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Fundamentos Da Teologia Da Igreja

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    teoloqia da iqreja

    Editora Mundo CristoSo Paulo

  • FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJACategoria: Teologia / Referncia

    Copyright 2007, por Carlos Ribeiro Caldas Filho

    Editora responsvel: Silvia [usrinoEditor assistente: Aldo MenezesReviso deprovas: Thefilo VieiraSuperviso deproduo: Lilian MeloColaborao: Miriam de AssisCapa: Oouglas LucasCrdito da imagem: ImageState/Alamy

    Os textos das refernciasbblicas foram extrados da verso AlmeidaRevista eAtualizada,2aed. (Sociedade Bblica doBrasil), salvo indicao especfica.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Caldas, CarlosFundamentos da teologia da Igreja! Carlos Caldas - So Paulo: MundoCristo, 2007. - (Coleo teologia brasileira).

    Bibliografia.ISBN 978-85-7325-482-2

    I. Cristianismo 2. Igreja 3. Teologia I. Ttulo. lI. Srie

    07-4468 COO-262

    ndice para catlogo sistemticoI. Igreja : Eclesiologia : Teologia crist 262

    Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/2/1998. expressamente proibida a reproduo total ou parcial deste livro, por quaisquer meios (eletrnicos, mecnicos,fotogrficos, gravao e outros), sem prvia autorizao, por escrito, da editora.

    Publicado no Brasil com a devida autorizao e com todos os direitos reservados pela:Associao Religiosa Editora Mundo CristoRua Antonio Carlos Tacconi, 79, So Paulo, sr, Brasil - CEP 04810-020Telefone: (I I) 2127-4147 - Home page: www.mundocristao.corn.br

    Editora associada a: Associao de Editores Cristos CmaraBrasileira do Livro Evangelical Christian Publishers Association

    AI' edio foi publicada em julho de 2007.

    Impresso no Brasil

    1098765432 07 08 09 10 Il 12 13 14 15

  • memria de meu pai, Carlos Ribeiro Caldas (1931-2007). Com minha me, ele me levou igreja quan-do euaindaerabeb e me ensinou a amare a valorizara comunho com o povo de Deus.

  • Sumrio

    AgradecimentosIntroduo

    1. As bases da eclesiologia2. As marcas da Igreja3. A dinmica da Igreja4. O crescimento da Igreja5. O governo da Igreja6. A Igreja, o reino de Deus e o mundo

    ConclusoBibliografia de consulta sugeridaBibliografiaSobre o autor

    911

    152345637385

    959799

    105

  • Agradecimentos

    EXPRESSO MINHA gratido aos professores doutores Ricardo QuadrosGouva e Hermisten Maia Pereira da Costa, ambos colegas de do-cncia na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em conversas in-formais, mas proveitosas e oportunas, esses amigos telogos me deramindicaes bibliogrficas de alguns temas tratados neste livro e suges-tes de como abord-las.

  • Introduo

    POUCAS FRASES EXPRESSAM TO bem o que a Igreja como esta: "AIgreja como a arca de No - se no fosse a tempestade l fora, noseria possvel suportar o cheiro dentro dela". 1

    Ao contrrio do que alguns pensam, a Igreja no o agrupamen-to de pessoas perfeitas, mas a reunio de pecadores salvos pela graade Deus. No so salvos porque deixaram de pecar, nem deixaramde pecar porque foram salvos. Para muitos, contudo, o que sobressai o fato de ainda serem pecadores.

    Nesse ajuntamento h mescla de joio e trigo, que, embora pareci-dos, so essencialmente diferentes. Como diziam antigos telogos, aIgreja um corpus permixtum: um corpo em que santos e pecadores semisturam. Isso explica o carter paradoxal da Igreja ao longo dossculos: ao mesmo tempo que responsvel por denunciar o mal e ainjustia e por prestar servios humanitrios, tambm acusada deser violenta e de cometer erros crassos.

    Diante disso, uma reflexo teolgica crtica a respeito da Igreja sefaz necessria. Outra razo relevante: ela preciosa e importantepara Deus: "Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela"(Ef 5:25). Ele a comprou com seu sangue (At 19:28; lPe 1:17-21).

    H muitas metforas ou expresses relativas Igreja nas Escrituras:"sal da terra", "luz do mundo", "carta de Cristo", "ramos da videiraverdadeira", "noiva de Cristo", "Israel de Deus", "remanescente", "raa

    1 Texto medieval citado por Bruce SHELLEY em A igreja: povode Deus, p. 31.

  • 12 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    eleita", "sacerdcio real", "nao santa", "povo de propriedade exclu-siva de Deus", "corpo de Cristo", "casa de Deus", "coluna e baluarteda verdade", "igreja do Deus vivo", "servos de Cristo", "lavoura eedifcio de Deus" etc. Essas imagens apontam para a importncia daIgreja, no como instituio, mas como comunidade dos chamadospor Deus para serem seguidores de Jesus Cristo no mundo.

    No perodo patrstico, pastores e pensadores cristos criaram es-tas metforas: "numerosa descendncia de Abrao" e "nica comu-nidade da f" (Ireneu), "santurio do Esprito Santo" (Orgenes) e"barca da f" (Gregrio Nazianzeno). Os escolsticos cunharam aexpresso "congregao (ou assemblia) dos fiis". Joo Calvino, in-fluenciado por Cipriano de Cartago, via a Igreja como "me" doscrentes. No de admirar que os antigos tenham elaborado a fraseUnus christianus nullus christianus (um cristo no cristo), que podeser parafraseada: "Um cristo desvinculado de uma comunidade def no cristo", ou seja, no existe cristianismo sem Igreja.

    Este livro apresenta os fundamentos da eclesiologia (a doutrinada Igreja). uma reflexo crtica luz das Escrituras.

    Os textos que pretendem pensar teologicamente a Igreja em pers-pectiva evanglica so escassos. Algumas vezes h divrcio entre Igrejae reflexo teolgica, o que contradio de termos, pois uma teolo-gia saudvel deve nascer na Igreja e ser formulada com base em suasnecessidades. O modelo fundamental o do apstolo Paulo, quejamais produziu teologia desvinculada das situaes e necessidadescontextuais, concretas e especficas das igrejas s quais suas epstolaseram dirigidas. O mesmo ocorre com as demais epstolas e Apocalipse.

    preciso superar a desconfiana em relao reflexo teolgica eaos telogos da parte de alguns pastores e membros de igrejas, bemcomo o desprezo de alguns telogos Igreja. O telogo deve se en-volver e se comprometer com a Igreja, e esta, com a reflexo teolgi-ca. Que este livro contribua, ainda que modestamente, a esse debate.

    O mtodo empregado simples. Em primeiro lugar, parte-se dotexto bblico. Em segundo, vem a opinio dos pais da Igreja, dosreformadores e de telogos contemporneos. uma tentativa de di-logo entre as Escrituras e a tradio teolgica produzida em dois

  • INTRODUAO 13

    milnios do pensamento cristo. Ouvir a voz dos que pensaram aIgreja e outras questes da vida crist com temor de Deus, seriedadee profundidade um exerccio de vivenciar a comunho dos santos.

    A perspectiva teolgica desta reflexo crist e evanglica. Ainteno apresentar os fundamentos da teologia da Igreja da formamais "ecumnica" possvel (no no sentido caricato e popular de"ecumnico": a defesa da unio das igrejas em uma nica superestru-tura; nem no sentido de "teologicamente liberal"). Emprego esse ter-mo no bom sentido: apresentar fundamentao bblica que possa sertil aos membros de diversas denominaes. O que se pretende que anglicanos, batistas, congregacionais, luteranos, metodistas,presbiterianos e outros possam encontrar orientao biblicamenteembasadas sobre os fundamentos teolgicos da Igreja.

    Este livro no tem a inteno de esgotar o tema. No abordaassuntos como a estrutura organizacional da Igreja ou a relao Igre-ja-Estado, ou ainda o problema do relacionamento Igreja-Israel.Questes polmicas como a defesa de determinado modelo de gover-no eclesistico ou de determinada forma de batismo foram evitadas.Trata-se de uma obra seletiva, que apresenta o essencial, e com issomantm coerncia com os propsitos da Coleo Teologia Brasileira.

    bvio que essas questes so importantes, e por isso foram men-cionadas por alto ao longo do livro, mas devido ao carter polmicono foram desenvolvidas e esmiuadas. A perspectiva aqui maisconstrutiva que beligerante, e tem por princpio o respeito alteri-dade e conscincia de que, no decorrer da histria, o Senhor daIgreja tem abenoado ministrios aspersionistas e imersionistas,pedobatistas e antipedobatistas, de igrejas administradas pelas maisvariadas formas de governo.

    Poucos assuntos teolgicos demandam estudo srio, e, quem sabe,at mesmo uma reviso, como o tema Igreja. A confuso impressio-nante devido ao admirvel crescimento das igrejas evanglicas.

    Falta tambm uma proposta clara sobre o que significa ser igreja luz das Escrituras. Isto no atinge apenas comunidades que nasceram"ontem". Aquelas associadas s denominaes "histricas" acabam su-cumbindo a vrias tentaes e abrem mo da identidade confessional

  • 14 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    e litrgica, aderindo a modismos e a tendncias. Tambm visvelque muitas dessas comunidades so orientadas mais por princpiosmercadolgicos e empresariais que por princpios bblicos.

    Diante desse cenrio, prope-se uma soluo simples: retomar oque as Escrituras ensinam sobre a Igreja. No se trata de reinventara roda nem de querer ser indito.

    A fim de atingir esse objetivo, o livro est organizado da seguintemaneira:

    O captulo 1 apresenta as bases da teologia da Igreja. A partirda metfora da Igreja como Corpo de Cristo, desenvolve-seuma reflexo eclesiolgica com base no ensino bblico sobre apessoa e a obra de Jesus e do Esprito Santo.

    O captulo 2 aborda as marcas teolgicas da Igreja, conforme adefinio do Conclio de Constantinopla e de acordo com aviso dos reformadores protestantes do sculo XVI.

    O captulo 3 trata da dinmica da Igreja e prope, luz dasEscrituras, como ela deve desempenhar sua misso.

    O captulo 4 discorre a respeito do crescimento da Igreja eexpe a histria do Movimento de Crescimento de Igreja (MCI),alm de uma crtica a esse sistema. A Teoria do CrescimentoIntegral da Igreja, formulada pelo telogo Orlando Costas, posta em evidncia.

    O captulo 5 versa sobre o governo da Igreja. So apresetadasdiferentes possibilidades de entendimento em relao a comodeve ser esse governo, com destaque para pontos positivos epotenciais pontos problemticos de cada modelo.

    O captulo 6, por ltimo, apresenta consideraes acerca decomo deve ser o relacionamento da Igreja com o reino de Deuse o mundo.

    CARLOS CALDAS

  • C a p t u l o 1

    As bases da eclesiologia

    ECLESIOLOGIA A MODALIDADE da teologia que estuda os assuntosconcernentes Igreja.

    A Igreja no um clube ou um ajuntamento social (se fosse, asociologia e o estudo da administrao de empresas seriam suficien-tes para interpret-la). Ela uma realidade espiritual. Por isso, pre-ciso um referencial transcendental para explic-la. Esse referencial,em sentido bblico, a cristologia (doutrina sobre a pessoa e a aode Deus Filho, Jesus Cristo) e a pneumatologia (doutrina acerca dapessoa e da ao de Deus Esprito Santo).

    Outro ponto importante a metfora da Igreja como Corpo deCristo. A expresso no aparece nos evangelhos nem em Atos,mas em vrios textos do apstolo Paulo (Rm 12:5; Ef 1:22-23; 5:30;CI 1:18,24 etc.). Ser o "Corpo de Cristo" no mundo no apenasum privilgio, mas uma grande responsabilidade.

    Mas, luz das Escrituras, o que exatamente significa ser "Corpode Cristo"! o que veremos a seguir.

    UNIDADE ORGNICA NA QUAL TODOS TM UMA FUNOO ensino apostlico sobre o aspecto orgnico da Igreja encontra-seem 1Corntios 12:12ss. Com base no funcionamento dos membros ergos do corpo humano, Paulo ensina o ideal divino para a Igreja:todos os cristos devem trabalhar; individualmente, cada um temuma funo ou responsabilidade a cumprir. De maneira inovadora,ele afirma que no somos membros de qualquer corpo, mas do Cor-po de Cristo (v. 27; cf. tb. Ef 4:12,15-16; S:29b-30).

  • 16 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    Nesse Corpo, no h membro mais importante que outro; ne-nhum dispensvel, nem mesmo os considerados mais fracos ou atmesmo desprezveis (v. 14-22). Em Romanos 12:5, Paulo segue amesma linha de raciocnio: as capacidades so diferentes, mas todasso importantes, porque so originadas na mesma fonte: Cristo. Adiversidade produz inestimvel riqueza e, como diz certa expressocontempornea, "agrega valor" ao Corpo.

    A Igreja precisa (re)descobrir isso com urgncia. Onde no seenfatiza o ensino bblico da Igreja como Corpo de Cristo, os cultosso transformados em shows, megaigrejas so valorizadas (nestas, praticamente impossvel o crescimento espiritual de todos os mem-bros, bem como falta espao para todos trabalherem) e apenas ocarisma do lder valorizado.

    Contra essas tendncias que seguem uma lgica mais mundana esecularizada que bblica e espiritual, preciso ressaltar com veemn-cia o ensino da Igreja como organismo vivo, cujo cabea o SenhorJesus, e no como organizao mercantilista.

    fato que nem todos executam funes na Igreja. Todavia, inegvel que cada membro tem um papel a desempenhar, visandoao bem-estar e sade do Corpo de Cristo.

    Alguns, mesmo sinceros na f, se dizem incapacitados de cumprirtarefas na Igreja. Quem pensa assim precisa descobrir sua verdadeiracapacidade. Como? Pelo servio - e no mediante testes psicotcnicose preenchimento de formulrios, como alguns especialistas em cres-cimento de igreja sugerem. Basta se envolver em um ministrio ouuma atividade da igreja. Na ocupao que se sentir bem, ser aque-la, provavelmente, para que foi comissionado por Cristo. Quandotodos trabalham, o Corpo desenvolve sade, e a ento pode crescerde maneira integral. Conforme o pensamento de john Mackay:

    Quando todos os "santos" tomam a srio a sua chamada santida-de, expressando no pensamento e na vida tudo quanto implicadono pertencer-se a jesus Cristo, verdadeiramente ser edificada a Igreja,que o Corpo de Cristo. Cada um dos membros estar de sadeperfeita e perfeitamente desempenhar a sua funo especial. Ento,

  • As BASES DA ECLESIOLOGIA 17

    sob a direo dos lderes por Cristo indicados, e pela congregaoreconhecidos, para conduzirem a vida da Igreja, o Corpo, como umtodo, funcionar harmoniosamente, em obedincia a Cristo, e esta-r equipado para o servio coletivo de Cristo. I

    "A PLENITUDE DAQUELE QUE A TUDO ENCHE EM TODAS AS COISAS"A expresso Corpo de Cristo tambm aparece em Efsios 1, mas seuemprego difere completamente de Romanos e ICorntios (e mesmode Efsios 4-5). Em Romanos e ICorntios a nfase incide sobre oaspecto comunitrio da Igreja, mas em Efsios 1 parece que recai naperspectiva csmica do Corpo de Cristo: "E [Deus] ps todas as coi-sas debaixo dos ps e, para ser o cabea sobre todas as coisas, o deu[isto , Cristo] igreja, a qual o seu corpo, a plenitude daquele que atudo enche em todas as coisas" (v. 22-23). Essa afirmao de difcilcompreenso (no de admirar as diversas tentativas de interpret-la).O biblista Lus Alonso Schkel aponta algumas:

    a) A Igreja sujeito plenifica, completa Cristo, como o corpo comple-ta a cabea; Cristo plenifica tudo. b) A Igreja est cheia de Cristo, oqual [plenifica tudo]. c) A Igreja est cheia daquele que Deus plenificoucom sua plenitude 001,14.16; Cl1,18-19).2

    No pretendemos oferecer uma explicao definitiva dessa passa-gem. Antes, indicamos pistas para a interpretao desse texto-chavepara a compreenso do conceito bblico de Corpo de Cristo.

    O que est claro no texto o senhorio de Jesus Cristo sobre todae qualquer realidade, visvel ou invisvel, material ou espiritual, ce-leste ou terrestre, anglica ou demonaca, boa ou m. O Messias apresentado como Senhor absoluto, acima de tudo e de todos, supe-rior a toda e qualquer autoridade em cada rea do universo. Ele ocabea tanto do cosmos como da Igreja. Nas palavras do telogojohn Stott:

    I A ordemde Deus e a desordem do homem, p. 119.2 A Bblia do Peregrino (comentrio a Efsios 1:22-23).

  • 18 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    ... aquele pois a quem Deus deu igreja para ser seu cabea, j eracabea do universo. Logo, tanto o universo quanto a igreja tm emJesus Cristo o mesmo cabea.'

    Ele tambm sugere que Efsios 1:23, ao associar o Corpo de Cristocom sua plenitude, faz "descries sucessivas da igreja":

    Estando estes dois quadros em aposio, natural esperar que os doisilustrem pelo menos uma verdade semelhante, a saber: o governo deCristo sobre a sua igreja. A igreja o seu corpo (ele a dirige); a igreja sua plenitude (ele a enche). Alm disso, os dois quadros ensinam oduplo domnio de Cristo sobre o universo e sobre a igreja. Se porum lado Deus deu Cristo igreja como cabea-sobre-todas-as-coisas(v. 22), por outro a igreja enchida por Cristo que tambm enchetodas as coisas (v. 23).4

    A Igreja, ao longo da histria, tem sido perseguida e humilhada.No obstante, sua honra maior que se pode imaginar, maior quequalquer outra instituio na terra poderia dispor; afinal, a Igrejatem como cabea aquele que o cabea do cosmos.

    o ESPRITO E A IGREJACom a cristologia, a pneumatologia base para a produo da teolo-gia eclesiolgica. A Igreja formada por seguidores de Jesus, que sesubmetem ao seu senhorio, e ningum confessa a Jesus Cristo comoSenhor da sua vida a no ser pela ao do Esprito Santo (lCo 12:3).Por isso, a Igreja uma comunidade pneumatolgica.

    Na teologia contempornea, jrgen Moltmann se destaca porsua reflexo sobre a Igreja como comunidade pneumatolgica:

    A Igreja como comunidade de pecadores justificados, a comunhodos libertados por Cristo, que experimenta a salvao e vive em aode graas, est a caminho de cumprir o significado da histria de

    J A mensagemde Efsios, p. 37.4 Idem, p. 41.

  • As BASES DA ECLESIOLOGIA 19

    Cristo. Com seus olhos fixos em Cristo, [ela] vive no Esprito Santo eento em si mesma o incio e o desejo ardente do futuro da novacriao. [Ela] proclama a Cristo somente; mas o fato de a Igreja procla-m-lo j sinal de esperana [...] Na ceia do Senhor a Igreja relembraa morte de Cristo e a faz presente, o que leva vida, e esse fato umaantecipao da paz por vir. A Igreja confessa]esus, o crucificado, comoSenhor, mas o reino de Deus antecipado nessa confisso [... ] A co-munidade e a comunho de Cristo [com a] Igreja acontecem "no Esp-rito Santo" [...] Como comunidade histrica de Cristo, por conseguinte,a igreja a criao escatolgica do Esprito.'

    A ao do Esprito Santo como doador de dons espirituais (caris-mas) aos membros do Corpo de Cristo especialmente apresentadaem 1Corntios 12. O dom espiritual a capacitao para a realizaode um ministrio no Corpo. Essa ao tem objetivo duplo:

    1. Promover a sade do Corpo - a sade no est diretamenterelacionada ao saldo bancrio, nem depende dele, ou impo-nncia arquitetnica do templo onde a Igreja se rene; estassociada, sim, ao pleno exerccio dos ministrios pelos mem-bros, e s acontece quando os dons do Esprito so vivenciados.

    2. Glorificar a Cristo, Senhor da Igreja - Cristo glorificadoquando seus seguidores vivenciam a experincia de ser Igrejacom base nos direcionamentos bblicos. Uma das possibilida-des est na prtica dos dons do Esprito (cf.}o 16:13-14a).

    A igreja evanglica brasileira sofreu com muitas discusses e de-bates sobre o tema dos dons espirituais nos anos 1970 e parte da dca-da de 1980. Era candente e intensa a discusso sobre que dons seriamos mais importantes, sobre a contemporaneidade ou a cessao dealguns dons e sobre temas relacionados. Evanglicos carismticos oupentecostais e evanglicos "tradicionais" acusavam-se mutuamentede incorreo teolgica e de praticarem uma interpretao bblica

    s The Church in the Power of the Spirit, p. 33.

  • 20 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    equivocada. Atualmente no se v a mesma polmica. A ascensodo neopentecostalismo a partir da dcada de 1990 deslocou o focoda discusso para a busca de bnos materiais, por influncia dateologia da prosperidade. Pentecostais e carismticos clssicos perde-ram muito de sua visibilidade.

    A discusso teolgica e o debate sobre mtodos corretos de inter-pretao bblica tm o seu lugar, caso objetivem orientar o povo deDeus na melhor maneira de seguir e servir a Jesus, e, evidentemente,desde que no promovam a glria de homens nem descambem paraagresses desnecessrias. Muito mais importante usar os dons doEsprito Santo para a edificao do Corpo de Cristo, o servio aosnecessitados, a promoo da justia e a glria do Senhor da Igreja.

    Uma reflexo sobre a pneumatologia como base para a eclesiologiano pode deixar de mencionar a ao do Esprito como motivador,incentivador e energizador da ao missionria da Igreja. Ele afonte de poder para o testemunho dos seguidores de Jesus a respeitode seu Senhor (At 1:8). Alm disso, o Esprito guia e orienta a Igrejano exerccio da misso (cf. At 13:1-3). A direo e a capacitao doEsprito so muito mais importantes que recursos financeiros outecnolgicos.

    Refletindo sobre essa questo, David Watson afirma:

    o Esprito Santo nunca ser preso ou encapsulado nas minsculascategorias de nossa mente pequenina. Ele o Esprito do Deus eter-no, cuja preocupao primria consiste em que o povo de Deus seenvolva com a tarefa da misso; e lamentavelmente essa preocupa-o ou iniciativa nem sempre ser encontrada entre a liderana daigreja. Em seu lugar pode haver reprovao ou at mesmo oposioao zelo missionrio do Esprito. No de admirar que muito damotivao e dos mtodos da evangelizao de hoje deixem a desejar.Mas precisamos uma vez mais da perspectiva da igreja primitiva,que estava to inflamada pelo Esprito da misso, que se regozija-vam sempre que Cristo era proclamado (Fp 1:18).6

    6 I Believe in the Church, p. 174.

  • As BASES DA ECLESIOLOGIA 21

    RECAPITULANDO1. O que eclesiologia?2. Quais so as bases da eclesiologia?3. Do ponto de vista bblico, o que significa a expresso "Corpo de

    Cristo" aplicada igreja?4. Qual a importncia da cristologia para a formulao da eclesio-

    logia?5. Qual a importncia da pneumatologia para a formulao da

    eclesiologia?6. Comente sobre a ao do Esprito como motivador e capacitador

    para o exerccio da misso da igreja.

  • Captulo 2

    B marcas da Igreja

    Nossos ANTEPASSADOS ESPIRITUAIS da era patrstica! preocuparam-seem apresentar as marcas teolgicas da verdadeira Igreja. A definiodessas marcas tomou forma no Credo niceno-constantinopoluano, redi-gido no Conclio de Constantinopla em 381. Desde esse tempo, esse o entendimento aceito como patrimnio comum da cristandade.

    A caracterizao clssica dessas marcas formulada de maneiraqudrupla: a Igreja una, santa, catlica e apostlica. Os reforma-dores protestantes acrescentaram duas marcas complementares aessa lista: a ministrao da Palavra e dos sacramentos.

    O que se entende quando se diz que a Igreja possui tais caracters-ticas teolgicas? Vejamos.

    UNA

    Erroneamente se confunde "una" (adjetivo) com "uma" (numeral).Quando se diz "uma" pensa-se em quantificao: uma igreja. Emtermos de administrao e governo, nfases litrgicas e teolgicas,entre outros, no h uma igreja, mas vrias (h de fato um nmeroimenso de denominaes crists). Os antigos no pensavam necessa-riamente em "uma" igreja no sentido numeral, mas pensavam naIgreja "una" (de unidade). A unidade da Igreja vem do prprio Deus.De acordo com o telogo Jon Sobrino: "A Igreja verdadeira una

    1 Esse perodo da histria da Igreja se inicia, grosso modo, com Clemente de Roma(c. 100) e vai, na Igreja Ocidental (Latina), at o sculo VII, com Isidoro deSevilha e, na Igreja Oriental (Grega), at Joo Damasceno, no sculo VIII.

  • 24 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    porque uma sua origem, porque h um s Deus, um s Senhor, ums batismo, um s Esprito, como diz so Paulo". 2

    A unidade da Igreja desvinculada por completo da desuniodenominacional que se v. Trata-se da unidade do Corpo de Cristo,formado pelos que so um em Cristo: os alcanados pela graa deDeus, os eleitos do Senhor (cf. 2Tm 2:19). No se trata de um gigan-tesco projeto ecumnico de criar uma nica megaigreja mundial.

    O Esprito Santo o responsvel pela unidade. Nesse sentido, legtimo afirmar que h uma nica Igreja: a comunho daqueles cujonmero e cujos nomes apenas o Senhor conhece. Eis a a verdadeiraIgreja una do Senhor, que no deve ser confundida com a igrejavisvel (um conjunto complicado de regenerados e no-regenerados).Agostinho de Hipona foi direto ao ponto: nem todos os que estona igreja visvel esto verdadeiramente no reino de Deus.

    Essa unidade "externa" e "invisvel" da Igreja deve, na medida dopossvel, ser buscada com intuito de se tornar visvel. Essa afirmaono defende a unio das igrejas em uma s, mas destaca o fato deque, no raro, grupos que compartilham a f crist ortodoxa (a des-peito de diferenas litrgicas ou administrativas) so marcados maispor competio que por cooperao. A competio facilmente setransforma em mau testemunho para a Igreja, sobretudo no protes-tantismo, fragmentrio por natureza, e que se fragmenta mais a cadadia. O impressionante crescimento numrico da comunidade evan-glica no Brasil tem como "efeito colateral" a pulverizao de igrejas,proveniente, em muitos casos, no de crescimento saudvel, mas dedivisionismo, que tem motivao doentia com relativa freqncia.

    A unidade da Igreja deve ser mantida 00 17:21; Ef 4:1-6; Fp 2:1-4;4:2-3). Quanto a isto, Agostinho disse: "... quem poder verdadeira-mente dizer que possui o amor de Cristo quando no abraa suaunidade!".' Mas essa unidade no pode ser mantida a qualquer cus-to. Nestes tempos em que se d forte nfase ao "politicamente corre-to", existe um discurso que pe em foco mais o que une do que o que

    1 Ressurreio da verdadeira Igreja, p. 109.3 Citado por Franklin FERREIRA, Agostinho de A a Z, p. 122.

  • As MARCAS DA IGREJA 25

    separa. H sabedoria nesse discurso. Mas no se pode aceitar umdiscurso que defenda a unidade da Igreja de qualquer maneira. Paraque a unidade seja mantida no se pode, por exemplo, sacrificar afidelidade aos princpios centrais da f crist.

    SANTA"Vs, porm, sois [... ] nao santa " (IPe 2:9). O Credo apostlicodeclara: "Creio [... ] na santa Igreja ".

    A santidade outra marca teolgica de difcil visibilidade, masao mesmo tempo muito esperada. Conforme o telogo Jon Sobrino:"Se a Igreja sinal de salvao, sacramento histrico do amor deDeus, seria uma contradio que no fosse santa"."

    A santidade da Igreja difcil defesa, pois ela no o ajuntamen-to de santos impecveis, mas de pecadores salvos pela graa de Deusem Cristo - mas pecadores. Como dizia Lutero, o cristo , ao mes-mo tempo, justo e pecador. O escritor C. S. Lewis afirmou o seguin-te a respeito da falta de santidade do povo de Deus na histria:

    Se algum dia for escrito o livro que eu no hei de escrever, ele deverser a confisso da cristandade inteira acerca da contribuio especficada cristandade para a soma da crueldade e traio da humanidade [...]Ns gritamos o nome de Cristo, e agimos a servio de Moleque.'

    Infelizmente, com bastante facilidade, se v em qualquer igreja apecaminosidade dos membros. A Bblia registra problemas terrveisj nas igrejas do Novo Testamento: divisionismos, disputas de po-der, brigas entre membros, autoritarismo da parte de alguns lderes,conduta imoral, problemas doutrinrios, entre outros (At 5: 1-11;1Co 1:11-13; 3:1; 5:1; 15:12; Fp 4:2-3; 3Jo 9-11; Ap 2:4-5,14-16,20-23;3:1-3,14-19). Assim, como falar em santidade da Igreja?

    A esse respeito, oportuno citar Joo Calvino, que, com perspi-ccia, diferencia santidade de perfeio:

    4 Ressurreio da verdadeira Igreja, p. 114.5 Os quatro amores, p. 43-44.

  • 26 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    o Senhor trabalha dia a dia para eliminar as rugas e as manchas daigreja. Segue-seque a sua santidade ainda no perfeita. Portanto, aigreja santa no sentido de que diariamente cresce e se fortalece emsantidade, mas ainda no perfeita."

    Ao comentar Glatas 1:10, Calvino declarou que "a Igreja tersempre em seu seio pessoas hipcritas e perversas, as quais preferemsuas prprias cobias Palavra de Deus".7 Agostinho j alertara arespeito da diferena entre o reino de Deus e a Igreja, lembrandoque nem todos os que esto na Igreja esto realmente no reino.

    A Igreja santa aos olhos do Senhor. Cada membro santopelos mritos de Cristo. A condio de santos no se d por mritosprprios, mas pela graa de Deus que lhes conferida. Em razodisso, o Novo Testamento sempre se refere s igrejas como formadaspor "santos" (Rm 1:7; 1Co 1:2; 2Co 1:1; Ef 1:1; Fp 1:1; Cl1:2).

    O grande desafio hoje para a vivncia eclesial que a santidadeda Igreja seja vivida em termos prticos. Com pesar se v igrejasmarcadas por situaes terrveis. No raro ver igrejas transforma-das em clubes ou em passarelas de moda aos domingos. Outras sofechadas a quem no da comunidade. Outras esto mais preocupa-das com a prpria glria que com a do Senhor. Outras se ocupammais com a construo de templos maiores e suntuosos que com aajuda aos membros carentes. Outras simplesmente no contribuempara a obra missionria transcultural. Enfim, a lista poderia ser bemmaior. Os exemplos apresentados so suficientes para demonstrar osdesafios para que a Igreja seja de fato e de verdade comunidade santa.

    CATLICAEssa palavra de origem grega significa algo que abrange o todo, umatotalidade. Nos primeiros sculos de sua histria, a Igreja se denomi-nava "catlica", indicando sua mundialidade em contraste com oaspecto limitado da igreja local. Esse sentido bsico que aparece no

    6 As institutas, Il, 4, citado por Hermisten COSTA em Calvino de A a Z, p. 154.1 Exposio de Glatas, p. 36-37.

  • As MARCAS DA IGREJA 27

    Credo apostlico: "... creio [... ] na santa Igreja catlica...".8 O termotambm apontava para a preservao da pureza da ortodoxia doutri-nria: os cristos "catlicos" criam na plena divindade e na plenahumanidade de Jesus, em contraste com os cristos "arianos", que saceitavam a plena humanidade do Salvador. jon Sobrino explica:

    o termo "catlico" praticamente no aparece no NT. Logo passa asignificar "universal" sem nenhum matiz polmico. Mas no sculo IIIo termo adquire uma conotao distinta e polmica: catlico o queaparece unido Igreja universal e no se separou como herege."

    Com o tempo, o termo catlico, pouco a pouco, passou a ser con-siderado praticamente sinnimo da igreja de Roma. Criou-se umacontradio de termos: se a Igreja "catlica", universal; logo, nopode ser "romana", pois esse vocbulo evidentemente indica parti-cularidade geogrfica; se "romana", no pode ser "catlica".

    interessante lembrar que, no final do sculo XVI, William Perkins,anglicano puritano ingls e professor na Universidade de Cambridge,escreveu um livro com o curioso ttulo O catlico reformado. Ele mos-trava os pontos em comum e as diferenas entre a compreenso ro-mana e a reformada da f crist, com explicao para os pontos devista reformados e um comentrio sobre as objees romanas quan-to aos princpios reformados. Esse livro foi bastante usado na evangeli-zao feita pelos reformados holandeses no Brasil no sculo XVII. 10

    Em que sentido se pode falar da catolicidade da Igreja? Uma res-posta bvia a essa pergunta aponta para o aspecto missionrio daIgreja. A f crist j nasce com viso missionria, voltada para todosos povos. Sem ao missionria no h Igreja.

    Cirilo de jerusalm!' (c. 315-386) definiu assim essa catolicidade:

    8 Por receio de confuso com o catolicismo romano, algumas igrejas evanglicas noBrasil alteraram o artigo do Credo para "Creio na santa Igreja universal".

    9 Ressurreio da verdadeira Igreja, p. 119.10 Cf. Francisco L. SCHALKWIjK, Igreja e Estado no Brasil Holands 1630-1654, p. 230-235.II Escreveu 24 palestras catequticas, provavelmente por volta do ano 350, visando

    a preparar candidatos ao batismo. Foi veemente opositor do arianismo.

  • 28 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    A Igreja chamada "catlica" porque se estende por todo o mundo,de um extremo da Terra ao outro. E porque ensina completamente, esem quaisquer omisses, todas as doutrinas que devem ser conhecidasda humanidade concernentes aos assuntos visveis e invisveis, terres-tres e celestes; e porque congrega todos os tipos de pessoas - sobera-nos ou sditos, eruditos ou ignorantes - sob a influncia da verdadeirapiedade; e porque universalmente trata de todo tipo de pecado e ocura, seja cometido pela alma seja pelo corpo [...] Ela (a igreja) anoiva de nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho unignito de Deus.12

    Essa formulao importante por mostrar o pensamento teolgi-co na igreja de Jerusalm no sculo IV d.e. Os primitivos cristosformularam uma teologia da Igreja que continua relevante. [rgenMoltmann, telogo reformado alemo contemporneo, com criati-vidade aponta para a relao entre a catolicidade da Igreja e o se-nhorio universal e absoluto de Jesus Cristo:

    A catolicidade da Igreja no inicialmente sua extenso espacial ou ofato de ela ser em princpio aberta ao mundo; (a catolicidade) osenhorio ilimitado de Cristo, a quem "toda autoridade foi dada nocu e na terra"."

    Outra possibilidade do exerccio da catolicidade certamente estno fato de que a Igreja deve ser uma comunidade aberta e inclusiva,pronta para receber e acolher, abraar e amparar os que a procuram.A Igreja e deve ser universal. Ela no pode excluir pessoas combase em preconceitos tnicos, socioeconmicos, intelectuais, cultu-rais etc., qualquer que seja a natureza desses preconceitos.

    ApOSTLICAMuitas igrejas no Brasil tm se autodenominado "apostlica", se-guindo o rastro de seus lderes, que se auto-intitularn "apstolos".

    12 Catequese XVIII. Citado por Alister MCGRATH em The Christian Theology Reader,p.465-466.

    13 The Church in the Power of the Spirit, p. 338.

  • As MARCAS DA IGREJA 29

    Isso no mnimo curioso, pois denominar alguns lderes de "apsto-los" era apangio somente do mormonismo.

    Nos perodos subseqentes era apostlica, ningum jamais em-pregou o ttulo de apstolo. Na era patrstica, entendia-se que aps-tolos eram somente aqueles chamados por Jesus e que haviam sidotestemunhas oculares de sua ressurreio. Alm disso, a Igreja forauma vez por todas "edificada sobre o fundamento dos apstolos edos profetas" (Ef 2:20). Consoante com esse ensino, Apocalipse, queencerra o registro da revelao bblica, discorre sobre os fundamen-tos dos doze apstolos (Ap 21: 14). Assim, lderes que hoje se deno-minam "apstolos" parecem agir mais por princpios mercadolgicose de marketing que por princpios bblicos e teolgicos."

    H grupos cristos que entendem a apostolicidade como conti-nuidade do ministrio episcopal ordenado investido e dotado de au-toridade, em uma sucesso que retrocederia a Jesus Cristo. Assim,alguns ministros ou sacerdotes seriam portadores de autoridade apos-tlica, passada pela ordenao no decorrer da histria da Igreja.Todavia, outros negam esse ponto de vista, pois compreendem queas Escrituras no advogam a chamada "sucesso apostlica".

    Em meio a essa profuso de pontos de vista, de que maneira nos-sos antepassados espirituais entendiam a apostolicidade da Igreja? AIgreja crist apostlica porque est edificada sobre o fundamentodos apstolos e dos profetas. A Igreja apostlica por seguir a dou-trina dos apstolos (At 2:42). Essa doutrina a "f que uma vez portodas foi entregue aos santos" (Id 3). Apenas nesse sentido seria leg-timo falar em "sucesso apostlica". No se trata da sucesso de umofcio episcopal que demanda fidelidade total, absoluta e inquestio-nvel da parte dos fiis, mas do depsito da f, do evangelho apost-lico: "E o que de minha parte ouviste atravs de muitas testemunhas,

    14 Max Weber, socilogo alemo, fala a respeito do "carisma de funo". Esse "caris-ma" (no entendido em termos teolgicos) proveniente da funo exercida. Dano ser muito difcil compreender por que determinados lderes tm feito tantaquesto de serem reconhecidos como "apstolos". Seus seguidores dificilmente ou-saro contestar a autoridade de quem exerce uma funo considerada "apostlica".

  • 30 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    isso mesmo transmite a homens fiis e tambm idneos para instruira outros" (2Tm 2:2). A Igreja apostlica quando se submete auto-ridade das Escrituras apostlicas.

    [ohn Stott, com a clareza e a objetividade que marcam seus escri-tos, comenta o seguinte sobre 2Timteo 2:2:

    Esta a verdadeira "sucesso apostlica". Tal sucesso dependeriade homens, de uma srie de "homens fiis", mas essa sucesso dosapstolos refere-se mais mensagem em si do que aos homens que aensinem. Deve ser antes uma sucesso da tradio apostlica do queda autoridade, de seqncia ou de ministrios apostlicos. Deve seruma transmisso da doutrina dos apstolos, deles recebida semdistores, pelas geraes posteriores, passada de mo em mo comoa tocha olmpica. Esta tradio apostlica, "o bom depsito", hojeencontrada no Novo Testamento. Falando de maneira ideal, os ter-mos "Escritura" e "tradio" deveriam ser sinnimos, pois o que aIgreja transmite de gerao em gerao deveria ser a f bblica, nadamais e nada menos. E a f bblica a f apostlica."

    curioso observar que so palavras de um anglicano, membro deuma igreja que acredita na sucesso apostlica em termos ministeriais,no em termos do depsito da revelao bblica.

    Alm disso, a apostolicidade da Igreja, assim como sua catolicidade,tem a ver com seu aspecto missionrio:

    Que a Igreja verdadeira seja "apostlica" significa duas coisas diver-sas embora relacionadas. A primeira que deve remontar aos aps-tolos, isto , deve remontar origem da f no sentido cronolgico.A segunda que a mesma Igreja atual deve manter a estrutura apos-tlica, isto , ser enviada, missionria.l''

    A Igreja verdadeiramente apostlica quando missionria, quandoassume seu papel de enviada ao mundo por seu Senhor para cumprirsua misso.

    IS Tu, porm... A mensagem de 2 Timteo, p. 43.16 jon SOBRlNO, Ressurreio da verdadeira Igreja, p. 124.

  • As MARCAS DA IGREJA 31

    As MARCAS DA IGREJA SEGUNDO A TEOLOGIA DA REFORMAA identificao teolgica qudrupla da Igreja foi aceita sem proble-mas pelos reformadores protestantes do sculo XVI. Entretanto, acres-centaram outras marcas. Lutero, por exemplo, falava de sete marcas:

    1. Pregao da verdadeira palavra de Deus.2. Correta administrao do batismo.3. Forma correta da Ceia do Senhor.4. Poder das chaves.'?5. Correta chamada e ordenao dos ministros da igreja.6. Orao e cntico de hinos na lngua verncu1a.7. Sofrimento e perseguio. 18

    Outros reformadores no elaboraram uma lista to extensa. JooCalvino acrescentou apenas a correta pregao da Palavra e a corre-ta ministrao dos sacramentos (batismo e ceia do Senhor):

    Pois onde quer que vemos a Palavra de Deus ser sinceramente prega-da e ouvida, onde [vemos] serem os sacramentos administrados se-gundo a instituio de Cristo, a de modo nenhum se h de contestarest uma igreja de Deus."

    No sculo XX, jrgen Moltmann capturou sinteticamente o espri-to do pensamento de Calvino: "... uma igreja na qual o evangelho puramente pregado e os sacramentos so corretamente usados igrejauna, santa, catlica e apostlica" ,lO Apesar de ser minimalista, essadefinio resume o conceito reformado de Igreja, no qual Palavra esacramentos so indissociveis."

    l Expresso retrica de se referir ao exerccio da disciplina eclesistica.18 M. LUTHER, Von den Konziliis und Kirchen (1559), WA 50, p. 628ss, citado por

    [rger MOLTMANN em The Church in the Power of the Spirit, p. 340.19 As institutas, IV, 1.9,11. O Livro IV o maior de As institutas e trata exclusiva-

    mente da questo eclesio1gica.20 The Church in the Powerof the Spirit, p. 341.21 Cf. john H. LEITH, A tradio refonnada, p. 330ss. A mesma idia aparece na Confis-

    sode Augsburgo (luterana) de 1530, formulada por Filipe Me1anchton (Art. 7).

  • 32 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    Os sacramentos - sinais visveis de graas invisveis"Sacramento" traduo da palavra latina sacramentum, que foi usa-da na Vulgata para traduzir o termo grego mysterion ("mistrio").22

    H duas definies clssicas de sacramento. Uma de Agostinho:"... une-se a palavra ao elemento, e acontece o Sacrarnento";" e ou-tra a de Pedro Lombardo (1100-1160):24 "... sacramento um sinalvisvel de uma graa invisvel". 25

    Na teologia medieval entendia-se sacramento como "Palavra vis-vel de Deus", distinta, mas no separada, das Escrituras.? A associa-o dos sacramentos com a Palavra de Deus trao de uma saudvelteologia dos sacramentos.

    Conforme o telogo presbiteriano Charles Hodge, do sculoXIX, os sacramentos apresentam quatro caractersticas teolgicasbsicas:

    1. So ordenanas institudas por Cristo.2. So significativos (isto , simblicos) na prpria natureza.3. Foram designados para serem perptuos.4. Foram designados para significar e instruir, selar, confirmar e

    fortalecer, comunicar ou aplicar e santificar os que pela f osrecebem."

    22 Na Vulgata, estas passagens traduzem mysterion por sacramentum: Efsios 1:9; 3:9;5:32; Colossenses 1:27; ITimteo 3:16; Apocalipse 1:20; 17:7.

    23 Agostinho, citado por Franklin FERREIRA em Agostinho de A a Z, p. 193. A expressoem latim usada por Agostinho accedit verbum ad elementum et fit sacramentum. Cf.P. C. MARCEL, "Sacramentos", em]. A. FERREIRA (org.), Antologia teolgica, p. 343.

    24 Foi um dos telogos medievais mais importantes. Em 1155 publicou SententiarumLibri Quatuor [Quatro livros de sentenas], que por alguns sculos foi livro-textode ensino de teologia em universidades europias. Essa obra a primeira a mencio-nar os sacramentos em nmero de sete. A citao de Lombardo foi extrada deHODGE, Teologia sistemtica, p. 1381.

    25 A expresso em latim usada por Pedro Lombardo sacramentum est invisibilisgratiae visibilis forma. Cf. P. C. MARCEL, "Sacramentos", em]. A. FERREIRA (org.),Antologia teolgica, p. 343.

    26 Cf. "Sacramentum", em Richard MULLER, Dictionary of Latin and Greek Theologi-cal Terms, p. 267.

    27 Teologia sistemtica, p. 1382.

  • As MARCAS DA IGREJA 33

    Ainda que, como ser visto a seguir, com diferenas quanto compreenso sobre aspectos importantes - como a questo do n-mero dos sacramentos e quanto maneira de celebr-los -, no hdvida de que desde muito cedo na histria da Igreja os sacramentostm sido compreendidos como extremamente importantes para avida da Igreja e de cada fiel em particular, como meios de graausados por Deus para renovar, nutrir e alimentar a f dos fiis, pararenovar-lhes a segurana quanto confiana que podem ter nas pro-messas divinas, alm de fortalecer a unidade da Igreja.

    Vale a pena reproduzir o que Calvino afirmou a respeito dasbnos advindas da correta participao nos sacramentos:

    Os sacramentos so institudos por Deus para que sejam exercciosde nossa f, tanto diante de Deus quanto dos homens. Diante deDeus eles certamente exercitam nossa f quando a confirmam naverdade de Deus (...] os sacramentos exercitam a nossa f diante doshomens quando a f resulta em reconhecimento pblico e incitadaa render louvores ao Senhor. 28

    Os sacramentos so fontes de bnos para os cristos, manifes-taes do amor de Deus a seus filhos e suas filhas, que esto emrelacionamento de aliana com ele.

    So quatro os elementos essenciais para definir um sacramento:

    1. Um elemento "fsico ou material", como a gua do batismo, opo e o vinho da eucaristia.

    2. Uma "semelhana" com o que simbolizado, para que que pos-sa represent-lo. Assim, podemos afirmar que o vinho da euca-ristia guarda "semelhana" com o sangue de Cristo, que lhepermite representar esse sangue no contexto do sacramento.

    3. A autorizao para simbolizar o que se deseja. Em outras pala-vras, deve existir um bom motivo para crer que o sinal emquesto esteja autorizado a representar a realidade espiritual

    28 Instruo na f, p. 73.

  • 34 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    para a qual ele aponta. Um exemplo dessa "autorizao" - naverdade, o exemplo mximo - encontra-se no fato de o sacra-mento ter sido institudo pelas mos de Jesus Cristo.

    4. A eficcia do sacramento, ou seja, proporcionar aos partici-pantes os benefcios do que representa.i?

    Quanto s bnos da participao nos sacramentos foi dito:

    Celebrar os sacramentos ainda acolher a Escritura. Isso significaque a Bblia esclarece a interpretao dos ritos e das prticas. Bibli-camente falando, o sacramento ato de Cristo, graa de Deus, co-munho com Deus Trindade e perdo do pecado. Ao mesmo tempo,como observa Agostinho, ele memria de um acontecimento b-blico: recebe-se o efeito do acontecimento celebrado, faz-se memriade Cristo, de sua paixo e de sua ressurreio."

    Quantos so os sacramentos? A tradio medieval indicava sete(o "setenrio sacramental"): batismo, confirmao (ou crisma), euca-ristia, penitncia, uno dos enfermos (popularmente conhecida como"extrema-uno"), ordenao e matrimnio."

    A teologia da Reforma contestou essa classificao stupla (porfalta de base bblica) e tambm a crena de que cada sacramento temeficcia ou poder em si mesmo (ex opere operato). Em 1521, FilipeMelanchton, companheiro de Lutero, enfatizou luz do Novo T es-tamento que os sacramentos no garantem a justificao, visto queesta vem somente pela fY Joo Calvino (As instuutas, IV, 14, 14),de igual modo relaciona a Palavra de Deus ao sacramento (revelan-do a influncia de Agostinho em seu pensamento teolgico), o que,por conseguinte, relaciona a f ao sacramento.

    29 Alister MCGRATH, Teologia: sistemtica, histrica e filosfica, 2005, p. 578.30 Henri BOURGEOlS, Os sinais da salvao, 2005, p. 54.31 Seqncia apresentada pelo telogo catlico francs Henri BOURGEOIS, Os sinais

    da salvao, p. 257-283.32 Cf. G. C. BERKOWER, The Sacraments, 1969, p. 64. Trata-se de uma excelente

    abordagem teolgica dos sacramentos em perspectiva da teologia reformada.

  • As MARCAS DA IGREJA 35

    Outro ponto de discrdia na controvrsia entre romanos e refor-mados no sculo XVI quanto teologia sacramental dizia respeito suposta autoridade espiritual de quem ministrava o sacramento. Parausar a expresso tcnica em latim, a teologia da Reforma rejeitou aperspectiva medieval quanto aos sacramentos serem eficazes ex opereoperatuis, ou seja, eficazes em funo de quem os ministra.

    Na obra O cativeiro babilnico da Igreja (1520), Lutero rejeitoucom veemncia que o ministro tivesse poder espiritual em si mesmo.Ele no aceita a tradicional posio romana quanto suposta auto-ridade espiritual do ministro dizendo que se deve confiar no ensinoda Palavra de Deus, e no no poder de quem ministra o sacramento.

    A polmica quanto aos sacramentos foi intensa e candente notempo da Reforma. O Conclio de Trento foi convocado por causado abalo sofrido pela igreja de Roma. A stima sesso do Conclio(1547) confirma o setenrio sacramental medieval." A essa altura, aseparao entre romanos e reformados j era irreversvel. A Refor-ma, fiel ao princpio sola Scriptura, advogava apenas dois sacramen-tos: o batismo e a eucaristia.

    Quanto compreenso protestante sobre apenas dois sacramen-tos, vale a pena citar Lutero em O cativeiro babilnico da Igreja:

    Contudo, tem-nos parecido correto restringir a denominao de sacra-mento quelas promessas de Deus, as quais tm atreladas a si deter-minados sinais. As demais, que no estejam ligadas a sinais, sosimples promessas. Disso, conclumos que, estritamente falando,existem somente dois sacramentos na igreja de Deus - o batismo ea comunho. Pois somente nestes dois sacramentos encontramossinais institudos por Deus e a promessa do perdo dos pecados. J4

    Aps essa breve introduo, sero apresentadas algumas conside-raes a respeito de cada um dos sacramentos conforme o entendi-mento da teologia protestante, isto , o batismo e a eucaristia.

    33 Cf. Henri BOURGEOIS, Os sinais da salvao, p. 133.14 Citado por Alister MCGRATH em Teologia: sistemdtica, histrica e filosfica, p. 580.

  • 36 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    o batismoDe acordo com o Breve Catecismo de Westminster, "Batismo umsacramento no qual o lavar com gua em nome do Pai, do Filho e doEsprito Santo significa e sela nossa unio com Cristo, a participaodas bnos do pacto da graa e a promessa de pertencermos aoSenhor" (pergunta 94).

    Desde os primrdios, a Igreja v o batismo como um ritual deiniciao f crist. Nos primeiros sculos, os novos convertidos erampreparados para o batismo por meio da catequese, isto , recebiaminstruo quanto f crist e suas implicaes para a vida. Aps acatequese, eram batizados. A partir da, eram considerados mern-

    I

    bros da comunidade de f. Geralmente, a cerimnia de batismo acon-tecia uma vez por ano, na noite da Viglia Pascal, a noite do Sbado"de Aleluia", na Semana Santa.

    O Novo Testamento a base da Igreja para o batismo: "... quemcrer e for batizado ser salvo" (Mc 16:16). O Cristo ressuscitadodeixou ordem expressa para que discpulos de todas as naes fos-sem batizados "em nome do Pai, e do Filho, e do Esprito Santo"(Mt 28: 19-20). O evangelho de Joo relata que os discpulos de Je-sus realizavam batismos mesmo antes da ressurreio 00 4: 1-2). EmAtos, so feitas seguidas referncias aos que "aceitaram a palavra" ereceberam o batismo (2:41; 9:17-18; 16:31-33).

    O batismo tem sido entendido como de inestimvel valor espiri-tual e teolgico para a vida dos discpulos de Jesus. o rito quecelebra a insero da pessoa que recebe o sacramento na Igreja, sen-do sinal e selo do pacto da graa. Na verdade, mais que mero "ritode iniciao", como crem estudiosos de antropologia cultural. ummandamento do Senhor, uma ordenana divina. O batismo apontapara a purificao dos pecados pela f na obra sacrificial e expiatriade Jesus (v. At 22:16). Pelo batismo o cristo se reveste do prprioCristo (GI3:26-27). tambm um penhor, uma garantia do cumpri-mento das promessas divinas de salvao. Nas palavras de Bourgeois,

    Quando a Igreja batiza, Jesus que batiza. ele o ministro principaldo sacramento. E o na qualidade de Filho ressuscitado no Esprito.

  • As MARCAS DA IGREJA 37

    o batismo, portanto, d f dos cristos um carter crstico, isto ,filial e espiritual. Os batizados tm uma filiao renovada em relaoa Deus Pai; eles so gerados de novo, ou recriados, e ao mesmotempo so ungidos pelo Esprito Santo. O batismo d, portanto,forma trinitria vida de f. Esta estrutura da vida de f anteriorao sacramento, mas o sacramento a manifesta e a realiza."

    Quando se fala em batismo quase inevitvel que se fale maisdos aspectos controversos que o cercam que a respeito de seu signifi-cado teolgico e espiritual. O protestantismo, embora concorde sobrea importncia do batismo, sempre foi dividido quanto forma dobatismo e sobre quem pode ser batizado. No incio da Reforma, al-guns seguidores de Zunglio discordaram do reformador por julga-rem-no incoerente quanto ao batismo. Eles criam que a Bblia nooferece base para o batismo infantil. Defendiam tambm o batismopor imerso. Os que se afastaram do reformador de Zurique foramposteriormente denominados "anabatistas", isto , "rebatizadores".Por ironia, Zunglio condenou alguns morte por afogamento."

    Desde esse tempo, o protestantismo sofre por falta de consensosobre essa questo. De um lado, os imersionistas defendem o batis-mo apenas por imerso (em geral, tambm so antipedobatistas: noadmitem a possibilidade de batismo infantil). Do outro, os aspersio-nistas e pedobatistas defendem que o batismo pode ser ministradopor asperso e que crianas podem ser batizadas.

    A polmica candente. No sculo XX, gigantes da teologia comoKarl Barth, Oscar Cullmann e Joachim Jeremias defenderam dife-rentes posies a esse respeito." Cada grupo tem argumentos a favorde seu ponto de vista e, ao mesmo tempo, refutaes a pontos de

    35 Os sinais da salvao, p. 259-260.36 Para detalhes, consultar Timothv GEORGE, Teologia dos reformadores, p. 137-139.37 Karl BARTH, em The Teaching of the Church Regarding Baptism, defende a posio

    antipedobatista. Oscar CULLMANN, em Baptism in the New Testament, argumentaextensivamente contra Barth. E [oachim JEREMIAS apresenta, em Infant Baptism inthe First Four Centuries, um relato da histria da prtica do batismo infantil nosprimeiros quatro sculos da Igreja. Para detalhes quanto a essas obras, consultar alista de referncias bibliogrficas no final deste livro.

  • 38 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    vista oponentes.38 Todavia, mais importante que essas querelas ofato de que defensores dessas diferentes posies devem se respeitarmutuamente, visto que esto trabalhando para a exaltao do Se-nhor da Igreja, e no para a exaltao de sua denominao.

    A ceia do SenhorEsse sacramento conhecido por diferentes expresses: "ceia do Se-nhor", "mesa do Senhor", "mesa comum", "santa ceia", "comunho","santa comunho", "eucaristia" (ou expresses derivadas, como "re-feio eucarstica", "santa eucaristia" ou "mesa eucarstica"). Cadaexpresso tem sua razo de ser. O Novo Testamento tambm utiliza aexpresso "partir o po" (At 2:42, 46; 1Co 10:16), cuja origem est nosevangelhos sinticos, que declaram que, na noite anterior crucifica-o, Jesus se reuniu com os doze apstolos num cenculo em Jerusa-lm e "partiu o po" (Mt 26:26; Mc 14:22; Lc 22:19; cf. tb. 1Co 11:24),e lhes ordenou: "... fazei isto em memria de mim" (cf. 1Co 11:24-25).Com o tempo, essa expresso caiu em desuso.

    Na Didaqu, um dos mais antigos documentos cristos, se encon-tram as expresses "partir o po" e "eucaristia" (palavra de origemgrega; significa "ao de graas"). Em Lucas 22:19 e 1Corntios 11:24 dito sobre Jesus: "... tendo dado graas" (no grego se l eucharistesas).Essa a origem bblica do uso da palavra eucaristia.

    extremamente significativo que Jesus no tenha deixado paraseus seguidores um catlogo de preceitos morais ou um manual dedoutrinas, mas uma "mesa", uma refeio comunitria. Essa afirma-o no defende de modo algum que preceitos morais e doutrinasno sejam importantes. Nada mais distante da verdade. Mas preten-de lembrar o que algumas vezes se esquece: a centralidade e a impor-tncia da refeio sacramental da nova aliana tanto para os fiis,como indivduos, como para a vida da Igreja, enquanto organismo.

    38 Para detalhes, consultar, entre outras publicaes: L. BERKHOF, Teologia sistemtica;C. HODGE, Teologia sistemtica, p. 1410-1448; W. GRUDEM, Teologia sistemtica, p.814-833; P. LANDES, Estudos bblicos sobre o batismo de crianas, referncias diversasespalhadas pelo livro.

  • As MARCAS DA IGREJA 39

    A eucaristia foi instituda por Jesus em conexo com a Pscoajudaica, festa muito importante na vivncia religiosa do judasmopor celebrar a libertao do povo de Israel da escravido no Egito(cf. x 12:14; 13:3,8-9, 16).

    Com referncia instituio eucarstica, h ainda algo importanteque no pode ser esquecido: conforme joachim Jeremias, biblistaluterano alemo, a ltima refeio de Jesus com seus discpulos, nanoite da quinta-feira santa, proclama o incio do tempo da salvao."Havia no Israel dos dias de Jesus forte expectativa quanto chegadado tempo messinico, em que a salvao seria plena. Uma das ima-gens bblicas para se referir a esse tempo a da refeio messinica(cf. Lc 13:29; 14: 15; 22:29-30). De alguma maneira, a eucaristia ante-cipa a refeio que acontecer por ocasio da plenitude dos tempos,na vinda definitiva e plena do reino de Deus (cf.Mt 26:29; Mc 14:25;Lc 22:18; lCo 11:26). Para usar a expresso popularizada pelo telo-go alemo Wolfhart Pannenberg, a ceia evento prolptico, isto ,que mostra hoje, ainda que de maneira limitada e imperfeita, o queacontecer amanh, de maneira plena e perfeita.

    Os elementos da refeio eucarstica so o po e o vinho. O po smbolo do corpo de Jesus, modo pelos sofrimentos e torturas quesofreu em sua paixo, e por fim engolido pela morte (cf. jo 6:51). Ovinho smbolo do sangue derramado por Jesus ao ser crucificado.H uma extensa tradio no pensamento bblico sobre o aspectosimblico do sangue derramado. Na antiga aliana, o sangue eraderramado no lugar do pecador (Lv 16; 17:11, etc). A Bblia chega aafirmar que "sem derramamento de sangue no h remisso de peca-dos" (Hb 9:22). Para que o sangue do pecador no fosse derramado,o sangue de uma vtima expiatria era derramado em seu lugar. Nanoite da celebrao da eucaristia, Jesus assume o lugar da vtimasacrificial, Dessa maneira, ele vivencia de forma plena o que cha-mado de "ofcio sacerdotal'i" - ele , a um s tempo, sacerdote e

    39 Isto o meu corpo, p. 12-15.40 A teologia clssica fala a respeito do "trplice ofcio de Cristo": o real, o proftico

    e o sacerdotal.

  • 40 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    vtima sacrificial (Hb 7:28; 9:11-14,28; 10:1-25). O Novo Testamen-to no hesita em aplicar a jesus Cristo a linguagem do cordeiro pascalao 1:29,36; 1Co 5:7; 1Pe 1:18-19; Ap 5:6,9-12; 12:11).

    Quando Jav fez aliana com Israel nos dias de Moiss, sangue foiaspergido sobre o povo (x 24: 1-8). Mais tarde, o profeta Jeremiasanuncia o tempo em que uma nova aliana seria estabelecida entreDeus e seu povo (31:31-34). Na celebrao pascal na noite em queJesus foi trado, ele utilizou essas mesmas palavras - nova aliana- para explicar aos apstolos o sentido do que estava acontecendo(Mt 26:28; Mc 14:24; Lc 22:20; 1Co 11:25). A morte de Jesus lanouluz sobre Isaas 53, que profeticamente fala do Servo do Senhor quepassaria por morte vicria e expiatria a favor dos escolhidos deDeus. A lembrana da morte substitutiva de Jesus no pode ser es-quecida, sob pena de no se compreender corretamente o significa-do da ceia do Senhor. Nas palavras de [oachm Jeremias,

    ... Jesus no se limitou a recitar a orao sobre o po e o clice; eleacrescentou palavras que interpretavam o po partido e o vinhotinto como morte expiatria pelos muitos. Se logo depois ofereceupo e vinho aos discpulos, isto s podia significar que ele, medianteos atos de comer e de beber, tornava os discpulos beneficirios dafora expiatria de sua morte. Participando do po partido e doclice abenoado, cada um deles era pessoalmente interpelado e sedava a cada um deles, pessoalmente, a certeza de pertencer sriedaqueles pelos quais o "Servo de Deus" estava para morrer. Darcerteza pessoal: eis o que Jesus tinha em vista unindo as palavras deexplicao ao ato de distribuio."

    Essa exposio bblica suficiente para mostrar quo importante para a Igreja a mesa do Senhor. algo repleto de significado, queno pode ser desprezado nem relegado a mero apndice da liturgia.

    Ao comentar 1Corntios 11:24 ("e, tendo dado graas, o partiu edisse: Isto o meu corpo, que dado por vs; fazei isto em memria

    41 Isto o meu corpo, p. 50.

  • As MARCAS DA IGREJA 41

    de mim."), texto importante para essa discusso, por apresentar o en-sino paulino a respeito da eucaristia, Joo Calvino declarou:

    A Ceia pois um memorial providenciado com o fim de assim assis-tir-nos em nossas fraquezas; porque, se de outra forma estivssemossuficientemente imbudos da morte de Cristo, este auxlio seria detodo suprfluo. Isto se aplica a todos os sacramentos, porquanto elesnos ajudam em nossas fraquezas."

    A Igreja , portanto, comunidade que se rene para renovar suaf, fortalecer sua esperana e alimentar seu amor atravs da celebra-o da ceia do Senhor. A Bblia no d detalhes sobre qual deve sera periodicidade dessa celebrao. No Brasil, a mdia das igrejas do"protestantismo de misso'r" celebra uma vez por ms. Igrejas lutera-nas e anglicanas celebram, em geral, dominicalmente. Alis, essa eraa opinio do reformador Joo Calvino: ele tinha a ceia em to altaconta que advogava a celebrao semanal para a nutrio espiritualdos cristos." Em contraste, algumas igrejas neopentecostais dimi-nuem a quantidade de celebraes da santa ceia.

    Muito mais poderia ser considerado sobre a eucaristia. Esta brevediscusso no aborda uma questo importante: a controvrsia sobrea presena de Cristo na ceia. O que ser afirmado que, luz daBblia, no h como menosprezar a ceia do Senhor. Urge que aigreja evanglica (re)estude com profundidade esse tema, pois h quemreduza a ceia categoria de simples elemento da liturgia, que aconte-ce porque no deveria ser omitido. H tambm quem receie enfatizar

    42Exposio de lCorntios, p. 357. Para um estudo sobre a compreenso reformada daeucaristia consultar, entre outras: G. MACGREGOR, Corpus Christi: The Nature ofthe Church According to the Reformed Tradition, p. 176-196.

    43 Essa uma categoria de estudos de sociologia do protestantismo brasileiro queest praticamente consagrada pelo uso. Tal categoria diferencia o protestantismo"de misso" (que se implantou no Brasil no sculo XIX devido a trabalho missio-nrio), representado por igrejas como Batista, Congregacional, Metodista e Pres-biteriana, do protestantismo "de imigrao" (que se implantou no Brasil no mesmosculo XIX devido imigrao), representado, por exemplo, pela igreja Luterana.

    44 Cf. T. GEORGE, Teologia dos reformadores, p. 238.

  • 42 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    em demasia o valor da celebrao eucarstica por temor de praticaruma teologia sacramentalista no sentido de conceber o sacramentocomo eficaz em si mesmo. A importncia da ceia, bem como a com-preenso desse sacramento na tica da teologia reformada, bemexpressa nas palavras da Confisso de F de Westminster (cap. XXIX,pargrafo VII):

    Os que comungam dignamente, participando exteriormente dos ele-mentos visveis deste sacramento, tambm recebem intimamente,pela f, a Cristo Crucificado e todos os benefcios da sua morte, enele se alimentam, no carnal ou corporalmente, mas real, verda-deira e espiritualmente, no estando o corpo e o sangue de Cristo,corporal ou carnalmente nos elementos po e vinho, nem com elesou sob eles, mas espiritual e realmente presentes f dos crentes nessaordenana, como esto os prprios elementos aos seus sentidos.

    Conclui-se da que o que verdadeiramente importa que a igrejase alimente espiritualmente atravs da participao na ceia, anuncian-do dessa maneira "a morte do Senhor, at que ele venha".

    Disciplina eclesistica - uma marca teolgica da Igreja?Atribui-se a Joo Calvino a construo teolgica que acrescenta adisciplina eclesistica ao lado da pregao da Palavra e da celebra-o dos sacramentos como marcas distintivas da Igreja. Na verda-de, essa elaborao de Martim Bucer (1491-1551), reformador deEstrasburgo, que afirmou: "... no pode haver uma igreja sem adisciplina eclesistica". 45

    Calvino trabalhou de 1538 a 1551 em Estrasburgo. A convivn-cia com Bucer decerto exerceu algum tipo de influncia sobreCalvino. Ainda que ele no considerasse a disciplina eclesisticauma marca teolgica da Igreja, certamente a julgava importante esalutar para a comunidade crist. Prova disto que em As institutas(IV. 12.5), Calvino comenta o trplice propsito da disciplina:

    4\ LITIELL, New light on Butzer's significance, p. 148, citado por CAMPOS JUNIOR, Adoutrina de Calvino sobre disciplina edesidstica, p. 50.

  • As MARCAS DA IGREJA 43

    1. Evitar a degradao do Corpo de Cristo (a Igreja).2. Evitar que o mau exemplo corrompa os piedosos.3. Incentivar o arrependimento do pecador.

    Desde esse tempo, a aplicao da disciplina eclesistica vista pormuitos protestantes como uma marca teolgica da Igreja.

    No h dvida quanto importncia da disciplina eclesistica navida da comunidade de f. Ao mesmo tempo, preciso reconhecerque a correta administrao da disciplina nem sempre tarefa fcil.

    No Brasil, a extrema multiplicao de igrejas evanglicas, por maisestranho e incrvel que parea, pode fazer mais mal que bem, emtermos de disciplina eclesistica. Por exemplo, no incomum acon-tecer que, em determinada comunidade, um membro seja disciplina-do e afastado da comunho; caso resida em uma cidade de portemdio ou grande, essa pessoa no ter dificuldades em encontraroutra igreja no muito distante de onde mora. provvel que sejarecebido na outra comunidade com relativa facilidade. Assim, osobjetivos da disciplina eclesistica acabam no sendo atingidos.

    CONCLUSOAs quatro marcas teolgicas da Igreja (una, santa, catlica e apost-lica) no so mera teorizao. Ao contrrio, so tremendos desafios.Alm disso, elas esto interligadas. A Igreja no pode ser santa semser catlica, ou ser apostlica e no manter a unidade. A citao aseguir articula bem a relao entre essas caractersticas:

    A unidade apostlica; assim que se relaciona visivelmente comCristo. catlica, no limitada a um lugar ou a uma raa, a umaclasse ou a um segmento da histria (a cristandade medieval, porexemplo), mas chamada misso universal e de si apta para abarcara totalidade do desenvolvimento humano no tempo e no espao. Aunidade, finalmente, santa: realiza-se para l de toda organizaohumana pela ao do Esprito Santo, que princpio de comunho.

    A santidade catlica: realiza-se numa variedade imensa de vo-caes; apostlica: procede da vinda histrica de Deus em nossacarne; una: pelo Esprito Santo.

  • 44 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    A catolicidade una, a ponto de no se esgotar sua noo aofalar de expanso ou dilatao da unidade, porque o Esprito Santorealiza as vocaes e os contributos pessoais numa comunho. Acatolicidade apostlica, no aberta a qualquer sincretismo. san-ta, sendo de Deus e para Deus.

    Finalmente, a apostolicidade una, catlica, chamada missouniversal at o fim dos tempos. santa, por proceder da prpriaao do Senhor e de seu Esprito, para alm de toda segurana hu-mana ou histrica de continuidade. Cremos na Igreja apostlica,como a cremos una, santa e catlica, acima de toda evidncia ouaparncia."

    Assim e deve ser a Igreja do Senhor Jesus Cristo no mundo.

    RECAPITULANDO

    1. Como a Igreja pode viver verdadeiramente a santidade?2. Que diferena h entre "santidade" e "moralismo"?3. Em meio a tantas denominaes eclesisticas, possvel falar em

    Igreja "una"?4. Qual sua opinio sobre "sucesso apostlica"?5. Explique a relao entre a catolicidade da Igreja e seu aspecto

    missionrio.6. Quais so as outras marcas da Igreja segundo a Reforma?7. A disciplina eclesistica pode ser considerada uma marca teolgi-

    ca da Igreja? Como?

    46 Yves CONGAR e Pietro ROSSANO, A Igreja, p. 9-10.

  • Captulo 3

    A dinmica da Igreja

    QUAL A DINMICA - OU A MISSO - da Igreja no mundo? Trata-se deuma pergunta da maior importncia. No entanto, no fcil respon-der como a Igreja deve atuar no cenrio mundial. A resposta maisfacilmente encontrada na prtica eclesial do Brasil esta: a evangeli-zao a nica tarefa e razo de ser da Igreja, que existe apenas para"ganhar almas para Jesus". Qualquer outra atividade seria um lamen-tvel desperdcio de tempo, dinheiro e energia. Essa viso comparti-lhada por igrejas do protestantismo "tradicional" (ou "histrico") epor representantes do pentecostalismo "clssico"; conquanto bastantepopular, no faz justia ao todo da revelao bblica a respeito dospropsitos de Deus para o mundo.

    J em grupos mais novos, representantes do "neopentecostalismo",a Igreja vista como agncia do sobrenatural, que, de maneira bas-tante utilitarista, pode ser manipulado para resolver problemas dosfiis. Essa viso cresce no Brasil (e na Amrica Latina) devido gran-de e emergente visibilidade desses grupos na mdia.

    Uma terceira resposta a de grupos ecumnicos, que defendem aao da Igreja basicamente como agncia prestadora de servios edefensora dos direitos humanos de minorias. Sob o ponto de vistanmrico, essa perspectiva diminuta.

    H ainda grupos que vem a Igreja como depositria de antigastradies litrgicas que devem ser preservadas e continuadas. Essainterpretao talvez possa ser considerada um entendimento "cultu-ral". Comunidades tnicas e igrejas que tm na celebrao litrgicao centro de sua vida tendem a se enquadrar nessa categoria.

  • 46 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    possvel ainda que haja comunidades que representem umamescla de duas (talvez at mais) dessas possibilidades. Por exemplo,pode haver um grupo que tenha uma interpretao a um s tempoecumnica e centrada na liturgia.

    Essas respostas conflitantes mostram como difcil interpretar adinmica da Igreja.

    O objetivo deste captulo no discutir os erros e acertos de cadauma dessas possibilidades interpretativas. Antes, o que se pretende apresentar, na medida do possvel, uma viso holstica, ou seja, inte-gral, do agir da Igreja no mundo, com base no ensino das Escrituras.E isso ser feito tendo como suporte sete palavras gregas encontra-das no Novo Testamento. Trata-se de sete dimenses de uma nicadinmica, apresentadas de maneira aleatria, sem representar nveisde importncia.

    "MARTlRIA" - O TESTEMUNHO DA IGREJA

    Sereis minhas testemunhas, tanto em Jerusalm como em toda aJudia e Samaria e at aos confins da terra.

    Atos 1:8

    Na concepo evanglica popular brasileira, "dar testemunho" re-latar uma histria de converso. Espera-se que sejam relatos bastan-te dramticos, extraordinrios e repletos de lances impressionantes.Em razo disso, criou-se o neologismo "tristemunho", expresso cria-tiva e bem-hurnorada para se referir a essas histrias. Consciente ouinconscientemente, alguns chegam ao extremo de condicionar a ex-perincia de converso a algum "testemunho" fora do comum. Semdvida, isso causar desnecessrios traumas em quem no tem umahistria extraordinria para relatar.

    Grupos afinados com a ideologia neopentecostal tm "reinven-tado" o testemunho, transformando-o em um relato impressionantede como algum, aps freqentar a igreja tal e seguir cuidadosamen-te todas as instrues que l lhe foram transmitidas, passou da mis-ria para a riqueza.

  • A DINAMICA DA IGREJA 47

    o viso bblica quanto ao testemunho bastante diferente. 1 EmMateus 10:18, Jesus discorreu sobre o testemunho (martirion) de seusdiscpulos a respeito dele na presena de reis e autoridades. O aps-tolo Paulo algumas vezes interpreta seu trabalho como um testemu-nho missionrio (cf. lCo 15:15; 2Ts 1:10; 2Tm 2:2). Na literaturajoanina (atribuda ao apstolo Joo), a noo de testemunho especial-mente importante: s no quarto evangelho, o verbo martirein ("tes-temunhar") aparece trinta vezes (em Mateus e Lucas, apenas umavez). A abundncia de testemunhas no quarto evangelho (loo Ba-tista, Jesus e suas obras, o evangelista, as Escrituras) serve para levaros ouvintes e leitores a crer em Jesus (cf. jo 1:7; 3:22-33; 19:35). EmApocalipse est cristalizada a idia do testemunho ligado ao mart-rio (6:9; 17:6). Assim, ser testemunha ser rnrtir.?

    Em certo sentido, dimenso do testemunho praticamente sin-nima de dimenso evangelizadora. A Igreja deve dar testemunho dequem Jesus Cristo , de suas afirmaes e de seu senhorio. Noobstante, especial ateno deve ser dada possibilidade do testemu-nho como martrio. Nos primeiros sculos de sua trajetria, a Igrejasofreu severas perseguies, e ainda continua a sofrer.' Da a famosafrase de Tertuliano, um dos pais da Igreja: "O sangue dos mrtires a semente da Igreja". conveniente lembrar que:

    Pode haver [no mundo] mecanismos de dominao e mentira, impli-cando a negao de Deus. Em tais circunstncias a afirmao deDeus, da verdade e da justia, s sustentada, sem traio e pecado,sob a forma da perseguio e do martrio. Sempre houve mrtires nahistria [... ] A Igreja [... ] no s tem mrtires, mas uma Igreja demrtires. Ao verdadeiro conceito de Igreja pertence o martrio."

    I A idia de testemunho deriva do mundo jurdico. Na literatura bblica, o sentidoreligioso provm do jurdico. Na Septuaginta (LXX), a verso grega da Bblia he-braica, encontra-se dez vezes martiria, e mais de cem vezes a forma rnartirion.

    2 Cf. A. van SCHALK, "Testemunho". Em: Van den BORN (org.). Dicionrio enciclo-pdico da Bblia, Petrpolis: Vozes, 1977, p. 1503-1504.

    3 Para detalhes atualizados de perseguio a cristos no perodo contemporneo,consultar Their Blood Cries Out, de Paul MARSHALL.

    4 Leonardo BOFF, E a Igreja se fez povo, p. 136.

  • 48 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    "LITURGIA" - A VIDA DE CULTO DA IGREJA

    E perseveravam [...] nas oraes. [...] Diariamente perseveravamunnimes no templo [...] louvando a Deus.

    Atos 2:42,46-47

    o culto - a liturgia - tambm parte da dinmica ou misso daigreja. No se pretende nesta seo entrar em detalhes de uma dis-cusso sobre como, bblica e teologicamente falando, deve ser aliturgia. Antes, o que se pretende comentar, ainda que em sntese,sobre o que significa a liturgia e seu lugar nessa dinmica.

    A dimenso cultual da dinmica da Igreja est profundamenteenraizada no solo da revelao bblica. Nas Escrituras muito se dizsobre a adorao prestada ao Deus criador todo-poderoso, desdeAbel, nos primrdios (conforme Gn 4:4), at s belssimas liturgiascelestiais e csmicas de Apocalipse (4:8-11; 5:8-14; 7:9-12; 11:15-18;12:10-12; 19:1-8). A Igreja herdeira da riqussima tradio litrgicado povo de Deus na Antiga Aliana. O Novo Testamento indicaque as primeiras comunidades crists viviam intensa vida litrgica.Biblistas chamam a ateno para vrias passagens neotestamentriasvistas como fragmentos de hinos cantados pelos primeiros cristos. 5

    Os primeiros seguidores de Jesus tomaram a sinagoga judaica comomodelo de prtica litrgica. De fato, eles eram vistos pela alta cpulajudaica como mais uma seita, no como um grupo distinto. Portan-to, so chamados de "os do Caminho" (At 9:2; 24: 14,22). Nesse pri-meiro momento, eles se renem no templo em Jerusalm (Lc 24:53;At 3:1) e em casas (At 2:46). A liturgia simples, sem sofisticaes:oraes, cnticos, leitura e comentrio da Tanach (a Bblia hebraica),sempre com hermenutica cristolgica e cristocntrica, e "o partir dopo" (At 2:46; 20:7), a refeio eucarstica, relembrando o sacrifciode Jesus na cruz.

    Mais tarde surge o designativo "cristo" (At 11:26). medidaque a f em Jesus levada para praticamente "todo o canto que

    5 Alguns textos assim entendidos so Filipenses 2:6-11 e 1Timteo 3:16.

  • A DINAMICA DA IGREJA 49

    havia", novas tradies litrgicas vo sendo elaboradas. Como ocristianismo no tem o conceito de lngua sagrada, muito cedo nahistria da Igreja h notcia de lecionrios litrgicos em siraco e emlatim. Assim, aonde a f crist tem chegado, graas ao trabalho mis-sionrio, a liturgia tem sido traduzida para a lngua do povo.

    A Igreja tem desenvolvido ao longo dos sculos diferentes expres-ses litrgicas, em uma impressionante variedade de formas. Algunsgrupos cristos (como os anglicanos) tm uma liturgia em forma dedilogo entre o dirigente e o povo, que poder escandalizar quemest acostumado com um modelo de culto em que um dirigente orien-ta os momentos litrgicos enquanto o povo mantm uma atitudemais esttica e passiva. J a prtica litrgica tradicional de grupospentecostais pode passar por desorganizada para quem est acostu-mado, por exemplo, com um calendrio litrgico. Evidentemente afalta de organizao da liturgia pentecostal aparente, pois apenassegue regras diferentes do modelo litrgico mais formal.

    Assim, diferentes igrejas tm tido diferentes tradies litrgicas.A Igreja Ortodoxa Oriental chega a ponto de ter na liturgia (chama-da de "Divina Liturgia") o centro de toda sua compreenso da f e davida crist. O catolicismo romano desenvolveu uma liturgia centra-lizada no ritual da eucaristia e no ano litrgico." J o protestantismo"histrico" (como o luteranismo e o presbiterianismo) tem desenvol-vido liturgias nas quais a exposio da Palavra ocupa lugar de desta-que. O pentecostalismo "clssico" (a Igreja Evanglica Assemblia deDeus tpica representante desse modelo) tem uma liturgia que rece-be destaques no encontrados em outras denominaes, como, porexemplo, manifestaes glossollicas (a prtica de falar "lnguas des-conhecidas"). J o neopentecostalismo tem uma liturgia centrada nocombate s foras espirituais do mal - da o destaque ao exorcismo

    6 O ano litrgico, que algumas igrejas protestantes observam, a lembrana e celebraodos grandes acontecimentos da f crist durante o ano, comeando no tempo doAdvento (quatro semanas antes do Natal), seguido pelo tempo do Natal propriamen-te, Epifania, Quaresma, Pscoa, Pentecostes, Ascenso do Senhor e o tempo chama-do "comum" (que em igrejas protestantes chamado "Domingos da Trindade").

  • 50 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    nos cultos. Esse combate (ou "batalha espiritual) apresentado deforma utilitarista, pois visa sempre ao bem-estar dos adeptos e noraro fundamentam-se em uma perspectiva que visa, deliberadamenteou no, glria e exaltao do lder ou da denominao.

    O Brasil vivenciou um crescimento vertiginoso da populao evan-glica nas ltimas dcadas. A expanso na rea musical tem sidoassombrosa. H um sem-nmero de cantores e bandas, e o cultoassume aspecto de show. Alguns movimentos organizados no campode louvor e adorao so estruturados e articulados o bastante parasuperlotar grandes estdios, atraindo pessoas de praticamente todosos estados do pas. Entretanto, ao mesmo tempo observa-se que con-sidervel parte dessa imensa oferta no muito variada em estilomusical. Quantidade no necessariamente qualidade. H umamassificao cultural no estilo gospel. Pouco se tem produzido emoutras vertentes musicais. Pouco tambm tem sido feito em termosde, a partir de inequvoca orientao do texto bblico, promoveruma valorizao litrgica de elementos tpicos da cultura brasileira.

    H uma tremenda importncia teolgica no culto. Quando reu-nida em culto, a igreja est escatologicamente antecipando o futuro,quando o povo de Deus de todos os tempos e lugares estar reunidona presena do Senhor em uma liturgia csmica (Ap 5:7-14). Jeanjacques von Allmen entende ser o culto cristo uma "recapitulaoda histria da salvao", tanto em termos de uma lembrana(anamnese) da obra de Cristo como tambm de prefigurao do "ban-quete messinico no qual, com seus discpulos, o Cristo h de bebero vinho novo no Reino de Seu Pai (Mt 26.29)". 7 Alm disso, a liturgia - ou pelo menos, deveria ser - o reflexo da teologia professadapela igreja. Conforme Bruno Forte, "na liturgia, o discurso teolgicotorna-se hino; na teologia, o canto litrgico torna-se discurso, racio-cnio e dilogo". 8

    A respeito do lugar do culto na vida da igreja, vale a pena citar otelogo Jlio Zabatiero:

    7 O culto cristo: teologia e prtica, p. 34.8 A teologia como companheira, memria e profecia, p. 198.

  • A DINMICA DA IGREJA 51

    A adorao alegre [... ] fruto da ao do Esprito (GI5:22; Rm 14:17;1Ts 1:6; v. [o 4:24), manifestada no reconhecimento pblico de quesomos o que somos graas ao que Deus fez por ns, e de que somosos que somos para que toda a criao seja conforme a vontade deDeus [...]. Nada mais indigno do Senhor que reduzir a adorao aritos e/ou a catarses. No toa, ento, que Paulo afirma que overdadeiro culto que prestamos a Deus o da vida transformada."

    No importa se a dimenso litrgica da dinmica da Igreja acon-tece de maneira elaborada, como em uma liturgia anglicana ou lute-rana, ou de maneira simplificada, com uma liturgia que se resume acnticos, oraes e pregao. O que verdadeiramente importa queverdadeiros adoradores adorem o Pai em esprito e em verdade.

    UPOIMENIA" - A AO PASTORAL DA IGREJA

    ... instru-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria...Colossenses 3:16

    Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo.Glatas 6:2

    Poimen a palavra grega para pastor. Da o termo tcnico "poimenia"ser usado na linguagem teolgica para se referir ao pastoral. Quan-do se fala em ao "pastoral" na comunidade evanglica brasileira,pensa-se imediatamente na ao do "pastor" da Igreja. No obstanteesse entendimento popular, pretende-se aqui pensar poimenia emperspectiva comunitria, e no individualista.

    Outra ressalva que precisa ser feita: quando se fala em perspecti-va comunitria, no se tem em mente aquela praticada pelo catoli-cismo romano que fala de uma "pastoral do povo de Deus", que atuatanto internamente, no seio da comunidade de f, como tambm,com mais nfase, externamente, na interface do relacionamento dacomunidade eclesial com a sociedade. Esse entendimento de ao

    9 Fundamentos da teologia prtica, p. 46.

  • 52 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    pastoral, que surge a partir do Vaticano lI, no incio dos anos 1960, extremamente difundido na Amrica Latina. Tem gerado pasto-rais especializadas. Algumas se tornaram famosas, como a Pastoralda Criana, Pastoral da Terra, Pastoral do Imigrante. Essa perspecti-va tem tambm produzido tericos, que refletem criticamente o agirda Igreja. Tais pensadores so conhecidos como pastoralistas.'?

    necessrio e relevante procurar entender como deve ser biblica-mente a ao do pastor e a ao comunitria e coletiva da Igreja.Mas o que se pretende de fato aqui pensar a dimenso da dinmicada Igreja expressa internamente, intramuros. Para tanto, este texto fundamental: "... instru-vos e aconselhai-vos mutuamente em todaa sabedoria..." (CI 3: 16). A idia bsica que a Igreja deve ser umacomunidade de acolhida e de cuidado, mtua e reciprocamente exer-cidos. Nela, a todos cabe o cuidado amoroso e terno para com todos.A Igreja deve ser comunidade em que os membros sabem que soaceitos, ajudados e instrudos sempre que necessrio. luz desse ensi-no paulino, no cabe apenas ao pastor da igreja agir pastoralmente.Antes, uma tarefa entregue a todos os membros da comunidade.

    Esse princpio muito fcil de ser enunciado, mas bastante com-plicado para ser praticado. Afinal, j so alguns sculos de uma cul-tura que privilegia a ao de um indivduo - o pastor - para cuidarde todos. Essa viso j faz parte do consciente e do inconscientecoletivo dos membros das igrejas. Outro problema prtico: quantomaior a igreja, mais difcil ser viver a dimenso poimnica de suadinmica. Em dias em que h verdadeira "numerolatria", isto , ado-rao de nmeros expressivos que supostamente apontam para xitoe sucesso," em que tudo vlido para conseguir os objetivos preten-didos e a busca por quantidade sacrifica qualquer preocupao porqualidade, quase impossvel que igrejas vivenciem sua ao

    !O Alguns tm adquirido renome, como o espanhol Casiano FLORISTN, autor deConceptos Fundamentales de Pastoral e TeologiaPrdctica: Teoria y Prxis de la AccinPastoral. Para uma reflexo crtica sobre o tema da pastoral produzida em contex-to brasileiro, consulte O novo rosto da misso, de Luiz LONGUINI NETO, p. 49-65.

    II Cf. [uan STAM, Apocalipsis, Tomo I, p. 135-136.

  • A DINAMICA DA IGREJA 53

    poirnnica. Sem falar na questo por demais complicada que oaspecto de espetculo, de show, que alguns grupos eclesisticos tmassumido. Nesses grupos a ao do pastor deliberadamente condu-zida para distanciar-se do pOVO. 12 Nada mais distante do modelobblico de ser Igreja.

    Com isso no se pretende tambm abolir a figura do pastor. No esse o caso. Mas chamar a ateno para algo infelizmente esque-cido com freqncia: na dinmica da igreja, luz do ensinoneotestamentrio, os cristos devem se preocupar (no bom sentido!)uns com os outros. Compreender a dimenso poimnica da dinmi-ca da Igreja contribuir para diminuir conflitos desnecessrios e in-teis que perturbam a vida de tantas igrejas pelo Brasil afora. Igrejasno raro so ambientes em que fofocas grassam. So pragas quedestroem a reputao de cristos e de muitos ministrios de pastores.Quando a Igreja leva a poimenia a srio e se torna uma comunidadeem que os membros se orientam, ento, em santo paradoxo, eles seinteressam desinteressadamente uns pelos outros. Com isso, a co-munidade ganha sade e cresce.

    UDIAKONIA" - A ENCARNAO DO AMOR PELA IGREJA

    Portanto, aquele que sabe que pode fazer o bem e no o faz nissoest pecando.

    Tiago 4:17

    A palavra "dicono" muito conhecida de quem freqenta igrejascrists. Quase sempre usada apenas para se referir a uma categoriade oficialato ordenado na comunidade. A palavra grega para "servo"e "servidor" diaconos. A palavra evidentemente tem a ver com ser-vio prestado a quem precisa. Desde o incio de sua trajetria, aigreja crist tem sido caracterizada pela ao diaconal. Os antigostelogos denominavam a ao de servio prestado pela igreja de"ministrio de misericrdia".

    12 Para detalhes consultar Decepcionados com a graa, de Paulo ROMEIRO.

  • 54 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    Jesus o modelo por excelncia de servio: "Pois o prprio Filhodo Homem no veio para ser servido, mas para servir e dar a suavida em resgate por muitos" (Mc 10:45). Os evangelhos o descrevemcurando enfermos (Mt 4:23), alimentando famintos (Lc 9:10-17) elibertando endemoninhados (Mc 1:39). Em Mateus 25:31-46, passa-gem constrangedora para alguns evanglicos, Jesus aponta para oservio prestado aos que precisam de gua, comida, roupas, carinhoe ateno como critrios no grande julgamento. O apstolo Pedroafirmou: "... Deus ungiu a Jesus de Nazar com o Esprito Santo ecom poder, o qual andou por toda parte, fazendo o bem e curando atodos os oprimidos do diabo, porque Deus era com ele" (At 10:38).Logo, Jesus o dicono por excelncia, e modelo para a ao diaconaldos cristos individualmente ou na coletividade.

    As epstolas apostlicas do grande nfase prtica do bem, quedeve caracterizar a ao crist (cf., p. ex.: Rm 2:5-11; 2Co 13:7; G16:9;1Tm 6:17-19; Tg 4:17; 1Pe 2:15,20).

    A comunidade evanglica em geral tem tido dificuldade e um pou-co de antipatia para com a dimenso de servio na dinmica da igreja.Por qu? Uma razo por compreender equivocadamente sua teolo-gia. A doutrina protestante clssica da justificao pela f, a espinhadorsal no pensamento teolgico de Martinho Lutero, tem sido prati-cada por alguns evanglicos no Brasil de modo no inteiramente fielao esprito do ensinamento bblico. Paulo afirma com clareza: "Poissomos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quaisDeus de antemo preparou para que andssemos nelas" (Ef 2:10).

    Com medo de confuso com o espiritismo kardecista (que pregao evolucionismo moral e espiritual "turbinado" pela prtica de boasobras) ou com o catolicismo romano (que prega a justificao porobras), muitos evanglicos tm sido avessos a um envolvimento maisintenso com a manifestao de servio aos mais carentes. Alm disso,ainda h forte rano platnico em muitas igrejas evanglicas brasi-leiras, o qual se manifesta na conhecida dicotomia entre "espiritual"e "material": o que vale "cuidar da alma", pois os assuntos "espiri-tuais" so superiores aos "materiais". Essa perspectiva tem mais a vercom uma antiga filosofia grega (platonismo) que com o ensino bblico

  • A DINMICA DA IGREJA 55

    propriamente. Um resultado prtico dessa viso encontrado emigrejas que limitam sua ao diaconal ao mnimo, como aviar recei-tas mdicas ou fornecer cestas bsicas para algumas famlias carentesdo seu rol de membros. Outros at atuam diaconalmente com umpouco mais de nfase, mas vinculam a ajuda prestada freqncia satividades da igreja."

    Mesmo assim, muitas comunidades evanglicas praticam um ser-vio diaconal desinteressado e til. Algumas agncias pareclesisticassrias, como Viso Mundial e Fundo Cristo para Crianas, tmcolaborado para isso. Por iniciativa de algumas igrejas locais, muitoservio diaconal abenoador tem sido praticado. 14 Em um pas comoo Brasil, to marcado por gritantes injustias e severas distores nocampo social, no faltam oportunidades para manifestar de maneiraconcreta o amor de Cristo aos necessitados. uma vergonha queum pas com milhes de evanglicos tenha tantas comunidades cris-ts omissas na dimenso diaconal de sua dinmica.

    Existe tambm uma lacuna na produo acadmica teolgica deuma reflexo sobre o servio diaconal. Ser que os telogos brasilei-ros consideram a ao diaconal um tema indigno de reflexo? Exce-o notvel tem sido a produo levada a cabo por alguns telogosluteranos." Isso indica o seguinte: no que diz respeito dimenso dadiaconia na dinmica da Igreja, ainda h muito a ser feito, tanto nareflexo teolgica crtica, luz das Escrituras, como na prtica.

    IJ Anlise crtica dessa situao apresentada em Manipulao no processo de evange-lizao, dissertao de mestrado em Missiologia defendida por Stephenson Soaresde Arajo em 1996 no Centro Evanglico de Misses em Viosa (MO).

    14 impossvel citar aqui todos os exemplos de comunidades locais que tm sededicado de maneira concreta e objetiva prtica diaconal no Brasil. Cito, comoexemplo, a Rebusca (Ao Social Evanglica Viosense) em Viosa, MO, e oNcleo de Valorizao Humana Nova Vida, em Limeira, SP.

    15 Rodolfo OAEDE NETO; Rosane PLETSCH & Uwe WEGNER (orgs.), Prticas diaconais.Subsdios bblicos. Oisela BEULKE, Diaconia: um chamado para servir; Diaconia emsituao de fronteira. Rodolfo OAEDE NETO, A diaconia de Jesus. Contribuio para afundamentao teolgica para a diaconia na Amrica Latina. Srgio ANDRADE &Rudolf VON SINNER (orgs.), Diaconiano contexto nordestino. Kjell NOROSTOKKE (org.),A diaconia em perspectiva bblicae histrica.

  • 56 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA DA IGREJA

    "KorNONIA" - A VIVNCIA DA COMUNHO NA IGREJA

    ... e tinham tudo em comum.Atos 2:44

    A palavra grega koinonia significa "comunho". A idia bsica com-partilhar. Esse termo se tornou comum no Brasil desde 1980.

    A noo de comunho bastante usual no texto bblico. Desde aconhecida exclamao do salmista ("Oh! Como bom e agradvelviverem unidos os irmos!", Sl 133: 1), passando pela solene declara-o de Jesus quanto marca identificadora dos seus seguidores ("Nistoconhecero todos que sois meus discpulos: se tiverdes amor uns aosoutros", [o 13:35), at a empolgante descrio de como viviam osprimeiros discpulos (At 2:42-47; 4:32-35), as Escrituras sempre enfa-tizam a necessidade de a igreja ser um espao de vivncia comunit-ria fraterna e amiga. Essa vivncia foi entendida pelos primeiroscristos como de importncia tal que faz parte do Credo apostlico -"Creio na comunho dos santos". O sentido teolgico do artigo docredo muito mais denso e contundente que