ou seja, com a intenção

de prejudicar o credor, bastando apenas que conheça o crédito e a, despeito disso, celebre

com o devedor contrato incompatível com a obrigação por este previamente assumida. 118

115 Sobre esta problemática no direito italiano, cf. TEDESCHI, Guido. La tutela aquilíana dei creditare

contro i terzi: con speciale riguardo ai diritto inglese. In: STUDI senesi in memoria di Ottorino Vannini.

Milano: Giuffre, 1957, p. 302-304.

116 SANTOS JÚNIOR, E. Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, cit., p. 505.

Francesco Donato BUSNELLI, por sua vez, sustenta a necessidade de o terceiro agir de má-fé para que

seja responsabilizado (La lesione dei credito da parte di terzi. Milano: Dott. A. Giuffre editore, 1964, p.

257-258). Na mesma direção, M. René SAVATIER afirma que o terceiro que, mesmo tendo ciência do

contrato celebra com o devedor negócio incompatlvel com o preexistente, age de má-fé, sem a

necessidade da intenção de prejudicar para que se configure a responsabilidade do terceiro (Le prétendu

principe de I'effét relatif des contrats, cit., p. 26). v., ainda, Pietro TRIMARCHI sustentando a necessidade

da intenção de prejudicar do terceiro para sua responsabilização (lstituzioni di diritto priva to. Milano:

Giuffre Editore, 1973, p. 98).

117 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos

morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 209-217.

118 v., no sentido do texto, CARDOSO, Patricia. A posição do terceiro no contrato: uma abordagem não

dogmática, cit., p. 220.

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No que se refere à problemática da cláusula penal, discute-se se a responsabilização do

terceiro cúmplice estaria atrelada à cláusula penal compensatória porventura pactuada entre

credor e devedor. Em outras palavras, indaga-se se a responsabilidade do terceiro cúmplice

está limitada ao quantum previsto na cláusula penal constante de contrato do qual não é

parte.

Com efeito, a cláusula penal corresponde ao dever específico assumido pelo devedor em

caso de inadimplemento e que, por força do princípio da relatividade, a ele se restringe, não

alcançando terceiros, os quais não anuíram na formação do vínculo contratual. Assim, em

termos técnicos, não seria possível estender ao terceiro cúmplice a cláusula penal que, restrita

às partes contratantes, obrigaria apenas o devedor. Estaria, portanto, o magistrado livre para

fixar a indenização pela qual o terceiro iria responder, ao passo que o devedor teria sua

responsabilidade limitada à cláusula penal.

Tal solução, na hipótese em que os prejuízos se afigurassem superiores ao montante

previsto na cláusula penal, representaria, a evidência, a imposição ao terceiro de responsabi­

lidade mais gravosa do que a do próprio devedor, que se obrigou perante o credor, assumindo

deveres contratuais específicos que justificam o estabelecimento de liame muito mais intenso

com o credor. Isso porque o devedor responderia solidariamente com o terceiro pelo valor da (81) cláusula penal (a qual contém o limite indenizatório a que se obrigou), e os prejuízos

. 'd I . 119 P '. excedentes seriam ressarcI os pe o terceiro. ara que se eVite esta situação injusta, o

intérprete deverá, diante do caso concreto, no momento da quantificação do danei pelo qual

o terceiro cúmplice irá responder, adotar como parâ~etro os deveres contratuais assumidos

pelo devedor. Dito diversamente, o juiz deverá analisar o regulamento contratual do qual se

origina o crédito lesionado, investigando a responsabilidade do devedor, e, desta forma,

proceder ao confronto entre esta e a que se pretende imputar ao terceiro. Assim, não será

razoável admitir que o terceiro responda por valor superior ao limite estabelecido pela cláusula

penal, que deverá consistir em parâmetro para sua responsabilização. Devedor e terceiro serão

solidariamente responsáveis até o limite do valor comum pelo qual ambos irão responder.

Note-se que a cláusula penal compensatória consiste na pré-fixação das perdas e danos

sofridos pelo credor na hipótese de inadimplemento absoluto do devedor, o qual acarreta a

perda de utilidade na manutenção do vínculo contratual. Assim, caso os prejuízos se mostrem

119 Esta é a solução defendida por SANTOS JÚNIOR, E. Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, dt., p. 560-562.

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superiores ao valor estipulado na cláusula penal, é vedado ao credor exigir indenizaçao suple­

mentar, a menos que o contrato a preveja expressamente (Código Civil, art. 416, parágrafo

único). Na presença de previsáo contratual, caberá ao credor provar o prejuízo excedente, va­

lendo a cláusula penal como mínimo indenizatório. Nesta hipótese, o terceiro cúmplice poderá

responder solidariamente com o devedor por valor inferior à cláusula penal, igual à cláusula

penal, ou, até mesmo, pelos prejuízos excedentes, dependendo de sua participaçao, no caso

concreto, na causaçao dos danos. O devedor, ao seu turno, responderá sempre pelo montante

da cláusula penal mais os prejuízos excedentes comprovados pelo credor.

Por outro lado, se os prejuízos sofridos pelo credor com o inadimplemento se revelarem

inferiores ao valor pré-fixado na cláusula penal, o problema nao se coloca, na medida em que

o devedor responderá pela cláusula penal, ao passo que o terceiro cúmplice será responsabi­

lizado até o valor máximo dos prejuízos efetivamente sofridos.

O prazo prescricional para que o credor exerça sua pretensão em face do devedor e do

terceiro cúmplice é de três anos, nos termos do art. 206, §3°, V, do Código Civil, 120 a contar

do momento da efetivação do dano.

O Código C ivil brasileiro positivou, em seu art. 608,121 hipótese específica de atuação

do terceiro cúmplice que induz o devedor a inadimplir o contrato de prestação de serviços

celebrado com o credor-locador para com ele firmar negócio semelhante, incompatrvel, por

isso mesmo, com a obrigação previamente assumida pelo devedor. Confira-se o teor do

preceito legal:

"Art. 608. Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço

a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito,

houvesse de caber durante dois anos."

Como se vê, ao lado dos requisitos necessários à configuração da responsabilidade civil

em geral e, em específico, do terceiro cúmplice, exige-se que o contrato de prestação de

120 "Art. 206. Prescreve: [".] § 3D• Em 3 (três) anos [".j V - a pretensão de reparação civil".

121 Tal preceito, embora tenha reduzido a indenização a ser paga ao locador de serviços, ampliou

alcance do disposto no art. 1.235 do Código Civil de 1916, que se limitava à locação de serviços Qu,,~u,aJ,"

in verbis: "Art.1 .235, Aquele que aliciar pessoas obrigadas a outrem por locação de serviços "nrwo'.'r'

haja ou não Instrumento deste contrato, pagará em dobro ao locatário prejudicado a importância,

ao locador, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante 4 (quatro) anos" .

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serviços entre o locador (credor) e o locatário de serviços (devedor) seja escrito, de modo a

constituir prova incontroversa do prévio vinculo contratual. 122

Além disso, o dispositivo determina que o terceiro cúmplice indenize o credor no valor

que este último pagaria ao prestador de serviços, nos termos contratuais, pelo prazo de dois

anos, tratando-se, portanto, de pré-fixação das perdas e danos. Entretanto, caso o credor

demonstre que da lesão contratual provocada pelo terceiro cúmplice adveio prejuízo superior

ao estabelecido em lei, poderá requerer a majoração deste montante. 123

Evidentemente que se tal hipótese não estivesse prevista em lei o terceiro seria, da mesma

forma, responsabilizado, mediante a aplicação da cláusula geral de responsabilidade subjetiva

prevista no caput do art. 927 do Código Civil.

Hessalte-se que o dever geral de respeito às situações jurídicas anteriormente constituídas

decorrente da cláusula geral de boa-fé objetiva constitui a ratio deste dispositivo, consagran­

do, mais uma vez, sua aplicação extracontratual. Além disso, como já referido, tal dever geral

de respeito assumirá os seus contornos específicos diante das peculiaridades do caso concre­

to, que auxiliarão na determinação da responsabilidade civil do terceiro cúmplice.

Assim, nesta hipótese do art. 608 do Código Civil, dever-se-á verificar, por exemplo, se

do contrato anterior consta cláusula de exclusividade, se a prestação contratada é infungível,

qual é o grau de especialização do locatário dos serviços, etc., e se o terceiro conhecia

minimamente estas circunstâncias. Se o credor provar que o terceiro tinha ciência destes

fatores e, ainda assim, contratou com o devedor, sem dúvida restará configurada a respon­

sabilidade civil do terceiro cúmplice. Por outro lado, se não houver cláusula de exclusividade

ou se o prestador de serviços contrata prestação fungível e mantém diversas contratações

semelhantes simultaneamente, atendendo eficazmente a todos os seus credores, a celebra­

ção de contrato com terceiro não caracterizará o aliciamento da mão-de-obra apto a ensejar

a responsabilidade civil do terceiro cúmplice .124

A temática da responsabilidade civil do terceiro cúmplice tem sido objeto de recorrente

análise pela jurisprudência estrangeira. Na França, as aplicações mais freqüentes da respon-

122 TEPEDINO, Gustavo et alii. Código civil interpretado conforme a Constituição da República, v. 2, cit.,

p.339-340.

123 Neste sentido, TEPEDINO, Gustavo et alii. Código civil interpretado conforme a Constituição da

República, v. 2, cit., p. 339-340.

124 Nesta direção, v. LOPEZ, Teresa Ancona. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Editora Saraiva,

2003, v. 7, p. 237-240.

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sabilidade civil do terceiro que, ciente do crédito alheio, se associa ao devedor na violação do

contrato, têm ocorrido nos contratos de trabalho ou de prestação de serviços, em que o

terceiro incita o empregado ou o operário a romper o contrato anteriormente firmado

mediante o oferecimento de maiores salários, o se denominou de débauche de salarié; nas

hipóteses de contratação de atores vinculados por cláusula de exclusividade à realização de

determinado espetáculo (engagement théâtraD; nos casos de violação de restrições aos

direitos do comprador pelo terceiro sub-adquirente, como, por exemplo, a infração à cláusula

que fixa preço mlnimo de revenda (marchés commerciaux); e, ainda, a violação pelo terceiro

de um pacto de preferência ou uma promessa de venda 125 Assim, de acordo com a

jurisprudência francesa, toda pessoa que, ciente do contrato previamente existente, auxilia

o devedor no descumprimento de suas obrigações contratuais, incorre em responsabilidade

civil. 126

Em Portugal, embora a doutrina tenha desenvolvido amplamente o tema, a jurisprudên­

cia, segundo afirma E. Santos Júnior, é muito escassa e oscilante neste assunto, ora admitindo

a responsabilidade civil do terceiro cúmplice, com base na eficácia externa das obrigações,

ora rejeitando esta possibilidade sob os fundamentos da doutrina clássica. O autor traz à baila

alguns precedentes, dentre os quais se destaca o caso em que os sócios de uma companhia

celebraram acordo pelo qual se obrigaram a não vender ou, de qualquer modo, alienar as

ações de que eram titulares sem dar preferência aos demais SÓCIOS. Estipularam, ainda,

cláusula penal correspondente à metade do valor nominal da totalidade das ações de que o

sócio faltoso fosse titular, a ser pago aos demais sócios. Na espécie, um dos sócios vendeu a

terceiro um lote de suas ações sem obedecer ao direito de preferência estipulado na conven­

ção. Restou demonstrado que o terceiro conhecia os termos do acordo e sabia que havia sido

descumprido pelo sócio vendedor. Assim, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que o

terceiro participou na violação do pacto de preferência, colaborando com o sócio vendedor

125 Sobre a matéria, veja-se Henri LALOU, que passa em revista Inumeras precedentes nas cortes

francesas que responsabilizaram o terceira cumplice (Tr'áité pratique de la responsabilité eivile, cit., p.

449-451). V tb. WEIL, Alex et TERRt, Françols. Droit civil: les obligations, cit., p. 582.

126 V, neste sentido, os seguintes precedentes: Com. 11 oct. 1971: D. 1972. 120; 13 mars 1979: D.

1980. 1, note Serra; Com. 23 avr. 1985: BulI. Civ. IV, n. r 24 (terceiro cúmplice da violação de uma cláusula

de não concorrência); Civ. 2e, 13 avr. 1972: D. 1972.440 (contrato de edição tendo por efeito privar o

editor anterior de seu direito de preferência sobre a obra considerada); Com. 4 mai 1993. BulI. Civ. IV,

n. 164 (terceiro cúmplice de violação de uma garantia de evicção).

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no menosprezo do direito de preferência contratado, sendo condenado a reconhecer o direito

de preferência dos autores e a entregar-lhes as ações mediante o pagamento do preço pelo

qual o sócio réu lhe vendera. O devedor, por sua vez, foi condenado ao pagamento da cláusula

penal. Embora o tribunal tenha reconhecido a eficácia externa das obrigações e a responsa­

bilidade do terceiro cúmplice, não condenou o terceiro interferente em qualquer indenização .,' 127

pecunlana.

Na Itália, por sua vez, a tutela aquiliana do crédito passou a ser admitida pela jurispru­

dência a partir do /eading case Meroni, na década de 70, que embora não trate especifica­

mente da atuação do terceiro cúmplice por meio da celebração de contrato incompatível com

a obrigação previamente assumida pelo devedor, versa sobre figura análoga: a da interferên­

cia ou ação de terceiro sobre a vida do próprio devedor, em lesão aos direitos do credor. Tal

precedente mudou a orientação da jurisprudência italiana ao admitir a extensão dos efeitos

obrigacionais a terceiros que não figuravam como parte no contrato, com base na responsa­

bilidade aquiliana estabelecida pelo art. 2.043 do Código Civil italiano. No caso, o jogador

de futebol Luigi Meroni, do Torino Cálcio, foi morto num acidente de avião, em 15 de outubro

de 1967, iniciando-se, então, processo criminal contra Attilio Romero por homicfdio culposo.

A Sociedade Torino Cálcio ingressou com uma ação contra Attilio Romero perante o Tribunal CD> de Turim requerendo, caso este fosse condenado no juízo criminal, reparação pelos danos

sofridos em decorrência da morte do seu jogador Meroni. O Tribunal de Cassação, em acórdão

de 26 de janeiro de 1971, admitiu, em tese, a lesão do direito de crédito por terceiros e, na

espécie, reconheceu a possibilidade de o dano causado pela morte do jogador à sociedade

Torino Calcio ser direto e imediato, desde que a perda do jogador fosse irreparável e definitiva,

isto é, restasse demonstrado não ser possível substituir o jogador por outro equivalente em

condições iguais ou menos onerosas. Não obstante o juízo de reenvio tenha rejeitado a

pretensão da sociedade Torino Cálcio ao aplicar o critério definido pelo Tribunal de Cassação,

este precedente consagrou, na jurisprudência italiana, a possibilidade de responsabilização

do terceiro pela lesão ao direito de crédito alheio. 128

127 Para o aprofundamento da matéria, ver SANTOS JÚNIOR, E. Da responsabilidade civil de terceiro por

lesão do direito de crédito, cit., p. 424-436.

128 Corte di Cassazione, sezioni unite, sentenza 26 gennaio 1971 n. 174; PRESo Stella Richter, EST. Ridola,

P. M. Tavolaro (concl. parz. diff.); S.p.a. Torino calcio (Avv. Sequi, Grande Stevens, Manassero, Nicolo) c. Romero (Avv. Contaldi, Zola, Zenari).

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Por outro lado, no direito anglo-saxão, a lesão contratual provocada pelo terceiro

cúmplice é há muito discutida e desenvolvida pelos tribunais, sendo, em concepção mais

restrita, originalmente denominada tort of inducing breach of contract, e hoje conhecida

como tortof interference with contractual relations. O primeiro precedente judicial na matéria

consistiu no leading case Lumley v. Gye. No caso, Joahnna Wagner, cantora de ópera, celebrou

contrato com o empresário teatral Benjamin Lumley, mediante o qual se obrigou a cantar em

seu teatro Her Majesty's Theatre of London, pelo período de três meses, em regime de

exclusividade. Entretanto, o empresário rival de Lumley, Frederick Gye, proprietário do Royal

Italian Opera, conhecendo este acordo, aliciou Wagner oferecendo-lhe maior quantia para

que fosse cantar em seu teatro, deixando de cantar no teatro de Lumley, em violação à

cláusula de exclusividade. Diante disso, Lumley obteve uma injuction que proibia Wagner de

cantar no teatro de Gye. Contudo, Wagner, ainda assim, não quis cantar no teatro de Lumley,

o qual, então, ingressou com uma ação de perdas e danos em face de Gye, sustentando que

este teria, maliciosamente, induzido Wagner a descumprir o contrato e, posteriormente, a

recusar-se a cumpri-lo, a despeito da injuction. Lumley ganhou a demanda e Gye foi conde­

nado a indenizá-lo. 129

Posteriormente, após crescente evolução jurisprudencial na matéria, surgiu o célebre

caso Pennzoil v. Texaco, na década de 80. De forma sintética, em 2 de janeiro de 1984, a

Pennzoil, com vistas a adquirir reservas de petróleo, celebrou com os principais acionistas da

Getty Oil um Memorando de Entendimento o qual dispunha que a Pennzoil iria adquirir 43%

das ações da Getty Oil, pelo preço de US$ 110,00 cada, e Gordon P. Getty ficaria com 57%.

O acordo foi anunciado ao público dois dias depois por meio de uma nota à imprensa, embora

as partes continuassem as negociações. Em 5 de janeiro, representantes dos dois principais

acionistas da Getty Oil, Gordon P. Getty e J. Paul Getty Museum, iniciaram negociações

secretas com a Texaco para que esta adquirisse a companhia Getty Oil mediante o pagamento

de US$ 128,00 por ação. No dia seguinte, foi publicada nota na imprensa anunciando que a

Texaco teria assinado um acordo com os acionistas da Getty Oil para a compra da companhia.

Assim, em 8 de fevereiro de 1984, a Pennzoil ingressou com uma ação contra a Texaco perante

a Harris County Oistrict Court, em Houston, Texas, requerendo indenização compensatória

de 7,53 bilhões de dólares, punitive damages e juros, com base no tort of induction breach

of contract, isto é, alegando que a Texaco, maliciosamente, teria induzido o devedor a romper

129 Lumley v. Gye. Queen's Beach. 1853. 2 E. & B. 216; 118 E. R. 749; 22 L.J.Q.B. 463.

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o contrato de venda de ações que seria celebrado com a Pennzoil. A Corte julgou procedente

o pedido, condenando a Texaco em 7,53 bilhões de dólares a titulo de indenização compen­

satória, 3 bilhões de dólares pelos punitive damages e 600 milhões de dólares de juros. Ao

final, as partes chegaram a um acordo pelo qual a Texaco pagaria a Pennzoil a quantia de 3

bilhões de dólares. 130

No Brasil, a doutrina dedicou poucas linhas à temática da responsabilidade civil do

terceiro cúmplice, e, os tribunais, por via reflexa, não se pronunciaram sobre a matéria até o

presente momento, embora tenham enfrentado dois famosos casos, de repercussão nacional,

que, em tese, configurariam hipótese de lesão contratual pelo terceiro cúmplice.

No primeiro deles, o conhecido cantor Zeca Pagodinho foi contratado, em setembro de

2003, pela companhia Schincariol, para ser "garoto-propaganda" da campanha publicitária

de lançamento de sua nova marca de cerveja, a Nova Schin, levada a cabo pela empresa Fisher

América Comunicação Total Ltda. Acordou-se que o cantor se obrigaria a participar de duas

campanhas da referida cerveja, tendo o contrato duração até setembro de 2004. No instru­

mento contratual figuraram como partes, de um lado, Zeca Pagodinho e, de outro, Fisher

América e AII-E Esportes e Entretenimento Ltda. Pouco tempo depois, quando a campanha

de lançamento ainda estava sendo veiculada, o cantor foi contratado pela agência publicitária

Africa São Paulo Publicidade Ltda., representada pelo publicitário Nizan Mansur de Carvalho

Guanaes Gomes, a pedido da Ambev, para estrear na publicidade da cerveja concorrente

Brahma. Assim, em março de 2004, fez uma estréia surpresa em comercial da Brahma no

qual insinuava que esta seria a sua marca preferida. l3l Em seguida, a empresa publicitária

Fischer América e AII-E Esportes e Entretenimento Ltda. ingressaram com uma ação perante

a justiça do Estado de São Paulo em face da Africa São Paulo Publicidade Ltda. e de Nizan

Mansur.

Em primeiro grau, preliminarmente, entendeu-se que Nizan Mansur era parte ilegftima

para figurar no pólo passivo da demanda por ter praticado atos apenas em nome da Africa.

No mérito, considerou-se que a Ré Africa teria se utilizado do recurso da propaganda

comparativa, admitido pelo mercado publicitário, mas de forma exagerada e depreciativa,

contrariando o disposto no Código Brasileiro de Auto-Regulamentação da Publicidade que,

130 Pennzoil Company v 7exaco, Inc., 107 s.et. 1519, 1522-1524 (1987).

131 No comerciai da Brahma, o cantor afirmava: "Fui provar outro sabor, eu sei, mas não largo meu

amor, voltei" .

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em seu art. 32, autoriza o recurso desde que respeitados os limites por ele fixadosl32 Além

disso, teria violado a alínea "f" do artigo referido, pois a propaganda comparativa caracteri­

zou concorrência desleal, denegrimento à imagem do produto ou à marca de outra empresa,

ao se utilizar de personagem central da campanha da Schincariol, e transmitir a idéia de que

o consumo do produto divulgado pela Schincariol foi apenas passageiro, de modo a impedir

a veiculação de propaganda da Schincariol. Invocou-se, ainda, o artigo 209 da Lei de Proprie­

dade Industrial que admite a reparação civil para os "atos de concorrência desleal não

previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios". Assim,

entendeu-se que "houve a prática de uma conduta ilícita ao contratar o personagem central

da campanha divulgada pela autora, rompendo o contrato celebrado, além de ter feito

comparações de caráter subjetivo com a finalidade de denegrir a imagem do produto

divulgado pela autora" .133 O juízo de primeiro grau, portanto, condenou a Ré África em

danos materiais, em favor da Fischer América, em valor a ser apurado em liquidação de

sentença, correspondente às quantias pagas pela Schincariol à Fischer América em decorrên­

cia da veiculação do primeiro comercial, considerados devidos em razão da interrupção de

sua primeira campanha e da impossibilidade de veicular a segunda campanha contratualmen­

te prevista; em danos morais, no valor de I~$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), em favor da

Fischer América, e de R$ 100.000,00 (cem mil reais) para AII-E Esportes pela divulgação dos

nomes das autoras no mercado publicitário ligados ao incidente, com grande repercussão.

132 "Ar!. 32. Tendo em vista as modernas tendências mundiais -- e atendidas as normas pertinentes do

Código da Propriedade Industrial (Lei n° 5.772, de 21 de dezembro de 1971) - a publiCidade comparativa

será aceita, contanto que respeite os seguintes princlpios e limites: a) seu objetivo maior seja o esclare­

cimento, se não mesmo a defesa do consumidor; b) tenha por principio básico a objetividade na

comparação, posto que dados subjetivos, de fundo psicológico ou emocional n[lo constituem uma base

válida de comparação perante o Consumidor; c) a comparação alegada ou realizada seja paóslvel de

comprovação; d) em se tratando de bens de consumo e comparação seja feita com modelos fabricados

no mesmo ano, sendo condenável o confronto entre produtos de épocas difelentes, a menos que se

trate de referência para demonstrar evolução, o que, nesse caso, deve ser caracterizado; e) não se

estabeleça confusão entre produtos e marcas concorrentes; t) não se caracterize concorrência desleal,

denegrimento à imagem do produto ou à marca de outra empresa; g) não se utilize injustificadamente

a imagem corporativa ou o prestfgio de terceiros; h) quando se fizer urna comparação entre produtos

cujo preço não é de igual nfvel, tal circunstancia deve ser claramente indicada pelo anúncio".

133 Proc. n. 583.00.2004.039608-6, 9' Vara Cfvel do Fórum Central Clvel João Mendes Júnior - SP,

julg. 13.5.2005.

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Embora a juíza não tenha cogitado da teoria do terceiro cúmplice para justificar a

condenação, afirmou que "a ré estava ciente da existência de um contrato vinculando o

cantor Zeca Pagodinho e ainda assim optou por contratá-lo, motivo pelo qual o valor nele

estabelecido deve ser utilizado como parâmetro para a indenização pelos danos morais". Ou

seja, o juízo de primeiro grau condenou o terceiro pela prática de ilícito civil, invocando um

dos requisitos para a responsabilização do terceiro cúmplice, qual seja, o conhecimento do

vínculo contratual anterior, e adotando como parâmetro para a indenização dos danos

sofridos pelas autoras o valor contratualmente estabelecido com a Schincariol pela atuação

do cantor.

Outro célebre caso também submetido à justiça do Estado de São Paulo se refere à

violação de cláusula de exclusividade pactuada entre determinada distribuidora de petróleo

e seus postos revendedores provocada por terceiros distribuidores que interferem nesta

relação contratual comercializando seus produtos com os postos revendedores publicamente

identificados como postos de serviços desta distribuidora de petróleo especffica. 134 A distri­

buidora prejudicada ingressou com ação objetivando impedir que terceiros distribuidores

vendessem, fornecessem ou realizassem qualquer tipo de comercialização de produtos com­

bustíveis, derivados ou não de petróleo, para empresas que ostentassem sua marca, em

violação ao seu direito de propriedade industrial e a configurar prática de concorrência

desleal. O Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu decisão assim ementada:

"Propriedade industrial. Marca e concorrência desleal. Distribuidora de combustfveis

que coloca seu produto no mercado consumidor valendo-se da estrutura mercadoló­

gica e da marca alheia. Violação do direito caracterizado. Indenização cabível. Apuração

em liquidação da sentença por arbitramento. Caracteriza-se violação de marca e

concorrência desleal o ato de distribuidora de combustfvel de colocar no mercado

consumidor o seu produto utilizando-se de estrutura de mercado e da marca de outra,

pois além de poupar investimentos na construção de uma rede de escoamento de seu

produto ao consumo final, que reflete em um custo menor de produção, confunde e

engana o consumidor, que acredita estar adquirindo um produto de uma marca,

134 Este caso foi objeto de estudo especffico de AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princfpios do novo

direito contratual e desregulamentação do mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de

fornecimento. função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o

inadimplemento contratual, cit.

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quando adquire um produto de marca não identificada. Essa atuação em nada se ajusta

ao princípio da livre concorrência prevista no art. 170, IV, da Constituição da República,

que não compreende uma liberdade desvinculada da ética, sem respeito ao consumI­

dor. Caracterizada a violação, dela decorre os prejuízos da autora, que deixou de vender

à sua rede a quantidade que a este foi vendida pela ré, impondo-se a composição dos

prejuízos, segundo o critério estabelecido no art. 210, I e 11, da Lei 9.279/96, a ser

apurado em liquidação por arbitramento. 135n

o Tribunal entendeu que a distribuidora que interfere na relação contratual alheia da

qual tem conhecimento comercializando combustíveis com postos revendedores vinculados

a distribuidor específico por cláusula de exclusividade comete ato ilícito, devendo, por isso

mesmo, reparar os prejulzos causados ao credor. Os fundamentos da decisão se restringiram

à violação da marca da autora e à prática de ato de concorrência desleal, além de se consignar

que a conduta censurada violava a expectativa do consumidor de estar adquirindo produto

de determinada marca, não se invocando, portanto, a doutrina do terceiro cúmplice. Assim,

o Tribunal condenou as Rés a ressarcirem às autoras os prejulzos causados, adotando como

critério para os lucros cessantes os beneficios que o prejudicado teria auferido se a violação

não tivesse ocorrido e os beneficios que foram auferidos pelo autor da violação do direito. 136

Como se vê, os casos acima referidos, submetidos aos tribunais brasileiros, envolvem a

atuação do terceiro cúmplice, que interfere na relação contratual alheia lesando o direito de

135 TJSP. Ap. Cfv. 130981.4/4 - Araraquara, ReI. Des. I~uiter Oliva, julg. 8.2.2000.

136 Confira-se interessante passagem da decisão: "Esse modo empresarial de agir não revela uma

concorrência marcada pela lealdade. Pelo contrário, a deslealdade é manifesta. Com efeito, incide na

censura ética a busca de um progresso à custa do esforço e do empenho alheio [ ... J Há, inegavelmente,

uma violação à marca da autora, e um ato de concorrência desleal. Essa é uma conduta illcita, porque a

ré conscientemente age de modo a colocar no mercado consumidor, economizando custos, um produto

seu e mais barato, ciente que armazenado em recipiente que contém marca legItima da autora, sendo

esta a responsável, perante o consumidor, pela qualidade desse produto [ ... J A ré fornecendo combustfvels

às empresas vinculadas às bandeiras 'Ipiranga' e 'Atlantic' redUZIU as vendas da autora, o que é bastante

para revelar a perda económica, ou os lucros cessantes. E, esses lucros, no caso concreto, hão de ser

determinados pelo critério mais favorável ao prejudicado, dentre os seguintes: I - os benefIcios que o

prejudicado teria auferido se a violação não tivesse ocorrido; 11- os benefIcIos que foram auferidos pelo

autor da violação do direito (art. 210, da Lei n. 9.279/96)" (TJSP. Ap. Clv. 130981.4/4 - Araraquara, HeI.

Des. Ruiter Oliva, julg. 8.2.2000).

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crédito de outrem. Embora os tribunais tenham admitido a prática de ato ilícito pelo terceiro,

não se manifestaram a respeito da doutnna do terceiro cúmplice, limitando-se a invocar

outros fundamentos para lastrear a decisão.

Assim, a despeito da interferência illcita de terceiros nas relações contratuais em violação

ao direito de crédito alheio revelar-se freqüente no exercício da atividade econômica, o tema,

no Brasil, ainda carece de grande desenvolvimento teórico e prático com vistas a garantir a

efetividade do instituto.

PAULA GRECO BANDEIRA Mestranda em Direito Civil -- UERJ. Advogada.

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