28
Fundamentos Gerais da Educação Elizabete dos Santos Agnes Cordeiro de Carvalho Aldemara Pereira de Melo Elisabeth Sanfelice Jairo Marçal IESDE BRASIL S/A Curitiba 2014

Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Fundamentos Gerais da Educação

Elizabete dos SantosAgnes Cordeiro de Carvalho

Aldemara Pereira de MeloElisabeth Sanfelice

Jairo Marçal

IESDE BRASIL S/ACuritiba

2014

Page 2: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

© 2005– IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Capa: IESDE BRASIL S/A

Imagem da capa: Shutterstock

IESDE BRASIL S/AAl. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ________________________________________________________________________________

S234f

Santos, Elizabete dos Fundamentos gerais da educação / Elizabete dos Santos. - 1. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2014. 80 p. : il. ; 28 cm.

ISBN 978-85-387-3722-3

1. Educação - Brasil. 2. Ética. 3. Pedagogia. I. Título.

13-07927 CDD: 370.981 CDU: 37(81)________________________________________________________________________________12/12/2013 13/12/2013

Page 3: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

SumárioÉtica da Identidade ...............................................................................................................7

Estética da Sensibilidade ........................................................................................................................12

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização ...............................................................19

Autonomia ..............................................................................................................................................19Identidade ...............................................................................................................................................22Diversidade .............................................................................................................................................24

Buscando respostas para a ação pedagógica ........................................................................29Interdisciplinaridade – um diálogo necessário .......................................................................................29

Organização curricular: a quem serve a escola? ........................................................................ 41As competências, as habilidades e as tecnologias ..................................................................................41

Linguagens e suas representações ........................................................................................47Plurissignificação das linguagens ...........................................................................................................47

A condição humana como objeto de reflexão ......................................................................53Diversidade de representações humanas ................................................................................................53Sociologia ...............................................................................................................................................59

Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares .....................................65A questão metodológica ..........................................................................................................................65

Avaliação – processo dialético de superação .......................................................................77

Page 4: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da
Page 5: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Apresentação

Q uando surgiu no cenário nacional a definição de Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, com claros indicadores para a qualidade dessa etapa de ensino, acenando com mudanças profundas que pretendiam restabelecer sua importância e a integração do

aluno ao mundo contemporâneo, emergiu também, como consequência, a necessidade premente da instauração de um processo de análise e discussão pelos protagonistas da ação educativa.

Aos educadores cabe o papel de interpretação e elucidação crítica dos princípios norteadores da nova proposta, a difícil tarefa de revelar as implicações, a complexidade, os limites e as possibilidades de sua real efetivação e ações que promovam a contextualização da proposta, a articulação entre o seu ideal e a realidade educacional, tecendo os fios que possibilitarão sua viabilidade orgânica.

A maior virtude desse processo de reflexão é que ele traz à tona contradições de ordens filo-sófica, política, cultural, pedagógica, entre outras, que, uma vez investidas de um amplo e profundo debate, podem oferecer a possibilidade de enfrentamento e resolução dos problemas. Porém, cabe alertar que a leitura ingênua, irrefletida ou dogmática, pode levar ao escamoteamento da proposta com o consequente desestímulo associado à ideia de inviabilidade, o que só viria a contribuir para a reafirmação de posições conservadoras.

Somente com um processo de interação consciente, de reflexão crítica, por parte de todos os envolvidos na ação educativa, com clara definição de papéis, atribuições e responsabilidades será possível a construção de um novo Ensino Médio.

O presente trabalho está organizado em duas apostilas e dividido em quatro módulos. O primei-ro módulo apresenta uma reflexão sobre os fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio, presentes nas novas diretrizes curriculares. Esse módulo está organizado em seis unidades: as duas primeiras versam sobre os fundamentos filosóficos – Política da Igualdade, Ética da Identidade e Es-tética da Sensibilidade; a terceira unidade busca estabelecer uma base conceitual para os princípios da Autonomia, Identidade e Diversidade; a quarta unidade aponta para a discussão de temas mais conhecidos da esfera pedagógica, interdisciplinaridade e contextualização, vinculados à questão do trabalho e da cidadania; na quinta unidade está presente a preocupação de se buscar um debate sobre as competências e tecnologias; e, para finalizar esse módulo, a sexta unidade propõe uma análise so-bre os avanços e os limites dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Os outros três módulos apresentam as três áreas dos conhecimentos: linguagens e suas repre-sentações; a condição humana como objeto de reflexão; natureza em transformação, e estão organiza-dos (cada módulo) nas seguintes unidades: a primeira apresenta uma definição de cada área e discorre sobre as suas disciplinas; a segunda unidade discute as competências das áreas; a terceira e a quarta unidade abordam alternativas metodológicas nas áreas e a quinta unidade trata do processo de avalia-ção em cada área do conhecimento.

Page 6: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da
Page 7: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da IdentidadeO homem nasce livre e em toda a parte encontra-se a ferros. O que se

crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles.

Rousseau

O estudo da Ética não tem a finalidade de inculcar regras, de educar para a obediência tácita, mas, sim, de possibilitar o acesso às diversas concepções de moral e, consequentemente, à análise crítica, ao debate e à compreensão

de que as regras e as leis são criações humanas e, por não terem origem natural ou divina, são passíveis de transformações e mudanças. Nesse sentido, podemos afir-mar que a Ética é o estudo da liberdade.

Moral (Dicionário Aurélio): conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa determinada.

Ética (Dicionário Aurélio): estudo dos juízos de apreciação que se referem à conduta humana, suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto (universal).

Ética (Marilena Chauí): estudo dos va-lores morais (as virtudes), da relação entre vontade e paixão, vontade e ra-zão; finalidades e valores da ação mo-ral; ideias de liberdade, responsabilida-de, dever, obrigação etc.

A Moral é definida por Marilena Chauí como uma criação histórico-cultural contrapon-do--se às tendências que tentam apresentar os valores morais (ideias constituídas sobre o bem, o mal, a justiça, a injustiça, a liberdade, a res-ponsabilidade, a felicidade) como sendo natu-rais. Entende-se por cultura tudo o que o homem cria ou aquilo que altera na natureza; a maneira como os homens interpretam a si mesmos e suas relações com a natureza dando-lhes novos signi-ficados. A concepção naturalizadora da moral é um artifício criado pela humanidade para deter-minar, garantir e manter os padrões e os valores através dos tempos e das gerações.

As sociedades historicamente não culti-vam o exercício da Ética – a reflexão crítica dos valores morais – pelo contrário, impõem os va-

(LA

GO

, Ped

ro C

orrê

a do

. Car

icat

uris

tas B

rasi

leir

os, 1

836-

1999

. R

io d

e Ja

neiro

: GM

T, 1

999,

p. 1

994.

)

7

Page 8: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

8

lores de forma arbitrária e unilateral, identificando a origem destes ora na natureza, ora como criação divina, portanto, como sendo absolutos, dogmáticos e imutáveis. A coibição da reflexão acerca dos valores instituídos ou da possibilidade da criação dos seus próprios valores reduz os seres humanos a coisas (sujeitos em objetos), o que se ca-racteriza por um ato de violência moral.

Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto. Do ponto de vista ético, somos pessoas e não podemos ser tra-tados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente que nos transformem em coisas usadas e manipuladas por outros. (CHAUÍ, 1994, p. 337)

A proposição de uma Ética da Identidade, como um dos fundamentos do En-sino Médio, pode, se compreendida na sua profundidade e encaminhada de acordo com a sua verdadeira finalidade, inaugurar uma fase de profundas reflexões e de transformações significativas na práxis educacional brasileira. Entendemos que Ética e Política são indissociáveis, porque, como já afirmamos anteriormente, uma comu-nidade, ao se organizar politicamente, deve fazê-lo em função de finalidades éticas – a busca dos valores de bem, justiça, igualdade e felicidade para todos. Nesse sentido, é fundamental que todas as instâncias envolvidas nesse processo, da mantenedora aos protagonistas da ação educativa na unidade escolar, tenham consciência da im-portância, da dimensão e da dificuldade dessa tarefa, principalmente se considerar-mos o conservadorismo histórico presente nas mais diversas instituições brasileiras – família, igreja, escola, governo, representação política, entre outros.

Considerando que os homens vivem em sociedade na busca de um bem co-mum – viver melhor para viver feliz –, podemos dizer que a base da relação política de uma sociedade são os valores morais. A ética é sobretudo uma discussão acerca dos valores morais. Propor a Ética da Identidade como fundamento de uma escola é propor a reflexão sobre os valores estabelecidos e instituídos e a construção de novos valores. A pensadora social, Hannah Arendt, desenvolveu a categoria de vita activa a partir de três conceitos: o labor – expresso pelo próprio metabolismo; o trabalho – al-terações promovidas pelo homem na natureza; e a ação – representada pelas relações exclusivamente humanas, o homem com os seus semelhantes. Essa ação se funda-menta no discurso. Hannah Arendt ressalta que a ação é um atributo exclusivamente humano e a apresenta como um segundo nascimento do homem, o seu nascimento para a vida humana. A Identidade só pode ser construída a partir da ação.

Agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar, imprimir movimento a alguma coisa. Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciadores, em virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativa, são impelidos a agir. [...] O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que antes dele não havia ninguém. Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição hu-mana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais. (ARENDT, 1987, p. 190-191)

Page 9: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

9

Nessa linha de abordagem, o pensamento de Gerd Bornheim amplia o nosso entendimento do grau de complexidade existente na organização da sociedade entre o estabelecimento de normas e a singularidade humana. Entre o sujeito e a norma existe uma relação eminentemente tensa e conflituosa, uma vez que todo estabelecimento de uma norma implica cerceamento da liberdade “e, que compete à tessitura das forças sociais convencionar entre ambos alguma forma de equilíbrio; ou então, por vezes, reconhecer que o equilíbrio se faz difícil e mesmo impossível”. (BORNHEIM, 1997, p. 247)

(PA

RA

. Gov

erno

do

Esta

do. S

ecre

taria

de

Esta

do d

a C

ultu

ra. D

esej

o de

Tra

nsfo

rmaç

ão: 3

0 an

os d

e M

aio

de 1

968.

Cur

itiba

, 199

8, p

. 23.

)

Consciência moral é a capacidade de o sujeito conhecer os valores morais, avaliá-los segundo sua razão, sua vontade, seu desejo e, a partir disso, decidir pelo seu acatamento ou sua transgressão. Esse exercício de liberdade e autonomia implica um ato de responsabilidade para consigo mesmo e para com a sociedade.

De todos os filósofos que refletiram sobre a Moral, F. Nietzsche foi, sem dú-vidas, o mais radical. A originalidade do seu pensamento decorre do grau de ques-tionamento acerca dos valores morais vigentes na sociedade do seu tempo. A ética nietzscheana é intransigente quanto ao direito de questionamento dos valores esta-belecidos, e mais, exige também o direito de que cada ser humano possa ser o cons-trutor/senhor dos seus próprios valores. Nietzsche se refere a uma superação radical do papel de submissão imposta pelas normas de conduta e valores reacionários aos indivíduos. Sua filosofia é um convite a uma transvaloração dos valores. Trata-se de perguntar em que consistem, como são instituídos, como se acham fundamentados os valores morais. Trata-se, ainda, de reinventá-los.

A atitude de negação, questionamento e mesmo de transgressão das normas e valores vigentes perpassa toda a obra de Nietzsche e se apresenta de forma contun-dente na Genealogia da Moral, na qual o pensador utiliza estudos históricos dos fun-damentos da moral judaico-cristã, a fim de provar que os valores morais, sobretudo os de bem e mal, não se constituem por princípios metafísicos/religiosos e atempo-rais, mas que têm origem histórica, são criações humanas, demasiadamente humanas e diferem de sociedade para sociedade através dos tempos.

Page 10: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

10

O único imperativo moral aceito por Nietzsche é o valor da vida traduzido por ele como vontade de potência. É dessa vontade de potência, para realização da vida, que devem nascer os valores morais. Negar a vontade de potência significa para

Nietzsche reprimir a própria vida. Portanto, a moral conser-vadora, que desrespeita esse princípio, é autoritária e violen-ta, devendo ser transgredida.

O seu método genealó-gico de investigação leva-o à descoberta de uma origem dis-torcida e até mesmo de uma in-versão dos valores de bem e mal e das virtudes como compai-xão, renúncia, abnegação, pie-dade e altruísmo, entre outras, tão propagadas e defendidas pela moral da nossa sociedade. “Necessitamos uma crítica dos valores morais, e antes de tudo deve discutir-se o valor desses valores, e por isso é de toda a necessidade conhecer as condi-ções e os meios ambientes em que nasceram, em que se de- senvolveram e deformaram.” (NIETZSCHE, 1976, p. 13)

Nietzsche argumenta que existe uma moral de senhores e uma moral de escravos, uma moral de fortes e uma moral de fracos e que, muitas vezes, essas morais coexistem numa mesma pessoa. A origem dos valores de bem e de mal é diferente para senhores e para escravos.

Uma vez que o primeiro (valor do senhor) surge de uma autoafirmação e o último (valor do escravo) de uma negação e oposição, eles não podem ser equivalentes. [...] O valor “bom” de uma moral corresponde exatamente ao valor “mau” da outra. Enquanto os fortes afirmam: nós nobres, nós bons, nós belos, nós felizes; os fracos dizem: se eles são maus então nós so-mos bons. Portanto, “mau” no sentido da moral do ressentimento é precisamente o nobre, o corajoso, o mais forte; é o “bom” da moral dos senhores. (MARTON, 1993, p. 54)

(CO

STA

, Cri

stin

a, C

amin

hand

o co

ntra

o v

ento

: um

a ad

oles

cent

e do

s ano

s 60.

São

Pau

lo: M

oder

na, 1

995,

p. 1

8.)

Page 11: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

11

Pode-se concluir que a origem dos valores da moral dos fracos consiste numa inversão, numa mera reação. Não sendo capazes de criar seus próprios valores, os fracos (ressentidos) precisam negar os fortes para só então estabelecerem as bases da sua moral. Por não poderem admitir essa fragilidade e incapacidade de criar seus próprios valores, os fracos deslocam a origem dos valores tirando-a do domínio hu-mano e transferindo-a para um plano metafísico. Criados desde sempre, sobrehuma-nos e divinos, os valores devem ser apenas obedecidos. Trata-se de tentar impor aos fortes a culpa pela sua ação criadora de valores, transformando-a em desobediência às leis divinas e, com esse artifício, garantir a manutenção dos seus valores fracos, deturpados e invertidos.

O homem do ressentimento traveste sua impotência em bondade, a baixeza teme-rosa em humildade, a submissão aos que odeia em obediência, a covardia em paci-ência, o não poder vingar-se e não querer vingar-se e até perdoar, própria miséria em aprendizagem para a beatitude, o desejo de represália em triunfo da justi-ça divina sobre os ímpios. (MARTON, 1993, p. 54)

O projeto nietzscheano da trans-valoração dos valores traduz-se numa busca sem tréguas pela superação da moral niilista – desprovida de qualquer sentido. É, sobretudo, a busca da liber-dade, da condição fundamental para a construção da verdadeira identidade humana.

Na contramão dessas ideias de liberdade trazidas para o debate por meio das diversas leituras possíveis dos fundamentos filosóficos da nova proposta do Ensino Médio, anunciam-se espasmos de uma moral reacionária. Valendo-se da complexi-dade do aprendizado da vivência democrática, que é por sua natureza geradora de conflitos, sobretudo, quando envolvidas questões de poder, de valores, de estabeleci-mento de regras no espaço coletivo – a escola –, essas tendências conservadoras têm divulgado apelos, que embora estranhos e avessos à dinâmica do diálogo, se prestam a impor valores já superados. Publicações recentes, apoiadas por setores da mídia, anunciam um suposto fracasso do processo de construção de Autonomia, Identidade e Diversidade.

Tais publicações:

Condenam ConfundemBrincos na orelha, bonés, roupas “esfarrapadas”. Questionamento com falta de respeito.

Determinam TrocamMeninas de um lado e meninos de outro, O diálogo pela punição.

A volta da fila. A discussão sobre as consequências do vício pela proibição de fumar.

A hierarquia dos papéis. O diretor que não fala com alunos fora de sua sala.

A reflexão sore os valores morais pelo cultivo das “boas maneiras”.

A volta do castigo físico.A volta dos uniformes de gravatinha, terninho e saia plissada.

(MA

RÇA

L, Ja

iro. D

ifere

nças

. Lon

dres

, 199

2.)

Page 12: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

12

Estética da SensibilidadePara Marx, a relação entre o homem e o mundo é estética, isto é, baseia-se na

sensibilidade. Sua estética propõe o resgate da unidade entre intelecto e sensibilida-de, perdida na tradição preponderantemente racionalista do mundo ocidental e nas relações impostas pelo sistema capitalista. “O homem se afirma no mundo objetivo não apenas no pensar, mas também com todos os sentidos” (MARX, 1987, p. 178). Os sentidos humanos (audição, olfato, paladar, tato e visão) são vistos por Marx de duas formas, como sentidos naturais/biológicos/instintivos e também como sentidos transformados pela cultura – humanizados.

Para o ouvido não musical a mais bela música não tem sentido algum, não é objeto [...]. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até os nossos dias. (MARX, 1587)

Assim como na práxis da Política e da Moral, também na Estética os conceitos e valo-res presentes são construções histórico-sociais. Nessa trajetória de atribuição de significados aos sentidos, ao invés da busca de plenitude da sua realização como ser humano, o homem vai reduzindo e limitando o uso desses sentidos na sua relação com o mundo. Do legado deixado pelo Iluminismo para a humanidade, se eviden-cia como negativa a concepção de que a razão

seria capaz de, sozinha, explicar a totalidade dos fenômenos naturais e da existência humana. É nesse período que a ciência, produto da razão humana, inicia um processo de grande efervescência e desen-volvimento, oferecendo ao mundo a tecnologia que iria prover as so-ciedades com instrumentos e ob-jetos que trariam mais facilidade e conforto ao homem. Essa expe-riência de transformação da socie-dade moderna, juntamente com o assédio da produção tecnológica- -industrial, que inaugura a socie-dade de consumo, fortaleceu o “consenso” de que o conhecimento humano verdadeiro só poderia ser atingido por meio da razão.

Na supremacia da razão so-bre a sensibilidade, imposta pelo mundo científico-industrial, a sensibilidade foi se caracterizando como um adorno,

(MA

RÇA

L, Ja

iro. L

argo

da

Ode

m. C

uriti

ba, 1

994.

)

Paris, 1968. (PA

RA

, Gov

erno

do E

stado

. Sec

reta

ria do

Esta

do d

a Cul

tura

. D

esejo

s de T

rans

form

ação

: 30 a

nos d

e maio

de 19

68, C

uriti

ba,

1998

, p. 2

3.)

(MA

RÇA

L, Ja

iro. G

rafit

e em

Cur

itiba

. Cur

itiba

, 199

9.)

Page 13: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

13

um enfeite, um compo-nente não essencial para o conhecimento e para a existência humana. A sociedade capitalista pautada na produção e no consumo restringe de forma impositiva a vida humana às regras do mercado econômico e põe em cena uma deri-vação menor da condi-ção humana – o homem unidimensional, aquele voltado exclusivamente para o trabalho, para a realização de suas ne-cessidades biológicas e para a manutenção da espécie, o homem cada vez menos huma-no. Uma sociedade que vem sufocando o princípio do prazer em nome de um questio-nável princípio de realidade.

As perdas decorrentes dessa unidimensionalização do homem são muito mais significativas do que um olhar apressado poderia revelar, elas atingem a essência do homem, sua inventividade, sua criatividade, sua imaginação, sua singularidade – a subjetividade humana. Uma sociedade de homens desprovidos desses atributos é uma sociedade sombria, autômata, padronizada, totalitária e, apesar de todas as imitações produzidas com o intuito de forjar uma beleza inexistente ou ilegítima, tudo o que essa sociedade consegue revelar é o seu oposto – a sua incapacidade de ser Estética.

Uma sociedade jamais será Estética se não incorporar em sua dinâmica a Po-lítica e a Ética. A desconsideração dessas dimensões pode reduzir a Estética à mera maquiagem. Pensar a Estética da Sensibilidade é abrir caminho para a criatividade, a imaginação, a singularidade e a curiosidade pelo inusitado.

A exemplo de tantos problemas psicológicos, as pesquisas sobre a imaginação são dificulta-das pela falsa luz da etimologia. Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percep-ção, é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada de imagens, não há imaginação, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação. Há percepção, lembrança de uma percepção, memória fami-liar, hábito das cores e formas. O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário. O valor de uma imagem mede-se pela extensão de sua auréola imaginária. Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva. É ela, no psiquismo humano, a própria experiência da novidade. Mais que qualquer outro poder, ela especifica o psiquismo humano. Como proclama Blake: “A imaginação não é um estado, é a própria existência humana.” (BACHELARD, 1990, p. 1)

Estética da SensibilidadePara Marx, a relação entre o homem e o mundo é estética, isto é, baseia-se na

sensibilidade. Sua estética propõe o resgate da unidade entre intelecto e sensibilida-de, perdida na tradição preponderantemente racionalista do mundo ocidental e nas relações impostas pelo sistema capitalista. “O homem se afirma no mundo objetivo não apenas no pensar, mas também com todos os sentidos” (MARX, 1987, p. 178). Os sentidos humanos (audição, olfato, paladar, tato e visão) são vistos por Marx de duas formas, como sentidos naturais/biológicos/instintivos e também como sentidos transformados pela cultura – humanizados.

Para o ouvido não musical a mais bela música não tem sentido algum, não é objeto [...]. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até os nossos dias. (MARX, 1587)

Assim como na práxis da Política e da Moral, também na Estética os conceitos e valo-res presentes são construções histórico-sociais. Nessa trajetória de atribuição de significados aos sentidos, ao invés da busca de plenitude da sua realização como ser humano, o homem vai reduzindo e limitando o uso desses sentidos na sua relação com o mundo. Do legado deixado pelo Iluminismo para a humanidade, se eviden-cia como negativa a concepção de que a razão

seria capaz de, sozinha, explicar a totalidade dos fenômenos naturais e da existência humana. É nesse período que a ciência, produto da razão humana, inicia um processo de grande efervescência e desen-volvimento, oferecendo ao mundo a tecnologia que iria prover as so-ciedades com instrumentos e ob-jetos que trariam mais facilidade e conforto ao homem. Essa expe-riência de transformação da socie-dade moderna, juntamente com o assédio da produção tecnológica- -industrial, que inaugura a socie-dade de consumo, fortaleceu o “consenso” de que o conhecimento humano verdadeiro só poderia ser atingido por meio da razão.

Na supremacia da razão so-bre a sensibilidade, imposta pelo mundo científico-industrial, a sensibilidade foi se caracterizando como um adorno,

(MA

RÇA

L, Ja

iro. L

argo

da

Ode

m. C

uriti

ba, 1

994.

)

Paris, 1968. (PA

RA

, Gov

erno

do E

stado

. Sec

reta

ria do

Esta

do d

a Cul

tura

. D

esejo

s de T

rans

form

ação

: 30 a

nos d

e maio

de 19

68, C

uriti

ba,

1998

, p. 2

3.)

(MA

RÇA

L, Ja

iro. G

rafit

e em

Cur

itiba

. Cur

itiba

, 199

9.)

Page 14: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

14

A obra de arte, em sua particularidade e sin-gularidade única oferece algo universal – a beleza – sem necessidade de demonstrações, provas, inferências e conceitos. Quando leio um poema, escuto uma sonata ou observo um quadro posso dizer que são belos, ou que ali está a beleza, embora esteja diante de algo único e incomparável. O juízo de gosto teria, assim, a peculiaridade de emitir um julgamen-to universal, referindo-se, porém, a algo sin-gular e particular. (CHAUÍ, 1994, p. 321)

A sensibilidade estética trans-forma em expressão artística a inter-pretação que o homem faz do mundo e da sua existência. A arte é, entre as instâncias do conhecimento humano, a que oferece as maiores possibilidades de desenvolvimento da sensibilidade, tanto para quem produz – o artista – como para quem frui – o público. A escola pode se constituir como um es-paço de fruição das obras de arte, originais ou reproduzidas, bem como de iniciação às diversas formas de expressão artística. Trata-se da democratização do acesso à arte, que às vésperas do século XXI, em que pese o fato de se dispor de avançados meios de comunicação, ainda é privilégio de poucos, com o agravante de que a in-dústria cultural, dirigida pelos interesses do mercado, impõe às camadas destituí-das de poder uma estética do mau gosto. A democratização do acesso às diversas

O Beijo – Augusto Rodin.

(AD

ES, D

awn.

Art

e na

Am

éric

a L

atin

a: a

era

mod

erna

, 182

0-19

80.

São

Paul

o: C

osac

& N

aify

, 199

7, p

. 36.

)

(MA

RÇA

L, Ja

iro. C

ollin

Coo

per.

Lond

res,

1992

.)

O Violeiro – José Ferraz de Almeira Júnior.

(PH

AID

ON

. O L

ivro

da

Art

e. T

rad.

: M

ônic

a St

ahel

. São

Pau

lo:

Mar

tins F

onte

s, 19

99, p

. 180

.)

Page 15: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

15

linguagens da arte deve perpassar todas as áreas do conhecimento, não devendo ser compreendida como atributo exclusivo de algumas disciplinas ou áreas.

Contra a concepção de natureza como objeto disponível e manipulável para a exploração, os frankfurtianos propõem a gratuidade da fruição estética e da arte. Na dimensão estética deli-neiam-se as potencialidades liberadoras da imaginação produtora e criadora, os poderes de Eros contra a civilização repressiva, porque a arte transcende a determinações espaço-tem-porais, vence a morte. A arte é testemunha de um outro princípio de realidade que não o da submissão à produtividade; ao desempenho do mundo competitivo do trabalho e da renúncia ao prazer. Trata-se de um princípio que reconcilia o homem com a natureza exterior, interior e com a história. Para os frankfurtianos Horkheimer, Adorno, Marcuse e Benjamim, a arte é o antídoto contra a barbárie.

Os meios de comunicação de massa são o oposto da obra de pensamento que é a obra cultural – ela leva a pensar, a ver, a refletir. As imagens publicitárias, televi-sivas e outras, em seu acúmulo acrítico, nos impedem de imaginar. Elas tudo con-vertem em entretenimento: guerras, ge-nocídios, greves, cerimônias religiosas, catástrofes naturais e das cidades, obras de arte, obras de pensamento. A cultura, ao contrário, é para o frankfurtianos a quintessência dos direitos humanos. Em um mundo anti-intelectual, antiteórico e inimigo do pensamento autônomo, a ra-zão ocupa lugar central. Cultura é pensa-mento e reflexão. Pensar é o contrário de obedecer. (MATOS, 1993, p. 71-72)

Apresentar como fundamento fi-losófico do Ensino Médio a Estética da Sensibilidade, pouco, ou até mesmo nunca abordada em qualquer proposta anterior, sem dúvida, abre um caminho importante para a inserção, com grande diversidade de alternativas, do mundo sensível na construção do conhecimento. En-tretanto, não devemos ingenuamente supor que tal inserção se fará por meio de uma “mágica de implantação de propostas”. Não basta proferir o discurso do incentivo, do “fazer acontecer.”

Numa escola inspirada na Estética da Sensibilidade, o espaço e o tempo são planejados para acolher e expressar a diversidade dos alunos e oportunizar trocas de significados. Nessa esco-la, a descontinuidade, a dispersão caótica, a padronização, o ruído, cederão lugar à continui-dade, à diversidade expressiva, ao ordenamento e à permanente estimulação pelas palavras, imagens, sons, gestos e expressões de pessoas que buscam incansavelmente superar a frag-mentação dos significados e o isolamento que ela provoca. (PCN, 1999)

É fundamental assegurar, como consequência de um intenso processo de dis-cussão e reflexão, o compromisso político e ético de todos os agentes envolvidos e indispensáveis na consecução da proposta. É necessário criar condições organi-zacionais, institucionais, estruturais e profissionais para que o desenvolvimento do sensível, a expressão artística, encontre no espaço e no tempo escolar alternativas de realização.

Cinco Moças de Guaratinguetá – Di Cavalcanti.

(AD

ES, D

awn.

Art

e na

Am

éric

a L

atin

a: a

era

mod

erna

, 182

0-18

90.

São

Paul

o: C

osac

& N

aify

, 199

7, p

. 136

.)

Page 16: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

16

1. Considerando as relações conflituosas existentes entre o sujeito e a norma, discorra sobre o sentido da transvaloração dos valores de Nietzsche.

2. A partir das ideias apresentadas acerca do significado de ética, elabore a sua própria concepção de uma Ética da Identidade no espaço da sua escola.

3. Quais os novos elementos trazidos pela Estética da Sensibilidade para o contexto escolar e de que forma eles podem colaborar qualitativamente com a Educação Básica?

4. Apresente alternativas para a construção de uma Estética da Sensibilidade dentro da escola.

Page 17: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

17

Friedrich Nietzsche (1844-1900) – filósofo alemão. Principais obras: O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (1871); Humano, Demasiado Humano (1878); Assim Falou Zaratustra (1884); Para Além de Bem e Mal (1886); Para a Genealogia da Moral (1887).

Gaston Bachelard (1884-1962) – filósofo francês. Principais obras: O Novo Espírito Científico (1934); A Psicanálise do Fogo (1938); A Filosofia do Não (1940); A Poética do Espaço (1957); O Ar e os So-nhos – ensaio sobre a imaginação do movimento (1943).

Gerd Bornheim – professor de Filosofia na UFRJ. Publicou: Dialética: teoria e práxis (1983); O Idiota e o Espírito Objetivo; O sujeito e a norma (In: Ética, São Paulo, Cia das Letras, 1992); Crise da ideia de crise (In: A Crise da Razão, 1960); O bom selvagem como philosophe e a invenção do mundo sen-sível (In: Libertinos Libertários, 1996) entre outros.

Karl Heinrich Marx (1818-1883) – filósofo, historiador e jornalista alemão. Principais obras: Manus-critos Econômicos-Filosóficos (1844); Teses Contra Feuerbach (1845); A Miséria da Filosofia (1847); Manifesto Comunista (1848); O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852); Para a Crítica da Economia Política (1859); O Capital (1867/1894).

Marilena de Souza Chauí – professora de História da Filosofia e Filosofia Política na USP. É autora de: Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas (1986); O que é Ideologia (1981); Repres-são Sexual, essa nossa Desconhecida (1984); Convite à Filosofia (1994); Público, Privado e Despotismo (In: Ética, 1992); A Nervura do Real: liberdade e imanência em Espinosa (1999), entre outros.

Olgária Chain Feres Matos – professora de Filosofia Política na USP. Publicou: Rousseau: uma arque-ologia da desigualdade; 1968: as barricadas do desejo; O Iluminismo Visionário: Walter Benjamin, leitor de Descartes e Kant; A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo.

Scarlet Marton – professora de Filosofia Moderna e Contemporânea na USP. Publicou, entre outros: Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos (1990); Nietzsche: uma filosofia a marteladas (1982); Foucault: leitor de Nietzsche (1985); Nietzsche: a transvaloração dos valores (1993).

Page 18: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Ética da Identidade

18

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

BACHELLARD, Gaston. O Ar e os Sonhos: ensaios sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

BORNHEIM, Gerd. O sujeito e a norma. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Cia das Le-tras, 1992.

BOTTOMORE, Tom (Ed.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri-culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999.

BULCÃO, Marli. O Racionalismo da Ciência Contemporânea: uma análise da epistemologia de Gaston Bachelard. Rio de Janeiro: Antares, 1981.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Textos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Coleção Os Pensadores).

MARÇAL, Jairo. Pós-Modernismo: a agonia da moderna cultura ocidental. Curitiba, 1989. Mono-grafia (Especialização em Antropologia Filosófica – Escola de Frankfurt), Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Paraná.

MARTON, Scarlet. Nietzsche e a Transvaloração dos Valores. São Paulo: Moderna, 1993.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos e outros Textos Escolhidos. 4. ed. São Paulo: Nova

Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores).

MATOS, Olgária C.F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993.

NIETZSCHE, Friederich. A Genealogia da Moral. Lisboa: Guimarães & Companhia de Editores, 1976.

NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

O Livro da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

RAMOS, Célia M. A. Grafite, Pichação e Cia. São Paulo: Annablume, 1994.

Page 19: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização

O estudo dos Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio, incluindo o Pa-recer 15/98, embora não revele discordância com relação ao significado imediato do trinômio Autonomia, Diversidade e Identidade, denuncia o

distanciamento entre aqueles que idealizaram a proposta e aqueles que efetivamente deverão colocá-la em prática.

A forma excessivamente econômica na apresentação dos conceitos quanto à sua extensão e profundidade, juntamente com o compromisso e a responsabilidade atribuída aos protagonistas da ação educativa nas unidades escolares, provocam pre-ocupação e inquietação. Ao se remeter aos princípios norteadores, sejam eles a Polí-tica da Igualdade, Ética da Identidade, Estética da Sensibilidade, ou aos que estamos tratando nesta unidade: Autonomia, Diversidade e Identidade, a proposta estabelece com muito rigor os pontos de partida e de chegada, nesse último caso, anunciando inclusive os instrumentos avaliativos para mensuração dos resultados. Defende “me-canismos de prestação de contas que facilitem a responsabilização dos envolvidos”, entretanto, pouco investimento é destinado ao processo de elucidação da complexi-dade semântica e filosófica dessas ideias, bem como da sua execução pedagógica e administrativa. Talvez esse seja um bom começo para colocar em discussão o con-ceito de Autonomia.

AutonomiaAutonomia: auto-nomos (dar a si mesmo suas leis).

Heteronomia: normas, regras e leis estabelecidas por outros.

Anomia: ausência de leis.

A criação pelos gregos da política e da filosofia é a primeira emergência histórica do projeto de autonomia coletiva e individual. Se quisermos ser livres devemos fazer nosso nomos. Se quisermos ser livres, ninguém pode dizer-nos o que devemos pensar. [...]

19

Page 20: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização

20

A autonomia surge, como germe, assim que a interrogação explícita e ilimitada se manifesta, incidindo não sobre “fatos” mas sobre as significações imaginárias sociais e seu fundamento possível. Momento de criação, que inaugura não só outro tipo de sociedade; mas também outro tipo de indivíduo. Eu falo exatamente de germe, pois a autonomia, tanto social como in-dividual, é um projeto.[...] o que se pergunta é, no plano social: nossas leis são boas? Elas são justas? Que leis devemos fazer? E no plano individual: o que eu penso é certo? Posso saber se é certo e como? [...] O momento do nascimento da democracia e da política, não é o reinado da lei ou do direito, nem o dos “direitos do homem”, nem mesmo a igualdade dos cidadãos como tal: mas o surgimento, no fazer efetivo da coletividade, da discussão da lei. Que leis devemos fazer? Nesse momento nasce a política; em outras palavras nasce a liberdade como social-historicamente efetiva. (CASTORIADIS, 1992, p. 139-140)

Propor no espaço escolar a discussão da Autonomia implica o difícil rompi-mento com um modelo heterônomo de funcionamento da escola, que se estende por toda a sociedade. Tal rompimento deve se dar sob duas perspectivas: internamente, envolvendo todos os sujeitos que compõem as unidades educacionais na elaboração de um projeto coletivo, numa ação reflexiva e deliberante estabelecendo de forma participativa todas as regras, normas e leis necessárias àquele contexto social; a ou-tra, na relação que as instituições que compõem o sistema de ensino estabelecem entre si, evitando, assim, esbarramentos em entraves burocráticos instituídos e limi-tações de cunho político-econômicas.

Posso dizer que estabeleço a minha lei – quando vivo necessariamente sob a lei da sociedade? Sim num caso: se puder dizer reflexiva e lucidamente, que essa é também a minha lei. Para que possa dizer, não é necessário que a aprove: basta que eu tenha a possibilidade efetiva de participar ativamente da formação e do funcionamento da lei. A possibilidade de participar: se eu aceitar a ideia de autonomia como tal, o que evidentemente nenhuma “demonstração” pode me obrigar a fazer, nem tampouco pode me obrigar a colocar de acordo minhas palavras com meus atos, a pluralidade indefinida de indivíduos pertencendo à sociedade leva imedia-tamente à democracia como possibilidade efetiva de igual participação de todos, tanto nas atividades instituintes como no poder explícito.

Pois o “poder” fundamental numa sociedade, o poder primeiro do qual dependem todos os outros, o que chamei mais acima de infra-poder, é o poder instituinte. [...] este poder não é localizável, nem formalizável pois está na dependência do imaginário instituinte. A língua, a “família”, os costumes, as “ideias”, uma quantidade inumerável de outras coisas e sua evolução quanto ao essencial, escapam da legislação. Além disso, na medida em que esse poder é participável, todos participam dele. Todos são “autores” da evolução da lín-gua, da família, dos costumes etc. (CASTO-RIADIS, 1992, p. 143-144)

No processo de operacionaliza-ção da proposta, atribuir à instituição mantenedora, no caso da escola pública, a proposição de ações que assegurem reais condições para o desenvolvimen-to de um projeto autônomo em cada

Frostispício da partitura de “A internacional”, hino do movimento operário, composto em 1870 por Eugenio Pottier.

(Hist

ória

do

Pens

amen

to. B

arce

lona

: Orb

is. S

ão P

aulo

: Nov

a Cul

tura

l, 19

87, p

. 551

.)

Page 21: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização

21

unidade de ensino é condição essencial para que a Autonomia não se torne apenas mais uma apropriação indébita de um discurso emancipador, visando isentar o Estado de suas responsabilidades. Entre essas ações podemos citar o orçamento participativo; a corresponsabilidade na elaboração, desenvolvimento e resultados dos projetos; a de-finição conjunta de programas de qualificação profissional; o estabelecimento de um canal de diálogo permanente; a superação de imposições economicistas resgatando o verdadeiro papel do Estado e suas obrigações constitucionais. Nesse sentido, é preocu-pante para todos os envolvidos na ação educativa, a insistência com que o Estado vem sugerindo às escolas públicas que busquem “articulações e parcerias com instituições públicas ou privadas” ou ainda, as “fabulosas” campanhas publicitárias com “estórias sobre os amigos da escola”, num claro “disfarce” para encobrir sua isenção em mais uma forma de exclusão. (PCN, 1999. Adaptado.)

Os movimentos emancipadores modernos, sobretudo o movimento operário, mas também o movimento das mulheres, colocaram a questão: pode haver democracia, ou pode haver, para todos que assim quiserem, igual possibilidade efetiva de participar do poder, numa sociedade onde existe e se reconstitui constantemente formidável desigualdade do poder econômico, imediatamente traduzível em poder político? Ou então, pode haver democracia, numa socie-dade que tendo concedido há algumas décadas, os “direitos políticos” às mulheres, continua de fato a tratá-las como “cidadãos passivos”? As leis da propriedade (privada, ou “do Esta-do”) caíram do céu? Em que Sinai foram recolhidas? (CASTORIADIS, 1992, p. 144-145)

Toda e qualquer instituição – a escola, a mantenedora, o Estado – é feita pelos indivíduos que a ela pertencem, logo, é essencial a participação dessa coletividade no questionamento irrestrito do funcionamento da instituição. Castoriadis (1992, p. 142) pergunta – “Como compor uma sociedade livre a não ser a partir de indivíduos livres? E onde encontrar esses indivíduos se eles não puderam ser criados na liber-dade?”.

Tais questões nos remetem à necessidade de pensarmos sobre a constituição da Autonomia Individual. O que pressupõe o conhecimento da subjetividade humana, da sua psique, da existência de um inconsciente pulsional, da configuração de signifi-cações próprias que atribuem um sentido singular à existência – elementos essenciais para a sua lucidez, para a capacidade de reflexão e de relação com o seu presente e com a história. A autoalteração que se origina a partir da reflexão sobre a sua própria subjetividade, das suas relações com o mundo exterior e da sua capacidade de deli-beração lúcida, liberta o sujeito da condição de produto da sua psique, da história e da instituição que o constituiu. Castoriadis (1992, p. 141) diz que “a formação de uma instância reflexiva e deliberante, da verdadeira subjetividade, libera a imaginação radical do ser humano singular, como fonte de criação e alteração. [...] a instância reflexiva desempenha um papel ativo e não predeterminado.”

Ao se chamar a atenção para a importância do desenvolvimento da autonomia individual provoca-se, automaticamente, a discussão sobre a Identidade, não por aca-so, o próximo ponto do trinômio a ser apresentado.

Page 22: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização

22

Identidade

Encontro (litogravura) – Maurilis Cornelis Escher.

(TA

SCH

EN. M

. C. E

sche

r: 1

999.

Tas

chen

Dia

ry. B

ened

ickt

Tas

hen

Ver

lg, 1

998.

)

A construção de uma Identidade1 Pessoal pressupõe um processo subjetivo. Em tempos globalitários – economia globalizada e a consequente ameaça de totalita-rismo – essa subjetividade aparece ameaçada por uma verdadeira onda homogenei-zadora destruidora de todos os vestígios traçados e marcas singulares que constituem os referenciais identitários.

Em sua volta, cada um sente perfeitamente que o álibi da modernidade serve para dobrar tudo sob o implacável nível de uma estéril uniformidade. Um estilo de vida semelhante se impõe de um extremo ao outro do planeta, divulgado pela mídia e prescrito pela intoxicação da cultura de massa de La Paz a Ouagadougou, de Kyoto a São Petersburgo, de Oram a Amsterdam, mesmos filmes, mesmas séries de televisão, mesmas informações, mesmas canções, mesmos slogans publicitários, mesmos objetos, mesmas roupas, mesmos carros, mesmo urbanismo, mesma ar-quitetura, mesmo tipo de apartamentos, muitas vezes, mobiliados e decorados de maneira idên-tica [...] Nos quarteirões abastados das grandes cidades do mundo, o requinte da diversidade cede lugar à fulminante ofensiva da padronização, da homogeneização, da uniformização. Por toda parte, triunfa a world culture, a cultura global. (RAMONET, 1998, p. 47)

Referenciais identitários uniformes e flutuantes que mudam ao “sabor dos mo-vimentos dos mercados e com igual velocidade”(ROLNIK, 1997, p. 20) passam a imprimir na identidade dos indivíduos uma marca de insegurança, estranhamento e vazio. A vida humana, reduzida aos interesses estritos da economia, demanda das

1.Identidade (Di-cionário Aurélio) –

Conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais etc.

Page 23: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização

23

pessoas uma adequação imediata às exigências volúveis de um mercado, acirrando relações de competitividade. Essa situação acaba desencadeando na relação desses indivíduos com o mundo circundante o acionamento de mecanismos que promovem reações de indiferença, isolamento, distanciamento da relação social, individualismo. A ameaça à integridade individual encontrou na síndrome do pânico sua mais atual forma de expressão. Surgem então, desse “balcão de negócios” que se transformou a sociedade humana, “iniciativas mitigadoras” visando preservar uma “ilusão iden-titária”, literaturas de autoajuda e esotéricas, evangelização instantânea, vitaminas miraculosas, tecnologias diet/light, drogas farmacológicas e da psiquiatria biológica, produtos do narcotráfico e

[...] drogas oferecidas pela TV, pela publicidade, pelo cinema comercial e por outras mídias mais. Identidades prêt-à-porter, figuras glamourizadas imunes aos estremecimentos das for-ças. Mas, quando são consumidas como próteses de identidade, seu efeito dura pouco, pois os indivíduos – clones que então se produzem, com seus falsos self estereotipados, são vulnerá-veis a qualquer ventania de forças um pouco mais intensas. Os viciados nessa droga vivem dispostos a mitificarem e consumirem toda imagem que se apresente de forma minimamente sedutora, na esperança de assegurarem seu reconhecimento em alguma órbita do mercado. (ROLNIK, 1997, p. 22)

A Identidade Pessoal é, para além da defini-ção apresentada acima, um projeto, uma história de vida. Está inscrita inicialmente num complexo de significações que vem do outro, do mundo que o rodeia. Nesse sentido, o indivíduo nasce com a sua identidade predeterminada e, é na sua relação com o mundo, com as instituições – língua, famí-lia, escola, igreja, trabalho etc. – que o indivíduo vai delineando os contornos da sua identidade. Reafirma-se, aqui, uma concepção já apresentada anteriormente, que a identidade só pode ser cons-truída a partir da ação. Por ser ação, a identidade é passível de mudança, de transformação.

Dentro do universo escolar é importante o reconhecimento dessa característica singular e “mutante” da criança ou do jovem que busca a escola, superando definições homogeneizadoras e simplificadoras. Aquele que frequenta uma escola merece mais que o rótulo identificador – aluno –, devendo ser considerado como um sujeito parti-cular, com experiências de vida, necessidades e expectativas singulares, traduzidas nos contornos de sua identidade. Ao identificá-lo como aluno, parece que pouca coisa ainda resta por dizer. No que tange à identidade do professor, também é necessário romper com as atribuições extraprofissionais e superdimensionadas, quando é exigido do professor que se apre-sente como modelo identitário, responsável por constituir os traços de identidade

Exiladas na Tanzânia preparam-se para o retorno a Moçambique – Sebastião Salgado.

(SA

LGA

DO

, Seb

astiã

o. Ê

xodo

s. Sã

o Pa

ulo:

Cia

das

Let

ras,

2000

, p. 2

32-2

34.)

Page 24: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização

24

de seus alunos. Nesse processo fica a singularidade do professor ameaçada por uma padronização moralista imposta pelo imaginário social. O professor, comprometido com o projeto coletivo da escola, consciente da sua função de educador – dentro das perspectivas pedagógica, ética e política – é também um indivíduo autônomo que tem clareza da importância da sua subjetividade. O que se propõe é o rompimento com universais nebulosos e estigmatizados, seja com relação ao aluno ou ao professor.

Além de incorporar as várias identidades individuais, a escola também se cons-titui como uma identidade social, que se manifesta por meio do seu projeto político- -pedagógico e da ação de seus professores, funcionários, alunos e pais, quer de forma individual, quer de forma coletiva, através da organização de grêmios, associações, conselhos, sindicatos e outros. A identidade da escola se constrói internamente pelo complexo de relações entre seus protagonistas, como também externamente, por meio de suas articulações com outros setores da sociedade. Nesse sentido, podemos dizer que a escola se configura como um espaço profícuo da democracia partici-pativa. Pensadores de notoriedade no campo da política defendem a tese de que os movimentos sociais, tanto ou mais do que a democracia representativa, se confi-guram como espaço do verdadeiro exercício da democracia. É reconhecida, hoje, a crise que atravessa a representação política decorrente do baixo nível de escolaridade dos eleitores, da truculência da indústria política, do paternalismo e do clientelismo. Segundo Norberto Bobbio, os indivíduos não se sentem hoje representados por seus grupos e, consequentemente, não se sentem protagonistas da vida política. Além disso, o representante eleito para defender os interesses da nação não pode ficar vin-culado aos interesses de grupos particulares, promovendo, assim, uma transgressão ao princípio da representatividade.

Entretanto, a perspectiva emancipadora da escola – espaço para o exercício da democracia participativa – não pode encobrir um olhar crítico sobre a dinâmica peculiar de funcionamento dos grupos sociais que dela fazem parte e que, por vezes, na tentativa de construir uma identidade que incorpore as necessidades, expectativas e projetos de seus membros, acabam por promover a exclusão do diferente, da diver-sidade, e correm o sério risco de enclausurarem-se em guetos.

Esse processo de fraternidade por exclusão dos “intrusos” nunca acaba, é um círculo cada vez mais fechado, que reclama “autonomia” em relação ao mundo exterior, onde manter a comunidade se torna um fim em si mesmo, e a atividade fundamental é excluir aqueles que a ela não pertencem. (MAHEIRIE, 1997, p. 63)

DiversidadeA diversidade cultural pode ser tratada como virtude ou como problema. Quan-

do é respeitada a singularidade de cada indivíduo, os aspectos culturais presentes na sua vida, a pluralidade de experiências que marca cada sujeito, a trajetória que cons-tituiu sua existência, entre outros, a diversidade é virtude. No entanto, quando se impõe uma homogeneidade, uma integração forçosa, desrespeitando as diferenças, a diversidade é transformada em problema.

Page 25: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização

25

A diversidade racial do Brasil.(N

ova

Enci

clop

édia

Ilus

trad

a da

Fol

ha d

e Sã

o Pa

ulo,

199

6, p

. 132

.)

A discussão sobre a diversidade surgiu com maior efervescência no cenário contemporâneo no início dos anos 1960, quando começaram a eclodir os movimen-tos de minorias, tais como: movimento de mulheres, negros, homossexuais, índios, além de movimentos musicais e culturais, que reivindicavam o direito à diferença. Tais manifestações ganharam espaço e a diversidade passou a ser reconhecida, se não em todos, certamente em setores significativos da sociedade, como a mídia, as universidades, as escolas, os movimentos sociais organizados, o Congresso Nacio-nal etc., conquistando importantes avanços, inclusive no que se refere aos aspectos legais. Contraditoriamente, também em decorrência do direito à diferença, surgem manifestações de minorias racistas de ultradireita que apregoam violentamente uma supremacia direcionada para a exclusão.

Os movimentos neorracistas e outros de caráter panicularistas são exemplos de movimentos que têm uma visão dogmática de si e do mundo, reclamando a superioridade da sua exclusão, como os únicos e verdadeiros dignos da inclusão no campo político-cultural.

Em nome da autenticidade, da identidade homogênea, caem num “naturalismo”, destroem a ideia de diversidade, reivindicam a universalidade, onde o que antes parecia uma perspectiva aberta, vira uma visão fixa e imutável de si e do mundo,[...] é uma tirania, uma violência, pois o outro, o diferente, o diverso, não é compreendido como sujeito, e sua dimensão subjetiva é negada, excluída. Ou seja, o outro é incluído no campo da pura objetividade, podendo ser manipulado, violentado, portanto excluído do campo da humanidade, como uma espécie de sub-homem. (MAHEIRIE, 1997)

Page 26: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização

26

Grupo de rapazes habitantes de compartimento subterrâneo de águas pluviais – Cidade do México.

(SA

LGA

DO

, Seb

astiã

o. Ê

xodo

. São

Pau

lo: C

ia d

as L

etra

s, 20

00, p

. 232

,234

.)

Outro dilema imposto pela discussão acerca da diversidade é a questão da igualdade. Ao se reclamar tratamento igualitário para todos os cidadãos, o respei-to à diferença acaba relegado a um plano secundário. Para o antropólogo Louis Dumont o reconhecimento da diferença só é possível por meio do conflito e da hie-rarquia. Na tentativa de fugir desse impasse, os PCN propõem tratamento diferencia-do respeitando-se as diferenças individuais para se alcançar igualdade nos resultados de ensino. Na ação educativa, essa proposição, aparentemente simples, assume uma enorme complexidade que envolve desde a formação do professor – para identificar a diferença – passando pelas políticas educacionais de ampliação do número de alunos por sala de aula; pelo pouco tempo disponível do professor para o desenvolvimento de trabalho diferenciado; escassez de recursos múltiplos visando à inclusão da di-versidade e, finalmente, o despreparo das instituições de ensino para funcionar, no espaço e no tempo escolar, de forma menos ritualizada.

A escola como espaço de ampliação das experiências de vida gerais, adoles-cência, família, vida social etc., desafia os educadores a desenvolverem posturas e instrumentos metodológicos que possibilitem o aprimoramento do seu olhar sobre o aluno, como “outro”, de tal forma que conhecendo as dimensões culturais em que ele é diferente, possam compreender e incorporar a “diferença como tal e não como deficiência” (DAYRELL, 1996, p. 145). Retoma-se aqui algo que já foi afirmado an-teriormente quando se discutia a questão da Identidade: os alunos uma vez identifica-dos – seres cognitivos com este ou aquele comportamento –, não possuem nenhuma outra identidade, nenhuma diversidade, o que implica uma uniformidade no ato de ensinar – uma linearidade. O que não se percebe, o que não se leva em conta, é a trama de relações e de sentidos existentes em uma sala de aula.

Os alunos chegam à escola marcados pela diversidade, reflexo dos desenvolvimentos cogni-tivo, afetivo e social, evidentemente desiguais, em virtude da quantidade e qualidade de suas

Page 27: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização

27

experiências e relações sociais, prévias e paralelas à escola. O tratamento uniforme dado pela escola só vem consagrar a desigualdade e as injustiças das origens sociais dos alunos.

Uma outra forma de compreender esses jovens que chegam à escola é apreendê-los como sujeitos socioculturais. Essa outra perspectiva implica superar a visão homogeneizante e es-tereotipada da noção de aluno, dando-lhe um outro significado. Trata-se de compreendê-lo na sua diferença, enquanto indivíduo que possui uma historicidade, com visões de mundo, escala de valores, sentimentos, emoções, desejos, projetos, com lógicas de comportamentos e hábitos que lhe são próprios. (DAYRELL, 1996, p. 140)

1. Baseado no princípio da Autonomia, quais os limites e possibilidades para elaboração do proje-to político-pedagógico na escola?

2. A partir da compreensão do fenômeno da globalização, comente os conceitos de Identidade e Diversidade.

3. Com a crise da democracia representativa, os movimentos sociais se apresentam como alterna-tiva para o exercício da Autonomia. Dê sua opinião.

Page 28: Fundamentos Gerais da Educação - …arquivostp.s3.amazonaws.com/qcursos/livro/LIVRO_fundamentos_gerais... · Fundamentos Gerais da Educação ... A proposição de uma Ética da

Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização

28

Cornelius Castoriadis (1922) – filósofo grego, vive na França desde 1945. Foi um dos fundadores da revista Socialismo ou Barbárie. Publicou, entre outras obras: A Instituição Imaginária da Sociedade e Encruzilhadas do Labirinto I, II e III.

lgnácio Ramonet – editor do Le Monde Diplomatique. Obras publicadas: A Desordem das Nações e A Geopolítica do Caos.

Juarez Dayrell – professor da FAE-UFMG e membro do Núcleo de Estudos, Educação, Cultura e Sociedade.

Kátia Maheirie – professora do Departamento de Psicologia da UFSC.

Norberto Bobbio – filósofo italiano. Publicou, entre outros: Dicionário de Política (et al.); O Conceito de Sociedade Civil e Direita e Esquerda.

Suely Rolnik – psicanalista, professora titular na PUC-SP. É autora de Cartografia Sentimental: trans-formações contemporâneas do desejo e coautora, com Félix Guatarri, de Micropolítica: cartografia do desejo.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; GIANFRANCO, Pasquino. Dicionário de Política. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1986.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri-culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999.

CASTORIADIS, Cornelius. O Mundo Fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sociocultural. In: DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos Olhares sobre Educação e Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996.

HISTÓRIA do pensamento. Barcelona: Orbis, 1983.

MAHEIRIE, Kátia. Identidade: o processo de exclusão/inclusão na ambiguidade dos movimentos sociais. In: ZANELLA, Andréa V. (Org.). Psicologia e Práticas Sociais. Porto Alegre: ABRAPSO Sul, 1997.

RAMONET, lgnácio. Geopolítica do Caos. Petrópolis: Vozes, 1998.

______. O Desentendimento: política e filosofia. São Paulo: 34, 1996.

ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização. In: LINS, Da-niel (Org.). Cultura e Subjetividade. São Paulo: Papirus, 1997.