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Fundação Municipal de Artes de Montenegro · Priscila Mathias Rosa – Vice-diretora Executiva Márcia Moura Cordeiro Pessoa Dal Bello ... (UNL/SANTA FE) Ana Maria Haddad Baptista

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Page 1: Fundação Municipal de Artes de Montenegro · Priscila Mathias Rosa – Vice-diretora Executiva Márcia Moura Cordeiro Pessoa Dal Bello ... (UNL/SANTA FE) Ana Maria Haddad Baptista

Fundaccedilatildeo Municipal de Artes de Montenegro

Ano 16 ndash Nuacutemero 32 ndash JulhoDezembro 2016

REVISTA DA FUNDARTE Uma publicaccedilatildeo semestral da Editora da Fundaccedilatildeo Municipal de Artes de Montenegro - Ano 16 nuacutemero 32 julhojdezembro 2016

Fundaccedilatildeo Municipal de Artes de Montenegro-FUNDARTE

Legario Guilherme Nabinger - Presidente do Conselho Teacutecnico Deliberativo

Andreacute Luis Wagner- Diretor Executivo Julia Maria Hummes - Vice-diretora Executiva

Priscila Mathias Rosa ndash Vice-diretora Executiva

Maacutercia Moura Cordeiro Pessoa Dal Bello Vanessa Longarai Rodrigues

Coordenaccedilatildeo da Ediccedilatildeo

Julia Maria Hummes (FUNDARTERS) Maacutercia Moura Cordeiro Pessoa Dal Bello

(FUNDARTERS) Vanessa Longarai Rodrigues (FUNDARTERS)

Marco Tuacutelio (FUNDARTERS) Carine (FUNDARTERS)

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel (UERGSRS) Maria Isabel Petry Kehrwald

Comissatildeo Editorial

Luciana Prass (UFRGSRS)

Carmen Luacutecia Capra (UERGSRS)

Edgardo Hugo Martinez (UNLSANTA FE)

Maria Eduarda Ferreira Coquet (UNIVERSIDADE DO MINHOPORTUGAL)

Andrea Hofstaeter (UFRGSRS)

Flavia Pilla do Valle (UFRGSRS)

Federico Gariglio (UNLSANTA FE)

Ana Maria Haddad Baptista (UNINOVESP)

Gilberto Icle (UFRGSRS)

Maria Cecilia de Araujo Rodrigues Torres (IPARS)

Comissatildeo Cientiacutefica

Capa Estevatildeo Dornelles Concepccedilatildeo Estevatildeo Dornelles Priscila Mathias

Rosa Deacutebora Brandt Alencastro Rodrigo Kochemborger e Janaiacutena Kremer

Direccedilatildeo Estevatildeo Dornelles Fotografia Ursula Jahn

Elenco Patrick Aozani Moraes Composiccedilatildeo Graacutefica Estevatildeo Dornelles

Vanessa Longarai Rodrigues

Editoraccedilatildeo Eletrocircnica

REVISTA DA FUNDARTE Rua Capitatildeo Porfiacuterio 2141 - B Centro CEP

95780-000 ndash MontenegroRSndashBrasil Fonefax (51) 3632-1879

Home-page seerfundartersgovbr revistadafundartefundartersgovbr

Bibliotecaacuterio Marcelo Bresolin - CRB 102136

Revista da FUNDARTE

Montenegro Ano 16 N 32 JulhoDezembro2016

Periodicidade Semestral

Eacute permitida a reproduccedilatildeo dos artigos desde que citada a fonte Os conceitos emitidos satildeo de

responsabilidade de quem os assina Para os artigos em liacutengua estrangeira seraacute respeitada a

formataccedilatildeo do paiacutes de origem Excepcionalmente nesta ediccedilatildeo da Revista da

Fundarte seratildeo mantidas as formataccedilotildees de texto e referecircncias conforme encaminhadas pelos autores

Revista da FUNDARTE ndash ano 1 v1 n 1 (jan-jun 2001) ndash Montenegro Ed da Fundarte 2001 ndash Semestral ISSN 2319-0868

1 Artes 2 Educaccedilatildeo 3 Muacutesica 4 Gravura 5Perfomance I Fundaccedilatildeo Municipal de Artes de Montenegro

Sumaacuterio

Editorial

Editorial

LER EDITORIAL

Maria Isabel Petry Kehrwald P04 - P06

Artigos

A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de caso

LER ARTIGO

Marcio Guedes Correa P07 - P14

Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo Paul Valeacutery Espiritografias

LER ARTIGO

Idalina Krause de Campos P15 - P35

Gravura procedimentos alternativos em litografia contemporacircnea

L

Ana Paula Schoninger van Grol Lurdi Blauth P36 - P51

Pluralia Tantum reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea

LER ARTIGO

Fernando Lewis de Mattos P52 - P94

Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente

LER ARTIGO

Lutiere Dalla Valle P95 - P108

PerformanceS

LER ARTIGO

Fernando Pinheiro Villar P109 - P119

Estudo sobre a Participaccedilatildeo de Estudantes em um Grupo Instrumental

LER ARTIGO

Dutra Goumlethel Pacircmela Cristina Rolim Wolffenbuumlttel Accorsi Bueno Ana Maria

P120 - P141

Teatro para quem A arte de teatrar para todos - Um estudo sobre acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RS

LER ARTIGO

Izabel Cristina da Silveira P142 - P162

4 | P aacute g i n a

EDITORIAL

Nesta 32ordf ediccedilatildeo da Revista da FUNDARTE oferecemos aos nossos leitores

oito artigos centrados nas aacutereas das artes visuais muacutesica teatro educaccedilatildeo criadora

e cinema Eles estatildeo perpassados por enfoques educativos teoacutericos e artiacutesticos e

ancorados no tema ldquoArte e Educaccedilatildeo poeacutetica pesquisa e docecircnciardquo As

abordagens dos autores contemplam diferentes pontos de vista ora apresentando

processos artiacutesticos e performances ora refletindo sobre a pedagogia e a accedilatildeo

docente Eacute um panorama diversificado com propostas que enriquecem as discussotildees

em torno do tema

O primeiro artigo denominado ldquoA polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da

muacutesica popular uma proposta analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de casordquo

de Marcio Guedes Correa do Instituto de Artes da Unesp apresenta estudos de caso

na aacuterea da muacutesica que reforccedilam a importacircncia do contraponto tanto para a

organizaccedilatildeo do ensino da muacutesica popular quanto para a compreensatildeo do saber

musical Almada e Lima satildeo alguns dos autores que datildeo suporte agrave investigaccedilatildeo

Idalina Krause de Campos da UFRGS discorre em seu artigo ldquoFazer

tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery espiritografiasrdquo sobre conceitos de

leitura e escrita (escrileitura) e Filosofia da Diferenccedila entre outros que buscam

desenvolver uma consciecircncia da importacircncia do processo de pensar A pesquisa da

autora trata de uma praacutetica de ensino criadora centrada na obra de Valeacutery com

aportes teoacutericos tambeacutem de Deleuze e Corazza

As experiecircncia realizadas com diferentes meios e modos de produzir imagens

satildeo o foco do artigo ldquoGravura procedimentos alternativos em litografia

contemporacircneardquo de Ana Paula Schoninger van Grol da FeevaleNH

Procedimentos tradicionais satildeo inter-relacionados com processos de tecnologias

digitais propondo novas possibilidades de criaccedilatildeo de matrizes e aproveitamento de

materiais alternativos Blauth e Veneroso contribuem para o estudo da autora

5 | P aacute g i n a

Fernando Lewis de Mattos da UFRGS em seu ensaio ldquoPluralia Tantum

reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircneardquo apresenta elementos histoacutericos da

esfera musical e discorre sobre caracteriacutesticas da muacutesica contemporacircnea Aponta

paralelamente aspectos do conservadorismo da muacutesica atual presentes em nosso

cotidiano Suas argumentaccedilotildees apoiam-se em extensa bibliografia da qual citamos

Buckinx e Koellreutter

ldquoProvocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa

das imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docenterdquo aborda o cinema como dispositivo

provocador de formaccedilatildeo docente que conforme o autor Lutiere Dalla Valle da

UFSM ldquoproduz formas de ver e ser vistordquo O texto estabelece relaccedilotildees entre arte e

subjetividade presentes na cinematografia e explora o conceito de edu(vo)cativo

identificado nas aprendizagens mediadas pelas visualidades Contribuem para as

reflexotildees Dias Fresquet e Hernaacutendes

Fernando Pinheiro Villar aborda a pluraridade do conceito de performances

artiacutesticas relacionadas ao desempenho no seu artigo PerfomanceS Para o autor o

significado de desempenho afirma a observaccedilatildeo analiacutetica de comportamentos

humanos podendo significar comportamentos que se repetem ou accedilotildees cotidianas

que satildeo ensaiadas ou preparadas e observadas Segundo o autor ldquouma performance

sem consciecircncia do fato de estar sendo vista como tal pode significar uma

performance cotidiana cultural ou socialrdquo

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel Pacircmela Goumlethel Dutra e Ana Maria Bueno

Accorsi no artigo Estudo sobre a participaccedilatildeo de estudantes em um Grupo

Instrumental apresenta a pesquisa realizada em uma escola Municipal de TaquariR

que teve como objetivo compreender a importacircncia da participaccedilatildeo dos alunos em

grupos instrumentais diante das diversas possiblidades da inserccedilatildeo da muacutesica a partir

da nova legislaccedilatildeo

Como promover a inclusatildeo social da pessoa com deficiecircncia no acircmbito cultural

eacute a preocupaccedilatildeo de Izabel Cristina da Silveira da FUNDARCRS expressa no artigo

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ldquoTeatro para quem A arte de teatrar para todos um estudo sobre

acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RSrdquo que fecha esta Revista O

estudo praacutetico-teoacuterico desvela discussotildees questionamentos e legislaccedilatildeo em torno do

tema na tentativa de buscar alternativas para a acessibilidade Barba Tojal e

Werneck satildeo alguns dos teoacutericos consultados

Agradecemos imensamente aos que enviaram seus artigos para compor a 32ordf

Revista da FUNDARTE Desejamos uma boa leitura e que as reflexotildees oferecidas

pelos autores contribuam para a busca de novos e inquietantes saberes

Maria Isabel Petry Kehrwald Conselho Editorial da Revista

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta

analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de caso

Marcio Guedes Correa1

Instituto de Artes da Unesp

Resumo O repertoacuterio estudado nos cursos formais de muacutesica popular eacute em grande parte tonal de textura homofocircnica estruturado como melodia acompanhada No entanto eacute possiacutevel reconhecer estruturas polifocircnicas subordinadas agrave homofonia dos acompanhamentos instrumentais frequentemente realizados para acompanhar canccedilotildees Pode-se conjecturar que tais estruturas estejam presentes no repertoacuterio como um eco da polifonia vocal do renascimento e do barroco jaacute que muitas escolhas de acordes se datildeo ldquode ouvidordquo e natildeo necessariamente por uma opccedilatildeo teacutecnica e funcional em relaccedilatildeo agrave harmonia Portanto a harmonia informalmente chamada de funcional da muacutesica popular pode carregar em si diversas expectativas de direccedilatildeo ou resoluccedilatildeo que satildeo mais de ordem meloacutedica do que harmocircnica Este estudo espera contribuir para a revalorizaccedilatildeo do estudo de contraponto dentro das matrizes curriculares de muacutesica popular jaacute que eacute notoacuterio que tal disciplina vem sendo extinta do ambiente formal de educaccedilatildeo musical Palavras-chave ensino da muacutesica popular cifra alfanumeacuterica polifonia em muacutesica popular contraponto em muacutesica popular Abstract The repertoire studied in formal courses of popular music is largely tonal It has homophonic texture and itrsquos structured as na accompanied melody However it is possible to recognize polyphonic structures under the homophone of instrumental accompaniments often performed to accompany songs One can conjecture that such structures are present in the repertoire as an echo of the vocal polyphony of the Renaissance and the Baroque as many chord choices are given by ear and not necessarily by a technical and functional option with regard to harmony Therefore the functional harmony informally called popular music can load itself diverse expectations of management or resolution that are more melodic than harmonic order This study hopes to contribute to the upgrading of counterpoint study within the curriculum matrices of popular music as it is clear that this discipline is being extinguished of the formal setting of music education Keywords teaching of popular music alphanumeric cipher polyphony in popular music counterpoint in popular music

Primeiro estudo de caso o movimento meloacutedico do baixo impliacutecito na cifra do

choro em Um a Zero de Pixinguinha

No ensino do repertoacuterio popular eacute muito comum a utilizaccedilatildeo de partituras que

contecircm melodias cifradas Esta forma de registro musical oferece a melodia principal

(anaacuteloga ao cantus firmus) grafada em partitura o que garante uma certa precisatildeo

na compreensatildeo dessa camada mas todos os outros elementos componentes da

1 Graduado em Licenciatura em Muacutesica pela FAAM mestre em muacutesica pelo Instituto de Artes da Unesp Doutorando em muacutesica da Unesp ndash Instituto de Artes sob orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Sonia R Albano de Lima Contato correamarcioguedesgmailcom

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

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elaboraccedilatildeo musical ficam representados unicamente pela cifra alfanumeacuterica A cifra

confere ao interprete um grau de liberdade desejaacutevel na muacutesica popular mas essa

mesma liberdade pode ser em alguma medida prejudicial no ensino de muacutesica

popular quando se trata da compreensatildeo total do discurso a praacutetica aliada a

compreensatildeo racional do fazer musical

A cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular eacute em primeira instacircncia uma

representaccedilatildeo de simultaneidades mais especificamente dos acordes da muacutesica

tonal Mas da informaccedilatildeo harmocircnica que a cifra oferece eacute possiacutevel depreender

tambeacutem procedimentos meloacutedicos complementares agrave melodia principal ou seja do

contraponto impliacutecito e subordinado agrave estrutura homofocircnica Pode-se considerar que

o caso mais audiacutevel estaacute nas melodias empregadas no baixo Em cifras em que haacute

fartura de acordes com inversatildeo percebe-se uma clara intenccedilatildeo de movimentar o

baixo melodicamente ou seja de conferir a essa camada estrutural contornos

meloacutedicos associados ao seu papel de delinear as fundamentais das funccedilotildees

harmocircnicas No repertoacuterio relacionado ao choro o violatildeo de sete cordas desenvolve

a funccedilatildeo de baixo que aleacutem de reforccedilar a estrutura harmocircnica tonal estaacute em

contraponto constante com a melodia principal

A composiccedilatildeo ldquoUm a Zerordquo de Pixinguinha eacute um exemplo disso

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

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Figura 1 ldquoUm a Zerordquo (Pixinguinha) Irmatildeos Vitale 1997

O exemplo da figura 1 traz a primeira parte da composiccedilatildeo A quantidade de

inversotildees de acordes presente procura dar pistas da realizaccedilatildeo do baixo comumente

tocado no violatildeo de sete cordas Isso retira do baixo o papel monoacutetono de garantir a

fundamental de cada funccedilatildeo harmocircnica Com base nesta cifra o muacutesico popular de

modo anaacutelogo ao muacutesico barroco realiza o baixo Na figura dois encontra-se uma

sugestatildeo de realizaccedilatildeo do baixo com base nas cifras

Figura 2 Realizaccedilatildeo do baixo em ldquoUm a Zerordquo de Pixinguinha Imagem concebida e editada pelo autor

Segundo estudo de caso a polifonia tonal no acompanhamento da canccedilatildeo

ldquoQuando o carnaval chegarrdquo de Chico Buarque

O ensino de harmonia da muacutesica popular ldquomais especificamente aquela que

eacute informalmente denominada harmonia funcionalrdquo (ALMADA 2013 p 12) se

preocupa em primeiro lugar em determinar a funccedilatildeo de cada um dos acordes

encontrados no discurso musical Este tipo de ensino tem objetivos diversos

compreender estruturas harmocircnicas orientar a praacutetica da improvisaccedilatildeo meloacutedica

guiar estudos de rearmonizaccedilatildeo e substituiccedilatildeo de acordes entre outros Poreacutem em

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

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alguns casos acordes podem ser simultaneidades geradas por direccedilotildees meloacutedicas

distintas na conduccedilatildeo de cada voz ldquoNo estudo da harmonia tonal acordes podem

surgir a partir de combinaccedilotildees de linhas meloacutedicas relativamente independentesrdquo

(LIMA 2008 p 63) Ainda que tais procedimentos meloacutedicos possam natildeo ser

conscientes pelo muacutesico que desenvolve a funccedilatildeo de acompanhamento pode-se

conjecturar que sua percepccedilatildeo auditiva esteja imbuiacuteda de sonoridades

caracteriacutesticas da muacutesica vocal polifocircnica e isso em algum momento pode

transparecer em acompanhamentos instrumentais

No presente estudo de caso eacute possiacutevel observar procedimentos polifocircnicos

na conduccedilatildeo dos acordes da primeira parte da canccedilatildeo ldquoQuando o Carnaval Chegarrdquo

de Chico Buarque Em diversas entrevistas o compositor carioca revela que

aprendeu a tocar violatildeo sozinho tentando imitar o violatildeo de Joatildeo Gilberto e

portanto natildeo conhece harmonia e suas regras As escolhas de acordes feitas por

compositores autodidatas se datildeo quase unicamente por sonoridade Ou seja um

acorde eacute seguido por outro porque o som eacute satisfatoacuterio para os objetivos do

compositor Disso pode-se compreender que tais escolhas harmocircnicas estatildeo

carregadas de expectativas meloacutedicas ou seja cada acorde eacute ouvido como um

conjunto simultacircneo de notas potencialmente meloacutedicas como o satildeo no estudo da

harmonia tradicional Portanto este estudo pretende apontar para a possibilidade de

anaacutelise harmocircnica em que alguns acordes sejam considerados simultaneidades de

expectativas meloacutedicas e estes tecircm menor concordacircncia com a anaacutelise harmocircnica

ou funcional

O estudo da harmonia natildeo pressupotildee obrigatoriamente apenas simultaneidade () eacute importante que seja considerado o movimento meloacutedico de cada linha (voz) A inter-relaccedilatildeo entre melodia harmonia ritmo dinacircmica textura etc satildeo fatores que devem ser levados em conta na anaacutelise e na composiccedilatildeo de uma peccedila (LIMA 2008 p 117)

Eacute necessaacuterio estudar certas passagens harmocircnicas agrave luz da polifonia e

portanto do contraponto

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

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Figura 4 anaacutelise do contraponto presente na harmonia de ldquoQuando o Carnaval Chegarrdquo de Chico Buarque Imagem concebida e editada pelo autor

O exemplo da Figura 4 oferece uma opccedilatildeo de compreensatildeo harmocircnica

diferente da sugerida na partitura O primeiro acorde eacute visto como faacute meio diminuto

na primeira inversatildeo em vez de laacute menor com sexta maior como sugerido na cifra

original O acorde seguinte o primeiro grau eacute um sol maior com seacutetima maior

portanto sua sensiacutevel faacute fundamental do acorde anterior ainda estaacute presente

como um retardo O terceiro acorde embora estruturalmente se iguale ao acorde de

laacute bemol diminuto de seacutetima diminuta nessa proposta de anaacutelise se daacute pela

consequecircncia de quatro figuraccedilotildees meloacutedicas bordadura no baixo nota de

passagem no tenor retardo no contralto e antecipaccedilatildeo no soprano Portanto ele natildeo

tem menos funccedilatildeo harmocircnica e mais implicaccedilotildees meloacutedicas

Quando se prolonga todas as notas que satildeo rearticuladas nos acordes do

exemplo da figura 4 depara-se com um contraponto a quatro vozes

predominantemente de segunda espeacutecie

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

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Figura 5 conclusatildeo contrapontiacutestica da primeira parte da canccedilatildeo ldquoquando o carnaval chegarrdquo Imagem concebida e editada pelo autor

Portanto nesta proposta de anaacutelise harmocircnica natildeo eacute possiacutevel desconsiderar

o contraponto e implicaccedilotildees polifocircnicas

Terceiro estudo de caso contraponto cromaacutetico nas dissonacircncias acima da

seacutetima no acompanhamento da canccedilatildeo ldquosamba do aviatildeordquo de Tom Jobim

A harmonia da muacutesica popular poacutes bossa-nova conferiu ldquoemancipaccedilatildeo agrave

dissonacircnciardquo emprestando a expressatildeo de Schoenberg Portanto a dissonacircncia natildeo

mais direciona os acordes no sentido de suas resoluccedilotildees mas emprestam a eles

sonoridades instaacuteveis e de alguma maneira ao mesmo tempo resolutas As

dissonacircncias conferem certa impressatildeo a cada um dos acordes mas natildeo

apresentam funccedilatildeo de interligaccedilatildeo dos fenocircmenos harmocircnicos atraveacutes da resoluccedilatildeo

delas Esta interligaccedilatildeo novamente se daacute muito mais por expectativas meloacutedicas

embutidas como vozes simultacircneas formadoras dos acordes

Embora a emancipaccedilatildeo da dissonacircncia seja plenamente presente no

repertoacuterio popular poacutes bossa-nova em alguns casos natildeo se pode desconsiderar

estruturas contrapontiacutesticas presentes nestas composiccedilotildees Eacute claro que neste caso

especiacutefico as dissonacircncias natildeo satildeo resolvidas mas suas irresoluccedilotildees natildeo raro

recaem sobre construccedilotildees meloacutedicas em vozes internas dos acordes subordinadas

agrave melodia principal ao baixo e claro agrave harmonia

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

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Figura 6 contraponto cromaacutetico na canccedilatildeo ldquosamba do aviatildeordquo de Tom Jobim Imagem concebida e editada pelo autor

No fragmento musical da figura 6 eacute possiacutevel identificar uma melodia cromaacutetica

embutida nas dissonacircncias acima da seacutetima A partir do compasso 5 as notas doacute

doacute si e laacute satildeo respectivamente deacutecima terceira maior deacutecima terceira menor

deacutecima segunda e deacutecima primeira aumentada do acorde de mi maior com seacutetima

menor Essas dissonacircncias constroem uma melodia cromaacutetica um contraponto

cromaacutetico

Essa melodia eacute imitada a partir do compasso 7 uma seacutetima maior abaixo nas

notas reacute do do e si respectivamente deacutecima primeira justa deacutecima maior deacutecima

menor e nona maior dos acordes laacute maior com seacutetima maior e laacute menor com seacutetima

menor A melodia cromaacutetica original e sua imitaccedilatildeo uma seacutetima menor abaixo

comeccedilam e terminam em dissonacircncia

Consideraccedilotildees Finais

As propostas aqui apresentadas pretendem apontar para uma contribuiccedilatildeo

dos gecircneros de muacutesica erudita na estruturaccedilatildeo do ensino da muacutesica popular mais

especificamente buscam valorizar o estudo da disciplina contraponto Talvez as

estruturaccedilotildees dos curriacuteculos de cursos de muacutesica possam ser de certo modo

exclusivamente populares apenas na escolha do repertoacuterio a ser aprendido e ainda

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

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assim persiste a discussatildeo do que vem a ser muacutesica popular e muacutesica erudita e se

essa fronteira existe com tanta clareza No acircmbito da estruturaccedilatildeo teacutecnica e teoacuterica

a hibridez dos conhecimentos historicamente categorizados como de muacutesica erudita

e popular parece ser inevitaacutevel O estudo do contraponto parece ainda ser

indispensaacutevel para fomentar uma compreensatildeo mais ampla do saber musical em

diversos acircmbitos em diferentes gecircneros e estilos

Referecircncias

ALMADA Carlos Contraponto em muacutesica popular fundamentaccedilatildeo teoacuterica e aplicaccedilotildees Rio de Janeiro Editora UFRJ 2013

BORTZ Graziela Direccedilatildeo e Movimento em Solfejos Tonais Percepta ndash revista de cogniccedilatildeo musical Curitiba 1 (1) 95-107 novembro de 2013 CARRASQUEIRA Maria Joseacute O melhor de Pixinguinha Songbook Satildeo Paulo Irmatildeo Vitale 1997 LIMA Marisa Ramirez Rosa de Harmonia Satildeo Paulo Embraform 2008 LIMA Sonia Regina Albano de Performance e interpretaccedilatildeo musical uma praacutetica interdisciplinar Satildeo Paulo Musa Editora 2006 NOGUEIRA Marcos Fernandes Pupo Agrupamentos Sonoros Plenos na Muacutesica de Simultaneidades Acuacutesticas e Estruturais Revista Muacutesica Hodie Goiacircnia v12 nordm 2 p87-972012 Disponiacutevel em lthttpwwwmusicahodiemusbr122artigo_7pdfgt Acesso em 07 de dezembro de 2016 SCHOENBERG Arnold Exerciacutecios Preliminares em Contraponto Traduccedilatildeo de Eduardo Seincman Satildeo Paulo Via Lettera 2001

15 | P aacute g i n a

CAMPOS Idalina Krause de Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery esperitografias Revista da

Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 15-35 juldez 2016 Disponiacutevel em

lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery espiritografias

Idalina Krause de Campos1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo Este artigo analisa as possibilidades de um fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo tendo como foco o poeta e pensador francecircs Paul Valeacutery e seus procedimentos muacuteltiplos de escrita uma escrita que opera com a leitura ― escrileitura ― e eacute considerada uma operaccedilatildeo ativa de consciecircncia que possibilita ampliar o uso das faculdades intelectivas de um espiacuterito que lecirc e escreve Propotildee atuar e operar com o meacutetodo do informe em atravessamentos imaginativos da filosofia com a literatura e a educaccedilatildeo da diferenccedila aleacutem de utilizar o conhecimento como invenccedilatildeo por meio de procedimentos tradutoacuterios que possibilitem accedilotildees criadoras em educaccedilatildeo Palavras-chave Valeacutery educaccedilatildeo escrileituras traduccedilatildeo Abstract This paper analyzes the possibilities of a translating action in education by focusing on the French poet and thinker Paul Valeacutery and his multiple writing procedures a kind of writing that operates with reading ― reading-writing ― and is considered as an active operation of awareness that favors the use of intellective faculties of a spirit that reads and writes It proposes to act and operate with the inform method in imaginative intersections between philosophy literature and education of difference besides using knowledge as invention by means of translating procedures that enable creation actions in education Keywords Valeacutery education reading-writings translation

Introduccedilatildeo

O escritor Paul Valeacutery nasceu em Segravete (1871) Comuna francesa no periacuteodo

da Guerra Franco-Prussiana A porta para o mar do Mediterracircneo eacute um porto de

encantos incomparaacuteveis de um horizonte vasto banhado pelas aacuteguas de bacias e

canais que desaacuteguam no mar O pensador eacute autor de uma obra vasta

profundamente original que possui uma intensidade uacutenica e merece ser analisada

em funccedilatildeo de seu movimento de escrita e leitura (escrileitura) pois ele pesquisou

1 Possui graduaccedilatildeo em Licenciatura e Bacharelado em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul (1986) Especializaccedilatildeo em Filosofia Cliacutenica pela Faculdade Joatildeo Bagozzi e Instituto Packter

(2008) Mestrado em Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo (PPGEDU) pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (2013) na Linha Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo Atualmente eacute Doutoranda bolsista CAPES

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo na Linha

Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo Participa como pesquisadora dos projetos Dramatizaccedilatildeo do infantil na

comeacutedia intelectual do curriacuteculo meacutetodo Valeacutery-Deleuze Escrileituras um modo de ler-escrever em meio agrave

vida e Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila Membro integrante do BOP

ndash Bando de Orientaccedilatildeo e Pesquisa da Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo e do Grupo de

Pesquisa DIF ndash artistagens fabulaccedilotildees variaccedilotildees

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CAMPOS Idalina Krause de Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery esperitografias Revista da

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estudou e escreveu sobre conteuacutedos integrantes das mais diversas aacutereas do

conhecimento e que satildeo repletos de nuances e de viva poesia

Tal perspectiva oriunda de seus escritos propicia utilizar o conhecimento

como invenccedilatildeo para criar um compoacutesito de escrita e leitura e com ele produzir

meios que possibilitem accedilotildees criadoras em educaccedilatildeo o que propicia ao espiacuterito

construir a sua proacutepria realidade no campo ambiental da linguagem

Ainda em seus primeiros anos de vida o Mediterracircneo que banha a cidade

torna-se uma festa aos olhos curiosos do infante Valeacutery que considera tudo das

cores aos cheiros das formas agraves imagens de uma natureza exuberante ldquouma

verdadeira loucura de luz combinada com a loucura da aacuteguardquo (VALEacuteRY 2011 p

127) Satildeo seus primeiros passos de pensador e que trazem em germe um pensar

em estado nascente pois se deixa seduzir pela liberdade pelos estados poeacuteticos

com um olhar voltado para o mar o que eacute tambeacutem um olhar para o possiacutevel

Os olhos de Valeacutery abraccedilam o que haacute de humano e de inumano em uma

paisagem de natureza primitiva quase intocada mesclada com as atividades dos

homens que ali habitam Um grande cenaacuterio de teatro cujo personagem principal eacute

a luz que ilumina o mar Ali onde Afrodite passeia e que ao cair da tarde

crepuscular com o mar jaacute escuro deixa ver na rebentaccedilatildeo brilhos extraordinaacuterios

Onde a luz de fogo rosa insistente do sol daacute seu adeus ao dia deixando que entre

em cena a escuridatildeo da jaacute noite onde se entreveem os fantasmas que danccedilam

sobre as torres e muros de Aiguesmortes Sombras que festejam os cadaacuteveres

pesados dos atuns animais quase do tamanho de um homem trazidos pelos barcos

de pesca que adentram a costa em seu ldquoretorno da cruzadardquo (VALEacuteRY 2011 p

130)

Ao amanhecer a peccedila teatral do viviacutevel segue e a luz dos raios solares

derrama-se pelos molhes Eacute quando o pequeno Valeacutery tenciona banhar-se na

imensidatildeo cristalina do mar Poreacutem baixa os olhos e estremece diante de uma cena

singular que mistura carnificina e beleza Jazem sobre a ldquoaacutegua maravilhosamente

lisa e transparenterdquo restos de ldquoviacutesceras e entranhas de todo o bando de Netunordquo

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(VALEacuteRY 2011 p 130) Satildeo muacuteltiplas tonalidades de cores roacuteseo-puacuterpuras coral

sanguinolenta vermelhidatildeo de uma mortandade repulsivamente sinistra embalada

pelas ondas letaacutergicas

O espanto eacute inevitaacutevel e o faz esquecer o banho matinal Mas apesar do

susto que invade sua alma os olhos guardam alguma admiraccedilatildeo pelo

acontecimento fazendo vagar pensamentos relacionando o morticiacutenio repleto de

cores com imagens espectrais Misturas de tonalidades imersas na aquosidade de

um liacutempido e cristalino mar que poderiam bem servir para um fazer artiacutestico aos

homens de talento afeitos agraves curiosidades e agraves capturas de um olhar artistador

Natildeo perdura nessa imagem repentina o conteuacutedo pobre mas como pondera

Deleuze em O Esgotado (2010 p 85) vale nessa visatildeo a energia condensada ldquoa

prodigiosa energia captada prestes a explodir fazendo com que as imagens nunca

durem muito tempo [] A imagem dura o tempo furtivo de nosso prazer de nosso

olharrdquo Assim aparece a forccedila de sentimento de Valeacutery influenciado e estimulado

pelas deidades poeacuteticas do mar do ceacuteu e do sol

E o que decorre disso tudo eacute uma produccedilatildeo intelectual que foca em muacuteltiplas

temaacuteticas tendo como pano de fundo o funcionamento do intelecto atraveacutes de

accedilotildees de pensar o proacuteprio pensamento para verificar o que estes pensamentos

implicam Uma produccedilatildeo que abarca o viviacutevel e que merece ser investigada como

um meio possiacutevel para ser apropriado no acircmbito do ensino contemporacircneo em

funccedilatildeo de sua diversidade e de sua potecircncia textual

Pelo que foi possiacutevel observar em nossas pesquisas Valeacutery configura-se num

misto de poeta de pensador e de criacutetico da cultura tendo sido traduzido por

escritores e tambeacutem por poetas em vaacuterios idiomas No entanto apesar de possuir

um reconhecimento internacional pelo conjunto de suas obras produzidas eacute ainda

pouco explorado no Brasil especialmente no que tange ao uso teoacuterico e praacutetico do

seu pensamento no campo da educaccedilatildeo

Em suma como afirma Gonccedilalves (2011 p 238) Valeacutery eacute O Alquimista do

Espiacuterito ldquodevido ao seu sistema plural de linguagensrdquo em que ocorrem

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transmutaccedilotildees de montagem e desmontagem de escrita Uma verdadeira alquimia

contraacuteria agrave anestesia do gesto para que uma segunda natureza possa se apresentar

ao texto atraveacutes de um operar espiritual em constante variaccedilatildeo e que neste fazer

operativo produz uma escrita visceral e mutante cuja mateacuteria eacute a vida que se

experimenta no campo do saber como um processo aberto muacuteltiplo e desafiador

para assim buscar fazer com ele uma educaccedilatildeo disposta a disseminar as aventuras

do pensamento

Espiacuterito

Valeacutery utiliza-se da palavra francesa esprit para aludir ao Eu embora haja em

seu pensamento a distinccedilatildeo entre dois tipos de espiacuterito Moi que seria o Eu

empiacuterico (self-variance) e Moi que seria o Eu puro (Idolle de lrsquoIntelect) a ser

cultuado e buscado Este uacuteltimo conceito de Eu puro necessita ser entendido com

uma significaccedilatildeo peculiar qual seja o Eu como intelecto como inteligecircncia

Nessa perspectiva o presente artigo aborda um possiacutevel fazer tradutoacuterio em

educaccedilatildeo conjuntamente com o pensador Paul Valeacutery de modo a buscar atraveacutes

do movimento de leitura e escrita exercitar conscientemente os pensamentos que

possibilitam transitar no campo diverso do saber

O espiacuterito ndash ou Eu-empiacuterico ndash desenvolve-se conscientemente exercitando os

processos do pensar com a finalidade de conhecer Pensamento ativado via

processos de criaccedilatildeo oriundos de uma self-variance (autovariaccedilatildeo do espiacuterito)

disciplinada e rigorosa passando a verificar o que esses pensamentos implicam

procurando vecirc-los com precisatildeo e pesquisar seus labirintos sua mecacircnica psiacutequica

iacutentima e seu meacutetodo operativo

Valeacutery (2011 p179) conceitualiza as accedilotildees do pensar as invenccedilotildees

produzidas pela inteligecircncia onde o Eu-empiacuterico que se utiliza da leitura e da

escrita e consequentemente pensa define-se ldquoatraveacutes da relaccedilatildeo entre um 2010 p

85) certo lsquoespiacuteritorsquo e a linguagemrdquo Ou seja pondo em movimento um Eu-funcional

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pode-se desenvolver uma consciecircncia do processo do pensar para fins de

conhecimento expressos por intermeacutedio da linguagem

Espiacuterito este visto como um sujeito que natildeo se assujeita mas aspira agrave

criaccedilatildeo e a realiza sem divindade reguladora sem idealismo (Eu absoluto do

Idealismo Alematildeo) e distante da metafiacutesica da alma imortal (Eu substancial do

racionalismo de Descartes) Portanto o Eu puro valeacuteryano natildeo guarda uma

moralidade consistindo na invariabilidade naquilo que natildeo muda no espiacuterito O

espiacuterito eacute abordado como um signo de pura possibilidade de uma virtualidade ao

qual o Eu empiacuterico aspira e tende Eu que passa por uma ascese e encontra-se ―

purificado de paixotildees de outros iacutedolos e idolatrias ― de forma a se tornar liberto

para agir e pensar

A nossa pesquisa da escrita valeacuteryana gera e explora meios de afirmar e de

proporcionar possibilidades criadoras em educaccedilatildeo justamente porque ndash como

salienta Corazza (2010 p 2) ndash o espiacuterito humano enfrenta dificuldades para pensar

o informe de maneira que necessitamos ldquode uma Educaccedilatildeo ou pedagogia dos

sentidos associando a vivecircncia dos limites formais com a criaccedilatildeo artistadorardquo

A pesquisa trata portanto de um fazer compositivo de escrita de uma praacutetica

de ensino numa construccedilatildeo conjunta com a obra de Valeacutery que busca o valor do

pensar humano observa seu funcionamento e sua accedilatildeo fecunda de pensar Por seu

intermeacutedio construiacutemos operaccedilotildees escrileitoras tradutoacuterias (escrita-leitura e leitura

escrita) capturando as forccedilas que aproximam percepccedilatildeo e criaccedilatildeo

Pensamos que a Filosofia da Diferenccedila pode servir-se das pesquisas deste

poeta-pensador como um disparador de escrita que busca um novo modo de ver e

de pensar o pensamento no qual a linguagem a verdade a consciecircncia de si satildeo

inseparaacuteveis e inter-relacionadas Pensar que possibilita o alargamento das

fronteiras da linguagem educacional na medida em que quebra concepccedilotildees

filosoacuteficas e cientiacuteficas consideradas verdadeiras e incontestaacuteveis

Inter-relaccedilatildeo na qual o espiacuterito Estudante-Escritor- Educador (EEE) estaacute

sempre se autoproduzindo por via de uma self-variance num processo contiacutenuo de

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geraccedilatildeo de sentidos imanentes singulares e particulares os quais reivindicam

novas possibilidades de invenccedilatildeo de emissatildeo de signos que se inscrevem para

escriturar sentidos oriundos das sensaccedilotildees num empirismo de pensar constante

cujos procedimentos implicam necessariamente o campo do vivido Pesquisamos

nesse processo variante o ambiente humano por entre dramas e comeacutedias do

vivido no campo educacional ou ainda uma dracomeacutedia humana repleta de

potenciais vicissitudes que servem como disparadores para uma invenccedilatildeo

produtora de escrita texto-manifesto exposto por via da linguagem e suas

convenccedilotildees

Meacutetodo

O meacutetodo utilizado na pesquisa eacute o do informe que desenvolve um tipo de

pesquisa que possibilita enfrentar a dificuldade de pensar o informe Meacutetodo este

que se interroga e que varia durante todo o processo de sua execuccedilatildeo natildeo

possuindo um regramento estanque ou dogmaacutetico o que baniria o prazer do

inusitado

Esse meacutetodo age atraveacutes de capturas das forccedilas dos textos das imagens

das musicalidades das vozes e dos conhecimentos isto eacute de tudo que deveacutem em

vida potente e que possa ser adequado agraves praacuteticas de ensino pois conforme Valeacutery

(1997 p 59) ldquoeacute o que contenho de desconhecido a mim mesmo que me faz ser eu

mesmordquo

Na praacutetica o que observamos eacute um desejo que ronda ldquocomo uma mina a ceacuteu

abertordquo (BARTHES 2013 p12) que propicia criar uma fantasia de exploraccedilatildeo e por

intermeacutedio dela construir um ritmo proacuteprio de accedilatildeo exploratoacuteria um como para viver

junto com vida e obra de determinado pensador saboreando cotidianamente

ldquobocados de saber = pesquisardquo Assim por entre bocados de pesquisa esse meacutetodo

produz ficccedilatildeo de modo que ldquoos pesquisadores capturam forccedilas imaginaacuterias

fantasiacutesticas e intelectuais que os conduzem ao trabalho criadorrdquo (CORAZZA 2012

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p19) levando o espiacuterito a experimentar um novo fazer ou seja uma pesquisa gaia

na educaccedilatildeo contemporacircnea

Por este vieacutes tal meacutetodo busca dar adeus agraves metanarrativas de ambiccedilatildeo

universal insistente nos entremeios do territoacuterio educacional Sua ambiccedilatildeo universal

eacute hermeacutetica e portanto falha pois impede uma discussatildeo que se quer aberta e natildeo

reprodutora de conhecimento Esta abertura pode trazer ao proacuteprio curriacuteculo e agrave

didaacutetica um entoar de novas vozes capazes de compor narrativas novas fazendo

na accedilatildeo de ensinar um espaccedilo criacutetico um lugar puacuteblico para discussotildees diversas

Ou seja capturar o que ateacute entatildeo foi excluiacutedo ou natildeo contemplado nas

metanarrativas em funccedilatildeo de sua supressatildeo por natildeo pertencerem aos dogmas

ditos universais Busca-se assim o vatildeo o desvio o detalhe tendo a linguagem

como movimento isto eacute em fluxo constante no movimento de criaccedilatildeo

Desse modo aquilo que sabemos que nos pertence natildeo conta pois

procuramos o que natildeo foi ainda construiacutedo o que resta para ser adquirido

transformado e que se anuncia nos entremeios dos textos Sendo assim a literatura

a filosofia e a educaccedilatildeo entrecruzam-se visto que seus conhecimentos e saberes

satildeo investigados por via das proacuteprias escrileituras que interrogam as tramas

compositivas do intelecto

Pode-se tambeacutem afirmar que o referido meacutetodo tem apreccedilo pelo espiacuterito

crianccedila ― que jamais deveria morrer em noacutes ― pois que ele traz em si a forccedila da

curiosidade da persistecircncia da descoberta haacute neste espiacuterito pagatildeo e poeta um

infinito de possibilidades Como elucida Eduardo Galeano em entrevista chamada eacute

Tempo de viver sem medo2 ldquoeacute preciso olhar o que natildeo se olha o que merece ser

olhado tanto o micro mundo e ao mesmo tempo sermos capazes de contemplar o

universordquo E para tanto eacute preciso se ter uma visatildeo microscoacutepica e outra telescoacutepica

para assim tentar desvendar o que haacute de misterioso na existecircncia

2 Entrevista de Eduardo Galeano disponiacutevel em canal moritz Ptnet acesso em 05 de julho de

2016

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As escrileituras produzidas em uma praacutexis do informe portanto satildeo criadas

em conjunto com os meandros labiriacutenticos e espirituais dos quais nos ocupamos

escolhidos pela apaixonada necessidade de escrever Natildeo se verifica uma doutrina

mas um meacutetodo para operaccedilotildees espirituais tracircnsitos pelos macros e micros

mundos ofertados pelo existir Os espiacuteritos operam em variaccedilatildeo e lanccedilam um novo

olhar para o que ainda natildeo foi visto ou seja o que ainda ignoramos e com estes

novos elementos do que se detecta surgem vatildeos e frestas que propiciam uma

composiccedilatildeo de escrita viva

Sendo assim o meacutetodo do informe nada mais eacute do que um fazer mutante

avesso ao sedentarismo intelectual um ato fiacutesico corporal posto em movimento

atraveacutes de estudos e pesquisas abrindo possibilidades para que o espiacuterito trabalhe

e medite sobre a produccedilatildeo de uma obra ― de um espiacuterito criador ― numa atitude

interrogativa transformada em problema que questiona pelo vieacutes de Valeacutery (2011 p

200) O que a obra produz em noacutes

Todo corpo posto em atividade eacute energia despendida e tambeacutem adquirida a

todo instante um organismo em constante mutaccedilatildeo Uma forma fluente ― referida

por Duns Scot como um onde ou (ubi) ― e capaz de uma determinaccedilatildeo qualitativa

anaacuteloga ao calor adquirido pelo corpo que se aquece atraveacutes do contato e do

contaacutegio com outros corpos que os circundam E nesta metamorfose contiacutenua e

energeacutetica o espiacuterito se propotildee a buscar maior lucidez para o intelecto e conhecer a

fundo a problemaacutetica a que se propotildee num exerciacutecio que se realiza atraveacutes de um

nomadismo de pensamento ativo sempre em deslocamento que busca o novo

De fato com o espiacuterito entendido desde a perspectiva valeacuteryana atraveacutes dos

movimentos de escrileituras da pesquisa com o artifiacutecio da literatura movimentamos

uma malha intelectiva que possibilita a construccedilatildeo de espiritografias Ou seja vamos

ao mundo de um espiacuterito e com ele escrevemos a partir de um estudo de vida e de

obra ou de uma Vidarbo Trata-se do interesse ldquopor Vida (Biografia) e por Obra

(Bibliografia) Soacute que em vez de Vida e Obra tomadas em separado ou uma

derivada e mesmo causa da outra trata de Vidarbordquo (CORAZZA 2010) tomada

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conjuntamente Essas operaccedilotildees das faculdades intelectivas repletas de afecccedilotildees

permitem e compotildeem o meacutetodo do informe como um mecanismo que exige um tipo

de construccedilatildeo no qual o inesperado eacute condiccedilatildeo processual

Projetos

Essas operaccedilotildees de meacutetodo do informe tiveram suas experimentaccedilotildees e

pesquisas empiacutericas cultivadas em trecircs projetos desenvolvidos pela pesquisadora e

professora doutora Sandra Mara Corazza e seus orientandos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica

mestrado e doutorado na Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferenccedila em

Educaccedilatildeo integrante do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo (PPGEdu) da

Faculdade de Educaccedilatildeo (FACED) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS) quais sejam Dramatizaccedilatildeo do infantil na comeacutedia intelectual do curriacuteculo

meacutetodo Valeacutery-Deleuze (2010) Escrileituras um modo de ler-escrever em meio agrave

vida e Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila

(2014 ndash 2019)

O projeto atual almeja complementar correlacionar e consolidar a formaccedilatildeo

de professores-pesquisadores atraveacutes da observaccedilatildeo e anaacutelise dos resultados e

impactos das produccedilotildees oriundas das trecircs pesquisas investigando um curriacuteculo e

uma didaacutetica da diferenccedila visando criar e fortalecer a ampliaccedilatildeo e a consolidaccedilatildeo

da qualidade de uma pesquisa-docecircncia

Desde o iniacutecio o meacutetodo do informe apontava para um tipo de pesquisa

construcionista enquanto um convite para estudos e praacuteticas de escrita as quais

atraveacutes das aventuras do intelecto facultam ao espiacuterito construir a sua proacutepria

realidade no campo ambiental da linguagem pensando o informe com Valeacutery e sua

Comeacutedia Intelectual e com Deleuze e o seu Meacutetodo de Dramatizaccedilatildeo aleacutem de

recorrer tambeacutem a Roland Barthes e ao seu conceito de Biografemaacutetica (CORAZZA

e OLIVEIRA 2015)

O Projeto Escrileituras (2011-2015) apoiado pelo Programa Observatoacuterio da

Educaccedilatildeo (CAPESINEP) teve como proposiccedilatildeo um fazer-educaccedilatildeo por meio de

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Oficinas abrindo assim possibilidades de criaccedilatildeo de escrileituras em educaccedilatildeo

Oficinas que tinham em sua percepccedilatildeo criaccedilatildeo e desenvolvimento dois meios

possiacuteveis para movimentos experimentais de escrita a formaccedilatildeo que acompanhava

os bolsistas e pesquisadores participantes e cursos e accedilotildees de extensatildeo oferecidos

a professores da Educaccedilatildeo Baacutesica

Totalizando um registro de 570 oficinas desenvolvidas pelo projeto foi

desenvolvida a Oficina espiritograacutefica de co-criaccedilatildeo dialoacutegica propondo aos

participantes um exerciacutecio de pensamento valeacuteryano que explorasse a forma de

escrita ldquodiaacutelogordquo atraveacutes de textos filosoacuteficos e literaacuterios que tratavam do tema

A oficina buscava pensar de forma luacutecida condiccedilotildees de criar personagens

que pensam o proacuteprio pensamento afirmando o espiacuterito que opera e escreve com

prazer ciente ldquoque cada um eacute a medida das coisasrdquo (VALEacuteRY 2011) E atraveacutes

desta empiria de escrita proposta na oficina proporcionou um aporte teoacuterico e

praacutetico para composiccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de mestrado Alfabeto espiritograacutefico

escrileituras em educaccedilatildeo (CAMPOS 2013)

Espiritografia

Dessa accedilatildeo empiacuterica a palavra espiritografia comeccedila a tomar forccedila nas

pesquisas possibilitando ao espiacuterito escrileitor investigar outros Espiacuteritos e suas

vidarbos e com eles passar a criar procedimentos capazes de promover uma

produccedilatildeo de escrita espiritograacutefica experimental que se ocupa de erracircncias acasos

e o inusitado e que se configura em uma tese intitulada A Educaccedilatildeo da Diferenccedila

com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico (CAMPOS 2015) com proposta jaacute

qualificada em 2015 e com defesa final prevista para 2017

Deste modo o espaccedilo curricular afirmava-se de maneira transversal com a

filosofia com as artes e com as ciecircncias tomando para si a tarefa de compor um

curriacuteculo como uma construccedilatildeo aberta fazendo dos conhecimentos que se colocam

em movimento um compoacutesito multidimensional de leitura e de escrita potenciais

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Assim o Projeto Escrileituras optou por afirmar um curriacuteculo mutante

provocando com isso que sua didaacutetica tambeacutem o fosse Ou seja didaacutetica e

curriacuteculo possibilitaram atraveacutes das Oficinas a ampliaccedilatildeo da visatildeo de mundo por

via do conhecimento que serve como um disparador para a edificaccedilatildeo de outros

mundos possiacuteveis isto eacute um modo de viver e de ldquomaquinar a educaccedilatildeo com prazer

aventureiro e espiacuterito aventurosordquo (CORAZZA 2014)

Abrindo dobras na pesquisa foi possiacutevel falar e escrever sobre Autor

Infacircncia Curriacuteculo e Educador ndash unidades analiacuteticas referidas como AICE e

integrantes de procedimentos didaacuteticos Jaacute o curriacuteculo foi composto pelas seguintes

unidades analiacuteticas Espaccedilos Imagens e Signos (EIS) os quais satildeo postos em

movimento por meio de um nomadismo intelectual experimentado no proacuteprio

territoacuterio da educaccedilatildeo valendo-se dos procedimentos muacuteltiplos de escrita de Valeacutery

para um fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo

Atraveacutes de um Meacutetodo do Informe utilizando o conhecimento como invenccedilatildeo

que por via de transbordamentos de pesquisa esses elementos possibilitaram criar

um novo meacutetodo chamado espiritograacutefico ndash defendido na tese A Educaccedilatildeo da

Diferenccedila com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico (CAMPOS 2015) ndash pelo qual foi

possiacutevel a criaccedilatildeo de alguns tipos de espiritografias tradutoacuterias como Plagiotroacutepica

Imageacutetica Mise en Scegravene Desviante Extra-Ordinaacuteria Jogada Aula-Empiacuterica

Poeacutetica

Escrever eacute traduzir conforme afirma Valeacutery na eacutepoca em que traduzia as

Bucoacutelicas de Virgiacutelio (1944) destacado no livro de Haroldo de Campos (2013)

Transcriaccedilatildeo

Escrever o que quer que seja desde o momento em que o ato de escrever exige reflexatildeo e natildeo eacute uma inscriccedilatildeo maquinal e sem detenccedilas de uma palavra interior toda espontacircnea eacute um trabalho de traduccedilatildeo exatamente comparaacutevel agravequele que opera a transmutaccedilatildeo de um texto de uma liacutengua em outra (VALEacuteRY apud CAMPOS 2013 paacuteg61-62)

Essas forccedilas operativas da escrita (e da leitura) servem como impulso para

uma trajetoacuteria autoconsciente do espiacuterito que se aventura entre rasuras em busca

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do novo Produzindo uma escrita tradutoacuteria aberta sujeita a interaccedilotildees e oscilaccedilotildees

oriundas daquele espiacuterito que age sobre o texto criamos uma didactique da

novidade da erracircncia de AICE que pode gerar intranquilidade pois caccedila em meios

muacuteltiplos de escrita ― rigorosa e complexa ― seus desdobramentos enigmaacuteticos

perseguindo a exatidatildeo dos sentidos por entre Espaccedilos Imagens e Signos (EIS) do

Curriacuteculo

Sendo assim AICE (Didaacutetica) e EIS (Curriacuteculo) tomam para si uma poeacutetica de

pesquisa que se quer empiacuterica num processo de releitura e de reescrita do viviacutevel

no campo educacional e que acabam produzindo um diferencial curricular e didaacutetico

da diferenccedila visto que criam novas epistemes possibilitando ldquopensar uma didaacutetica e

um curriacuteculo tradutoacuteriosrdquo (CORAZZA 2014 p5)

Em seu texto A Tentaccedilatildeo de (Satildeo) Flaubert Valeacutery (2011) escreve sobre a

diaboacutelica tentaccedilatildeo humana e poeacutetica de provocar uma escrita amebiana como meio

para um jogo escritural do viviacutevel pois viver eacute a todo instante sentir falta de alguma

coisa e modificar-se para atingi-la para desse modo tender a substituir-se no

estado de sentir falta de alguma coisa Trata-se de um movimento corpoacutereo como o

feito pela ameba ou seja de transubstanciaccedilatildeo com o objeto amado pois ldquovivemos

do instaacutevel pelo instaacutevel no instaacutevel essa eacute a funccedilatildeo completa da Sensibilidade

que eacute a mola diaboacutelica da vida dos seres organizadosrdquo (VALEacuteRY 2011 p 83)

Essas perspectivas poeacuteticas sobre escrita leitura curriacuteculo e didaacutetica

possibilitam no espaccedilo da aulaoficina a emergecircncia de procedimentos

interpretativos das mateacuterias curriculares que funcionam como meio de invenccedilatildeo

recriando assim culturas e discursos atraveacutes de exerciacutecios rigorosos cocircmicos e

dramaacuteticos do pensamento Nesse sentido como um espaccedilo de ficccedilatildeo a aula eacute

planejada para que de algum modo funcione como um laboratoacuterio coletivo em que

se examina e promove-se a educaccedilatildeo do espiacuterito

Assim satildeo promovidos encontros imanentes que fornecem coordenadas

para o pensamento criacutetico que eacute experimentado num empirismo transcendental no

qual ldquoa Ideia natildeo eacute o elemento do saber mas de um lsquoaprenderrsquo infinitordquo (DELEUZE

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2006 p310) Nesse tipo de empirismo o que vale eacute o valor agregado ao espiacuterito

das forccedilas que do pensamento se apossa e que satildeo capazes de produzir novas

imagens que enunciam e novamente atualizam o pensar Com textos literaacuterios os

espiacuteritos escrileitores em movimentos de self-variance passam a acompanhar

essas danccedilas dramaacuteticas em meio agrave vida in-formada

Trata-se de um pensar vivo capaz de escriturar novos sentidos e de inscrever

signos que satildeo vitalmente transcriados pois operam para ldquoatravessar a ortodoxia

dos textosrdquo (CORAZZA 2014) e com eles criar uma escrita indomesticada criacutetica e

vivificadora Damos assim vida a uma nova praacutexis de ensino capaz de construir

espiritografias na qual o espiacuterito age por si enquanto move-se entre leituras e

escritas Espiacuterito que se interroga observa o proacuteprio fazer da escrita literaacuteria que

tem como tarefa anotar borrar fazer muacuteltiplas reflexotildees combinaccedilotildees tentativas e

falhas

Notemos que o espiacuterito ocupa trecircs lugares funcionais em seu laboratoacuterio

proacuteprio quais sejam EEE ndash o de Estudante (espiacuterito em curso tradutoacuterio de escrita)

o de Escritor (espiacuterito autor tradutor e transcriador) e o de Educador (espiacuterito em

exerciacutecio de traduccedilatildeo no exerciacutecio do magisteacuterio) Eacute esse atravessamento entre

lugares que movimenta EIS (Curriacuteculo) e AICE (Didaacutetica) os quais pela via da

traduccedilatildeo satildeo reimaginados Vislumbramos de acordo com Corazza (2013 p 219)

um fazer tradutoacuterio ldquopara aleacutem do literalismo rudimentar e da banalidade explicativardquo

que daacute nova vida ao educador-artista e cujas traduccedilotildees ldquopoderatildeo por vezes tornar-

se mais importantes que os originaisrdquo pois se configuram como uma ldquoestrateacutegia de

renovaccedilatildeo dos sistemas educacionais e culturais contemporacircneosrdquo

Experimentaccedilotildees

A partir do desenvolvimento de algumas Oficinas de Transcriaccedilatildeo durante o

Projeto Escrileituras continuamos estudando e pesquisando o pensamento de

Valeacutery na direccedilatildeo de construir tipos de espiritografias como uma praacutetica que

promove novos movimentos que tomam as unidades analiacuteticas de EIS AICE na qual

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buscamos combinar e correlacionar EIS com AICE (Espaccedilos Imagens e Signos a

Autor Infantil Curriacuteculo Educador) e nesse processo combinatoacuterio e correlacional

operacionalizar escrileituras tradutoacuterias que se articulassem com a praacutexis do ensinar

escrever orientar pesquisar colocando esses verbos em foco por meio de um fazer

espiritograacutefico Tal procedimento exploratoacuterio-experimental de pesquisa tem como

intuito criar meios para a produccedilatildeo de accedilotildees de pensamento na pesquisa

Nessa direccedilatildeo detalharemos um dos tipos de espiritografia aludida no texto

a Espiritografia Plagiotroacutepica Lembrando o que salienta o proacuteprio Valeacutery (2011 p

110) ldquoeu sei apenas o que sei fazerrdquo expomos os movimentos empiacutericos de escrita

feitos para criar essa espiritografia atraveacutes de movimentos de EIS AICE

apresentados a seguir por meio de um resumo do seu Glossaacuterio

EIS AICE

Espaccedilos - que se habitam e produzem

condiccedilotildees para novamente serem

habitados ao esvaziar-se na

constituiccedilatildeo de novas margens que a

sua vez lhes doam novas instacircncias

habitaacuteveis

Imagens - ausentes que presentificam

presenccedilas e Imagens presentes que

presentificam ausecircncias

Signos - satildeo dotados das forccedilas dos

encontros que podem exercer uma

violecircncia sobre o pensamento

violecircncia que implica na criaccedilatildeo do

pensar no proacuteprio pensamento

Autor-Tradutor - escreve lecirc interpreta aprende

compotildee apenas para desencadear devires

Infantil - como forccedila ativa e vontade de potecircncia

afirmativa

Curriacuteculo - cria a alegria afirmativa de educar

Educador - exercita se interrogar se tudo o que disse

ateacute entatildeo eacute tudo o que pode dizer se tudo o que viu

ateacute agora eacute de fato tudo o que pode ver se tudo o

que pensa eacute tudo o que pode pensar se tudo o que

sente eacute tudo o que pode sentir se tudo o que traduziu

eacute tudo que pode traduzir

O texto inspirador para a produccedilatildeo dessa espiritografia eacute o livro de Gonccedilalo

Tavares (2011) intitulado O senhor Valeacutery e a loacutegica tomado como um disparador

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como um meio potente para a produccedilatildeo de escrita Esse meio textual produz um

outro para falar e escrever sobre a Vidarbo (vida-obra) de Paul Valeacutery criando-se

assim um personagem O Monsieur Valeacutery

Esse texto eacute produzido por intermeacutedio de escrileituras que contemplam o

ainda natildeo visto ou ainda natildeo atribuiacutedo de valor para a criaccedilatildeo do personagem na

medida em que pesquisamos sobre a vida e a obra de Valeacutery de modo a escrever

sobre este personagem peculiarmente

Por via de um olhar outro que natildeo o de Tavares mas do olhar do espiacuterito

escrileitor que pesquisa vida e obra de outro espiacuterito no caso Valeacutery almejamos

compor uma espiritografia com e sobre este personagem do pensamento o que

pressupotildee ir ao mundo deste espiacuterito do qual se escreve observando como se daacute o

seu pensar Desta maneira foram produzidos quatro minicontos O Atum O

Ostinato O Sonho e Sem Destino (CAMPOS 2015) Abaixo seguem os dois

primeiros dessa seacuterie

O Atum

MONSIEUR VALEacuteRY era pequenino mas adorava nadar

Ele explicava

Sou igual a um atum soacute que em tamanho menor

Mas isto constitui para ele um problema

Mais tarde o monsieur Valeacutery pocircs-se a pensar que os pescadores podiam

confundi-lo com um atum e pescaacute-lo Sabia por suas leituras ser o Atum o mais

antigo deus criador do mundo Mediterracircneo e observou em seu livro a grande

Serpente Atum pai de Eneacuteade e Helioacutepolis E tal pensamento o animou um pouco

Dias depois saiu para passear agrave beira-mar e desenhou serpentes na areia E

pensava sobre a evoluccedilatildeo das espeacutecies e murmurava ldquose o homem estaacute situado ao

final de um longo esforccedilo geneacutetico tambeacutem seraacute preciso situar esta criatura fria sem

pata sem pelos sem plumas no iniacutecio deste mesmo esforccedilordquo E concluiu Haacute algo

de serpente no homem assim deve tambeacutem haver em mim

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Monsieur Valeacutery costumava fazer caacutelculos enquanto caminhava e riscava

atraacutes de si com uma varinha uma linha e ia medindo Caminhou caminhou de

suacutebito olhou para traacutes e viu a linha e pocircs-se a imaginar a Serpente como uma linha

viva E pensava que a linha eacute uma abstraccedilatildeo encarnada soacute enxergamos a sua parte

proacutexima manifesta Mas ele sabia que a linha seguia pelo invisiacutevel infinito de um

lado e de outro

O Ostinato

MONSIEUR VALEacuteRY cresceu assim como tambeacutem cresceu sua curiosidade

sobre as serpentes que seguia a rabiscar

Monsieur Valeacutery ainda costumava nadar poreacutem agora com maior

desenvoltura

Jogava-se ao mar e nadava de costas cachorrinho borboleta

Enquanto dava suas braccediladas e mergulhos no mar sem fim sentia-se

acompanhado

Entatildeo o monsieur Valeacutery pensava

― Seraacute Afrodite Ou seraacute Netuno

E enquanto caminhava para casa apoacutes seus nados volta e meia olhava para

traacutes observando a linha pintalgada pelos pingos que escorriam de seu corpo

Entatildeo Monsieur Valeacutery exclamava

― Que bela geometria

E logo se aborrecia

Monsieur Valeacutery era um perfeccionista e para se distrair durante o percurso

de volta para casa ia compondo versos Ostinatos que o enterneciam e lhe traziam

aromas de um pensamento Ele costumava declamaacute-los assim

Fonte minha fonte aacutegua friamente presente

Suave com os animais com os humanos clemente

Que tentados por si seguem ao fundo a morte

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Tudo te eacute sonho Irmatilde impaacutevida da Sorte3

Importa salientar que natildeo haacute um plaacutegio porque natildeo eacute coacutepia ou mera

reproduccedilatildeo textual mas de uma plagiotropia no sentido de Haroldo de Campos

(1997 p249) qual seja uma ldquoapropriaccedilatildeo seletiva natildeo histoacuterica para utilidade

imediata de um fazer poeacutetico situado na lsquoagoridadersquo o momento de ruptura em que

determinado presente (o nosso) se reinventa ao se reconhecer na eleiccedilatildeo de um

determinado passadordquo

Em outras palavras estabelecemos um diaacutelogo entre os espiacuteritos de Valeacutery

de Tavares e de um escrileitor que quer compor uma espiritografia O espiacuterito que

escreve lecirc repensa e mastiga o que chega dos textos de Tavares e de Valeacutery Essa

relaccedilatildeo estabelecida entre os espiacuteritos que leem e escrevem adquire potecircncia pelas

afecccedilotildees de forccedilas oriundas da accedilatildeo de leitura-escrita e gera novas relaccedilotildees com

os textos que satildeo entatildeo renovados e reinventados pelo meacutetodo espiritograacutefico

O EIS AICE do Curriacuteculo e da Didaacutetica com suas unidades analiacuteticas eacute posto

como bloco em movimento atraveacutes de um nomadismo intelectual que opera como

conhecimento e como invenccedilatildeo no territoacuterio da educaccedilatildeo de uma maneira

espiritograacutefica valeacuteryana Podemos descrever da seguinte maneira os movimentos

tradutoacuterios que ocorrem nessas unidades analiacuteticas de EIS AICE

EIS

Espaccedilos - satildeo criados entre e com Tavares e Valeacutery espaccedilos de escrita

novas margens que o espiacuterito escrileitor passa a habitar

Imagem - ausentes de Tavares e Valeacutery que se presentificam na agoridade

com novas imagens de pensamentos criadas que se ldquoreinventa ao se reconhecer na

eleiccedilatildeo de um determinado passadordquo (Campos 1997 p249) e que lhe serviu de

disparador como um rastro de escrita

3 Do poema Fragmentos de Narciso e outros poemas (VALEacuteRY 2013 p 61)

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Signos ndash encontro de forccedilas de um espiacuterito que escreve em Self-variance

com Valeacutery e com Tavares E desta violecircncia levantam-se problemas e com eles se

cria pois criaccedilatildeo pressupotildee pensar no proacuteprio pensamento e como eles se datildeo

entre leitura e escrita

AICE

Autor-tradutor ndash ler e escrever na educaccedilatildeo como operaccedilatildeo literaacuteria valer-se

da literatura que desencadeia movimentos de pensar interpretar aprender

compor devires tradutoacuterio

Infantil ndash do infante da crianccedila que descobre pois tem a forccedila ativa ativada

por uma vontade de potecircncia que quer afirmar-se com alegria

Curriacuteculo ndash Alegria que transborda pois se afirmam novos meios de educar

que natildeo o ldquoeu professotu escutasrdquo pois na teimosia que nos impele a educar eacute

necessaacuterio ir aleacutem da mera reproduccedilatildeo de textos

Educador ndash EEE (estudante escritor educador) trecircs papeacuteis intercambiaacuteveis

propiacutecios a interrogar-se levantar questotildees na busca de novos olhares ldquovatildeosrdquo

sobre o ainda natildeo visto que possibilita novas composiccedilotildees de escrita

Consideraccedilotildees Finais

Ao pensar sobre o processo de pesquisa exposto no presente artigo

sinalizamos a relevacircncia do pensamento de Paul Valeacutery e de sua apropriaccedilatildeo efetiva

no campo da educaccedilatildeo por considerar que os seus procedimentos de escrita

concedem ao espiacuterito que busca se educar agir com maior lucidez de pensamento

ou seja cultivar o Eu-empiacuterico que lecirc e escreve importando-se mais com o meio de

ocorrecircncia textual do que com um fim ou com uma meta

Tratamos em siacutentese de um fazer conjunto com Paul Valeacutery atraveacutes dos

seguintes aportes a) o Meacutetodo do Informe utilizado como processo experimental

para falar ler e escrever sobre a educaccedilatildeo com Valeacutery b) atraveacutes de uma Self-

variance do espiacuterito colocar-se em movimento funcional construcionista onde

autoeduca-se no entre-lugar variante de EEE c) a escrileitura conceitualizada como

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um campo aberto agrave formaccedilatildeo e ao fazer docente que mescla linguagem e

conhecimento

A vidarbo de Valeacutery engendra na didaacutetica e no curriacuteculo uma vontade de

expressatildeo unida agraves sensaccedilotildees experimentadas no viviacutevel em novos traccedilados

compositivos de escrita Para pensar e operar uma didaacutetica (AICE) e um curriacuteculo

(EIS) tradutoacuterios o estudo tambeacutem aponta que a pesquisa eacute mutante e aberta a

novas interferecircncias visto que o Meacutetodo do Informe transmuta-se no proacuteprio

percurso investigativo em um Meacutetodo Espiritograacutefico

Pelo que podemos observar acerca dos resultados e impactos das produccedilotildees

oriundas das trecircs pesquisas anteriormente citadas que pesquisam e produzem um

curriacuteculo e uma didaacutetica da diferenccedila eles vecircm proporcionando encontros

produtivos que ampliam e qualificam as pesquisas educacionais

Cabe enfatizar que no cotidiano educacional o que se traduz aleacutem de textos

eacute a proacutepria vida como potecircncia ou movimento de criaccedilatildeo almejando que a

existecircncia possa ser concebida como arte pois de acordo com Valeacutery (1977

p217) ldquoa arte natildeo eacute nada mais do que um pedagogo poreacutem mais importante ―

pois ela pode me ensinar a dispor do meu espiacuterito para aleacutem de suas aplicaccedilotildees

praacuteticasrdquo Trata-se entatildeo de um escrever vivendo espreitar a realidade e sobre ela

levantar novos problemas que promovem no espiacuterito dobras sobre si mesmo num

fazer poeacutetico-criador em elaboraccedilatildeo constante um modo de existir intensivo de arte-

vida que toma o viviacutevel como mateacuteria para assim transmutaacute-la no campo da

educaccedilatildeo contemporacircnea

Referecircncias CAMPOS Haroldo de Transcriaccedilatildeo Satildeo Paulo perspectiva 2013

_______ Haroldo de O Arco-Iacuteris Branco Rios de Janeiro Imago 1997 CAMPOS Maria Idalina Krause de Alfabeto Espiritograacutefico Escrileituras em Educaccedilatildeo Porto Alegre 2013 Projeto de dissertaccedilatildeo (Dissertaccedilatildeo em Educaccedilatildeo)

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Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2013 Disponiacutevel em lthttphdlhandlenet1018370246gt _______ Maria Idalina Krause de A Educaccedilatildeo da Diferenccedila com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico Porto Alegre 2014-2017 Projeto de tese (Tese qualificada em Educaccedilatildeo) Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2014 CORAZZA Sandra Mara OLIVEIRA Marcos da Rocha ADOacute Maacuteximo Daniel Lamela (Orgs) Biografemaacutetica na educaccedilatildeo Vidarbos (Caderno de Notas 7) Porto Alegre UFRGS Doisa 2015 _______ Sandra Mara Ensaio sobre EIS AICE proposiccedilatildeo e estrateacutegia para pesquisar em educaccedilatildeo Porto Alegre Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo CNPq 2014 30 p (No prelo) _______ Sandra Mara O que se transcria em educaccedilatildeo Porto Alegre ndash RS UFRGS Doisa 2013 _______ Sandra Mara Introduccedilatildeo ao meacutetodo biografemaacutetico In COSTA Luciano Bedin da FONSECA Tania Mara Galli (Org) Vidas do Fora habitantes do silecircncio Porto Alegre Editora da UFRGS 2010 _______ Sandra Mara Dramatizaccedilatildeo do infantil na comeacutedia intelectual do curriacuteculo meacutetodo Valeacutery-Deleuze Projeto de Pesquisa ndash Bolsa de produtividade CNPq 2010 _______ Sandra Mara Meacutetodo Valeacutery-Deleuze um drama na comeacutedia intelectual da educaccedilatildeo Educaccedilatildeo amp Realidade Porto Alegre v 37 n 3 Dec 2012 Disponiacutevel em lthttpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S2175-62362012000300016amplng=enampnrm=isogt Acessado em 13 de Julho de 2016 _______ Sandra Mara Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila (2014-2019) Projeto de Pesquisa de Produtividade (CNPq) _______ Gilles Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 2006 _______ Gilles A ilha deserta e outros textos Textos e entrevistas (1953-1974) Satildeo Paulo Iluminuras 2006 (Org Luiz B L Orlandi) DELEUZE Sobre o teatro Um manifesto de menos O esgotado Rio de Janeiro Editora Zahar 2010

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TAVARES Gonccedilalo M O senhor Valeacutery e a Loacutegica 1 ed Rio de Janeiro Casa da Palavra 2011 VALEacuteRY Paul Variedades Trad Maiza Martins de Siqueira Satildeo Paulo Iluminuras 2011 _______ Paul Fragmentos de Narciso e outros poemas Trad Juacutelio Castantildeon Guimaratildees Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 2013 _______ Cahiers Paris Gallimard 1977

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contemporacircnea Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 36-51 juldez 2016 Disponiacutevel em

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Gravura procedimentos alternativos em litografia contemporacircnea

Ana Paula Schoninger van Grol1 Universidade Feevale

Lurdi Blauth2

Universidade Feevale

Resumo O estudo aborda a inter-relaccedilatildeo da arte com distintos meios de produccedilatildeo de imagens mediando procedimentos tradicionais com processos de tecnologias digitais As experiecircncias satildeo realizadas no campo da gravura contemporacircnea com o intuito de propor outras possibilidades de criaccedilatildeo de matrizes pela utilizaccedilatildeo e o aproveitamento de materiais alternativos e o uso de produtos menos toacutexicos Consideramos que eacute importante estimular o uso destes outros meios principalmente em ateliecircs de gravura xilogravura gravura em metal litografia e serigrafia Neste momento apresentamos alguns resultados parciais no acircmbito da litografia cujas pesquisas foram desenvolvidas no ateliecirc de gravura da Universidade Feevale Palavras-chave Arte tecnologia gravura litografia Abstract The research takes into consideration the relation among the different ways of producing images associating traditional methods with digital technology processes The experiences are taken in the field of contemporary printing intenting propouse other possibilities in creating printing matrices from use and exploitation of alternative material and non-toxic products It is considered that it is important to stimulate the use of alternative means particularly in art labs such as xylography metal engraving lithography and silkscreen To the present moment will be presented some partial results related to lithograph all researches were accomplished at the art laboratory in Universidade Feevale Keywords Art technology printing lithography

Introduccedilatildeo

Os movimentos artiacutesticos no iniacutecio de seacuteculo XX transgridem as formas

tradicionais da arte como podemos observar no surrealismo futurismo e dadaiacutesmo e

nas publicaccedilotildees em manifestos que confrontam questotildees sociais e culturais A

invenccedilatildeo da fotografia intensifica a aproximaccedilatildeo entre a arte e a tecnologia liberando

os artistas da questatildeo da representaccedilatildeo tradicional de espaccedilo para realizarem novas

1 Graduada em Artes Visuais trabalha como professora de liacutengua inglesa Eacute diretora do grupo de teatro de rua DRIME e tambeacutem atua como artista plaacutestica 2 Doutora em Artes Visuais pela UFRGS (2005) e Doctorat sandwich en Art Plastique - Universiteacute Paris 1 (Pantheacuteon-Sorbonne) (2003) Artista visual pesquisadora e professora nos cursos de Artes Visuais Design Graacutefico e no PPG em Processos e Manifestaccedilotildees Culturais Universidade Feevale

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experiecircncias Em 1910 quando Pablo Picasso e Georges Braque inserem em suas

pinturas outros materiais como fragmentos de jornais elementos da tipografia entre

outros impressos fazem uma alusatildeo direta ao cotidiano e ao progresso dos novos

meios tecnoloacutegicos da eacutepoca Tais fragmentos colados sobre a superfiacutecie da tela aleacutem

de redimensionarem a relaccedilatildeo da representaccedilatildeo do espaccedilo ilusionista da perspectiva

introduzem uma nova forma de tempo e espaccedilo Os limites tradicionais e a

representaccedilatildeo objetiva da arte comeccedilam a ser questionados sobretudo com a

utilizaccedilatildeo e a experimentaccedilatildeo de novos materiais bem como tambeacutem a expressatildeo

pessoal do artista

No acircmbito do desenvolvimento da gravura percebemos a coexistecircncia com

inovaccedilotildees teacutecnicas as quais satildeo constantemente renovadas e incorporadas aos

procedimentos tradicionais de criaccedilatildeo de imagens sobre distintas matrizes e processos

de reproduccedilatildeo sobre diferentes suportes Atualmente o conceito inicial da gravura se

transforma junto com a evoluccedilatildeo da cultura e dos novos meios tecnoloacutegicos Ela natildeo

envolve necessariamente gravaccedilatildeo isto eacute subtraircortar mateacuteria de uma superfiacutecie

como eacute feito nos meios mais tradicionais como a xilogravura e a calcografia Utiliza-se a

adiccedilatildeo de pigmentos os quais modificam a superfiacutecie de uma matriz atraveacutes de

processos quiacutemicos confronta-se tambeacutem com a gravaccedilatildeo fotograacutefica a eletrografia e

a computaccedilatildeo graacutefica buscando assim a inter-relaccedilatildeo com outras linguagens

Tais desdobramentos tencionam as suas especificidades teacutecnicas propondo

uma maior flexibilidade e autonomia em relaccedilatildeo aos seus meios convencionais de

gravaccedilatildeo e impressatildeo Contudo as linguagens tradicionais natildeo satildeo descartadas uma

vez que eacute fundamental termos conhecimento das caracteriacutesticas dos seus

procedimentos originais que continuam sendo desenvolvidos por inuacutemeros artistas Ou

seja satildeo produzidas gravuras com meios teacutecnicos da xilogravura calcografia serigrafia

e litografia e de acordo com as singularidades criativas de cada artista satildeo

incorporados desenhos pinturas colagens transferecircncia de fotografias digitais coacutepia

uacutenica em contraponto com a reproduccedilatildeo de imagens

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Neste estudo investigamos a criaccedilatildeo de imagens por meio de experimentaccedilotildees

praacuteticas com procedimentos analoacutegicos (gravura) incluindo a utilizaccedilatildeo de recursos

provenientes de tecnologias digitais (fotografia) e a transferecircncia de imagens sobre

matrizes alternativas

O enfoque das nossas experimentaccedilotildees eacute buscar materiais que possam suprir

os procedimentos tradicionais da litografia devido a dois fatores primeiro satildeo poucos

ateliecircs que possuem as pedras litograacuteficas o que impede o seu faacutecil acesso segundo

aliada aos constantes desdobramentos e potencialidades da linguagem graacutefica eacute

fundamental a experimentaccedilatildeo de outros materiais mais acessiacuteveis e menos toacutexicos

Cabe mencionar que tais experimentaccedilotildees partem de informaccedilotildees obtidas por

pesquisas apresentadas em sites da internet artigos e estudos oriundos de testagens

realizadas em outros paiacuteses No entanto percebemos que os procedimentos natildeo

resultam em apenas transcrever teacutecnicas implicam em tentar adotar materiais similares

em nosso contexto aleacutem de indicarem outras possibilidades de criaccedilatildeo artiacutestica

Os experimentos e pesquisas relatados aqui satildeo vinculados ao projeto de

pesquisa Arte e Tecnologia Interfaces Hiacutebridas da Imagem entre Mediaccedilotildees e

Remediaccedilotildees que acontece sob orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Lurdi Blauth nos ateliecircs de arte

da Universidade Feevale O objeto de estudo investiga possibilidades hiacutebridas que

inter-relacionam meios analoacutegicos e digitais de diferentes linguagens esteacuteticas como a

gravura fotografia videoarte e tecnologias digitais

Litografia princiacutepios baacutesicos

A litografia descoberta por Alois Senefelder em 1796 comeccedilou a ser utilizada

de forma utilitaacuteria para impressatildeo de documentos roacutetulos cartazes mapas jornais

aleacutem de apresentar uma nova possibilidade expressiva para os artistas A teacutecnica da

litografia tem como princiacutepio baacutesico o fenocircmeno quiacutemico de repulsatildeo entre gordura e

aacutegua tornando-se um meio de reproduccedilatildeo de imagens Antes da invenccedilatildeo da litografia

toda a gravura pressupunha gravaccedilatildeo isto eacute a incisatildeo sobre uma superfiacutecie resultando

numa imagem que podia ser transferida pelo seu relevo Isto quer dizer que a gravura

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estava associada agrave incisatildeo agrave subtraccedilatildeo o oposto de adiccedilatildeo De acordo com George

Kornis3 (2015)

O advento da litografia no seacuteculo XIX ndash um processo fundado apenas em uma accedilatildeo quiacutemica sobre uma matriz em pedra ndash possibilitou um grau de liberdade diante da incisatildeo e ampliou a escala de reprodutibilidade da imagem graacutefica Na litografia a linguagem graacutefica aproxima-se ainda mais do desenho Essa nova teacutecnica prescinde da incisatildeo o que amplia o acesso a novos artistas que optam por incorporar tambeacutem a expressatildeo graacutefica ao seu trabalho

Importantes artistas comeccedilam a utilizar a teacutecnica como meio de expressatildeo

Goya como podemos observar na obra Touradas de 1825 (fig 1) Gustave Doreacute

Renoir Ceacutezanne Toulouse-Lautrec Bonnard entre outros realizam novas

experimentaccedilotildees introduzindo inclusive a cor nos meios litograacuteficos

Figura 1 Francisco Joseacute de Goya Touradas 1825 Fonte Disponiacutevel em httpwwwpatrimoniodehuescaesmuseo-de-huesca-francisco-de-goya-y-

lucientes-grabados-de-tauromaquia-y-lienzo-del-sr-de-veian-s-xviii

A linguagem graacutefica aliada agraves transformaccedilotildees do seacuteculo XXI continua a sua

constante atualizaccedilatildeo teacutecnica pela convergecircncia de meios digitais e de teacutecnicas

seculares da gravura configurando-se pela exploraccedilatildeo de uma diversidade de novas

proposiccedilotildees esteacuteticas Nesse aspecto igualmente eacute colocado em discussatildeo o seu

caraacuteter original relacionado com a produccedilatildeo de uma matriz uacutenica e a reproduccedilatildeo de

3 KORNIS George Gravura passado presente e futuro Publicado em 13 de maio de 2015 Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=mCmY_Oj3x64gt Acesso em 29 de julho de 2016

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estampas idecircnticas Para Nicole Malenfant (2012 p73) ldquoeacute na abertura para praacuteticas de

natureza interdisciplinar que a gravura transgrediu ainda mais o quadro de sua

especificidade para integrar a abordagem de criaccedilatildeo agrave perspectiva de uma

lsquopermeabilidade de fronteirasrsquo Em outras palavras estas novas abordagens inter-

relacionam procedimentos materialidades e conceitos ampliando inclusive o caraacuteter

mais intimista da gravura bem como as estruturas de suas praacuteticas teacutecnicas

convencionais que se desdobram no contato com as tecnologias digitais

Atualmente falamos em gravuras digitais que se distinguem das praacuteticas

tradicionais da gravura que ldquoeacute feita com base na construccedilatildeo pictoacuterica e utiliza

ferramentas proacuteprias aos softwares da imagem para elaborar uma proposta visual que

pode incluir elementos fotograacuteficos que se relacionem com outros elementos do todo da

imagemrdquo (MALENFANT 2012 p72) Embora as especificidades de cada procedimento

empregado estejam em sintonia eacute preciso levar em conta as peculiaridades e

denominaccedilotildees dos meios de reproduccedilatildeo e impressatildeo e suas diferentes granulaccedilotildees na

imagem A incorporaccedilatildeo da imagem fotograacutefica por meio de transferecircncia para outros

suportes e matrizes que permitem a sua reproduccedilatildeo se distingue da materialidade das

impressotildees manuais

Ainda de acordo com Malenfant

As pesquisas para transferir imagens fotograacuteficas ou digitais para matrizes que permitem se servir da impressatildeo artesanal tambeacutem enriqueceram essas imagens com uma materialidade diferente advindas da siacutentese de suas disciplinas implicadas Esses novos avanccedilos no plano teacutecnico permitem associar as ferramentas digitais ao processo de criaccedilatildeo da imagem e ampliam o campo da exploraccedilatildeo esteacuteticardquo (2012 p73)

Nessa perspectiva haacute uma liberdade muito maior em elaborar proposiccedilotildees

esteacuteticas que dialogam com uma diversidade de materiais e materialidades e de certa

maneira transgridem as delimitaccedilotildees para integrar novas formas de criaccedilatildeo no campo

ampliado da arte

Desse modo as investigaccedilotildees praacuteticas desta pesquisa se desdobram com a

exploraccedilatildeo de procedimentos alternativos para a gravura litograacutefica A partir do

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conhecimento de alguns princiacutepios baacutesicos da litografia procuramos trabalhar com

alguns meacutetodos que natildeo necessitam da utilizaccedilatildeo da pedra calcaacuteria cujo material eacute

escasso e limitado a poucos ateliecircs no Rio Grande do Sul

Contexto inicial

Para o desenvolvimento dos meios tradicionais da litografia eacute necessaacuterio uma

seacuterie de procedimentos que implicam no uso de diversos materiais como pedra

litograacutefica (calcaacuteria) materiais para desenho (Tousche laacutepis crayon) solvente

(removedor aacutegua-raz ou varsol) goma araacutebica breu aacutecido aceacutetico aacutecido niacutetrico entre

outros O processo eacute relativamente complexo pois depende da repulsatildeo entre gordura

e aacutegua A imagem eacute produzida sobre a superfiacutecie da pedra calcaacuteria com materiais

oleosos e depois de concluiacuteda satildeo aplicados diferentes componentes quiacutemicos que

iratildeo fixaacute-la Ou seja eacute necessaacuterio que todas as etapas sejam consideradas em sua

sequecircncia e geralmente requer o auxiacutelio de profissionais capacitados para a impressatildeo

aleacutem de outros cuidados teacutecnicos para que haja um bom resultado na obra final

Visando atender aos objetivos da pesquisa buscamos desenvolver a teacutecnica

com meacutetodos diversos realizando experimentaccedilotildees com diferentes suportes para a

produccedilatildeo de matrizes que se aproximem aos meios litograacuteficos Aleacutem disso buscamos

relacionar a pesquisa agraves tecnologias digitais seja no processo de criaccedilatildeo eou na

elaboraccedilatildeo das imagens graacuteficas

Experimentaccedilotildees praacuteticas

Inicialmente foram testados vaacuterios procedimentos e materiais tendo como

proposiccedilatildeo na medida do possiacutevel utilizar materiais menos nocivos ao ambiente

Nessas experimentaccedilotildees vaacuterios testes natildeo apresentaram os resultados esperados ou

adequados agrave proposta da investigaccedilatildeo contudo possibilitaram outras descobertas

Os estudos em ateliecirc tecircm como referecircncia o artigo ldquoLa siligrafiacutea Un proceso

alternativo en la graacutefica muacuteltiple contemporaacuteneardquo de Hortensia Miacutenguez Garciacutea e

Carles Meacutendez Llopis (2014) que sugere o uso de silicone e solvente sobre chapa

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offset Apoacutes algumas tentativas foi possiacutevel reproduzir a imagem contudo os

resultados deste experimento natildeo foram totalmente satisfatoacuterios em qualidade de

impressatildeo aleacutem do mais natildeo se enquadravam com os objetivos da pesquisa na

aplicaccedilatildeo dos materiais ndash que ainda apresentavam certa toxicidade (figura 2)

Figura 2 Ana van Grol - Detalhes do processo com litografia alternativa Fonte Arquivo pessoal

A partir destas experiecircncias realizadas em ateliecirc concluiacutemos que seratildeo

necessaacuterios mais estudos e praacuteticas para se obter melhores resultados para a

reproduccedilatildeo das imagens

Litografia natildeo toacutexica com refrigerante de cola e produtos caseiros

Nesta segunda etapa novos estudos bibliograacuteficos propiciaram outras testagens

com materiais e processos de litografia alternativa Percebemos que em muitos paiacuteses

jaacute estatildeo sendo pesquisados outros meacutetodos mais acessiacuteveis e de faacutecil manuseio

Nesse aspecto eacute interessante observar que encontramos pouco material em portuguecircs

inclusive os materiais sugeridos satildeo similares aos produzidos aqui no Brasil poreacutem

existe uma diferenccedila na qualidade dos mesmos

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Foram pesquisados em diversos viacutedeos disponiacuteveis na internet que tratam de

processos semelhantes ao de litografia alternativa Mencionamos alguns exemplos

como o ateliecirc francecircs Art Emilion4 (o qual tambeacutem produziu um manual para execuccedilatildeo

do processo) e o viacutedeo Kitchen Lithography Demo por Felicia Digiovanni5 ambos

demonstrando a teacutecnica com refrigerante de cola O processo utilizando somente

vinagre para substituir o refrigerante apresentado por ldquojjewelartrdquo tambeacutem fez parte do

experimento poreacutem natildeo apresentou os resultados esperados

De acordo com as demonstraccedilotildees do ateliecirc de arte Art Eacutemilion o procedimento

faz uso dos seguintes materiais oacuteleo de cozinha vinagre branco refrigerante de cola

papel alumiacutenio esponja litograacutefica tinta para talho doce rolo para entintagem laacutepis

para desenho litograacutefico (e outros materiais gordurosos para o mesmo fim como sabatildeo

de glicerina) papel para impressatildeo e aacutegua

O desenvolvimento da teacutecnica envolve as seguintes etapas

1 O papel alumiacutenio deve ser posto sobre uma chapa acriacutelica ou algo semelhante

para facilitar o trabalho o lado a ser usado eacute o fosco

2 Apoacutes limpar o papel alumiacutenio com aacutelcool pode-se fazer o desenho com giz

gorduroso ou sabatildeo de glicerina

3 O banho de refrigerante de cola eacute o passo seguinte mas deve-se ter a certeza

de que o desenho estaacute totalmente seco para isso Este processo toma alguns

segundos e eacute necessaacuterio assegurar-se de passar por toda a superfiacutecie

4 Depois disso deve-se lavar com aacutegua e secar levemente com papel toalha

5 O oacuteleo de canola deve ser espalhado por toda a superfiacutecie com uma gaze para

retirar o desenho do alumiacutenio

6 Eacute necessaacuterio passar a esponja de litografia sobre o desenho devendo estar

umedecida com aacutegua e ser aplicada entre as etapas de entintagem com tinta

4 EMILLION Aizier Lithography Maison ndash Kitchen lithography Disponiacutevel em lt httpwwwatelier-kitchen-printorgproducts-pagemanuelsproduitshandbook-of-kitchen-lithogt Acesso em 09 de junho de 2016 5DIGIOVANI Felicia Kitchen Lithography Demo Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=UuBUlEt6vWwgt Acesso em 09 de junho de 2016

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para talho doce ou tipograacutefica com um rolo de borracha Na primeira passada eacute

possiacutevel que a tinta se fixe a todas as partes poreacutem a esponja molhada deve

ser aplicada vaacuterias vezes assim como a tinta ateacute que ao final a tinta aderiraacute

somente na imagem (figura 3)

Figura 3 Ana van Grol - testes de litografia alternativa com coca cola do atelier Art Eacutemilion Fonte Arquivo pessoal

Nos primeiros resultados apenas era possiacutevel reconhecer vestiacutegios das

imagens e teacutecnica entretanto ao repetir o processo algumas vezes e analisar os

procedimentos realizados era notaacutevel a melhora das impressotildees (figura 4)

Figura 4 Ana van Grol ndash detalhe da impressatildeo com maior fidelidade entre o desenho inicial e sua impressatildeo final

Fonte Arquivo pessoal

Eacute curioso salientar um aspecto em que diferem nossos estudos dos

experimentos realizados nos viacutedeos observados enquanto que em nossas praacuteticas a

tinta eacute fixada no plano de fundo da imagem nos viacutedeos ela adere nos desenhos sendo

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assim o sistema que repele a tinta acontece invertido e por esse motivo continuamos

as testagens para obter resultados mais proacuteximos aos dos viacutedeos

Nestas experimentaccedilotildees os resultados foram satisfatoacuterios tecnicamente poreacutem

ainda natildeo foram consideradas questotildees esteacuteticas e conceituais enquanto linguagem

artiacutestica Na etapa seguinte buscamos aliar a transferecircncia de imagens para a criaccedilatildeo

de matrizes com papel alumiacutenio utilizando outros procedimentos e materiais

A transferecircncia de imagem sobre matriz de alumiacutenio

A articulaccedilatildeo da gravura tem seus antecedentes histoacutericos que remetem aos

primoacuterdios da fotografia relacionados agrave gravaccedilatildeo de sombra luz e impressatildeo O uso de

recursos tecnoloacutegicos pela facilidade de acesso propicia a ampla reproduccedilatildeo de

imagens assim como a fotografia digital contribui para a renovaccedilatildeo e a interaccedilatildeo com

outras linguagens artiacutesticas No entanto diante das inuacutemeras possibilidades de

reproduzir coacutepias por tecnologias digitais a questatildeo da reproduccedilatildeo atraveacutes da gravura

jaacute natildeo eacute tatildeo relevante Com o avanccedilo dessas tecnologias digitais abrem-se novos

caminhos para a gravura Maria do Carmo Veneroso6 coloca que

Eacute pois a qualidade graacutefica e a possibilidade do uso da imagem fotograacutefica entre outras coisas que vai caracterizar a praacutetica dos gravadores atualmente A reprodutibilidade deixa portanto de ser um valor em si jaacute que com o desenvolvimento da induacutestria graacutefica muitas outras formas de impressatildeo mais raacutepidas e mais eficientes se impotildeem deixando que a gravura se realize plenamente em meio e tangenciando outras linguagens plaacutesticas Essa mudanccedila de paradigma faz com que a gravura se desenvolva como linguagem lanccedilando matildeo dos recursos teacutecnicos disponiacuteveis (2007 p1512)

A autonomia das linguagens graacuteficas propicia que sejam articulados distintos

meios e procedimentos borrando as fronteiras e delimitaccedilotildees teacutecnicas para originar

outras praacuteticas e confrontos esteacuteticos O caminho da gravura artiacutestica comeccedila a se

modificar significativamente quando a tecnologia e os meios de reproduccedilatildeo fotograacutefica

6 Blog Litografia 2010 ndash CAPECAUSP Disponiacutevel em lthttpcap-lito-2010blogspotcombr201003litografias-de-artistas-cezannehtmlgt Acesso em 09 de junho de 2016

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satildeo incluiacutedos aos procedimentos tradicionais ldquoRobert Rauschenberg por exemplo

desafiou os meios convencionais da gravura introduzindo elementos jaacute impressos

atraveacutes da transferecircncia de imagens Tambeacutem ampliou as escalas fiacutesicas misturando

diversas teacutecnicas graacuteficas que satildeo impressas sobre tela para substituir o papelrdquo

(BLAUTH 2011 p27) (Figura 5)

Figura 5 Robert Rauschenberg Shades 1964 Seis litografias impressas sobre acriacutelico 15 x 1438 x 11 58 p Ediccedilatildeo 24

Fonte MOMA Disponiacutevel em httpswwwmomaorgcollectionworks14718

Neste estudo apresentamos resultados parciais de procedimentos e meacutetodos

com o intuito de transferir a fotografia digital para criaccedilatildeo de matrizes com papel

alumiacutenio Inicialmente satildeo realizadas algumas testagens com outros tipos de matrizes

(acetato lata de refrigerante) e meios de transferecircncia (tela de serigrafia calor e

salicilato de metila)

Um dos materiais testados foi o acetato com imagem impressa em toner preto

aacutegua e esponja para molhar o acetato antes de entintar tinta para talho doce rolo de

borracha papel proacuteprio para a impressatildeo e prensa

Fazendo uso das impressotildees a laser e conhecendo suas propriedades o acetato

foi entintado e impresso Apoacutes alguns testes o resultado foi satisfatoacuterio (figura 6)

poreacutem natildeo com total controle sobre as impressotildees Encontramos neste meacutetodo a

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possibilidade de unir a tecnologia com a reproduccedilatildeo de imagem aos materiais

alternativos na produccedilatildeo de gravura

Figura 6 Ana van Grol Processo e resultado acetato impresso a laser gravura direta com tinta para talho doce

Fonte Arquivo pessoal

Em outra experiecircncia eacute feita a transferecircncia de impressatildeo a laser com calor e

pressatildeo e a tinta para talho doce acaba por fazer a interaccedilatildeo necessaacuteria utilizando-se

do meacutetodo de limpar a placa com oacuteleo antes de entintaacute-la A tinta de talho doce eacute

aplicada com rolo de borracha vaacuterias vezes e entre os intervalos de cada entintagem eacute

necessaacuterio limpar a tinta com esponja litograacutefica embebida em aacutegua (figura 7)

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Figura 7 Ana van Grol Processo e resultado de trabalho com transferecircncia de coacutepia a laser e

impressatildeo direta com tinta para talho doce Fonte Arquivo pessoal

Outro procedimento de transferecircncia de imagem impressa a laser eacute o produto

denominado de salicilato de metila associado ao processo de impressatildeo com a prensa

Com este material obtemos resultados mais satisfatoacuterios quando a imagem eacute impressa

sobre papel couchet ressaltando um certo contraste na imagem Neste caso (figura 8)

apoacutes a transferecircncia satildeo realizadas grafias aleatoacuterias com laacutepis litograacutefico gorduroso e

depois satildeo empregados os procedimentos de fixaccedilatildeo da imagem sobre o alumiacutenio uso

de polvilho melado ou mel imersatildeo em refrigerante cola oacuteleo de cozinha (para retirar a

imagem) esponja embebida em aacutegua e tinta para impressatildeo (para talho doce) Nesse

processo a imagem transferida natildeo desaparece apenas o desenho feito com material

gorduroso

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Figura 8 Lurdi Blauth Teste de transferecircncia de imagem com salicilato de metila Fonte Arquivo pessoal

A serigrafia tambeacutem serve de aporte ao desejo de transferir uma imagem e

reproduzi-la em impressotildees Em si o processo de serigrafia consiste em sensibilizar a

tela de nylon com uma imagem que poderaacute ser reproduzida sobre outras superfiacutecies

com uso de tinta proacutepria No caso da litografia alternativa utilizamos o sabatildeo de

glicerina como ldquotintardquo ou seja na funccedilatildeo de base protetora para o banho de

refrigerante Para isso foi necessaacuterio criar uma pasta (na textura de tinta) para

reproduzir a imagem da tela para o papel alumiacutenio Mais tarde com a mistura de sabatildeo

jaacute seca foram aplicadas as etapas posteriores o resultado pode ser observado na

impressatildeo (figura 9)

Figura 9 Ana van Grol - impressatildeo com uso de serigrafia como forma de transferecircncia de imagem

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Fonte Arquivo pessoal

A impressatildeo apresentou resultados bem satisfatoacuterios quanto agrave qualidade de

imagem contudo outras misturas semelhantes agrave de sabatildeo de glicerina neutro devem

ser testadas e podem apresentar melhor aderecircncia eou resistecircncia ao banho de

refrigerante

Algumas consideraccedilotildees

Diante da pluralidade de meios e possibilidades artiacutesticas testadas procuramos

utilizar materiais alternativos e produtos atoacutexicos buscando aproveitar materiais

disponiacuteveis na tentativa de abrir outros meios de reproduccedilatildeo de imagens O caminho

continua em aberto e o que nos motiva eacute a nossa convicccedilatildeo na continuidade da

exploraccedilatildeo de novas perspectivas para o campo da arte e em especial agrave litografia

testada com diferentes procedimentos Entendemos que diversos fatores interferem

devido agraves caracteriacutesticas e qualidade dos materiais empregados os quais muitas

vezes apresentam resultados inesperados

As experimentaccedilotildees realizadas ateacute o momento nos indicam a continuidade da

pesquisa buscando meios variados para o campo da gravura que possam ser

socializados principalmente nos ateliecircs que ainda utilizam materiais prejudiciais Dessa

forma pretendemos tambeacutem contribuir com a conscientizaccedilatildeo dos cuidados

relacionados agrave sauacutede dos artistas e do meio ambiente Em nossas conclusotildees parciais

percebemos que as possibilidades satildeo inuacutemeras para a criaccedilatildeo e reproduccedilatildeo de

imagens com materiais ldquocaseirosrdquo e com o seguimento de nossas investigaccedilotildees e

testagens temos a convicccedilatildeo de que podemos estimular a adesatildeo e a interaccedilatildeo com

outros artistas e assim obtermos melhores resultados

Portanto o campo das linguagens graacuteficas e os seus meios de reproduccedilatildeo direta

ou indireta da imagem tem suas qualidades intriacutensecas em cada processo contudo se

natildeo suscitarem transformaccedilotildees tornam-se vazias e desnecessaacuterias Podemos dizer

que natildeo importam os meios empregados pois os ldquoproblemasrdquo artiacutesticos devem ser

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confrontados com novos questionamentos esteacuteticos seja pelo uso do computador na

imagem digital na fotografia ou mesmo os meios considerados tradicionais como

gravura a pintura a escultura podendo ter (ou natildeo) qualidade contemporacircnea

Referecircncias BLAUTH Lurdi Marcas Passagens e Condensaccedilotildees ndash investigaccedilotildees de um processo de gravura contemporacircnea Porto Alegre Editora da UFRGS 2011 GARCIacuteA Hortensia Miacutenguez e LLOPIS Carles Meacutendez La siligrafiacutea Un proceso alternativo en la graacutefica muacuteltiple contemporacircnea In Revista El Artista n 11 Pamplona Colombia Universidad Distrital Francisco Joseacute de Caldas 2014 MALENFANT Nicole A gravura entre a identidade disciplinar e suas manifestaccedilotildees em um quadro interdisciplinar In Revista Porto Arte v 1 n1 (jun 1990) Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Visuais 1990 VENEROSO Maria do Carmo Gravura e Fotografia - Um estudo das possibilidades da gravura como uma linguagem artiacutestica autocircnoma na contemporaneidade e sua associaccedilatildeo com a fotografia In 16deg Encontro Nacional da Associaccedilatildeo Nacional de Pesquisadores de Artes Plaacutesticas Dinacircmicas Epistemoloacutegicas em Artes Visuais ndash 24 a 28 de setembro de 2007 ndash Florianoacutepolis SC

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MATTOS Fernando Lewis de Pluralia Tantum Reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea Revista da Fundarte

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Pluralia Tantum reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea

Fernando Lewis de Mattos1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

1 Consideraccedilotildees preliminares sobre o conservadorismo em muacutesica Antes de iniciar esta explanaccedilatildeo sobre algumas caracteriacutesticas da muacutesica

contemporacircnea gostaria de apontar aspectos do conservadorismo existente na

muacutesica atual

Mesmo atraveacutes de um vislumbre raacutepido sobre a Histoacuteria da Muacutesica percebe-

se que em todas as eacutepocas houve aqueles artistas que se esforccedilaram para expandir

a sensibilidade de seu tempo e aqueles (artistas teoacutericos criacuteticos pensadores e

parte do puacuteblico) que natildeo foram capazes de compreender o significado das

transformaccedilotildees ou natildeo estavam dispostos a abrir matildeo de seus valores

aparentemente bem fundamentados para escutar com a devida atenccedilatildeo as

realizaccedilotildees de seus contemporacircneos

Nem mesmo grandes pensadores estiveram livres de juiacutezos preconcebidos

ou natildeo foram capazes de apreciar a abrangecircncia de certas inovaccedilotildees no campo

artiacutestico de sua eacutepoca Platatildeo por exemplo revoltou-se contra a nova muacutesica de

seu tempo com seus trecircs gecircneros (diatocircnico cromaacutetico e enarmocircnico) e a

ampliaccedilatildeo vertiginosa das possibilidades de expressatildeo considerada perigosa pelo

filoacutesofo por romper com os fundamentos numeacutericos e com as normas pitagoacutericas da

muacutesica tradicional Rousseau e Diderot percebiam em Rameau somente o muacutesico

da corte chegando a ridicularizar suas oacuteperas por haver um grande contingente de

1 Possui Graduaccedilatildeo em Muacutesica - Habilitaccedilatildeo Violatildeo (1988) Mestrado em Muacutesica - Ecircnfase Educaccedilatildeo Musical

(1997) e Doutorado em Muacutesica - ecircnfase em Composiccedilatildeo (2005) pela Universidade Federal do Rio Grande do

Sul Atualmente eacute Professor Associado do Departamento de Muacutesica no Instituto de Artes da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul onde atua nas disciplinas Anaacutelise Musical Harmonia Esteacutetica da Muacutesica no

curso de Muacutesica e as disciplinas Praacuteticas Artiacutesticas e Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Muacutesica no curso de Histoacuteria da

Arte Soacutecio-fundador da Arena - Associaccedilatildeo Cultural Socioambiental onde ministra cursos regularmente

Instrumentista (cordas dedilhadas) dedicado agrave pesquisa e interpretaccedilatildeo de muacutesica antiga europeia (alauacutedes e

guitarras) muacutesica tradicional brasileira (viola caipira e guitarra romacircntica) e muacutesica contemporacircnea (violatildeo e

decacorde) compositor com obras para diferentes formaccedilotildees vocais e instrumentais muacutesica incidental para

teatro viacutedeo e cinema e produccedilatildeo de material sonoro para exposiccedilotildees Dedica-se tambeacutem agrave pesquisa e

interpretaccedilatildeo de muacutesica brasileira moderna e contemporacircnea

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MATTOS Fernando Lewis de Pluralia Tantum Reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea Revista da Fundarte

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instrumentos de percussatildeo tratando-as como natildeo sendo muacutesica mas somente um

amontoado de sons que produziam um barulho infernal Para Diderot Rameau era

[] aquele muacutesico ceacutelebre que nos livrou do canto chatildeo de Lully o qual recitamos haacute mais de cem anos que escreveu tantas visotildees ininteligiacuteveis e verdades apocaliacutepticas sobre a teoria da muacutesica sobre as quais nem ele nem ningueacutem jamais entendeu nada2 e de quem temos um certo nuacutemero de oacuteperas onde haacute harmonias fragmentos de cantos ideias desconexas ruiacutedos estrondosos voos triunfos lances gloacuterias murmuacuterios vitoacuterias de perder o focirclego aacuterias de danccedila que duraratildeo eternamente e que depois de ter enterrado o Florentino seraacute enterrado pelos virtuoses italianos (DIDEROT 1983 p 47-48)

Nietzsche que assim como Platatildeo e Rousseau tambeacutem era muacutesico viu no

Parsifal de Wagner apenas a capitulaccedilatildeo aos valores de uma arte germacircnica

redentora e consolatoacuteria que abdicava do ideal da muacutesica como retorno agrave inocecircncia

da arte atraveacutes do espiacuterito dionisiacuteaco Se houve este aspecto conservador na muacutesica

de Wagner havia muito mais pois foi a partir de suas inovaccedilotildees que compositores

como Mahler Debussy e Schoenberg conduziram suas proacuteprias experiecircncias

Mesmo que nem sempre tenha sido por razotildees especificamente musicais3 as

sucessivas reaccedilotildees agraves novas sonoridades levam a crer que a abertura para praacuteticas

musicais inusuais pode ser algo difiacutecil de ser alcanccedilado

No meio musical atual podem-se distinguir duas espeacutecies de

conservadorismo o conservadorismo preacute-moderno e o conservadorismo modernista

O conservadorismo preacute-moderno eacute aquele mais generalizado e hegemocircnico

predominante entre os programadores culturais administradores de teatro diretores

artiacutesticos de orquestras e afins Essa espeacutecie de conservadorismo se opotildee a toda e

qualquer criaccedilatildeo musical natildeo coincidente com os procedimentos e valores da

muacutesica do Periacuteodo Tonal situado entre as produccedilotildees de Johann Sebastian Bach

(1685-1750) e Johannes Brahms (1833-1897) Para aqueles que defendem ainda

hoje esses valores a muacutesica tonal eacute tida como sendo lsquouniversalrsquo mesmo que seja o

2 Jean-Philippe Rameau (1683-1764) foi um dos maiores muacutesicos e teoacutericos de sua eacutepoca foi o primeiro a sistematizar mais de duzentos anos de praacutetica musical em seu Tratado de Harmonia (1722) que eacute ainda hoje considerado como um dos escritos mais importantes sobre o assunto 3 Platatildeo estava preocupado com a educaccedilatildeo dos jovens os enciclopedistas viam em Rameau um representante do Ancien Reacutegime e Nietzsche sentiu-se traiacutedo por Wagner em seu ideal de superar o predomiacutenio do espiacuterito apoliacuteneo no campo musical

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fruto do trabalho de muacutesicos de uma regiatildeo restrita do planeta que corresponde a

aproximadamente trecircs paiacuteses da Europa Ocidental (Itaacutelia Franccedila e principalmente

Alemanha) e produzida em um curto periacuteodo de tempo entre os seacuteculos XVIII e

XIX

Um bom exemplo desse tipo de conservadorismo estaacute naquela afirmaccedilatildeo

comum em certos meios musicais onde prevalecem valores convencionais ldquonatildeo

toco muacutesica contemporacircnea porque as pessoas natildeo tecircm como saber se estou

tocando as notas certas ou erradas e quando escuto uma muacutesica dessas natildeo sei se

o muacutesico estaacute tocando bem ou natildeo Por isso considero essa muacutesica como sendo

de menor importacircnciardquo Nota-se aqui um pensamento tautoloacutegico centrado apenas

na proacutepria experiecircncia pessoal e sem qualquer interesse pela produccedilatildeo que estaacute agrave

sua volta Tautoloacutegico no sentido em que o sujeito natildeo tem como avaliar aquela

interpretaccedilatildeo porque natildeo conhece a muacutesica e natildeo conhece aquela muacutesica porque

natildeo se permite avaliar a interpretaccedilatildeo O raciociacutenio artificioso estaacute em que como o

indiviacuteduo natildeo conhece a muacutesica natildeo se esforccedila para escutar sua interpretaccedilatildeo

portanto natildeo pode julgaacute-la e se natildeo eacute possiacutevel emitir juiacutezo a muacutesica natildeo tem valor ndash

como se fosse necessaacuterio conhecer a muacutesica para saber se algueacutem a estaacute

interpretando adequadamente como se a capacidade de anaacutelise natildeo estivesse no

conhecimento que o sujeito tem do objeto analisado Trata-se de uma atitude

autocentrada porque esses muacutesicos

[] soacute conhecem a arte que consomem e soacute consomem a que reconhecem portanto sua consciecircncia eacute leve e parcial Como sustentar o pacto se eacute tatildeo menos sofrido dormir com a consciecircncia leve sem a pretensatildeo de uma arte feita tambeacutem para arte sem a sombra do domiacutenio gigantesco Talvez arte feita somente para o mundo para o plano da distraccedilatildeo substacircncia que dissolve instantaneamente o artista Arte distraiacuteda quase arte quase atenccedilatildeo quase conteuacutedo insuficiecircncia (BERNARDES 1998 p 7)

Quem crecirc que julga a arte a partir dessa espeacutecie de raciociacutenio apenas se

limita a reconhecer aquilo que jaacute conhece ou seja nesse ponto natildeo haacute

conhecimento apenas reconhecimento Ouvem-se tambeacutem alguns muacutesicos que se

negam a tocar novos repertoacuterios argumentando que natildeo se dedicam a estudar a

muacutesica atual porque ela natildeo acrescenta muito agrave teacutecnica do seu instrumento Esse

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ponto de vista parece ainda mais esvaziado pois fica confinado nos limites da

teacutecnica onde natildeo se alcanccedila jamais a condiccedilatildeo de arte

O conservadorismo moderno eacute atualmente defendido por aqueles que foram

os protagonistas de grandes transformaccedilotildees teacutecnicas e esteacuteticas da muacutesica de

meados do seacuteculo XX (do poacutes-guerra agrave deacutecada de 1970) e seus disciacutepulos esses

muacutesicos opotildeem-se a qualquer mudanccedila de direcionamento que natildeo corresponda agraves

novidades introduzidas pelas vanguardas tardias e confundem novos processos

narrativos e novos significados musicais com a arte de um passado ao qual sempre

se opuseram Natildeo tecircm a capacidade de compreender que as novas geraccedilotildees

percebem o mundo de outra maneira tecircm outros anseios e consequentemente

outras necessidades Portanto produzem outra arte O musicoacutelogo Paul Bekker

afirmava que os muacutesicos de sua eacutepoca natildeo escreviam da mesma maneira que os

grandes gecircnios do passado ldquopelo simples fato de serem pessoas diferentesrdquo

(BEKKER 1928 p 217) Parece que os protagonistas das vanguardas (a quem

Bekker estava se referindo) natildeo se deram conta de que o tempo continua a passar e

que os mais jovens que vieram depois deles tambeacutem tecircm outras necessidades ndash o

que obviamente leva agrave criaccedilatildeo de outra muacutesica diferente da sua

Haacute tambeacutem aqueles que pretendem que a arte se limite agrave aplicaccedilatildeo de novos

processos tecnoloacutegicos esquecendo que a arte eacute antes de tudo expansatildeo da

sensibilidade e do pensamento e que a teacutecnica natildeo eacute condiccedilatildeo para a arte A

tecnologia pode ser mais um recurso para a realizaccedilatildeo artiacutestica natildeo seu fim

Quando a muacutesica eacute valorizada somente pelos procedimentos tecnoloacutegicos

empregados na sua produccedilatildeo tambeacutem fica confinada nos limites da teacutecnica e natildeo

alcanccedila sua condiccedilatildeo esteacutetica O emprego de recursos tecnoloacutegicos vem a partir de

necessidades mais amplas do que a simples aplicaccedilatildeo de teacutecnicas recentes Se o

emprego de novas tecnologias fosse criteacuterio para a avaliaccedilatildeo da arte as primeiras

experiecircncias com muacutesica eletrocircnica seriam atualmente obsoletas (e seria no

miacutenimo enganoso considerar ultrapassadas as peccedilas eletrocircnicas de Schaeffer

Henry ou Stockhausen dos anos rsquo50) Por sua vez a novidade tecnoloacutegica natildeo

implica necessariamente na produccedilatildeo de arte nova

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Como o tempo eacute inexoraacutevel os indiviacuteduos humanos de hoje satildeo outros do

que em outros tempos as sociedades satildeo outras haacute outras maneiras de perceber o

mundo e refletir sobre ele tambeacutem o resultado da produccedilatildeo desses indiviacuteduos eacute

necessariamente outro Natildeo tem como ser diferente Isso indica que toda espeacutecie de

conservadorismo estaacute fadada ao fracasso o movimento se manifesta em todos os

aspectos e em todos os lugares Natildeo tem como negar a transformaccedilatildeo ela

simplesmente estaacute aiacute Haacute que aceitaacute-la ou trabalhar com ela para a criaccedilatildeo de

processos que possam conduzir a novos significados e novos meios de fazer e

perceber muacutesica Isso natildeo eacute dito de um ponto de vista apenas teacutecnico ou

pragmaacutetico mas acima de tudo conceitual pois a muacutesica como diria Platatildeo

alcanccedila seu mais alto niacutevel quando ultrapassa as pretensotildees praacuteticas mais

imediatistas e eacute nesse sentido que Soacutecrates no diaacutelogo Feacutedon compara o ato de

criar muacutesica ao haacutebito de filosofar

Negar que o tempo se prolonga incessantemente e perdura sem interrupccedilatildeo

levando consigo toda a sorte de transformaccedilotildees em todos os aspectos da realidade

significa dar as costas ao devir em seu fluxo ininterrupto de ir e vir em muacuteltiplas

direccedilotildees O que eacute uacutetil intrigante e considerado como atual para determinado grupo

humano pode natildeo o ser para outros grupos e eacute necessaacuterio aceitar isso para

compreender algo da diversidade da produccedilatildeo artiacutestica hodierna Eacute necessaacuterio sair

do proacuteprio centro para apreender algo da realidade circundante

2 Caracteriacutesticas da muacutesica atual

Haacute vaacuterias maneiras de distribuir as diferentes correntes de composiccedilatildeo da

muacutesica contemporacircnea Podem-se diferenciar as tendecircncias atuais de acordo com

procedimentos teacutecnicos como muacutesica serial muacutesica neotonal muacutesica minimalista

muacutesica eletrocircnica e outras conforme a ecircnfase em um ou outro elemento da

composiccedilatildeo como por exemplo os muacutesicos que valorizam o timbre as tendecircncias

em que o mais importante eacute o ritmo os movimentos de retorno agrave melodia agrave

harmonia ou ao contraponto aquelas linhas em que o importante estaacute no tipo de

escrita musical como a muacutesica com escrita precisa a escrita em forma de roteiro a

muacutesica aleatoacuteria e a improvisaccedilatildeo espontacircnea (que prescinde da escrita) poderiam

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tambeacutem ser consideradas as relaccedilotildees da muacutesica com outras aacutereas em que se

levariam em consideraccedilatildeo subdivisotildees como o teatro musical as instalaccedilotildees

sonoras ou as tendecircncias de multimiacutedia aleacutem de muacutesica para danccedila e a muacutesica

para cinema entre outras o ambiente musical atual poderia ainda ser dividido

entre os grupos derivados das vanguardas como a muacutesica atonal a muacutesica serial a

muacutesica estocaacutestica e a muacutesica espectral

Haveria ainda outras tantas possibilidades de demarcaccedilatildeo das tendecircncias

da muacutesica contemporacircnea Optou-se poreacutem neste ensaio por uma organizaccedilatildeo

mais ou menos extriacutenseca agrave proacutepria muacutesica e que poderia se adequar a outras

manifestaccedilotildees culturais atuais O que importa no esboccedilo a seguir satildeo os valores

que movem os muacutesicos em direccedilotildees que se entrecruzam em algumas de suas

caracteriacutesticas em alguns muacutesicos ou grupos de compositores Com base nas

referecircncias tomadas a partir de tradiccedilotildees imediatas ou remotas isto eacute nas tradiccedilotildees

do modernismo ou em tradiccedilotildees anteriores que tecircm sido resgatadas nos uacuteltimos

anos podem ser demarcadas trecircs linhas gerais na esteacutetica musical

contemporacircnea4

1 Continuidade da Modernidade

2 Retorno agrave Tradiccedilatildeo e

3 Superaccedilatildeo do Modernismo

A intenccedilatildeo com essa divisatildeo natildeo eacute enquadrar toda e qualquer manifestaccedilatildeo

musical contemporacircnea em alguma dessas trecircs tendecircncias gerais mas ao

contraacuterio procurar entender essas manifestaccedilotildees no sentido dos valores que podem

estar impliacutecitos ou expliacutecitos latentes ou manifestos conscientes ou inconscientes

nas diferentes produccedilotildees da muacutesica atual

Antes de iniciar a elaboraccedilatildeo sobre cada uma dessas tendecircncias eacute

necessaacuterio esclarecer algo da terminologia que seraacute empregada ao longo deste

ensaio

4 A organizaccedilatildeo adotada aqui leva em consideraccedilatildeo alguns princiacutepios elaborados por Ramaut-Chevassus (1998) o que natildeo significa poreacutem que se permanece no escopo de suas proposiccedilotildees

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Em primeiro lugar quando se fala de lsquomuacutesica contemporacircnearsquo neste texto se

estaacute abordando uma parcela da totalidade da muacutesica produzida atualmente que eacute a

assim chamada lsquomuacutesica eruditarsquo aquela produzida por muacutesicos que se dedicam ao

estudo da Teoria Musical agrave Histoacuteria da Muacutesica e agrave colocaccedilatildeo e soluccedilatildeo de

problemas teacutecnicos esteacuteticos ou relativos aos vaacuterios niacuteveis de significaccedilatildeo que

podem estar engendrados no fazer musical Isso significa que este ensaio se dedica

agravequelas manifestaccedilotildees musicais em que o foco principal estaacute na reflexatildeo sobre

problemas relativos agrave muacutesica como arte portadora de significados e suas

implicaccedilotildees culturais e natildeo se apresentam apenas como reaccedilatildeo imediata ao meio

circundante5

Uma diferenciaccedilatildeo importante para as discussotildees que se seguem diz

respeito aos termos lsquoModernidadersquo e lsquoModernismorsquo

No contexto deste ensaio entende-se por Modernidade o grande periacuteodo

histoacuterico da cultura ocidental que sobreveio apoacutes a quebra da hegemonia da Igreja

Catoacutelica Romana em meados do seacuteculo XV isto eacute a partir do Renascimento Este eacute

um periacuteodo marcado por transformaccedilotildees em todos os campos e atividades

humanas que influenciaram profundamente o fazer musical em todos os seus

aspectos No acircmbito da sistematizaccedilatildeo da muacutesica europeia o antigo Sistema Modal

medieval com sua diversidade de modos foi cedendo lugar agraves novas organizaccedilotildees

com base na dualidade de modos do Sistema Tonal Os princiacutepios do contraponto

vatildeo-se tornando menos importantes ateacute que em meados do seacuteculo XVIII a

harmonia passa a ser o principal meacutetodo de organizaccedilatildeo musical Nessa eacutepoca a

Teoria dos Afetos jaacute estava plenamente elaborada para sua aplicabilidade na muacutesica

de cena na oacutepera e no oratoacuterio

Na segunda metade do seacuteculo XVIII o Sistema Tonal estaacute completamente

organizado com possibilidade de modulaccedilatildeo para todas as tonalidades e o emprego

de cromatismo em qualquer segmento independente da escala de base atraveacutes do

temperamento igual Nos seacuteculos XVIII e XIX as diversas teorias de explicaccedilatildeo da

5 Isso natildeo significa qualquer preferecircncia do ponto de vista valorativo por esta ou aquela manifestaccedilatildeo musical mas apenas que as consideraccedilotildees sobre a muacutesica contemporacircnea apresentadas neste ensaio satildeo relativas agrave parcela da muacutesica atual comumente denominada lsquomuacutesica eruditarsquo

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realidade satildeo aproveitadas pelos muacutesicos com a intenccedilatildeo de compreender e

justificar suas escolhas Essa reflexatildeo sobre a proacutepria produccedilatildeo leva os

compositores agrave procura de originalidade na busca da lsquofantasia criadorarsquo e de novos

significados emocionais que se desenvolvem no Romantismo e desembocam nas

vaacuterias correntes modernistas do seacuteculo XX

O Modernismo equivale a todos aqueles movimentos de ruptura com a

tradiccedilatildeo6 oitocentista que se desenvolveram ao longo da primeira metade do seacuteculo

XX tendo seu marco inicial geralmente fixado no Impressionismo francecircs das

uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX No campo musical esse Modernismo eacute marcado

pela negaccedilatildeo do Sistema Tonal Negaccedilatildeo essa que se manifestou em vaacuterias

direccedilotildees pois se na muacutesica de Debussy e Ravel que estatildeo entre os primeiros a

romper com a tonalidade tradicional foram incorporados processos percebidos na

escuta de muacutesica do Extremo Oriente em especial a orquestra de gamelatildeo balinesa

Stravinsky e Bartoacutek entre outros aproveitaram elementos folcloacutericos do Leste

Europeu e juntamente com Milhaud desenvolveram a politonalidade em que vaacuterias

escalas satildeo sobrepostas com a intenccedilatildeo de obscurecer a funcionalidade tonal7

Se os compositores latinos e eslavos (como diria Schoenberg) buscavam a

superaccedilatildeo do Tonalismo oitocentista atraveacutes da incorporaccedilatildeo de processos e

materiais sonoros aproveitados de culturas extraeuropeias no meio musical

germacircnico e mais especificamente no acircmbito da Segunda Escola de Viena sob a

lideranccedila de Arnold Schoenberg (1874-1951) os jovens muacutesicos estavam

conduzindo as possibilidades cromaacuteticas ao extremo atraveacutes do Atonalismo desde

os primeiros anos do seacuteculo XX e do Dodecafonismo a partir da deacutecada de 1920

Esta muacutesica mais densa psicologicamente e considerada como sendo mais

6 Note-se que a noccedilatildeo de lsquoruptura com a tradiccedilatildeorsquo atraveacutes da lsquonova artersquo (Philippe de Vitry 1322) com a criaccedilatildeo de lsquonovas muacutesicasrsquo (Giulio Caccini 1601) com a concepccedilatildeo de um lsquoestilo modernorsquo que aporta em uma lsquosegunda praacuteticarsquo (Monteverdi 1605) natildeo eacute caracteriacutestica apenas do Modernismo mas da Modernidade como um todo 7 Eacute interessante notar que Darius Milhaud (1892-1974) considerado como um dos primeiros a empregar teacutecnicas politonais nas duas suiacutetes para piano intituladas Saudades do Brasil (com o tiacutetulo original em portuguecircs) de 1920 e 1921 certamente aproveitou esse recurso a partir da sua experiecircncia com o compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920) com quem conviveu no Rio de Janeiro na eacutepoca em que este foi diretor da Escola Nacional de Muacutesica Nepomuceno jaacute havia escrito em 1902 suas Variations sur un thegraveme original Op 29 (com o tiacutetulo em francecircs) onde empregou explicitamente sobreposiccedilatildeo de tonalidades inclusive com diferentes armaduras de clave

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complexa e de difiacutecil assimilaccedilatildeo foi o ponto de partida para grande parte das

experiecircncias das vanguardas tardias (1950-1970) em que se elaboraram e

aprofundaram inuacutemeras teacutecnicas e processos de organizaccedilatildeo musical com base em

seacuteries de alturas seacuteries de duraccedilotildees seacuteries de timbres etc chegando ao que se

chamou de Serialismo Integral no qual todos os paracircmetros da composiccedilatildeo seriam

serializados Ateacute mesmo Stravinsky principal antiacutepoda de Schoenberg chegou a

praticar teacutecnicas seriais Entre os principais compositores dessa geraccedilatildeo que

comeccedilou a aparecer apoacutes a Segunda Guerra nos festivais de muacutesica nova de

Darmstadt estatildeo Pierre Boulez (1925) Luciano Berio (1925-2003) e Karlheinz

Stockhausen (1928)

No final da deacutecada de 1950 houve entre os compositores que participavam

dos movimentos de vanguarda diversas reaccedilotildees agrave extrema racionalizaccedilatildeo dos

processos de composiccedilatildeo empregados pelos serialistas do grupo de Darmstadt As

mais difundidas foram as diferentes espeacutecies de muacutesica aleatoacuteria certamente

influenciadas por John Cage (1912-1992) Tambeacutem entre os compositores mais

jovens se desenvolveram novas praacuteticas com base nas relaccedilotildees mais rudimentares

entre os sons ou a partir da organizaccedilatildeo espectral da seacuterie harmocircnica Muacutesicos do

Leste Europeu como o polonecircs Krzysztof Penderecki (1933) ou o huacutengaro Gyorgy

Ligeti (1923) seguiram caminhos completamente independentes com relaccedilatildeo agrave

corrente dominante da Europa Ocidental Tambeacutem nos Estados Unidos houve

reaccedilatildeo agraves praacuteticas dos serialistas atraveacutes do Minimalismo de compositores como

Terry Riley (1935) Steve Reich (1936) e Philip Glass (1937) Pode-se considerar o

Minimalismo puro como o uacuteltimo dos movimentos modernistas no sentido de buscar

a ruptura com a tradiccedilatildeo ou com as praacuteticas das geraccedilotildees anteriores

O que caracteriza esses movimentos modernos apesar de sua diversidade eacute

a busca de hegemonia de cada um deles Por essa razatildeo o Modernismo se

caracteriza pelo lsquomanifestorsquo em que satildeo apresentados os valores da nova arte e se

explicitam em que sentido essa arte eacute nova de que maneira ela se diferencia das

outras e como pode ultrapassaacute-las Assim cada novo trabalho produzido pelo artista

moderno tem o caraacuteter de um programa com a exposiccedilatildeo de suas intenccedilotildees e

projetos em que satildeo apresentados os novos recursos descobertos por ele e seus

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colegas Haacute dessa maneira a crenccedila em uma progressividade determinada da

cultura em que se percebe a Histoacuteria de forma diacrocircnica como um processo

evolutivo contiacutenuo em que cada nova geraccedilatildeo deve acrescentar algo agraves conquistas

das geraccedilotildees anteriores para estar agrave sua altura e se diferenciar delas

Como o que pode ser quantificado na arte satildeo os materiais empregados e as

teacutecnicas com que esses materiais satildeo manipulados desenvolveram-se em grande

parte valores tecnicistas predominantes entre os movimentos de vanguarda em que

o importante seria a descoberta ou a criaccedilatildeo de novas teacutecnicas e o emprego de

novos recursos acuacutesticos Nesse sentido a lsquoexpressatildeo de conteuacutedosrsquo foi relegada a

um segundo plano quando natildeo passou a ser tomada como um resiacuteduo indesejaacutevel

de valores do Romantismo oitocentista Esse preceito pode ser exemplificado com a

conhecida afirmaccedilatildeo de Stravinsky ldquoinspiraccedilatildeo arte artista satildeo termos no miacutenimo

obscuros que nos impedem de ver claramente um campo onde tudo eacute equiliacutebrio

caacutelculo onde o que se passa eacute o sopro do espiacuterito especulativordquo

(STRAVINSKY 1986 p 54)

Cada grupo ou movimento artiacutestico buscava desenvolver seu proacuteprio sistema

de organizaccedilatildeo sonora seus proacuteprios meacutetodos de elaboraccedilatildeo musical e se

esforccedilava por descobrir novos materiais e recursos acuacutesticos que o posicionassem agrave

frente de seus concorrentes Havia por exemplo grande rivalidade entre a Escola

de Viena e os muacutesicos atuantes em Paris Schoenberg chegou a afirmar em seu

ensaio Muacutesica Nacional de 1931 que ldquoningueacutem ainda se deu conta que minha

muacutesica nascida em solo germacircnico livre de influecircncias estrangeiras eacute o exemplo

vivo de uma arte efetivamente capaz de se opor agraves esperanccedilas latinas e eslavas de

hegemonia porque se trata de uma arte essencialmente derivada das tradiccedilotildees da

muacutesica germacircnicardquo (SCHOENBERG 1975 p 173)

A noccedilatildeo da rivalidade entre franceses e germacircnicos no periacuteodo entre

guerras pode ser apreendida com a citaccedilatildeo do texto mais influente no meio musical

francecircs da deacutecada de 1920 O Galo e o Arlequim escrito por Jean Cocteau em

1918

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Schoenberg eacute um mestre todos os nossos muacutesicos e Stravinsky lhe devem algo mas Schoenberg eacute sobretudo um muacutesico de quadro negro Soacutecrates dizia lsquoQuem eacute este homem que come patildeo como se fosse a boa carne e a boa carne como se fosse patildeorsquo Resposta o melocircmano alematildeo (COCTEAU 1995 p 433-434)

Essas citaccedilotildees podem dar alguma noccedilatildeo do que eram os confrontos entre os

grupos modernistas na primeira metade do seacuteculo XX Os principais representantes

desses debates podem ser facilmente agrupados entre os partidaacuterios do

Neoclassicismo franco-russo que tinham em Stravinsky e no Grupo dos Seis seus

expoentes mais destacados e o Expressionismo germacircnico do qual os participantes

da Segunda Escola de Viena eram os principais portadores de conceitos e valores

Naturalmente houve grande nuacutemero de muacutesicos independentes poreacutem estes

geralmente se localizavam fora da Europa Ocidental Entre eles podem-se citar Bela

Bartoacutek (1881-1945) na Hungria Charles Ives (1874-1954) nos Estados Unidos

Carlos Chaacutevez (1899-1978) no Meacutexico Heitor Villa-Lobos (1887-1959) no Brasil e

Alberto Ginastera (1916-1983) na Argentina

21 Continuidade da Modernidade

As tendecircncias da muacutesica contemporacircnea em que a principal caracteriacutestica se

pode encontrar na busca de afirmaccedilatildeo dos pressupostos da Modernidade isto eacute em

que o artista percebe o fluxo histoacuterico de maneira contiacutenua e procura acrescentar

algo de original a ele satildeo aquelas que se desenvolveram a partir das vanguardas

tardias das deacutecadas de 1950 e 1960

Esses compositores que se alinham aos valores da poacutes-vanguarda podem

ser identificados entre aqueles que empregam processos derivados da muacutesica

atonal e serial que organizam suas estruturas sonoras com base em referecircncias

matemaacuteticas (com o emprego de algoritmos ou com base em estruturas

estocaacutesticas entre outras) e que desenvolveram suas investigaccedilotildees a partir da

muacutesica espectral do dececircnio de 1970 Haacute tambeacutem aqueles muacutesicos que se

dedicam agrave pesquisa na aacuterea de muacutesica e tecnologia a partir das experiecircncias da

muacutesica concreta da muacutesica eletrocircnica e eletroacuacutestica e podem ser alinhados no

escopo das tendecircncias de poacutes-vanguarda da muacutesica contemporacircnea O compositor

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Michel Chion (1947) tem empregado a expressatildeo lsquomuacutesica acusmaacuteticarsquo para designar

certos experimentos que se desdobraram a partir da muacutesica concreta

Com o intuito de ultrapassar cada fase histoacuterica com base em descobertas

originais esses compositores tecircm em geral como sua principal referecircncia a

superaccedilatildeo dos sistemas totalizantes que definiram os caminhos da Modernidade

Isso significa que mesmo aqueles que se dedicam agrave organizaccedilatildeo do material

acuacutestico com base em estruturas sistemaacuteticas natildeo se definem por uma via uacutenica de

estruturaccedilatildeo sonora ou seja natildeo seguem um princiacutepio sistecircmico uacutenico mas se

abrem para outras possibilidades conforme os elementos musicais se apresentam agrave

sua percepccedilatildeo pois muitos desses muacutesicos estatildeo abertos agrave casualidade mesmo

quando organizam seu trabalho a partir de processos racionais intriacutensecos ou com

base em caacutelculos predeterminados Nesse sentido a poacutes-vanguarda se diferencia

das vanguardas do poacutes-guerra para as quais qualquer intromissatildeo da percepccedilatildeo

imediata no processo compositivo significava ceder espaccedilo agrave subjetividade e

consequentemente aos valores liacutericos do Romantismo oitocentista

Muitos compositores atuais assumem uma atitude renovada com relaccedilatildeo ao

material sonoro pois mesmo aqueles que mais se esforccedilam em manter criteacuterios

quantitativos com preferecircncia por estruturas abstratas distanciadas das

experiecircncias cotidianas demonstram interesse pela pluralidade que qualquer

estrutura sonora traz em si Entendem com isso que os criteacuterios de valoraccedilatildeo de

qualquer produccedilatildeo dependem dos contextos especiacuteficos em que ocorrem e que natildeo

se podem definir antecipadamente quais os caminhos por que deve seguir

determinado conteuacutedo musical Esse entendimento conduz a outro terreno de

ordem mais esteacutetica do que teacutecnica que eacute a abertura para manifestaccedilotildees culturais

diferenciadas Enquanto um muacutesico de vanguarda da geraccedilatildeo de Boulez por

exemplo somente encontra valor em realizaccedilotildees que se assemelham agraves suas ou se

encontram no mesmo campo de atuaccedilatildeo um muacutesico de geraccedilatildeo posterior tem a

capacidade de reconhecer valor em algo que ele proacuteprio natildeo faria porque percebe

que satildeo impulsos criteacuterios e o gosto pessoal que estatildeo em causa entende que os

valores satildeo relativos ao contexto em que ocorrem e fora desse contexto podem

perder seu significado

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Haacute outros muacutesicos que seguem a tendecircncia de se mover no acircmbito dos

valores modernos poreacutem se diferenciam daqueles comentados acima por

desdenharem da lsquohierarquia de gostosrsquo do meio musical isto eacute fazem a leitura das

muacutesicas atuais sem hierarquizar os diversos tipos de manifestaccedilatildeo cultural Esses

muacutesicos percebem como sendo equivalentes do ponto de vista valorativo as

abordagens loacutegicas ou abstratas em comparaccedilatildeo agravequelas centradas na absorccedilatildeo do

mundo cotidiano eles procuram estreitar os elos que ligam as diferentes formas de

manifestaccedilatildeo musical atuais Entre as teacutecnicas de estruturaccedilatildeo musical mais usuais

nesta linha de atuaccedilatildeo do campo musical estatildeo a apropriaccedilatildeo a citaccedilatildeo a alusatildeo e

a colagem

Com base no princiacutepio da apropriaccedilatildeo de elementos oriundos de qualquer

muacutesica para a conformaccedilatildeo de uma nova estrutura sonora os materiais podem ser

apropriados de seu contexto original sob diferentes aspectos O compositor russo

Alfred Schnittke (1934-1998) um dos fundadores dessa tendecircncia de assimilaccedilatildeo de

diversos tipos de manifestaccedilatildeo cultural diferencia citaccedilatildeo e alusatildeo da seguinte

maneira a citaccedilatildeo consiste na apropriaccedilatildeo direta de um fragmento musical para a

composiccedilatildeo de uma nova muacutesica isto eacute se cita literalmente uma linha meloacutedica

uma sequecircncia riacutetmica ou um encadeamento harmocircnico de modo a tornaacute-lo

reconheciacutevel ao passo que a alusatildeo consiste em somente sugerir a lsquomaneirarsquo de

outro muacutesico ou escola atraveacutes de um fragmento musical escrito pelo proacuteprio

compositor ldquoO princiacutepio de alusatildeo se manifesta por evocaccedilotildees sutis e natildeo por

anuacutencios expliacutecitos proacuteximos de citaccedilotildees sem realmente o serem Esse princiacutepio se

opotildee agrave classificaccedilatildeordquo (SCHNITTKE 1998 p 29) Assim faz-se alusatildeo sem citar

literalmente o modelo original

A teacutecnica da colagem que surgiu na pintura cubista e foi amplamente

utilizada pelos escritores surrealistas pelos dadaiacutestas e pelos muacutesicos franceses do

Grupo dos Seis eacute uma das principais teacutecnicas de elaboraccedilatildeo musical empregadas a

partir da apropriaccedilatildeo de materiais heterogecircneos esparsos ao longo de determinada

obra A colagem consiste na justaposiccedilatildeo ou na sobreposiccedilatildeo de elementos com

origens distintas e produz um resultado almejado por vaacuterios muacutesicos nos uacuteltimos

anos que eacute a produccedilatildeo de texturas sonoras heterofocircnicas nas quais se tem a niacutetida

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sensaccedilatildeo de estar escutando diversas muacutesicas simultaneamente Eacute interessante

notar que essa teacutecnica jaacute era empregada por Charles Ives desde o iniacutecio do seacuteculo

XX Sua Unanswered Question (1906) jaacute opunha trecircs ideias musicais distintas sem

que se produzisse qualquer tipo de interaccedilatildeo entre elas

Esses procedimentos e teacutecnicas de apropriaccedilatildeo citaccedilatildeo alusatildeo e colagem

podem ser agrupados em um conceito geral denominado por Schnittke de

lsquopoliestiliacutesticarsquo Para este compositor

[] apesar de todas as dificuldades e todos os perigos que encerram a poliestiliacutestica seus benefiacutecios indiscutiacuteveis jaacute satildeo evidentes Estes residem no alargamento da expressatildeo musical em uma maior facilidade para integrar os estilos lsquonobresrsquo e os estilos lsquocomunsrsquo os estilos lsquobanaisrsquo e os estilos lsquorefinadosrsquo ou em uma palavra em um universo alargado e em uma democratizaccedilatildeo de estilos A realidade musical pode ser objetivada de forma documental pois natildeo aparece unicamente como o reflexo do indiviacuteduo mas tambeacutem atraveacutes das citaccedilotildees [] Na realidade seria difiacutecil encontrar outra teacutecnica musical que fosse tatildeo bem adaptada quanto a poliestiliacutestica agrave expressatildeo da ideacuteia filosoacutefica de continuidade (SCHNITTKE 1989 p 134)

Com essas reflexotildees Schnittke aponta para a pluralidade como criteacuterio de

valoraccedilatildeo da arte e elimina a busca de hegemonia de uma tendecircncia sobre as

outras como sendo um princiacutepio esteacutetico vaacutelido Nota-se inclusive a ironia de

Schnittke com relaccedilatildeo aos conceitos tradicionais de lsquoestilos nobresrsquo ou lsquoestilos

banaisrsquo Essa espeacutecie de hierarquizaccedilatildeo vem de longa data pois jaacute na eacutepoca de

Mozart se diferenciavam o lsquoestilo elevadorsquo de caraacuteter afirmativo e enfaacutetico digno de

representar a nobreza e os sentimentos nobres o lsquoestilo meacutediorsquo mais ingecircnuo e

leve sobre o qual se dizia que ldquodeve agradar ao ouvinte sem excitaacute-lo ou levaacute-lo agrave

reflexatildeordquo e o lsquoestilo baixorsquo considerado ruacutestico e simples poderia aparecer na forma

de danccedilas populares e era proacuteprio para a representaccedilatildeo de camponeses e das

classes sociais inferiores (cf RATNER 1980 p 9) O que Schnittke estaacute fazendo eacute

uma criacutetica agraves categorizaccedilotildees riacutegidas dos estilos musicais com base em

preconceitos sociais No uacuteltimo movimento de sua Sonata para Violino e Orquestra

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de Cacircmara Op 508 (1968) um longo segmento eacute elaborado com base na citaccedilatildeo de

trechos de Vivaldi combinados com a melodia da canccedilatildeo La Cucaracha9

O resultado dessas teacutecnicas de apropriaccedilatildeo e colagem eacute uma espeacutecie de

hibridismo estiliacutestico em que eacute abolido o preceito da unidade de estilo conforme foi

preconizado pelo teoacuterico tcheco Eduard Hanslick em meados do seacuteculo XIX e se

manteve como valor intocaacutevel ateacute a deacutecada de 1970 Hanslick chegou ao ponto de

afirmar que se deveria ldquodizer lsquotal compositor tem estilorsquo com o mesmo sentido que

quando se diz de algueacutem lsquoele tem caraacuteterrsquordquo (HANSLICK 1989 p 96) Naturalmente

essa definiccedilatildeo quase moralizante do conceito de estilo natildeo se sustenta atualmente

ateacute porque apoacutes o decliacutenio dos metadiscursos e dos grandes sistemas de

explicaccedilatildeo da realidade natildeo se justifica a aplicaccedilatildeo de um criteacuterio uacutenico de caraacuteter

universal para a avaliaccedilatildeo da produccedilatildeo cultural Cada nova peccedila musical cada

nova criaccedilatildeo no campo da arte traz em si a chave para a sua compreensatildeo e com

isso carrega tambeacutem os criteacuterios para sua avaliaccedilatildeo Eacute faacutecil demonstrar o equiacutevoco

de um criacutetico de muacutesica quando ao escutar uma peccedila atonal reclama da falta de

um centro tonal definido no qual possa apoiar sua audiccedilatildeo poder-se-ia responder a

outro criacutetico que considerasse aborrecida a estrutura da arte minimalista da mesma

forma que John Walker ldquoo aborrecimento eacute presumivelmente apenas uma emoccedilatildeo

tatildeo legiacutetima para a arte como qualquer outrardquo (WALKER 1977 p 27) Parece ser

igualmente simples perceber que procurar unidade de estilo na obra de um

compositor que como Schnittke professa a diversidade estiliacutestica estaacute fora de

cogitaccedilatildeo

Em um sentido geral nessa linha da produccedilatildeo contemporacircnea em que os

valores esteacuteticos seguem com base na continuidade das caracteriacutesticas inerentes da

Modernidade permanece importando em primeiro plano o processo criativo O que

significa que o resultado segue sendo uma arte centrada no fazer fundamentada na

poiacuteēsis acima de qualquer outro criteacuterio valorativo Isso significa que seus

fundamentos permanecem focalizados no indiviacuteduo criador que se coloca

8 Esta peccedila eacute uma transcriccedilatildeo da Sonata nordm 1 Op 30 (1963) para violino e piano 9 Eacute interessante notar que o proacuteprio Mozart jaacute fazia colagens com alusotildees ao estilo elevado e ao estilo baixo em suas oacuteperas Don Giovanni e Bodas de Fiacutegaro que causaram polecircmica em algumas cidades europeias devido ao seu conteuacutedo que subvertia os valores sociais da eacutepoca

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livremente como um inventor de novas sonoridades novas combinaccedilotildees acuacutesticas

novas teacutecnicas novos materiais e novos processos de elaboraccedilatildeo musical

22 Retorno agrave Tradiccedilatildeo

Ao contraacuterio da acepccedilatildeo anterior os muacutesicos que se colocam de maneira

favoraacutevel com relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo tecircm sua fundamentaccedilatildeo na criacutetica ao Historicismo

Assim questionam a crenccedila de que as transformaccedilotildees histoacutericas satildeo o resultado de

princiacutepios universais tatildeo objetivos quanto as leis da Fiacutesica ou das Ciecircncias Naturais

e que eacute necessaacuterio descobrir quais satildeo esses princiacutepios para operar sobre eles10 Os

muacutesicos que se alinham agraves tendecircncias de retorno agrave tradiccedilatildeo fazem criacutetica a essa

concepccedilatildeo unidirecional da Histoacuteria e creem na possibilidade de sobreposiccedilatildeo das

diversas produccedilotildees musicais do passado e do presente o que significa que esses

muacutesicos estatildeo dispostos a retomar experiecircncias anteriores de qualquer eacutepoca ou

lugar ou evocar essas experiecircncias a partir de novos pontos de vista com o intuito

de atualizaacute-las em um momento especiacutefico da contemporaneidade

(Com relaccedilatildeo a essa discussatildeo os muacutesicos que se aplicam agrave continuidade da

Modernidade operam em grande parte com aquele princiacutepio historicista poreacutem jaacute

compreendido em contextos especiacuteficos e natildeo mais universais Nesta acepccedilatildeo da

muacutesica contemporacircnea ainda se tem a Histoacuteria como a dimensatildeo mais abrangente

para a explicaccedilatildeo da realidade e das transformaccedilotildees sociais e culturais A diferenccedila

com relaccedilatildeo agraves explicaccedilotildees modernas estaacute em que a dimensatildeo histoacuterica eacute

compreendida a partir de um ou outro ponto de vista isto eacute busca-se contextualizar

e relativizar os princiacutepios histoacutericos mesmo que esses princiacutepios ainda sejam

considerados como a melhor via de explicaccedilatildeo das transformaccedilotildees sociais poliacuteticas

econocircmicas ou culturais)

Entendido dessa maneira percebe-se que com relaccedilatildeo agrave ldquoideia filosoacutefica de

continuidaderdquo (para retomar agrave expressatildeo de Schnittke citada anteriormente)

aqueles muacutesicos que se colocam na posiccedilatildeo de lsquoretorno agrave tradiccedilatildeorsquo assumem uma

10 No acircmbito especiacutefico da muacutesica isso significaria a existecircncia de um direcionamento uniacutevoco dos fatos musicais atraveacutes da Histoacuteria e que a tarefa do muacutesico seria encontrar os princiacutepios que regem esse fluir contiacutenuo para criar a partir deles e transcendecirc-los

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postura necessariamente antagocircnica a qualquer espeacutecie de Historicismo mesmo

contextual ou relativo Com isso tem-se uma antinomia existente entre os dois

pontos de vista pois se para aqueles que pretendem dar continuidade aos valores

da Modernidade a tradiccedilatildeo deve ser investigada para ser ultrapassada no sentido

de que o artista deve dar continuidade agraves transformaccedilotildees histoacutericas para estar agrave

altura de seu tempo para aqueles que defendem o retorno ao passado a tradiccedilatildeo

deve ser compreendida para servir de suporte agrave criaccedilatildeo da nova muacutesica que natildeo

tem necessariamente que ultrapassaacute-la mas operar com ela

A atitude mais saliente na acepccedilatildeo da muacutesica atual de lsquoretorno agrave tradiccedilatildeorsquo eacute

a busca de valores e elementos estiliacutesticos do passado com o sentido de aproveitaacute-

los em estruturas musicais homogecircneas Essa caracteriacutestica distingue esse grupo

de valores de retorno ao passado dos outros dois grupos (lsquocontinuidade da

Modernidadersquo e lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo) para os quais as possibilidades de

aproveitamento de elementos diacutespares se daacute atraveacutes da fragmentaccedilatildeo e da colagem

heterofocircnica Com isso tem-se outro aspecto diferencial na relaccedilatildeo entre as

acepccedilotildees da muacutesica atual pois se por um lado aqueles que pretendem ultrapassar

a tradiccedilatildeo operam sobre um princiacutepio de continuidade histoacuterica que deve ser

reconhecido e ampliado por outro lado esses mesmos muacutesicos propotildeem a

descontinuidade e a fragmentaccedilatildeo da estrutura musical per se quando se trata de

cada peccedila de muacutesica em particular pois compreendem que estruturas sonoras

contiacutenuas jaacute estariam ultrapassadas por fazerem recuar agraves caracteriacutesticas mais

proeminentes da muacutesica tonal ou seja agraves praacuteticas musicais do seacuteculo XVIII e XIX

cujas possibilidades de discursividade e narratividade jaacute estariam esgotadas

Ao contraacuterio os muacutesicos que professam o retorno agrave tradiccedilatildeo por serem

criacuteticos com relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo diacrocircnica da Histoacuteria geralmente argumentam

em favor da retomada de estruturas musicais contiacutenuas por entenderem que os

processos de fragmentaccedilatildeo operados pelas vanguardas jaacute foram exauridos ao

extremo e portanto esvaziados Assim ao defenderem concepccedilotildees sincrocircnicas dos

fatos histoacutericos segundo as quais se pode ter uma percepccedilatildeo de ldquotudo ao mesmo

tempo agorardquo se sentem agrave vontade para sobrepor os meacutetodos de elaboraccedilatildeo

musical do Classicismo ou do Romantismo aos seus anseios de iacutendole

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eminentemente contemporacircnea Tem-se assim outra constataccedilatildeo que

complementa aquela do paraacutegrafo anterior os muacutesicos que se alinham aos

princiacutepios de retorno agrave tradiccedilatildeo propotildeem uma leitura sincrocircnica e portanto

descontiacutenua da Histoacuteria poreacutem a estrutura musical resultante da elaboraccedilatildeo de cada

peccedila particular se torna contiacutenua pelo resgate de processos discursivos e narrativos

em suas composiccedilotildees

Essas praacuteticas de retorno ao passado muitas vezes satildeo professadas sem a

definiccedilatildeo de eacutepoca ou regiatildeo especiacutefica mas se abrem agrave possibilidade de passar

por diferentes pontos geograacuteficos mais ou menos remotos e por diferentes periacuteodos

da Histoacuteria sem que isso signifique a perda da coesatildeo estiliacutestica (a identidade

estiliacutestica se torna novamente importante apesar de natildeo ser mais um princiacutepio

esteacutetico inflexiacutevel) De qualquer forma mesmo com uma concepccedilatildeo sincrocircnica da

Histoacuteria eacute comum que muitos desses muacutesicos se fixem em algum ponto do tempo

ou do espaccedilo para a criaccedilatildeo de uma peccedila ou de um conjunto de obras Outra

caracteriacutestica bastante comum entre os muacutesicos que se esforccedilam em retomar

aspectos da tradiccedilatildeo eacute o fato de centrarem seus esforccedilos na investigaccedilatildeo da muacutesica

europeia Isso natildeo significa que natildeo existem estudos sobre a muacutesica de outras

culturas sendo que os processos musicais extraeuropeus mais estudados satildeo o

sistema de ragas da muacutesica indiana e a estrutura riacutetmica aditiva da muacutesica africana

e oriental Um bom exemplo nesse sentido eacute a temporada que Steve Reich passou

em Gana em 1970 periacuteodo em que estudou sob a orientaccedilatildeo de um percussionista

jeje no Instituto de Estudos Africanos experiecircncia que lhe permitiu acrescentar

processos riacutetmicos aditivos e subtrativos agrave sua muacutesica ampliando as possibilidades

das suas primeiras experiecircncias minimalistas

Devido agrave inclinaccedilatildeo para aproveitar caracteriacutesticas da muacutesica do passado

vaacuterios muacutesicos tecircm sido criticados como portadores de uma postura conservadora

Michel Faure um criacutetico severo do Neoclassicismo francecircs do entre guerras por

consideraacute-lo um estilo ldquosocialmente concordataacuteriordquo e de ldquoafirmaccedilatildeo nacionalistardquo

considera ser essa atitude de retorno ao passado existente na muacutesica

contemporacircnea uma espeacutecie de reediccedilatildeo do Neoclassicismo histoacuterico Para o autor

ldquoos neoclaacutessicos natildeo satildeo jamais considerados como reacionaacuterios ndash assim como os

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poacutes-modernos natildeo aceitam a pecha de passadistas [] Os empreacutestimos que eles

fazem frequentemente lsquodescontextualizamrsquo os fragmentos aos quais fazem

referecircnciardquo (FAURE 1998 p 78) Bem ressurge aqui o mesmo problema da criacutetica

mal direcionada jaacute mencionado anteriormente Se a intenccedilatildeo desses muacutesicos eacute

recuperar processos tradicionais se buscam criar uma espeacutecie de representaccedilatildeo da

multiplicidade cultural da contemporaneidade atraveacutes da apropriaccedilatildeo do legado

histoacuterico nada mais adequado do que a descontextualizaccedilatildeo dos materiais

empregados de sua lsquohistoricidadersquo original e sua adequaccedilatildeo agrave nova situaccedilatildeo em que

esses elementos se encontram Percebe-se na criacutetica de Faure preceitos de

continuidade e pureza histoacuterica que natildeo se adeacutequam aos neoclaacutessicos nem aos poacutes-

modernos pois ambos subvertem os coacutedigos que servem de premissa agrave sua criacutetica

Um dos arautos da nova muacutesica Boudewijn Buckinx apresenta um exemplo

muito comum de retomada da tradiccedilatildeo ao afirmar que o compositor atual ldquonatildeo

escreve tatildeo-somente um concerto grosso Ele escolhe uma possibilidade ndash o

concerto grosso ndash entre diversas Portanto natildeo eacute propriamente um concerto grosso

mas uma peccedila que toma o concerto grosso por sujeitordquo (BUCKINX 1998 p 60-61)

Poder-se-ia dizer tomando de empreacutestimo as palavras de Wolfgang Rihm que se

trata de uma ldquomuacutesica sobre a muacutesicardquo ou em alguns casos de muacutesica sobre

muacutesicas Se assim for a criacutetica de Faure se esvazia pois existe uma tecircnue diferenccedila

entre permanecer em determinado estado de coisas sem se aventurar a outros e

voltar a esse estado quando se tem interesse em recorrer a ele Esta eacute a divergecircncia

existente entre o conservadorismo preacute-moderno mencionado anteriormente e a

tendecircncia contemporacircnea de retorno agrave tradiccedilatildeo (distinccedilatildeo que o conservadorismo

modernista parece natildeo ser capaz de perceber) natildeo se estaacute no passado volta-se a

ele quando se o considera adequado

Em vista disso torna-se importante entender como os processos e materiais

tradicionais satildeo reutilizados sob a perspectiva da nova muacutesica para diferenciar a

atitude de retorno agrave tradiccedilatildeo com base em um ponto de vista criacutetico da mera

permanecircncia conservadora de valores convencionais de forma subserviente e sem

nem mesmo compreender o que esses valores podem ter significado em sua

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eacutepoca11 Diferenciar aquilo que foi denominado no iniacutecio deste ensaio como

conservadorismo preacute-moderno da atitude criacutetica com relaccedilatildeo aos pontos de vista

historicistas e evolucionistas da cultura tambeacutem significa distinguir o conhecimento

extensivo da tradiccedilatildeo da simples sujeiccedilatildeo a valores passadistas Um artista que

pesquisa profundamente em sua aacuterea de atuaccedilatildeo natildeo se preocupa em primeiro

plano com a feiccedilatildeo externa dos resultados de suas investigaccedilotildees o que lhe

importam satildeo as possibilidades que suas descobertas podem trazer no plano da

criaccedilatildeo Ao contraacuterio um muacutesico que se apresenta com uma aparecircncia novidadeira

pode estar extremamente apegado agraves convenccedilotildees de determinada linha de

produccedilatildeo e mesmo que essa linha seja muito recente a falta de abertura para

outras aacutereas de investigaccedilatildeo pode mantecirc-lo submisso a convenccedilotildees jaacute assimiladas

por geraccedilotildees passadas mesmo que ele proacuteprio natildeo se aperceba disso Muitas

vezes a aparecircncia de novidade mascara uma seacuterie de valores apegados a

convenccedilotildees riacutegidas que natildeo se sustentariam sob o crivo da criacutetica

A sutil diferenccedila entre o Neotonalismo de um compositor como George

Rochberg (1918) e a imitaccedilatildeo trivial do estilo dos primeiros romacircnticos (sem ir aleacutem

dos procedimentos teacutecnicos) estaacute na atitude com relaccedilatildeo agrave lsquovivecircncia da

simultaneidadersquo Para Rochberg ldquoa esperanccedila da muacutesica contemporacircnea reside em

aprender como reconciliar todas as maneiras de opostos contradiccedilotildees paradoxos o

passado com o presente tonalidade com atonalidade Eacute por isso que em minha

muacutesica mais recente tenho tentado utilizar essas combinaccedilotildees que reafirmam os

valores primordiais da muacutesicardquo (ROCHBERG 2003 p 3) Essa noccedilatildeo da diferenccedila

entre o passado e o presente essa busca de conciliaccedilatildeo dos opostos diverge de um

ponto de vista conservador ou de uma postura epigocircnica pois o epiacutegono apenas

reproduz o passado agrave maneira deste ou daquele mestre ao passo que o artista

criador se apoia em aspectos do passado para produzir um trabalho artiacutestico que

11 Muitas vezes a simplificaccedilatildeo dos meios significa a criaccedilatildeo de algo que pode impulsionar grandes transformaccedilotildees Quando Giulio Caccini (1551-1618) defendia o uso de triacuteades maiores e menores para a elaboraccedilatildeo das nuove musiche de sua eacutepoca estava propalando uma simplificaccedilatildeo da textura musical uma homofonia mundana que se opunha agrave complexidade polifocircnica da muacutesica sacra Essa simplificaccedilatildeo trazia o germe para algumas das grandes conquistas da muacutesica europeia dos trezentos anos seguintes inclusive a criaccedilatildeo de um novo gecircnero musical a oacutepera

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traz algum frescor agrave educaccedilatildeo dos sentidos alguma maneira peculiar de descobrir

ou perceber o mundo

Com a retomada de processos de organizaccedilatildeo modal ou tonal haacute

necessariamente o retorno de melodias claramente definidas a renovaccedilatildeo das

teacutecnicas de contraponto e a ampliaccedilatildeo de estruturas harmocircnicas de caraacuteter

diatocircnico Um dos compositores mais importantes da vanguarda das deacutecadas de

1950 e 1960 Krzysztof Penderecki soube atualizar seu estilo em meados da

deacutecada de 1970 quando passou a combinar estruturas diatocircnicas ampliadas com

base na produccedilatildeo dos grandes sinfonistas da passagem do seacuteculo XIX ao seacuteculo XX

(Gustav Mahler e Richard Strauss entre outros) com os resultados de suas

pesquisas acuacutesticas do periacuteodo vanguardista A consequecircncia eacute uma muacutesica

fortemente dramaacutetica com aspectos que lembram o Romantismo tardio e elementos

da vanguarda da deacutecada de 1960 elaborados de maneira que o resultado se

apresenta como uma muacutesica inusitada que jamais poderia ter sido concebida em

outra eacutepoca ou por outro artista

O legado histoacuterico natildeo eacute mais desprezado ou entendido apenas como um

passado a ser ultrapassado mas ao contraacuterio eacute tambeacutem identificado como uma

fonte inesgotaacutevel de possibilidades teacutecnicas e expressivas que podem ser

reaproveitadas de muitas formas possiacuteveis sem que isso incorra necessariamente

em postura conservadora ou em atitude epigonal Outro compositor que tambeacutem

soube atualizar seus processos compositivos eacute o huacutengaro Gyorgy Ligeti que tem

combinado seus experimentos microtonais e estruturas micropolifocircnicas levados a

cabo nas deacutecadas de 1960 e 1970 com outros meacutetodos de organizaccedilatildeo harmocircnica

engendrados a partir das relaccedilotildees acuacutesticas baacutesicas existentes em seus

conglomerados sonoros Esses processos datildeo vazatildeo agrave existecircncia de linhas

meloacutedicas claramente definidas com caraacuteter modal vigoroso e algumas vezes

fazem alusotildees agrave muacutesica popular e folcloacuterica de sua regiatildeo

Essa atitude com relaccedilatildeo ao passado traz novos modos de entendimento das

culturas tradicionais aleacutem da acomodaccedilatildeo de valores muitas vezes tomados como

contraditoacuterios em estruturas coesas Evidenciam-se natildeo apenas as tradiccedilotildees locais

com relaccedilatildeo agrave proacutepria formaccedilatildeo do indiviacuteduo como tambeacutem outras tradiccedilotildees que se

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buscam atraveacutes de meios natildeo-convencionais Compreende-se que natildeo eacute necessaacuterio

viver as experiecircncias de determinada sociedade para absorver parte de seus valores

ou de sua produccedilatildeo cultural ateacute porque os habitantes das grandes cidades estatildeo

expostos cotidianamente a tantos estiacutemulos advindos de origens distintas que se

criam identidades multiculturais mesmo quando natildeo se tem conhecimento intriacutenseco

de suas propriedades Qualquer cidadatildeo meacutedio atual tem noccedilotildees fundamentais

sobre os haacutebitos de vaacuterios povos originaacuterios de localidades onde nunca esteve A

tecnologia permite ao artista contemporacircneo ter acesso agrave produccedilatildeo de seus pares

de qualquer outra regiatildeo do planeta quase simultaneamente agrave sua criaccedilatildeo e

divulgaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel conhecer aspectos de culturas remotas no tempo

atraveacutes de pesquisas arqueoloacutegicas e sua divulgaccedilatildeo em grande escala nos meios

de comunicaccedilatildeo Isso permite sermos contemporacircneos de outras eacutepocas e

conterracircneos dos povos de outros lugares

23 Superaccedilatildeo do Modernismo

As linhas de atuaccedilatildeo que se opotildeem agrave mentalidade das vanguardas tardias o

fazem por razotildees diversas daquelas que motivam as tendecircncias de retorno agrave

tradiccedilatildeo pois este retorno ao passado geralmente significa um passado visto pela

oacutetica da Modernidade (em geral satildeo leituras atualizadas das tradiccedilotildees do Ocidente

isto eacute das praacuteticas musicais do Renascimento ao Romantismo) Nesse sentido

especiacutefico haacute pontos em comum entre as duas acepccedilotildees abordadas anteriormente

(lsquocontinuidade da Modernidadersquo e lsquoretorno agrave Tradiccedilatildeorsquo) pois seja por dar

continuidade agraves praacuteticas da era moderna atraveacutes de sua ampliaccedilatildeo seja por

resgatar essas praacuteticas com base em novos meios de elaboraccedilatildeo musical a

Modernidade permanece como sendo forte ponto de referecircncia em ambos os casos

Diferentemente aqueles que se colocam com uma postura de lsquosuperaccedilatildeo do

Modernismorsquo geralmente focam seus interesses na ruptura com as tradiccedilotildees

modernistas mais recentes e natildeo na Modernidade como um todo

Aleacutem disso natildeo satildeo apenas as culturas tradicionais que interessam a esta

terceira linhagem mas tambeacutem outros aspectos da cultura contemporacircnea inclusive

a cultura pop e os meios de comunicaccedilatildeo de massa Esses muacutesicos acreditam

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estarem produzindo uma fissura na Modernidade ao se abrirem para toda e qualquer

espeacutecie de produccedilatildeo cultural sem hierarquizaacute-las12 Acreditam portanto que

estamos no iniacutecio de uma nova eacutepoca e natildeo em um periacuteodo de continuidade da

Modernidade ou de retomada dos valores de sua tradiccedilatildeo13

Podem-se esboccedilar algumas imagens geomeacutetricas para representar essas trecircs

formas de pensamento para a primeira acepccedilatildeo da muacutesica contemporacircnea que

professa a lsquocontinuidade da Modernidadersquo o tempo teria a imagem de uma linha reta

que se movimenta em determinado sentido (mesmo que alguns desses artistas

faccedilam criacutetica agrave mentalidade linear a linha parece bem representar o ponto de vista

evolucionista da cultura) para a segunda acepccedilatildeo aquela em que se pratica o

lsquoretorno agrave Tradiccedilatildeorsquo poder-se-ia formular a imagem do tempo em forma circular pois

o ciacuterculo eacute uma figura em que natildeo haacute sentido predeterminado pois se pode iniciar

ou terminar em qualquer ponto da circunferecircncia e se movimentar em sentido

horaacuterio ou anti-horaacuterio para a terceira acepccedilatildeo que propotildee a lsquosuperaccedilatildeo do

Modernismorsquo a imagem de uma esfera parece ser a mais adequada pois natildeo se

estaacute focando o tempo em apenas uma dimensatildeo mas abre-se o leque para toda e

qualquer manifestaccedilatildeo perceptiacutevel atualmente no tempo e no espaccedilo Com isso

tem-se a possibilidade de produzir movimentos de qualquer ponto para qualquer

outro ponto seguindo em qualquer sentido ou direccedilatildeo (para baixopara cima para a

esquerdapara a direita para traacutespara frente) ndash por isso a imagem tridimensional14

12 Note-se que neste aspecto haacute pontos de interseccedilatildeo entre certas tendecircncias de lsquocontinuidade da Modernidadersquo e aquelas que professam a lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo pois o princiacutepio da poliestiliacutestica defendido por Schnittke e outros tambeacutem rompe com a hierarquizaccedilatildeo dos estilos O que diferencia ambos os grupos eacute o enfoque com que cada qual se apropria das diferentes formas de manifestaccedilatildeo cultural 13 Tambeacutem nesse sentido haacute interseccedilatildeo entre as duas acepccedilotildees pois se as tendecircncias de lsquocontinuidade da Modernidadersquo professam a ruptura com a tradiccedilatildeo musical oitocentista as tendecircncias de lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo professam outra ruptura com as tradiccedilotildees novecentistas Em ambos os casos haacute valores centrados no princiacutepio da ruptura mesmo que na primeira acepccedilatildeo esta ruptura faccedila parte de um processo contiacutenuo de superaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e no segundo caso seja entendida como uma fissura nesse processo 14 Este recurso de traccedilar analogias entre a estrutura das mentalidades e figuras geomeacutetricas jaacute foi delineado por Koellreutter (cf KOELLREUTTER 1987 p 29-32) compositor que confeccionou a partitura de sua peccedila Acronon em formato de esfera para representar sua concepccedilatildeo da mentalidade contemporacircnea Para Koellreutter poreacutem essas analogias aparecem com sentido diverso daquele apresentado aqui

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Para aqueles que se posicionam pela superaccedilatildeo do Modernismo as

vanguardas satildeo tidas como sendo formalistas ao extremo por se apoiarem

especificamente em criteacuterios teacutecnicos e formais para efetuarem seus julgamentos

Para entender o alcance dessa criacutetica eacute necessaacuterio adentrar um pouco em

algumas acepccedilotildees do termo lsquoformalismorsquo

Em seu Vocabulaacuterio de Esteacutetica Souriau informa que

[] eacute formalista aquele que daacute grande importacircncia agrave forma ou agraves formas poreacutem o termo forma pode ser tomado em diversos sentidos pode-se dar importacircncia a algo por razotildees de ordens bastante diferentes e enfim o termo formalismo foi frequentemente utilizado de maneira polecircmica mas em conflitos que natildeo eram sempre os mesmos de sorte que a palavra formalismo tem diversos sentidos que natildeo coincidem e cuja confusatildeo pode conduzir a erros graves (SOURIAU 1999 p 758)

Podem-se estabelecer a partir das classificaccedilotildees de Souriau trecircs sentidos

principais aplicados ao formalismo esteacutetico e empregados na criacutetica agraves tendecircncias

vanguardistas O primeiro sentido coincide com a censura a Hanslick criacutetico musical

de orientaccedilatildeo kantiana para quem a beleza esteacutetica seria inerente agrave existecircncia de

uma forma equilibrada e bem proporcionada o segundo sentido tem a ver com a

oposiccedilatildeo entre forma e conteuacutedo e se dirige principalmente agraves tendecircncias

modernistas de caraacuteter anticonteudista para as quais a estrutura eacute mais importante

do que o conteuacutedo representado ndash o que significa que para os criacuteticos atuais do

Modernismo o conteuacutedo ganha nova forccedila no terceiro sentido o termo lsquoformalistarsquo eacute

empregado para censurar as tendecircncias vanguardistas por centrarem suas

investigaccedilotildees em estruturas musicais abstratas criadas aprioristicamente sem levar

em consideraccedilatildeo a observaccedilatildeo do meio social ou cultural o que muitas vezes eacute

entendido como desprezo pela realidade

Em geral essas criacuteticas ao lsquoformalismorsquo das vanguardas surgem como

reaccedilotildees ao posicionamento antagocircnico dos muacutesicos de vanguarda das deacutecadas de

1950 e 1960 com relaccedilatildeo agrave muacutesica com sentido narrativo que necessariamente

traz o conteuacutedo ao primeiro plano e por conseguinte desvia a percepccedilatildeo dos

recursos teacutecnicos dos materiais sonoros e dos processos acuacutesticos envolvidos na

apreciaccedilatildeo musical Essa criacutetica modernista ao conteuacutedo vinha embutida em uma

criacutetica geral ao Romantismo e agrave muacutesica descritiva representada no seacuteculo XIX pelo

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lsquopoema sinfocircnicorsquo e pelas lsquopeccedilas caracteriacutesticasrsquo Ainda hoje em certos meios

musicais eacute comum a restriccedilatildeo agrave muacutesica descritiva em geral

Os muacutesicos vinculados agravequela via que pretende a superaccedilatildeo do Modernismo

ndash que agraves vezes chamam pejorativamente os movimentos de poacutes-vanguarda de

lsquoultramodernosrsquo ou lsquohipermodernosrsquo entendendo-os como o fruto de uma atitude

conservadora (cf BUCKINX 1998 p 22) ndash consideram que o lsquoformalismorsquo

vanguardista afastou o puacuteblico das salas de concerto e buscam novos processos de

comunicabilidade atraveacutes da investigaccedilatildeo mais ou menos sistemaacutetica de processos

narrativos e pela incorporaccedilatildeo da significaccedilatildeo musical direta

Eacute interessante notar a afericcedilatildeo de valor aos termos mencionados acima

lsquoUltramodernismorsquo e lsquoHipermodernismorsquo se essas expressotildees satildeo consideradas

negativamente pelos muacutesicos que professam a superaccedilatildeo do Modernismo satildeo

entendidas com sentido favoraacutevel pelos partidaacuterios da poacutes-vanguarda que

empregam essa terminologia para demonstrar que consideram determinada parcela

da produccedilatildeo atual como sendo extremamente significativa pois se apoiam nos

valores vanguardistas e os ultrapassam

Tem-se tambeacutem outra diferenccedila terminoloacutegica operada por alguns autores

que se faz apenas mudando a ordem dos termos lsquonova muacutesicarsquo e lsquomuacutesica novarsquo

Esta expressatildeo que foi amplamente empregada ao longo das deacutecadas de 1950 e

1960 estaacute ligada agraves tendecircncias vanguardistas e poacutes-vanguardistas No Brasil

houve inclusive um movimento de vanguarda autodenominado lsquoGrupo Muacutesica

Novarsquo que lanccedilou seu manifesto em 1963 com base nos princiacutepios do

Construtivismo e do Concretismo e terminou por influenciar o movimento

tropicalista na muacutesica popular O termo lsquonova muacutesicarsquo surgiu na deacutecada de 1990 na

Europa como contraposiccedilatildeo ao conceito de lsquomuacutesica novarsquo trata-se de muacutesicos que

absorvem diversas influecircncias e atuam em vaacuterias direccedilotildees natildeo pressupondo

qualquer identidade teoacuterica ou estiliacutestica entre si

Mesmo se eles satildeo muito diferentes e se tecircm personalidades e escrituras proacuteprias todos esses compositores se afastaram voluntariamente da corrente atonal da muacutesica contemporacircnea Eles sofreram diferentes influecircncias indo de muacutesicas natildeo-ocidentais ao jazz ao rock agrave muacutesica de variedades internacional passando pelo disco pelo funk ateacute a muacutesica techno e inclusive pelas generalidades de programas televisivos O que eles

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tecircm em comum eacute o fato de escutar o mundo sonoro que os envolve e que eacute o fundo musical de todos noacutes Eles tambeacutem tecircm uma filiaccedilatildeo direta a Stravinsky Eacute por isso que se pode separar a muacutesica lsquoeruditarsquo de hoje em duas grandes correntes A corrente lsquotonalrsquo consonante por opccedilatildeo pulsante e meloacutedica se situando em uma linha mais expressiva geralmente chamada de lsquoNova Muacutesicarsquo A corrente lsquoatonalrsquo caracterizada pela utilizaccedilatildeo quase sistemaacutetica de saltos de registro de assimetria riacutetmica e de dissonacircncias chamada tambeacutem de lsquomuacutesica contemporacircnearsquo (LELONG 1996 p 11)

Um dos movimentos de superaccedilatildeo do Modernismo que se pode colocar

como precursor dessa noccedilatildeo de lsquonova muacutesicarsquo eacute a lsquoNova Simplicidadersquo que teve

seu iniacutecio na deacutecada de 1970 com um grupo de compositores alematildees encabeccedilados

por Walter Zimmermann (1949) e Wolfgang Rihm (1952) Esses muacutesicos defendiam

a liberdade de escrita e a dissoluccedilatildeo do peso da Histoacuteria ndash que na sua opiniatildeo

engessava as praacuteticas vanguardistas ndash e preconizavam a absorccedilatildeo de experiecircncias

subjetivas de toda e qualquer natureza (vivecircncias impulsos emoccedilotildees preferecircncias

etc) que pudessem conduzir agrave produccedilatildeo de novos processos narrativos e agrave

depuraccedilatildeo dos meios empregados para a criaccedilatildeo musical Com essas intenccedilotildees

movimentaram-se na direccedilatildeo de estruturas mais elementares com gestos musicais

breves e texturas transparentes Entretanto os praticantes da Nova Simplicidade

natildeo se desviaram de configuraccedilotildees atonais apenas acrescentaram elementos de

caraacuteter tonal e deram vazatildeo a uma certa expressividade liacuterica em sua produccedilatildeo

Rihm em entrevista a Noreen e Cody comenta suas experiecircncias dos anos rsquo70 e

rsquo80

Eu sou um compositor intuitivo Mesmo se natildeo o fosse somente poderia escrever a minha proacutepria muacutesica Natildeo se pode criar arte com tabus Naturalmente somente quebrando tabus tambeacutem natildeo se faz arte Em ambos os casos o que surge satildeo objetos que [apenas] se parecem com arte [] De volta agraves triacuteades eu natildeo era de nenhuma maneira o uacutenico a empregaacute-las Talvez em minha muacutesica elas chocassem de forma mais provocativa provavelmente porque natildeo serviam ao propoacutesito de garantir lsquobelezarsquo mas eram empregadas no mesmo niacutevel que (quase) qualquer outra manifestaccedilatildeo sonora governadas por fluxos expressivos que natildeo poderiam ser inteiramente analisados de modo racional Isso era equivalente agrave alta traiccedilatildeo aos olhos dos modernistas (RIHM 2006 p 2)

Compositores que parecem seguir nessa mesma direccedilatildeo poreacutem com

interesses distintos satildeo os franceses Pascal Dusapin (1955) que trabalha com

misturas de elementos tonais e atonais carregados de forte lirismo e Reacutegis Campo

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(1968) cuja peccedila Commedia (1995) de escritura amplamente stravinskyana estaacute

organizada agrave base de muacuteltiplas linhas contrapontiacutesticas que se movimentam em

torno de uma melodia que se estende por quase quinze minutos

Outros grupos que tecircm sido bastante difundidos nos uacuteltimos anos satildeo

aqueles derivados do Minimalismo e que portanto empregam teacutecnicas de

organizaccedilatildeo repetitiva com base em um miacutenimo de elementos formadores de

processos sonoros Esses elementos baacutesicos ndash constituiacutedos de poucas notas

estrutura harmocircnica simples e riacutetmica perioacutedica ndash geralmente satildeo elaborados de

forma extremamente gradativa com a intenccedilatildeo de dar tempo agrave escuta Com isso

pretende-se dar ecircnfase aos processos perceptivos acima de qualquer princiacutepio

compositivo

O Minimalismo ortodoxo aquele dos anos 60 estava centrado em estruturas

ininterruptas fixas regulares e contiacutenuas no tempo Steve Reich partiu para suas

realizaccedilotildees mais peculiares da eacutepoca da experiecircncia de ouvir a mesma gravaccedilatildeo

reproduzida em dois aparelhos diferentes com rotaccedilotildees distintas o que gerou uma

defasagem gradual de tempo entre uma reproduccedilatildeo e outra O compositor declarou

[] enquanto eu ouvia esse processo gradual de mudanccedila de fase comecei a imaginar que esta seria uma forma extraordinaacuteria de estruturaccedilatildeo musical Esse processo afetou-me como um meio de alcanccedilar determinado nuacutemero de relaccedilotildees entre duas identidades sem nenhuma transiccedilatildeo Era um processo musical sem emenda ininterrupto (REICH apud SCHWARZ 1996 p 61)

Eacute interessante notar como esses princiacutepios de Reich e seus colegas

minimalistas da deacutecada de 1960 satildeo bastante lsquoformalistasrsquo para os muacutesicos mais

jovens e nesse sentido se assemelham aos valores vanguardistas da mesma

eacutepoca pois as preocupaccedilotildees com o processo com a estrutura ou com as teacutecnicas

de composiccedilatildeo estatildeo acima de qualquer outro aspecto envolvido na atividade

compositiva Por essa razatildeo essa fase do Minimalismo pode ser considerada como

sendo a uacuteltima manifestaccedilatildeo modernista pois mesmo que os processos de escuta

jaacute estivessem em evidecircncia o interesse principal estaacute na construccedilatildeo de estruturas

musicais abstratas Ao comparar a mentalidade de Reich da deacutecada de 1960 com

alguns comentaacuterios de John Adams (1947) um dos compositores mais destacados

da corrente atual a que alguns chamam de Poacutes-Minimalismo percebe-se que o

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ponto de vista deste estaacute descentrado do fazer e mais voltado para a absorccedilatildeo do

meio sonoro circundante

Eu sempre fui profundamente influenciado pelo rock pelo jazz e pela muacutesica pop Creio que eacute uma parte importante da experiecircncia de um norte-americano e penso que eacute a linha de demarcaccedilatildeo entre a velha geraccedilatildeo de compositores eruditos aqueles que nasceram antes da guerra e minha geraccedilatildeo ou a dos meus alunos Eacute por isso que natildeo tento me afastar dessa muacutesica nem tapar os ouvidos para ela Entretanto ao ler John Cage a gente nota que ele natildeo era sensiacutevel a essa muacutesica e ateacute mesmo a execrava Por minha parte eu gosto e ela influenciou bastante a minha proacutepria muacutesica (ADAMS 1996 p 20)

Ao contraacuterio do purismo muitas vezes pretendido pelos muacutesicos das deacutecadas

de 1950 e 1960 (que geralmente buscavam um estilo original sem admitir

ascendecircncias externas expliacutecitas pois essas influecircncias15 eram transformadas ateacute o

ponto em que se tornavam imperceptiacuteveis ou eram incorporadas em estruturas que

natildeo poderiam ser remetidas a outras realidades que a da proacutepria muacutesica em

questatildeo) vaacuterios compositores atuais estatildeo buscando a assimilaccedilatildeo expliacutecita de

diferentes fontes desde a muacutesica claacutessica europeia e a muacutesica tradicional de outras

culturas ateacute as diferentes manifestaccedilotildees populares e dos meios de comunicaccedilatildeo de

massa Adams eacute preciso a esse respeito

O que distingue minha muacutesica das outras eacute o fato de que ela eacute tatildeo lsquomiscigenadarsquo Se eu comparo minha muacutesica com a de Morton Feldman que eacute tatildeo pura a minha eacute uma espeacutecie de lsquogrande lixeirarsquo ali se encontra de tudo como em um grande lsquoensopadorsquo [] Cresci ao longo de um periacuteodo em que se podia escutar de tudo pois tudo estava registrado e isso vai continuar no proacuteximo milecircnio Eu costumo surfar na Internet todo o tempo e posso andar por tudo (ADAMS 1996 p 21)

Natildeo apenas Adams e os poacutes-minimalistas (que se diferenciam do

Minimalismo histoacuterico pela assimilaccedilatildeo expliacutecita de elementos exoacutegenos) como

tambeacutem outros muacutesicos das novas geraccedilotildees aproveitam influecircncias atraveacutes da

incorporaccedilatildeo de estilemas16 apropriados de diferentes tradiccedilotildees o que tambeacutem pode

15 O termo lsquoinfluecircnciarsquo foi tomado durante algum tempo como sendo depreciativo por indicar a ascendecircncia de determinado artista ou escola sobre outros Atualmente para os compositores das novas geraccedilotildees a ideia de ascendecircncia parece natildeo gerar constrangimento sendo inclusive um valor a ser aproveitado 16 lsquoEstilemarsquo eacute um termo apropriado da linguiacutestica empregado para designar traccedilos estiliacutesticos caracteriacutesticos de determinada obra escritor ou escola literaacuteria o que em muacutesica pode ser indicado

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incluir teacutecnicas de vanguarda Com isso esta muacutesica se torna mais corpoacuterea estaacute

vinculada agrave realidade circundante ou em outras palavras se faz mais mundana

Isso tambeacutem se deve agrave introduccedilatildeo de elementos de linguagens musicais

vernaculares consideradas como sendo parte da lsquofalarsquo cotidiana seja a muacutesica

autoacutectone ou a muacutesica tocada nos meios de comunicaccedilatildeo e que se torna com o

passar do tempo tatildeo absorvida pelas mentalidades que passa a ser entendida como

lsquolinguagem comumrsquo

Os chilenos Eduardo Caacuteceres (1954) e Aliosha Solovera (1963) tecircm

incorporado elementos de tradiccedilotildees locais em suas criaccedilotildees de caraacuteter

experimental Caacuteceres em sua peccedila Canciones ceremoniales para aprendiz de

machi para grupo vocal feminino aproveita textos em liacutengua mapudungum para

combinar diferentes ritmos apropriados dos iacutendios mapuches Na peccedila Ressonandes

(2002) para dez flautas cujo tiacutetulo alude agrave lsquoressonacircncia dos Andesrsquo Solovera busca

ldquoestabelecer um viacutenculo com a muacutesica das culturas preacute-colombianasrdquo atraveacutes da

experimentaccedilatildeo de sonoridades incomuns no instrumento Para o compositor ldquoa

flauta transversa se desliga de sua raiz cultural e eacute assumida em sua condiccedilatildeo mais

elementar como instrumento de soprordquo Eacute interessante notar nesse sentido o

paralelismo entre Ressonandes e a peccedila Nola (1994) para vaacuterias flautas e orquestra

de cordas do tajiquistanecircs Benjamin Yusupov (1962) que se refere agrave sua muacutesica da

seguinte maneira ldquoesta peccedila eacute uma busca de efeitos sonoros gerados pelas flautas

como se fossem instrumentos de cordas A combinaccedilatildeo com a muacutesica eacutetnica estaacute

associada a um certo esteticismo da muacutesica orientalrdquo Ambos aproveitam valores de

suas tradiccedilotildees locais para experimentar sonoridades inusuais em conjuntos de

flautas Solovera busca restituir o som elementar do sopro Yusupov tem o intuito de

fazer um instrumento de sopro soar como corda Apesar da similaridade conceptual

o resultado sonoro eacute bastante distinto

Em uma direccedilatildeo similar e com base em vivecircncias pessoais o colombiano

Angel Alfonso Rivera (1983) escreveu Quya-Killa (2013) para voz flauta percussatildeo

por padrotildees escalares contornos meloacutedicos figuraccedilotildees riacutetmicas encadeamentos harmocircnicos combinaccedilotildees instrumentais ou algum outro aspecto de qualquer natureza que identifique lsquoestilosrsquo ou lsquomaneirasrsquo

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(dois tom-tons maracas temple blocks prato suspenso) e piano A peccedila foi escrita a

partir da participaccedilatildeo em rituais e celebraccedilotildees indiacutegenas na Boliacutevia e no Peru dos

quais se destacam Pachamama (Ritual da Matildee Terra) Inti Raymi (Festa do Sol) e

Quya Raymi (Festa da Lua e da Fertilidade) A peccedila que eacute o resultado de

lembranccedilas afetivas desses rituais isto eacute os traccedilos que permanecem na memoacuteria

de forma pulsante e transformam a percepccedilatildeo do mundo estaacute organizada em trecircs

seccedilotildees derivadas das fases ritualpisticas Preparaccedilatildeo Oraccedilatildeo e Celebraccedilatildeo

Para o compositor

[] a muacutesica de culturas tribais gira em torno de um mundo proacuteprio com sonoridades que derivam do contorno da natureza dos animais e do proacuteprio homem As manifestaccedilotildees foneacuteticas os gestos e a miacutemica satildeo meios de comunicaccedilatildeo e neste contexto a muacutesica e a danccedila manifestam estreita relaccedilatildeo com os rituais e cerimocircnias [] Por se tratar de algo maacutegico e que possui caracteriacutesticas que podem ser aproveitadas na composiccedilatildeo considero que a imagem do ritual tem forte funccedilatildeo orientadora e organizacional sendo uma imagem que fundamenta e orienta os elementos do percurso criativo (RIVERA p 39-40)

Natildeo eacute necessaacuterio que o muacutesico esteja estreitamente vinculado a esta ou

agravequela tradiccedilatildeo para se sentir compelido a empregaacute-la em alguma obra O

compositor inglecircs Thomas Adegraves (1971) escreveu sua America a prophecy (1999)

para meio-soprano coro opcional e orquestra sinfocircnica para um projeto chamado

lsquoMensagens para o Milecircniorsquo promovido pela Orquestra Filarmocircnica de Nova Iorque

Interessante nesta peccedila eacute o fato de que o uacutenico texto em inglecircs eacute a traduccedilatildeo de um

fragmento da profecia maia que prenuncia o fim dos tempos os outros trechos

cantados na peccedila de Adegraves foram aproveitados de textos hispano-americanos Com

isso o compositor pretendia criar um mapa da Ameacuterica localizado ao Sul dos

Estados Unidos com o intuito de mostrar aos norte-americanos que eles natildeo foram

os primeiros americanos (escrito maia) como tambeacutem natildeo satildeo os uacutenicos

(fragmentos latino-americanos) Interessado pelas culturas preacute-colombianas e pelo

sincretismo cultural da Ameacuterica Latina atual o compositor disse em entrevista a

Tom Service que essa sua noccedilatildeo da Ameacuterica ldquocomeccedilou quando tive uma enorme

vista da piracircmide de Belize Havia aacutervores em todas as direccedilotildees Entretanto havia

estas pequenas saliecircncias que tambeacutem eram verdes e eram as antigas piracircmides

maiasrdquo (ADEgraveS apud FOX 2006 p 1) Outra representaccedilatildeo da Ameacuterica ocorreu-lhe a

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partir de um mapa surrealista publicado na revista belga Parietein em 1929 Essas

imagens aliadas aos textos escolhidos se tornaram o ponto de partida para a

estruturaccedilatildeo de America a prophecy

Outro exemplo agora no sentido da assimilaccedilatildeo dos meios de comunicaccedilatildeo

de massa em uma muacutesica de caraacuteter experimental eacute a peccedila de Michael Daugherty

(1954) intitulada Elvis Everywhere (1993) em que satildeo combinados cantores um

quarteto de cordas processos de manipulaccedilatildeo eletrocircnica dos sons e a voz de Elvis

Presley que funciona como uma espeacutecie de material unificador de todas as

sonoridades que acontecem ao longo da muacutesica

Natildeo posso escrever a miacutenima nota se natildeo tenho antes uma ideia Eacute geralmente um elemento visual um iacutedolo americano como Elvis um flamingo de plaacutestico cor-de-rosa ou ainda Jackie Kennedy que me evocam os sons [] Antes de compor Elvis Everywhere para o Quarteto Kronos assisti ao Congresso Internacional de Imitadores de Elvis onde ouvi cantar mais de duzentos Elvis Somente posso escrever muacutesica quando estou proacuteximo dela Seria difiacutecil transcrever musicalmente a poesia de Safo por exemplo Por outro lado assisti a todos os episoacutedios de Star Trek17 (DAUGHERTY 1996 p 105)

O que interessa para muitos artistas contemporacircneos eacute essa ruptura dos

limites daquilo que era tradicionalmente considerado como sendo lsquobom gostorsquo e lsquomau

gostorsquo lsquoarte e lsquoinduacutestria do entretenimentorsquo enfim todas as formas de dicotomia que

caracterizaram as correntes modernistas A intenccedilatildeo de superar essas dualidades

com uma atitude inclusiva em que as diferentes formas de manifestaccedilatildeo cultural

tecircm seu lugar na cultura contemporacircnea natildeo significa necessariamente aquela

postura ciacutenica do blaseacute que caracterizou o final do seacuteculo XX nas deacutecadas de 1980

e 1990 Ao contraacuterio estar aberto aos diferentes pontos de vista tambeacutem pode

significar assumir uma postura de caraacuteter pessoal poreacutem com o entendimento de

que esta eacute mais uma entre tantas possibilidades de conhecer a realidade e de se

relacionar com o mundo

Na busca de autonomia um grupo de compositores nova-iorquinos

encabeccedilados por Michael Gordon (1956) David Lang (1957) e Julia Wolfe (1958)

17 Essas consideraccedilotildees seriam impossiacuteveis se vindas de um compositor como Pierre Boulez por exemplo que consideraria essa assimilaccedilatildeo de elementos da cultura de massa como vulgarizaccedilatildeo da criaccedilatildeo musical

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criou o festival Bang on a Can e formou um grupo de cacircmara para divulgar sua

muacutesica e a de outros compositores de sua geraccedilatildeo18 Wolfe conta a origem do

festival em entrevista a Lelong

Noacutes queriacuteamos abalar as estruturas em Nova Iorque e ter um pretexto para tomarmos cafeacute da manhatilde juntos todos os dias Bang on a Can quase comeccedilou como uma brincadeira Noacutes chamamos assim ao primeiro festival porque pensamos que natildeo haveria outros mas terminou sendo um rastro de poacutelvora Muitas e muitas pessoas vieram no primeiro ano entre eles John Cage e Steve Reich Noacutes trabalhamos duramente para ampliar nosso puacuteblico para aleacutem do ciacuterculo dos amantes da Nova Muacutesica Fizemos nossa divulgaccedilatildeo bastante numerosa entre o puacuteblico de baleacute de teatro e de cinema Mesmo que o festival tenha se desenvolvido ainda se manteacutem a serviccedilo dos compositores com ideias novas com espiacuterito aventureiro O puacuteblico vem numeroso e entusiasmado a apresentaccedilatildeo eacute formidaacutevel descontraiacuteda o que tem o efeito de natildeo espantar a audiecircncia (WOLFE 1996 p 369-370)

O festival que existe desde 1987 se tornou um evento anual que conta com

um conjunto de cacircmara formado por solistas virtuoses o grupo Bang on a Can All-

Stars uma orquestra a Spit Orchestra gravaccedilotildees que satildeo lanccediladas em CD e

transmissotildees radiofocircnicas O grupo Bang on a Can All-Stars tem uma constituiccedilatildeo

heterogecircnea tanto do ponto de vista dos instrumentos que fazem parte do grupo

quanto da linha de atuaccedilatildeo de seus muacutesicos Formado por instrumentos como

piano saxofone clarinete violoncelo guitarra eleacutetrica baixo eleacutetrico e percussatildeo19 o

grupo se caracteriza pela mistura de sonoridades de muacutesica erudita muacutesica pop e

jazz A formaccedilatildeo e a praacutetica dos muacutesicos ndash que tocam em orquestras sinfocircnicas

tradicionais participam de shows ou concertos gravam discos de muacutesica pop e

tocam em bandas de jazz ndash possibilita trabalhar com repertoacuterios diversificados

Assim o grupo se propotildee a divulgar diferentes tipos de manifestaccedilatildeo musical da

contemporaneidade o que o difere de outros grupos ndash como por exemplo lsquoSteve

Reich and Musiciansrsquo lsquoMichael Nyman Bandrsquo ou lsquoPhilip Glass Ensemblersquo ndash que tecircm

em seu repertoacuterio somente a produccedilatildeo do proacuteprio compositor que daacute nome ao grupo

ou daqueles que estatildeo diretamente associados a ele

18 Essa praacutetica de criar o proacuteprio grupo musical jaacute havia sido praticada por muacutesicos como Steve Reich Philip Glass Louis Andriessen (1939) e Michael Nyman (1944) entre outros 19 Os muacutesicos do Bang on a Can All-Stars satildeo atualmente Vicky Chow teclados Ken Thomson sopros Ashley Bathgate violoncelo Mark Stewart guitarra eleacutetrica Robert Black contrabaixos David Cossin percussatildeo

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Percebe-se nessa postura comum a muitos muacutesicos atuais a busca pela

diferenccedila se tornando mais importante do que a pretensatildeo de identidade estiliacutestica

Esse aspecto resulta em outra caracteriacutestica difundida entre os compositores

contemporacircneos que se dedicam agrave investigaccedilatildeo de novos meacutetodos narrativos

Muitos compositores atuais tecircm formaccedilatildeo acadecircmica em aacutereas como linguiacutestica

letras comunicaccedilatildeo ou filosofia campos do conhecimento considerados como

sendo profiacutecuos para a criaccedilatildeo musical Vaacuterios compositores atuam como

professores universitaacuterios nessas aacutereas e desenvolvem seu trabalho criativo com

base nesse conhecimento mais do que em teacutecnicas tradicionais de composiccedilatildeo

Conhecem essas teacutecnicas mas preferem deixaacute-las em segundo plano no processo

criativo ndash o que difere de certas linhas vanguardistas das deacutecadas de 1950 e 1960

em que a invenccedilatildeo de novos processos de estruturaccedilatildeo e meacutetodos compositivos

estavam em primeiro plano

O compositor brasileiro Eduardo Seincman (1958) escreveu uma seacuterie

intitulada A Danccedila dos Duplos20 em que cada uma das cinco peccedilas que compotildeem o

ciclo destinada a uma formaccedilatildeo instrumental diferente foi concebida a partir de uma

experiecircncia extramusical A Danccedila de Dorian21 para piano a quatro matildeos foi escrita

a partir da leitura do romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde Esta peccedila

conteacutem diversos elementos que caracterizam a investigaccedilatildeo de novos processos

narrativos Excertos do texto de Wilde foram apostos agrave partitura para orientar os

muacutesicos sobre qual segmento do romance corresponde a cada uma das passagens

musicais O compositor chama a atenccedilatildeo no entanto para o fato de que natildeo se

trata de muacutesica programaacutetica pois sua intenccedilatildeo natildeo eacute produzir uma descriccedilatildeo

musical ipsis litteris da narrativa de Wilde mas criar uma narrativa paralela

estritamente musical e que natildeo se vincula diretamente agrave sequecircncia de episoacutedios do

20 A Danccedila dos Duplos eacute formada pelas seguintes peccedilas A Danccedila Misteriosa (1986 ldquopara um anjo que nasceraacuterdquo) para piano solo A Danccedila Luacutegubre (1987) para flauta contralto marimba e piano A Danccedila de Dorian (1988 ldquobaseada no romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilderdquo) para piano a quatro matildeos A Danccedila do Dibuk (1988 ldquobaseada na peccedila de teatro O Dibuk de Sch An-Skirdquo) para marimba vibrafone e glockenspiel A Uacuteltima Danccedila (1989 ldquoinspirada na leitura de O Cisne de Leonardo da Vincirdquo) para flauta contralto e dois vibrafones 21 Esta que foi a muacutesica tocada na Abertura do Simpoacutesio Agora Arte e Pensamento no dia 24 de outubro de 2006 pelas pianistas Carolina Avellar e Elaine Foltran

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romance Neste sentido tornam-se importantes as citaccedilotildees das obras musicais

apresentadas no texto nas cenas em que Dorian Gray toca piano ou assiste a um

concerto

Cria-se uma nova narratividade musical atraveacutes de uma sinestesia muacuteltipla

na audiccedilatildeo da obra A estrutura musical se desdobra como uma sequecircncia de

imagens (visuais taacuteteis auditivas e mesmo olfativas) que satildeo justapostas umas agraves

outras agraves vezes por meio de transiccedilotildees gradativas agraves vezes por meio de

interrupccedilotildees abruptas como cortes cinematograacuteficos Conforme a muacutesica se

aproxima do final vai-se tornando mais tensa e agitada criando a atmosfera para o

desfecho extraordinaacuterio (Dorian Gray natildeo envelhece porque eacute a figura pintada em

seu retrato que se torna mais velha) atraveacutes da precipitaccedilatildeo de uma cena na outra

com o propoacutesito de alterar o rumo dos acontecimentos de modo inesperado

Percebe-se nesse sentido uma espeacutecie de anaacutelogo musical daquilo a que

Aristoacuteteles chamaria de resoluccedilatildeo cataacutertica atraveacutes da lsquoperipeacuteteiarsquo (peripeacutecia) isto eacute

a incorporaccedilatildeo de encadeamentos imprevistos no decorrer da accedilatildeo com o sentido

de produzir alteraccedilotildees suacutebitas dos estados de humor Entre os tipos de narrativa

destacados por Aristoacuteteles (narrativa episoacutedica narrativa simples e narrativa

complexa) o filoacutesofo dava preferecircncia agrave narrativa complexa que produz expectativa

por meio do acuacutemulo de accedilotildees e pelo emprego de princiacutepios como a

verossimilhanccedila dessas accedilotildees a necessidade dos acontecimentos no curso da

histoacuteria o reconhecimento (descoberta) de uma situaccedilatildeo vivida poreacutem natildeo

compreendida anteriormente e o imprevisto produzido por novas situaccedilotildees

Peripeacutecia eacute uma viravolta das accedilotildees em sentido contraacuterio [] segundo a verossimilhanccedila ou necessidade [] O reconhecimento como a palavra mesma indica eacute a mudanccedila do desconhecimento ao conhecimento ou agrave amizade ou ao oacutedio das pessoas marcadas para a ventura ou desdita O mais belo reconhecimento eacute o que se daacute ao mesmo tempo em que uma peripeacutecia como aconteceu no Eacutedipo [] Nesse passo se verificam duas partes da faacutebula a peripeacutecia e o reconhecimento mas haacute uma terceira o pateacutetico [] O pateacutetico consiste numa accedilatildeo que produz destruiccedilatildeo ou sofrimento como mortes em cena dores cruciantes ferimentos e ocorrecircncias desse gecircnero (ARISTOacuteTELES 1997 p 30-31)

Naturalmente Aristoacuteteles natildeo exigia a concomitacircncia de todas essas linhas

narrativas para a produccedilatildeo de estados cataacuterticos que na trageacutedia antiga vinham

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geralmente associados agrave muacutesica Quando se escuta A Danccedila de Dorian de

Seincman poreacutem a impressatildeo que se tem eacute que todos esses processos se

acumulam nos trechos finais da peccedila produzindo vaacuterias camadas de expressatildeo que

extrapolam a significaccedilatildeo especificamente musical na direccedilatildeo de uma espeacutecie de

experiecircncia esteacutetica multissensorial geralmente possibilitada pela combinaccedilatildeo de

diferentes linguagens artiacutesticas (poesia teatro muacutesica artes visuais etc) Alguns

processos narrativos ou semacircnticos empregados se assemelham a formulaccedilotildees de

compositores romacircnticos como Robert Schumann (1810-1856) poreacutem a totalidade

do resultado seria algo impensaacutevel antes da concepccedilatildeo da muacutesica de Seincman

Outro compositor que se interessa pela criaccedilatildeo de sensaccedilotildees sinesteacutesicas eacute o

uzbequistanecircs Dimitri Yanov-Yanovski (1963) Segundo depoimento do compositor

sua muacutesica estaacute centrada na intenccedilatildeo de criar diferentes processos de estruturaccedilatildeo

do tempo musical atraveacutes da oposiccedilatildeo de duraccedilotildees heterogecircneas apresentadas

simultaneamente Esses meacutetodos produzem dois resultados distintos que se

complementam o efeito psicoloacutegico de contraccedilatildeo e distensatildeo do tempo e o

processo linguiacutestico de polifonia narrativa que eacute obtida pelo entrecruzamento de

muacuteltiplos significados (que podem ser musicais textuais dramaacuteticos ou plaacutesticos) A

investigaccedilatildeo de novos princiacutepios de comunicabilidade e a valorizaccedilatildeo do processo

musical por meio de meacutetodos repetitivos colocam Yanovski entre os compositores

atuais cujos trabalhos apresentam processos multidirecionais que resultam em

novas formas de produccedilatildeo e recepccedilatildeo musicais Tambeacutem nesse sentido vaacuterios

muacutesicos atuais se diferenciam das geraccedilotildees anteriores pois valorizam o ato de

recepccedilatildeo como sendo tatildeo ou mais importante do que as teacutecnicas de composiccedilatildeo

visto que entendem que estas devem estar a serviccedilo daqueles ndash o que conduz a

uma arte centrada nos processos esteacutesicos e nas possibilidades de interaccedilatildeo

comunicativa entre o compositor o inteacuterprete e o puacuteblico22

22 A avaliaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o compositor e o inteacuterprete eacute outro aspecto extremamente relevante nas discussotildees sobre a muacutesica contemporacircnea Nas tendecircncias vanguardistas em geral o compositor muitas vezes busca escrever uma ldquomuacutesica contra o instrumentordquo o que gera grandes dificuldades de execuccedilatildeo Brian Ferneyhough (1943) um dos mais importantes compositores da poacutes-vanguarda e partiacutecipe da Nova Complexidade (note-se o antagonismo com relaccedilatildeo agrave lsquoNova Simplicidadersquo) costuma dizer com intenccedilatildeo motivadora e polecircmica que escreve mais notas do que o muacutesico consegue tocar para que ele tenha que escolher entre as notas escritas e interferir no

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3 Traccedilos Gerais

Percebe-se com as reflexotildees apresentadas acima sobre aspectos da muacutesica

atual (e sempre lembrando que este ensaio aborda uma parcela da totalidade da

produccedilatildeo contemporacircnea) que vivemos em um periacuteodo em que haacute muacutesicos e

musicoacutelogos23 dedicados agrave investigaccedilatildeo de toda e qualquer produccedilatildeo musical seja

ela proacutexima ou distante geograficamente seja recente ou remota no tempo

Pesquisadores atuais dedicam-se inclusive agrave descoberta de processos e materiais

que natildeo satildeo condizentes com seu gosto pessoal pois o que importa eacute que toda e

qualquer parcela da produccedilatildeo humana estaacute aiacute para ser conhecida

independentemente agradar ou natildeo ao estudioso24

Assim quebram-se hierarquias seculares em que se considerava

determinada parcela da produccedilatildeo de alguma eacutepoca superior agraves outras ou se

entendia que determinada regiatildeo do planeta produz algo de maior importacircncia

cultural ou histoacuterica do que outras Essas posiccedilotildees etnocecircntricas ainda hoje

defendidas por alguns como o criacutetico literaacuterio Harold Bloom por exemplo satildeo

questionadas por natildeo serem condizentes com as infinitas possibilidades atuais de

acesso agrave informaccedilatildeo pois satildeo restritivas do ponto de vista do gosto no sentido em

que elevam opiniotildees meramente pessoais de seus autores agrave categoria de valor

universal

A postura abrangente de pensadores contemporacircneos como Michel Meyer

vem de encontro agravequeles pontos de vista exclusivistas em que se confunde lsquoopiniatildeorsquo

com lsquoconhecimentorsquo Para Meyer

[] cada um tem o direito de ser diferente de realizar sua diferenccedila contanto que a igualdade de direitos da [outra] pessoa seja respeitada

processo de criaccedilatildeo da obra de forma que cada nova interpretaccedilatildeo soaraacute diferente das demais Ferneyhough parece buscar resultados semelhantes aos de John Cage poreacutem pelo caminho inverso Essa discussatildeo poreacutem extrapola os limites deste ensaio 23 Vale esclarecer que se entende por musicoacutelogo aqui todo aquele profissional que se dedica agrave pesquisa em muacutesica seja atraveacutes da musicologia histoacuterica musicologia sistemaacutetica ou etnomusicologia da anaacutelise musical psicologia da muacutesica criacutetica musical ou da esteacutetica musical entre outras Sendo assim musicologia eacute entendida como sendo a aacuterea que engloba todos os campos teoacutericos do saber musical 24 Um bom exemplo neste sentido eacute a incansaacutevel pesquisa sobre o Neoclassicismo francecircs realizada

por Michel Faure musicoacutelogo que se posiciona antagonicamente com relaccedilatildeo agravequela tendecircncia esteacutetico-musical

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Inversamente a universalidade eacute imperativa mas natildeo pode secirc-lo em detrimento das diferenccedilas que constituiacutemos e que nos faz ser [aquilo que somos] Cada um tem o direito agrave sua histoacuteria e o dever de cada um eacute respeitar esse direito nos outros A universalidade sem diferenccedila eacute tatildeo totalitaacuteria quanto a diferenccedila sem universalidade (MEYER 2000 p 148)

Tem-se assim uma nova postura criacutetica (que tambeacutem pode ser denominada

metacriacutetica) a qual propotildee que ao exercitar a criacutetica se inicie fazendo criacutetica aos

proacuteprios valores pessoais e inclusive agraves possibilidades de exerciacutecio da criacutetica no

domiacutenio de determinados contextos Isso aplicado ao campo da muacutesica que eacute uma

arte e natildeo uma ciecircncia exata leva agrave abertura de novas perspectivas e ao

entendimento de que os pontos de vista dos outros tecircm tanto direito agrave existecircncia

quanto os nossos Isso natildeo significa igualdade de criteacuterios mas igualdade de direito

pois pode haver diferenccedilas na qualidade dos valores sendo que alguns princiacutepios

podem estar mais fundamentados do que outros O que faz levar em consideraccedilatildeo

que em qualquer sistema de valores os criteacuterios apropriados para sua avaliaccedilatildeo

estatildeo no exame de sua estrutura loacutegica interna entrecruzada com sua adequaccedilatildeo agrave

realidade Entretanto nem mesmo a argumentaccedilatildeo mais sistematizada e bem

fundamentada eacute garantia de excelecircncia em se tratando de arte pois esta eacute uma

aacuterea onde os criteacuterios satildeo qualitativos e portanto natildeo podem ser quantizados ndash e jaacute

houve quem (como Max Bense) se esforccedilou em mensurar matematicamente a arte

poreacutem em nenhum caso se alcanccedilou um resultado considerado minimamente

satisfatoacuterio junto agrave comunidade artiacutestica

Quando o muacutesico se torna mais receptivo agraves diferentes opiniotildees que circulam

no campo da esteacutetica musical percebe tambeacutem que diferentes processos musicais

podem ser combinados em uma uacutenica peccedila de muacutesica natildeo importando onde ou

quando esses processos se originaram Essas fontes podem ser justapostas uma

apoacutes a outra na sequecircncia de eventos sonoros assim como podem ser sobrepostas

em um uacutenico momento do tempo musical Isso depende de vaacuterios fatores muitos

deles ligados aos anseios do proacuteprio artista Tambeacutem se abrem novas possibilidades

de significaccedilatildeo atraveacutes da muacutesica que natildeo permanece restrita a valores

exclusivamente teacutecnicos ou formais Por outro lado a teacutecnica e a forma sempre

poderatildeo ser incorporadas em situaccedilotildees musicais de iacutendole mais ampla do que a

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mera oposiccedilatildeo dicotocircmica entre lsquomodernorsquo e lsquopoacutes-modernorsquo lsquomuacutesica novarsquo e lsquonova

muacutesicarsquo ou entre lsquopreferecircncia pela forma e pela teacutecnicarsquo e lsquopreferecircncia pelo conteuacutedo

e pelas estruturas narrativasrsquo Para o compositor italiano Luca Lombardi (1945)

ldquouma filosofia da nova muacutesica escrita hoje natildeo poderia dividir de maneira

maniqueiacutesta o mundo em [] progressistas e reacionaacuterios mas deveria dar conta da

multipolaridade da situaccedilatildeo atual A realidade ndash e natildeo somente a realidade musical ndash

eacute complexa contraditoacuteria e consequentemente ndash para exprimir em termos positivos ndash

ricardquo (Lombardi apud MICHEL 1998 p 104)

A tradiccedilatildeo natildeo eacute mais entendida como sistema fechado em que determinada

interpretaccedilatildeo se torna lsquoa explicaccedilatildeorsquo dos fatos mas tambeacutem satildeo valorizadas as

reaccedilotildees pessoais particularizadas e mesmo idiossincraacuteticas Tambeacutem se torna

problemaacutetico asseverar algo sobre lsquoa tradiccedilatildeorsquo sendo que se reconhece a

simultaneidade de inuacutemeras lsquotradiccedilotildeesrsquo algumas complementares entre si outras

antagocircnicas mas todas com igual direito agrave existecircncia A identidade passa pela

diferenccedila entre um e outro e essa diferenccedila passa pela universalidade dos valores

que podem reconhecer a diferenccedila de um no outro assim como a identidade de

cada um somente pode ser reconhecida quando se tem conhecimento da

universalidade relativa (ou contextual) de cada uma das partes constituintes do todo

identitaacuterio25 A valorizaccedilatildeo da diferenccedila pode conduzir agrave aceitaccedilatildeo da multiplicidade

das praacuteticas musicais seus materiais acuacutesticos suas teacutecnicas seus processos de

elaboraccedilatildeo seus significados intriacutensecos e extriacutensecos suas praacuteticas e seus

valores pois ldquoo conteuacutedo eacute em suma a teoria que daacute significado agrave muacutesicardquo

(BUCKINX 1998 p 91)

Como resultado tecircm-se alcanccedilado novas funcionalidades no campo musical

isto eacute descobrem-se novas possibilidades de uso ou aplicaccedilatildeo da muacutesica que

correspondem agraves necessidades das novas geraccedilotildees A diversidade de funccedilotildees

musicais que se disseminaram desde a Antiguidade foi-se tornando cada vez mais

restrita nos uacuteltimos anos do seacuteculo XX periacuteodo em que alguns dividiam as funccedilotildees

em apenas lsquomuacutesica de concertorsquo e lsquomuacutesica de entretenimentorsquo reforccedilando outra

25 Pluralia tantum mesmo o singular eacute plural

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dicotomia com caraacuteter de preconceito social Nos uacuteltimos anos outras funccedilotildees tecircm

sido observadas como a funccedilatildeo de aglutinaccedilatildeo social comum nas tribos indiacutegenas

que necessitavam da uniatildeo grupal para garantir a sobrevivecircncia Quando se pratica

muacutesica como interferecircncia urbana se traz um grande contingente de pessoas para

uma praccedila puacuteblica e se as oferece experiecircncias que se diferenciam do lugar-comum

estaacute-se recuperando aquela praacutetica de aglutinaccedilatildeo social

Quando o compositor estoniano Arvo Paumlrt (1935) busca sonoridades

medievais e orientais em combinaccedilatildeo com as siacutenteses operadas pelo Minimalismo

para expressar seus valores miacutesticos de caraacuteter ecumecircnico em uma peccedila como

Summa (1977) estaacute retomando a funccedilatildeo congregacional da muacutesica anteriormente

mantida somente no acircmbito dos templos religiosos A muacutesica de Paumlrt eacute tocada tanto

em rituais religiosos como em salas de concerto e em manifestaccedilotildees puacuteblicas ao ar

livre

Outra funccedilatildeo que estaacute sendo redescoberta por muacutesicos eruditos

contemporacircneos eacute a muacutesica de diversatildeo Cabe uma distinccedilatildeo importante entre os

termos lsquodivertirrsquo e lsquodistrairrsquo Divertir na acepccedilatildeo empregada aqui significa lsquoseparar-

se ser diferente divergirrsquo Assim a funccedilatildeo de divertir pode ser compreendida em

um sentido metacriacutetico como divergecircncia em relaccedilatildeo ao estado de coisas

dominante Distrair significa lsquorasgar vender a retalhorsquo tambeacutem pode ser entendido

como lsquodesviar ardilosamente a atenccedilatildeo do adversaacuterio para fazecirc-lo cometer errosrsquo e

nesse sentido o termo pode se adequar agravequelas experiecircncias que conduzem ao

alheamento da proacutepria condiccedilatildeo da condiccedilatildeo do outro e da realidade circundante

Depreendido desse modo surge outra noccedilatildeo do conceito de lsquomuacutesica de diversatildeorsquo

que pode ser tomada como uma nova funcionalidade da muacutesica que se apotildee ao

estado de distraccedilatildeo

Exemplo recente nesse sentido eacute a Revoluccedilatildeo Laranja na Ucracircnia em

2005 em que a populaccedilatildeo das grandes cidades foi agraves ruas vestindo laranja a cor

da oposiccedilatildeo para protestar contra as fraudes eleitorais que mantinham o primeiro-

ministro Viktor Yanukovich no poder Vaacuterios grupos musicais tocando jazz muacutesica

pop muacutesica folcloacuterica ou muacutesica claacutessica se revezavam para manter a praccedila de Kiev

repleta de muacutesica vinte e quatro horas por dia No Brasil atual em novembro de

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2016 um grupo de estudantes permaneceu danccedilando em frente agrave universidade em

Curitiba por um dia inteiro em protesto agrave PEC 24155 Como estavam em uma zona

residencial para natildeo fazer barulho em respeito aos moradores cada um deles

portava seus proacuteprios fones de ouvido e danccedilavam embalados pelas muacutesicas que

lhes agradavam Vaacuterias muacutesicas ao mesmo tempo Cada um na sua Seu slogan

ldquo20 horas em movimento contra 20 anos de congelamentordquo

Post-Scriptum Presumir que os compositores das novas geraccedilotildees

permaneccedilam escrevendo muacutesica da mesma maneira que os muacutesicos de geraccedilotildees

anteriores seria o mesmo que esperar que estes continuassem fazendo muacutesica

como seus antepassados Se forem tomados intervalos de aproximadamente meio

seacuteculo pode-se considerar que pretender que Thomas Adegraves (1971) continue a

escrever muacutesica como Pierre Boulez (1925) seria o mesmo que supor que Boulez

continuaria a pensar muacutesica da mesma forma que Arnold Schoenberg (1874-1951)

que Schoenberg ter-se-ia mantido na mesma linha de investigaccedilatildeo que Anton

Bruckner (1824-1896) que Bruckner natildeo poderia ter concebido muacutesica diferente de

Ludwig van Beethoven (1770-1827) que teria seguido na linha de Niccolograve Piccinini

(1728-1800) o qual permaneceria pensando como Antonio Vivaldi (1678-1741)

Segundo esse raciociacutenio Adegraves apenas escreveria autecircnticos concertos barrocos (o

que eacute uma hipoacutetese no miacutenimo intrigante)

O quadro abaixo sintetiza as principais caracteriacutesticas da muacutesica

contemporacircnea de acordo com as acepccedilotildees discutidas neste ensaio

ACEPCcedilOtildeES REFERENCIAIS ATITUDES PROCEDIMENTOS VALORES RESULTADOS 1 Continuidade da Modernidade

1 Liquidaccedilatildeo dos Sistemas Totalizantes (Modal Tonal Serial)

1 Experimentalismo (expansatildeo das possibilidades teacutecnicas compositivas e instrumentais)

1 Poacutes-Vanguarda 2 Espectralismo 3 Nova Complexidade

1 Arte Especulativa 2 Diversidade Contextual (cada momento no tempo dirige-se a vaacuterios pontos do espaccedilo)

1 Criaccedilatildeo de estruturas inovadoras 2 Espacializaccedilatildeo do tempo 3 Arte poeacutetico-centrada (importa a criaccedilatildeo)

2 Retorno agrave Tradiccedilatildeo

2 Criacutetica ao Historicismo e ao Determinismo

2 Retorno ao passado (alguma eacutepoca em algum

4 Tendecircncias restauradoras (reutilizaccedilatildeo de

3 Apropriaccedilatildeo do Legado

4 Permanecircncia do passado em um presente

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Histoacuterico lugar) processos tradicionais Neomodalismo Neotonalismo etc) 5 Retorno agrave melodia ao contraponto e agrave harmonia

Histoacuterico transformado 5 Evidecircncia de procedimentos eou estilemas oriundos de tradiccedilotildees culturais variadas

3 Superaccedilatildeo do Modernismo

3 Questionamento das vanguardas do Estruturalismo e das tendecircncias formalistas (importam todos os aspectos da produccedilatildeo e recepccedilatildeo artiacutesticas e natildeo apenas seu niacutevel imanente)

3 Novos processos de comunicabilidade

6 Meacutetodos repetitivos (Poacutes-Minimalismo) 7 Nova Simplicidade 8 Apropriaccedilatildeo de Linguagens (folclore popular urbana pop etc)

4Valorizaccedilatildeo do Processo 5 Pluralidade e identidade pulverizada (quebra de conceitos como a unidade estiliacutestica e a distinccedilatildeo de gecircneros)

6 Nova Narratividade 7 Hibridismo Estiliacutestico 8 Arte esteacutesico-centrada (importa a recepccedilatildeo)

4 Traccedilos Gerais

4 Investigaccedilatildeo de toda e qualquer produccedilatildeo musical independente de eacutepoca ou lugar

4 Metacriacutetica como criacutetica ao Criticismo convencional

9 Poliestiliacutestica (citaccedilatildeo alusatildeo colagem) 10 Multiculturalismo (justaposiccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo de processos musicais oriundos de diferentes fontes)

6 Valorizaccedilatildeo da Diferenccedila (importam reaccedilotildees peculiares a aspectos especiacuteficos da tradiccedilatildeo e natildeo a lsquoTradiccedilatildeorsquo como lsquoSistemarsquo)

9 Multidirecionalidade na produccedilatildeo e na recepccedilatildeo musicais 10 Novas funcionalidades do fazer musical

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VALLE Lutiere Dalla Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens

fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 95-108 juldez 2016

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Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das

imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente

Lutiere Dalla Valle1

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

Resumo O objetivo neste texto eacute abordar o cinema enquanto dispositivodisparador para a formaccedilatildeo docente compreendendo-o como artefato produzido pela cultura que produz formas de ver e ser visto Neste iacutenterim subsidiado por experiecircncias de aprendizagem no contexto da formaccedilatildeo docente respaldado pela abordagem narrativa e perspectiva da cultura visual busca-se estabelecer relaccedilotildees entre arte e subjetividade no que tange agraves construccedilotildees sociais histoacutericasculturais e ideoloacutegicas presentes nas visualidades veiculadas pela cinematografia Para tanto explora-se o conceito edu(vo)cativo atribuiacutedo ao cinema que compreende os aspectos educativo evocativo e cativo que envolvem a aprendizagem mediada pelas visualidades Palavras-chave Potecircncia Edu(vo)cativa cinema formaccedilatildeo docente Abstract The objective of this text is to approach the film as device for teacher training understanding it as an artifact produced by the culture that produces ways of seeing and being seen In the interim subsidized by learning experiences in the context of teacher training supported by the narrative approach and perspective of visual culture we seek to establish relationships between art and subjectivity in relation to social historical cultural and ideological constructions present in visualities conveyed by cinematography So it explores the concept edu(vo)cational attributed to the film comprising the educational evocative and captive aspects involving learning mediated visualities Key-words Edu(vo)cational power movies images teacher training

1 Doutor em Artes Visuais e Educaccedilatildeo (Universidad de BarcelonaES 2012) Mestre em Educacioacuten y Artes Visuales un Enfoque Construccionista (Universitat de Barcelona EspanhaUB 2009) Mestre em Educaccedilatildeo pela Universidade Federal de Santa Maria (CEPPGEUFSM2008) Linha de Pesquisa Educaccedilatildeo e Artes Possui Especializaccedilatildeo em Arte e Visualidade pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) Licenciatura Plena em Desenho e Plaacutestica (Universidade Federal de Santa Maria2003) Bacharelado em Desenho e Plaacutestica (Universidade Federal de Santa Maria2002) Atualmente atua como Coordenador do Curso de Artes Visuais - Licenciatura e Bacharelado DAVCALUFSM professor adjunto no Departamento de Artes Visuais CALUFSM tambeacutem no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes VisuaisPPGART - Linha de Pesquisa Arte e Cultura e nos Cursos de Graduaccedilatildeo Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais Co-orienta no Doutorado em Educaccedilatildeo Linha de Educaccedilatildeo e Artes do CEUFSM Investiga as relaccedilotildees entre Artes Visuais e Cultura Visual relacionado agrave formaccedilatildeo de artistas e professores de artes visuais Tem experiecircncia na aacuterea de artes visuais com ecircnfase em entornos educativos LiacutederCoordenador dos seguintes Grupos de Pesquisa e Extensatildeo Grupo de Estudos e Pesquisas Artes Visuais e IMediaccedilotildees (AVICALUFSM) Nuacutecleo Educativo Claacuteudio Carriconde (NECCA CALUFSM) Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte e Medicina (GEPAMCALUFSM) Grupo de Estudos Cinema e Educaccedilatildeo (GECED) Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Contemporacircnea e Educaccedilatildeo da Cultura Visual Pegadogias Culturais na alfabetizaccedilatildeo infantil Rota das Esculturas e Pintura Mural no Campus (DAVUFSM) Membro pesquisador do GEPAEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Educaccedilatildeo e Cultura UFSM Linhas de Interesse e Investigaccedilatildeo Formaccedilatildeo de Professores Estudos da Cultura Visual Estudos sobre Cinema e Educaccedilatildeo Formaccedilatildeo de Artistas Agentes Culturais e Processos de Mediaccedilatildeo em Espaccedilos Expositivos Formais e Natildeo-Formais Contato lutieredallavallenetbr

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Introduccedilatildeo

Os seres humanos natildeo terminam em sua proacutepria pele satildeo expressatildeo da cultura Considerar o mundo como um fluxo indiferente da informaccedilatildeo que eacute processada pelos indiviacuteduos cada um atuando agrave sua maneira supotildee perder

de vista como se formam os indiviacuteduos e como funcionam Ou para citar novamente Geertz lsquonatildeo existe uma natureza humana independente da

culturarsquo (BRUNER 1991 28)

Diaacutelogos entre cinema e educaccedilatildeo tecircm sido recorrentes em nossos contextos

educativos O uso do cinema como um ponto de partida para desenvolver projetos

educativos - sobretudo nos uacuteltimos dez anos no contexto nacional - tem assinalado

variadas experimentaccedilotildees publicaccedilotildees a partir de agrupamentos de textos

produzidos em grupos de pesquisa ensaios atravessamentos diversos em que o

cinema constitui-se fio condutor eou mote reflexivo para desencadear escritas

narrativas dissertaccedilotildees e teses de doutorado em Educaccedilatildeo e aacutereas afins Talvez

resultado do vasto processo de contaminaccedilatildeo eou proliferaccedilatildeo de imagens oriundas

das mais diversas fontes que suscitam possibilidades educativas e favorecem

experiecircncias de aprendizagens significativas mediadas por pedagogias culturais

articulando desta maneira tentativas curiosas em abordar a cinematografia a partir

de acircngulos e enquadramentos diversos em que satildeo apresentadas distintas formas

de ver e ser visto pelas visualidades

Haacute experimentaccedilotildees que apostam em praacuteticas educativas embasadas pela

criacutetica pela produccedilatildeo criativa e emancipatoacuteria transitando entre campos que

articulam conceitos e contextos plurais de produccedilatildeo de significados Por outro lado

eacute recorrente tambeacutem a tentativa de pedagogizar o cinema seguindo um receituaacuterio

de como fazer como ver e o que ver nos filmes

Diante destas consideraccedilotildees adianto que neste texto proponho pensar e

articular o cinema de modo relacional afetivo muacuteltiplo em devir algo que natildeo estaacute

pronto onde existem infinitas probabilidades de aproximaccedilatildeo e diaacutelogo

configurando-se tambeacutem como dispositivo edu(vo)cativo ponto de partida um

comeccedilo isento da intenccedilatildeo de prescrever um meacutetodo a ser implementado

Igualmente refletir sobre o que podemos aprender coma partir das imagens

produzidas pelo cinema e como as experiecircncias de aprender podem ser

potencializadas a partir dos filmes isto eacute investigar como o cinema pode configurar-

se edu(vo)cativo na formaccedilatildeo docente

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A Potecircncia Edu(vo)cativa das imagens fiacutelmicas

Toda voz individual como nos mostra Bajtin estaacute abstraiacuteda de um diaacutelogo

(BRUNER 1991 14)

Edu(vo)cativo origina-se da junccedilatildeo de trecircs palavras educativo evocativo

cativo2 eacute desta forma que nos aproximamos do cinema na busca por propor uma

justaposiccedilatildeo com a imagem fiacutelmica em que sejam articuladas as relaccedilotildees de

aprendizagem potencializadas a partir de sua visualizaccedilatildeo Igualmente tendo em

vista que as imagens em movimento carregam particularidades especiacuteficas de sua

natureza visualafetiva a ideia eacute pensar que o cinema natildeo poderia ser conjecturado

dentro de uma uacutenica estrutura linguiacutestica agrave qual nos vinculamos em nossos

contextos culturais geograacuteficos e temporais pois amplia os campos da percepccedilatildeo

abrindo-se mais para a experimentaccedilatildeo subjetiva do que a uma compreensatildeo

formal de significaccedilatildeo previamente apreendida Da mesma forma discursivamente

constitui-se potecircncia simboacutelica recheada de elementos oriundos de imaginaacuterios

coletivos nos quais ancoramos nossas percepccedilotildees mais iacutentimas assim como os

imaginaacuterios produzidos pelas culturas

Neste contexto entendemos o cinema como artefato educativo pois nos

ensina modos de ver e sermos vistos de ser e estar envolvendo tudo o que

potencializa visotildees de mundo de construccedilatildeo e legitimaccedilatildeo de concepccedilotildees de

mundo eacute tambeacutem evocativo pois diz respeito agraves percepccedilotildees que envolvem a

memoacuteria agravequilo que permanece como referencial anterior e que em relaccedilatildeo com as

novas conexotildees pode reconfigurar-se estabelecer novasoutras conexotildees

2 O Conceito Edu(vo)cativo vem sendo pensado no Grupo de Estudos e Pesquisas Cinema e Educaccedilatildeo (GECEDCNPq) O GECED configura-se a partir do cinema como mobilizador de aprendizagens em variados acircmbitos e contextos educativos formais e natildeo formais de ensino onde cada membro propotildee um enfoque particular em relaccedilatildeo ao cinema e um enfoque de pesquisa Desta forma haacute pesquisas que relacionam diferentes abordagens tais como cinema e gecircnero cinema e subjetividade cinema e infacircncia cinema e educaccedilatildeo cinema e formaccedilatildeo docente O marco teoacuterico-metodoloacutegico respalda-se pela perspectiva educativa da cultura visual e pedagogias culturais amparado por autores como Fernando Hernaacutendez Nicholas Mirzoef David Darts Raimundo Martins Irene Tourinho acerca dos Modos de Endereccedilamento com a obra de Elizabeth Ellsworth acerca do cinema e educaccedilatildeo Adriana Fresquet dentre outros No que diz respeito agraves construccedilotildees sociaisculturais e ideoloacutegicas bem como satildeo produzidos os significados Jerome Bruner e Kenneth Gergen consistem nas principais referecircncias

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produzindo outras vias traz agrave tona movimenta do interno para o externo emerge

faz surgir E por fim o termo cativo busca estabelecer relaccedilotildees com aquilo que

seduz que aprisiona que deteacutem atenccedilatildeo que afeta que domina um filme natildeo

apenas mobiliza mas evoca potencializa educa constroacutei legitima instrui

Pensando o cinema a partir da conjunccedilatildeo leacutexica proposta agrave luz da

perspectiva educativa dos estudos da cultura visual podemos dizer que este

mobiliza formas de compreensatildeo que talvez natildeo sejam possiacuteveis de outra ordem

Os atravessamentos que o cinema estabelece com espectadores envolve

conhecimento da linguagem mobilizaccedilatildeo de conceitos e imagens previamente

apreendidas configurando-se no plano sensorial sonoro visual da accedilatildeo que

materializa-se em seu tempo de visualizaccedilatildeo a partir de um entre e sucessivos

momentos Nas palavras de Adriana Fresquet

[] de fato o cinema nos oferece uma janela pela qual podemos nos assomar ao mundo para ver o que estaacute laacute fora distante no espaccedilo ou no tempo para ver o que natildeo conseguimos ver com nossos proacuteprios olhos de modo direto Ao mesmo tempo essa janela vira espelho e nos permite fazer longas viagens para o interior tatildeo ou mais distante de nosso conhecimento imediato e possiacutevel (2013 p 19)

Para Fresquet ldquoa tela de cinema (ou do visor da cacircmera) se instaura como

uma nova forma de membrana para permear um outro modo de comunicaccedilatildeo com o

outrordquo (2013 p 19) Ou seja os sistemas de representaccedilatildeo criados e veiculados

pelas produccedilotildees cinematograacuteficas ativam e potencializam imaginaacuterios ao dar forma

agravequilo que antes de se tornar visualmente comumcotidiano era apenas mundo das

ideias A partir do cinema o imaginaacuterio visual ganhou forma ritmo movimento e voz

As visualidades adquiriram o status de imagempensamento tendo em vista que

articulam em noacutes uma multiplicidade de relaccedilotildees construccedilotildees definiccedilotildees e

conceitos que soacute satildeo possiacuteveis atraveacutes daquilo que os olhos captam e formulam

mentalmente

Quando vemos uma imagem objeto ou artefato recorremos agraves informaccedilotildees gerais eou ao conhecimento especiacutefico que possuiacutemos Recorremos a haacutebitos valores referecircncias e contexto para dar sentidosignificado ao que vemos Cada indiviacuteduo utiliza suas informaccedilotildees conhecimento haacutebitos e referecircncias para estruturar e dar sentido agraves coisas que visualiza valorizando-as diferentemente negociando seus significados de acordo com o contexto sua trajetoacuteria cultural e seus interesses (MARTINS TOURINHO 2011 p 54-55)

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No contexto educativo torna-se edu(vo)cativo uma vez que haacute uma

multiplicidade de caminhos de natureza relacional os quais mobilizamos durante um

processo interpretativo ndash seja ele no campo da arte ou da educaccedilatildeo da ciecircncia ou

da sociologia Portanto aprender com a partir do cinema implica abandonar a ideia

de um uacutenico caminho a ser seguido de forma riacutegida pois sugere estabelecer

relaccedilotildees Diante de infinitas possibilidades de abordagem ndash principalmente tendo em

vista a presenccedila constante de representaccedilotildees visuais oriundas de diversas fontes ndash

o desafio de fugir das concepccedilotildees estereotipadas de uso do cinema em sala de aula

propunha reinventaacute-las atraveacutes de praacuteticas investigativas experimentais movediccedilas

questionadoras comeccedilando pelo exerciacutecio de reconhecer a potencialidade

narrativaevocativa dos filmes O que pode um filme Como abordaacute-lo enquanto

potecircncia agrave aprendizagem

Neste iacutenterim noccedilotildees de identidade e subjetividade examinadas (re)vistas

compreendidas e articuladas a partir da perspectiva educativa da cultura visual nos

oferecem pistas e tambeacutem evidecircncias para interrogarmos a sua construccedilatildeo e

tambeacutem os estereoacutetipos que contribuem para definir condutas delinear posiccedilotildees

hieraacuterquicas e legitimar papeacuteis sociais sobretudo no que tange agrave construccedilatildeo da

docecircncia O olhar produzido pela cinematografia hollywoodiana ndash de maior difusatildeo

em nossa cultura ndash que se constitui forte veiacuteculo de construccedilatildeo e produccedilatildeo de

identidades (natildeo apenas as identidades docentes) revisitado pode desencadear

processos de questionamento e reelaboraccedilatildeo pois como argumenta Fernando

Hernaacutendez

Os estudos da Cultura Visual nos permitem a aproximaccedilatildeo com essas novas realidades a partir de uma perspectiva de reconstruccedilatildeo das proacuteprias referecircncias culturais e das maneiras de as crianccedilas jovens famiacutelias e educadores olharem (-se) e serem olhados Reconstruccedilatildeo natildeo somente de caraacuteter histoacuterico mas a partir do momento presente mediante o trabalho de campo ou a anaacutelise e a criaccedilatildeo de textos e imagens Reconstruccedilatildeo que daacute ecircnfase agrave funccedilatildeo mediadora das subjetividades e das relaccedilotildees agraves formas de representaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo de novos saberes acerca destas realidades (HERNAacuteNDEZ 2007 37)

Tomando como ponto de partida o argumento do autor em favor da

perspectiva educativa da cultura visual as produccedilotildees fiacutelmicas nos conferem uacutenicas

ou infinitas visotildees de mundo de ser de estar e atuar nas mais variadas situaccedilotildees

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cotidianas Natildeo apenas aprendemos a olhar e compreender as narrativas visuais

desde a infacircncia mas tambeacutem nossas formas de ver passam a ser articuladas a

partir do lugar que ocupamos ndash social cultural histoacuterico Natildeo apenas visualizamos

uma narrativa decodificando a sequecircncia de imagens mas reconstruiacutemos e

recontamos internamente a partir daquilo que compreendemos da visualidade

daquilo que apreendemos Portanto enquanto dispositivo do olhar o cinema pode

contribuir para desvelar imagens assim como pensar sobre quequais lugares

ocupam dentro dos imaginaacuterios coletivos e quais satildeo as possibilidades de

transgredi-los em favor de articulaccedilotildees mais subjetivas autorais e inclusivas

Problematizar o cinema (no sentido de pensar o que evocaprovocamobiliza)

sugere praacuteticas de desnaturalizaccedilatildeo do olhar e especial atenccedilatildeo agraves contingecircncias

que delineiam nossas relaccedilotildees com o mundo nossas experiecircncias cotidianas Em

decorrecircncia podemos nutrir-nos de estrateacutegias criacuteticas para questionar padrotildees

desmontar estruturas hegemocircnicas discursos riacutegidos e propor fissuras brechas em

que nossa subjetividade seja potencializada Partindo da concepccedilatildeo de que noccedilotildees

de verdade e realidade igualmente correspondem a construccedilotildees sociais culturais e

histoacutericas podemos permitir-nos distanciarmo-nos desprendermo-nos de

concepccedilotildees alicerccediladas em padrotildees e posicionamentos fechados e inflexiacuteveis Esse

distanciamento nos permite repensar o que eacute normativo a fim de examinar de onde

surgiu e como a essa normatividade natildeo corresponde uma uacutenica verdade mas uma

referecircncia datada localizada e impregnada de ideologias

Examinar a docecircncia agrave luz do que dizem suas representaccedilotildees no cinema

colocam frente a frente as distintas versotildees que nos satildeo oferecidas enquanto papeacuteis

sociais eacute recorrente a figura docente caricaturada atraveacutes de modelos messiacircnicos

assistencialistas e transformadores dispostos a abrir matildeo de suas expectativas de

vida para solucionar os mais variados problemas de seus alunos Poucas satildeo as

narrativas que evidenciam uma docecircncia fragilizada hostil e afetiva ou ainda como

profissatildeo3

3 No livro Pedagogias Culturais organizado por Raimundo Martins e Irene Tourinho (Editora da UFSM 2014)

discuto esta questatildeo no texto ldquoAprendendo a ser docente atraveacutes de filmes possiacuteveis tracircnsitos entre cinema e educaccedilatildeordquo (p 141-164) Neste faccedilo referecircncia a uma seacuterie de tiacutetulos de filmes que tecircm como tema

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O cinema como ponto de partida na formaccedilatildeo docente

Tomar a perspectiva educativa da cultura visual como ancoradouro nos

favorece interrogar as elaboraccedilotildees discursivas que envolvem a construccedilatildeo do olhar

e tambeacutem os estereoacutetipos que contribuem para definir condutas delinear posiccedilotildees

hieraacuterquicas e legitimar papeacuteis sociais Sobretudo o olhar produzido pela

cinematografia hollywoodiana ndash de maior difusatildeo em nossa cultura ndash que se constitui

forte veiacuteculo de construccedilatildeo e produccedilatildeo de identidades

Acredita-se que cada espectador aporte sua proacutepria experiecircncia histoacuteria e

identidade agrave compreensatildeo de um texto fiacutelmico Contudo eacute possiacutevel que as

narrativas visuais privilegiem certas posiccedilotildees - mesmo que haja certa autonomia

para colocar interpretaccedilotildees personalizadas - pois estas interpretaccedilotildees se

encontraratildeo afetadas pelos limites impostos pelo enquadramento pela delimitaccedilatildeo

de algueacutem sobre o que tornar visiacutevel e o que deixar fora

As interpelaccedilotildees entre narrativas visuais textos discursivos e processos

cognitivos satildeo aspectos importantes que merecem ser discutidos sob a luz da

ideologia presente nos roteiros uma vez que problematizaacute-los pode configurar-se

como ferramenta pedagoacutegica para pensar a complexidade das concepccedilotildees que

elaboramos a partir do que visualizamos

Quando as imagens fiacutelmicas se convertem em aparatos de propulsatildeo para

desencadear aspectos problematizadores no campo social a respeito de questotildees

de gecircnero credo liberdade respeito cidadania e educaccedilatildeo as narrativas fiacutelmicas

funcionam como dispositivos possibilitando que os estudantes exercitem a

experiecircncia da indagaccedilatildeo

Ao examinar as relaccedilotildees dos sujeitos envolvidos com experiecircncias de

visualizaccedilatildeo de filmes durante o desenvolvimento de disciplinas na universidade no

curso de Licenciatura em Artes Visuais - seus diaacutelogos interpretaccedilotildees e

reconstruccedilotildees - percebeu-se que a negociaccedilatildeo eacute fundamental para desenvolver e

estimular a construccedilatildeo do conhecimento a partir de uma abordagem educativa

poliacutetica criacutetica que potencialize o caraacuteter subjetivo e colaborativo comentre os

professores com maior difusatildeo em contextos educativos formais tencionando a partir de algumas experiecircncias durante a formaccedilatildeo inicial e continuada de professores

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sujeitos Diante da experiecircncia de aprender coma partir do cinema estamos lidando

com imprevisibilidades incongruecircncias insatisfaccedilatildeo e a constante possibilidade de

revermos nossas concepccedilotildees e demais processos constitutivos O ambiente

educativo pode configurar-se como lugar de tensionamentos de imagens que

afetam e reverberam conexotildees inventivas que articulam distintos saberes

A partir das consideraccedilotildees elaboradas juntamente com os sujeitos em

formaccedilatildeo podemos pensar o cinema como dispositivo que produz e faz circular

modos de ver ser relacionar e pensar os diversos coacutedigos culturais com os quais

dialogamos diariamente Contribui tambeacutem para refletirmos sobre a construccedilatildeo de

imaginaacuterios e do mesmo modo para advertir-nos sugerir eou alertar-nos frente agraves

incertezas que configuram nossos dilemas existenciais que encontram sua potecircncia

nas relaccedilotildees que estabelecemos diariamente

Neste iacutenterim as produccedilotildees cinematograacuteficas -- enquanto artefatos

produzidos pelas distintas culturas inseridos e veiculados por determinados

discursos e ideaacuterios de acordo com as contingecircncias vigentes de seu tempo --

possibilitam noccedilotildees de realidade pois refletem questotildees sociais que permeiam seu

tempo Sob este aspecto Raimundo Martins argumenta

A ilusatildeo de realidade de que se valem as obras fotograacuteficas e sobretudo as cinematograacuteficas brinca com a percepccedilatildeo da plateacuteia Assim raramente eacute levado em consideraccedilatildeo o fato de que em uacuteltima instacircncia toda imagem constitui um conjunto de pontos de vista que decorrem de certos modos de interpretaccedilatildeo da realidade recortes que enfatizam determinadas informaccedilotildees em detrimento de outras o que vemos ao contemplar as imagens teacutecnicas natildeo eacute o mundo mas determinados conceitos relativos ao mundo a despeito da automaticidade da impressatildeo do mundo sobre a superfiacutecie da imagem (MARTINS 2007 115-116)

Ao mobilizar o campo da afetividade por meio da narrativa que nos eacute contada

bem como a proximidade com os personagens envolvidos haacute quase sempre uma

conexatildeo imediata (em maior ou menor grau) o que coloca os espectadores em

situaccedilatildeo de igualdade de relaccedilatildeo iacutentima Inscrevemos nossas proacuteprias relaccedilotildees com

a vida plasmada na tela e estabelecemos algumas relaccedilotildees ao reviver nossas

proacuteprias experiecircncias ou ainda projetarmos sonhos desejos medos aventuras

imaginaacuterias

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Neste vieacutes afetivo haacute ilimitadas interlocuccedilotildees com o cinema o que talvez

configure nossa questatildeo principal Como pensarpropor o cinema edu(vo)cativo no

contexto da formaccedilatildeo docente E aleacutem desta Qual a relevacircncia desta articulaccedilatildeo

durante a formaccedilatildeo docente

De modo geral como jaacute foi mencionado experiecircncias de aprender com o

cinema na escola privilegiam a vontade do professorprofessora em dar continuidade

a um determinado conteuacutedo e o filme parece ser uma opccedilatildeo ilustrativa de

determinado fenocircmeno eou fato a ser apreendido Natildeo que esta abordagem natildeo

seja relevante ao contraacuterio pode ser um bom argumento O problema eacute quando

restringe-se apenas agrave ilustraccedilatildeo natildeo abrindo espaccedilos ao que reverbera a

visualizaccedilatildeo de um filme Ou ainda quando natildeo se problematizam as visotildees de

realidade representadas na tela ndash no que diz respeito aos enquadramentos

discursos e demais significados que satildeo relacionados muitas vezes de maneira

impliacutecita

Nessa direccedilatildeo a educaccedilatildeo da cultura visual eacute aberta a novas e diversas formas de conhecimentos promove o entendimento de meios de opressatildeo dissimulada rejeita a cultura do Positivismo aceita a ideia de que os fatos e os valores satildeo indivisiacuteveis e sobretudo admite que o conhecimento eacute socialmente construiacutedo e relacionado intrinsecamente ao poder (DIAS 2011 62)

Talvez o questionamento pontuado por Belidson Dias adquira maior potecircncia

ao trazer para a discussatildeo a recente lei que torna obrigatoacuteria a exibiccedilatildeo de pelo

menos duas horas de filmes produzidos nacionalmente nas escolas de Educaccedilatildeo

Baacutesica Aiacute reside uma de nossas grandes preocupaccedilotildees

Que filmes Que formas de exibiccedilatildeo Que engajamento dos professores e da comunidade Que formas de acesso agraves obras Como regulamentar a Lei Haacute filmes com tecnologias assistivas que permitam sua aces- sibilidade a professores e estudantes cegos e surdos Como engajar outros atores ndash Ancine Secretaria do Audiovisual secretarias de educaccedilatildeo MEC Quem custearaacute as accedilotildees E sobretudo o que esperar dessa relaccedilatildeo do cinema com a educaccedilatildeo (FRESQUET MIGLIORIN 2015 4)

Aleacutem disso quais aacutereas Quais docentes Que preparaccedilatildeo preacutevia O que

precisa saberconhecer o docente que iraacute abordar o cinema enquanto dispositivo

Haacute que ensinar coacutedigos da linguagem E no que tange agrave visualidade o que propor

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Seria da competecircncia da aacuterea das artes visuais Propor pensar sobre os elementos

esteacuteticos Etc

Neste cenaacuterio abrem-se muitos debates em torno desta obrigatoriedade por

um lado esta regulamentaccedilatildeo faz com que o cinema deixe de participar apenas

como complemento ilustraccedilatildeo como decorativorecreativo tornando-se objeto

principal ponto de partida agrave reflexatildeo em torno dos coacutedigos culturais que o formulam

legitimam e distribuem noccedilotildees de realidade Por outro proposiccedilotildees prescritivas

destituiacutedas de negociaccedilatildeo coletiva -- que desconsidera o cinema enquanto obra

aberta -- podem desencadear versotildees estereotipadas que devido agrave obrigatoriedade

venham a ser desenvolvidas por profissionais despreparados dispostos a cumprir

tarefas apenas

Ao discutir a lei Adriana Fresquet e Cezar Migliorin sugerem alguns princiacutepios

que poderiam ser levados em consideraccedilatildeo diante das aproximaccedilotildees com a

educaccedilatildeo Para os autores ao tomar a lei como ponto de partida deveriacuteamos ter em

mente estas dez consideraccedilotildees

1 Democratizar o acesso 2 Acesso diversidade e capilaridade de decisotildees 3 Valorizar as accedilotildees existentes e locais 4 O cinema deve ser arriscado 5 Cinema eacute conhecimento e invenccedilatildeo de mundo 6 A escola natildeo forma consumidores 7 Tensatildeo na estrutura das escolas 8 Por que cinema brasileiro 9 Promover a criaccedilatildeo com imagens 10 A experiecircncia com o cinema (FRESQUET MIGLIORIN 2015 6-17)

Diante destes aspectos expostos talvez fosse interessante retomarmos o

conceito de ldquodesaprenderreaprenderrdquo proposto por Adriana Fresquet (2007) no livro

ldquoImagens do Desaprender uma experiecircncia de aprender com o cinemardquo em que

narra a seguinte relaccedilatildeo

Desaprender eacute algo mais que aprender coisas opostas sobre um mesmo tema assunto valor questatildeo da vida Desaprender pode ateacute indicar erradamente a ideacuteia de esquecer o aprendido Poreacutem o seu significado e intenccedilatildeo eacute exatamente o contraacuterio Tal eacute a forccedila da irreversibilidade da aprendizagem que desaprender significa fundamentalmente lsquolembrarrsquo as coisas aprendidas que querem ser desaprendidas Desaprender eacute aprender a natildeo querecirc-las mais para si a natildeo outorgar mais o estatuto de verdade de sentido ou de interesse Verdade aprendida com outros desde sempre adquire valor de inquestionaacutevel Desaprender eacute animar-se a questionar tais verdades Desaprender eacute tambeacutem fazer o esforccedilo de conscientizar todo o vivido na contramatildeo evocando o impacto histoacuterico e emocional que teve aquela aprendizagem que hoje deseja ser modificada (FRESQUET 2007 49)

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Portanto as muacuteltiplas relaccedilotildees promovidas pelas narrativas fiacutelmicas nos

fazem pensar em diversas maneiras de abordar a visualidade comeccedilando pelo

acircmbito da sensibilidade da emoccedilatildeo do afeto ateacute avanccedilarmos pelo terreno da

pedagogia onde nos encontramos com a relaccedilatildeo ensinaraprender Partimos do

princiacutepio de que o cinema se inscreve em uma temporalidade compreensiacutevel a

praticamente todos os puacuteblicos ao representar as diversas etapas do

desenvolvimento humano as descobertas infantis a adolescecircncia e a juventude a

maturidade e a velhice nas suas mais variadas manifestaccedilotildees e a utilizarmos como

ponto de partida para comeccedilar nossa viagem Durante o percurso eacute possiacutevel

visualizar terrenos feacuterteis e tambeacutem arenosos lugares remotos de nossa memoacuteria e

outros recocircncavos repletos de figuras miacuteticas fantasmagorias e possibilidades

Estes dispositivos desestabilizam e mobilizam outras aprendizagens

promovem crises que geram avanccedilos instigam a pensar alternativas Satildeo forccedilas

que produzem o deslocamento e a descoberta de outras dimensotildees de outras

linhas de pensamento Incitam tambeacutem a adotar uma postura criacutetica impulsionada

pelo desejo de criar espaccedilos e alternativas para aprender sobre o mundo a partir do

diaacutelogo com o outro a reconhecer-se pelas diferenccedilas a pensar o ambiente de

formaccedilatildeo inicial e continuada da docecircncia como exerciacutecio do olhar criacutetico e

mobilizador

Sobre o cinema e suas provocaccedilotildees um desfecho provisoacuterio

Referecircncia na moda no comportamento na muacutesica e nos mais variados

acircmbitos das experiecircncias humanas o cinema configura-se como fenocircmeno cultural

de grande impacto na configuraccedilatildeo de imaginaacuterios desde a infacircncia Desde muito

cedo somos introduzidos agrave loacutegica narrativa sequencial que apresenta muitas

realidades Eacute recorrente em nossa contemporaneidade nos depararmos com

personagens criados pelo cinema em acessoacuterios utensiacutelios domeacutesticos adereccedilos

materiais pedagoacutegicos brinquedos etc propagando uma legiatildeo de muitos heroacuteis (e

rariacutessimas heroiacutenas) que inevitavelmente invadem a escola reproduzindo-se nas

canccedilotildees brincadeiras corporeidades comportamentos Diante destes contextos

Como a docecircncia articula estas experiecircncias visuais enquanto mote inicial a ser

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esmiuccedilado Que relaccedilotildees com as imagens fiacutelmicas osas docentes tecircm

apreendidas Como satildeo seus enfrentamentos relaccedilotildees com o cinema

Talvez seja relevante pensarmos alternativas nas quais estudos sobre cinema

e educaccedilatildeo possam estar presentes durante a formaccedilatildeo inicial e continuada da

docecircncia para propor relaccedilotildees de aprendizagem a partir da imprevisibilidade seu

papel e sua utilizaccedilatildeo dentro dos ambientes de aprendizagem tendo como premissa

natildeo cairmos na tentativa de pedagogizaacute-lo ou tornaacute-lo mais um instrumento fechado

ou previsiacutevel mas de tomaacute-lo como obra aberta ndash a partir da concepccedilatildeo do rizoma ndash

para tomar vias distintas Bricolar propor conexotildees com outras narrativas abordaacute-lo

sem tentar traduzir o que eacute essencialmente percepccedilatildeo visualsensorialemocional e

que obviamente requer outro tipo de relaccedilatildeo outros coacutedigos outras loacutegicas

Para finalizar estaacute escrita retomo os vocaacutebulos que a iniciam provocaccedilotildees

descontinuidades desfechos com o intuito de sinalizar como poderiam operar no

campo educativo ndash ao menos como pretendo que sejam pensados aqui

O cinema enquanto provocador que desafia incita o questionamento retira

da calmaria e lanccedila na tempestade desacomoda instiga o pensamento retira do

lugar comum causa desconforto Neste contexto por significados que possam ser

revistosrevisados reconceituados Imaginaacuterios produzidos pela cinematografia

dominante (em nossos contextos) possam ser repensados ou em alguns casos

como argumenta Adriana Fresquet desaprendidos e reaprendidos a partir de outras

loacutegicasrelaccedilotildees

(Des)continuidade tem duplo sentido no cinema a ideia de movimento se daacute

pela sequecircncia contiacutenua de imagens trabalha-se com a continuidade de um roteiro

Uma descontinuidade seria uma ruptura da continuidade da linearidade Poderia ir

na contramatildeo a contrapelo Caracteriza-se como uma interrupccedilatildeo A continuidade

no cinema busca uma coerecircncia loacutegica que envolve sonoridade e fluxo visual na

sucessatildeo de imagens o que pode envolver cortes durante uma montagem pois

cabe ao continuiacutesta manter a conexatildeo desejada pelo roteiro entre as cenas

concedendo entendimento agrave narrativa que estaacute sendo contada Juntamente com o

diretor ou diretora de um filme colabora com todas as demais especificidades

teacutecnicas que participam da histoacuteria a ser contada dos enquadramentos aos

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cenaacuterios objetos de cena etc Entatildeo O que seria umuma (Des)Continuiacutesta em

educaccedilatildeo

Talvez aqueleaquela que ocupa-se da provocaccedilatildeo que incita o jogo que

lanccedila convites que desafia Sabemos que a escola nos moldes atuais natildeo

configura-se uacutenica fonte de saberes mas espaccedilo de diaacutelogo de negociaccedilatildeo

formulaccedilatildeo

Desfecho do ponto de vista literaacuterio diz respeito agrave finalizaccedilatildeo ao desenlace

de uma tramanarrativa Pode ser entendido tambeacutem como local de chegada depois

de alguns trechos percorridos Neste texto desfecho pode ser concebido tambeacutem

como siacutentese do processo desenvolvido poreacutem aberto ainda no ato de acontecer

Entendo desfechos como provisoacuterios embora pareccedila relevante percebermos

processos de soluccedilotildees de problemas pontos que podem ser destacados ao teacutermino

de uma jornada de uma investida uma aposta Acredito que desfechos satildeo

importantes pois impelem a retomar a jornada examinar o percurso movimentar-se

em temporalidades diversas para compreender como se articula o momento

presente Transformando-o em verbo desfecho - desfechar - poderia ser des-fechar

tornaacute-lo em aberto apesar de haver jaacute percorrido uma trajetoacuteria examina-se o

recorrido poreacutem servindo como propulsor a dar segmento a tomar novas

experiecircncias seguir aprendendo des-fechando processos educativos

Referecircncias

BRUNER Jerome Actos de significado maacutes allaacute de la revolucioacuten cognitiva Madrid Alianza Editorial 1991 DIAS Belidson O imundo da cultura visual Brasiacutelia Editora da poacutes-graduaccedilatildeo em arte da Universidade de Brasiacutelia 2011 ELLSWORTH Elizabeth Posiciones en la ensentildeanza diferencia pedagogiacutea y el poder de la direccionalidad Madrid Akal 2005 FRESQUET Adriana Cinema e educaccedilatildeo reflexotildees e experiecircncias com professores e estudantes de educaccedilatildeo baacutesica dentro e ldquoforardquo da escola Belo Horizonte Autecircntica 2013

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FRESQUET Adriana Imagens do desaprender uma experiecircncia de aprender com o cinema Rio de Janeiro UFRJ 2007 FRESQUET Adriana MIGLIORIN Cezar Da obrigatoriedade do cinema na escola notas para uma reflexatildeo sobre a lei 1300614 In FRESQUET Adriana (Org) Cinema e Educaccedilatildeo a lei 13006 Reflexotildees perspectivas e propostas Belo Horizonte Universo Produccedilatildeo 2015 HERNAacuteNDEZ Fernando Catadores da Cultura Visual uma proposta para uma nova narrativa educacional Porto Alegre Mediaccedilatildeo 2007 MARTINS Alice Faacutetima Imagens do cinema cultura contemporacircnea e o ensino de artes visuais In OLIVEIRA M O de (Ed) Arte educaccedilatildeo e cultura Santa Maria Ed da UFSM 111-130 2007 MARTINS Raimundo TOURINHO Irene (Org) Circunstacircncias e ingerecircncias da cultura visual In MARTINS R y TOURINHO I (Eds) Educaccedilatildeo da cultura visual conceitos e contextos Santa Maria Ed da UFSM (paacuteg 51-68) 2011

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PerformanceS1

Fernando Pinheiro Villar 2 Universidade de Brasiacutelia - UnB

Aproximando-se do primeiro ano apoacutes 11 de setembro continuamos sem saber

o que sabemos e o que natildeo sabemos sobre a destruiccedilatildeo dos preacutedios do World Trade

Center em Nova York O que podemos ter certeza eacute que antes da queda das torres

gecircmeas jaacute viviacuteamos crises aceleradas empor nossa supermodernidade crise de

certezas crise social crise de conceitos crise de significados Realidades que se

transformam continuamente demandam novos conceitos e revisatildeo constante de

conceitos existentes para negociar com as novas praacuteticas artiacutesticas teorias famiacutelias

trabalho sexualidades etnias ensino e meacutetodos

Performance eacute apontada como um conceito chave em estudos culturais

contemporacircneos Este artigo aborda performances artiacutesticas Enfatizo o lsquoartiacutesticasrsquo

como necessaacuterio recorte e por minha experiecircncia praacutetica Mas este recorte natildeo evita a

interferecircncia de outros significados nem indica um terreno mais tranquilo para

taxonomias

No meio de uma semana de debates sobre lsquoperformancersquo na Universidade de

Brasiacutelia em maio de 2002 um estudante disse que parecia lsquohaver uma certa

glamourizaccedilatildeo da duacutevida ou da dificuldade de definir performancersquo3 Mais preocupante eacute

a banalizaccedilatildeo da duacutevida em torno da amplitude do conceito gecircnero artiacutestico objeto de

estudo eou metodologia de criacutetica e pesquisa que performance pode significar Este

1 Publicado em CARREIRA Andreacute VILLAR Fernando Pinheiro GRAMMONT Guiomar de RAVETTI Graciela e ROJO Sara (orgs) Mediaccedilotildees performaacuteticas latino-americanas (Belo Horizonte FALEUFMG 2003) p 71 - p80 2 Autor encenador e diretor Professor da graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo do Departamento de Artes Cecircnicas do Instituto de Artes da Universidade de Brasiacutelia Graduado na UnB em Artes Plaacutesticas poacutes-graduado em Direccedilatildeo no Drama Studio London e PhD no Queen Mary CollegeUniversity of London Fundador dos grupos Vidas Erradas (83-89) TUCAN (92-08) e CHIA LIIAA (2007) tem trabalhado com diversos grupos artistas e instituiccedilotildees de ensino do Brasil e Europa Professor visitante na University of Manchester e na UNICAMP com vaacuterios artigos publicados e alguns livros organizados sobre teatro performance e hibridismos artiacutesticos contemporacircneos 3 Seminaacuterio preparatoacuterio para o evento performaacutetico artiacutestico Gecircnesis de performances (28 29072002) organizados pelo ex-aluno de Artes Cecircnicas e funcionaacuterio da UnB Magno de Assis

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artigo natildeo elimina duacutevidas sobre performance mas busca discordar de ambas

banalizaccedilatildeo e glamourizaccedilatildeo destas duacutevidas

O tiacutetulo lsquoperformanceSrsquo inicia esta empreitada afirmando a pluralidade do

conceito performance Assumir-se a multiplicidade de significados atrelados ao

significante lsquoperformancersquo eacute condiccedilatildeo inicial para seu entendimento Sabemos que

lsquoperformancersquo tem orientado inspirado eou desobstruiacutedo teorias e praacuteticas de

sociologia antropologia linguiacutestica psicologia filosofia neurologia artes cecircnicas artes

plaacutesticas muacutesica e danccedila entre outros campos de conhecimento Essa amplitude

conceitual pode provocar um desconforto com a abrangecircncia desconcertante e

escorregadia de performance como conceito como objeto de estudo como gecircnero

artiacutestico ou como metodologia de criacutetica e pesquisa

Um dos principais significados aliados ao significante performance eacute o de

desempenho O significado de desempenho afirma a observaccedilatildeo analiacutetica de

comportamentos humanos produtos eletrocircnicos e mecacircnicos ou de atores xampus

transeuntes oacuteleos atletas sapatos de corrida animais fios condutores ou de minerais

Na observaccedilatildeo do desempenho humano performance pode tambeacutem significar

comportamentos que se repetem Ou accedilotildees cotidianas que satildeo ensaiadas ou

preparadas - e observadas Assim sendo uma performance sem consciecircncia do fato de

estar sendo vista como tal pode significar uma performance cotidiana cultural ou social

Para Richard Schechner ldquotudo no comportamento humano indica que performamos

nossa existecircncia especialmente nossa existecircncia socialrdquo (1982 14) Steven Connor

considera que ldquose tornou difiacutecil estarmos seguros onde que uma accedilatildeo termina e uma

performance comeccedilardquo (108) Schechner e Connor datildeo uma ideia do possiacutevel alcance de

performance Este alcance detona diferentes linhas de pesquisa e teorias sobre

performance em campos distintos Pelo recorte optado por esta comunicaccedilatildeo estou me

atendo mais agraves performances artiacutesticas exibiccedilotildees ou accedilotildees declaradas publicamente

como tais accedilotildees conscientes mesmo que liminais construiacutedas e organizadas por

agentes que as mostraratildeo como opccedilatildeo profissional ou amadora entrada franca

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cobrando um ingresso ou distribuindo convite em espaccedilos ao ar livre semi-abertos ou

cobertos

A performance artiacutestica se caracteriza(va) muito pela fuga de qualquer

possibilidade de categorizaccedilatildeo Esta evasatildeo de escaninhos esteacuteticos caracteriza(ria)

aquilo que artistas objetivam(vam) natildeo ser caracterizado Com a heranccedila forte das

Vanguardas Histoacutericas das uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX e das trecircs primeiras

deacutecadas do seacuteculo XX vanguardas do periacuteodo poacutes-Segunda Guerra Mundial

continua(ra)m indo contra restriccedilotildees das possibilidades expressivas das artes e

rechaccedilando definiccedilotildees que se pretendiam definitivas

As Vanguardas Histoacutericas satildeo compostas pelo Simbolismo Expressionismo

Futurismo Construtivismo Dada Surrealismo Bauhaus ou Adolphe Appia Gordon

Craig Isadora Duncan Vsevolod Meyerhold Vladimir Mayakovsky Marcel Duchamp

Antonin Artaud entre tantos outros Darwin Nietzsche Marx Wagner Freud Einstein

Edison nos lembram que a virada do seacuteculo XIX para o XX tambeacutem testemunha uma

crise de conceitos e certezas consideraacutevel Aliados agrave revoluccedilatildeo no pensamento humano

provocada por estes pensadores artistas e cientistas o motor a lacircmpada eleacutetrica

locomotivas teleacutegrafos e o cinema transformam comportamentos e sociedades Ainda

com ecos do idealismo do Romantismo em buscar o intercacircmbio entre diferentes artes

artistas de vaacuterias correntes e tendecircncias deixam um legado de accedilotildees textos e

manifestos que transitam e querem transitar aleacutem das fronteiras convencionais de cada

linguagem Durante todo o seacuteculo XX o impacto das duas guerras mundiais no mesmo

seacuteculo foi refletido diretamente numa arte que promovia a primazia da accedilatildeo

testemunhada de interferecircncia puacuteblica como paliativo passageiro para a impotecircncia do

ser humano diante da destruiccedilatildeo inoacutecua Artistas das Vanguardas Histoacutericas da

primeira e segunda metades do seacuteculo XX questionam entatildeo de forma radical a

convencionalidade de suas linguagens e de seus puacuteblicos no bojo de intensas

transformaccedilotildees econocircmicas sociais e poliacuteticas As fronteiras entre arte e vida se

misturam

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Na entatildeo nova ediccedilatildeo do Oxford Dictionary em 1971 lsquoperformance artrsquo eacute incluiacuteda

no verbete lsquoperformancersquo como uma suposta arte de accedilotildees realizada por artistas

plaacutesticos para plateias presentes Depois da Segunda Guerra Mundial outros termos e

conceitos jaacute tentam acompanhar uma intensa atividade de artistas em torno do eixo

tempo-espaccedilo com testemunhas Estas atividades manipulam nexos com accedilatildeo corporal

e a presenccedila do autor realizando seu processo sua obra ou sua obra em processo para

espectadores visitantes puacuteblico ou testemunhas Uma das tentativas de conceituaccedilatildeo

para estas obras foi lsquointermiacutediarsquo [(intermedia ou interlinguagem)] cunhado em 1967

por Dick Higgins do Fluxus (Higgins 1978) Um ano depois Richard Kostelanetz

defendeu o termo lsquoteatro dos meios misturadosrsquo (Kostelanetz 1970) Mas eacute

lsquoperformance artrsquo nos paiacuteses anglo-saxocircnicos e lsquoperformancersquo em paiacuteses de liacutengua

latina que consegue abarcar uma praacutetica artiacutestica interdisciplinar Sem desconhecer a

heranccedila das Vanguardas Histoacutericas performance art ou performance conteria action

paintings John Cage arte conceitual minimalismo espacialismo Happenings action

art arte corporal aktionism vienense arte feminista art povera parangoleacutes de Oiticica

bichos de Ligia Clark teatro instrumental environments viacutedeo arte colaboraccedilotildees

decollage assemblage arte cineacutetica o neo-dada do Gutai endurance art Flaacutevio

Impeacuterio Artur Barrio ou Laurie Anderson entre tantos outros grupos e artistas

Em 1981 Douglas Davis jaacute propotildee o termo lsquopost-performancismrsquo para defender

uma arte aleacutem do teatro performance ou artes plaacutesticas Em 1992 Josette Feraacutel coloca

performance como o nascimento de um gecircnero com a morte de sua funccedilatildeo anaacuterquica

anti-categorizaccedilotildees Em 1999 Paul Schimmel anuncia a morte de performance art por

volta de 1979 No entanto as referecircncias cruzadas e trocas entre gecircneros hiacutebridos e

mo(vi)mentos foram se acelerando durante as deacutecadas de 1980 e 1990

simultaneamente dificultando e promovendo novos termos e roacutetulos Autores como

Gregory Battcock (1984) RoseLee Goldberg (1984) ou Herbert Blau (1992)

reconhecem que lsquoperformancersquo seria o termo para a contiacutenua expansatildeo do terreno

ampliado que performance art conquistou Utilizando um artigo anterior performance no

final do seacuteculo XX

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[] parece ser um conceito guarda-chuva que abriga uma livre pluralidade de expressotildees cecircnicas socircnicas e visuais Atraveacutes de performance inuacutemeros estudos de diferentes artes revelam um comportamento cuidadoso para evitar novas definiccedilotildees que natildeo respeitem as diferenccedilas e o caraacuteter anaacuterquico das artes em desordenar e escapar de novas categorizaccedilotildees Performance inclui entre outros campos de estudo rituais festas populares comportamento cotidiano linguumliacutestica ciecircncias sociais cultura psicologia [performing self criacutetica em performance] o evento teatral a encenaccedilatildeo de peccedilas drama ou dramaturgia escrita dramaturgia de imagens e outras produccedilotildees multi pluri anti ou interdiscliplinares em frente de plateacuteias em diversos tipos de espaccedilo cecircnico aleacutem do teatro O termo e conceito performance vai contra uma visatildeo logocecircntrica e exclusiva de teatro como lsquoa representaccedilatildeo de dramas eurocecircntricosrsquo (Schechner 1992 9) Para os estudos de teatro a metodologia e sistema de criticismo proposto por performance resgata o irrepetiacutevel efecircmero transitoacuterio momento de exposiccedilatildeo da linguagem cecircnica com a presenccedila de atores e espectadores privilegia-se a performance como um dos principais focos de significados do teatro (Villar de Queiroz 1999 249)

Para os estudos e praacutetica de teatro o texto performaacutetico ou o performance text eacute

um derivado do significante performance fundamental Batendo de frente com a visatildeo

antagocircnica quando exclusivista de teatro como domiacutenio da literatura dramaacutetica o texto

performaacutetico seria o texto da encenaccedilatildeo em curso a mise-en-scegravene fluindo ante e entre

os sentidos dos presentes la puesta en escena acontecendo uma rede intertextual

Ainda haacute uma defasagem da jovem academia de teatro em reconhecer o texto

performaacutetico artiacutestico na linguagem cecircnica Isso pode dever-se em parte agrave

supervalorizaccedilatildeo persistente e descontextualizada historicamente da visatildeo aristoteacutelica

de teatro em Poeacutetica Mais forte razatildeo eacute a impossibilidade do registro da performance

uacutenica irrepetiacutevel efecircmera transitoacuteria Essa impossibilidade caracteriza um choque

frontal com abordagens materialistas de cultura que tem em textos de peccedilas

documentos partituras quadros esculturas monumentos e edifiacutecios suas evidecircncias

para descrever o comportamento humano O viacutedeo o DVD e novas tecnologias alteram

um pouco a impossibilidade de registros do evento aacuteudio-cineacutetico-temporal e visual que

uma performance teatral coreograacutefica musical ou artiacutestica pode ser Novas tecnologias

natildeo podem entretanto cortar a impossibilidade de reproduccedilatildeo de um evento

caracterizado pela junccedilatildeo de pessoas durante sua vida uacutenica que morre para renascer

diferente no proacuteximo dia Como Dyonisus

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A maioria do teatro convencional claacutessico familiar eou teatratildeo e muito do teatro

de pesquisa de artistas com visibilidade internacional e respaldo criacutetico estaria

caracterizado pela representaccedilatildeo de um laacute-entatildeo Este laacute-entatildeo eacute reproduzido em um

palco ou espaccedilo eleito com atores ou atrizes vivendo personagens escritos por um

autor ou autora seguindo marcaccedilotildees de um diretor ou diretora Performance

privilegiaria o aqui-agora do durante da apresentaccedilatildeo seja onde for de uma accedilatildeo

desenrolada e apresentada por seu autor-ator-diretor-encenador-produtor o

performador tenta ser o proacuteprio meio esteacutetico ndash ele ou ela se colocam como linguagem

processo e obra Mas esta diferenciaccedilatildeo pode natildeo resistir ao fato de que o uso atual

quase omnipresente do termo performance abala certezas linguiacutesticas e esteacuteticas

anglo-saxocircnicas e latinas Na liacutengua inglesa por exemplo performance sempre foi

associada agrave apresentaccedilatildeo representaccedilatildeo ou exposiccedilatildeo cecircnica ou musical em frente a

uma plateia e [agrave] interpretaccedilatildeo de artistas Em 1990 o Diccionario Actual de la Lengua

Espantildeola apresenta performance como entre outros significados lsquorepresentacioacuten de

cine y teatrorsquo e lsquoactuacioacuten de un artistarsquo (1219) Estudantes no Brasil me convidam para

assistir a suas performances mesmo que sejam representaccedilotildees naturalistas de

personagens de Calderoacuten de la Barca Shakespeare ou Nelson Rodrigues dirigidos por

um diretor ou uma professora

As aacuteguas de performance e de teatro se confundem e confundem Em 1987 o

diretor e acadecircmico Michael Kirby lembrava que ldquotodo teatro eacute performance mas nem

toda performance eacute teatrordquo (xi) Em 1992 Herbert Blau reconhece sua saudade ldquode um

tempo em que se algueacutem falasse de performance estaria falando de teatrordquo (2) Em

1996 Elin Diamond recorda que ldquose performance eacute o reverso do teatro convencional

teatro tambeacutem eacute o reverso de performancerdquo (4) Em 1997 a artista e professora da New

York University Deb Magolin por exemplo celebra que ldquoperformance eacute um teatro de

inclusatildeo Qualquer um pode fazerrdquo (69) Para vaacuterios criacuteticos acadecircmicos e artistas no

mundo performance seria o teatro poacutes-moderno ou teatro contemporacircneo de

vanguarda

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Ainda persiste uma tendecircncia que considera performance art e performance

como variaccedilotildees da arte teatral Esta tendecircncia convive com uma perspectiva oposta

que exclui teatro da histoacuteria de performance e de performance art Ambas

perspectivas parecem reafirmar concepccedilotildees binaacuterias que natildeo reconhecem um campo

artiacutestico ampliado interdisciplinar aleacutem das disciplinas que se juntaram chocaram-se

ou digladiaram-se ateacute o nascimento de uma outra disciplina linguagem ou objeto que

se independe das matrizes anteriores e continua um caminho proacuteprio Disciplinas

liacutenguas paiacuteses e pessoas satildeo universos em construccedilatildeo e negociaccedilatildeo com seus meios

ambientes A dialeacutetica cultural promove novas disciplinas liacutenguas territoacuterios e

fronteiras mudanccedilas e se o mundo performa o teatro continuaraacute sendo um siacutetio de

performances sobre performances do mundo

Em 1980 Timothy J Wiles lanccedilava o termo lsquoteatro performancersquo para descrever

uma diversidade cecircnica revelada por uma dramaturgia e estilos de interpretaccedilatildeo

distintos do realismo naturalista ou do teatro eacutepico Essa diversidade tambeacutem era

revelada por inovaccedilotildees formais que segundo Wiles haviam criado ldquouma situaccedilatildeo

desconfortaacutevel para todos os historiadores de esteacuteticardquo (112) Com lsquoperformance teatrorsquo

a primazia dada ao texto performaacutetico questiona encapsulamentos da linguagem cecircnica

em limites da literatura dramaacutetica e questiona tambeacutem hierarquias fixas de criaccedilatildeo

direccedilatildeo e autoria Teatro performance transita por diferentes linguagens artiacutesticas

resultando em outra Teatro performance assume um espaccedilo intermediaacuterio

interdisciplinar entre performance art e teatro

Nuances interdisciplinares nas artes e ciecircncias ou obras interdisciplinares

artiacutesticas natildeo podem ser mais ignoradas em sua notoacuteria presenccedila em nossa

contemporaneidade Praacuteticas artisticamente interdisciplinares tecircm uma histoacuteria que

remonta [a] seacuteculos antes de Cristo na praacutetica oriental e ocidental se focarmos o

manual para artiacutesticos cecircnicos indiano Natya-Sastra ou os festivais gregos Artistas

renascentistas italianos e a oacutepera barroca apresentam impulsos interdisciplinares

claros Estes impulsos se aceleram de forma radical nas sucessivas transformaccedilotildees

esteacuteticas promovidas pelas vanguardas do seacuteculo XX Poacutes 1968 e poacutes performance art

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tanto o omnipresente conceito metodologia de pesquisa e criacutetica de performance

quanto as performances artiacutesticas desenvolvidas nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo

XX reforccedilam a necessidade de abordar-se interdisciplinaridade entre as artes

Esta breviacutessima perspectiva histoacuterica objetiva apontar uma presenccedila e uma

necessidade de estudos de um fenocircmeno interdisciplinar entre as artes Entretanto

assim como performance interdisciplinaridade tambeacutem pode ter uso indevido ou

diletante dentro dos muacuteltiplos acircngulos e mundos simultacircneos e paradoxais da

supermodernidade Tambeacutem como performance lsquointerdisciplinaridadersquo tem desafiado

certezas epistemoloacutegicas

Na uacuteltima deacutecada podemos encontrar novas propostas em torno de

disciplinaridades Judith Butler (1990) e Baz Englers (1996) propotildeem a discussatildeo de

lsquopoacutes-disciplinaridadesrsquo Dwight Conquergood e Joseph Roach definem performance

para Marvin Carlson como uma lsquoanti-disciplinarsquo (189) Fechando a deacutecada Roy Ascott

usa o termo lsquoumiacutediarsquo (moistmedia) para descrever um lsquointerespaccedilo entre o mundo seco

da virtualidade e o mundo molhado da naturezarsquo (9)

Transdisciplinaridade poacutes-disciplinaridades anti-disciplinas e umiacutedias atestam

todas processos interdisciplinares Como interdisciplinas artiacutesticas poacutes-disciplinas anti-

disciplinas e umiacutedias satildeo lsquointermiacutediasrsquo satildeo resultantes de disciplinas que dialogaram ou

digladiaram-se atraveacutes de encontro troca negociaccedilotildees eou choque gerando uma

nova disciplina Assim sendo meu entendimento de interdisciplinaridade natildeo confere

com o simples juntar de disciplinas diferentes ou muito menos com o improdutivo de

realidades pseudo interdisciplinares que natildeo se tocam nem se trocam Investigo

interdisciplinaridade artiacutestica para estudar ensinar e praticar negociaccedilotildees e

intercacircmbios entre diferentes linguagens ou disciplinas artiacutesticas que resultaram em

novos campos de accedilatildeo em outros territoacuterios de mutaccedilatildeo artiacutestica e de possibilidades

expressivas Interdisciplinas artiacutesticas seriam entatildeo outras disciplinas ou intermiacutedias

tais como as jaacute citadas performance art e teatro performance danccedila teatro butoh

muacutesica teatro arte computacional teatro acuacutestico teatro digital instalaccedilatildeo roboacutetica

criacutetica em performance ou viacutedeo poesia

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Terroristas oficiais e disfarccedilados continuam a defender fronteiras imutaacuteveis e a

dividir pessoas quando soacute existe uma raccedila a humana Enquanto a natureza se delicia

com a diversidade interesses econocircmicos impotildeem modelos hegemocircnicos injustos e

uniformizantes que querem evitar a particularidade a convivecircncia ou a diferenccedila Os

mercados globalizados nos orgasmos muacuteltiplos do capitalismo selvagem conquistam

novas trilhas para o livre fluir de capitais mas natildeo de pessoas

A paz o livre exerciacutecio de sexualidades igualdade novas fronteiras e o

assentamento de pessoas em condiccedilotildees mais justas satildeo evitados no Brasil e no mundo

por problemas pessoais mal resolvidos interesses escusos e paranoias

governamentais Como lembrou Lucia Sander em palestra-performance em Maceioacute

neste ano Einstein dizia que ldquoeacute mais faacutecil dividir um aacutetomo que destruir um

preconceitordquo E Susan Sontag afirmou anos depois que a histoacuteria do preconceito eacute tatildeo

antiga quanto a histoacuteria das questotildees pessoais mal resolvidas As artes incluindo

performance e outras interdisciplinas artiacutesticas vazam esses escudos anti-

transformaccedilotildees e tentam exemplificar outras possibilidades de outros mundos

simultacircneos e distintos que se trocam e produzem outros mundos inclusivos e

questionadores de absolutismos restringentes A batalha continua sintomaacutetica

enigmaacutetica e performaacutetica

Referecircncias ASCOTT Roy lsquoArte emergente interativa tecnoeacutetica e uacutemidarsquo Trad Cleacuteria Maria Costa Anais do 1 Encontro Internacional de Arte e Tecnologia Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1999 p19 - p29 BARTHES Roland Image-Music-Text Trad Stephen Heath Nova York Hill and Wang 1977 BATTCOCK Gregory e NICKAS Robert eds The Art of Performance Nova York E P Duncan amp Co 1984 BLAU Herbert lsquoThe Prospect Before Usrsquo Discourse 142 1992 p 1- p 25

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BUTLER Judith Gender Trouble Londres e Nova York Routledge 1990 CAMPBELL Patrick ed Analysing Performance A Critical Reader Manchester e Nova York Manchester University Press 1996 CARLSON Marvin Performance A Critical Introduction Londres e Nova York Routledge 1996 CONNOR Steven lsquoPostmodern Performancersquo In Campbell 1996 p 107- p 24 DAVIS Douglas lsquoPost-Performancismrsquo Artforum 202 (1981) pp 31-9 DIAMOND Elin ed Performance amp Cultural Politics (Londres e Nova York Routledge 1996) ENGLER Balz lsquoPostdisciplinarityrsquo In Faria Neide (ed) Language and Literature Today Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1996 p 852-9 FAZENDA Ivani Catarina Arantes Interdisciplinaridade um projeto em parceria Satildeo Paulo Loyola 1991 FEacuteRAL Josette lsquoWhat is Left from Performance Art Autopsy of a Function Birth of a Genrersquo Discourse 142 1992 pp 142-62 GOLDERG RoseLee lsquoPerformance The Golden Yearsrsquo in Battcock e Nickas (1984) pp 71-94 HIGGINS Dick A Dialectics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978) JAPIASSU Hilton Interdisciplinaridade e patologia do saber (Rio de Janeiro Imago 1976) KIRBY Michael A Formalist Theatre Philadelphia University of Pennsylvania Press 1987 KOSTELANETZ Richard The Theatre of Mixed Means An Introduction to Happenings Kinetic Environments and Other Mixed-Media Performances (Londres Pitman 1970) MAGOLIN Deb lsquoA Perfect Theatre for One Teaching ldquoPerformance Compositionrdquorsquo TDR 412 (1997) pp 68-81

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ORTHOFF Geraldo Tradiccedilatildeo e inovaccedilatildeo especializaccedilatildeo e interdisciplinaridade no ensino das artes (Brasiacutelia Editora D 1994) SCHECHNER Richard The End of Humanism (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982) ________ A New Paradigm for the Theatre in the AcademyTDR Vol 364 (1992) pp 7-10 SCHIMMEL Paul ed Out of Actions between Performance and the Object 1949-1979 (Londres e Nova York Thames and Hudson 1998) VILLAR de Queiroz Fernando Antonio Pinheiro lsquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi of La Fura dels Bausrsquo Romance Quarterly 464 (1999) pp 248-54 ______________ lsquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rsquo tese de PHD defendida e aprovada em 08 de janeiro de 2001 Senate House University of London (2001) WILES Timothy J The Theatre Event (Chicago The University of Chicago Press 1980)

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Estudo sobre a participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental

Pacircmela Goumlethel Dutra1 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel2

Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Ana Maria Bueno Accorsi3 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Resumo O artigo apresenta a pesquisa com um grupo instrumental em uma escola puacuteblica municipal em TaquariRS Partiu dos questionamentos Qual o significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental Quais as expectativas dos estudantes que participam desses grupos Qual a influecircncia da muacutesica para estes participantes Quais as expectativas de estudantes familiares e comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre o envolvimento dos familiares dos estudantes O objetivo foi compreender a importacircncia da participaccedilatildeo em um grupo instrumental escolar Constatou-se a importacircncia da participaccedilatildeo no grupo instrumental apontado por todos investigados Entende-se que esta pesquisa contribua para a construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para a educaccedilatildeo musical nas escolas bem como para a implementaccedilatildeo da legislaccedilatildeo que dispotildee sobre a inserccedilatildeo da muacutesica no Brasil Palavras-chave Educaccedilatildeo musical grupos instrumentais muacutesica na Educaccedilatildeo Baacutesica

1 Estudante do curso de Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Musical na Universidade Estadual pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Licenciada em Pedagogia pelo Centro Universitaacuterio Leonardo da Vinci Cursando o 9ordm semestre de licenciatura em Muacutesica pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Participou do grupo de pesquisa na Uergs intitulado Educaccedilatildeo Musical diferentes tempos e espaccedilos com linhas de pesquisas sobre processos de ensino e aprendizado em muacutesica e poliacuteticas em Educaccedilatildeo Musical Professora de muacutesica do municiacutepio de Taquari- RS desde 2013 no qual atua em atividades de Educaccedilatildeo Musical no curriacuteculo do ensino baacutesico nos anos iniciais e finais do ensino fundamental e em atividades escolares no extracurricular com aulas de instrumentos e na formaccedilatildeo de grupos instrumentais bandas marciais e coro infanto-juvenil 2 Doutora e Mestre em Educaccedilatildeo Musical pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Especialista em Informaacutetica na Educaccedilatildeo Ecircnfase em Instrumentaccedilatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul Licenciada em Muacutesica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Coordena o curso de Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Musical na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Unidade de Montenegro Eacute coordenadora da Aacuterea Muacutesica do Programa de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia em Montenegro da CAPESUERGS Coordena a Comissatildeo de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo da Uergs-Montenegro orientando bolsistas de iniciaccedilatildeo cientiacutefica em muacutesica e artes da FAPERGS CNPq e UERGS Eacute coordenadora dos grupos de pesquisa registrados no CNPq Arte criaccedilatildeo interdisciplinaridade e educaccedilatildeo e Educaccedilatildeo Musical diferentes tempos e espaccedilos Coordena o Programa de Extensatildeo Universitaacuteria do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo pela Uergs Eacute Diretora Cientiacutefica da Coleccedilatildeo Educaccedilatildeo Musical da Editora Prismas de Curitiba Faz parte da Comissatildeo Gauacutecha de Folclore e da Fundaccedilatildeo Santos Herrmann Eacute integrante da Academia Montenegrina de Letras ocupando a Cadeira nordm5 Faz parte da Associaccedilatildeo Montenegrina de Escritores 3 Possui graduaccedilatildeo em Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (1976) mestrado em Linguumliacutestica e Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (1999) e doutorado em Linguumliacutestica e Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (2005) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e Consultora Terapecircutica em Dependecircncia Quiacutemica Coordena o Curso de Licenciatura em Letras Portuguecircs e Literaturas de Liacutengua Portuguesa e o Curso de Especializaccedilatildeo Teoria e Praacutetica da Formaccedilatildeo do Leitor

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Abstract The article presents the research with an instrumental group at a municipal public school in TaquariRS The research started from the questions What is the meaning of student participation in an instrumental group What are the expectations of the students participating in these groups What is the influence of music on these participants What are the expectations of students families and the school community in relation to the group How does the involvement of the students family members occur The objective was to understand the importance of participation in a school instrumental group It was verified the importance of the participation in the instrumental group indicated by all investigated It is understood that this research contributes to the construction of public policies for music education in schools as well as for the implementation of the legislation that regulates the insertion of music in Brazil Keywords Musical education instrumental musical groups music in Basic Education

Introduccedilatildeo

As diversas possibilidades de inserccedilatildeo da muacutesica na escola conquistaram

legitimidade com a Lei nordm 11769 de 18 de agosto de 2008 Mais recentemente em

3 de maio de 2016 foi publicada a Lei nordm 13278 que incluiu artes visuais danccedila

muacutesica e teatro nos curriacuteculos dos diversos niacuteveis da Educaccedilatildeo Baacutesica A nova

legislaccedilatildeo altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional nordm 9394 de

1996 (LDB 93941996) estabelecendo um prazo de cinco anos para que os

sistemas de ensino promovam a formaccedilatildeo de professores para implantar esses

componentes curriculares nas escolas A partir dessas leis tem-se a obrigatoriedade

da inclusatildeo da muacutesica no curriacuteculo das escolas Neste sentido pode-se pensar na

diversidade dos modos de a muacutesica se configurar na escola inclusive como

atividade extracurricular Nesse sentido Wolffenbuumlttel (2014) aponta

Muitas vezes as escolas optam pelo desenvolvimento de determinadas atividades - dentre essas as musicais - em outras dimensotildees que natildeo as tradicionais relacionadas com tempos e espaccedilos curriculares Surgem assim as atividades extracurriculares como alternativas para o ensino

escolar (WOLFFENBUumlTTEL 2014 p 56)

Percebe-se portanto que as atividades musicais extracurriculares

possibilitam a inserccedilatildeo da muacutesica se assim for a opccedilatildeo da escola Poreacutem natildeo

inviabilizam a implementaccedilatildeo da muacutesica no ensino regular da mesma instituiccedilatildeo

podendo a escola oferecer tanto atividades musicais no ensino regular quanto

extracurricular

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Sobre as funccedilotildees sociais envolvidas nas praacuteticas instrumentais de grupos

musicais Bozzetto (2012) aponta a importacircncia da participaccedilatildeo de crianccedilas e jovens

em projetos que envolvam atividades musicais Em sua anaacutelise a autora afirma

A importacircncia de que projetos que satildeo erguidos com a funccedilatildeo de inserccedilatildeo social atraveacutes da muacutesica mantenham viva e coerente essa afirmativa cientes de que dar a oportunidade a uma crianccedila e jovem notadamente de camadas de baixa renda eacute abrir um mundo de possibilidades que com o tempo de convivecircncia podem se tornar uma referecircncia de mundo social para toda uma vida (BOZZETTO 2012 p 266)

Bozzetto (2012) finaliza essa discussatildeo refletindo sobre a necessidade de os

projetos sociais entenderem seu papel de inclusatildeo social destacando que a tarefa

do educador musical eacute a de ldquocontribuir para uma educaccedilatildeo musical mais justa e

humana e da importacircncia de sua inserccedilatildeo em projetos que reconheccedilam a praacutetica

musical como oportunidade de inclusatildeo socialrdquo (p 266)

Joly e Joly (2011) investigaram as praacuteticas sociais e os processos educativos

que acontecem em ambiente de orquestra No sentido das praacuteticas sociais as

autoras refletem sobre as ldquorelaccedilotildees que se estabelecem entre pessoas pessoas e

comunidade na qual se inserem pessoas e grupos grupos entre si grupos e

sociedade mais amplardquo (p 80)

De acordo com Bastiatildeo (2012) nosso paiacutes eacute multicultural possuindo vaacuterias

culturas diferentes e cada regiatildeo possui uma manifestaccedilatildeo folcloacuterica musical

proacutepria Nesse sentido o educador musical poderaacute atraveacutes da praacutetica de conjunto

trabalhar esse contexto ldquodadas a riqueza e a diversidade da muacutesica popular

brasileira ndash observam-se a valorizaccedilatildeo e a inserccedilatildeo das muacutesicas e manifestaccedilotildees da

cultura oral nos contextos acadecircmico e regular de ensinordquo (p 60)

Entende-se que atividades que envolvem grupos instrumentais nos quais a

praacutetica de conjunto estaacute inserida no seu cotidiano contemplam o que os Paracircmetros

Curriculares Nacionais (PCNs) tratam sobre os objetivos de expressatildeo e

comunicaccedilatildeo em muacutesica tais como

Improvisaccedilatildeo composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeo com instrumentos musicais tais como flauta percussatildeo etc eou vozes (observando tessitura e questatildeo de muda vocal) fazendo uso de teacutecnicas instrumental e vocal baacutesicas participando de conjuntos instrumentais eou vocais desenvolvendo autoconfianccedila senso criacutetico e atitude de cooperaccedilatildeo (BRASIL 1998 p 83)

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Ainda no que tange aos PCNs satildeo relacionados objetivos de interpretaccedilatildeo

acompanhamento recriaccedilatildeo e realizaccedilatildeo de arranjos

Arranjos de muacutesica do meio sociocultural e do patrimocircnio musical construiacutedo pela humanidade nos diferentes espaccedilos geograacuteficos eacutepocas povos culturas e etnias tocando eou cantando individualmente eou em grupo (banda canto coral e outros) construindo relaccedilotildees de respeito e diaacutelogo (BRASIL 1998 p 83)

Considerando-se a potencialidade da muacutesica na escola bem como a

existecircncia de atividades extracurriculares caracterizadas como organizaccedilotildees de

grupos instrumentais em diversas escolas alguns questionamentos surgiram Qual o

significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental Quais as

expectativas dos estudantes que participam destes grupos Qual a influecircncia da

muacutesica para esses participantes Quais as expectativas de estudantes familiares e

comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre o envolvimento dos

familiares dos estudantes Esta pesquisa portanto objetivou compreender a

importacircncia de fazer parte de um grupo instrumental escolar

O Grupo Instrumental Investigado

A investigaccedilatildeo sobre a importacircncia da participaccedilatildeo em um grupo instrumental

escolar originou-se a partir da inserccedilatildeo de uma das autoras deste artigo como

professora de muacutesica em uma escola puacuteblica municipal em TaquariRS O foco da

pesquisa deu-se a partir dessa atuaccedilatildeo considerando-se as atividades no

contraturno escolar

Os ensaios do grupo ocorrem uma vez por semana no uacuteltimo periacuteodo do

turno da tarde apoacutes as aulas coletivas de instrumentos de sopro Contando com

catorze estudantes de 10 a 18 anos de idade a atividade oportuniza a

experimentaccedilatildeo e o manuseio de diversos instrumentos musicais permitindo muitos

aprendizados importantes para o desenvolvimento musical dos estudantes

Atraveacutes da aquisiccedilatildeo de variados instrumentos musicais o grupo tem tido a

possibilidade de fazer apresentaccedilotildees em variadas configuraccedilotildees grupais incluindo

o formato de banda marcial possibilitando aos estudantes experimentar e manusear

uma diversidade musical

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Esta praacutetica extrapola os tempos e espaccedilos escolares agregando pessoas da

comunidade bem como egressos que continuam participando das atividades

musicais O grupo instrumental faz apresentaccedilotildees locais incluindo o comeacutercio local

as instituiccedilotildees beneficentes aleacutem das demais regiotildees do municiacutepio e de fora dele

Metodologia

A proposta metodoloacutegica desta investigaccedilatildeo incluiu a abordagem qualitativa o

meacutetodo estudo de caso e entrevistas e observaccedilotildees como teacutecnicas para a coleta dos

dados A anaacutelise dos dados consistiu na anaacutelise de conteuacutedo

A Abordagem Qualitativa

Para a pesquisa foi utilizada a abordagem qualitativa Martins (2004) explica

que a ldquometodologia qualitativa mais do que qualquer outra levanta questotildees eacuteticas

principalmente devido agrave proximidade entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 295)

Aleacutem disso eacute a partir de cada dado coletado conforme suas caracteriacutesticas que se

faz uma interaccedilatildeo entre os conteuacutedos atraveacutes dessa interaccedilatildeo a pesquisa traz suas

impressotildees e percepccedilotildees

A razatildeo para a escolha da abordagem qualitativa para realizaccedilatildeo deste

trabalho relacionou-se ao fato de a mesma possibilitar a reflexatildeo sobre a

participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental no contexto escolar e na

sociedade em que estatildeo inseridos

O Estudo de Caso

O estudo de caso caracteriza-se por atender a determinado objetivo atraveacutes

da investigaccedilatildeo de um caso especiacutefico Eacute muito utilizado quando se pretende

compreender explorar ou descrever acontecimentos e contextos complexos nos

quais estatildeo simultaneamente envolvidos diversos fatores Para Yin (2001) o estudo

de caso ldquocontribui de forma inigualaacutevel para a compreensatildeo que temos dos

fenocircmenos individuais organizacionais sociais e poliacuteticosrdquo (p 21)

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As Entrevistas Semiestruturadas

As entrevistas semiestruturadas permitiram aprofundar as questotildees

especiacuteficas desta pesquisa A entrevista semiestruturada eacute uma ldquoseacuterie de perguntas

abertas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o entrevistador

pode acrescentar perguntas de esclarecimentordquo (LAVILLE DIONE p 188) Todas

as entrevistas foram realizadas na escola na qual existe o grupo instrumental em

horaacuterios previamente combinados

Ao todo foram feitas cinco entrevistas sendo as mesmas realizadas com dois

estudantes integrantes do grupo instrumental com a matildee de um dos estudantes

com a diretora da escola e com uma professora Como acontece nas entrevistas do

tipo semiestruturada seguiu-se um roteiro mas com a possibilidade de serem

acrescidas outras perguntas conforme necessaacuterio

Considerando-se a escolha dos entrevistados foram seguidos alguns

criteacuterios Selecionou-se um estudante (denominado Estudante J) que participa do

grupo desde o iniacutecio das atividades Neste caso suas informaccedilotildees poderiam

fornecer uma visatildeo geral sobre a importacircncia de participar do grupo haacute mais tempo

O outro estudante (denominado Estudante W) foi escolhido por ter ingressado

recentemente no grupo instrumental e poderia fornecer outra visatildeo a respeito desta

participaccedilatildeo Deste modo aleacutem de ambos os estudantes terem concordado com a

participaccedilatildeo na pesquisa e de terem tempo disponiacutevel para serem entrevistados

eles poderiam contribuir com as informaccedilotildees sobre sua participaccedilatildeo mas tendo

tempos de participaccedilatildeo diferentes no grupo Foi entrevistada tambeacutem a matildee do

Estudante J que participa desde o iniacutecio das atividades do grupo instrumental A

professora que participou da pesquisa foi selecionada por ser docente na escola em

que o grupo instrumental tem suas atividades aleacutem de ter lecionado para os

estudantes investigados Adicionalmente esclarece-se que a professora concordou

em fornecer a entrevista e teve tempo para a mesma Por fim a diretora foi

entrevistada por ter importantes contribuiccedilotildees para a pesquisa considerando-se sua

visatildeo como gestora da escola

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A Anaacutelise dos Dados

Para a realizaccedilatildeo da anaacutelise dos dados coletados nesta investigaccedilatildeo utilizou-

se a anaacutelise de conteuacutedo a partir da proposta de Moraes (1999) Para Moraes

(1999) a anaacutelise de conteuacutedo ldquoconstitui uma metodologia de pesquisa usada para

descrever e interpretar o conteuacutedo de toda classe de documentos e textosrdquo (p 2) A

anaacutelise de conteuacutedo viabilizou a anaacutelise dos dados transcritos tendo contato com

diversos textos corroborando a conclusatildeo da anaacutelise sobre o assunto da pesquisa

atingindo assim os objetivos

Para a realizaccedilatildeo desta anaacutelise alguns procedimentos foram necessaacuterios

como as etapas que Moraes (1999) propotildee tais como a ldquopreparaccedilatildeo das

informaccedilotildeesrdquo a qual foi feita por meio de entrevistas semiestruturadas Deve-se

salientar que as entrevistas foram gravadas no gravador de aacuteudio do celular Apoacutes a

realizaccedilatildeo das entrevistas as mesmas foram integralmente transcritas Efetuadas as

transcriccedilotildees das cinco entrevistas todas passaram pelo processo de revisatildeo e

textualizaccedilatildeo a fim de ajustar possiacuteveis inconsistecircncias de dados ou mesmo

correccedilotildees ortograacuteficas e gramaticais necessaacuterias

Para Moraes (1999) este procedimento eacute importante para iniciar o processo

de codificaccedilatildeo dos materiais estabelecendo um coacutedigo que possibilite identificar

rapidamente cada elemento da amostra de depoimentos ou documentos a serem

analisados

Todo este processo resultou na constituiccedilatildeo de um caderno denominado

Caderno de Entrevistas 2015 (C E 2015) contendo as entrevistas dos estudantes

J e W da matildee do Estudante J da professora e da diretora da escola

Posteriormente este Caderno de Entrevistas 2015 passou por uma leitura

minuciosa considerando-se o processo de ldquounitarizaccedilatildeordquo proposto por Moraes

(1999) servindo de base para as etapas subsequentes quais sejam a

categorizaccedilatildeo e a anaacutelise dos dados Aleacutem do Caderno de Entrevistas tambeacutem foi

constituiacutedo outro caderno denominado Caderno de Categorizaccedilatildeo 2015 (C C

2015) A categorizaccedilatildeo consiste em um procedimento de ldquoagrupar dados

considerando a parte comum existente entre eles Classifica-se por semelhanccedila ou

analogia segundo criteacuterios previamente estabelecidos ou definidos no processordquo

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(MORAES 1999 p 6) Neste caderno os dados coletados foram separados por

categorias sendo que posteriormente depois de rigorosa anaacutelise das categorias

criadas compuseram os Resultados e a Anaacutelise dos Dados juntamente com a

realizaccedilatildeo da anaacutelise fundamentada no referencial teoacuterico desta pesquisa Salienta-

se que estas atividades foram precedidas de uma cuidadosa e ampla leitura do texto

final

Aleacutem dos cadernos mencionados foi constituiacutedo um Caderno de Fotografias

2015 (C F 2015) no qual se encontram as imagens dos eventos dos quais o grupo

instrumental participou servindo como complemento para a anaacutelise dos dados

Desse modo considerando-se o material coletado e organizado resultaram

as seguintes categorias de anaacutelise Os Entrevistados A Importacircncia da Participaccedilatildeo

dos Estudantes nas Atividades do Grupo Instrumental Influecircncias de Participar em

um Grupo Instrumental para a vida dos Estudantes Participantes e Familiares

Envolvidos Expectativas em Relaccedilatildeo agraves Atividades Instrumentais Estas categorias

foram analisadas a partir de um referencial teoacuterico da educaccedilatildeo musical o qual eacute

apresentado a seguir

Referencial Teoacuterico

O referencial teoacuterico selecionado para a anaacutelise dos dados desta investigaccedilatildeo

sobre a importacircncia da participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental

escolar foi constituiacutedo por conceitos de educaccedilatildeo musical e do desenvolvimento

musical de crianccedilas e adolescentes

A Educaccedilatildeo Musical

Kraemer (2000) trata da questatildeo epistemoloacutegica da educaccedilatildeo musical dentre

outros assuntos pertinentes ao tema Define como pedagogia da muacutesica o campo da

educaccedilatildeo musical explicando que a pedagogia da muacutesica ldquodivide seu objeto com as

disciplinas chamadas ciecircncias humanas filosofia antropologia sociologia ciecircncias

poliacuteticas histoacuteriardquo Para Kraemer (2000) ldquoeacute dada a relaccedilatildeo com a musicologia

(assim como com a praacutetica da muacutesica e a vida musical)rdquo (p 52) A psicologia da

muacutesica ldquoinvestiga o comportamento musical e as vivecircncias musicaisrdquo (p 55) e a

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sociologia da muacutesica ldquoas condiccedilotildees sociais e os efeitos da muacutesica assim como

relaccedilotildees sociais que estejam relacionadas agrave muacutesicardquo (p 57)

A partir desses fatores trazidos pelo autor eacute possiacutevel constatar o quanto eacute

vasto o campo da educaccedilatildeo musical agregando a muacutesica a vaacuterias aacutereas do

conhecimento e podendo ser trabalhada dentro dessas linguagens Assim cada

aspecto tem importantes contribuiccedilotildees para o conhecimento musical num todo

Assim como a pedagogia acrescenta em sua didaacutetica e se complementa com

as outras aacutereas do conhecimento para ter mais ecircxito no ensino-aprendizagem e na

relaccedilatildeo estudante-professor podemos fazer o mesmo com a muacutesica agregando

essas aacutereas no fazer didaacutetico-musical Satildeo aacutereas que se complementam em

diversas situaccedilotildees Desse modo a muacutesica tem um papel integrador e

transdisciplinar assim como o papel da pedagogia que considera ldquoa vida humana

sob aspectos da educaccedilatildeo formaccedilatildeo instruccedilatildeo e didaacuteticardquo (KRAEMER 2000 p

60)

Eacute necessaacuterio que na muacutesica assim como na pedagogia existam esses

olhares num contexto amplo da educaccedilatildeo observando todos os aspectos relevantes

no desenvolvimento integral do estudante independente de como a disciplina estaacute

inserida na escola seja de forma curricular ou extracurricular Eacute importante que os

professores de muacutesica considerem a educaccedilatildeo musical como um todo objetivando a

formaccedilatildeo do cidadatildeo Natildeo se desconsidera a teacutecnica da execuccedilatildeo musical

igualmente importante Todavia outros conceitos que fazem parte da educaccedilatildeo

musical satildeo igualmente necessaacuterios

Englobando aspectos socioloacutegicos nos quais eacute observado o comportamento

de uma determinada sociedade e a forma com que se organizam no tempo livre e

trabalho Kraemer (2000) relaciona a muacutesica agrave sociologia explicando

A sociologia da muacutesica examina as condiccedilotildees sociais e os efeitos da muacutesica assim como relaccedilotildees sociais que estejam relacionadas com a muacutesica Ela considera o manuseio com a muacutesica como um processo social e analisa o comportamento do homem relacionado com a muacutesica em direccedilatildeo agraves influecircncias sociais instituiccedilotildees e grupos (KRAEMER 2000 p 57)

Para Swanwick (2003) eacute fundamental unir atividades de execuccedilatildeo

apreciaccedilatildeo e criaccedilatildeo para que os estudantes se desenvolvam artisticamente O foco

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reside especialmente no que acontece quando a pessoa se relaciona com muacutesica

no fazer musical

Swanwick (2003) propotildee trecircs atividades principais na muacutesica compor ouvir

muacutesica e tocaacute-la Ele reuacutene estas atividades em sua proposta conhecida no Brasil

como TECLA constituiacuteda pelo estudo da histoacuteria da muacutesica (literatura) e pela

aquisiccedilatildeo de habilidades (em inglecircs skill aquisition) denominado de teacutecnica Tem-

se assim T de teacutecnica E de execuccedilatildeo C de composiccedilatildeo L de literatura e A de

apreciaccedilatildeo E atraveacutes de sua proposta o autor aborda diversos fatores que

envolvem esse contexto Conceitos a se considerar em qualquer lugar em que o

educador musical possa estar atuando assim como os de Kraemer (2000) seja em

sala de aula anos iniciais e finais ou em um coro um grupo instrumental ou banda

escolar ou marcial com crianccedilas jovens ou adultos Onde haacute pessoas que de

alguma forma estatildeo se relacionando com muacutesica essas concepccedilotildees podem ser

utilizadas

O Desenvolvimento Musical de Crianccedilas e Adolescentes

O estudante ao se identificar com o que estaacute sendo proposto nas atividades

de ensino e aprendizagem no caso de atividades instrumentais em que o estudante

eacute considerado como um propositor e natildeo apenas plateia sentir-se-aacute responsaacutevel

pelas atividades e pelo sucesso das mesmas O estudante se sente valorizado o

que aumenta sua autoestima colabora para seu desenvolvimento pessoal no

sentido intelectual resultando familiarizaccedilatildeo e encantamento com o fazer musical

Nesse sentido Swanwick (2003) discorre sobre a importacircncia de ldquoconsiderar

o discurso musical dos alunosrdquo A partir daiacute o discurso ldquoconversaccedilatildeo musical natildeo

pode ser nunca um monoacutelogo Cada estudante traz consigo um domiacutenio de

compreensatildeo musical quando chega a nossas instituiccedilotildees educacionaisrdquo

(SWANWICK 2003 p 66)

Considerando a muacutesica como discurso ldquoprocederemos baseados na ideia de

que ela pode fazer uma diferenccedila na maneira como vivemos e como podemos

refletir sobre nossa vidardquo (SWANWICK 2003 p 78) Despertar no estudante o

encantamento com o fazer musical oportunizando a compreensatildeo dos aspectos

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musicais Swanwick (2003) explica que as ldquoteacutecnicas e manuseio de materiais

sonoros satildeo importantes mas sabemos que eles natildeo satildeo a soma total da

compreensatildeo musicalrdquo (p 67) Mesmo em grupos musicais que tecircm por base as

atividades instrumentais de aprendizagem de instrumento e praacutetica de conjunto

existem diversas possibilidades para alcanccedilar os objetivos musicais propostos

sensibilizando para a aprendizagem musical

Conforme Wolffenbuumlttel (2014) as atividades extracurriculares servem como

ldquoperspectiva de ampliaccedilatildeo das possibilidades das escolas Estudos realizados em

diferentes paiacuteses sugerem que as atividades extracurriculares satildeo capazes de

contribuir para o desenvolvimento dos alunosrdquo (p 56)

Em relaccedilatildeo agraves possibilidades musicais para desenvolver a compreensatildeo

musical Swanwick (2003) aponta a importacircncia de os estudantes terem ldquoa

oportunidade de produzir e responder agrave muacutesica em todas as camadas do discurso

musical qualquer que seja a atividaderdquo (SWANWICK 2003 p 97) As atividades

musicais em grupos instrumentais contemplam o que os PCNs sugerem para as

atividades musicais no que se refere agrave ldquoCriaccedilatildeo a partir do aprendizado de

instrumentos do canto de materiais sonoros diversos e da utilizaccedilatildeo do corpo como

instrumento procurando o domiacutenio de conteuacutedos da linguagem musicalrdquo (BRASIL

1998 p 83)

Resultados e Anaacutelise dos Dados

A partir da anaacutelise dos dados resultaram quatro categorias Os Entrevistados

A Importacircncia da Participaccedilatildeo dos Estudantes nas Atividades do Grupo

Instrumental Influecircncias de Participar em um Grupo Instrumental para a vida dos

Estudantes Participantes e Familiares Envolvidos Expectativas em Relaccedilatildeo agraves

Atividades Instrumentais

Os Entrevistados

Foram entrevistadas cinco pessoas dois estudantes a matildee de um dos

estudantes uma professora e a diretora da escola

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Um dos estudantes do grupo instrumental o Estudante J participa das

atividades musicais extracurriculares desde abril de 2013 ele iniciou com aulas de

flauta doce e apoacutes a criaccedilatildeo do grupo instrumental teve a oportunidade de

experimentar e manusear outros instrumentos musicais iniciando seus estudos no

saxofone alto o qual toca no grupo ateacute os dias de hoje Seu pai e seu avocirc tambeacutem

tocam instrumentos musicais sendo que desde crianccedila o Estudante J disse

conviver com essas audiccedilotildees tendo aprendido muacutesica e em especial as noccedilotildees de

ritmo atraveacutes do ensinamento de seus familiares (C E 2015 p 11) O Estudante J

salientou que gosta muito de escutar muacutesica sertaneja muacutesica gauacutecha e vaacuterios

outros gecircneros musicais (C E 2015 p 12)

O Estudante W que tem 18 anos de idade participa das atividades do grupo

instrumental desde junho de 2014 tendo comeccedilado a tocar o instrumento musical

metalofone apoacutes a flauta doce este estudante iniciou seus estudos no saxofone alto

desde o iniacutecio de 2015 O Estudante W continuou no grupo instrumental mesmo

apoacutes sua saiacuteda da escola devido ao teacutermino de seus estudos no Ensino

Fundamental Este estudante explicou que nunca foi reprovado mas devido a

problemas familiares parou de estudar por um determinado tempo Diferentemente

do Estudante J o Estudante W natildeo tem familiares com conhecimentos musicais

sendo o primeiro a ter contato com a muacutesica na escola (C E 2015 p 7) O

Estudante W explicou que costuma escutar muacutesica em casa todos os dias

raramente assiste agrave televisatildeo e gosta muito de ouvir muacutesica sertaneja (C E 2015

p 9) Ele relatou que quase todo o dia pratica estudos no saxofone alto ou tem

contato com o instrumento mesmo que seja somente para fazer os procedimentos

de limpeza (C E 2015 p 8)

Eacute possiacutevel apoacutes caracterizar os estudantes organizar e categorizar suas

falas apontar aspectos relativos aos seus gostos e preferecircncias musicais Nesse

sentido Swanwick (2003) postula a necessidade dessa praacutetica de ldquoconsiderar o

discurso musical dos alunosrdquo (p 66) pois estes ao se apresentarem trazem suas

identidades musicais E nesse sentido considerar o discurso musical nos ensaios

do grupo instrumental foi um dos importantes procedimentos realizados

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Em relaccedilatildeo agrave famiacutelia foi entrevistada a matildee do Estudante J o qual eacute

participante do grupo instrumental desde 2013 tambeacutem entrevistado nessa

pesquisa

Representando os professores de sala de aula dos estudantes participantes

do grupo instrumental foi entrevistada a professora do componente curricular de

matemaacutetica Ela leciona para as turmas do 5ordm ao 9ordm ano fazendo parte do processo

de ensino e aprendizagem de estudantes de diferentes faixas etaacuterias que satildeo

participantes do grupo

Por fim da equipe diretiva da escola foi entrevistada a diretora a qual ocupa

este cargo de gestatildeo desde abril de 2014 Anteriormente era vice-diretora da

escola

A Importacircncia da Participaccedilatildeo de Estudantes nas Atividades do Grupo Instrumental

A partir da realizaccedilatildeo desta pesquisa constatou-se a importacircncia que o grupo

instrumental tem na vida de todos os envolvidos com este tipo de trabalho Quer

sejam os estudantes que participam do grupo quer sejam as famiacutelias ndash nesta

pesquisa caracterizadas pela entrevista com uma matildee ndash quer sejam os professores

que trabalham com esses estudantes que estatildeo participando do grupo e com

certeza a equipe diretiva caracterizada pela diretora todos percebem esta

importacircncia Cada um do seu modo demonstrou a intensidade da importacircncia desta

participaccedilatildeo

Os estudantes percebem que ao participarem do grupo instrumental aleacutem de

gostarem eles constatam diversos aprendizados tanto musicais quanto

extramusicais A este respeito o Estudante W relatou ldquoPercebo que para mim

ajudou bastante e eu acho que as pessoas gostam do que a gente faz bem dizer

assimrdquo (C E 2015 p 7)

Em outro momento da entrevista o Estudante W explicou sobre sua

socializaccedilatildeo no grupo e em relaccedilatildeo ao rendimento escolar De acordo com seu

depoimento ldquoAcho bom fiz vaacuterias amizades tambeacutem e gosto das apresentaccedilotildees

Sinto-me bem agrave vontade E melhorei meu rendimento bastante e a aprendizagemrdquo

(C E 2015 p 7)

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Quanto agrave oportunidade que lhe foi dada em relaccedilatildeo agrave muacutesica de participar do

grupo musical o Estudante W salientou este aspecto explicando ldquoSempre gostei de

muacutesica e nunca tinha tido a oportunidade de entrar e acabei gostando muitordquo (C E

2015 p 7)

O Estudante J outro entrevistado nesta pesquisa a respeito de seu apreccedilo

pelas aulas de instrumento explicou ldquoEu gosto muito das aulas eacute bom estar aqui

[na escola] estudando muacutesica e aprendendo outros instrumentos novos isso eacute bem

legalrdquo (C E 2015 p 11)

A matildee do Estudante J explicou sobre como percebe a participaccedilatildeo de seu

filho bem como sobre o que esta participaccedilatildeo resulta na famiacutelia modificando-a

inclusive

Ele gosta muito chega a hora de vir natildeo interessa se estaacute chovendo ou se natildeo estaacute ele [seu filho] se arruma e vem [agrave escola] de qualquer jeito Ele gosta muito isso foi uma coisa que vocecircs [da escola] fizeram que foi oacutetimo neacute [] Porque ele fica faceiro chega na hora ele guarda aquele instrumento com muito carinho muito bem guardado Ele gosta muito mesmo (C E 2015 p 3)

A professora dos estudantes que participam do grupo instrumental tambeacutem

observou o reflexo desta participaccedilatildeo no seu trabalho pedagoacutegico no cotidiano da

escola Para a professora ldquoAquele comprometimento que eles tecircm com o horaacuterio da

muacutesica de aprender e tudo mais causa neles um compromisso com o resto das

disciplinas em sala de aula tambeacutemrdquo (C E 2015 p 16) A diretora da escola

tambeacutem contribuiu com a anaacutelise fornecendo importantes dados sobre a participaccedilatildeo

dos estudantes da escola no grupo instrumental De acordo com a diretora

A participaccedilatildeo dos estudantes no grupo para mim eacute acima de tudo muita emoccedilatildeo porque eu sempre acreditei no projeto tentei da melhor maneira possiacutevel focar e conseguir mecanismos para que ele pudesse existir E eu vejo que estar no grupo eacute um grande investimento para essas crianccedilas e adolescentes na construccedilatildeo integral da sua personalidade da sua maneira de pensar e de ver o mundo (C E 2015 p 14)

A diretora ainda acrescentou um comentaacuterio sobre a repercussatildeo do grupo

instrumental na comunidade ressaltando a importacircncia desse fator ao explicar

O grupo instrumental traz a questatildeo da comunidade pois natildeo ficou apenas na escola Ele foi para a comunidade local no bairro ele foi para o centro da cidade as pessoas conhecem o grupo as pessoas convidam para participar de eventos Entatildeo eu acho que para a professora de muacutesica eacute

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profissionalismo para mim eacute emoccedilatildeo e para eles eu acho que eacute um trabalho de autoestima de grande valor porque satildeo crianccedilas de uma localidade rural que nunca se imaginaria de seguir um caminho de estrada de chatildeo com um saxofone (C E 2015 p 15)

As atividades musicais existentes no grupo instrumental da escola repercutem

junto agrave comunidade escolar no seu entorno demais regiotildees do municiacutepio e fora

dele E essa repercussatildeo eacute devida ao incentivo por parte da escola aos estudos

musicais dos estudantes do grupo instrumental e aos demais estudantes da escola e

de fora da escola Isso ocorre no caso do Estudante W que jaacute concluiu seus

estudos mas permanece na escola o que incentiva os demais estudantes a

optarem pela muacutesica como profissatildeo

Observou-se uma concordacircncia entre os entrevistados quando enfatizaram a

extrema importacircncia de os estudantes participarem do grupo instrumental (C E

2015) principalmente no que diz respeito agraves funccedilotildees da muacutesica Esta anaacutelise remete

a Kraemer (2000) considerando-se as funccedilotildees da muacutesica Do mesmo modo os

aspectos socioloacutegicos e psicoloacutegicos apresentaram-se relevantes para esta anaacutelise

O relacionamento entre as pessoas desenvolvido atraveacutes das atividades musicais

no grupo instrumental apresentou-se fortemente Kraemer (2000) ao analisar as

relaccedilotildees entre as pessoas e a importacircncia que a muacutesica pode ter em suas vidas

explica que a pedagogia da muacutesica ocupa-se com ldquoas relaccedilotildees entre a(s) pessoa(s)

e a(s) muacutesica(s) sob os aspectos de apropriaccedilatildeo e de transmissatildeordquo (KRAEMER

2000 p 51) Isto foi encontrado nesse grupo bem como nas falas dos

entrevistados

Nesse sentido a partir das entrevistas realizadas que oportunizaram analisar

e correlacionar os conteuacutedos das falas ao referencial teoacuterico principalmente neste

caso como aponta Kraemer (2000) observa-se a importacircncia da muacutesica para as

pessoas bem como a potecircncia de estar em um grupo instrumental em espaccedilos

escolares

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Influecircncias de Participar de um Grupo Instrumental para a Vida dos Estudantes

Participantes e Familiares Envolvidos

Atraveacutes das entrevistas com os estudantes J e W observou-se a influecircncia

que a muacutesica exerce em suas vidas desde a entrada no grupo instrumental Neste

sentido o Estudante W explicou ldquoMinha famiacutelia apoia bastante eles gostam Em

casa eles pedem para tocar agraves vezes A voacute adora e apoia bastante sempre me

perguntando se eu tirei muacutesica nova alguma coisardquo (C E 2015 p 8)

Aleacutem disso ao comentar sobre o impacto em sua vida o Estudante W

explicou ldquoMelhorou bastante minha vida musical e familiar com isso eu me sinto

muito melhorrdquo (C E 2015 p 9) O Estudante W foi convidado a entrar no grupo

instrumental poreacutem natildeo tinha grandes expectativas musicais E foi se envolvendo

com o fazer musical despertando o interesse de aprender diversos instrumentos

musicais O Estudante W levou esse encantamento para seus familiares seus

ensaios musicais promovem satisfaccedilatildeo em sua famiacutelia promovendo uniatildeo e

interaccedilatildeo dos mesmos durante esse processo

O Estudante J externou em sua fala que ao entrar no grupo ocorreram

muitas mudanccedilas em seu modo de ser Em seu depoimento ele destacou

mudanccedilas quanto ao comprometimento e agrave pontualidade Ele observa que consegue

cumprir o que eacute solicitado pela professora estaacute estudando mais Assim ldquome ajudou

bastante ateacute na aula normal estou mais comportado fazendo todos os trabalhos

melhorrdquo (C E 2015 p 12)

Em relaccedilatildeo agrave famiacutelia a matildee do Estudante J enfatizou a grande socializaccedilatildeo e

o clima de harmonia que a famiacutelia experienciou por meio do contato de seu filho com

o instrumento musical em casa (C E 2015)

Observa-se nos depoimentos a funccedilatildeo da muacutesica no campo socioloacutegico que

vai ao encontro do que Kraemer (2000) acredita jaacute que ldquoconsidera o manuseio com

a muacutesica como um processo socialrdquo e analisa o ldquocomportamento do homem

relacionado com a muacutesica em direccedilatildeo agraves influecircncias sociais institucionais e gruposrdquo

(p 57) Eacute possiacutevel atraveacutes dos dados coletados observar a influecircncia social e

comportamental que a muacutesica exerce entre os agentes envolvidos seja no acircmbito

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familiar ou no processo de desenvolvimento intelectual dos estudantes participantes

do grupo

Nas falas da escola caracterizadas pela entrevista com a diretora e com a

professora foi possiacutevel verificar que ambas tambeacutem trataram da influecircncia que

resulta da participaccedilatildeo no grupo instrumental A professora explicou suas

observaccedilotildees quanto aos estudantes participantes do grupo instrumental feitas na

sua aula Ela leciona haacute muitos anos na escola e por isso tem um grande

conhecimento dos estudantes os tem acompanhado antes mesmo de ingressarem

no grupo instrumental Ao conhecer os estudantes ela pode analisar mais

amplamente De acordo com a professora

A gente nota uma diferenccedila bastante elevada neles Que eles se concentram mais em sala de aula e isso ajuda para o futuro deles e isso eacute muito bom Pois a gente sabe que tudo na vida precisa de concentraccedilatildeo precisa de carinho para fazer as coisas precisa de dedicaccedilatildeo E isso eu vejo enquanto eles aprendem muacutesica Eacute claro que isso reflete em sala de aula tambeacutem (C E 2015 p 17)

Foi possiacutevel constatar ao analisar a entrevista da professora no que se

relaciona agrave psicologia da muacutesica o que Kraemer (2000) explica sobre as

ldquosemelhanccedilas e diferenccedilas observaacuteveis de comportamento e da vivecircncia musicalrdquo (p

55) Assim pode-se analisar as funccedilotildees da educaccedilatildeo musical que envolvem ldquotarefas

da pedagogia da muacutesica [que] devem ser definidas juntamente com a aquisiccedilatildeo de

conhecimento compreender e interpretar descrever e esclarecer conscientizar e

transformarrdquo (KRAEMER 2000 p 66)

Os dados obtidos nas entrevistas no que diz respeito agrave participaccedilatildeo dos

estudantes no grupo instrumental tambeacutem remetem agrave importacircncia da oferta de

atividades no turno inverso escolar Nesse sentido Wolffenbuumlttel (2014) explica que

as atividades extracurriculares tecircm uma perspectiva de ampliaccedilatildeo das possibilidades

das escolas Segundo a autora as ldquoatividades extracurriculares satildeo capazes de

contribuir para o desenvolvimento dos alunosrdquo (p 56)

Expectativas em Relaccedilatildeo agraves Atividades Instrumentais

Ao longo das entrevistas os estudantes participantes do grupo instrumental

externaram suas expectativas musicais em relaccedilatildeo a esta participaccedilatildeo O Estudante

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W foi aleacutem acrescentando sua expectativa profissional De acordo com seu

depoimento ldquoEu pretendo evoluir de repente fazer uma faculdade de muacutesica que

me interessa bastante esse caminhordquo (C E 2015 p 8)

O Estudante J em sua entrevista afirmou sobre as expectativas em relaccedilatildeo agrave

participaccedilatildeo no grupo pretendendo aperfeiccediloar-se para uma melhor representaccedilatildeo

de sua escola De acordo com ele esta participaccedilatildeo se daacute no sentido de ldquofazer o

que tem que fazer natildeo deixar de ensaiar em casa e fazer o melhor Espero que

cada vez melhore para representar melhor a escola e aprender tambeacutemrdquo (C E

2015 p 12) Em suas expectativas profissionais apontou a vontade de seguir

profissionalmente na muacutesica Para ele ldquoAh se surgir alguma oportunidade eu quero

fazer uma faculdade de muacutesica neacute Quero me formarrdquo (C E 2015 p 12) Nesta

fala externada pelo Estudante J observa-se o que os PCNs sugerem em relaccedilatildeo a

um dos objetivos gerais para a muacutesica na escola qual seja adquirir ldquoconhecimento

sobre profissotildees e profissionais da aacuterea musical considerando diferentes aacutereas de

atuaccedilatildeo e caracteriacutesticas do trabalhordquo (BRASIL 1998 p 82)

A participaccedilatildeo dos estudantes no grupo instrumental eacute de suma importacircncia

o que se evidenciou em suas falas em relaccedilatildeo agraves expectativas profissionais

remetendo agraves funccedilotildees da muacutesica e da educaccedilatildeo musical nos acircmbitos psicoloacutegico e

social estando em sintonia com as anaacutelises de Kraemer (2000) apresentadas

anteriormente

Observou-se que todos os entrevistados tecircm expectativas musicais

estudantes que inclusive mencionaram pretender seguir nas atividades musicais

como profissatildeo demonstrando encantamento com o fazer musical e indicando

pretensotildees profissionais A diretora por sua vez mencionou em sua fala esperar

que o grupo instrumental cada vez se estruture mais para assim atender mais

estudantes Ela se preocupa portanto em atender agraves demandas escolares e da

comunidade

Salienta-se que todo esse envolvimento teve como ponto de partida uma

atividade extracurricular (WOLFFENBUumlTTEL 2014) E o bom desempenho do grupo

eacute advindo de vaacuterios esforccedilos sendo que a muacutesica e seu ensino atraveacutes da

educaccedilatildeo musical estaacute desempenhando suas funccedilotildees na vida dos estudantes e dos

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familiares (KRAEMER 2000) Observou-se tambeacutem a valorizaccedilatildeo dos estudantes

participantes como sujeitos propositores no trabalho pedagoacutegico-musical

(SWANWICK 2003) resultando no encantamento do fazer musical colaborando

para o desenvolvimento integral dos sujeitos envolvidos considerando-se as

atividades musicais do grupo instrumental

Consideraccedilotildees Finais

Apoacutes a realizaccedilatildeo desta pesquisa foi possiacutevel responder aos

questionamentos apresentados na introduccedilatildeo deste artigo e que nortearam esta

investigaccedilatildeo quais sejam Qual o significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um

grupo instrumental Quais as expectativas dos estudantes que participam destes

grupos Qual a influecircncia da muacutesica para estes participantes Quais as expectativas

de estudantes familiares e comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre

o envolvimento dos familiares dos estudantes

Quanto ao significado da participaccedilatildeo dos estudantes no grupo instrumental

observou-se que a mesma reflete diversos aspectos positivos nas vidas de todos os

envolvidos o que segundo os estudantes do grupo instrumental possui vaacuterios

significados e representaccedilotildees em seus cotidianos Para eles significa ter melhoria

no comportamento na socializaccedilatildeo no processo de ensino e aprendizagem no

comprometimento na pontualidade na concentraccedilatildeo e no conviacutevio familiar

Agregam o significado de ldquofelicidaderdquo na convivecircncia que o grupo instrumental

proporciona e ainda destacam a importacircncia de representar a escola e a

abrangecircncia desta participaccedilatildeo junto agrave comunidade Todos os entrevistados

relacionaram significados com a importacircncia de o grupo existir na escola

apontando-o como desencadeador desses diversos contextos significativos para

eles

As expectativas dos participantes deste grupo foram tambeacutem

questionamentos desta pesquisa Constatou-se que os estudantes possuem

expectativas profissionais em relaccedilatildeo agrave muacutesica quando acrescentaram o interesse

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em continuar seus estudos musicais para culminar com o ingresso em um curso

superior em muacutesica

Outro questionamento foi a influecircncia da muacutesica para os participantes deste

grupo De acordo com os dados coletados e analisados observa-se que o grupo

instrumental influencia de forma positiva suas vidas visto que foram observadas

mudanccedilas positivas pela matildee pela professora e pela diretora aleacutem dos estudantes

principalmente nas suas condutas e atuaccedilotildees no acircmbito familiar e escolar

resultando em melhorias nas relaccedilotildees sociais e no ensino e aprendizagem

As expectativas dos estudantes familiares e comunidade escolar quanto ao

grupo instrumental foi um dos questionamentos que oportunizou inuacutemeros

aprendizados no que diz respeito agrave pesquisa Observou-se que todos os

entrevistados esperam que o grupo se estruture cada vez mais para que os

benefiacutecios de participar de um grupo instrumental sejam ampliados para mais

estudantes ressaltando expectativas em relaccedilatildeo agrave evoluccedilatildeo como instrumentistas

para continuar contribuindo na qualidade e no crescimento do grupo

Por fim o envolvimento dos familiares dos participantes deste grupo foi um

questionamento que se apresentou de forma bastante marcante nesta pesquisa De

acordo com as entrevistas pocircde-se compreender o envolvimento significativo da

famiacutelia no processo de desenvolvimento musical do estudante identificou-se que a

famiacutelia participa da rotina de estudos e que proporciona momentos de integraccedilatildeo

nos ensaios de repertoacuterio dos estudantes com os demais familiares Isso

desencadeia reflexotildees sobre a importacircncia de seu filho ter contato com um

instrumento musical e de conviver em um grupo instrumental motivando-o para a

permanecircncia no mesmo

Alguns fatos surpreenderam no decorrer desta pesquisa como momentos de

emoccedilatildeo na entrevista com a diretora na fala fervorosa da matildee do Estudante J em

relaccedilatildeo agrave rotina de ensaios musicais do filho e a integraccedilatildeo familiar que promove As

entrevistadas ao responderem aos questionamentos da entrevista emocionaram-se

muito demonstrando a forte relaccedilatildeo advinda da existecircncia do grupo instrumental na

escola

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DUTRA Pacircmela Goumlethel WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim ACCORSI Ana Maria Bueno Estudo sobre a

participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 120-

141 juldez 2016 Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

Deve-se salientar tambeacutem que a pesquisa possibilitou a reflexatildeo sobre os

fazeres pedagoacutegico-musicais da professora de muacutesica atuante na escola a qual

coordena o grupo instrumental investigado Foi possiacutevel neste processo

investigativo constatar a dimensatildeo e a importacircncia desse trabalho na vida dos

estudantes identificando atraveacutes dos depoimentos analisados a responsabilidade

que os profissionais da aacuterea da educaccedilatildeo musical tecircm Eacute importante portanto que

sempre se esteja atento agraves atitudes procedimentos e metodologias utilizados pois

somos importantes neste processo para aleacutem do encantamento do fazer musical

para uma aprendizagem que contribua com a formaccedilatildeo de um ser humano integral

Ao longo da pesquisa outros dados relevantes foram coletados apontando

futuras investigaccedilotildees Desse modo resultaram novos questionamentos como O

que levou outros estudantes a desistirem de participar do grupo instrumental ao

longo de sua trajetoacuteria Qual a importacircncia de os estudantes que participam de um

grupo instrumental terem a oportunidade de manusear diversos instrumentos

musicais

Ao finalizar a investigaccedilatildeo prospecta-se que a mesma possa contribuir para a

construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para a educaccedilatildeo musical no contexto escolar

Entende-se tambeacutem que este trabalho possa contribuir com a implementaccedilatildeo da

legislaccedilatildeo que dispotildee sobre a inserccedilatildeo da muacutesica nas escolas brasileiras e assim

somar de maneira significativa na vida dos estudantes participantes como no caso

do grupo instrumental pesquisado

Referecircncias BASTIAtildeO Zuraida Abud Praacutetica de conjunto instrumental na educaccedilatildeo baacutesica Muacutesica na Educaccedilatildeo Baacutesica Londrina v4 n4 p 58-69 novembro de 2012

BOZZETTO Adriana Projetos educativos de famiacutelias e formaccedilatildeo musical de crianccedilas e jovens em uma orquestra Porto Alegre 2012 295 f Tese (Doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2012 BRASIL Secretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Paracircmetros curriculares nacionais arte Secretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Brasiacutelia DF 1998116 p

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DUTRA Pacircmela Goumlethel WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim ACCORSI Ana Maria Bueno Estudo sobre a

participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 120-

141 juldez 2016 Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

BRASIL Lei nordm 11769 de 16 de agosto de 2008 Altera a Lei ndeg 9394 de 20 dezembro de 1990 para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino de muacutesica na educaccedilatildeo baacutesica Brasiacutelia 2008 Disponiacutevel em lthttpwwwplanaltogovbrccivil_03LEISL9394htmgt Acesso em 15 set 2015 JOLY Maria Carolina Leme JOLY Ilza Zenker Leme Praacuteticas musicais coletivas um olhar para a convivecircncia em uma orquestra comunitaacuteria Revista da ABEM Londrina v19 n26 p 79-91 jul Dez 2011 KRAEMER Rudolf Dimensotildees e funccedilotildees do conhecimento pedagoacutegico musical Em Pauta Porto Alegre v11 n 1617 p 50-73 abrnov 2000 LAVILLE Christian DIONNE Jean A construccedilatildeo do Saber manual de metodologia da pesquisa em ciecircncias humanas Porto Alegre Artmed 1999 MARTINS Heloiacutesa Helena Tde Souza Metodologia qualitativa de pesquisa Educaccedilatildeo e Pesquisa Satildeo Paulo V 30 n2 p 289-300 maioago 2004 Disponiacutevel em lt httpwwwscielobrpdfepv30n2v30n2a07pdfgt Acesso em 25 ago 2015 MORAES Roque Anaacutelise de conteuacutedo Revista Educaccedilatildeo Porto Alegre v 22 n 37 p 7-32 1999 SWANWICK Keith Ensinando muacutesica musicalmente Satildeo Paulo Moderna 2003 VENTURA Magda Maria O estudo de caso como modalidade de pesquisa Revista da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro v 20 n 5 p 383-386 setout 2007 Disponiacutevel em lthttpsociedadescardiolbrsocerjrevista2007_05a2007_v20_n05_art10pdfgt Acesso em 15 ago 2015 WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim A inserccedilatildeo da muacutesica nos projetos poliacutetico-pedagoacutegicos da educaccedilatildeo baacutesica 1ordf ed Curitiba Editora Prismas 2014 YIN Robert K Estudo de caso planejamento e meacutetodos 2ordf ed Porto Alegre Bookman 2001

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TEATRO PARA QUEM A ARTE DE TEATRAR PARA TODOS Um estudo

sobre acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RS

Izabel Cristina da Silveira1

Fundaccedilatildeo de Arte e Cultura de Gravataiacute - FUNDARC

Resumo Este trabalho busca investigar analisar e viabilizar diaacutelogos reflexotildees e percepccedilotildees em torno do tema da acessibilidade cultural sob a oacuteptica do contexto teatral no estado do Rio Grande do Sul com um recorte pontual no municiacutepio de Porto Alegre capital do estado a fim de promover a inclusatildeo social da pessoa com deficiecircncia no acircmbito cultural Para tanto servem como suporte para anaacutelise registros pesquisa e observaccedilotildees de seis grupos de teatro do municiacutepio supracitado e suas relaccedilotildees com o assunto em pauta aleacutem de discussotildees das noccedilotildees de deficiecircncia acessibilidade e Legislaccedilatildeo vigente Palavras-chave Acessibilidade teatro inclusatildeo Abstract This work aims to investigate analyze and facilitate dialogues reflections and insights on the theme of cultural accessibility from the perspective of the theatrical context in the state of Rio Grande do Sul with a point cut in the city of Porto Alegre the state capital to promote social inclusion of persons with disabilities in the cultural sphere To serve both as support for analysis records research and observations six theater groups of the aforementioned municipality and its relations with the subject at hand in addition to discussing the shortcomings notions of accessibility and current legislation Keywords Accessibility theater inclusion

Introduccedilatildeo

[] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferenccedila nos inferioriza e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza Daiacute a necessidade de uma igualdade que reconheccedila as diferenccedilas e de uma diferenccedila que natildeo produza alimente ou reproduza as desigualdades (Boaventura de Souza Santos 2003 p56)

A pauta da acessibilidade nos meios de comunicaccedilatildeo e equipamentos

culturais tem se configurado como um importante tema de discussatildeo e luta entre

grupos e sociedade em decorrecircncia dos direitos da pessoa com deficiecircncia Os

esforccedilos neste sentido visam natildeo apenas proporcionar o acesso a produtos

culturais a uma parcela da populaccedilatildeo que se encontra excluiacuteda como tambeacutem

estabelecer um novo patamar de igualdade baseado na valorizaccedilatildeo da diversidade

1 Coordenadora do Departamento de Artes Cecircnicas da Fundarc em Gravataiacute Diretora e professora de teatro na

Cia Teatral Tem Gente no Palco Poacutes Graduada em Acessibilidade Cultural pela UFRJ Graduada em

Licenciatura em Teatro pela UFRGS

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Ao longo dos anos essas reivindicaccedilotildees tecircm provocado diversas mudanccedilas

no comportamento social que passa a identificar a pessoa com deficiecircncia como um

sujeito pertencente agrave sociedade que possui representatividade cidadatilde e econocircmica

Esse reconhecimento gera a necessidade de mudanccedilas e adaptaccedilotildees tambeacutem nas

manifestaccedilotildees culturais e artiacutesticas

Sendo assim o presente artigo busca trazer agrave tona tais questionamentos e

fomentar a discussatildeo do assunto problematizando e dialogando a fim de colaborar

efetivamente para a pauta da acessibilidade para todos e buscar alternativas

possiacuteveis para acessibilizar espetaacuteculos teatrais em suas apresentaccedilotildees

Para tanto realizou-se estudo praacutetico-teoacuterico junto a grupos teatrais do estado

do Rio Grande do Sul atuantes na capital Porto Alegre Optou-se por um recorte

pontual no maior centro urbano e cultural do estado com cenaacuterio teatral fortemente

constituiacutedo e onde se localiza o Curso de Graduaccedilatildeo em Teatro em uma das mais

conceituadas Universidades do Brasil ndash a Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS)

Levando-se em conta o grande nuacutemero de grupos teatrais existentes em

Porto Alegre e a impossibilidade de uma pesquisa que abranja todas as demandas

a metodologia deste trabalho teve como base uma amostragem de dados com

pesquisa e acompanhamento de 06 (seis) grupos teatrais profissionais com

empresa constituiacuteda e atuaccedilatildeo no mercado artiacutestico haacute mais de 05 (cinco) anos A

escolha se deu por conhecimento dos grupos e do trabalho que desenvolvem

levando-se em conta tambeacutem a disponibilidade dos mesmos e o contato que

possuem ou natildeo com o tema Para tanto foram selecionados entre os 06 (seis)

grupos pesquisados 02 (dois) que jaacute desenvolvem ou desenvolveram trabalhos em

acessibilidade cultural e outros 04 (quatro) que natildeo tecircm contato direto

A pesquisa caracteriza-se por seu caraacuteter qualitativo e quantitativo visando

compreender e interpretar este grupo determinado comportamento opiniotildees e

expectativas destes indiviacuteduos criando uma base de conhecimentos para depois

quantificaacute-los a partir de entrevista estruturada Este trabalho natildeo tem como intuito

apontar procedimentos certos ou errados mas levantar a problematizaratildeo da

acessibilidade no meio teatral tanto fiacutesico quanto de concepccedilatildeo instigando a

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comunidade artiacutestica e demais a refletir e perceber a necessidade de uma cultura

acessiacutevel a todos propondo ideias e atitudes que de fato promovam a inclusatildeo

social

Com um vieacutes de poliacutetica cultural o estudo levanta dados referentes agraves

poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo desenvolvidas no acircmbito da acessibilidade

cultural tendo como base a Lei Federal de Incentivo agrave Cultura (Lei Rouanet) a Lei

de Incentivo agrave Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (LIC) e o Fundo Municipal de

Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural do municiacutepio de Porto Alegre (Fumproarte)

procurando transitar pelas trecircs instacircncias governamentais de fomento agrave cultura no

Brasil

Para melhor fundamentaccedilatildeo alguns referenciais teoacutericos satildeo utilizados e

discutidos ao longo deste trabalho como embasamento para discussotildees acerca da

deficiecircncia e seu processo de inclusatildeo do teatro sob vieacutes acessiacutevel e da legislaccedilatildeo

vigente referente ao tema Em um segundo momento satildeo pontuados assuntos

referentes agrave acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais tendo como objeto de

estudo os grupos de teatro referidos a partir de entrevistas e aplicaccedilatildeo de

questionaacuterio com perguntas objetivas e abertas sobre a temaacutetica com amostra

teacutecnica dos resultados e anaacutelise discursiva sobre os dados coletados

Entre seus objetivos especiacuteficos alguns jaacute mencionados no corpo deste texto

que serviram de norteadores para o desenvolvimento deste trabalho estatildeo traccedilar

um panoramadiagnoacutestico da inclusatildeo social e cultural da pessoa com deficiecircncia a

partir do enfoque do teatro e seus espetaacuteculos qualificar accedilotildees desenvolvidas ao

encontro das demandas de acessibilidade discutir poliacuteticas puacuteblicas e culturais a

partir da interface com mecanismos de incentivo agrave cultura como Leis e Editais

analisar as dificuldades encontradas pelos grupos pesquisados no processo de

inclusatildeo relacionar o teatro e seu caraacuteter contestador e democraacutetico com a luta por

direitos das pessoas com deficiecircncia ampliar o diaacutelogo e reconhecimento da

importacircncia da igualdade baseada na valorizaccedilatildeo da diversidade

Todos esses objetivos e questionamentos vecircm ao encontro do propoacutesito

maior desta pesquisa que se fundamenta em viabilizar a discussatildeo reflexatildeo e

percepccedilatildeo em torno da acessibilidade cultural dentro do contexto teatral no estado

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do Rio Grande do Sul promovendo assim a inclusatildeo social da pessoa com

deficiecircncia

Contextualizaccedilatildeo histoacuterica social e legal

O teatro surge antes mesmo da Greacutecia Antiga Acredita-se que jaacute na Preacute-

Histoacuteria o Homem para se comunicar representavaencenava suas accedilotildees

principalmente as caccediladas para seus familiares e amigos Era uma maneira luacutedica e

de faacutecil compreensatildeo de contar e preservar sua histoacuteria Natildeo se tinha ainda o

espetaacuteculo teatral que de fato tem sua origem na Civilizaccedilatildeo Grega mas as

primeiras manifestaccedilotildees artiacutesticas comeccedilam a surgir e mais importante que isso o

ato de se comunicar

O espetaacuteculo teatral precisa ser entendido sentido internalizado para

somente entatildeo desempenhar seu papel significador de instrumento social e cultural

Para tanto o seu ato de comunicar deve ser abrangente natildeo seletivo ou excludente

Como arte democraacutetica que eacute deve ou deveria ser para todos

Todos Como Claudia Werneck ndash jornalista escritora e militante em inclusatildeo

social ndash intitula em um dos seus livros ldquoQuem cabe no seu todosrdquo E ao usar a

palavra TODOS a autora convida o leitor a acompanhar suas certezas e anguacutestias

sobre as diretrizes e encaminhamentos da inclusatildeo no Brasil Claudia questiona

instiga potildee agrave prova o que se costuma entender e chamar de Todos A sociedade eacute

constituiacuteda por diferentes Todos totalmente distintos entre si que segundo

Werneck precisam ser ampliados e reconhecidos para entatildeo tornarem-se um

TODOS somente Um TODOS social humano ldquo[] defendo que o direito agrave

igualdade social soacute seraacute garantido com o reconhecimento e a legitimaccedilatildeo de TODAS

as diferenccedilasrdquo (WERNECK 2012 p 29)

A psicoacuteloga e professora Virgiacutenia Kastrup em seu artigo ldquoCegos e videntes se

encontram no museu da dicotomia agrave partilha do sensiacutevelrdquo (p3) reafirma a

importacircncia das diferenccedilas para a construccedilatildeo de uma sociedade mais inclusiva

Eacute preciso atentar para o fato que o mundo comum natildeo eacute feito de igualdades e identidades [] Para o mundo ser comum no sentido amplo e inclusivo ele deve comportar a heterogeneidade Natildeo apenas toleraacute-la mas honrar-se com as muacuteltiplas diferenccedilas que nele habitam (KASTRUP p3)

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O Brasil apresenta segundo uacuteltimo censo do Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatiacutestica (IBGE) de 2010 cerca de 456 milhotildees de pessoas com deficiecircncia

239 da populaccedilatildeo que declara ter algum tipo de deficiecircncia Destas a deficiecircncia

visual aparece em maior nuacutemero (188) -- tendo a regiatildeo Sul do paiacutes com maior

abrangecircncia de casos -- seguida pela deficiecircncia fiacutesica (7) e depois auditiva (51)

e intelectual (14) segundo publicaccedilatildeo do Jornal Estadatildeo de 290620122

Com nuacutemeros tatildeo significativos natildeo se pode pensar que a inclusatildeo de

pessoas com deficiecircncia seja um assunto remoto ou longiacutenquo que a sociedade natildeo

esteja ciente e integrada a tal fato Mas o que acontece no campo da praacutetica eacute bem

diverso da teoria

Muito do que se pode constatar eacute que a falta de inclusatildeo da pessoa com

deficiecircncia se reafirma a partir de barreiras atitudinais fundamentadas em uma

cultura histoacuterico-social que construiu um estereoacutetipo de separaccedilatildeo entre pessoas

saudaacuteveis e pessoas ldquodoentesrdquo com problemas leia-se deficiecircncia Quebrar

tais barreiras se torna muito mais difiacutecil do que solucionar barreiras fiacutesicas palpaacuteveis

e concretas

Sob o vieacutes filosoacutefico-social

O homem em sua busca incessante por descobrir-se por encontrar seu lugar

no mundo anseia por elementos que o faccedilam sentir-se ldquovivordquo uacutetil sujeito ativo de

sua histoacuteria Os viacutenculos sociais natildeo fazem parte apenas da necessidade cataacutertica

do ser humano da sua busca por encontrar-se por pertencer a um lugar mas satildeo

tambeacutem laccedilos culturalmente construiacutedos O Homem quer e precisa se sentir parte

integrante da sociedade que o cerca Pessoas agrupam-se em torno de

pensamentos objetivos eou ideais em comum Encontrar semelhantes eacute a

certificaccedilatildeo de sua identidade eacute o natildeo se estar soacute Eacute protegerem-se em seus nichos

sociais de um mundo tantas vezes opressor desigual e competitivo

Diante de uma realidade calcada em valores descartaacuteveis natildeo eacute de se

admirar que atos de solidariedade sejam cada vez mais raros Sendo assim os

sup1 Fonte Agecircncia Brasil de 21082015 via site wwwebccombr

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viacutenculos humanos natildeo se constituem em laccedilos radicados em accedilotildees para o outro

mas sim em benefiacutecio proacuteprio O socioacutelogo Zygmunt Bauman sabiamente destaca

Os viacutenculos humanos satildeo confortavelmente frouxos mas por isso mesmo terrivelmente precaacuterios e eacute tatildeo difiacutecil praticar a solidariedade quanto compreender seus benefiacutecios e mais ainda suas virtudes morais (BAUMAN 2007 P30)

Para tanto ao se pensar em inclusatildeo se faz tambeacutem necessaacuterio aleacutem do

social e histoacuterico voltar o olhar para o intriacutenseco filosoacutefico O que leva as pessoas a

natildeo quererem enxergar o outro em suas especificidades e diversidades Alfredo

Bosi em seu livro Fenomenologia do Olhar nos apresenta este fenocircmeno e como

ele se manifesta ldquo[] o ato de olhar significa um dirigir a mente para um ato de

intencionalidade Eacute ter sua intenccedilatildeo voltada para o objeto de interesserdquo (BOSI

1988 p65) O olhar de cada um possui diferenccedilas e estas estatildeo ligadas agraves suas

vivecircncias o que se consegue captar e lhe eacute significativo O olhar para Bosi como

forma de expressatildeo que reconhece e percebe o outro em sua plenitude

Em um estudo mais intimista da fenomenologia da percepccedilatildeo atraveacutes dos

pensamentos do filoacutesofo e fenomenoacutelogo francecircs Maurice Merleau-Ponty (1908 -

1961) podemos constatar que haacute uma universalidade do sentir e sobre ela que

repousa nossa identificaccedilatildeo a constituiccedilatildeo do eu a generalizaccedilatildeo do corpo e a

percepccedilatildeo do outro onde para Ponty (1994 p 260) ldquotodo o saber se instala no

horizonte da percepccedilatildeordquo e reafirma que ldquose a percepccedilatildeo interpreta ela soacute o faz a

partir do mundo de forma sensiacutevelrdquo Pensar natildeo eacute somente razatildeo mas um refletir

sobre o mundo sensiacutevel A fenomenologia eacute uma atitude de reflexatildeo do fenocircmeno

que se mostra para noacutes na relaccedilatildeo que estabelecemos com os outros no mundo

Os fenocircmenos constituem o mundo como noacutes o experimentamos segundo nossas

experiecircncias e pensamentos Toda nossa relaccedilatildeo com o mundo natildeo teria razatildeo se

natildeo comeccedilasse pela percepccedilatildeo ou seja pelos sentidos Noacutes eacute que buscamos o

sentido daquilo que se mostra

No momento em que se deixa de perceber de olhar o outro e de fato

enxergaacute-lo em suas diferenccedilas e igualdades estes deixam de serem vistos como

possiacuteveis sujeitos de suas histoacuterias Sua autonomia eacute podada por assistencialismos

ou segregaccedilatildeo social A humanizaccedilatildeo dilui-se com a mesma intensidade com que o

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individualismo se enraiacuteza O Homem corre contra o tempo As relaccedilotildees passam a

adquirir um caraacuteter efecircmero e superficial e tudo se torna banal Natildeo basta mais

pertencer a uma sociedade eacute preciso ser o melhor aquele que corre na frente

ldquoCom mais frequecircncia ainda a exclusatildeo tende hoje a ser uma rua de matildeo uacutenicardquo

(BAUMAM 2007 p 75) Vivemos em ldquotempos liacutequidosrdquo

O cerceamento seja fiacutesico intelectual ou cultural se daacute de tal forma que o

indiviacuteduo perde sua autonomia transformando-se mecanicamente em apenas um

produto do meio O teatro surge neste contexto como um desses caminhos

possiacuteveis de serem trilhados como desmistificador de conceitos preestabelecidos

Quem faz essa pergunta ldquoqual eacute a sua utilidaderdquo deve estar atento a si mesmo a essa atitude que leva a negar o valor das aacutervores que natildeo datildeo frutos A aacutervore que natildeo daacute fruto ndash proverbialmente inuacutetil ndash se converte em algo essencial nas cidades sem oxigecircnio (BARBA 1991 p 145)

Quando o teatro entra em cena

Haacute uma diferenccedila fundamental entre a ciecircncia e a arte [] A ciecircncia atua diretamente sobre a realidade modificando-a Pelo contraacuterio a arte modifica os modificadores da sociedade transforma os transformadores (BOAL 1983)

A arte e sua estreita relaccedilatildeo com o homem e a sociedade a qual este

pertence torna-se um importante instrumento de discussatildeo e transformaccedilatildeo social

que natildeo pode ser esquecido nem perdido no emaranhado de modismos que

tendem a surgir Ao pensarmos a arte como elemento transformador capaz de

estabelecer diferentes relaccedilotildees de contextos e olhares somos remetidos agraves

possiacuteveis conexotildees e diaacutelogos que surgem a partir de sua experimentaccedilatildeo Sendo

assim o espectador deixa sua posiccedilatildeo de receptor passivo para ir ao encontro de

relaccedilotildees interativas que lhe permitam conceber seu proacuteprio conhecimento em

relaccedilatildeo agrave arte agrave obra ao espetaacuteculo

Amanda Tojal (2014 p15) a partir da anaacutelise dos processos de comunicaccedilatildeo

museoloacutegica que comeccedilam a se afirmar na sociedade contemporacircnea chama a

atenccedilatildeo para a forma de participaccedilatildeo do sujeito receptor ndash ldquo[] de uma condiccedilatildeo

anteriormente mais passiva como simples assimilador de uma mensagem ndash para

uma condiccedilatildeo mais dialoacutegica isto eacute a de um participante mais ativo no processo de

apreensatildeo e de ressignificaccedilatildeo do objeto cultural []rdquo

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Um equipamento cultural independentemente do segmento ndash museu galeria

teatro biblioteca ndash deve a priori comunicar Estabelecer essa via de comunicaccedilatildeo de

forma efetiva diante do heterogecircneo e oportunizar a qualquer pessoa o acesso e o

contato com a arte e suas manifestaccedilotildees A acessibilidade passa ou deveria passar

mais fortemente para aleacutem da acessibilidade fiacutesica e concreta gerando uma

reflexatildeo sobre como acessibilizar a comunicaccedilatildeo e a interaccedilatildeo A pessoa com

deficiecircncia deve ter atendido seu desejo de se sentir parte integrante do todo de

entender e reconhecer seu direito de pertencimento de ser ouvido de olhar para o

mundo de sentir se relacionar e acima de tudo de ter autonomia e liberdade

A acessibilidade natildeo eacute um favor que estaacute sendo feito eacute um direito de toda

pessoa com deficiecircncia Eacute garantir o direito maior e universal de toda e qualquer

pessoa de ir e vir de sua liberdade Conforme o Glossaacuterio de Acessibilidade

fornecido pelo Curso de Extensatildeo em EAD Acessibilidade em Ambientes Culturais

da UFRGS ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul o termo Acessibilidade

designa

Condiccedilatildeo para utilizaccedilatildeo com seguranccedila e autonomia total ou assistida dos espaccedilos mobiliaacuterios e equipamentos urbanos das edificaccedilotildees dos serviccedilos de transporte e dos dispositivos sistemas e meios de comunicaccedilatildeo e informaccedilatildeo por pessoa com deficiecircncia ou mobilidade reduzida

Sendo assim a acessibilidade cultural discussatildeo geral deste artigo eacute uma

das condiccedilotildees baacutesicas para que pessoas com algum tipo de deficiecircncia possam ter

acesso aos instrumentos e mecanismos de cultura usufruindo de suas

manifestaccedilotildees artiacutesticas

O teatro ensina contesta mostra sugere questiona natildeo se acomoda diante

do passivo do irremediaacutevel E como ainda pessoas ficam fora de suas salas

Como ainda muitas pessoas com deficiecircncia natildeo podem natildeo tecircm como assistir

usufruir de uma peccedila de teatro ir a um teatro consumir cultura viva Porque satildeo

diferentes O que deveria ser comum normal se torna o a mais o plus o

diferencial Ver espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis eacute com dia e hora marcada

A arte teatral por si soacute jaacute apresenta uma gama de problemaacuteticas a serem

transpostas Natildeo eacute faacutecil fazer teatro como natildeo eacute faacutecil fazer cultura no Brasil Grupos

normalmente possuem orccedilamentos e recursos reduzidos para montagem de seus

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trabalhos a formaccedilatildeo de plateia eacute uma luta constante a valorizaccedilatildeo e entendimento

da profissionalizaccedilatildeo do artista tem sido uma conquista em pequenas doses Diante

desse quadro parece surgir quase como um ldquoincocircmodordquo a questatildeo da acessibilidade

cultural no meio teatral Proporcionar espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis quando natildeo haacute

nem Casas de Teatro acessiacuteveis Quando as instacircncias governamentais acreditam

que os menores orccedilamentos e cortes devem comeccedilar pelas manifestaccedilotildees

artiacutesticas Com uma arbitrariedade latente tais questionamentos corroboram para a

divergecircncia selada entre praacutetica e teoria No entanto assim como nos lembra

Claudia Werneck em seu livro Ningueacutem mais vai ser bonzinho na sociedade

inclusiva ldquosomos cidadatildeos responsaacuteveis pela qualidade de vida do nosso

semelhante por mais diferente que ele seja ou nos pareccedila serrdquo

Tornar espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis natildeo eacute uma tarefa faacutecil e comumente

realizada Eacute necessaacuterio um entendimento conhecimento de causa recursos e

profissionais disponiacuteveis para que natildeo se caia na vala comum do ldquofazer por fazerrdquo

Quando se estaacute interferindo tatildeo diretamente na vida de outras pessoas todo o

cuidado eacute pouco e um estudo detalhado de todas as possibilidades viaacuteveis faz a

diferenccedila no resultado final

Atualmente alguns recursos satildeo vistos como fundamentais para serem

aplicados quando a proposta eacute acessibilizar um espetaacuteculo teatral Audiodescriccedilatildeo

Libras (Liacutengua Brasileira de Sinais) Estenotipia (legenda em tempo real) Braile QR

Code (coacutedigo bidimensional) Caixa alta texto simples e contraste Reconhecimento

de palco Rampas de acesso

O Teatro Acessiacutevel passa pela aplicabilidade dessas tecnologias mas

principalmente e fundamentalmente pela quebra das barreiras atitudinais frente agrave

percepccedilatildeo destas questotildees A ldquoEscola de Genterdquo Organizaccedilatildeo Natildeo Governamental

fundada em 2002 por Claacuteudia Werneck no Rio de Janeiro trabalha haacute bastante

tempo o tema da inclusatildeo e tem no teatro na representaccedilatildeo teatral um grande

propagador de luta e difusor dos direitos da pessoa com deficiecircncia no Brasil Tem

como objetivo transformar poliacuteticas puacuteblicas em poliacuteticas inclusivas para que

pessoas com e sem deficiecircncia exerccedilam seus direitos humanos desde a infacircncia

Em 2003 O Grupo Teatro Acessiacutevel ldquoOs Inclusos e os Sisosrdquo da ldquoEscola de

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Genterdquo foi criado como meio de mobilizaccedilatildeo pela diversidade inclusatildeo e

acessibilidade Em 2011 a ldquoEscola de Genterdquo idealizou a campanha ldquoTeatro

Acessiacutevel Arte Prazer e Direitosrdquo e produziu o primeiro espetaacuteculo infantojuvenil

com total acessibilidade no paiacutes o musical rock Um Amigo Diferente que se

tornou o siacutembolo da Campanha Teatro Acessiacutevel Arte Prazer e Direitos

Em 2013 entrou em vigor o Projeto de Lei 61292013 de autoria dos

deputados federais Jean Wyllys Jandira Feghali Mara Gabrilli e Rosinha Adefal

que institui o dia 19 de setembro como o ldquoDia Nacional do Teatro Acessiacutevelrdquo Para os

autores do Projeto ldquoa data ajudaraacute a divulgar a cultura por meio de atividades

cecircnicas que utilizem praacuteticas de acessibilidade fiacutesica e comunicativa a pessoas com

deficiecircnciardquo3

Accedilotildees concretas sendo pensadas e realizadas para o desenvolvimento de

poliacuteticas puacuteblicas que estejam ao encontro de praacuteticas acessiacuteveis no contexto teatral

e cultural

Leis e poliacuteticas puacuteblicas

Por muito tempo as pessoas com deficiecircncia foram vistas como um problema

familiar social e cliacutenico Consideradas ldquoaberraccedilotildeesrdquo de puniccedilotildees divinas ou doentes

incapazes essas pessoas tecircm lutado por seus direitos e conquistas de cidadania

principalmente por ocuparem seu lugar de sujeitos ativos na sociedade a que

pertencem

Por ainda muito se pensar ser um problema familiar e natildeo social a sociedade

vem deixando de dar o suporte necessaacuterio agraves pessoas com deficiecircncia quando o

que se tem eacute uma ldquodiacutevida humana e socialrdquo para com as mesmas

Simplesmente fechar os olhos e fingir natildeo estar vendo tapar os ouvidos e se

isentar de qualquer responsabilidade natildeo resolve o problema Ter acesso aos

instrumentos culturais agrave cultura eacute um direito universal e constitucional de todo e

qualquer cidadatildeo ldquoA Constituiccedilatildeo Brasileira eacute inclusiva [] natildeo eacute integradora

porque natildeo admite que apenas em determinadas condiccedilotildees o exerciacutecio dos direitos

3 Disponiacutevel em ltwwwcamaralegbrgt Acesso em 03 de julho de 2014

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humanos seja observado exercido exigidordquo (WERNECK 2012 P 62) Conforme

afirmaccedilatildeo do Artigo 215 da Constituiccedilatildeo Federal de 1988

Art 215 O Estado garantiraacute a todos o pleno exerciacutecio dos direitos culturais e acesso agraves fontes da cultura nacional e apoiaraacute e incentivaraacute a valorizaccedilatildeo

e a difusatildeo das manifestaccedilotildees culturais

A inclusatildeo da pessoa com deficiecircncia e mais especificamente o tema da

Acessibilidade Cultural tem conquistado seu espaccedilo diante do poder puacuteblico e

poliacutetico Leis de direitos satildeo aprovadas discussotildees traccediladas e reivindicaccedilotildees

formuladas A Lei Brasileira de Inclusatildeo da Pessoa com Deficiecircncia Lei 131462015

foi uma das grandes conquistas na luta pela inclusatildeo onde especifica em seu

capiacutetulo IX e artigo 42 que

A pessoa com deficiecircncia tem direito agrave cultura ao esporte ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas sendo-lhe garantido o acesso I - a bens culturais em formato acessiacutevel II - a programas de televisatildeo cinema teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessiacutevel

Sendo assim na legislaccedilatildeo mais recente que temos de defesa dos direitos da

pessoa com deficiecircncia em nosso paiacutes haacute a garantia por parte destes ao acesso

agraves atividades culturais entre elas o teatro Lei esta que origina o Estatuto da

Pessoa com Deficiecircncia ldquoum dos mais importantes instrumentos de emancipaccedilatildeo

civil e social dessa parcela da sociedaderdquo segundo o Senador Paulo Paim (autor da

Lei) que entrou em vigor no dia 02 de janeiro de 2016 O Estatuto da Pessoa com

Deficiecircncia traz regras e orientaccedilotildees para que os direitos dessa parcela da

populaccedilatildeo sejam garantidos e estabelece puniccedilotildees para atitudes discriminatoacuterias ldquoO

documento consolida as leis existentes e avanccedila nos princiacutepios da Cidadaniardquo

reitera Paim

Em seu Capiacutetulo IX ndash Do Direito agrave Cultura ao Esporte ao Turismo e ao Lazer

Art 43 prevecirc ldquoO poder puacuteblico deve promover a participaccedilatildeo da pessoa com

deficiecircncia em atividades artiacutesticas intelectuais culturais esportivas e recreativas

com vistas ao seu protagonismordquo

Outro importante marco legislatoacuterio no referente agrave acessibilidade cultural eacute o

Plano Nacional de Cultura (PNC) ldquoinstituiacutedo pela Lei 12343 de 02 de dezembro de

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2010 tem por finalidade o planejamento e implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de

longo prazo (ateacute 2020) voltadas agrave proteccedilatildeo e promoccedilatildeo da diversidade cultural

brasileirardquo (Ministeacuterio da Cultura)

Em especial a Meta 29 do Ministeacuterio da Cultura que se refere agrave

acessibilidade de espaccedilos e instrumentos culturais afirmando que

100 de bibliotecas puacuteblicas museus cinemas teatros arquivos puacuteblicos e centros culturais devem atender aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolver accedilotildees de promoccedilatildeo da fruiccedilatildeo cultural por parte das pessoas com deficiecircncia

Seguindo a linha de referenciais norteadores no tema da acessibilidade

temos como leitura obrigatoacuteria a publicaccedilatildeo do livro Nada sobre noacutes sem Noacutes

relatoacuterio final da Oficina Nacional de Indicaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Culturais para

Inclusatildeo de Pessoas com Deficiecircncia que se realizou na cidade do Rio de Janeiro

no periacuteodo de 16 a 18 de outubro de 2008 numa parceria da Secretaria da

Identidade e da Diversidade Cultural do Ministeacuterio da Cultura (SIDMinC) com a

Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Ministeacuterio da Sauacutede e com apoio da Caixa

Econocircmica Federal (CEF) Esta Oficina foi destinada a artistas gestores puacuteblicos

pesquisadores e agentes culturais da sociedade civil representativos do campo da

produccedilatildeo cultural das pessoas com deficiecircncia Conforme consta na introduccedilatildeo

desta publicaccedilatildeo o objetivo dessa oficina foi

Indicar diretrizes e accedilotildees no sentido de contribuir para a construccedilatildeo de poliacuteticas culturais de patrimocircnio difusatildeo fomento e acessibilidade para pessoas com deficiecircncia A oficina foi constituiacuteda a partir de um processo participativo e por isso adotamos o lema lsquoNada sobre Noacutes sem Noacutesrsquo

Por fim um dos documentos mais significativos de orientaccedilatildeo para poliacuteticas

puacuteblicas direcionadas agraves pessoas com deficiecircncia eacute a Convenccedilatildeo dos Direitos das

Pessoas com Deficiecircncia da ONU de 2008 em que o Brasil eacute um dos paiacuteses

signataacuterios ou seja aceitou estar juridicamente vinculado agrave obrigaccedilatildeo de tratar as

pessoas com deficiecircncia como sujeitos de direito com direitos bem definidos tal

como qualquer outra pessoa A Convenccedilatildeo eacute um Tratado Internacional de Direitos

Humanos aprovado na Assembleia Geral da ONU em 13 de dezembro de 2006 e

assinado pelo Brasil em 30 de marccedilo de 2007 Entrou em vigor em 03 de maio de

2008 apoacutes ter sido ratificado por 20 (vinte) paiacuteses membros das Naccedilotildees Unidas Eacute

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um instrumento que reafirma os princiacutepios universais (dignidade integralidade

igualdade acessibilidade e natildeo discriminaccedilatildeo) a todos os cidadatildeos em particular agraves

pessoas com deficiecircncia Tem como objetivo promover proteger e assegurar o

exerciacutecio pleno de todos os direitos humanos e fundamentais por parte de todas as

pessoas com deficiecircncia e promover o respeito pela sua dignidade

Metodologia A partir de uma pesquisa praacutetica teoacuterica 06 (seis) grupos de teatro do

municiacutepio de Porto Alegre no estado do Rio Grande do Sul foram entrevistados

respondendo um questionaacuterio com perguntas objetivas e abertas e instigados a

dialogar sobre a pauta da acessibilidade cultural no meio teatral Para uma base

analiacutetica e de avaliaccedilatildeo com os referidos grupos o estudo daraacute conta

primeiramente de discutir as Leis de Incentivo agrave Cultura uma federal ndash Lei Rouanet

uma estadual ndash LIC e um Fundo Municipal de Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural

do municiacutepio de Porto Alegre ndash FUMPROARTE transitando assim pelas trecircs

esferas governamentais

A Lei Federal de Incentivo agrave Cultura (Lei nordm 8313 de 23 de dezembro de

1991) eacute a lei que institui poliacuteticas puacuteblicas para a cultura nacional atraveacutes do

Programa Nacional de Apoio agrave Cultura (Pronac) O grande diferencial da Lei

Rouanet eacute o mecanismo de incentivos fiscais em deduccedilotildees do Imposto de Renda

(IR) fornecidos agraves empresas (pessoas juriacutedicas) e cidadatildeos (pessoas fiacutesicas) que

invistam em accedilotildees culturais em um percentual de 4 e 6 respectivamente

A Lei surgiu com o intuito de fomentar e estimular as empresas e cidadatildeos a

investirem em cultura aleacutem de efetivamente promover poliacutetica cultural em

acessibilidade Conforme sua Instruccedilatildeo Normativa Nordm 1 de 24 de junho de 2013

para propostas e projetos culturais define em seu Art 3ordm as medidas de

acessibilidade que devem ser observadas

XI ndash medidas de acessibilidade intervenccedilotildees que objetivem priorizar ou facilitar o livre acesso de idosos e pessoas com deficiecircncia ou mobilidade reduzida assim definidos em legislaccedilatildeo especiacutefica de modo a possibilitar-lhes o pleno exerciacutecio de seus direitos culturais por meio da disponibilizaccedilatildeo ou adaptaccedilatildeo de espaccedilos equipamentos transporte comunicaccedilatildeo e quaisquer bens ou serviccedilos agraves suas limitaccedilotildees fiacutesicas

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sensoriais ou cognitivas de forma segura de forma autocircnoma ou acompanhada []

Jaacute na Lei de Incentivo agrave Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (LIC) natildeo haacute

referecircncias ao campo da acessibilidade Em sua Instruccedilatildeo Normativa Nordm 01 de 29

de fevereiro de 2016 da Secretaria da Cultura do Estado (SEDAC) natildeo haacute qualquer

menccedilatildeo ao tema A LIC assim como o FAC ndash Fundo de Apoio agrave Cultura fazem

parte do Sistema Unificado PROacute-CULTURA do RS programa que consiste no apoio

e fomento agraves atividades culturais do estado

Poderatildeo ser beneficiados pela LIC projetos culturais nas aacutereas de artes

plaacutesticas e grafismos artes cecircnicas e carnaval de rua cinema e viacutedeo literatura

muacutesica artesanato e folclore acervo e patrimocircnio histoacuterico e cultural

Aprovada e sancionada em 19 de agosto de 1996 a Lei Nordm 10846 (LIC)

institui a deduccedilatildeo fiscal de ICMS em ateacute 75 do valor aplicado pela empresa em

projetos culturais sendo os outros 25 repassados pelo patrocinador ao FAC

instituiacutedo pela Lei Nordm 11706 de 18 de dezembro de 2001 que tem por finalidade

financiar projetos culturais em 100 do seu valor e fomentar a produccedilatildeo artiacutestico-

cultural do Rio Grande do Sul mas tambeacutem natildeo apresenta criteacuterios referentes agrave

acessibilidade de forma obrigatoacuteria em seus editais destinados agraves Artes Cecircnicas

mais especificamente agrave aacuterea do teatro

O Fundo Municipal de Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural do municiacutepio de

Porto Alegre (FUMPROARTE) que eacute gerido pela Secretaria Municipal da Cultura

deste municiacutepio foi criado como forma de apoio agrave produccedilatildeo artiacutestica local com a

finalidade de financiar projetos de bolsas de pesquisa e de produccedilatildeo artiacutestico-

cultural Criado pela Lei Nordm 7328 de 04 de outubro de 1993 o FUMPROARTE abre

normalmente dois concursos anuais que satildeo divulgados atraveacutes de editais puacuteblicos

Podem concorrer ao Edital de Projetos apresentados pessoas fiacutesicas ou juriacutedicas

que proponham accedilotildees em qualquer aacuterea cultural

Analisando seu uacuteltimo edital de 2015 eacute possiacutevel observar que no capiacutetulo 4

Inscriccedilatildeo no item 43 Retorno de Interesse Puacuteblico no subitem 434 consta que ldquoos

projetos poderatildeo contemplar ainda accedilotildees de promoccedilatildeo de acessibilidade para

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pessoas com deficiecircncia []rdquo O que evidencia a sua natildeo obrigatoriedade

(ldquopoderatildeordquo) do criteacuterio ldquoacessibilidaderdquo para avaliaccedilatildeo dos projetos

Propondo um melhor entendimento e relaccedilatildeo com os resultados obtidos na

pesquisa os grupos entrevistados seratildeo aqui brevemente contextualizados

Grupo Las Brujas Cia de Teatro e Feiticcedilos

Tempo de atuaccedilatildeo 05 anos Integrantes 07 pessoas

O grupo surge em 2011 e em 2012 criou o espetaacuteculo infantil ldquoA Menina do

Cabelo Vermelhordquo que atraveacutes de sua personagem ldquoFiloacuterdquo busca trabalhar a

diversidade e inclusatildeo Em 2013 o grupo firmou uma parceria com a OVNI

Acessibilidade Universal ndash empresa com sede em Porto AlegreRS que produz

audiodescriccedilatildeo (AD) e legendas para surdos e ensurdecidos (LSE) ndash e consolidou-

se como o primeiro trabalho de teatro infantil da Regiatildeo Sul a proporcionar recurso

de audiodescriccedilatildeo aberta (onde natildeo satildeo utilizados aparelhos individuais para a

recepccedilatildeo) em suas sessotildees Aleacutem de audiodescriccedilatildeo em 2014 o espetaacuteculo teve

sessotildees com traduccedilatildeo simultacircnea em Libras ndash Liacutengua Brasileira de Sinais -- para

pessoas com deficiecircncia auditiva e distribuiacuteram livros e aacuteudios-livro ao puacuteblico

presente

Teatro Sarcaustico

Tempo de atuaccedilatildeo 12 anos Integrantes 13 pessoas

Com uma formaccedilatildeo de 12 (doze) anos o grupo que surgiu dentro do

Departamento de Arte Dramaacutetica da UFRGS jaacute tem um longo caminho de trabalhos

e espetaacuteculos montados notoriamente reconhecidos pelo puacuteblico e criacutetica Sua linha

de trabalho estaacute embasada no corpo e suas manifestaccedilotildees improvisaccedilotildees intensas

textos e criaccedilotildees proacuteprias

Uma das coordenadoras do grupo comenta que ele esteve sempre tatildeo

preocupado em trabalhar se autossustentar por tratar-se de um grupo

independente que a questatildeo da acessibilidade lhes passou ldquobatidordquo Algo novo para

se pensar mas que nunca realizaram nenhuma accedilatildeo contemplando a temaacutetica e a

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falta de recursos e orccedilamentos por si soacute jaacute eacute um grande complicador para

acessibilizar espetaacuteculos

Apesar de natildeo trabalharem direto com a questatildeo da acessibilidade o grupo

estaacute preocupado em discutir e dialogar sobre a diversidade a exclusatildeo Um dos

seus uacuteltimos espetaacuteculos uma montagem infantil ndash ldquoFranky Frankenstein um

Divertido conto de Terror sobre Amizaderdquo - aborda a ldquodiferenccedilardquo a diversidade no

mundo atual

Rococoacute Produccedilotildees Artiacutesticas e Culturais

Tempo de atuaccedilatildeo 05 anos Integrantes 02 coordenadores + 10 colaboradores

diretos

A empresa e grupo de teatro Rococoacute surgem a partir de dois atores e

bailarinos que trabalham em uma linha de investigaccedilatildeo da cultura tradicionalista

gauacutecha pluralidades de linguagens e formaccedilatildeo de plateia atraveacutes de editais

prefeituras SESC educaccedilatildeo escolas oficinas e assessoria em projetos culturais

Seu uacuteltimo espetaacuteculo ldquoEra uma vezContos Lendas e Cantigasrdquo do Projeto

ldquoA Visita da Fantasiardquo eacute bastante narrativo o que acredita Henrique ajuda que

pessoas com deficiecircncia visual possam entendecirc-lo melhor Fazem tambeacutem

reconhecimento de palco cenaacuterio figurinos quando haacute alguma deficiecircncia visual

Mas Henrique expressa a dificuldade de conhecimento que se tem sobre

acessibilidade no meio artiacutestico de entendimento ldquoNatildeo se pensa no assunto natildeo

enxergamosrdquo Disse que chegaram a pensar somente quando o espetaacuteculo jaacute estava

circulando

Grupo Trilho de Teatro Popular

Tempo de atuaccedilatildeo 10 anos Integrantes 05 pessoas

O Grupo Trilho trabalha essencialmente na linha social e didaacutetica de Bertolt

Brecht e do clown nas oficinas e montagens de seus espetaacuteculos Satildeo um grupo

independente que participa de editais mas seus orccedilamentos partem mais da venda

de espetaacuteculos e oficinas

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Um dos coordenadores e fundadores do grupo fala de nunca terem

trabalhado a questatildeo da acessibilidade e nem pensarem em aplicaacute-la por

desconhecimento do assunto pela falta de recursos financeiros e por serem outras

as demandas tratadas pelo grupo mesmo que de minorias como preconceito

racismo sexualidade gecircnero a pauta da deficiecircncia nunca esteve presente

Apesar de natildeo trabalharem diretamente com acessibilidade Daniel frisa que o

teatro de rua muito presente nos espetaacuteculos do grupo por sua democratizaccedilatildeo eacute

em partes mais acessiacutevel

Associaccedilatildeo Cultural Depoacutesito de Teatro

Tempo de atuaccedilatildeo 20 anos Integrantes 06 pessoas

O Grupo Depoacutesito do Teatro eacute uma entidade cultural sem fins

lucrativos fundada em 1996 Durante todos seus anos de atuaccedilatildeo produziu e

montou mais de 25 espetaacuteculos profissionais reconhecidos pela criacutetica e puacuteblico

conquistando inuacutemeras indicaccedilotildees e precircmios do Trofeacuteu Accedilorianos e Tibicuera da

Prefeitura de Porto Alegre

O grupo tem como um de seus principais objetivos a ldquotroca humana a

constituiccedilatildeo de sujeitos criativos autecircnticos e profundamente sensiacuteveisrdquo relata o

diretor e fundador da Associaccedilatildeo Cultural Depoacutesito de Teatro Poreacutem afirma

tambeacutem nunca terem trabalho acessibilidade ou com recursos acessiacuteveis em seus

espetaacuteculos ou oficinas

Grupo Signatores (Teatro com Surdos)

Tempo de atuaccedilatildeo 06 anos Integrantes 14 pessoas

O Signatores eacute um grupo de teatro biliacutengue sendo a primeira liacutengua a Liacutengua

Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a segunda o Portuguecircs E os membros do grupo

satildeo pesquisadores e professores especialistas na aacuterea de Educaccedilatildeo e Artes da

Comunidade Surda

Todos os seus espetaacuteculos satildeo representados por atores surdos em LIBRAS

e acompanhados por personagens narradores aacuteudio em Portuguecircs Os espetaacuteculos

apresentados pelo grupo foram ldquoAventuras no Reino Surdordquo ldquoMemoacuteria na Ponta dos

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Dedosrdquo ldquoO ensaio de Alicerdquo e ldquoAlice no Paiacutes das Maravilhasrdquo O grupo jaacute foi

contemplado com vaacuterios Editais a niacutevel municipal e estadual e financiamento

atraveacutes da Lei Rouanet

Em entrevista com a diretora ela pontua as diretrizes de trabalho do

Signatores Este que tem se mostrado um grupo bastante atuante no Estado quando

o assunto eacute inclusatildeo social acessibilidade e diversidade ldquoA proposta do Grupo

Signatores eacute incentivar a formaccedilatildeo de docentes e pesquisadores na aacuterea teatral e

aproximar jovens e adultos surdos dos palcos investigando as possibilidades de

criaccedilatildeo artiacutestica dos surdos [] invertendo a loacutegica vigenterdquo

Resultados de dados

Com base no questionaacuterio aplicado no acompanhamento e entrevistas aos

grupos surgem os diferentes questionamentos quanto ao entendimento e

conhecimento sobre questotildees referentes agrave acessibilidade e suas legislaccedilotildees assim

como aplicabilidade dos recursos acessiacuteveis O Graacutefico 1 denota que a maioria dos

grupos entrevistados jaacute teve contato com tema sobre acessibilidade cultural

(pergunta 1) e em uma quase equivalecircncia jaacute trabalhou com pessoas com

deficiecircncia ou teve acesso a recursos acessiacuteveis (perguntas 2 e 3) Em sua maioria

jaacute participou de algum edital de Lei de Incentivo agrave cultura (pergunta 4)

GRAacuteFICO 1

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Jaacute no Graacutefico 2 evidencia-se o desconhecimento de Poliacuteticas Puacuteblicas e

Legislaccedilatildeo sobre o tema da acessibilidade cultural (perguntas 5 e 8) As perguntas 6

e 7 referem-se respectivamente agrave existecircncia de grupos de teatro que trabalham

com recursos acessiacuteveis em seus projetos e se haacute Casas de Teatro acessiacuteveis em

Porto Alegre Todos os grupos pontuaram a falta de um conhecimento maior e

percepccedilatildeo em relaccedilatildeo ao assunto pautado e natildeo se consideram ldquoacessiacuteveisrdquo de

forma plena e eficaz Evidenciou-se o interesse de todos em pensar discutir e

aprender mais sobre acessibilidade

GRAacuteFICO 2

Conclusotildees

Com base nos resultados obtidos com as pesquisas e discussotildees pode-se

avaliar que poliacuteticas puacuteblicas que garantam os direitos culturais das pessoas com

deficiecircncia devem transitar por todas as esferas governamentais e natildeo ficarem

restritas ao acircmbito burocraacutetico que muitas vezes as consolidam O diaacutelogo entre

poder puacuteblico Instituiccedilotildees e gestores culturais eacute de cunho fundamental para a

articulaccedilatildeo de propostas e medidas inclusivas que de fato consolidem-se no cenaacuterio

cultural

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O que temos visto ainda eacute uma consciecircncia social muito enraizada e que

precisa ser constantemente trabalhada em barreiras atitudinais que natildeo permitem

ampliar a visatildeo quando o que estaacute em pauta satildeo as deficiecircncias Sabemos que

atraveacutes da cultura e educaccedilatildeo caminharemos para um futuro mais promissor com

menos desigualdades sociais menos violecircncia mais possibilidades ldquoO teatro

permite a construccedilatildeo de mentes mais livres e de cidadatildeos mais esclarecidos e

ativosrdquo (VIGANOacute 2006 p 36)

O olhar sentir o outro satildeo premissas baacutesicas para o comunicar Natildeo haacute

construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais e humanas se natildeo houver o reconhecimento do outro

como parte integrante de nossas vidas

Natildeo basta um pouco de eacutetica uma pitada de cidadania toques de cumplicidade um quecirc de direitos fundamentais Sempre que discutirmos estes assuntos agraves uacuteltimas consequecircncias estaremos colaborando para resolver a principal questatildeo incluir pessoas com deficiecircncia [] no TODOS social incondicionalmente (WERNECK 2012 p 27)

Referecircncias BARBA Eugenio Aleacutem das ilhas flutuantes Campinas SP Hucitec 1991 BAUMAN Zygmunt Tempos Liacutequidos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 BOAL Augusto 200 exerciacutecios e jogos para o ator e o natildeo-ator com vontade de dizer algo atraveacutes do teatro 5ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo SA 1983 BOSSI Alfredo Fenomenologia do olhar In BOSSI A O Olhar Satildeo Paulo Companhia das Letras 1988 BRASIL Ministeacuterio da Cultura As metas do Plano Nacional de Cultura Brasiacutelia Ministeacuterio da Cultura 2012 Disponiacutevel em lt httpswwwplanaltogovbrccivil_03_ato2007-20102010leil12343htmgt Acesso em 21 de dezembro de 2016 BRASIL Constituiccedilatildeo Federal 1988 BRASIL Convenccedilatildeo dos Direitos das Pessoas com Deficiecircncia da ONU 2008 Disponiacutevel em lt httpwwwplanaltogovbrccivil_03_Ato2007-20102009DecretoD6949htmgt Acesso em 21 de dezembro de 2016

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KASTRUP Virinia Vergara Luiz Guilherme Cegos e videntes se encontram no museu da dicotomia agrave partilha do sensiacutevel Ineacutedito MERLEAU-PONTY Maurice Fenomenologia da Percepccedilatildeo Martins Fontes 1994 Oficina Nacional de Indicaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Culturais para Inclusatildeo de Pessoas com Deficiecircncia Nada sobre noacutes sem noacutes Relatoacuterio final 16 a 18 de outubro de 2008 Rio de janeiro Rj ENSPFIOCRUZ 2009 SANTOS Boaventura de Sousa Reconhecer para libertar os caminhos do cosmopolitanismo multicultural Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003 TOJAL Amanda Pinto da Fonseca Comunicaccedilatildeo museoloacutegica e accedilatildeo educativa inclusiva mudanccedila de paradigmas In CARDOSO Eduardo CUTY Jeniffer (Org) Acessibilidade em ambientes culturais relatos de experiecircncias Porto Alegre Marcavisual 2014 VIGANOacute Suzana Schmidt As regras do jogo a accedilatildeo sociocultural em teatro e o ideal democraacutetico Satildeo Paulo Hucitec 2006 WERNECK Claudia Ningueacutem mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva Rio de Janeiro Editora WVA 2009 WERNECK Claudia Quem cabe no seu todos Rio de Janeiro Editora WVA 2006

Page 2: Fundação Municipal de Artes de Montenegro · Priscila Mathias Rosa – Vice-diretora Executiva Márcia Moura Cordeiro Pessoa Dal Bello ... (UNL/SANTA FE) Ana Maria Haddad Baptista

REVISTA DA FUNDARTE Uma publicaccedilatildeo semestral da Editora da Fundaccedilatildeo Municipal de Artes de Montenegro - Ano 16 nuacutemero 32 julhojdezembro 2016

Fundaccedilatildeo Municipal de Artes de Montenegro-FUNDARTE

Legario Guilherme Nabinger - Presidente do Conselho Teacutecnico Deliberativo

Andreacute Luis Wagner- Diretor Executivo Julia Maria Hummes - Vice-diretora Executiva

Priscila Mathias Rosa ndash Vice-diretora Executiva

Maacutercia Moura Cordeiro Pessoa Dal Bello Vanessa Longarai Rodrigues

Coordenaccedilatildeo da Ediccedilatildeo

Julia Maria Hummes (FUNDARTERS) Maacutercia Moura Cordeiro Pessoa Dal Bello

(FUNDARTERS) Vanessa Longarai Rodrigues (FUNDARTERS)

Marco Tuacutelio (FUNDARTERS) Carine (FUNDARTERS)

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel (UERGSRS) Maria Isabel Petry Kehrwald

Comissatildeo Editorial

Luciana Prass (UFRGSRS)

Carmen Luacutecia Capra (UERGSRS)

Edgardo Hugo Martinez (UNLSANTA FE)

Maria Eduarda Ferreira Coquet (UNIVERSIDADE DO MINHOPORTUGAL)

Andrea Hofstaeter (UFRGSRS)

Flavia Pilla do Valle (UFRGSRS)

Federico Gariglio (UNLSANTA FE)

Ana Maria Haddad Baptista (UNINOVESP)

Gilberto Icle (UFRGSRS)

Maria Cecilia de Araujo Rodrigues Torres (IPARS)

Comissatildeo Cientiacutefica

Capa Estevatildeo Dornelles Concepccedilatildeo Estevatildeo Dornelles Priscila Mathias

Rosa Deacutebora Brandt Alencastro Rodrigo Kochemborger e Janaiacutena Kremer

Direccedilatildeo Estevatildeo Dornelles Fotografia Ursula Jahn

Elenco Patrick Aozani Moraes Composiccedilatildeo Graacutefica Estevatildeo Dornelles

Vanessa Longarai Rodrigues

Editoraccedilatildeo Eletrocircnica

REVISTA DA FUNDARTE Rua Capitatildeo Porfiacuterio 2141 - B Centro CEP

95780-000 ndash MontenegroRSndashBrasil Fonefax (51) 3632-1879

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Bibliotecaacuterio Marcelo Bresolin - CRB 102136

Revista da FUNDARTE

Montenegro Ano 16 N 32 JulhoDezembro2016

Periodicidade Semestral

Eacute permitida a reproduccedilatildeo dos artigos desde que citada a fonte Os conceitos emitidos satildeo de

responsabilidade de quem os assina Para os artigos em liacutengua estrangeira seraacute respeitada a

formataccedilatildeo do paiacutes de origem Excepcionalmente nesta ediccedilatildeo da Revista da

Fundarte seratildeo mantidas as formataccedilotildees de texto e referecircncias conforme encaminhadas pelos autores

Revista da FUNDARTE ndash ano 1 v1 n 1 (jan-jun 2001) ndash Montenegro Ed da Fundarte 2001 ndash Semestral ISSN 2319-0868

1 Artes 2 Educaccedilatildeo 3 Muacutesica 4 Gravura 5Perfomance I Fundaccedilatildeo Municipal de Artes de Montenegro

Sumaacuterio

Editorial

Editorial

LER EDITORIAL

Maria Isabel Petry Kehrwald P04 - P06

Artigos

A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de caso

LER ARTIGO

Marcio Guedes Correa P07 - P14

Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo Paul Valeacutery Espiritografias

LER ARTIGO

Idalina Krause de Campos P15 - P35

Gravura procedimentos alternativos em litografia contemporacircnea

L

Ana Paula Schoninger van Grol Lurdi Blauth P36 - P51

Pluralia Tantum reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea

LER ARTIGO

Fernando Lewis de Mattos P52 - P94

Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente

LER ARTIGO

Lutiere Dalla Valle P95 - P108

PerformanceS

LER ARTIGO

Fernando Pinheiro Villar P109 - P119

Estudo sobre a Participaccedilatildeo de Estudantes em um Grupo Instrumental

LER ARTIGO

Dutra Goumlethel Pacircmela Cristina Rolim Wolffenbuumlttel Accorsi Bueno Ana Maria

P120 - P141

Teatro para quem A arte de teatrar para todos - Um estudo sobre acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RS

LER ARTIGO

Izabel Cristina da Silveira P142 - P162

4 | P aacute g i n a

EDITORIAL

Nesta 32ordf ediccedilatildeo da Revista da FUNDARTE oferecemos aos nossos leitores

oito artigos centrados nas aacutereas das artes visuais muacutesica teatro educaccedilatildeo criadora

e cinema Eles estatildeo perpassados por enfoques educativos teoacutericos e artiacutesticos e

ancorados no tema ldquoArte e Educaccedilatildeo poeacutetica pesquisa e docecircnciardquo As

abordagens dos autores contemplam diferentes pontos de vista ora apresentando

processos artiacutesticos e performances ora refletindo sobre a pedagogia e a accedilatildeo

docente Eacute um panorama diversificado com propostas que enriquecem as discussotildees

em torno do tema

O primeiro artigo denominado ldquoA polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da

muacutesica popular uma proposta analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de casordquo

de Marcio Guedes Correa do Instituto de Artes da Unesp apresenta estudos de caso

na aacuterea da muacutesica que reforccedilam a importacircncia do contraponto tanto para a

organizaccedilatildeo do ensino da muacutesica popular quanto para a compreensatildeo do saber

musical Almada e Lima satildeo alguns dos autores que datildeo suporte agrave investigaccedilatildeo

Idalina Krause de Campos da UFRGS discorre em seu artigo ldquoFazer

tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery espiritografiasrdquo sobre conceitos de

leitura e escrita (escrileitura) e Filosofia da Diferenccedila entre outros que buscam

desenvolver uma consciecircncia da importacircncia do processo de pensar A pesquisa da

autora trata de uma praacutetica de ensino criadora centrada na obra de Valeacutery com

aportes teoacutericos tambeacutem de Deleuze e Corazza

As experiecircncia realizadas com diferentes meios e modos de produzir imagens

satildeo o foco do artigo ldquoGravura procedimentos alternativos em litografia

contemporacircneardquo de Ana Paula Schoninger van Grol da FeevaleNH

Procedimentos tradicionais satildeo inter-relacionados com processos de tecnologias

digitais propondo novas possibilidades de criaccedilatildeo de matrizes e aproveitamento de

materiais alternativos Blauth e Veneroso contribuem para o estudo da autora

5 | P aacute g i n a

Fernando Lewis de Mattos da UFRGS em seu ensaio ldquoPluralia Tantum

reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircneardquo apresenta elementos histoacutericos da

esfera musical e discorre sobre caracteriacutesticas da muacutesica contemporacircnea Aponta

paralelamente aspectos do conservadorismo da muacutesica atual presentes em nosso

cotidiano Suas argumentaccedilotildees apoiam-se em extensa bibliografia da qual citamos

Buckinx e Koellreutter

ldquoProvocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa

das imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docenterdquo aborda o cinema como dispositivo

provocador de formaccedilatildeo docente que conforme o autor Lutiere Dalla Valle da

UFSM ldquoproduz formas de ver e ser vistordquo O texto estabelece relaccedilotildees entre arte e

subjetividade presentes na cinematografia e explora o conceito de edu(vo)cativo

identificado nas aprendizagens mediadas pelas visualidades Contribuem para as

reflexotildees Dias Fresquet e Hernaacutendes

Fernando Pinheiro Villar aborda a pluraridade do conceito de performances

artiacutesticas relacionadas ao desempenho no seu artigo PerfomanceS Para o autor o

significado de desempenho afirma a observaccedilatildeo analiacutetica de comportamentos

humanos podendo significar comportamentos que se repetem ou accedilotildees cotidianas

que satildeo ensaiadas ou preparadas e observadas Segundo o autor ldquouma performance

sem consciecircncia do fato de estar sendo vista como tal pode significar uma

performance cotidiana cultural ou socialrdquo

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel Pacircmela Goumlethel Dutra e Ana Maria Bueno

Accorsi no artigo Estudo sobre a participaccedilatildeo de estudantes em um Grupo

Instrumental apresenta a pesquisa realizada em uma escola Municipal de TaquariR

que teve como objetivo compreender a importacircncia da participaccedilatildeo dos alunos em

grupos instrumentais diante das diversas possiblidades da inserccedilatildeo da muacutesica a partir

da nova legislaccedilatildeo

Como promover a inclusatildeo social da pessoa com deficiecircncia no acircmbito cultural

eacute a preocupaccedilatildeo de Izabel Cristina da Silveira da FUNDARCRS expressa no artigo

6 | P aacute g i n a

ldquoTeatro para quem A arte de teatrar para todos um estudo sobre

acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RSrdquo que fecha esta Revista O

estudo praacutetico-teoacuterico desvela discussotildees questionamentos e legislaccedilatildeo em torno do

tema na tentativa de buscar alternativas para a acessibilidade Barba Tojal e

Werneck satildeo alguns dos teoacutericos consultados

Agradecemos imensamente aos que enviaram seus artigos para compor a 32ordf

Revista da FUNDARTE Desejamos uma boa leitura e que as reflexotildees oferecidas

pelos autores contribuam para a busca de novos e inquietantes saberes

Maria Isabel Petry Kehrwald Conselho Editorial da Revista

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta

analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de caso

Marcio Guedes Correa1

Instituto de Artes da Unesp

Resumo O repertoacuterio estudado nos cursos formais de muacutesica popular eacute em grande parte tonal de textura homofocircnica estruturado como melodia acompanhada No entanto eacute possiacutevel reconhecer estruturas polifocircnicas subordinadas agrave homofonia dos acompanhamentos instrumentais frequentemente realizados para acompanhar canccedilotildees Pode-se conjecturar que tais estruturas estejam presentes no repertoacuterio como um eco da polifonia vocal do renascimento e do barroco jaacute que muitas escolhas de acordes se datildeo ldquode ouvidordquo e natildeo necessariamente por uma opccedilatildeo teacutecnica e funcional em relaccedilatildeo agrave harmonia Portanto a harmonia informalmente chamada de funcional da muacutesica popular pode carregar em si diversas expectativas de direccedilatildeo ou resoluccedilatildeo que satildeo mais de ordem meloacutedica do que harmocircnica Este estudo espera contribuir para a revalorizaccedilatildeo do estudo de contraponto dentro das matrizes curriculares de muacutesica popular jaacute que eacute notoacuterio que tal disciplina vem sendo extinta do ambiente formal de educaccedilatildeo musical Palavras-chave ensino da muacutesica popular cifra alfanumeacuterica polifonia em muacutesica popular contraponto em muacutesica popular Abstract The repertoire studied in formal courses of popular music is largely tonal It has homophonic texture and itrsquos structured as na accompanied melody However it is possible to recognize polyphonic structures under the homophone of instrumental accompaniments often performed to accompany songs One can conjecture that such structures are present in the repertoire as an echo of the vocal polyphony of the Renaissance and the Baroque as many chord choices are given by ear and not necessarily by a technical and functional option with regard to harmony Therefore the functional harmony informally called popular music can load itself diverse expectations of management or resolution that are more melodic than harmonic order This study hopes to contribute to the upgrading of counterpoint study within the curriculum matrices of popular music as it is clear that this discipline is being extinguished of the formal setting of music education Keywords teaching of popular music alphanumeric cipher polyphony in popular music counterpoint in popular music

Primeiro estudo de caso o movimento meloacutedico do baixo impliacutecito na cifra do

choro em Um a Zero de Pixinguinha

No ensino do repertoacuterio popular eacute muito comum a utilizaccedilatildeo de partituras que

contecircm melodias cifradas Esta forma de registro musical oferece a melodia principal

(anaacuteloga ao cantus firmus) grafada em partitura o que garante uma certa precisatildeo

na compreensatildeo dessa camada mas todos os outros elementos componentes da

1 Graduado em Licenciatura em Muacutesica pela FAAM mestre em muacutesica pelo Instituto de Artes da Unesp Doutorando em muacutesica da Unesp ndash Instituto de Artes sob orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Sonia R Albano de Lima Contato correamarcioguedesgmailcom

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

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elaboraccedilatildeo musical ficam representados unicamente pela cifra alfanumeacuterica A cifra

confere ao interprete um grau de liberdade desejaacutevel na muacutesica popular mas essa

mesma liberdade pode ser em alguma medida prejudicial no ensino de muacutesica

popular quando se trata da compreensatildeo total do discurso a praacutetica aliada a

compreensatildeo racional do fazer musical

A cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular eacute em primeira instacircncia uma

representaccedilatildeo de simultaneidades mais especificamente dos acordes da muacutesica

tonal Mas da informaccedilatildeo harmocircnica que a cifra oferece eacute possiacutevel depreender

tambeacutem procedimentos meloacutedicos complementares agrave melodia principal ou seja do

contraponto impliacutecito e subordinado agrave estrutura homofocircnica Pode-se considerar que

o caso mais audiacutevel estaacute nas melodias empregadas no baixo Em cifras em que haacute

fartura de acordes com inversatildeo percebe-se uma clara intenccedilatildeo de movimentar o

baixo melodicamente ou seja de conferir a essa camada estrutural contornos

meloacutedicos associados ao seu papel de delinear as fundamentais das funccedilotildees

harmocircnicas No repertoacuterio relacionado ao choro o violatildeo de sete cordas desenvolve

a funccedilatildeo de baixo que aleacutem de reforccedilar a estrutura harmocircnica tonal estaacute em

contraponto constante com a melodia principal

A composiccedilatildeo ldquoUm a Zerordquo de Pixinguinha eacute um exemplo disso

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

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Figura 1 ldquoUm a Zerordquo (Pixinguinha) Irmatildeos Vitale 1997

O exemplo da figura 1 traz a primeira parte da composiccedilatildeo A quantidade de

inversotildees de acordes presente procura dar pistas da realizaccedilatildeo do baixo comumente

tocado no violatildeo de sete cordas Isso retira do baixo o papel monoacutetono de garantir a

fundamental de cada funccedilatildeo harmocircnica Com base nesta cifra o muacutesico popular de

modo anaacutelogo ao muacutesico barroco realiza o baixo Na figura dois encontra-se uma

sugestatildeo de realizaccedilatildeo do baixo com base nas cifras

Figura 2 Realizaccedilatildeo do baixo em ldquoUm a Zerordquo de Pixinguinha Imagem concebida e editada pelo autor

Segundo estudo de caso a polifonia tonal no acompanhamento da canccedilatildeo

ldquoQuando o carnaval chegarrdquo de Chico Buarque

O ensino de harmonia da muacutesica popular ldquomais especificamente aquela que

eacute informalmente denominada harmonia funcionalrdquo (ALMADA 2013 p 12) se

preocupa em primeiro lugar em determinar a funccedilatildeo de cada um dos acordes

encontrados no discurso musical Este tipo de ensino tem objetivos diversos

compreender estruturas harmocircnicas orientar a praacutetica da improvisaccedilatildeo meloacutedica

guiar estudos de rearmonizaccedilatildeo e substituiccedilatildeo de acordes entre outros Poreacutem em

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alguns casos acordes podem ser simultaneidades geradas por direccedilotildees meloacutedicas

distintas na conduccedilatildeo de cada voz ldquoNo estudo da harmonia tonal acordes podem

surgir a partir de combinaccedilotildees de linhas meloacutedicas relativamente independentesrdquo

(LIMA 2008 p 63) Ainda que tais procedimentos meloacutedicos possam natildeo ser

conscientes pelo muacutesico que desenvolve a funccedilatildeo de acompanhamento pode-se

conjecturar que sua percepccedilatildeo auditiva esteja imbuiacuteda de sonoridades

caracteriacutesticas da muacutesica vocal polifocircnica e isso em algum momento pode

transparecer em acompanhamentos instrumentais

No presente estudo de caso eacute possiacutevel observar procedimentos polifocircnicos

na conduccedilatildeo dos acordes da primeira parte da canccedilatildeo ldquoQuando o Carnaval Chegarrdquo

de Chico Buarque Em diversas entrevistas o compositor carioca revela que

aprendeu a tocar violatildeo sozinho tentando imitar o violatildeo de Joatildeo Gilberto e

portanto natildeo conhece harmonia e suas regras As escolhas de acordes feitas por

compositores autodidatas se datildeo quase unicamente por sonoridade Ou seja um

acorde eacute seguido por outro porque o som eacute satisfatoacuterio para os objetivos do

compositor Disso pode-se compreender que tais escolhas harmocircnicas estatildeo

carregadas de expectativas meloacutedicas ou seja cada acorde eacute ouvido como um

conjunto simultacircneo de notas potencialmente meloacutedicas como o satildeo no estudo da

harmonia tradicional Portanto este estudo pretende apontar para a possibilidade de

anaacutelise harmocircnica em que alguns acordes sejam considerados simultaneidades de

expectativas meloacutedicas e estes tecircm menor concordacircncia com a anaacutelise harmocircnica

ou funcional

O estudo da harmonia natildeo pressupotildee obrigatoriamente apenas simultaneidade () eacute importante que seja considerado o movimento meloacutedico de cada linha (voz) A inter-relaccedilatildeo entre melodia harmonia ritmo dinacircmica textura etc satildeo fatores que devem ser levados em conta na anaacutelise e na composiccedilatildeo de uma peccedila (LIMA 2008 p 117)

Eacute necessaacuterio estudar certas passagens harmocircnicas agrave luz da polifonia e

portanto do contraponto

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

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Figura 4 anaacutelise do contraponto presente na harmonia de ldquoQuando o Carnaval Chegarrdquo de Chico Buarque Imagem concebida e editada pelo autor

O exemplo da Figura 4 oferece uma opccedilatildeo de compreensatildeo harmocircnica

diferente da sugerida na partitura O primeiro acorde eacute visto como faacute meio diminuto

na primeira inversatildeo em vez de laacute menor com sexta maior como sugerido na cifra

original O acorde seguinte o primeiro grau eacute um sol maior com seacutetima maior

portanto sua sensiacutevel faacute fundamental do acorde anterior ainda estaacute presente

como um retardo O terceiro acorde embora estruturalmente se iguale ao acorde de

laacute bemol diminuto de seacutetima diminuta nessa proposta de anaacutelise se daacute pela

consequecircncia de quatro figuraccedilotildees meloacutedicas bordadura no baixo nota de

passagem no tenor retardo no contralto e antecipaccedilatildeo no soprano Portanto ele natildeo

tem menos funccedilatildeo harmocircnica e mais implicaccedilotildees meloacutedicas

Quando se prolonga todas as notas que satildeo rearticuladas nos acordes do

exemplo da figura 4 depara-se com um contraponto a quatro vozes

predominantemente de segunda espeacutecie

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

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Figura 5 conclusatildeo contrapontiacutestica da primeira parte da canccedilatildeo ldquoquando o carnaval chegarrdquo Imagem concebida e editada pelo autor

Portanto nesta proposta de anaacutelise harmocircnica natildeo eacute possiacutevel desconsiderar

o contraponto e implicaccedilotildees polifocircnicas

Terceiro estudo de caso contraponto cromaacutetico nas dissonacircncias acima da

seacutetima no acompanhamento da canccedilatildeo ldquosamba do aviatildeordquo de Tom Jobim

A harmonia da muacutesica popular poacutes bossa-nova conferiu ldquoemancipaccedilatildeo agrave

dissonacircnciardquo emprestando a expressatildeo de Schoenberg Portanto a dissonacircncia natildeo

mais direciona os acordes no sentido de suas resoluccedilotildees mas emprestam a eles

sonoridades instaacuteveis e de alguma maneira ao mesmo tempo resolutas As

dissonacircncias conferem certa impressatildeo a cada um dos acordes mas natildeo

apresentam funccedilatildeo de interligaccedilatildeo dos fenocircmenos harmocircnicos atraveacutes da resoluccedilatildeo

delas Esta interligaccedilatildeo novamente se daacute muito mais por expectativas meloacutedicas

embutidas como vozes simultacircneas formadoras dos acordes

Embora a emancipaccedilatildeo da dissonacircncia seja plenamente presente no

repertoacuterio popular poacutes bossa-nova em alguns casos natildeo se pode desconsiderar

estruturas contrapontiacutesticas presentes nestas composiccedilotildees Eacute claro que neste caso

especiacutefico as dissonacircncias natildeo satildeo resolvidas mas suas irresoluccedilotildees natildeo raro

recaem sobre construccedilotildees meloacutedicas em vozes internas dos acordes subordinadas

agrave melodia principal ao baixo e claro agrave harmonia

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

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Figura 6 contraponto cromaacutetico na canccedilatildeo ldquosamba do aviatildeordquo de Tom Jobim Imagem concebida e editada pelo autor

No fragmento musical da figura 6 eacute possiacutevel identificar uma melodia cromaacutetica

embutida nas dissonacircncias acima da seacutetima A partir do compasso 5 as notas doacute

doacute si e laacute satildeo respectivamente deacutecima terceira maior deacutecima terceira menor

deacutecima segunda e deacutecima primeira aumentada do acorde de mi maior com seacutetima

menor Essas dissonacircncias constroem uma melodia cromaacutetica um contraponto

cromaacutetico

Essa melodia eacute imitada a partir do compasso 7 uma seacutetima maior abaixo nas

notas reacute do do e si respectivamente deacutecima primeira justa deacutecima maior deacutecima

menor e nona maior dos acordes laacute maior com seacutetima maior e laacute menor com seacutetima

menor A melodia cromaacutetica original e sua imitaccedilatildeo uma seacutetima menor abaixo

comeccedilam e terminam em dissonacircncia

Consideraccedilotildees Finais

As propostas aqui apresentadas pretendem apontar para uma contribuiccedilatildeo

dos gecircneros de muacutesica erudita na estruturaccedilatildeo do ensino da muacutesica popular mais

especificamente buscam valorizar o estudo da disciplina contraponto Talvez as

estruturaccedilotildees dos curriacuteculos de cursos de muacutesica possam ser de certo modo

exclusivamente populares apenas na escolha do repertoacuterio a ser aprendido e ainda

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

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assim persiste a discussatildeo do que vem a ser muacutesica popular e muacutesica erudita e se

essa fronteira existe com tanta clareza No acircmbito da estruturaccedilatildeo teacutecnica e teoacuterica

a hibridez dos conhecimentos historicamente categorizados como de muacutesica erudita

e popular parece ser inevitaacutevel O estudo do contraponto parece ainda ser

indispensaacutevel para fomentar uma compreensatildeo mais ampla do saber musical em

diversos acircmbitos em diferentes gecircneros e estilos

Referecircncias

ALMADA Carlos Contraponto em muacutesica popular fundamentaccedilatildeo teoacuterica e aplicaccedilotildees Rio de Janeiro Editora UFRJ 2013

BORTZ Graziela Direccedilatildeo e Movimento em Solfejos Tonais Percepta ndash revista de cogniccedilatildeo musical Curitiba 1 (1) 95-107 novembro de 2013 CARRASQUEIRA Maria Joseacute O melhor de Pixinguinha Songbook Satildeo Paulo Irmatildeo Vitale 1997 LIMA Marisa Ramirez Rosa de Harmonia Satildeo Paulo Embraform 2008 LIMA Sonia Regina Albano de Performance e interpretaccedilatildeo musical uma praacutetica interdisciplinar Satildeo Paulo Musa Editora 2006 NOGUEIRA Marcos Fernandes Pupo Agrupamentos Sonoros Plenos na Muacutesica de Simultaneidades Acuacutesticas e Estruturais Revista Muacutesica Hodie Goiacircnia v12 nordm 2 p87-972012 Disponiacutevel em lthttpwwwmusicahodiemusbr122artigo_7pdfgt Acesso em 07 de dezembro de 2016 SCHOENBERG Arnold Exerciacutecios Preliminares em Contraponto Traduccedilatildeo de Eduardo Seincman Satildeo Paulo Via Lettera 2001

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CAMPOS Idalina Krause de Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery esperitografias Revista da

Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 15-35 juldez 2016 Disponiacutevel em

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Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery espiritografias

Idalina Krause de Campos1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo Este artigo analisa as possibilidades de um fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo tendo como foco o poeta e pensador francecircs Paul Valeacutery e seus procedimentos muacuteltiplos de escrita uma escrita que opera com a leitura ― escrileitura ― e eacute considerada uma operaccedilatildeo ativa de consciecircncia que possibilita ampliar o uso das faculdades intelectivas de um espiacuterito que lecirc e escreve Propotildee atuar e operar com o meacutetodo do informe em atravessamentos imaginativos da filosofia com a literatura e a educaccedilatildeo da diferenccedila aleacutem de utilizar o conhecimento como invenccedilatildeo por meio de procedimentos tradutoacuterios que possibilitem accedilotildees criadoras em educaccedilatildeo Palavras-chave Valeacutery educaccedilatildeo escrileituras traduccedilatildeo Abstract This paper analyzes the possibilities of a translating action in education by focusing on the French poet and thinker Paul Valeacutery and his multiple writing procedures a kind of writing that operates with reading ― reading-writing ― and is considered as an active operation of awareness that favors the use of intellective faculties of a spirit that reads and writes It proposes to act and operate with the inform method in imaginative intersections between philosophy literature and education of difference besides using knowledge as invention by means of translating procedures that enable creation actions in education Keywords Valeacutery education reading-writings translation

Introduccedilatildeo

O escritor Paul Valeacutery nasceu em Segravete (1871) Comuna francesa no periacuteodo

da Guerra Franco-Prussiana A porta para o mar do Mediterracircneo eacute um porto de

encantos incomparaacuteveis de um horizonte vasto banhado pelas aacuteguas de bacias e

canais que desaacuteguam no mar O pensador eacute autor de uma obra vasta

profundamente original que possui uma intensidade uacutenica e merece ser analisada

em funccedilatildeo de seu movimento de escrita e leitura (escrileitura) pois ele pesquisou

1 Possui graduaccedilatildeo em Licenciatura e Bacharelado em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul (1986) Especializaccedilatildeo em Filosofia Cliacutenica pela Faculdade Joatildeo Bagozzi e Instituto Packter

(2008) Mestrado em Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo (PPGEDU) pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (2013) na Linha Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo Atualmente eacute Doutoranda bolsista CAPES

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo na Linha

Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo Participa como pesquisadora dos projetos Dramatizaccedilatildeo do infantil na

comeacutedia intelectual do curriacuteculo meacutetodo Valeacutery-Deleuze Escrileituras um modo de ler-escrever em meio agrave

vida e Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila Membro integrante do BOP

ndash Bando de Orientaccedilatildeo e Pesquisa da Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo e do Grupo de

Pesquisa DIF ndash artistagens fabulaccedilotildees variaccedilotildees

16 | P aacute g i n a

CAMPOS Idalina Krause de Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery esperitografias Revista da

Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 15-35 juldez 2016 Disponiacutevel em

lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

estudou e escreveu sobre conteuacutedos integrantes das mais diversas aacutereas do

conhecimento e que satildeo repletos de nuances e de viva poesia

Tal perspectiva oriunda de seus escritos propicia utilizar o conhecimento

como invenccedilatildeo para criar um compoacutesito de escrita e leitura e com ele produzir

meios que possibilitem accedilotildees criadoras em educaccedilatildeo o que propicia ao espiacuterito

construir a sua proacutepria realidade no campo ambiental da linguagem

Ainda em seus primeiros anos de vida o Mediterracircneo que banha a cidade

torna-se uma festa aos olhos curiosos do infante Valeacutery que considera tudo das

cores aos cheiros das formas agraves imagens de uma natureza exuberante ldquouma

verdadeira loucura de luz combinada com a loucura da aacuteguardquo (VALEacuteRY 2011 p

127) Satildeo seus primeiros passos de pensador e que trazem em germe um pensar

em estado nascente pois se deixa seduzir pela liberdade pelos estados poeacuteticos

com um olhar voltado para o mar o que eacute tambeacutem um olhar para o possiacutevel

Os olhos de Valeacutery abraccedilam o que haacute de humano e de inumano em uma

paisagem de natureza primitiva quase intocada mesclada com as atividades dos

homens que ali habitam Um grande cenaacuterio de teatro cujo personagem principal eacute

a luz que ilumina o mar Ali onde Afrodite passeia e que ao cair da tarde

crepuscular com o mar jaacute escuro deixa ver na rebentaccedilatildeo brilhos extraordinaacuterios

Onde a luz de fogo rosa insistente do sol daacute seu adeus ao dia deixando que entre

em cena a escuridatildeo da jaacute noite onde se entreveem os fantasmas que danccedilam

sobre as torres e muros de Aiguesmortes Sombras que festejam os cadaacuteveres

pesados dos atuns animais quase do tamanho de um homem trazidos pelos barcos

de pesca que adentram a costa em seu ldquoretorno da cruzadardquo (VALEacuteRY 2011 p

130)

Ao amanhecer a peccedila teatral do viviacutevel segue e a luz dos raios solares

derrama-se pelos molhes Eacute quando o pequeno Valeacutery tenciona banhar-se na

imensidatildeo cristalina do mar Poreacutem baixa os olhos e estremece diante de uma cena

singular que mistura carnificina e beleza Jazem sobre a ldquoaacutegua maravilhosamente

lisa e transparenterdquo restos de ldquoviacutesceras e entranhas de todo o bando de Netunordquo

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(VALEacuteRY 2011 p 130) Satildeo muacuteltiplas tonalidades de cores roacuteseo-puacuterpuras coral

sanguinolenta vermelhidatildeo de uma mortandade repulsivamente sinistra embalada

pelas ondas letaacutergicas

O espanto eacute inevitaacutevel e o faz esquecer o banho matinal Mas apesar do

susto que invade sua alma os olhos guardam alguma admiraccedilatildeo pelo

acontecimento fazendo vagar pensamentos relacionando o morticiacutenio repleto de

cores com imagens espectrais Misturas de tonalidades imersas na aquosidade de

um liacutempido e cristalino mar que poderiam bem servir para um fazer artiacutestico aos

homens de talento afeitos agraves curiosidades e agraves capturas de um olhar artistador

Natildeo perdura nessa imagem repentina o conteuacutedo pobre mas como pondera

Deleuze em O Esgotado (2010 p 85) vale nessa visatildeo a energia condensada ldquoa

prodigiosa energia captada prestes a explodir fazendo com que as imagens nunca

durem muito tempo [] A imagem dura o tempo furtivo de nosso prazer de nosso

olharrdquo Assim aparece a forccedila de sentimento de Valeacutery influenciado e estimulado

pelas deidades poeacuteticas do mar do ceacuteu e do sol

E o que decorre disso tudo eacute uma produccedilatildeo intelectual que foca em muacuteltiplas

temaacuteticas tendo como pano de fundo o funcionamento do intelecto atraveacutes de

accedilotildees de pensar o proacuteprio pensamento para verificar o que estes pensamentos

implicam Uma produccedilatildeo que abarca o viviacutevel e que merece ser investigada como

um meio possiacutevel para ser apropriado no acircmbito do ensino contemporacircneo em

funccedilatildeo de sua diversidade e de sua potecircncia textual

Pelo que foi possiacutevel observar em nossas pesquisas Valeacutery configura-se num

misto de poeta de pensador e de criacutetico da cultura tendo sido traduzido por

escritores e tambeacutem por poetas em vaacuterios idiomas No entanto apesar de possuir

um reconhecimento internacional pelo conjunto de suas obras produzidas eacute ainda

pouco explorado no Brasil especialmente no que tange ao uso teoacuterico e praacutetico do

seu pensamento no campo da educaccedilatildeo

Em suma como afirma Gonccedilalves (2011 p 238) Valeacutery eacute O Alquimista do

Espiacuterito ldquodevido ao seu sistema plural de linguagensrdquo em que ocorrem

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transmutaccedilotildees de montagem e desmontagem de escrita Uma verdadeira alquimia

contraacuteria agrave anestesia do gesto para que uma segunda natureza possa se apresentar

ao texto atraveacutes de um operar espiritual em constante variaccedilatildeo e que neste fazer

operativo produz uma escrita visceral e mutante cuja mateacuteria eacute a vida que se

experimenta no campo do saber como um processo aberto muacuteltiplo e desafiador

para assim buscar fazer com ele uma educaccedilatildeo disposta a disseminar as aventuras

do pensamento

Espiacuterito

Valeacutery utiliza-se da palavra francesa esprit para aludir ao Eu embora haja em

seu pensamento a distinccedilatildeo entre dois tipos de espiacuterito Moi que seria o Eu

empiacuterico (self-variance) e Moi que seria o Eu puro (Idolle de lrsquoIntelect) a ser

cultuado e buscado Este uacuteltimo conceito de Eu puro necessita ser entendido com

uma significaccedilatildeo peculiar qual seja o Eu como intelecto como inteligecircncia

Nessa perspectiva o presente artigo aborda um possiacutevel fazer tradutoacuterio em

educaccedilatildeo conjuntamente com o pensador Paul Valeacutery de modo a buscar atraveacutes

do movimento de leitura e escrita exercitar conscientemente os pensamentos que

possibilitam transitar no campo diverso do saber

O espiacuterito ndash ou Eu-empiacuterico ndash desenvolve-se conscientemente exercitando os

processos do pensar com a finalidade de conhecer Pensamento ativado via

processos de criaccedilatildeo oriundos de uma self-variance (autovariaccedilatildeo do espiacuterito)

disciplinada e rigorosa passando a verificar o que esses pensamentos implicam

procurando vecirc-los com precisatildeo e pesquisar seus labirintos sua mecacircnica psiacutequica

iacutentima e seu meacutetodo operativo

Valeacutery (2011 p179) conceitualiza as accedilotildees do pensar as invenccedilotildees

produzidas pela inteligecircncia onde o Eu-empiacuterico que se utiliza da leitura e da

escrita e consequentemente pensa define-se ldquoatraveacutes da relaccedilatildeo entre um 2010 p

85) certo lsquoespiacuteritorsquo e a linguagemrdquo Ou seja pondo em movimento um Eu-funcional

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pode-se desenvolver uma consciecircncia do processo do pensar para fins de

conhecimento expressos por intermeacutedio da linguagem

Espiacuterito este visto como um sujeito que natildeo se assujeita mas aspira agrave

criaccedilatildeo e a realiza sem divindade reguladora sem idealismo (Eu absoluto do

Idealismo Alematildeo) e distante da metafiacutesica da alma imortal (Eu substancial do

racionalismo de Descartes) Portanto o Eu puro valeacuteryano natildeo guarda uma

moralidade consistindo na invariabilidade naquilo que natildeo muda no espiacuterito O

espiacuterito eacute abordado como um signo de pura possibilidade de uma virtualidade ao

qual o Eu empiacuterico aspira e tende Eu que passa por uma ascese e encontra-se ―

purificado de paixotildees de outros iacutedolos e idolatrias ― de forma a se tornar liberto

para agir e pensar

A nossa pesquisa da escrita valeacuteryana gera e explora meios de afirmar e de

proporcionar possibilidades criadoras em educaccedilatildeo justamente porque ndash como

salienta Corazza (2010 p 2) ndash o espiacuterito humano enfrenta dificuldades para pensar

o informe de maneira que necessitamos ldquode uma Educaccedilatildeo ou pedagogia dos

sentidos associando a vivecircncia dos limites formais com a criaccedilatildeo artistadorardquo

A pesquisa trata portanto de um fazer compositivo de escrita de uma praacutetica

de ensino numa construccedilatildeo conjunta com a obra de Valeacutery que busca o valor do

pensar humano observa seu funcionamento e sua accedilatildeo fecunda de pensar Por seu

intermeacutedio construiacutemos operaccedilotildees escrileitoras tradutoacuterias (escrita-leitura e leitura

escrita) capturando as forccedilas que aproximam percepccedilatildeo e criaccedilatildeo

Pensamos que a Filosofia da Diferenccedila pode servir-se das pesquisas deste

poeta-pensador como um disparador de escrita que busca um novo modo de ver e

de pensar o pensamento no qual a linguagem a verdade a consciecircncia de si satildeo

inseparaacuteveis e inter-relacionadas Pensar que possibilita o alargamento das

fronteiras da linguagem educacional na medida em que quebra concepccedilotildees

filosoacuteficas e cientiacuteficas consideradas verdadeiras e incontestaacuteveis

Inter-relaccedilatildeo na qual o espiacuterito Estudante-Escritor- Educador (EEE) estaacute

sempre se autoproduzindo por via de uma self-variance num processo contiacutenuo de

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geraccedilatildeo de sentidos imanentes singulares e particulares os quais reivindicam

novas possibilidades de invenccedilatildeo de emissatildeo de signos que se inscrevem para

escriturar sentidos oriundos das sensaccedilotildees num empirismo de pensar constante

cujos procedimentos implicam necessariamente o campo do vivido Pesquisamos

nesse processo variante o ambiente humano por entre dramas e comeacutedias do

vivido no campo educacional ou ainda uma dracomeacutedia humana repleta de

potenciais vicissitudes que servem como disparadores para uma invenccedilatildeo

produtora de escrita texto-manifesto exposto por via da linguagem e suas

convenccedilotildees

Meacutetodo

O meacutetodo utilizado na pesquisa eacute o do informe que desenvolve um tipo de

pesquisa que possibilita enfrentar a dificuldade de pensar o informe Meacutetodo este

que se interroga e que varia durante todo o processo de sua execuccedilatildeo natildeo

possuindo um regramento estanque ou dogmaacutetico o que baniria o prazer do

inusitado

Esse meacutetodo age atraveacutes de capturas das forccedilas dos textos das imagens

das musicalidades das vozes e dos conhecimentos isto eacute de tudo que deveacutem em

vida potente e que possa ser adequado agraves praacuteticas de ensino pois conforme Valeacutery

(1997 p 59) ldquoeacute o que contenho de desconhecido a mim mesmo que me faz ser eu

mesmordquo

Na praacutetica o que observamos eacute um desejo que ronda ldquocomo uma mina a ceacuteu

abertordquo (BARTHES 2013 p12) que propicia criar uma fantasia de exploraccedilatildeo e por

intermeacutedio dela construir um ritmo proacuteprio de accedilatildeo exploratoacuteria um como para viver

junto com vida e obra de determinado pensador saboreando cotidianamente

ldquobocados de saber = pesquisardquo Assim por entre bocados de pesquisa esse meacutetodo

produz ficccedilatildeo de modo que ldquoos pesquisadores capturam forccedilas imaginaacuterias

fantasiacutesticas e intelectuais que os conduzem ao trabalho criadorrdquo (CORAZZA 2012

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p19) levando o espiacuterito a experimentar um novo fazer ou seja uma pesquisa gaia

na educaccedilatildeo contemporacircnea

Por este vieacutes tal meacutetodo busca dar adeus agraves metanarrativas de ambiccedilatildeo

universal insistente nos entremeios do territoacuterio educacional Sua ambiccedilatildeo universal

eacute hermeacutetica e portanto falha pois impede uma discussatildeo que se quer aberta e natildeo

reprodutora de conhecimento Esta abertura pode trazer ao proacuteprio curriacuteculo e agrave

didaacutetica um entoar de novas vozes capazes de compor narrativas novas fazendo

na accedilatildeo de ensinar um espaccedilo criacutetico um lugar puacuteblico para discussotildees diversas

Ou seja capturar o que ateacute entatildeo foi excluiacutedo ou natildeo contemplado nas

metanarrativas em funccedilatildeo de sua supressatildeo por natildeo pertencerem aos dogmas

ditos universais Busca-se assim o vatildeo o desvio o detalhe tendo a linguagem

como movimento isto eacute em fluxo constante no movimento de criaccedilatildeo

Desse modo aquilo que sabemos que nos pertence natildeo conta pois

procuramos o que natildeo foi ainda construiacutedo o que resta para ser adquirido

transformado e que se anuncia nos entremeios dos textos Sendo assim a literatura

a filosofia e a educaccedilatildeo entrecruzam-se visto que seus conhecimentos e saberes

satildeo investigados por via das proacuteprias escrileituras que interrogam as tramas

compositivas do intelecto

Pode-se tambeacutem afirmar que o referido meacutetodo tem apreccedilo pelo espiacuterito

crianccedila ― que jamais deveria morrer em noacutes ― pois que ele traz em si a forccedila da

curiosidade da persistecircncia da descoberta haacute neste espiacuterito pagatildeo e poeta um

infinito de possibilidades Como elucida Eduardo Galeano em entrevista chamada eacute

Tempo de viver sem medo2 ldquoeacute preciso olhar o que natildeo se olha o que merece ser

olhado tanto o micro mundo e ao mesmo tempo sermos capazes de contemplar o

universordquo E para tanto eacute preciso se ter uma visatildeo microscoacutepica e outra telescoacutepica

para assim tentar desvendar o que haacute de misterioso na existecircncia

2 Entrevista de Eduardo Galeano disponiacutevel em canal moritz Ptnet acesso em 05 de julho de

2016

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As escrileituras produzidas em uma praacutexis do informe portanto satildeo criadas

em conjunto com os meandros labiriacutenticos e espirituais dos quais nos ocupamos

escolhidos pela apaixonada necessidade de escrever Natildeo se verifica uma doutrina

mas um meacutetodo para operaccedilotildees espirituais tracircnsitos pelos macros e micros

mundos ofertados pelo existir Os espiacuteritos operam em variaccedilatildeo e lanccedilam um novo

olhar para o que ainda natildeo foi visto ou seja o que ainda ignoramos e com estes

novos elementos do que se detecta surgem vatildeos e frestas que propiciam uma

composiccedilatildeo de escrita viva

Sendo assim o meacutetodo do informe nada mais eacute do que um fazer mutante

avesso ao sedentarismo intelectual um ato fiacutesico corporal posto em movimento

atraveacutes de estudos e pesquisas abrindo possibilidades para que o espiacuterito trabalhe

e medite sobre a produccedilatildeo de uma obra ― de um espiacuterito criador ― numa atitude

interrogativa transformada em problema que questiona pelo vieacutes de Valeacutery (2011 p

200) O que a obra produz em noacutes

Todo corpo posto em atividade eacute energia despendida e tambeacutem adquirida a

todo instante um organismo em constante mutaccedilatildeo Uma forma fluente ― referida

por Duns Scot como um onde ou (ubi) ― e capaz de uma determinaccedilatildeo qualitativa

anaacuteloga ao calor adquirido pelo corpo que se aquece atraveacutes do contato e do

contaacutegio com outros corpos que os circundam E nesta metamorfose contiacutenua e

energeacutetica o espiacuterito se propotildee a buscar maior lucidez para o intelecto e conhecer a

fundo a problemaacutetica a que se propotildee num exerciacutecio que se realiza atraveacutes de um

nomadismo de pensamento ativo sempre em deslocamento que busca o novo

De fato com o espiacuterito entendido desde a perspectiva valeacuteryana atraveacutes dos

movimentos de escrileituras da pesquisa com o artifiacutecio da literatura movimentamos

uma malha intelectiva que possibilita a construccedilatildeo de espiritografias Ou seja vamos

ao mundo de um espiacuterito e com ele escrevemos a partir de um estudo de vida e de

obra ou de uma Vidarbo Trata-se do interesse ldquopor Vida (Biografia) e por Obra

(Bibliografia) Soacute que em vez de Vida e Obra tomadas em separado ou uma

derivada e mesmo causa da outra trata de Vidarbordquo (CORAZZA 2010) tomada

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conjuntamente Essas operaccedilotildees das faculdades intelectivas repletas de afecccedilotildees

permitem e compotildeem o meacutetodo do informe como um mecanismo que exige um tipo

de construccedilatildeo no qual o inesperado eacute condiccedilatildeo processual

Projetos

Essas operaccedilotildees de meacutetodo do informe tiveram suas experimentaccedilotildees e

pesquisas empiacutericas cultivadas em trecircs projetos desenvolvidos pela pesquisadora e

professora doutora Sandra Mara Corazza e seus orientandos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica

mestrado e doutorado na Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferenccedila em

Educaccedilatildeo integrante do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo (PPGEdu) da

Faculdade de Educaccedilatildeo (FACED) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS) quais sejam Dramatizaccedilatildeo do infantil na comeacutedia intelectual do curriacuteculo

meacutetodo Valeacutery-Deleuze (2010) Escrileituras um modo de ler-escrever em meio agrave

vida e Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila

(2014 ndash 2019)

O projeto atual almeja complementar correlacionar e consolidar a formaccedilatildeo

de professores-pesquisadores atraveacutes da observaccedilatildeo e anaacutelise dos resultados e

impactos das produccedilotildees oriundas das trecircs pesquisas investigando um curriacuteculo e

uma didaacutetica da diferenccedila visando criar e fortalecer a ampliaccedilatildeo e a consolidaccedilatildeo

da qualidade de uma pesquisa-docecircncia

Desde o iniacutecio o meacutetodo do informe apontava para um tipo de pesquisa

construcionista enquanto um convite para estudos e praacuteticas de escrita as quais

atraveacutes das aventuras do intelecto facultam ao espiacuterito construir a sua proacutepria

realidade no campo ambiental da linguagem pensando o informe com Valeacutery e sua

Comeacutedia Intelectual e com Deleuze e o seu Meacutetodo de Dramatizaccedilatildeo aleacutem de

recorrer tambeacutem a Roland Barthes e ao seu conceito de Biografemaacutetica (CORAZZA

e OLIVEIRA 2015)

O Projeto Escrileituras (2011-2015) apoiado pelo Programa Observatoacuterio da

Educaccedilatildeo (CAPESINEP) teve como proposiccedilatildeo um fazer-educaccedilatildeo por meio de

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Oficinas abrindo assim possibilidades de criaccedilatildeo de escrileituras em educaccedilatildeo

Oficinas que tinham em sua percepccedilatildeo criaccedilatildeo e desenvolvimento dois meios

possiacuteveis para movimentos experimentais de escrita a formaccedilatildeo que acompanhava

os bolsistas e pesquisadores participantes e cursos e accedilotildees de extensatildeo oferecidos

a professores da Educaccedilatildeo Baacutesica

Totalizando um registro de 570 oficinas desenvolvidas pelo projeto foi

desenvolvida a Oficina espiritograacutefica de co-criaccedilatildeo dialoacutegica propondo aos

participantes um exerciacutecio de pensamento valeacuteryano que explorasse a forma de

escrita ldquodiaacutelogordquo atraveacutes de textos filosoacuteficos e literaacuterios que tratavam do tema

A oficina buscava pensar de forma luacutecida condiccedilotildees de criar personagens

que pensam o proacuteprio pensamento afirmando o espiacuterito que opera e escreve com

prazer ciente ldquoque cada um eacute a medida das coisasrdquo (VALEacuteRY 2011) E atraveacutes

desta empiria de escrita proposta na oficina proporcionou um aporte teoacuterico e

praacutetico para composiccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de mestrado Alfabeto espiritograacutefico

escrileituras em educaccedilatildeo (CAMPOS 2013)

Espiritografia

Dessa accedilatildeo empiacuterica a palavra espiritografia comeccedila a tomar forccedila nas

pesquisas possibilitando ao espiacuterito escrileitor investigar outros Espiacuteritos e suas

vidarbos e com eles passar a criar procedimentos capazes de promover uma

produccedilatildeo de escrita espiritograacutefica experimental que se ocupa de erracircncias acasos

e o inusitado e que se configura em uma tese intitulada A Educaccedilatildeo da Diferenccedila

com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico (CAMPOS 2015) com proposta jaacute

qualificada em 2015 e com defesa final prevista para 2017

Deste modo o espaccedilo curricular afirmava-se de maneira transversal com a

filosofia com as artes e com as ciecircncias tomando para si a tarefa de compor um

curriacuteculo como uma construccedilatildeo aberta fazendo dos conhecimentos que se colocam

em movimento um compoacutesito multidimensional de leitura e de escrita potenciais

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Assim o Projeto Escrileituras optou por afirmar um curriacuteculo mutante

provocando com isso que sua didaacutetica tambeacutem o fosse Ou seja didaacutetica e

curriacuteculo possibilitaram atraveacutes das Oficinas a ampliaccedilatildeo da visatildeo de mundo por

via do conhecimento que serve como um disparador para a edificaccedilatildeo de outros

mundos possiacuteveis isto eacute um modo de viver e de ldquomaquinar a educaccedilatildeo com prazer

aventureiro e espiacuterito aventurosordquo (CORAZZA 2014)

Abrindo dobras na pesquisa foi possiacutevel falar e escrever sobre Autor

Infacircncia Curriacuteculo e Educador ndash unidades analiacuteticas referidas como AICE e

integrantes de procedimentos didaacuteticos Jaacute o curriacuteculo foi composto pelas seguintes

unidades analiacuteticas Espaccedilos Imagens e Signos (EIS) os quais satildeo postos em

movimento por meio de um nomadismo intelectual experimentado no proacuteprio

territoacuterio da educaccedilatildeo valendo-se dos procedimentos muacuteltiplos de escrita de Valeacutery

para um fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo

Atraveacutes de um Meacutetodo do Informe utilizando o conhecimento como invenccedilatildeo

que por via de transbordamentos de pesquisa esses elementos possibilitaram criar

um novo meacutetodo chamado espiritograacutefico ndash defendido na tese A Educaccedilatildeo da

Diferenccedila com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico (CAMPOS 2015) ndash pelo qual foi

possiacutevel a criaccedilatildeo de alguns tipos de espiritografias tradutoacuterias como Plagiotroacutepica

Imageacutetica Mise en Scegravene Desviante Extra-Ordinaacuteria Jogada Aula-Empiacuterica

Poeacutetica

Escrever eacute traduzir conforme afirma Valeacutery na eacutepoca em que traduzia as

Bucoacutelicas de Virgiacutelio (1944) destacado no livro de Haroldo de Campos (2013)

Transcriaccedilatildeo

Escrever o que quer que seja desde o momento em que o ato de escrever exige reflexatildeo e natildeo eacute uma inscriccedilatildeo maquinal e sem detenccedilas de uma palavra interior toda espontacircnea eacute um trabalho de traduccedilatildeo exatamente comparaacutevel agravequele que opera a transmutaccedilatildeo de um texto de uma liacutengua em outra (VALEacuteRY apud CAMPOS 2013 paacuteg61-62)

Essas forccedilas operativas da escrita (e da leitura) servem como impulso para

uma trajetoacuteria autoconsciente do espiacuterito que se aventura entre rasuras em busca

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do novo Produzindo uma escrita tradutoacuteria aberta sujeita a interaccedilotildees e oscilaccedilotildees

oriundas daquele espiacuterito que age sobre o texto criamos uma didactique da

novidade da erracircncia de AICE que pode gerar intranquilidade pois caccedila em meios

muacuteltiplos de escrita ― rigorosa e complexa ― seus desdobramentos enigmaacuteticos

perseguindo a exatidatildeo dos sentidos por entre Espaccedilos Imagens e Signos (EIS) do

Curriacuteculo

Sendo assim AICE (Didaacutetica) e EIS (Curriacuteculo) tomam para si uma poeacutetica de

pesquisa que se quer empiacuterica num processo de releitura e de reescrita do viviacutevel

no campo educacional e que acabam produzindo um diferencial curricular e didaacutetico

da diferenccedila visto que criam novas epistemes possibilitando ldquopensar uma didaacutetica e

um curriacuteculo tradutoacuteriosrdquo (CORAZZA 2014 p5)

Em seu texto A Tentaccedilatildeo de (Satildeo) Flaubert Valeacutery (2011) escreve sobre a

diaboacutelica tentaccedilatildeo humana e poeacutetica de provocar uma escrita amebiana como meio

para um jogo escritural do viviacutevel pois viver eacute a todo instante sentir falta de alguma

coisa e modificar-se para atingi-la para desse modo tender a substituir-se no

estado de sentir falta de alguma coisa Trata-se de um movimento corpoacutereo como o

feito pela ameba ou seja de transubstanciaccedilatildeo com o objeto amado pois ldquovivemos

do instaacutevel pelo instaacutevel no instaacutevel essa eacute a funccedilatildeo completa da Sensibilidade

que eacute a mola diaboacutelica da vida dos seres organizadosrdquo (VALEacuteRY 2011 p 83)

Essas perspectivas poeacuteticas sobre escrita leitura curriacuteculo e didaacutetica

possibilitam no espaccedilo da aulaoficina a emergecircncia de procedimentos

interpretativos das mateacuterias curriculares que funcionam como meio de invenccedilatildeo

recriando assim culturas e discursos atraveacutes de exerciacutecios rigorosos cocircmicos e

dramaacuteticos do pensamento Nesse sentido como um espaccedilo de ficccedilatildeo a aula eacute

planejada para que de algum modo funcione como um laboratoacuterio coletivo em que

se examina e promove-se a educaccedilatildeo do espiacuterito

Assim satildeo promovidos encontros imanentes que fornecem coordenadas

para o pensamento criacutetico que eacute experimentado num empirismo transcendental no

qual ldquoa Ideia natildeo eacute o elemento do saber mas de um lsquoaprenderrsquo infinitordquo (DELEUZE

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2006 p310) Nesse tipo de empirismo o que vale eacute o valor agregado ao espiacuterito

das forccedilas que do pensamento se apossa e que satildeo capazes de produzir novas

imagens que enunciam e novamente atualizam o pensar Com textos literaacuterios os

espiacuteritos escrileitores em movimentos de self-variance passam a acompanhar

essas danccedilas dramaacuteticas em meio agrave vida in-formada

Trata-se de um pensar vivo capaz de escriturar novos sentidos e de inscrever

signos que satildeo vitalmente transcriados pois operam para ldquoatravessar a ortodoxia

dos textosrdquo (CORAZZA 2014) e com eles criar uma escrita indomesticada criacutetica e

vivificadora Damos assim vida a uma nova praacutexis de ensino capaz de construir

espiritografias na qual o espiacuterito age por si enquanto move-se entre leituras e

escritas Espiacuterito que se interroga observa o proacuteprio fazer da escrita literaacuteria que

tem como tarefa anotar borrar fazer muacuteltiplas reflexotildees combinaccedilotildees tentativas e

falhas

Notemos que o espiacuterito ocupa trecircs lugares funcionais em seu laboratoacuterio

proacuteprio quais sejam EEE ndash o de Estudante (espiacuterito em curso tradutoacuterio de escrita)

o de Escritor (espiacuterito autor tradutor e transcriador) e o de Educador (espiacuterito em

exerciacutecio de traduccedilatildeo no exerciacutecio do magisteacuterio) Eacute esse atravessamento entre

lugares que movimenta EIS (Curriacuteculo) e AICE (Didaacutetica) os quais pela via da

traduccedilatildeo satildeo reimaginados Vislumbramos de acordo com Corazza (2013 p 219)

um fazer tradutoacuterio ldquopara aleacutem do literalismo rudimentar e da banalidade explicativardquo

que daacute nova vida ao educador-artista e cujas traduccedilotildees ldquopoderatildeo por vezes tornar-

se mais importantes que os originaisrdquo pois se configuram como uma ldquoestrateacutegia de

renovaccedilatildeo dos sistemas educacionais e culturais contemporacircneosrdquo

Experimentaccedilotildees

A partir do desenvolvimento de algumas Oficinas de Transcriaccedilatildeo durante o

Projeto Escrileituras continuamos estudando e pesquisando o pensamento de

Valeacutery na direccedilatildeo de construir tipos de espiritografias como uma praacutetica que

promove novos movimentos que tomam as unidades analiacuteticas de EIS AICE na qual

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buscamos combinar e correlacionar EIS com AICE (Espaccedilos Imagens e Signos a

Autor Infantil Curriacuteculo Educador) e nesse processo combinatoacuterio e correlacional

operacionalizar escrileituras tradutoacuterias que se articulassem com a praacutexis do ensinar

escrever orientar pesquisar colocando esses verbos em foco por meio de um fazer

espiritograacutefico Tal procedimento exploratoacuterio-experimental de pesquisa tem como

intuito criar meios para a produccedilatildeo de accedilotildees de pensamento na pesquisa

Nessa direccedilatildeo detalharemos um dos tipos de espiritografia aludida no texto

a Espiritografia Plagiotroacutepica Lembrando o que salienta o proacuteprio Valeacutery (2011 p

110) ldquoeu sei apenas o que sei fazerrdquo expomos os movimentos empiacutericos de escrita

feitos para criar essa espiritografia atraveacutes de movimentos de EIS AICE

apresentados a seguir por meio de um resumo do seu Glossaacuterio

EIS AICE

Espaccedilos - que se habitam e produzem

condiccedilotildees para novamente serem

habitados ao esvaziar-se na

constituiccedilatildeo de novas margens que a

sua vez lhes doam novas instacircncias

habitaacuteveis

Imagens - ausentes que presentificam

presenccedilas e Imagens presentes que

presentificam ausecircncias

Signos - satildeo dotados das forccedilas dos

encontros que podem exercer uma

violecircncia sobre o pensamento

violecircncia que implica na criaccedilatildeo do

pensar no proacuteprio pensamento

Autor-Tradutor - escreve lecirc interpreta aprende

compotildee apenas para desencadear devires

Infantil - como forccedila ativa e vontade de potecircncia

afirmativa

Curriacuteculo - cria a alegria afirmativa de educar

Educador - exercita se interrogar se tudo o que disse

ateacute entatildeo eacute tudo o que pode dizer se tudo o que viu

ateacute agora eacute de fato tudo o que pode ver se tudo o

que pensa eacute tudo o que pode pensar se tudo o que

sente eacute tudo o que pode sentir se tudo o que traduziu

eacute tudo que pode traduzir

O texto inspirador para a produccedilatildeo dessa espiritografia eacute o livro de Gonccedilalo

Tavares (2011) intitulado O senhor Valeacutery e a loacutegica tomado como um disparador

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como um meio potente para a produccedilatildeo de escrita Esse meio textual produz um

outro para falar e escrever sobre a Vidarbo (vida-obra) de Paul Valeacutery criando-se

assim um personagem O Monsieur Valeacutery

Esse texto eacute produzido por intermeacutedio de escrileituras que contemplam o

ainda natildeo visto ou ainda natildeo atribuiacutedo de valor para a criaccedilatildeo do personagem na

medida em que pesquisamos sobre a vida e a obra de Valeacutery de modo a escrever

sobre este personagem peculiarmente

Por via de um olhar outro que natildeo o de Tavares mas do olhar do espiacuterito

escrileitor que pesquisa vida e obra de outro espiacuterito no caso Valeacutery almejamos

compor uma espiritografia com e sobre este personagem do pensamento o que

pressupotildee ir ao mundo deste espiacuterito do qual se escreve observando como se daacute o

seu pensar Desta maneira foram produzidos quatro minicontos O Atum O

Ostinato O Sonho e Sem Destino (CAMPOS 2015) Abaixo seguem os dois

primeiros dessa seacuterie

O Atum

MONSIEUR VALEacuteRY era pequenino mas adorava nadar

Ele explicava

Sou igual a um atum soacute que em tamanho menor

Mas isto constitui para ele um problema

Mais tarde o monsieur Valeacutery pocircs-se a pensar que os pescadores podiam

confundi-lo com um atum e pescaacute-lo Sabia por suas leituras ser o Atum o mais

antigo deus criador do mundo Mediterracircneo e observou em seu livro a grande

Serpente Atum pai de Eneacuteade e Helioacutepolis E tal pensamento o animou um pouco

Dias depois saiu para passear agrave beira-mar e desenhou serpentes na areia E

pensava sobre a evoluccedilatildeo das espeacutecies e murmurava ldquose o homem estaacute situado ao

final de um longo esforccedilo geneacutetico tambeacutem seraacute preciso situar esta criatura fria sem

pata sem pelos sem plumas no iniacutecio deste mesmo esforccedilordquo E concluiu Haacute algo

de serpente no homem assim deve tambeacutem haver em mim

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Monsieur Valeacutery costumava fazer caacutelculos enquanto caminhava e riscava

atraacutes de si com uma varinha uma linha e ia medindo Caminhou caminhou de

suacutebito olhou para traacutes e viu a linha e pocircs-se a imaginar a Serpente como uma linha

viva E pensava que a linha eacute uma abstraccedilatildeo encarnada soacute enxergamos a sua parte

proacutexima manifesta Mas ele sabia que a linha seguia pelo invisiacutevel infinito de um

lado e de outro

O Ostinato

MONSIEUR VALEacuteRY cresceu assim como tambeacutem cresceu sua curiosidade

sobre as serpentes que seguia a rabiscar

Monsieur Valeacutery ainda costumava nadar poreacutem agora com maior

desenvoltura

Jogava-se ao mar e nadava de costas cachorrinho borboleta

Enquanto dava suas braccediladas e mergulhos no mar sem fim sentia-se

acompanhado

Entatildeo o monsieur Valeacutery pensava

― Seraacute Afrodite Ou seraacute Netuno

E enquanto caminhava para casa apoacutes seus nados volta e meia olhava para

traacutes observando a linha pintalgada pelos pingos que escorriam de seu corpo

Entatildeo Monsieur Valeacutery exclamava

― Que bela geometria

E logo se aborrecia

Monsieur Valeacutery era um perfeccionista e para se distrair durante o percurso

de volta para casa ia compondo versos Ostinatos que o enterneciam e lhe traziam

aromas de um pensamento Ele costumava declamaacute-los assim

Fonte minha fonte aacutegua friamente presente

Suave com os animais com os humanos clemente

Que tentados por si seguem ao fundo a morte

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Tudo te eacute sonho Irmatilde impaacutevida da Sorte3

Importa salientar que natildeo haacute um plaacutegio porque natildeo eacute coacutepia ou mera

reproduccedilatildeo textual mas de uma plagiotropia no sentido de Haroldo de Campos

(1997 p249) qual seja uma ldquoapropriaccedilatildeo seletiva natildeo histoacuterica para utilidade

imediata de um fazer poeacutetico situado na lsquoagoridadersquo o momento de ruptura em que

determinado presente (o nosso) se reinventa ao se reconhecer na eleiccedilatildeo de um

determinado passadordquo

Em outras palavras estabelecemos um diaacutelogo entre os espiacuteritos de Valeacutery

de Tavares e de um escrileitor que quer compor uma espiritografia O espiacuterito que

escreve lecirc repensa e mastiga o que chega dos textos de Tavares e de Valeacutery Essa

relaccedilatildeo estabelecida entre os espiacuteritos que leem e escrevem adquire potecircncia pelas

afecccedilotildees de forccedilas oriundas da accedilatildeo de leitura-escrita e gera novas relaccedilotildees com

os textos que satildeo entatildeo renovados e reinventados pelo meacutetodo espiritograacutefico

O EIS AICE do Curriacuteculo e da Didaacutetica com suas unidades analiacuteticas eacute posto

como bloco em movimento atraveacutes de um nomadismo intelectual que opera como

conhecimento e como invenccedilatildeo no territoacuterio da educaccedilatildeo de uma maneira

espiritograacutefica valeacuteryana Podemos descrever da seguinte maneira os movimentos

tradutoacuterios que ocorrem nessas unidades analiacuteticas de EIS AICE

EIS

Espaccedilos - satildeo criados entre e com Tavares e Valeacutery espaccedilos de escrita

novas margens que o espiacuterito escrileitor passa a habitar

Imagem - ausentes de Tavares e Valeacutery que se presentificam na agoridade

com novas imagens de pensamentos criadas que se ldquoreinventa ao se reconhecer na

eleiccedilatildeo de um determinado passadordquo (Campos 1997 p249) e que lhe serviu de

disparador como um rastro de escrita

3 Do poema Fragmentos de Narciso e outros poemas (VALEacuteRY 2013 p 61)

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Signos ndash encontro de forccedilas de um espiacuterito que escreve em Self-variance

com Valeacutery e com Tavares E desta violecircncia levantam-se problemas e com eles se

cria pois criaccedilatildeo pressupotildee pensar no proacuteprio pensamento e como eles se datildeo

entre leitura e escrita

AICE

Autor-tradutor ndash ler e escrever na educaccedilatildeo como operaccedilatildeo literaacuteria valer-se

da literatura que desencadeia movimentos de pensar interpretar aprender

compor devires tradutoacuterio

Infantil ndash do infante da crianccedila que descobre pois tem a forccedila ativa ativada

por uma vontade de potecircncia que quer afirmar-se com alegria

Curriacuteculo ndash Alegria que transborda pois se afirmam novos meios de educar

que natildeo o ldquoeu professotu escutasrdquo pois na teimosia que nos impele a educar eacute

necessaacuterio ir aleacutem da mera reproduccedilatildeo de textos

Educador ndash EEE (estudante escritor educador) trecircs papeacuteis intercambiaacuteveis

propiacutecios a interrogar-se levantar questotildees na busca de novos olhares ldquovatildeosrdquo

sobre o ainda natildeo visto que possibilita novas composiccedilotildees de escrita

Consideraccedilotildees Finais

Ao pensar sobre o processo de pesquisa exposto no presente artigo

sinalizamos a relevacircncia do pensamento de Paul Valeacutery e de sua apropriaccedilatildeo efetiva

no campo da educaccedilatildeo por considerar que os seus procedimentos de escrita

concedem ao espiacuterito que busca se educar agir com maior lucidez de pensamento

ou seja cultivar o Eu-empiacuterico que lecirc e escreve importando-se mais com o meio de

ocorrecircncia textual do que com um fim ou com uma meta

Tratamos em siacutentese de um fazer conjunto com Paul Valeacutery atraveacutes dos

seguintes aportes a) o Meacutetodo do Informe utilizado como processo experimental

para falar ler e escrever sobre a educaccedilatildeo com Valeacutery b) atraveacutes de uma Self-

variance do espiacuterito colocar-se em movimento funcional construcionista onde

autoeduca-se no entre-lugar variante de EEE c) a escrileitura conceitualizada como

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um campo aberto agrave formaccedilatildeo e ao fazer docente que mescla linguagem e

conhecimento

A vidarbo de Valeacutery engendra na didaacutetica e no curriacuteculo uma vontade de

expressatildeo unida agraves sensaccedilotildees experimentadas no viviacutevel em novos traccedilados

compositivos de escrita Para pensar e operar uma didaacutetica (AICE) e um curriacuteculo

(EIS) tradutoacuterios o estudo tambeacutem aponta que a pesquisa eacute mutante e aberta a

novas interferecircncias visto que o Meacutetodo do Informe transmuta-se no proacuteprio

percurso investigativo em um Meacutetodo Espiritograacutefico

Pelo que podemos observar acerca dos resultados e impactos das produccedilotildees

oriundas das trecircs pesquisas anteriormente citadas que pesquisam e produzem um

curriacuteculo e uma didaacutetica da diferenccedila eles vecircm proporcionando encontros

produtivos que ampliam e qualificam as pesquisas educacionais

Cabe enfatizar que no cotidiano educacional o que se traduz aleacutem de textos

eacute a proacutepria vida como potecircncia ou movimento de criaccedilatildeo almejando que a

existecircncia possa ser concebida como arte pois de acordo com Valeacutery (1977

p217) ldquoa arte natildeo eacute nada mais do que um pedagogo poreacutem mais importante ―

pois ela pode me ensinar a dispor do meu espiacuterito para aleacutem de suas aplicaccedilotildees

praacuteticasrdquo Trata-se entatildeo de um escrever vivendo espreitar a realidade e sobre ela

levantar novos problemas que promovem no espiacuterito dobras sobre si mesmo num

fazer poeacutetico-criador em elaboraccedilatildeo constante um modo de existir intensivo de arte-

vida que toma o viviacutevel como mateacuteria para assim transmutaacute-la no campo da

educaccedilatildeo contemporacircnea

Referecircncias CAMPOS Haroldo de Transcriaccedilatildeo Satildeo Paulo perspectiva 2013

_______ Haroldo de O Arco-Iacuteris Branco Rios de Janeiro Imago 1997 CAMPOS Maria Idalina Krause de Alfabeto Espiritograacutefico Escrileituras em Educaccedilatildeo Porto Alegre 2013 Projeto de dissertaccedilatildeo (Dissertaccedilatildeo em Educaccedilatildeo)

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Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2013 Disponiacutevel em lthttphdlhandlenet1018370246gt _______ Maria Idalina Krause de A Educaccedilatildeo da Diferenccedila com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico Porto Alegre 2014-2017 Projeto de tese (Tese qualificada em Educaccedilatildeo) Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2014 CORAZZA Sandra Mara OLIVEIRA Marcos da Rocha ADOacute Maacuteximo Daniel Lamela (Orgs) Biografemaacutetica na educaccedilatildeo Vidarbos (Caderno de Notas 7) Porto Alegre UFRGS Doisa 2015 _______ Sandra Mara Ensaio sobre EIS AICE proposiccedilatildeo e estrateacutegia para pesquisar em educaccedilatildeo Porto Alegre Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo CNPq 2014 30 p (No prelo) _______ Sandra Mara O que se transcria em educaccedilatildeo Porto Alegre ndash RS UFRGS Doisa 2013 _______ Sandra Mara Introduccedilatildeo ao meacutetodo biografemaacutetico In COSTA Luciano Bedin da FONSECA Tania Mara Galli (Org) Vidas do Fora habitantes do silecircncio Porto Alegre Editora da UFRGS 2010 _______ Sandra Mara Dramatizaccedilatildeo do infantil na comeacutedia intelectual do curriacuteculo meacutetodo Valeacutery-Deleuze Projeto de Pesquisa ndash Bolsa de produtividade CNPq 2010 _______ Sandra Mara Meacutetodo Valeacutery-Deleuze um drama na comeacutedia intelectual da educaccedilatildeo Educaccedilatildeo amp Realidade Porto Alegre v 37 n 3 Dec 2012 Disponiacutevel em lthttpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S2175-62362012000300016amplng=enampnrm=isogt Acessado em 13 de Julho de 2016 _______ Sandra Mara Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila (2014-2019) Projeto de Pesquisa de Produtividade (CNPq) _______ Gilles Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 2006 _______ Gilles A ilha deserta e outros textos Textos e entrevistas (1953-1974) Satildeo Paulo Iluminuras 2006 (Org Luiz B L Orlandi) DELEUZE Sobre o teatro Um manifesto de menos O esgotado Rio de Janeiro Editora Zahar 2010

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TAVARES Gonccedilalo M O senhor Valeacutery e a Loacutegica 1 ed Rio de Janeiro Casa da Palavra 2011 VALEacuteRY Paul Variedades Trad Maiza Martins de Siqueira Satildeo Paulo Iluminuras 2011 _______ Paul Fragmentos de Narciso e outros poemas Trad Juacutelio Castantildeon Guimaratildees Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 2013 _______ Cahiers Paris Gallimard 1977

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contemporacircnea Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 36-51 juldez 2016 Disponiacutevel em

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Gravura procedimentos alternativos em litografia contemporacircnea

Ana Paula Schoninger van Grol1 Universidade Feevale

Lurdi Blauth2

Universidade Feevale

Resumo O estudo aborda a inter-relaccedilatildeo da arte com distintos meios de produccedilatildeo de imagens mediando procedimentos tradicionais com processos de tecnologias digitais As experiecircncias satildeo realizadas no campo da gravura contemporacircnea com o intuito de propor outras possibilidades de criaccedilatildeo de matrizes pela utilizaccedilatildeo e o aproveitamento de materiais alternativos e o uso de produtos menos toacutexicos Consideramos que eacute importante estimular o uso destes outros meios principalmente em ateliecircs de gravura xilogravura gravura em metal litografia e serigrafia Neste momento apresentamos alguns resultados parciais no acircmbito da litografia cujas pesquisas foram desenvolvidas no ateliecirc de gravura da Universidade Feevale Palavras-chave Arte tecnologia gravura litografia Abstract The research takes into consideration the relation among the different ways of producing images associating traditional methods with digital technology processes The experiences are taken in the field of contemporary printing intenting propouse other possibilities in creating printing matrices from use and exploitation of alternative material and non-toxic products It is considered that it is important to stimulate the use of alternative means particularly in art labs such as xylography metal engraving lithography and silkscreen To the present moment will be presented some partial results related to lithograph all researches were accomplished at the art laboratory in Universidade Feevale Keywords Art technology printing lithography

Introduccedilatildeo

Os movimentos artiacutesticos no iniacutecio de seacuteculo XX transgridem as formas

tradicionais da arte como podemos observar no surrealismo futurismo e dadaiacutesmo e

nas publicaccedilotildees em manifestos que confrontam questotildees sociais e culturais A

invenccedilatildeo da fotografia intensifica a aproximaccedilatildeo entre a arte e a tecnologia liberando

os artistas da questatildeo da representaccedilatildeo tradicional de espaccedilo para realizarem novas

1 Graduada em Artes Visuais trabalha como professora de liacutengua inglesa Eacute diretora do grupo de teatro de rua DRIME e tambeacutem atua como artista plaacutestica 2 Doutora em Artes Visuais pela UFRGS (2005) e Doctorat sandwich en Art Plastique - Universiteacute Paris 1 (Pantheacuteon-Sorbonne) (2003) Artista visual pesquisadora e professora nos cursos de Artes Visuais Design Graacutefico e no PPG em Processos e Manifestaccedilotildees Culturais Universidade Feevale

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experiecircncias Em 1910 quando Pablo Picasso e Georges Braque inserem em suas

pinturas outros materiais como fragmentos de jornais elementos da tipografia entre

outros impressos fazem uma alusatildeo direta ao cotidiano e ao progresso dos novos

meios tecnoloacutegicos da eacutepoca Tais fragmentos colados sobre a superfiacutecie da tela aleacutem

de redimensionarem a relaccedilatildeo da representaccedilatildeo do espaccedilo ilusionista da perspectiva

introduzem uma nova forma de tempo e espaccedilo Os limites tradicionais e a

representaccedilatildeo objetiva da arte comeccedilam a ser questionados sobretudo com a

utilizaccedilatildeo e a experimentaccedilatildeo de novos materiais bem como tambeacutem a expressatildeo

pessoal do artista

No acircmbito do desenvolvimento da gravura percebemos a coexistecircncia com

inovaccedilotildees teacutecnicas as quais satildeo constantemente renovadas e incorporadas aos

procedimentos tradicionais de criaccedilatildeo de imagens sobre distintas matrizes e processos

de reproduccedilatildeo sobre diferentes suportes Atualmente o conceito inicial da gravura se

transforma junto com a evoluccedilatildeo da cultura e dos novos meios tecnoloacutegicos Ela natildeo

envolve necessariamente gravaccedilatildeo isto eacute subtraircortar mateacuteria de uma superfiacutecie

como eacute feito nos meios mais tradicionais como a xilogravura e a calcografia Utiliza-se a

adiccedilatildeo de pigmentos os quais modificam a superfiacutecie de uma matriz atraveacutes de

processos quiacutemicos confronta-se tambeacutem com a gravaccedilatildeo fotograacutefica a eletrografia e

a computaccedilatildeo graacutefica buscando assim a inter-relaccedilatildeo com outras linguagens

Tais desdobramentos tencionam as suas especificidades teacutecnicas propondo

uma maior flexibilidade e autonomia em relaccedilatildeo aos seus meios convencionais de

gravaccedilatildeo e impressatildeo Contudo as linguagens tradicionais natildeo satildeo descartadas uma

vez que eacute fundamental termos conhecimento das caracteriacutesticas dos seus

procedimentos originais que continuam sendo desenvolvidos por inuacutemeros artistas Ou

seja satildeo produzidas gravuras com meios teacutecnicos da xilogravura calcografia serigrafia

e litografia e de acordo com as singularidades criativas de cada artista satildeo

incorporados desenhos pinturas colagens transferecircncia de fotografias digitais coacutepia

uacutenica em contraponto com a reproduccedilatildeo de imagens

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Neste estudo investigamos a criaccedilatildeo de imagens por meio de experimentaccedilotildees

praacuteticas com procedimentos analoacutegicos (gravura) incluindo a utilizaccedilatildeo de recursos

provenientes de tecnologias digitais (fotografia) e a transferecircncia de imagens sobre

matrizes alternativas

O enfoque das nossas experimentaccedilotildees eacute buscar materiais que possam suprir

os procedimentos tradicionais da litografia devido a dois fatores primeiro satildeo poucos

ateliecircs que possuem as pedras litograacuteficas o que impede o seu faacutecil acesso segundo

aliada aos constantes desdobramentos e potencialidades da linguagem graacutefica eacute

fundamental a experimentaccedilatildeo de outros materiais mais acessiacuteveis e menos toacutexicos

Cabe mencionar que tais experimentaccedilotildees partem de informaccedilotildees obtidas por

pesquisas apresentadas em sites da internet artigos e estudos oriundos de testagens

realizadas em outros paiacuteses No entanto percebemos que os procedimentos natildeo

resultam em apenas transcrever teacutecnicas implicam em tentar adotar materiais similares

em nosso contexto aleacutem de indicarem outras possibilidades de criaccedilatildeo artiacutestica

Os experimentos e pesquisas relatados aqui satildeo vinculados ao projeto de

pesquisa Arte e Tecnologia Interfaces Hiacutebridas da Imagem entre Mediaccedilotildees e

Remediaccedilotildees que acontece sob orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Lurdi Blauth nos ateliecircs de arte

da Universidade Feevale O objeto de estudo investiga possibilidades hiacutebridas que

inter-relacionam meios analoacutegicos e digitais de diferentes linguagens esteacuteticas como a

gravura fotografia videoarte e tecnologias digitais

Litografia princiacutepios baacutesicos

A litografia descoberta por Alois Senefelder em 1796 comeccedilou a ser utilizada

de forma utilitaacuteria para impressatildeo de documentos roacutetulos cartazes mapas jornais

aleacutem de apresentar uma nova possibilidade expressiva para os artistas A teacutecnica da

litografia tem como princiacutepio baacutesico o fenocircmeno quiacutemico de repulsatildeo entre gordura e

aacutegua tornando-se um meio de reproduccedilatildeo de imagens Antes da invenccedilatildeo da litografia

toda a gravura pressupunha gravaccedilatildeo isto eacute a incisatildeo sobre uma superfiacutecie resultando

numa imagem que podia ser transferida pelo seu relevo Isto quer dizer que a gravura

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estava associada agrave incisatildeo agrave subtraccedilatildeo o oposto de adiccedilatildeo De acordo com George

Kornis3 (2015)

O advento da litografia no seacuteculo XIX ndash um processo fundado apenas em uma accedilatildeo quiacutemica sobre uma matriz em pedra ndash possibilitou um grau de liberdade diante da incisatildeo e ampliou a escala de reprodutibilidade da imagem graacutefica Na litografia a linguagem graacutefica aproxima-se ainda mais do desenho Essa nova teacutecnica prescinde da incisatildeo o que amplia o acesso a novos artistas que optam por incorporar tambeacutem a expressatildeo graacutefica ao seu trabalho

Importantes artistas comeccedilam a utilizar a teacutecnica como meio de expressatildeo

Goya como podemos observar na obra Touradas de 1825 (fig 1) Gustave Doreacute

Renoir Ceacutezanne Toulouse-Lautrec Bonnard entre outros realizam novas

experimentaccedilotildees introduzindo inclusive a cor nos meios litograacuteficos

Figura 1 Francisco Joseacute de Goya Touradas 1825 Fonte Disponiacutevel em httpwwwpatrimoniodehuescaesmuseo-de-huesca-francisco-de-goya-y-

lucientes-grabados-de-tauromaquia-y-lienzo-del-sr-de-veian-s-xviii

A linguagem graacutefica aliada agraves transformaccedilotildees do seacuteculo XXI continua a sua

constante atualizaccedilatildeo teacutecnica pela convergecircncia de meios digitais e de teacutecnicas

seculares da gravura configurando-se pela exploraccedilatildeo de uma diversidade de novas

proposiccedilotildees esteacuteticas Nesse aspecto igualmente eacute colocado em discussatildeo o seu

caraacuteter original relacionado com a produccedilatildeo de uma matriz uacutenica e a reproduccedilatildeo de

3 KORNIS George Gravura passado presente e futuro Publicado em 13 de maio de 2015 Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=mCmY_Oj3x64gt Acesso em 29 de julho de 2016

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estampas idecircnticas Para Nicole Malenfant (2012 p73) ldquoeacute na abertura para praacuteticas de

natureza interdisciplinar que a gravura transgrediu ainda mais o quadro de sua

especificidade para integrar a abordagem de criaccedilatildeo agrave perspectiva de uma

lsquopermeabilidade de fronteirasrsquo Em outras palavras estas novas abordagens inter-

relacionam procedimentos materialidades e conceitos ampliando inclusive o caraacuteter

mais intimista da gravura bem como as estruturas de suas praacuteticas teacutecnicas

convencionais que se desdobram no contato com as tecnologias digitais

Atualmente falamos em gravuras digitais que se distinguem das praacuteticas

tradicionais da gravura que ldquoeacute feita com base na construccedilatildeo pictoacuterica e utiliza

ferramentas proacuteprias aos softwares da imagem para elaborar uma proposta visual que

pode incluir elementos fotograacuteficos que se relacionem com outros elementos do todo da

imagemrdquo (MALENFANT 2012 p72) Embora as especificidades de cada procedimento

empregado estejam em sintonia eacute preciso levar em conta as peculiaridades e

denominaccedilotildees dos meios de reproduccedilatildeo e impressatildeo e suas diferentes granulaccedilotildees na

imagem A incorporaccedilatildeo da imagem fotograacutefica por meio de transferecircncia para outros

suportes e matrizes que permitem a sua reproduccedilatildeo se distingue da materialidade das

impressotildees manuais

Ainda de acordo com Malenfant

As pesquisas para transferir imagens fotograacuteficas ou digitais para matrizes que permitem se servir da impressatildeo artesanal tambeacutem enriqueceram essas imagens com uma materialidade diferente advindas da siacutentese de suas disciplinas implicadas Esses novos avanccedilos no plano teacutecnico permitem associar as ferramentas digitais ao processo de criaccedilatildeo da imagem e ampliam o campo da exploraccedilatildeo esteacuteticardquo (2012 p73)

Nessa perspectiva haacute uma liberdade muito maior em elaborar proposiccedilotildees

esteacuteticas que dialogam com uma diversidade de materiais e materialidades e de certa

maneira transgridem as delimitaccedilotildees para integrar novas formas de criaccedilatildeo no campo

ampliado da arte

Desse modo as investigaccedilotildees praacuteticas desta pesquisa se desdobram com a

exploraccedilatildeo de procedimentos alternativos para a gravura litograacutefica A partir do

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conhecimento de alguns princiacutepios baacutesicos da litografia procuramos trabalhar com

alguns meacutetodos que natildeo necessitam da utilizaccedilatildeo da pedra calcaacuteria cujo material eacute

escasso e limitado a poucos ateliecircs no Rio Grande do Sul

Contexto inicial

Para o desenvolvimento dos meios tradicionais da litografia eacute necessaacuterio uma

seacuterie de procedimentos que implicam no uso de diversos materiais como pedra

litograacutefica (calcaacuteria) materiais para desenho (Tousche laacutepis crayon) solvente

(removedor aacutegua-raz ou varsol) goma araacutebica breu aacutecido aceacutetico aacutecido niacutetrico entre

outros O processo eacute relativamente complexo pois depende da repulsatildeo entre gordura

e aacutegua A imagem eacute produzida sobre a superfiacutecie da pedra calcaacuteria com materiais

oleosos e depois de concluiacuteda satildeo aplicados diferentes componentes quiacutemicos que

iratildeo fixaacute-la Ou seja eacute necessaacuterio que todas as etapas sejam consideradas em sua

sequecircncia e geralmente requer o auxiacutelio de profissionais capacitados para a impressatildeo

aleacutem de outros cuidados teacutecnicos para que haja um bom resultado na obra final

Visando atender aos objetivos da pesquisa buscamos desenvolver a teacutecnica

com meacutetodos diversos realizando experimentaccedilotildees com diferentes suportes para a

produccedilatildeo de matrizes que se aproximem aos meios litograacuteficos Aleacutem disso buscamos

relacionar a pesquisa agraves tecnologias digitais seja no processo de criaccedilatildeo eou na

elaboraccedilatildeo das imagens graacuteficas

Experimentaccedilotildees praacuteticas

Inicialmente foram testados vaacuterios procedimentos e materiais tendo como

proposiccedilatildeo na medida do possiacutevel utilizar materiais menos nocivos ao ambiente

Nessas experimentaccedilotildees vaacuterios testes natildeo apresentaram os resultados esperados ou

adequados agrave proposta da investigaccedilatildeo contudo possibilitaram outras descobertas

Os estudos em ateliecirc tecircm como referecircncia o artigo ldquoLa siligrafiacutea Un proceso

alternativo en la graacutefica muacuteltiple contemporaacuteneardquo de Hortensia Miacutenguez Garciacutea e

Carles Meacutendez Llopis (2014) que sugere o uso de silicone e solvente sobre chapa

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offset Apoacutes algumas tentativas foi possiacutevel reproduzir a imagem contudo os

resultados deste experimento natildeo foram totalmente satisfatoacuterios em qualidade de

impressatildeo aleacutem do mais natildeo se enquadravam com os objetivos da pesquisa na

aplicaccedilatildeo dos materiais ndash que ainda apresentavam certa toxicidade (figura 2)

Figura 2 Ana van Grol - Detalhes do processo com litografia alternativa Fonte Arquivo pessoal

A partir destas experiecircncias realizadas em ateliecirc concluiacutemos que seratildeo

necessaacuterios mais estudos e praacuteticas para se obter melhores resultados para a

reproduccedilatildeo das imagens

Litografia natildeo toacutexica com refrigerante de cola e produtos caseiros

Nesta segunda etapa novos estudos bibliograacuteficos propiciaram outras testagens

com materiais e processos de litografia alternativa Percebemos que em muitos paiacuteses

jaacute estatildeo sendo pesquisados outros meacutetodos mais acessiacuteveis e de faacutecil manuseio

Nesse aspecto eacute interessante observar que encontramos pouco material em portuguecircs

inclusive os materiais sugeridos satildeo similares aos produzidos aqui no Brasil poreacutem

existe uma diferenccedila na qualidade dos mesmos

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Foram pesquisados em diversos viacutedeos disponiacuteveis na internet que tratam de

processos semelhantes ao de litografia alternativa Mencionamos alguns exemplos

como o ateliecirc francecircs Art Emilion4 (o qual tambeacutem produziu um manual para execuccedilatildeo

do processo) e o viacutedeo Kitchen Lithography Demo por Felicia Digiovanni5 ambos

demonstrando a teacutecnica com refrigerante de cola O processo utilizando somente

vinagre para substituir o refrigerante apresentado por ldquojjewelartrdquo tambeacutem fez parte do

experimento poreacutem natildeo apresentou os resultados esperados

De acordo com as demonstraccedilotildees do ateliecirc de arte Art Eacutemilion o procedimento

faz uso dos seguintes materiais oacuteleo de cozinha vinagre branco refrigerante de cola

papel alumiacutenio esponja litograacutefica tinta para talho doce rolo para entintagem laacutepis

para desenho litograacutefico (e outros materiais gordurosos para o mesmo fim como sabatildeo

de glicerina) papel para impressatildeo e aacutegua

O desenvolvimento da teacutecnica envolve as seguintes etapas

1 O papel alumiacutenio deve ser posto sobre uma chapa acriacutelica ou algo semelhante

para facilitar o trabalho o lado a ser usado eacute o fosco

2 Apoacutes limpar o papel alumiacutenio com aacutelcool pode-se fazer o desenho com giz

gorduroso ou sabatildeo de glicerina

3 O banho de refrigerante de cola eacute o passo seguinte mas deve-se ter a certeza

de que o desenho estaacute totalmente seco para isso Este processo toma alguns

segundos e eacute necessaacuterio assegurar-se de passar por toda a superfiacutecie

4 Depois disso deve-se lavar com aacutegua e secar levemente com papel toalha

5 O oacuteleo de canola deve ser espalhado por toda a superfiacutecie com uma gaze para

retirar o desenho do alumiacutenio

6 Eacute necessaacuterio passar a esponja de litografia sobre o desenho devendo estar

umedecida com aacutegua e ser aplicada entre as etapas de entintagem com tinta

4 EMILLION Aizier Lithography Maison ndash Kitchen lithography Disponiacutevel em lt httpwwwatelier-kitchen-printorgproducts-pagemanuelsproduitshandbook-of-kitchen-lithogt Acesso em 09 de junho de 2016 5DIGIOVANI Felicia Kitchen Lithography Demo Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=UuBUlEt6vWwgt Acesso em 09 de junho de 2016

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para talho doce ou tipograacutefica com um rolo de borracha Na primeira passada eacute

possiacutevel que a tinta se fixe a todas as partes poreacutem a esponja molhada deve

ser aplicada vaacuterias vezes assim como a tinta ateacute que ao final a tinta aderiraacute

somente na imagem (figura 3)

Figura 3 Ana van Grol - testes de litografia alternativa com coca cola do atelier Art Eacutemilion Fonte Arquivo pessoal

Nos primeiros resultados apenas era possiacutevel reconhecer vestiacutegios das

imagens e teacutecnica entretanto ao repetir o processo algumas vezes e analisar os

procedimentos realizados era notaacutevel a melhora das impressotildees (figura 4)

Figura 4 Ana van Grol ndash detalhe da impressatildeo com maior fidelidade entre o desenho inicial e sua impressatildeo final

Fonte Arquivo pessoal

Eacute curioso salientar um aspecto em que diferem nossos estudos dos

experimentos realizados nos viacutedeos observados enquanto que em nossas praacuteticas a

tinta eacute fixada no plano de fundo da imagem nos viacutedeos ela adere nos desenhos sendo

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assim o sistema que repele a tinta acontece invertido e por esse motivo continuamos

as testagens para obter resultados mais proacuteximos aos dos viacutedeos

Nestas experimentaccedilotildees os resultados foram satisfatoacuterios tecnicamente poreacutem

ainda natildeo foram consideradas questotildees esteacuteticas e conceituais enquanto linguagem

artiacutestica Na etapa seguinte buscamos aliar a transferecircncia de imagens para a criaccedilatildeo

de matrizes com papel alumiacutenio utilizando outros procedimentos e materiais

A transferecircncia de imagem sobre matriz de alumiacutenio

A articulaccedilatildeo da gravura tem seus antecedentes histoacutericos que remetem aos

primoacuterdios da fotografia relacionados agrave gravaccedilatildeo de sombra luz e impressatildeo O uso de

recursos tecnoloacutegicos pela facilidade de acesso propicia a ampla reproduccedilatildeo de

imagens assim como a fotografia digital contribui para a renovaccedilatildeo e a interaccedilatildeo com

outras linguagens artiacutesticas No entanto diante das inuacutemeras possibilidades de

reproduzir coacutepias por tecnologias digitais a questatildeo da reproduccedilatildeo atraveacutes da gravura

jaacute natildeo eacute tatildeo relevante Com o avanccedilo dessas tecnologias digitais abrem-se novos

caminhos para a gravura Maria do Carmo Veneroso6 coloca que

Eacute pois a qualidade graacutefica e a possibilidade do uso da imagem fotograacutefica entre outras coisas que vai caracterizar a praacutetica dos gravadores atualmente A reprodutibilidade deixa portanto de ser um valor em si jaacute que com o desenvolvimento da induacutestria graacutefica muitas outras formas de impressatildeo mais raacutepidas e mais eficientes se impotildeem deixando que a gravura se realize plenamente em meio e tangenciando outras linguagens plaacutesticas Essa mudanccedila de paradigma faz com que a gravura se desenvolva como linguagem lanccedilando matildeo dos recursos teacutecnicos disponiacuteveis (2007 p1512)

A autonomia das linguagens graacuteficas propicia que sejam articulados distintos

meios e procedimentos borrando as fronteiras e delimitaccedilotildees teacutecnicas para originar

outras praacuteticas e confrontos esteacuteticos O caminho da gravura artiacutestica comeccedila a se

modificar significativamente quando a tecnologia e os meios de reproduccedilatildeo fotograacutefica

6 Blog Litografia 2010 ndash CAPECAUSP Disponiacutevel em lthttpcap-lito-2010blogspotcombr201003litografias-de-artistas-cezannehtmlgt Acesso em 09 de junho de 2016

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satildeo incluiacutedos aos procedimentos tradicionais ldquoRobert Rauschenberg por exemplo

desafiou os meios convencionais da gravura introduzindo elementos jaacute impressos

atraveacutes da transferecircncia de imagens Tambeacutem ampliou as escalas fiacutesicas misturando

diversas teacutecnicas graacuteficas que satildeo impressas sobre tela para substituir o papelrdquo

(BLAUTH 2011 p27) (Figura 5)

Figura 5 Robert Rauschenberg Shades 1964 Seis litografias impressas sobre acriacutelico 15 x 1438 x 11 58 p Ediccedilatildeo 24

Fonte MOMA Disponiacutevel em httpswwwmomaorgcollectionworks14718

Neste estudo apresentamos resultados parciais de procedimentos e meacutetodos

com o intuito de transferir a fotografia digital para criaccedilatildeo de matrizes com papel

alumiacutenio Inicialmente satildeo realizadas algumas testagens com outros tipos de matrizes

(acetato lata de refrigerante) e meios de transferecircncia (tela de serigrafia calor e

salicilato de metila)

Um dos materiais testados foi o acetato com imagem impressa em toner preto

aacutegua e esponja para molhar o acetato antes de entintar tinta para talho doce rolo de

borracha papel proacuteprio para a impressatildeo e prensa

Fazendo uso das impressotildees a laser e conhecendo suas propriedades o acetato

foi entintado e impresso Apoacutes alguns testes o resultado foi satisfatoacuterio (figura 6)

poreacutem natildeo com total controle sobre as impressotildees Encontramos neste meacutetodo a

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possibilidade de unir a tecnologia com a reproduccedilatildeo de imagem aos materiais

alternativos na produccedilatildeo de gravura

Figura 6 Ana van Grol Processo e resultado acetato impresso a laser gravura direta com tinta para talho doce

Fonte Arquivo pessoal

Em outra experiecircncia eacute feita a transferecircncia de impressatildeo a laser com calor e

pressatildeo e a tinta para talho doce acaba por fazer a interaccedilatildeo necessaacuteria utilizando-se

do meacutetodo de limpar a placa com oacuteleo antes de entintaacute-la A tinta de talho doce eacute

aplicada com rolo de borracha vaacuterias vezes e entre os intervalos de cada entintagem eacute

necessaacuterio limpar a tinta com esponja litograacutefica embebida em aacutegua (figura 7)

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Figura 7 Ana van Grol Processo e resultado de trabalho com transferecircncia de coacutepia a laser e

impressatildeo direta com tinta para talho doce Fonte Arquivo pessoal

Outro procedimento de transferecircncia de imagem impressa a laser eacute o produto

denominado de salicilato de metila associado ao processo de impressatildeo com a prensa

Com este material obtemos resultados mais satisfatoacuterios quando a imagem eacute impressa

sobre papel couchet ressaltando um certo contraste na imagem Neste caso (figura 8)

apoacutes a transferecircncia satildeo realizadas grafias aleatoacuterias com laacutepis litograacutefico gorduroso e

depois satildeo empregados os procedimentos de fixaccedilatildeo da imagem sobre o alumiacutenio uso

de polvilho melado ou mel imersatildeo em refrigerante cola oacuteleo de cozinha (para retirar a

imagem) esponja embebida em aacutegua e tinta para impressatildeo (para talho doce) Nesse

processo a imagem transferida natildeo desaparece apenas o desenho feito com material

gorduroso

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Figura 8 Lurdi Blauth Teste de transferecircncia de imagem com salicilato de metila Fonte Arquivo pessoal

A serigrafia tambeacutem serve de aporte ao desejo de transferir uma imagem e

reproduzi-la em impressotildees Em si o processo de serigrafia consiste em sensibilizar a

tela de nylon com uma imagem que poderaacute ser reproduzida sobre outras superfiacutecies

com uso de tinta proacutepria No caso da litografia alternativa utilizamos o sabatildeo de

glicerina como ldquotintardquo ou seja na funccedilatildeo de base protetora para o banho de

refrigerante Para isso foi necessaacuterio criar uma pasta (na textura de tinta) para

reproduzir a imagem da tela para o papel alumiacutenio Mais tarde com a mistura de sabatildeo

jaacute seca foram aplicadas as etapas posteriores o resultado pode ser observado na

impressatildeo (figura 9)

Figura 9 Ana van Grol - impressatildeo com uso de serigrafia como forma de transferecircncia de imagem

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Fonte Arquivo pessoal

A impressatildeo apresentou resultados bem satisfatoacuterios quanto agrave qualidade de

imagem contudo outras misturas semelhantes agrave de sabatildeo de glicerina neutro devem

ser testadas e podem apresentar melhor aderecircncia eou resistecircncia ao banho de

refrigerante

Algumas consideraccedilotildees

Diante da pluralidade de meios e possibilidades artiacutesticas testadas procuramos

utilizar materiais alternativos e produtos atoacutexicos buscando aproveitar materiais

disponiacuteveis na tentativa de abrir outros meios de reproduccedilatildeo de imagens O caminho

continua em aberto e o que nos motiva eacute a nossa convicccedilatildeo na continuidade da

exploraccedilatildeo de novas perspectivas para o campo da arte e em especial agrave litografia

testada com diferentes procedimentos Entendemos que diversos fatores interferem

devido agraves caracteriacutesticas e qualidade dos materiais empregados os quais muitas

vezes apresentam resultados inesperados

As experimentaccedilotildees realizadas ateacute o momento nos indicam a continuidade da

pesquisa buscando meios variados para o campo da gravura que possam ser

socializados principalmente nos ateliecircs que ainda utilizam materiais prejudiciais Dessa

forma pretendemos tambeacutem contribuir com a conscientizaccedilatildeo dos cuidados

relacionados agrave sauacutede dos artistas e do meio ambiente Em nossas conclusotildees parciais

percebemos que as possibilidades satildeo inuacutemeras para a criaccedilatildeo e reproduccedilatildeo de

imagens com materiais ldquocaseirosrdquo e com o seguimento de nossas investigaccedilotildees e

testagens temos a convicccedilatildeo de que podemos estimular a adesatildeo e a interaccedilatildeo com

outros artistas e assim obtermos melhores resultados

Portanto o campo das linguagens graacuteficas e os seus meios de reproduccedilatildeo direta

ou indireta da imagem tem suas qualidades intriacutensecas em cada processo contudo se

natildeo suscitarem transformaccedilotildees tornam-se vazias e desnecessaacuterias Podemos dizer

que natildeo importam os meios empregados pois os ldquoproblemasrdquo artiacutesticos devem ser

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confrontados com novos questionamentos esteacuteticos seja pelo uso do computador na

imagem digital na fotografia ou mesmo os meios considerados tradicionais como

gravura a pintura a escultura podendo ter (ou natildeo) qualidade contemporacircnea

Referecircncias BLAUTH Lurdi Marcas Passagens e Condensaccedilotildees ndash investigaccedilotildees de um processo de gravura contemporacircnea Porto Alegre Editora da UFRGS 2011 GARCIacuteA Hortensia Miacutenguez e LLOPIS Carles Meacutendez La siligrafiacutea Un proceso alternativo en la graacutefica muacuteltiple contemporacircnea In Revista El Artista n 11 Pamplona Colombia Universidad Distrital Francisco Joseacute de Caldas 2014 MALENFANT Nicole A gravura entre a identidade disciplinar e suas manifestaccedilotildees em um quadro interdisciplinar In Revista Porto Arte v 1 n1 (jun 1990) Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Visuais 1990 VENEROSO Maria do Carmo Gravura e Fotografia - Um estudo das possibilidades da gravura como uma linguagem artiacutestica autocircnoma na contemporaneidade e sua associaccedilatildeo com a fotografia In 16deg Encontro Nacional da Associaccedilatildeo Nacional de Pesquisadores de Artes Plaacutesticas Dinacircmicas Epistemoloacutegicas em Artes Visuais ndash 24 a 28 de setembro de 2007 ndash Florianoacutepolis SC

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Pluralia Tantum reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea

Fernando Lewis de Mattos1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

1 Consideraccedilotildees preliminares sobre o conservadorismo em muacutesica Antes de iniciar esta explanaccedilatildeo sobre algumas caracteriacutesticas da muacutesica

contemporacircnea gostaria de apontar aspectos do conservadorismo existente na

muacutesica atual

Mesmo atraveacutes de um vislumbre raacutepido sobre a Histoacuteria da Muacutesica percebe-

se que em todas as eacutepocas houve aqueles artistas que se esforccedilaram para expandir

a sensibilidade de seu tempo e aqueles (artistas teoacutericos criacuteticos pensadores e

parte do puacuteblico) que natildeo foram capazes de compreender o significado das

transformaccedilotildees ou natildeo estavam dispostos a abrir matildeo de seus valores

aparentemente bem fundamentados para escutar com a devida atenccedilatildeo as

realizaccedilotildees de seus contemporacircneos

Nem mesmo grandes pensadores estiveram livres de juiacutezos preconcebidos

ou natildeo foram capazes de apreciar a abrangecircncia de certas inovaccedilotildees no campo

artiacutestico de sua eacutepoca Platatildeo por exemplo revoltou-se contra a nova muacutesica de

seu tempo com seus trecircs gecircneros (diatocircnico cromaacutetico e enarmocircnico) e a

ampliaccedilatildeo vertiginosa das possibilidades de expressatildeo considerada perigosa pelo

filoacutesofo por romper com os fundamentos numeacutericos e com as normas pitagoacutericas da

muacutesica tradicional Rousseau e Diderot percebiam em Rameau somente o muacutesico

da corte chegando a ridicularizar suas oacuteperas por haver um grande contingente de

1 Possui Graduaccedilatildeo em Muacutesica - Habilitaccedilatildeo Violatildeo (1988) Mestrado em Muacutesica - Ecircnfase Educaccedilatildeo Musical

(1997) e Doutorado em Muacutesica - ecircnfase em Composiccedilatildeo (2005) pela Universidade Federal do Rio Grande do

Sul Atualmente eacute Professor Associado do Departamento de Muacutesica no Instituto de Artes da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul onde atua nas disciplinas Anaacutelise Musical Harmonia Esteacutetica da Muacutesica no

curso de Muacutesica e as disciplinas Praacuteticas Artiacutesticas e Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Muacutesica no curso de Histoacuteria da

Arte Soacutecio-fundador da Arena - Associaccedilatildeo Cultural Socioambiental onde ministra cursos regularmente

Instrumentista (cordas dedilhadas) dedicado agrave pesquisa e interpretaccedilatildeo de muacutesica antiga europeia (alauacutedes e

guitarras) muacutesica tradicional brasileira (viola caipira e guitarra romacircntica) e muacutesica contemporacircnea (violatildeo e

decacorde) compositor com obras para diferentes formaccedilotildees vocais e instrumentais muacutesica incidental para

teatro viacutedeo e cinema e produccedilatildeo de material sonoro para exposiccedilotildees Dedica-se tambeacutem agrave pesquisa e

interpretaccedilatildeo de muacutesica brasileira moderna e contemporacircnea

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instrumentos de percussatildeo tratando-as como natildeo sendo muacutesica mas somente um

amontoado de sons que produziam um barulho infernal Para Diderot Rameau era

[] aquele muacutesico ceacutelebre que nos livrou do canto chatildeo de Lully o qual recitamos haacute mais de cem anos que escreveu tantas visotildees ininteligiacuteveis e verdades apocaliacutepticas sobre a teoria da muacutesica sobre as quais nem ele nem ningueacutem jamais entendeu nada2 e de quem temos um certo nuacutemero de oacuteperas onde haacute harmonias fragmentos de cantos ideias desconexas ruiacutedos estrondosos voos triunfos lances gloacuterias murmuacuterios vitoacuterias de perder o focirclego aacuterias de danccedila que duraratildeo eternamente e que depois de ter enterrado o Florentino seraacute enterrado pelos virtuoses italianos (DIDEROT 1983 p 47-48)

Nietzsche que assim como Platatildeo e Rousseau tambeacutem era muacutesico viu no

Parsifal de Wagner apenas a capitulaccedilatildeo aos valores de uma arte germacircnica

redentora e consolatoacuteria que abdicava do ideal da muacutesica como retorno agrave inocecircncia

da arte atraveacutes do espiacuterito dionisiacuteaco Se houve este aspecto conservador na muacutesica

de Wagner havia muito mais pois foi a partir de suas inovaccedilotildees que compositores

como Mahler Debussy e Schoenberg conduziram suas proacuteprias experiecircncias

Mesmo que nem sempre tenha sido por razotildees especificamente musicais3 as

sucessivas reaccedilotildees agraves novas sonoridades levam a crer que a abertura para praacuteticas

musicais inusuais pode ser algo difiacutecil de ser alcanccedilado

No meio musical atual podem-se distinguir duas espeacutecies de

conservadorismo o conservadorismo preacute-moderno e o conservadorismo modernista

O conservadorismo preacute-moderno eacute aquele mais generalizado e hegemocircnico

predominante entre os programadores culturais administradores de teatro diretores

artiacutesticos de orquestras e afins Essa espeacutecie de conservadorismo se opotildee a toda e

qualquer criaccedilatildeo musical natildeo coincidente com os procedimentos e valores da

muacutesica do Periacuteodo Tonal situado entre as produccedilotildees de Johann Sebastian Bach

(1685-1750) e Johannes Brahms (1833-1897) Para aqueles que defendem ainda

hoje esses valores a muacutesica tonal eacute tida como sendo lsquouniversalrsquo mesmo que seja o

2 Jean-Philippe Rameau (1683-1764) foi um dos maiores muacutesicos e teoacutericos de sua eacutepoca foi o primeiro a sistematizar mais de duzentos anos de praacutetica musical em seu Tratado de Harmonia (1722) que eacute ainda hoje considerado como um dos escritos mais importantes sobre o assunto 3 Platatildeo estava preocupado com a educaccedilatildeo dos jovens os enciclopedistas viam em Rameau um representante do Ancien Reacutegime e Nietzsche sentiu-se traiacutedo por Wagner em seu ideal de superar o predomiacutenio do espiacuterito apoliacuteneo no campo musical

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fruto do trabalho de muacutesicos de uma regiatildeo restrita do planeta que corresponde a

aproximadamente trecircs paiacuteses da Europa Ocidental (Itaacutelia Franccedila e principalmente

Alemanha) e produzida em um curto periacuteodo de tempo entre os seacuteculos XVIII e

XIX

Um bom exemplo desse tipo de conservadorismo estaacute naquela afirmaccedilatildeo

comum em certos meios musicais onde prevalecem valores convencionais ldquonatildeo

toco muacutesica contemporacircnea porque as pessoas natildeo tecircm como saber se estou

tocando as notas certas ou erradas e quando escuto uma muacutesica dessas natildeo sei se

o muacutesico estaacute tocando bem ou natildeo Por isso considero essa muacutesica como sendo

de menor importacircnciardquo Nota-se aqui um pensamento tautoloacutegico centrado apenas

na proacutepria experiecircncia pessoal e sem qualquer interesse pela produccedilatildeo que estaacute agrave

sua volta Tautoloacutegico no sentido em que o sujeito natildeo tem como avaliar aquela

interpretaccedilatildeo porque natildeo conhece a muacutesica e natildeo conhece aquela muacutesica porque

natildeo se permite avaliar a interpretaccedilatildeo O raciociacutenio artificioso estaacute em que como o

indiviacuteduo natildeo conhece a muacutesica natildeo se esforccedila para escutar sua interpretaccedilatildeo

portanto natildeo pode julgaacute-la e se natildeo eacute possiacutevel emitir juiacutezo a muacutesica natildeo tem valor ndash

como se fosse necessaacuterio conhecer a muacutesica para saber se algueacutem a estaacute

interpretando adequadamente como se a capacidade de anaacutelise natildeo estivesse no

conhecimento que o sujeito tem do objeto analisado Trata-se de uma atitude

autocentrada porque esses muacutesicos

[] soacute conhecem a arte que consomem e soacute consomem a que reconhecem portanto sua consciecircncia eacute leve e parcial Como sustentar o pacto se eacute tatildeo menos sofrido dormir com a consciecircncia leve sem a pretensatildeo de uma arte feita tambeacutem para arte sem a sombra do domiacutenio gigantesco Talvez arte feita somente para o mundo para o plano da distraccedilatildeo substacircncia que dissolve instantaneamente o artista Arte distraiacuteda quase arte quase atenccedilatildeo quase conteuacutedo insuficiecircncia (BERNARDES 1998 p 7)

Quem crecirc que julga a arte a partir dessa espeacutecie de raciociacutenio apenas se

limita a reconhecer aquilo que jaacute conhece ou seja nesse ponto natildeo haacute

conhecimento apenas reconhecimento Ouvem-se tambeacutem alguns muacutesicos que se

negam a tocar novos repertoacuterios argumentando que natildeo se dedicam a estudar a

muacutesica atual porque ela natildeo acrescenta muito agrave teacutecnica do seu instrumento Esse

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ponto de vista parece ainda mais esvaziado pois fica confinado nos limites da

teacutecnica onde natildeo se alcanccedila jamais a condiccedilatildeo de arte

O conservadorismo moderno eacute atualmente defendido por aqueles que foram

os protagonistas de grandes transformaccedilotildees teacutecnicas e esteacuteticas da muacutesica de

meados do seacuteculo XX (do poacutes-guerra agrave deacutecada de 1970) e seus disciacutepulos esses

muacutesicos opotildeem-se a qualquer mudanccedila de direcionamento que natildeo corresponda agraves

novidades introduzidas pelas vanguardas tardias e confundem novos processos

narrativos e novos significados musicais com a arte de um passado ao qual sempre

se opuseram Natildeo tecircm a capacidade de compreender que as novas geraccedilotildees

percebem o mundo de outra maneira tecircm outros anseios e consequentemente

outras necessidades Portanto produzem outra arte O musicoacutelogo Paul Bekker

afirmava que os muacutesicos de sua eacutepoca natildeo escreviam da mesma maneira que os

grandes gecircnios do passado ldquopelo simples fato de serem pessoas diferentesrdquo

(BEKKER 1928 p 217) Parece que os protagonistas das vanguardas (a quem

Bekker estava se referindo) natildeo se deram conta de que o tempo continua a passar e

que os mais jovens que vieram depois deles tambeacutem tecircm outras necessidades ndash o

que obviamente leva agrave criaccedilatildeo de outra muacutesica diferente da sua

Haacute tambeacutem aqueles que pretendem que a arte se limite agrave aplicaccedilatildeo de novos

processos tecnoloacutegicos esquecendo que a arte eacute antes de tudo expansatildeo da

sensibilidade e do pensamento e que a teacutecnica natildeo eacute condiccedilatildeo para a arte A

tecnologia pode ser mais um recurso para a realizaccedilatildeo artiacutestica natildeo seu fim

Quando a muacutesica eacute valorizada somente pelos procedimentos tecnoloacutegicos

empregados na sua produccedilatildeo tambeacutem fica confinada nos limites da teacutecnica e natildeo

alcanccedila sua condiccedilatildeo esteacutetica O emprego de recursos tecnoloacutegicos vem a partir de

necessidades mais amplas do que a simples aplicaccedilatildeo de teacutecnicas recentes Se o

emprego de novas tecnologias fosse criteacuterio para a avaliaccedilatildeo da arte as primeiras

experiecircncias com muacutesica eletrocircnica seriam atualmente obsoletas (e seria no

miacutenimo enganoso considerar ultrapassadas as peccedilas eletrocircnicas de Schaeffer

Henry ou Stockhausen dos anos rsquo50) Por sua vez a novidade tecnoloacutegica natildeo

implica necessariamente na produccedilatildeo de arte nova

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Como o tempo eacute inexoraacutevel os indiviacuteduos humanos de hoje satildeo outros do

que em outros tempos as sociedades satildeo outras haacute outras maneiras de perceber o

mundo e refletir sobre ele tambeacutem o resultado da produccedilatildeo desses indiviacuteduos eacute

necessariamente outro Natildeo tem como ser diferente Isso indica que toda espeacutecie de

conservadorismo estaacute fadada ao fracasso o movimento se manifesta em todos os

aspectos e em todos os lugares Natildeo tem como negar a transformaccedilatildeo ela

simplesmente estaacute aiacute Haacute que aceitaacute-la ou trabalhar com ela para a criaccedilatildeo de

processos que possam conduzir a novos significados e novos meios de fazer e

perceber muacutesica Isso natildeo eacute dito de um ponto de vista apenas teacutecnico ou

pragmaacutetico mas acima de tudo conceitual pois a muacutesica como diria Platatildeo

alcanccedila seu mais alto niacutevel quando ultrapassa as pretensotildees praacuteticas mais

imediatistas e eacute nesse sentido que Soacutecrates no diaacutelogo Feacutedon compara o ato de

criar muacutesica ao haacutebito de filosofar

Negar que o tempo se prolonga incessantemente e perdura sem interrupccedilatildeo

levando consigo toda a sorte de transformaccedilotildees em todos os aspectos da realidade

significa dar as costas ao devir em seu fluxo ininterrupto de ir e vir em muacuteltiplas

direccedilotildees O que eacute uacutetil intrigante e considerado como atual para determinado grupo

humano pode natildeo o ser para outros grupos e eacute necessaacuterio aceitar isso para

compreender algo da diversidade da produccedilatildeo artiacutestica hodierna Eacute necessaacuterio sair

do proacuteprio centro para apreender algo da realidade circundante

2 Caracteriacutesticas da muacutesica atual

Haacute vaacuterias maneiras de distribuir as diferentes correntes de composiccedilatildeo da

muacutesica contemporacircnea Podem-se diferenciar as tendecircncias atuais de acordo com

procedimentos teacutecnicos como muacutesica serial muacutesica neotonal muacutesica minimalista

muacutesica eletrocircnica e outras conforme a ecircnfase em um ou outro elemento da

composiccedilatildeo como por exemplo os muacutesicos que valorizam o timbre as tendecircncias

em que o mais importante eacute o ritmo os movimentos de retorno agrave melodia agrave

harmonia ou ao contraponto aquelas linhas em que o importante estaacute no tipo de

escrita musical como a muacutesica com escrita precisa a escrita em forma de roteiro a

muacutesica aleatoacuteria e a improvisaccedilatildeo espontacircnea (que prescinde da escrita) poderiam

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tambeacutem ser consideradas as relaccedilotildees da muacutesica com outras aacutereas em que se

levariam em consideraccedilatildeo subdivisotildees como o teatro musical as instalaccedilotildees

sonoras ou as tendecircncias de multimiacutedia aleacutem de muacutesica para danccedila e a muacutesica

para cinema entre outras o ambiente musical atual poderia ainda ser dividido

entre os grupos derivados das vanguardas como a muacutesica atonal a muacutesica serial a

muacutesica estocaacutestica e a muacutesica espectral

Haveria ainda outras tantas possibilidades de demarcaccedilatildeo das tendecircncias

da muacutesica contemporacircnea Optou-se poreacutem neste ensaio por uma organizaccedilatildeo

mais ou menos extriacutenseca agrave proacutepria muacutesica e que poderia se adequar a outras

manifestaccedilotildees culturais atuais O que importa no esboccedilo a seguir satildeo os valores

que movem os muacutesicos em direccedilotildees que se entrecruzam em algumas de suas

caracteriacutesticas em alguns muacutesicos ou grupos de compositores Com base nas

referecircncias tomadas a partir de tradiccedilotildees imediatas ou remotas isto eacute nas tradiccedilotildees

do modernismo ou em tradiccedilotildees anteriores que tecircm sido resgatadas nos uacuteltimos

anos podem ser demarcadas trecircs linhas gerais na esteacutetica musical

contemporacircnea4

1 Continuidade da Modernidade

2 Retorno agrave Tradiccedilatildeo e

3 Superaccedilatildeo do Modernismo

A intenccedilatildeo com essa divisatildeo natildeo eacute enquadrar toda e qualquer manifestaccedilatildeo

musical contemporacircnea em alguma dessas trecircs tendecircncias gerais mas ao

contraacuterio procurar entender essas manifestaccedilotildees no sentido dos valores que podem

estar impliacutecitos ou expliacutecitos latentes ou manifestos conscientes ou inconscientes

nas diferentes produccedilotildees da muacutesica atual

Antes de iniciar a elaboraccedilatildeo sobre cada uma dessas tendecircncias eacute

necessaacuterio esclarecer algo da terminologia que seraacute empregada ao longo deste

ensaio

4 A organizaccedilatildeo adotada aqui leva em consideraccedilatildeo alguns princiacutepios elaborados por Ramaut-Chevassus (1998) o que natildeo significa poreacutem que se permanece no escopo de suas proposiccedilotildees

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Em primeiro lugar quando se fala de lsquomuacutesica contemporacircnearsquo neste texto se

estaacute abordando uma parcela da totalidade da muacutesica produzida atualmente que eacute a

assim chamada lsquomuacutesica eruditarsquo aquela produzida por muacutesicos que se dedicam ao

estudo da Teoria Musical agrave Histoacuteria da Muacutesica e agrave colocaccedilatildeo e soluccedilatildeo de

problemas teacutecnicos esteacuteticos ou relativos aos vaacuterios niacuteveis de significaccedilatildeo que

podem estar engendrados no fazer musical Isso significa que este ensaio se dedica

agravequelas manifestaccedilotildees musicais em que o foco principal estaacute na reflexatildeo sobre

problemas relativos agrave muacutesica como arte portadora de significados e suas

implicaccedilotildees culturais e natildeo se apresentam apenas como reaccedilatildeo imediata ao meio

circundante5

Uma diferenciaccedilatildeo importante para as discussotildees que se seguem diz

respeito aos termos lsquoModernidadersquo e lsquoModernismorsquo

No contexto deste ensaio entende-se por Modernidade o grande periacuteodo

histoacuterico da cultura ocidental que sobreveio apoacutes a quebra da hegemonia da Igreja

Catoacutelica Romana em meados do seacuteculo XV isto eacute a partir do Renascimento Este eacute

um periacuteodo marcado por transformaccedilotildees em todos os campos e atividades

humanas que influenciaram profundamente o fazer musical em todos os seus

aspectos No acircmbito da sistematizaccedilatildeo da muacutesica europeia o antigo Sistema Modal

medieval com sua diversidade de modos foi cedendo lugar agraves novas organizaccedilotildees

com base na dualidade de modos do Sistema Tonal Os princiacutepios do contraponto

vatildeo-se tornando menos importantes ateacute que em meados do seacuteculo XVIII a

harmonia passa a ser o principal meacutetodo de organizaccedilatildeo musical Nessa eacutepoca a

Teoria dos Afetos jaacute estava plenamente elaborada para sua aplicabilidade na muacutesica

de cena na oacutepera e no oratoacuterio

Na segunda metade do seacuteculo XVIII o Sistema Tonal estaacute completamente

organizado com possibilidade de modulaccedilatildeo para todas as tonalidades e o emprego

de cromatismo em qualquer segmento independente da escala de base atraveacutes do

temperamento igual Nos seacuteculos XVIII e XIX as diversas teorias de explicaccedilatildeo da

5 Isso natildeo significa qualquer preferecircncia do ponto de vista valorativo por esta ou aquela manifestaccedilatildeo musical mas apenas que as consideraccedilotildees sobre a muacutesica contemporacircnea apresentadas neste ensaio satildeo relativas agrave parcela da muacutesica atual comumente denominada lsquomuacutesica eruditarsquo

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realidade satildeo aproveitadas pelos muacutesicos com a intenccedilatildeo de compreender e

justificar suas escolhas Essa reflexatildeo sobre a proacutepria produccedilatildeo leva os

compositores agrave procura de originalidade na busca da lsquofantasia criadorarsquo e de novos

significados emocionais que se desenvolvem no Romantismo e desembocam nas

vaacuterias correntes modernistas do seacuteculo XX

O Modernismo equivale a todos aqueles movimentos de ruptura com a

tradiccedilatildeo6 oitocentista que se desenvolveram ao longo da primeira metade do seacuteculo

XX tendo seu marco inicial geralmente fixado no Impressionismo francecircs das

uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX No campo musical esse Modernismo eacute marcado

pela negaccedilatildeo do Sistema Tonal Negaccedilatildeo essa que se manifestou em vaacuterias

direccedilotildees pois se na muacutesica de Debussy e Ravel que estatildeo entre os primeiros a

romper com a tonalidade tradicional foram incorporados processos percebidos na

escuta de muacutesica do Extremo Oriente em especial a orquestra de gamelatildeo balinesa

Stravinsky e Bartoacutek entre outros aproveitaram elementos folcloacutericos do Leste

Europeu e juntamente com Milhaud desenvolveram a politonalidade em que vaacuterias

escalas satildeo sobrepostas com a intenccedilatildeo de obscurecer a funcionalidade tonal7

Se os compositores latinos e eslavos (como diria Schoenberg) buscavam a

superaccedilatildeo do Tonalismo oitocentista atraveacutes da incorporaccedilatildeo de processos e

materiais sonoros aproveitados de culturas extraeuropeias no meio musical

germacircnico e mais especificamente no acircmbito da Segunda Escola de Viena sob a

lideranccedila de Arnold Schoenberg (1874-1951) os jovens muacutesicos estavam

conduzindo as possibilidades cromaacuteticas ao extremo atraveacutes do Atonalismo desde

os primeiros anos do seacuteculo XX e do Dodecafonismo a partir da deacutecada de 1920

Esta muacutesica mais densa psicologicamente e considerada como sendo mais

6 Note-se que a noccedilatildeo de lsquoruptura com a tradiccedilatildeorsquo atraveacutes da lsquonova artersquo (Philippe de Vitry 1322) com a criaccedilatildeo de lsquonovas muacutesicasrsquo (Giulio Caccini 1601) com a concepccedilatildeo de um lsquoestilo modernorsquo que aporta em uma lsquosegunda praacuteticarsquo (Monteverdi 1605) natildeo eacute caracteriacutestica apenas do Modernismo mas da Modernidade como um todo 7 Eacute interessante notar que Darius Milhaud (1892-1974) considerado como um dos primeiros a empregar teacutecnicas politonais nas duas suiacutetes para piano intituladas Saudades do Brasil (com o tiacutetulo original em portuguecircs) de 1920 e 1921 certamente aproveitou esse recurso a partir da sua experiecircncia com o compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920) com quem conviveu no Rio de Janeiro na eacutepoca em que este foi diretor da Escola Nacional de Muacutesica Nepomuceno jaacute havia escrito em 1902 suas Variations sur un thegraveme original Op 29 (com o tiacutetulo em francecircs) onde empregou explicitamente sobreposiccedilatildeo de tonalidades inclusive com diferentes armaduras de clave

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complexa e de difiacutecil assimilaccedilatildeo foi o ponto de partida para grande parte das

experiecircncias das vanguardas tardias (1950-1970) em que se elaboraram e

aprofundaram inuacutemeras teacutecnicas e processos de organizaccedilatildeo musical com base em

seacuteries de alturas seacuteries de duraccedilotildees seacuteries de timbres etc chegando ao que se

chamou de Serialismo Integral no qual todos os paracircmetros da composiccedilatildeo seriam

serializados Ateacute mesmo Stravinsky principal antiacutepoda de Schoenberg chegou a

praticar teacutecnicas seriais Entre os principais compositores dessa geraccedilatildeo que

comeccedilou a aparecer apoacutes a Segunda Guerra nos festivais de muacutesica nova de

Darmstadt estatildeo Pierre Boulez (1925) Luciano Berio (1925-2003) e Karlheinz

Stockhausen (1928)

No final da deacutecada de 1950 houve entre os compositores que participavam

dos movimentos de vanguarda diversas reaccedilotildees agrave extrema racionalizaccedilatildeo dos

processos de composiccedilatildeo empregados pelos serialistas do grupo de Darmstadt As

mais difundidas foram as diferentes espeacutecies de muacutesica aleatoacuteria certamente

influenciadas por John Cage (1912-1992) Tambeacutem entre os compositores mais

jovens se desenvolveram novas praacuteticas com base nas relaccedilotildees mais rudimentares

entre os sons ou a partir da organizaccedilatildeo espectral da seacuterie harmocircnica Muacutesicos do

Leste Europeu como o polonecircs Krzysztof Penderecki (1933) ou o huacutengaro Gyorgy

Ligeti (1923) seguiram caminhos completamente independentes com relaccedilatildeo agrave

corrente dominante da Europa Ocidental Tambeacutem nos Estados Unidos houve

reaccedilatildeo agraves praacuteticas dos serialistas atraveacutes do Minimalismo de compositores como

Terry Riley (1935) Steve Reich (1936) e Philip Glass (1937) Pode-se considerar o

Minimalismo puro como o uacuteltimo dos movimentos modernistas no sentido de buscar

a ruptura com a tradiccedilatildeo ou com as praacuteticas das geraccedilotildees anteriores

O que caracteriza esses movimentos modernos apesar de sua diversidade eacute

a busca de hegemonia de cada um deles Por essa razatildeo o Modernismo se

caracteriza pelo lsquomanifestorsquo em que satildeo apresentados os valores da nova arte e se

explicitam em que sentido essa arte eacute nova de que maneira ela se diferencia das

outras e como pode ultrapassaacute-las Assim cada novo trabalho produzido pelo artista

moderno tem o caraacuteter de um programa com a exposiccedilatildeo de suas intenccedilotildees e

projetos em que satildeo apresentados os novos recursos descobertos por ele e seus

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colegas Haacute dessa maneira a crenccedila em uma progressividade determinada da

cultura em que se percebe a Histoacuteria de forma diacrocircnica como um processo

evolutivo contiacutenuo em que cada nova geraccedilatildeo deve acrescentar algo agraves conquistas

das geraccedilotildees anteriores para estar agrave sua altura e se diferenciar delas

Como o que pode ser quantificado na arte satildeo os materiais empregados e as

teacutecnicas com que esses materiais satildeo manipulados desenvolveram-se em grande

parte valores tecnicistas predominantes entre os movimentos de vanguarda em que

o importante seria a descoberta ou a criaccedilatildeo de novas teacutecnicas e o emprego de

novos recursos acuacutesticos Nesse sentido a lsquoexpressatildeo de conteuacutedosrsquo foi relegada a

um segundo plano quando natildeo passou a ser tomada como um resiacuteduo indesejaacutevel

de valores do Romantismo oitocentista Esse preceito pode ser exemplificado com a

conhecida afirmaccedilatildeo de Stravinsky ldquoinspiraccedilatildeo arte artista satildeo termos no miacutenimo

obscuros que nos impedem de ver claramente um campo onde tudo eacute equiliacutebrio

caacutelculo onde o que se passa eacute o sopro do espiacuterito especulativordquo

(STRAVINSKY 1986 p 54)

Cada grupo ou movimento artiacutestico buscava desenvolver seu proacuteprio sistema

de organizaccedilatildeo sonora seus proacuteprios meacutetodos de elaboraccedilatildeo musical e se

esforccedilava por descobrir novos materiais e recursos acuacutesticos que o posicionassem agrave

frente de seus concorrentes Havia por exemplo grande rivalidade entre a Escola

de Viena e os muacutesicos atuantes em Paris Schoenberg chegou a afirmar em seu

ensaio Muacutesica Nacional de 1931 que ldquoningueacutem ainda se deu conta que minha

muacutesica nascida em solo germacircnico livre de influecircncias estrangeiras eacute o exemplo

vivo de uma arte efetivamente capaz de se opor agraves esperanccedilas latinas e eslavas de

hegemonia porque se trata de uma arte essencialmente derivada das tradiccedilotildees da

muacutesica germacircnicardquo (SCHOENBERG 1975 p 173)

A noccedilatildeo da rivalidade entre franceses e germacircnicos no periacuteodo entre

guerras pode ser apreendida com a citaccedilatildeo do texto mais influente no meio musical

francecircs da deacutecada de 1920 O Galo e o Arlequim escrito por Jean Cocteau em

1918

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Schoenberg eacute um mestre todos os nossos muacutesicos e Stravinsky lhe devem algo mas Schoenberg eacute sobretudo um muacutesico de quadro negro Soacutecrates dizia lsquoQuem eacute este homem que come patildeo como se fosse a boa carne e a boa carne como se fosse patildeorsquo Resposta o melocircmano alematildeo (COCTEAU 1995 p 433-434)

Essas citaccedilotildees podem dar alguma noccedilatildeo do que eram os confrontos entre os

grupos modernistas na primeira metade do seacuteculo XX Os principais representantes

desses debates podem ser facilmente agrupados entre os partidaacuterios do

Neoclassicismo franco-russo que tinham em Stravinsky e no Grupo dos Seis seus

expoentes mais destacados e o Expressionismo germacircnico do qual os participantes

da Segunda Escola de Viena eram os principais portadores de conceitos e valores

Naturalmente houve grande nuacutemero de muacutesicos independentes poreacutem estes

geralmente se localizavam fora da Europa Ocidental Entre eles podem-se citar Bela

Bartoacutek (1881-1945) na Hungria Charles Ives (1874-1954) nos Estados Unidos

Carlos Chaacutevez (1899-1978) no Meacutexico Heitor Villa-Lobos (1887-1959) no Brasil e

Alberto Ginastera (1916-1983) na Argentina

21 Continuidade da Modernidade

As tendecircncias da muacutesica contemporacircnea em que a principal caracteriacutestica se

pode encontrar na busca de afirmaccedilatildeo dos pressupostos da Modernidade isto eacute em

que o artista percebe o fluxo histoacuterico de maneira contiacutenua e procura acrescentar

algo de original a ele satildeo aquelas que se desenvolveram a partir das vanguardas

tardias das deacutecadas de 1950 e 1960

Esses compositores que se alinham aos valores da poacutes-vanguarda podem

ser identificados entre aqueles que empregam processos derivados da muacutesica

atonal e serial que organizam suas estruturas sonoras com base em referecircncias

matemaacuteticas (com o emprego de algoritmos ou com base em estruturas

estocaacutesticas entre outras) e que desenvolveram suas investigaccedilotildees a partir da

muacutesica espectral do dececircnio de 1970 Haacute tambeacutem aqueles muacutesicos que se

dedicam agrave pesquisa na aacuterea de muacutesica e tecnologia a partir das experiecircncias da

muacutesica concreta da muacutesica eletrocircnica e eletroacuacutestica e podem ser alinhados no

escopo das tendecircncias de poacutes-vanguarda da muacutesica contemporacircnea O compositor

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Michel Chion (1947) tem empregado a expressatildeo lsquomuacutesica acusmaacuteticarsquo para designar

certos experimentos que se desdobraram a partir da muacutesica concreta

Com o intuito de ultrapassar cada fase histoacuterica com base em descobertas

originais esses compositores tecircm em geral como sua principal referecircncia a

superaccedilatildeo dos sistemas totalizantes que definiram os caminhos da Modernidade

Isso significa que mesmo aqueles que se dedicam agrave organizaccedilatildeo do material

acuacutestico com base em estruturas sistemaacuteticas natildeo se definem por uma via uacutenica de

estruturaccedilatildeo sonora ou seja natildeo seguem um princiacutepio sistecircmico uacutenico mas se

abrem para outras possibilidades conforme os elementos musicais se apresentam agrave

sua percepccedilatildeo pois muitos desses muacutesicos estatildeo abertos agrave casualidade mesmo

quando organizam seu trabalho a partir de processos racionais intriacutensecos ou com

base em caacutelculos predeterminados Nesse sentido a poacutes-vanguarda se diferencia

das vanguardas do poacutes-guerra para as quais qualquer intromissatildeo da percepccedilatildeo

imediata no processo compositivo significava ceder espaccedilo agrave subjetividade e

consequentemente aos valores liacutericos do Romantismo oitocentista

Muitos compositores atuais assumem uma atitude renovada com relaccedilatildeo ao

material sonoro pois mesmo aqueles que mais se esforccedilam em manter criteacuterios

quantitativos com preferecircncia por estruturas abstratas distanciadas das

experiecircncias cotidianas demonstram interesse pela pluralidade que qualquer

estrutura sonora traz em si Entendem com isso que os criteacuterios de valoraccedilatildeo de

qualquer produccedilatildeo dependem dos contextos especiacuteficos em que ocorrem e que natildeo

se podem definir antecipadamente quais os caminhos por que deve seguir

determinado conteuacutedo musical Esse entendimento conduz a outro terreno de

ordem mais esteacutetica do que teacutecnica que eacute a abertura para manifestaccedilotildees culturais

diferenciadas Enquanto um muacutesico de vanguarda da geraccedilatildeo de Boulez por

exemplo somente encontra valor em realizaccedilotildees que se assemelham agraves suas ou se

encontram no mesmo campo de atuaccedilatildeo um muacutesico de geraccedilatildeo posterior tem a

capacidade de reconhecer valor em algo que ele proacuteprio natildeo faria porque percebe

que satildeo impulsos criteacuterios e o gosto pessoal que estatildeo em causa entende que os

valores satildeo relativos ao contexto em que ocorrem e fora desse contexto podem

perder seu significado

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Haacute outros muacutesicos que seguem a tendecircncia de se mover no acircmbito dos

valores modernos poreacutem se diferenciam daqueles comentados acima por

desdenharem da lsquohierarquia de gostosrsquo do meio musical isto eacute fazem a leitura das

muacutesicas atuais sem hierarquizar os diversos tipos de manifestaccedilatildeo cultural Esses

muacutesicos percebem como sendo equivalentes do ponto de vista valorativo as

abordagens loacutegicas ou abstratas em comparaccedilatildeo agravequelas centradas na absorccedilatildeo do

mundo cotidiano eles procuram estreitar os elos que ligam as diferentes formas de

manifestaccedilatildeo musical atuais Entre as teacutecnicas de estruturaccedilatildeo musical mais usuais

nesta linha de atuaccedilatildeo do campo musical estatildeo a apropriaccedilatildeo a citaccedilatildeo a alusatildeo e

a colagem

Com base no princiacutepio da apropriaccedilatildeo de elementos oriundos de qualquer

muacutesica para a conformaccedilatildeo de uma nova estrutura sonora os materiais podem ser

apropriados de seu contexto original sob diferentes aspectos O compositor russo

Alfred Schnittke (1934-1998) um dos fundadores dessa tendecircncia de assimilaccedilatildeo de

diversos tipos de manifestaccedilatildeo cultural diferencia citaccedilatildeo e alusatildeo da seguinte

maneira a citaccedilatildeo consiste na apropriaccedilatildeo direta de um fragmento musical para a

composiccedilatildeo de uma nova muacutesica isto eacute se cita literalmente uma linha meloacutedica

uma sequecircncia riacutetmica ou um encadeamento harmocircnico de modo a tornaacute-lo

reconheciacutevel ao passo que a alusatildeo consiste em somente sugerir a lsquomaneirarsquo de

outro muacutesico ou escola atraveacutes de um fragmento musical escrito pelo proacuteprio

compositor ldquoO princiacutepio de alusatildeo se manifesta por evocaccedilotildees sutis e natildeo por

anuacutencios expliacutecitos proacuteximos de citaccedilotildees sem realmente o serem Esse princiacutepio se

opotildee agrave classificaccedilatildeordquo (SCHNITTKE 1998 p 29) Assim faz-se alusatildeo sem citar

literalmente o modelo original

A teacutecnica da colagem que surgiu na pintura cubista e foi amplamente

utilizada pelos escritores surrealistas pelos dadaiacutestas e pelos muacutesicos franceses do

Grupo dos Seis eacute uma das principais teacutecnicas de elaboraccedilatildeo musical empregadas a

partir da apropriaccedilatildeo de materiais heterogecircneos esparsos ao longo de determinada

obra A colagem consiste na justaposiccedilatildeo ou na sobreposiccedilatildeo de elementos com

origens distintas e produz um resultado almejado por vaacuterios muacutesicos nos uacuteltimos

anos que eacute a produccedilatildeo de texturas sonoras heterofocircnicas nas quais se tem a niacutetida

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sensaccedilatildeo de estar escutando diversas muacutesicas simultaneamente Eacute interessante

notar que essa teacutecnica jaacute era empregada por Charles Ives desde o iniacutecio do seacuteculo

XX Sua Unanswered Question (1906) jaacute opunha trecircs ideias musicais distintas sem

que se produzisse qualquer tipo de interaccedilatildeo entre elas

Esses procedimentos e teacutecnicas de apropriaccedilatildeo citaccedilatildeo alusatildeo e colagem

podem ser agrupados em um conceito geral denominado por Schnittke de

lsquopoliestiliacutesticarsquo Para este compositor

[] apesar de todas as dificuldades e todos os perigos que encerram a poliestiliacutestica seus benefiacutecios indiscutiacuteveis jaacute satildeo evidentes Estes residem no alargamento da expressatildeo musical em uma maior facilidade para integrar os estilos lsquonobresrsquo e os estilos lsquocomunsrsquo os estilos lsquobanaisrsquo e os estilos lsquorefinadosrsquo ou em uma palavra em um universo alargado e em uma democratizaccedilatildeo de estilos A realidade musical pode ser objetivada de forma documental pois natildeo aparece unicamente como o reflexo do indiviacuteduo mas tambeacutem atraveacutes das citaccedilotildees [] Na realidade seria difiacutecil encontrar outra teacutecnica musical que fosse tatildeo bem adaptada quanto a poliestiliacutestica agrave expressatildeo da ideacuteia filosoacutefica de continuidade (SCHNITTKE 1989 p 134)

Com essas reflexotildees Schnittke aponta para a pluralidade como criteacuterio de

valoraccedilatildeo da arte e elimina a busca de hegemonia de uma tendecircncia sobre as

outras como sendo um princiacutepio esteacutetico vaacutelido Nota-se inclusive a ironia de

Schnittke com relaccedilatildeo aos conceitos tradicionais de lsquoestilos nobresrsquo ou lsquoestilos

banaisrsquo Essa espeacutecie de hierarquizaccedilatildeo vem de longa data pois jaacute na eacutepoca de

Mozart se diferenciavam o lsquoestilo elevadorsquo de caraacuteter afirmativo e enfaacutetico digno de

representar a nobreza e os sentimentos nobres o lsquoestilo meacutediorsquo mais ingecircnuo e

leve sobre o qual se dizia que ldquodeve agradar ao ouvinte sem excitaacute-lo ou levaacute-lo agrave

reflexatildeordquo e o lsquoestilo baixorsquo considerado ruacutestico e simples poderia aparecer na forma

de danccedilas populares e era proacuteprio para a representaccedilatildeo de camponeses e das

classes sociais inferiores (cf RATNER 1980 p 9) O que Schnittke estaacute fazendo eacute

uma criacutetica agraves categorizaccedilotildees riacutegidas dos estilos musicais com base em

preconceitos sociais No uacuteltimo movimento de sua Sonata para Violino e Orquestra

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de Cacircmara Op 508 (1968) um longo segmento eacute elaborado com base na citaccedilatildeo de

trechos de Vivaldi combinados com a melodia da canccedilatildeo La Cucaracha9

O resultado dessas teacutecnicas de apropriaccedilatildeo e colagem eacute uma espeacutecie de

hibridismo estiliacutestico em que eacute abolido o preceito da unidade de estilo conforme foi

preconizado pelo teoacuterico tcheco Eduard Hanslick em meados do seacuteculo XIX e se

manteve como valor intocaacutevel ateacute a deacutecada de 1970 Hanslick chegou ao ponto de

afirmar que se deveria ldquodizer lsquotal compositor tem estilorsquo com o mesmo sentido que

quando se diz de algueacutem lsquoele tem caraacuteterrsquordquo (HANSLICK 1989 p 96) Naturalmente

essa definiccedilatildeo quase moralizante do conceito de estilo natildeo se sustenta atualmente

ateacute porque apoacutes o decliacutenio dos metadiscursos e dos grandes sistemas de

explicaccedilatildeo da realidade natildeo se justifica a aplicaccedilatildeo de um criteacuterio uacutenico de caraacuteter

universal para a avaliaccedilatildeo da produccedilatildeo cultural Cada nova peccedila musical cada

nova criaccedilatildeo no campo da arte traz em si a chave para a sua compreensatildeo e com

isso carrega tambeacutem os criteacuterios para sua avaliaccedilatildeo Eacute faacutecil demonstrar o equiacutevoco

de um criacutetico de muacutesica quando ao escutar uma peccedila atonal reclama da falta de

um centro tonal definido no qual possa apoiar sua audiccedilatildeo poder-se-ia responder a

outro criacutetico que considerasse aborrecida a estrutura da arte minimalista da mesma

forma que John Walker ldquoo aborrecimento eacute presumivelmente apenas uma emoccedilatildeo

tatildeo legiacutetima para a arte como qualquer outrardquo (WALKER 1977 p 27) Parece ser

igualmente simples perceber que procurar unidade de estilo na obra de um

compositor que como Schnittke professa a diversidade estiliacutestica estaacute fora de

cogitaccedilatildeo

Em um sentido geral nessa linha da produccedilatildeo contemporacircnea em que os

valores esteacuteticos seguem com base na continuidade das caracteriacutesticas inerentes da

Modernidade permanece importando em primeiro plano o processo criativo O que

significa que o resultado segue sendo uma arte centrada no fazer fundamentada na

poiacuteēsis acima de qualquer outro criteacuterio valorativo Isso significa que seus

fundamentos permanecem focalizados no indiviacuteduo criador que se coloca

8 Esta peccedila eacute uma transcriccedilatildeo da Sonata nordm 1 Op 30 (1963) para violino e piano 9 Eacute interessante notar que o proacuteprio Mozart jaacute fazia colagens com alusotildees ao estilo elevado e ao estilo baixo em suas oacuteperas Don Giovanni e Bodas de Fiacutegaro que causaram polecircmica em algumas cidades europeias devido ao seu conteuacutedo que subvertia os valores sociais da eacutepoca

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livremente como um inventor de novas sonoridades novas combinaccedilotildees acuacutesticas

novas teacutecnicas novos materiais e novos processos de elaboraccedilatildeo musical

22 Retorno agrave Tradiccedilatildeo

Ao contraacuterio da acepccedilatildeo anterior os muacutesicos que se colocam de maneira

favoraacutevel com relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo tecircm sua fundamentaccedilatildeo na criacutetica ao Historicismo

Assim questionam a crenccedila de que as transformaccedilotildees histoacutericas satildeo o resultado de

princiacutepios universais tatildeo objetivos quanto as leis da Fiacutesica ou das Ciecircncias Naturais

e que eacute necessaacuterio descobrir quais satildeo esses princiacutepios para operar sobre eles10 Os

muacutesicos que se alinham agraves tendecircncias de retorno agrave tradiccedilatildeo fazem criacutetica a essa

concepccedilatildeo unidirecional da Histoacuteria e creem na possibilidade de sobreposiccedilatildeo das

diversas produccedilotildees musicais do passado e do presente o que significa que esses

muacutesicos estatildeo dispostos a retomar experiecircncias anteriores de qualquer eacutepoca ou

lugar ou evocar essas experiecircncias a partir de novos pontos de vista com o intuito

de atualizaacute-las em um momento especiacutefico da contemporaneidade

(Com relaccedilatildeo a essa discussatildeo os muacutesicos que se aplicam agrave continuidade da

Modernidade operam em grande parte com aquele princiacutepio historicista poreacutem jaacute

compreendido em contextos especiacuteficos e natildeo mais universais Nesta acepccedilatildeo da

muacutesica contemporacircnea ainda se tem a Histoacuteria como a dimensatildeo mais abrangente

para a explicaccedilatildeo da realidade e das transformaccedilotildees sociais e culturais A diferenccedila

com relaccedilatildeo agraves explicaccedilotildees modernas estaacute em que a dimensatildeo histoacuterica eacute

compreendida a partir de um ou outro ponto de vista isto eacute busca-se contextualizar

e relativizar os princiacutepios histoacutericos mesmo que esses princiacutepios ainda sejam

considerados como a melhor via de explicaccedilatildeo das transformaccedilotildees sociais poliacuteticas

econocircmicas ou culturais)

Entendido dessa maneira percebe-se que com relaccedilatildeo agrave ldquoideia filosoacutefica de

continuidaderdquo (para retomar agrave expressatildeo de Schnittke citada anteriormente)

aqueles muacutesicos que se colocam na posiccedilatildeo de lsquoretorno agrave tradiccedilatildeorsquo assumem uma

10 No acircmbito especiacutefico da muacutesica isso significaria a existecircncia de um direcionamento uniacutevoco dos fatos musicais atraveacutes da Histoacuteria e que a tarefa do muacutesico seria encontrar os princiacutepios que regem esse fluir contiacutenuo para criar a partir deles e transcendecirc-los

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postura necessariamente antagocircnica a qualquer espeacutecie de Historicismo mesmo

contextual ou relativo Com isso tem-se uma antinomia existente entre os dois

pontos de vista pois se para aqueles que pretendem dar continuidade aos valores

da Modernidade a tradiccedilatildeo deve ser investigada para ser ultrapassada no sentido

de que o artista deve dar continuidade agraves transformaccedilotildees histoacutericas para estar agrave

altura de seu tempo para aqueles que defendem o retorno ao passado a tradiccedilatildeo

deve ser compreendida para servir de suporte agrave criaccedilatildeo da nova muacutesica que natildeo

tem necessariamente que ultrapassaacute-la mas operar com ela

A atitude mais saliente na acepccedilatildeo da muacutesica atual de lsquoretorno agrave tradiccedilatildeorsquo eacute

a busca de valores e elementos estiliacutesticos do passado com o sentido de aproveitaacute-

los em estruturas musicais homogecircneas Essa caracteriacutestica distingue esse grupo

de valores de retorno ao passado dos outros dois grupos (lsquocontinuidade da

Modernidadersquo e lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo) para os quais as possibilidades de

aproveitamento de elementos diacutespares se daacute atraveacutes da fragmentaccedilatildeo e da colagem

heterofocircnica Com isso tem-se outro aspecto diferencial na relaccedilatildeo entre as

acepccedilotildees da muacutesica atual pois se por um lado aqueles que pretendem ultrapassar

a tradiccedilatildeo operam sobre um princiacutepio de continuidade histoacuterica que deve ser

reconhecido e ampliado por outro lado esses mesmos muacutesicos propotildeem a

descontinuidade e a fragmentaccedilatildeo da estrutura musical per se quando se trata de

cada peccedila de muacutesica em particular pois compreendem que estruturas sonoras

contiacutenuas jaacute estariam ultrapassadas por fazerem recuar agraves caracteriacutesticas mais

proeminentes da muacutesica tonal ou seja agraves praacuteticas musicais do seacuteculo XVIII e XIX

cujas possibilidades de discursividade e narratividade jaacute estariam esgotadas

Ao contraacuterio os muacutesicos que professam o retorno agrave tradiccedilatildeo por serem

criacuteticos com relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo diacrocircnica da Histoacuteria geralmente argumentam

em favor da retomada de estruturas musicais contiacutenuas por entenderem que os

processos de fragmentaccedilatildeo operados pelas vanguardas jaacute foram exauridos ao

extremo e portanto esvaziados Assim ao defenderem concepccedilotildees sincrocircnicas dos

fatos histoacutericos segundo as quais se pode ter uma percepccedilatildeo de ldquotudo ao mesmo

tempo agorardquo se sentem agrave vontade para sobrepor os meacutetodos de elaboraccedilatildeo

musical do Classicismo ou do Romantismo aos seus anseios de iacutendole

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eminentemente contemporacircnea Tem-se assim outra constataccedilatildeo que

complementa aquela do paraacutegrafo anterior os muacutesicos que se alinham aos

princiacutepios de retorno agrave tradiccedilatildeo propotildeem uma leitura sincrocircnica e portanto

descontiacutenua da Histoacuteria poreacutem a estrutura musical resultante da elaboraccedilatildeo de cada

peccedila particular se torna contiacutenua pelo resgate de processos discursivos e narrativos

em suas composiccedilotildees

Essas praacuteticas de retorno ao passado muitas vezes satildeo professadas sem a

definiccedilatildeo de eacutepoca ou regiatildeo especiacutefica mas se abrem agrave possibilidade de passar

por diferentes pontos geograacuteficos mais ou menos remotos e por diferentes periacuteodos

da Histoacuteria sem que isso signifique a perda da coesatildeo estiliacutestica (a identidade

estiliacutestica se torna novamente importante apesar de natildeo ser mais um princiacutepio

esteacutetico inflexiacutevel) De qualquer forma mesmo com uma concepccedilatildeo sincrocircnica da

Histoacuteria eacute comum que muitos desses muacutesicos se fixem em algum ponto do tempo

ou do espaccedilo para a criaccedilatildeo de uma peccedila ou de um conjunto de obras Outra

caracteriacutestica bastante comum entre os muacutesicos que se esforccedilam em retomar

aspectos da tradiccedilatildeo eacute o fato de centrarem seus esforccedilos na investigaccedilatildeo da muacutesica

europeia Isso natildeo significa que natildeo existem estudos sobre a muacutesica de outras

culturas sendo que os processos musicais extraeuropeus mais estudados satildeo o

sistema de ragas da muacutesica indiana e a estrutura riacutetmica aditiva da muacutesica africana

e oriental Um bom exemplo nesse sentido eacute a temporada que Steve Reich passou

em Gana em 1970 periacuteodo em que estudou sob a orientaccedilatildeo de um percussionista

jeje no Instituto de Estudos Africanos experiecircncia que lhe permitiu acrescentar

processos riacutetmicos aditivos e subtrativos agrave sua muacutesica ampliando as possibilidades

das suas primeiras experiecircncias minimalistas

Devido agrave inclinaccedilatildeo para aproveitar caracteriacutesticas da muacutesica do passado

vaacuterios muacutesicos tecircm sido criticados como portadores de uma postura conservadora

Michel Faure um criacutetico severo do Neoclassicismo francecircs do entre guerras por

consideraacute-lo um estilo ldquosocialmente concordataacuteriordquo e de ldquoafirmaccedilatildeo nacionalistardquo

considera ser essa atitude de retorno ao passado existente na muacutesica

contemporacircnea uma espeacutecie de reediccedilatildeo do Neoclassicismo histoacuterico Para o autor

ldquoos neoclaacutessicos natildeo satildeo jamais considerados como reacionaacuterios ndash assim como os

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poacutes-modernos natildeo aceitam a pecha de passadistas [] Os empreacutestimos que eles

fazem frequentemente lsquodescontextualizamrsquo os fragmentos aos quais fazem

referecircnciardquo (FAURE 1998 p 78) Bem ressurge aqui o mesmo problema da criacutetica

mal direcionada jaacute mencionado anteriormente Se a intenccedilatildeo desses muacutesicos eacute

recuperar processos tradicionais se buscam criar uma espeacutecie de representaccedilatildeo da

multiplicidade cultural da contemporaneidade atraveacutes da apropriaccedilatildeo do legado

histoacuterico nada mais adequado do que a descontextualizaccedilatildeo dos materiais

empregados de sua lsquohistoricidadersquo original e sua adequaccedilatildeo agrave nova situaccedilatildeo em que

esses elementos se encontram Percebe-se na criacutetica de Faure preceitos de

continuidade e pureza histoacuterica que natildeo se adeacutequam aos neoclaacutessicos nem aos poacutes-

modernos pois ambos subvertem os coacutedigos que servem de premissa agrave sua criacutetica

Um dos arautos da nova muacutesica Boudewijn Buckinx apresenta um exemplo

muito comum de retomada da tradiccedilatildeo ao afirmar que o compositor atual ldquonatildeo

escreve tatildeo-somente um concerto grosso Ele escolhe uma possibilidade ndash o

concerto grosso ndash entre diversas Portanto natildeo eacute propriamente um concerto grosso

mas uma peccedila que toma o concerto grosso por sujeitordquo (BUCKINX 1998 p 60-61)

Poder-se-ia dizer tomando de empreacutestimo as palavras de Wolfgang Rihm que se

trata de uma ldquomuacutesica sobre a muacutesicardquo ou em alguns casos de muacutesica sobre

muacutesicas Se assim for a criacutetica de Faure se esvazia pois existe uma tecircnue diferenccedila

entre permanecer em determinado estado de coisas sem se aventurar a outros e

voltar a esse estado quando se tem interesse em recorrer a ele Esta eacute a divergecircncia

existente entre o conservadorismo preacute-moderno mencionado anteriormente e a

tendecircncia contemporacircnea de retorno agrave tradiccedilatildeo (distinccedilatildeo que o conservadorismo

modernista parece natildeo ser capaz de perceber) natildeo se estaacute no passado volta-se a

ele quando se o considera adequado

Em vista disso torna-se importante entender como os processos e materiais

tradicionais satildeo reutilizados sob a perspectiva da nova muacutesica para diferenciar a

atitude de retorno agrave tradiccedilatildeo com base em um ponto de vista criacutetico da mera

permanecircncia conservadora de valores convencionais de forma subserviente e sem

nem mesmo compreender o que esses valores podem ter significado em sua

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eacutepoca11 Diferenciar aquilo que foi denominado no iniacutecio deste ensaio como

conservadorismo preacute-moderno da atitude criacutetica com relaccedilatildeo aos pontos de vista

historicistas e evolucionistas da cultura tambeacutem significa distinguir o conhecimento

extensivo da tradiccedilatildeo da simples sujeiccedilatildeo a valores passadistas Um artista que

pesquisa profundamente em sua aacuterea de atuaccedilatildeo natildeo se preocupa em primeiro

plano com a feiccedilatildeo externa dos resultados de suas investigaccedilotildees o que lhe

importam satildeo as possibilidades que suas descobertas podem trazer no plano da

criaccedilatildeo Ao contraacuterio um muacutesico que se apresenta com uma aparecircncia novidadeira

pode estar extremamente apegado agraves convenccedilotildees de determinada linha de

produccedilatildeo e mesmo que essa linha seja muito recente a falta de abertura para

outras aacutereas de investigaccedilatildeo pode mantecirc-lo submisso a convenccedilotildees jaacute assimiladas

por geraccedilotildees passadas mesmo que ele proacuteprio natildeo se aperceba disso Muitas

vezes a aparecircncia de novidade mascara uma seacuterie de valores apegados a

convenccedilotildees riacutegidas que natildeo se sustentariam sob o crivo da criacutetica

A sutil diferenccedila entre o Neotonalismo de um compositor como George

Rochberg (1918) e a imitaccedilatildeo trivial do estilo dos primeiros romacircnticos (sem ir aleacutem

dos procedimentos teacutecnicos) estaacute na atitude com relaccedilatildeo agrave lsquovivecircncia da

simultaneidadersquo Para Rochberg ldquoa esperanccedila da muacutesica contemporacircnea reside em

aprender como reconciliar todas as maneiras de opostos contradiccedilotildees paradoxos o

passado com o presente tonalidade com atonalidade Eacute por isso que em minha

muacutesica mais recente tenho tentado utilizar essas combinaccedilotildees que reafirmam os

valores primordiais da muacutesicardquo (ROCHBERG 2003 p 3) Essa noccedilatildeo da diferenccedila

entre o passado e o presente essa busca de conciliaccedilatildeo dos opostos diverge de um

ponto de vista conservador ou de uma postura epigocircnica pois o epiacutegono apenas

reproduz o passado agrave maneira deste ou daquele mestre ao passo que o artista

criador se apoia em aspectos do passado para produzir um trabalho artiacutestico que

11 Muitas vezes a simplificaccedilatildeo dos meios significa a criaccedilatildeo de algo que pode impulsionar grandes transformaccedilotildees Quando Giulio Caccini (1551-1618) defendia o uso de triacuteades maiores e menores para a elaboraccedilatildeo das nuove musiche de sua eacutepoca estava propalando uma simplificaccedilatildeo da textura musical uma homofonia mundana que se opunha agrave complexidade polifocircnica da muacutesica sacra Essa simplificaccedilatildeo trazia o germe para algumas das grandes conquistas da muacutesica europeia dos trezentos anos seguintes inclusive a criaccedilatildeo de um novo gecircnero musical a oacutepera

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traz algum frescor agrave educaccedilatildeo dos sentidos alguma maneira peculiar de descobrir

ou perceber o mundo

Com a retomada de processos de organizaccedilatildeo modal ou tonal haacute

necessariamente o retorno de melodias claramente definidas a renovaccedilatildeo das

teacutecnicas de contraponto e a ampliaccedilatildeo de estruturas harmocircnicas de caraacuteter

diatocircnico Um dos compositores mais importantes da vanguarda das deacutecadas de

1950 e 1960 Krzysztof Penderecki soube atualizar seu estilo em meados da

deacutecada de 1970 quando passou a combinar estruturas diatocircnicas ampliadas com

base na produccedilatildeo dos grandes sinfonistas da passagem do seacuteculo XIX ao seacuteculo XX

(Gustav Mahler e Richard Strauss entre outros) com os resultados de suas

pesquisas acuacutesticas do periacuteodo vanguardista A consequecircncia eacute uma muacutesica

fortemente dramaacutetica com aspectos que lembram o Romantismo tardio e elementos

da vanguarda da deacutecada de 1960 elaborados de maneira que o resultado se

apresenta como uma muacutesica inusitada que jamais poderia ter sido concebida em

outra eacutepoca ou por outro artista

O legado histoacuterico natildeo eacute mais desprezado ou entendido apenas como um

passado a ser ultrapassado mas ao contraacuterio eacute tambeacutem identificado como uma

fonte inesgotaacutevel de possibilidades teacutecnicas e expressivas que podem ser

reaproveitadas de muitas formas possiacuteveis sem que isso incorra necessariamente

em postura conservadora ou em atitude epigonal Outro compositor que tambeacutem

soube atualizar seus processos compositivos eacute o huacutengaro Gyorgy Ligeti que tem

combinado seus experimentos microtonais e estruturas micropolifocircnicas levados a

cabo nas deacutecadas de 1960 e 1970 com outros meacutetodos de organizaccedilatildeo harmocircnica

engendrados a partir das relaccedilotildees acuacutesticas baacutesicas existentes em seus

conglomerados sonoros Esses processos datildeo vazatildeo agrave existecircncia de linhas

meloacutedicas claramente definidas com caraacuteter modal vigoroso e algumas vezes

fazem alusotildees agrave muacutesica popular e folcloacuterica de sua regiatildeo

Essa atitude com relaccedilatildeo ao passado traz novos modos de entendimento das

culturas tradicionais aleacutem da acomodaccedilatildeo de valores muitas vezes tomados como

contraditoacuterios em estruturas coesas Evidenciam-se natildeo apenas as tradiccedilotildees locais

com relaccedilatildeo agrave proacutepria formaccedilatildeo do indiviacuteduo como tambeacutem outras tradiccedilotildees que se

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buscam atraveacutes de meios natildeo-convencionais Compreende-se que natildeo eacute necessaacuterio

viver as experiecircncias de determinada sociedade para absorver parte de seus valores

ou de sua produccedilatildeo cultural ateacute porque os habitantes das grandes cidades estatildeo

expostos cotidianamente a tantos estiacutemulos advindos de origens distintas que se

criam identidades multiculturais mesmo quando natildeo se tem conhecimento intriacutenseco

de suas propriedades Qualquer cidadatildeo meacutedio atual tem noccedilotildees fundamentais

sobre os haacutebitos de vaacuterios povos originaacuterios de localidades onde nunca esteve A

tecnologia permite ao artista contemporacircneo ter acesso agrave produccedilatildeo de seus pares

de qualquer outra regiatildeo do planeta quase simultaneamente agrave sua criaccedilatildeo e

divulgaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel conhecer aspectos de culturas remotas no tempo

atraveacutes de pesquisas arqueoloacutegicas e sua divulgaccedilatildeo em grande escala nos meios

de comunicaccedilatildeo Isso permite sermos contemporacircneos de outras eacutepocas e

conterracircneos dos povos de outros lugares

23 Superaccedilatildeo do Modernismo

As linhas de atuaccedilatildeo que se opotildeem agrave mentalidade das vanguardas tardias o

fazem por razotildees diversas daquelas que motivam as tendecircncias de retorno agrave

tradiccedilatildeo pois este retorno ao passado geralmente significa um passado visto pela

oacutetica da Modernidade (em geral satildeo leituras atualizadas das tradiccedilotildees do Ocidente

isto eacute das praacuteticas musicais do Renascimento ao Romantismo) Nesse sentido

especiacutefico haacute pontos em comum entre as duas acepccedilotildees abordadas anteriormente

(lsquocontinuidade da Modernidadersquo e lsquoretorno agrave Tradiccedilatildeorsquo) pois seja por dar

continuidade agraves praacuteticas da era moderna atraveacutes de sua ampliaccedilatildeo seja por

resgatar essas praacuteticas com base em novos meios de elaboraccedilatildeo musical a

Modernidade permanece como sendo forte ponto de referecircncia em ambos os casos

Diferentemente aqueles que se colocam com uma postura de lsquosuperaccedilatildeo do

Modernismorsquo geralmente focam seus interesses na ruptura com as tradiccedilotildees

modernistas mais recentes e natildeo na Modernidade como um todo

Aleacutem disso natildeo satildeo apenas as culturas tradicionais que interessam a esta

terceira linhagem mas tambeacutem outros aspectos da cultura contemporacircnea inclusive

a cultura pop e os meios de comunicaccedilatildeo de massa Esses muacutesicos acreditam

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estarem produzindo uma fissura na Modernidade ao se abrirem para toda e qualquer

espeacutecie de produccedilatildeo cultural sem hierarquizaacute-las12 Acreditam portanto que

estamos no iniacutecio de uma nova eacutepoca e natildeo em um periacuteodo de continuidade da

Modernidade ou de retomada dos valores de sua tradiccedilatildeo13

Podem-se esboccedilar algumas imagens geomeacutetricas para representar essas trecircs

formas de pensamento para a primeira acepccedilatildeo da muacutesica contemporacircnea que

professa a lsquocontinuidade da Modernidadersquo o tempo teria a imagem de uma linha reta

que se movimenta em determinado sentido (mesmo que alguns desses artistas

faccedilam criacutetica agrave mentalidade linear a linha parece bem representar o ponto de vista

evolucionista da cultura) para a segunda acepccedilatildeo aquela em que se pratica o

lsquoretorno agrave Tradiccedilatildeorsquo poder-se-ia formular a imagem do tempo em forma circular pois

o ciacuterculo eacute uma figura em que natildeo haacute sentido predeterminado pois se pode iniciar

ou terminar em qualquer ponto da circunferecircncia e se movimentar em sentido

horaacuterio ou anti-horaacuterio para a terceira acepccedilatildeo que propotildee a lsquosuperaccedilatildeo do

Modernismorsquo a imagem de uma esfera parece ser a mais adequada pois natildeo se

estaacute focando o tempo em apenas uma dimensatildeo mas abre-se o leque para toda e

qualquer manifestaccedilatildeo perceptiacutevel atualmente no tempo e no espaccedilo Com isso

tem-se a possibilidade de produzir movimentos de qualquer ponto para qualquer

outro ponto seguindo em qualquer sentido ou direccedilatildeo (para baixopara cima para a

esquerdapara a direita para traacutespara frente) ndash por isso a imagem tridimensional14

12 Note-se que neste aspecto haacute pontos de interseccedilatildeo entre certas tendecircncias de lsquocontinuidade da Modernidadersquo e aquelas que professam a lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo pois o princiacutepio da poliestiliacutestica defendido por Schnittke e outros tambeacutem rompe com a hierarquizaccedilatildeo dos estilos O que diferencia ambos os grupos eacute o enfoque com que cada qual se apropria das diferentes formas de manifestaccedilatildeo cultural 13 Tambeacutem nesse sentido haacute interseccedilatildeo entre as duas acepccedilotildees pois se as tendecircncias de lsquocontinuidade da Modernidadersquo professam a ruptura com a tradiccedilatildeo musical oitocentista as tendecircncias de lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo professam outra ruptura com as tradiccedilotildees novecentistas Em ambos os casos haacute valores centrados no princiacutepio da ruptura mesmo que na primeira acepccedilatildeo esta ruptura faccedila parte de um processo contiacutenuo de superaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e no segundo caso seja entendida como uma fissura nesse processo 14 Este recurso de traccedilar analogias entre a estrutura das mentalidades e figuras geomeacutetricas jaacute foi delineado por Koellreutter (cf KOELLREUTTER 1987 p 29-32) compositor que confeccionou a partitura de sua peccedila Acronon em formato de esfera para representar sua concepccedilatildeo da mentalidade contemporacircnea Para Koellreutter poreacutem essas analogias aparecem com sentido diverso daquele apresentado aqui

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Para aqueles que se posicionam pela superaccedilatildeo do Modernismo as

vanguardas satildeo tidas como sendo formalistas ao extremo por se apoiarem

especificamente em criteacuterios teacutecnicos e formais para efetuarem seus julgamentos

Para entender o alcance dessa criacutetica eacute necessaacuterio adentrar um pouco em

algumas acepccedilotildees do termo lsquoformalismorsquo

Em seu Vocabulaacuterio de Esteacutetica Souriau informa que

[] eacute formalista aquele que daacute grande importacircncia agrave forma ou agraves formas poreacutem o termo forma pode ser tomado em diversos sentidos pode-se dar importacircncia a algo por razotildees de ordens bastante diferentes e enfim o termo formalismo foi frequentemente utilizado de maneira polecircmica mas em conflitos que natildeo eram sempre os mesmos de sorte que a palavra formalismo tem diversos sentidos que natildeo coincidem e cuja confusatildeo pode conduzir a erros graves (SOURIAU 1999 p 758)

Podem-se estabelecer a partir das classificaccedilotildees de Souriau trecircs sentidos

principais aplicados ao formalismo esteacutetico e empregados na criacutetica agraves tendecircncias

vanguardistas O primeiro sentido coincide com a censura a Hanslick criacutetico musical

de orientaccedilatildeo kantiana para quem a beleza esteacutetica seria inerente agrave existecircncia de

uma forma equilibrada e bem proporcionada o segundo sentido tem a ver com a

oposiccedilatildeo entre forma e conteuacutedo e se dirige principalmente agraves tendecircncias

modernistas de caraacuteter anticonteudista para as quais a estrutura eacute mais importante

do que o conteuacutedo representado ndash o que significa que para os criacuteticos atuais do

Modernismo o conteuacutedo ganha nova forccedila no terceiro sentido o termo lsquoformalistarsquo eacute

empregado para censurar as tendecircncias vanguardistas por centrarem suas

investigaccedilotildees em estruturas musicais abstratas criadas aprioristicamente sem levar

em consideraccedilatildeo a observaccedilatildeo do meio social ou cultural o que muitas vezes eacute

entendido como desprezo pela realidade

Em geral essas criacuteticas ao lsquoformalismorsquo das vanguardas surgem como

reaccedilotildees ao posicionamento antagocircnico dos muacutesicos de vanguarda das deacutecadas de

1950 e 1960 com relaccedilatildeo agrave muacutesica com sentido narrativo que necessariamente

traz o conteuacutedo ao primeiro plano e por conseguinte desvia a percepccedilatildeo dos

recursos teacutecnicos dos materiais sonoros e dos processos acuacutesticos envolvidos na

apreciaccedilatildeo musical Essa criacutetica modernista ao conteuacutedo vinha embutida em uma

criacutetica geral ao Romantismo e agrave muacutesica descritiva representada no seacuteculo XIX pelo

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lsquopoema sinfocircnicorsquo e pelas lsquopeccedilas caracteriacutesticasrsquo Ainda hoje em certos meios

musicais eacute comum a restriccedilatildeo agrave muacutesica descritiva em geral

Os muacutesicos vinculados agravequela via que pretende a superaccedilatildeo do Modernismo

ndash que agraves vezes chamam pejorativamente os movimentos de poacutes-vanguarda de

lsquoultramodernosrsquo ou lsquohipermodernosrsquo entendendo-os como o fruto de uma atitude

conservadora (cf BUCKINX 1998 p 22) ndash consideram que o lsquoformalismorsquo

vanguardista afastou o puacuteblico das salas de concerto e buscam novos processos de

comunicabilidade atraveacutes da investigaccedilatildeo mais ou menos sistemaacutetica de processos

narrativos e pela incorporaccedilatildeo da significaccedilatildeo musical direta

Eacute interessante notar a afericcedilatildeo de valor aos termos mencionados acima

lsquoUltramodernismorsquo e lsquoHipermodernismorsquo se essas expressotildees satildeo consideradas

negativamente pelos muacutesicos que professam a superaccedilatildeo do Modernismo satildeo

entendidas com sentido favoraacutevel pelos partidaacuterios da poacutes-vanguarda que

empregam essa terminologia para demonstrar que consideram determinada parcela

da produccedilatildeo atual como sendo extremamente significativa pois se apoiam nos

valores vanguardistas e os ultrapassam

Tem-se tambeacutem outra diferenccedila terminoloacutegica operada por alguns autores

que se faz apenas mudando a ordem dos termos lsquonova muacutesicarsquo e lsquomuacutesica novarsquo

Esta expressatildeo que foi amplamente empregada ao longo das deacutecadas de 1950 e

1960 estaacute ligada agraves tendecircncias vanguardistas e poacutes-vanguardistas No Brasil

houve inclusive um movimento de vanguarda autodenominado lsquoGrupo Muacutesica

Novarsquo que lanccedilou seu manifesto em 1963 com base nos princiacutepios do

Construtivismo e do Concretismo e terminou por influenciar o movimento

tropicalista na muacutesica popular O termo lsquonova muacutesicarsquo surgiu na deacutecada de 1990 na

Europa como contraposiccedilatildeo ao conceito de lsquomuacutesica novarsquo trata-se de muacutesicos que

absorvem diversas influecircncias e atuam em vaacuterias direccedilotildees natildeo pressupondo

qualquer identidade teoacuterica ou estiliacutestica entre si

Mesmo se eles satildeo muito diferentes e se tecircm personalidades e escrituras proacuteprias todos esses compositores se afastaram voluntariamente da corrente atonal da muacutesica contemporacircnea Eles sofreram diferentes influecircncias indo de muacutesicas natildeo-ocidentais ao jazz ao rock agrave muacutesica de variedades internacional passando pelo disco pelo funk ateacute a muacutesica techno e inclusive pelas generalidades de programas televisivos O que eles

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tecircm em comum eacute o fato de escutar o mundo sonoro que os envolve e que eacute o fundo musical de todos noacutes Eles tambeacutem tecircm uma filiaccedilatildeo direta a Stravinsky Eacute por isso que se pode separar a muacutesica lsquoeruditarsquo de hoje em duas grandes correntes A corrente lsquotonalrsquo consonante por opccedilatildeo pulsante e meloacutedica se situando em uma linha mais expressiva geralmente chamada de lsquoNova Muacutesicarsquo A corrente lsquoatonalrsquo caracterizada pela utilizaccedilatildeo quase sistemaacutetica de saltos de registro de assimetria riacutetmica e de dissonacircncias chamada tambeacutem de lsquomuacutesica contemporacircnearsquo (LELONG 1996 p 11)

Um dos movimentos de superaccedilatildeo do Modernismo que se pode colocar

como precursor dessa noccedilatildeo de lsquonova muacutesicarsquo eacute a lsquoNova Simplicidadersquo que teve

seu iniacutecio na deacutecada de 1970 com um grupo de compositores alematildees encabeccedilados

por Walter Zimmermann (1949) e Wolfgang Rihm (1952) Esses muacutesicos defendiam

a liberdade de escrita e a dissoluccedilatildeo do peso da Histoacuteria ndash que na sua opiniatildeo

engessava as praacuteticas vanguardistas ndash e preconizavam a absorccedilatildeo de experiecircncias

subjetivas de toda e qualquer natureza (vivecircncias impulsos emoccedilotildees preferecircncias

etc) que pudessem conduzir agrave produccedilatildeo de novos processos narrativos e agrave

depuraccedilatildeo dos meios empregados para a criaccedilatildeo musical Com essas intenccedilotildees

movimentaram-se na direccedilatildeo de estruturas mais elementares com gestos musicais

breves e texturas transparentes Entretanto os praticantes da Nova Simplicidade

natildeo se desviaram de configuraccedilotildees atonais apenas acrescentaram elementos de

caraacuteter tonal e deram vazatildeo a uma certa expressividade liacuterica em sua produccedilatildeo

Rihm em entrevista a Noreen e Cody comenta suas experiecircncias dos anos rsquo70 e

rsquo80

Eu sou um compositor intuitivo Mesmo se natildeo o fosse somente poderia escrever a minha proacutepria muacutesica Natildeo se pode criar arte com tabus Naturalmente somente quebrando tabus tambeacutem natildeo se faz arte Em ambos os casos o que surge satildeo objetos que [apenas] se parecem com arte [] De volta agraves triacuteades eu natildeo era de nenhuma maneira o uacutenico a empregaacute-las Talvez em minha muacutesica elas chocassem de forma mais provocativa provavelmente porque natildeo serviam ao propoacutesito de garantir lsquobelezarsquo mas eram empregadas no mesmo niacutevel que (quase) qualquer outra manifestaccedilatildeo sonora governadas por fluxos expressivos que natildeo poderiam ser inteiramente analisados de modo racional Isso era equivalente agrave alta traiccedilatildeo aos olhos dos modernistas (RIHM 2006 p 2)

Compositores que parecem seguir nessa mesma direccedilatildeo poreacutem com

interesses distintos satildeo os franceses Pascal Dusapin (1955) que trabalha com

misturas de elementos tonais e atonais carregados de forte lirismo e Reacutegis Campo

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(1968) cuja peccedila Commedia (1995) de escritura amplamente stravinskyana estaacute

organizada agrave base de muacuteltiplas linhas contrapontiacutesticas que se movimentam em

torno de uma melodia que se estende por quase quinze minutos

Outros grupos que tecircm sido bastante difundidos nos uacuteltimos anos satildeo

aqueles derivados do Minimalismo e que portanto empregam teacutecnicas de

organizaccedilatildeo repetitiva com base em um miacutenimo de elementos formadores de

processos sonoros Esses elementos baacutesicos ndash constituiacutedos de poucas notas

estrutura harmocircnica simples e riacutetmica perioacutedica ndash geralmente satildeo elaborados de

forma extremamente gradativa com a intenccedilatildeo de dar tempo agrave escuta Com isso

pretende-se dar ecircnfase aos processos perceptivos acima de qualquer princiacutepio

compositivo

O Minimalismo ortodoxo aquele dos anos 60 estava centrado em estruturas

ininterruptas fixas regulares e contiacutenuas no tempo Steve Reich partiu para suas

realizaccedilotildees mais peculiares da eacutepoca da experiecircncia de ouvir a mesma gravaccedilatildeo

reproduzida em dois aparelhos diferentes com rotaccedilotildees distintas o que gerou uma

defasagem gradual de tempo entre uma reproduccedilatildeo e outra O compositor declarou

[] enquanto eu ouvia esse processo gradual de mudanccedila de fase comecei a imaginar que esta seria uma forma extraordinaacuteria de estruturaccedilatildeo musical Esse processo afetou-me como um meio de alcanccedilar determinado nuacutemero de relaccedilotildees entre duas identidades sem nenhuma transiccedilatildeo Era um processo musical sem emenda ininterrupto (REICH apud SCHWARZ 1996 p 61)

Eacute interessante notar como esses princiacutepios de Reich e seus colegas

minimalistas da deacutecada de 1960 satildeo bastante lsquoformalistasrsquo para os muacutesicos mais

jovens e nesse sentido se assemelham aos valores vanguardistas da mesma

eacutepoca pois as preocupaccedilotildees com o processo com a estrutura ou com as teacutecnicas

de composiccedilatildeo estatildeo acima de qualquer outro aspecto envolvido na atividade

compositiva Por essa razatildeo essa fase do Minimalismo pode ser considerada como

sendo a uacuteltima manifestaccedilatildeo modernista pois mesmo que os processos de escuta

jaacute estivessem em evidecircncia o interesse principal estaacute na construccedilatildeo de estruturas

musicais abstratas Ao comparar a mentalidade de Reich da deacutecada de 1960 com

alguns comentaacuterios de John Adams (1947) um dos compositores mais destacados

da corrente atual a que alguns chamam de Poacutes-Minimalismo percebe-se que o

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ponto de vista deste estaacute descentrado do fazer e mais voltado para a absorccedilatildeo do

meio sonoro circundante

Eu sempre fui profundamente influenciado pelo rock pelo jazz e pela muacutesica pop Creio que eacute uma parte importante da experiecircncia de um norte-americano e penso que eacute a linha de demarcaccedilatildeo entre a velha geraccedilatildeo de compositores eruditos aqueles que nasceram antes da guerra e minha geraccedilatildeo ou a dos meus alunos Eacute por isso que natildeo tento me afastar dessa muacutesica nem tapar os ouvidos para ela Entretanto ao ler John Cage a gente nota que ele natildeo era sensiacutevel a essa muacutesica e ateacute mesmo a execrava Por minha parte eu gosto e ela influenciou bastante a minha proacutepria muacutesica (ADAMS 1996 p 20)

Ao contraacuterio do purismo muitas vezes pretendido pelos muacutesicos das deacutecadas

de 1950 e 1960 (que geralmente buscavam um estilo original sem admitir

ascendecircncias externas expliacutecitas pois essas influecircncias15 eram transformadas ateacute o

ponto em que se tornavam imperceptiacuteveis ou eram incorporadas em estruturas que

natildeo poderiam ser remetidas a outras realidades que a da proacutepria muacutesica em

questatildeo) vaacuterios compositores atuais estatildeo buscando a assimilaccedilatildeo expliacutecita de

diferentes fontes desde a muacutesica claacutessica europeia e a muacutesica tradicional de outras

culturas ateacute as diferentes manifestaccedilotildees populares e dos meios de comunicaccedilatildeo de

massa Adams eacute preciso a esse respeito

O que distingue minha muacutesica das outras eacute o fato de que ela eacute tatildeo lsquomiscigenadarsquo Se eu comparo minha muacutesica com a de Morton Feldman que eacute tatildeo pura a minha eacute uma espeacutecie de lsquogrande lixeirarsquo ali se encontra de tudo como em um grande lsquoensopadorsquo [] Cresci ao longo de um periacuteodo em que se podia escutar de tudo pois tudo estava registrado e isso vai continuar no proacuteximo milecircnio Eu costumo surfar na Internet todo o tempo e posso andar por tudo (ADAMS 1996 p 21)

Natildeo apenas Adams e os poacutes-minimalistas (que se diferenciam do

Minimalismo histoacuterico pela assimilaccedilatildeo expliacutecita de elementos exoacutegenos) como

tambeacutem outros muacutesicos das novas geraccedilotildees aproveitam influecircncias atraveacutes da

incorporaccedilatildeo de estilemas16 apropriados de diferentes tradiccedilotildees o que tambeacutem pode

15 O termo lsquoinfluecircnciarsquo foi tomado durante algum tempo como sendo depreciativo por indicar a ascendecircncia de determinado artista ou escola sobre outros Atualmente para os compositores das novas geraccedilotildees a ideia de ascendecircncia parece natildeo gerar constrangimento sendo inclusive um valor a ser aproveitado 16 lsquoEstilemarsquo eacute um termo apropriado da linguiacutestica empregado para designar traccedilos estiliacutesticos caracteriacutesticos de determinada obra escritor ou escola literaacuteria o que em muacutesica pode ser indicado

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incluir teacutecnicas de vanguarda Com isso esta muacutesica se torna mais corpoacuterea estaacute

vinculada agrave realidade circundante ou em outras palavras se faz mais mundana

Isso tambeacutem se deve agrave introduccedilatildeo de elementos de linguagens musicais

vernaculares consideradas como sendo parte da lsquofalarsquo cotidiana seja a muacutesica

autoacutectone ou a muacutesica tocada nos meios de comunicaccedilatildeo e que se torna com o

passar do tempo tatildeo absorvida pelas mentalidades que passa a ser entendida como

lsquolinguagem comumrsquo

Os chilenos Eduardo Caacuteceres (1954) e Aliosha Solovera (1963) tecircm

incorporado elementos de tradiccedilotildees locais em suas criaccedilotildees de caraacuteter

experimental Caacuteceres em sua peccedila Canciones ceremoniales para aprendiz de

machi para grupo vocal feminino aproveita textos em liacutengua mapudungum para

combinar diferentes ritmos apropriados dos iacutendios mapuches Na peccedila Ressonandes

(2002) para dez flautas cujo tiacutetulo alude agrave lsquoressonacircncia dos Andesrsquo Solovera busca

ldquoestabelecer um viacutenculo com a muacutesica das culturas preacute-colombianasrdquo atraveacutes da

experimentaccedilatildeo de sonoridades incomuns no instrumento Para o compositor ldquoa

flauta transversa se desliga de sua raiz cultural e eacute assumida em sua condiccedilatildeo mais

elementar como instrumento de soprordquo Eacute interessante notar nesse sentido o

paralelismo entre Ressonandes e a peccedila Nola (1994) para vaacuterias flautas e orquestra

de cordas do tajiquistanecircs Benjamin Yusupov (1962) que se refere agrave sua muacutesica da

seguinte maneira ldquoesta peccedila eacute uma busca de efeitos sonoros gerados pelas flautas

como se fossem instrumentos de cordas A combinaccedilatildeo com a muacutesica eacutetnica estaacute

associada a um certo esteticismo da muacutesica orientalrdquo Ambos aproveitam valores de

suas tradiccedilotildees locais para experimentar sonoridades inusuais em conjuntos de

flautas Solovera busca restituir o som elementar do sopro Yusupov tem o intuito de

fazer um instrumento de sopro soar como corda Apesar da similaridade conceptual

o resultado sonoro eacute bastante distinto

Em uma direccedilatildeo similar e com base em vivecircncias pessoais o colombiano

Angel Alfonso Rivera (1983) escreveu Quya-Killa (2013) para voz flauta percussatildeo

por padrotildees escalares contornos meloacutedicos figuraccedilotildees riacutetmicas encadeamentos harmocircnicos combinaccedilotildees instrumentais ou algum outro aspecto de qualquer natureza que identifique lsquoestilosrsquo ou lsquomaneirasrsquo

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(dois tom-tons maracas temple blocks prato suspenso) e piano A peccedila foi escrita a

partir da participaccedilatildeo em rituais e celebraccedilotildees indiacutegenas na Boliacutevia e no Peru dos

quais se destacam Pachamama (Ritual da Matildee Terra) Inti Raymi (Festa do Sol) e

Quya Raymi (Festa da Lua e da Fertilidade) A peccedila que eacute o resultado de

lembranccedilas afetivas desses rituais isto eacute os traccedilos que permanecem na memoacuteria

de forma pulsante e transformam a percepccedilatildeo do mundo estaacute organizada em trecircs

seccedilotildees derivadas das fases ritualpisticas Preparaccedilatildeo Oraccedilatildeo e Celebraccedilatildeo

Para o compositor

[] a muacutesica de culturas tribais gira em torno de um mundo proacuteprio com sonoridades que derivam do contorno da natureza dos animais e do proacuteprio homem As manifestaccedilotildees foneacuteticas os gestos e a miacutemica satildeo meios de comunicaccedilatildeo e neste contexto a muacutesica e a danccedila manifestam estreita relaccedilatildeo com os rituais e cerimocircnias [] Por se tratar de algo maacutegico e que possui caracteriacutesticas que podem ser aproveitadas na composiccedilatildeo considero que a imagem do ritual tem forte funccedilatildeo orientadora e organizacional sendo uma imagem que fundamenta e orienta os elementos do percurso criativo (RIVERA p 39-40)

Natildeo eacute necessaacuterio que o muacutesico esteja estreitamente vinculado a esta ou

agravequela tradiccedilatildeo para se sentir compelido a empregaacute-la em alguma obra O

compositor inglecircs Thomas Adegraves (1971) escreveu sua America a prophecy (1999)

para meio-soprano coro opcional e orquestra sinfocircnica para um projeto chamado

lsquoMensagens para o Milecircniorsquo promovido pela Orquestra Filarmocircnica de Nova Iorque

Interessante nesta peccedila eacute o fato de que o uacutenico texto em inglecircs eacute a traduccedilatildeo de um

fragmento da profecia maia que prenuncia o fim dos tempos os outros trechos

cantados na peccedila de Adegraves foram aproveitados de textos hispano-americanos Com

isso o compositor pretendia criar um mapa da Ameacuterica localizado ao Sul dos

Estados Unidos com o intuito de mostrar aos norte-americanos que eles natildeo foram

os primeiros americanos (escrito maia) como tambeacutem natildeo satildeo os uacutenicos

(fragmentos latino-americanos) Interessado pelas culturas preacute-colombianas e pelo

sincretismo cultural da Ameacuterica Latina atual o compositor disse em entrevista a

Tom Service que essa sua noccedilatildeo da Ameacuterica ldquocomeccedilou quando tive uma enorme

vista da piracircmide de Belize Havia aacutervores em todas as direccedilotildees Entretanto havia

estas pequenas saliecircncias que tambeacutem eram verdes e eram as antigas piracircmides

maiasrdquo (ADEgraveS apud FOX 2006 p 1) Outra representaccedilatildeo da Ameacuterica ocorreu-lhe a

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partir de um mapa surrealista publicado na revista belga Parietein em 1929 Essas

imagens aliadas aos textos escolhidos se tornaram o ponto de partida para a

estruturaccedilatildeo de America a prophecy

Outro exemplo agora no sentido da assimilaccedilatildeo dos meios de comunicaccedilatildeo

de massa em uma muacutesica de caraacuteter experimental eacute a peccedila de Michael Daugherty

(1954) intitulada Elvis Everywhere (1993) em que satildeo combinados cantores um

quarteto de cordas processos de manipulaccedilatildeo eletrocircnica dos sons e a voz de Elvis

Presley que funciona como uma espeacutecie de material unificador de todas as

sonoridades que acontecem ao longo da muacutesica

Natildeo posso escrever a miacutenima nota se natildeo tenho antes uma ideia Eacute geralmente um elemento visual um iacutedolo americano como Elvis um flamingo de plaacutestico cor-de-rosa ou ainda Jackie Kennedy que me evocam os sons [] Antes de compor Elvis Everywhere para o Quarteto Kronos assisti ao Congresso Internacional de Imitadores de Elvis onde ouvi cantar mais de duzentos Elvis Somente posso escrever muacutesica quando estou proacuteximo dela Seria difiacutecil transcrever musicalmente a poesia de Safo por exemplo Por outro lado assisti a todos os episoacutedios de Star Trek17 (DAUGHERTY 1996 p 105)

O que interessa para muitos artistas contemporacircneos eacute essa ruptura dos

limites daquilo que era tradicionalmente considerado como sendo lsquobom gostorsquo e lsquomau

gostorsquo lsquoarte e lsquoinduacutestria do entretenimentorsquo enfim todas as formas de dicotomia que

caracterizaram as correntes modernistas A intenccedilatildeo de superar essas dualidades

com uma atitude inclusiva em que as diferentes formas de manifestaccedilatildeo cultural

tecircm seu lugar na cultura contemporacircnea natildeo significa necessariamente aquela

postura ciacutenica do blaseacute que caracterizou o final do seacuteculo XX nas deacutecadas de 1980

e 1990 Ao contraacuterio estar aberto aos diferentes pontos de vista tambeacutem pode

significar assumir uma postura de caraacuteter pessoal poreacutem com o entendimento de

que esta eacute mais uma entre tantas possibilidades de conhecer a realidade e de se

relacionar com o mundo

Na busca de autonomia um grupo de compositores nova-iorquinos

encabeccedilados por Michael Gordon (1956) David Lang (1957) e Julia Wolfe (1958)

17 Essas consideraccedilotildees seriam impossiacuteveis se vindas de um compositor como Pierre Boulez por exemplo que consideraria essa assimilaccedilatildeo de elementos da cultura de massa como vulgarizaccedilatildeo da criaccedilatildeo musical

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criou o festival Bang on a Can e formou um grupo de cacircmara para divulgar sua

muacutesica e a de outros compositores de sua geraccedilatildeo18 Wolfe conta a origem do

festival em entrevista a Lelong

Noacutes queriacuteamos abalar as estruturas em Nova Iorque e ter um pretexto para tomarmos cafeacute da manhatilde juntos todos os dias Bang on a Can quase comeccedilou como uma brincadeira Noacutes chamamos assim ao primeiro festival porque pensamos que natildeo haveria outros mas terminou sendo um rastro de poacutelvora Muitas e muitas pessoas vieram no primeiro ano entre eles John Cage e Steve Reich Noacutes trabalhamos duramente para ampliar nosso puacuteblico para aleacutem do ciacuterculo dos amantes da Nova Muacutesica Fizemos nossa divulgaccedilatildeo bastante numerosa entre o puacuteblico de baleacute de teatro e de cinema Mesmo que o festival tenha se desenvolvido ainda se manteacutem a serviccedilo dos compositores com ideias novas com espiacuterito aventureiro O puacuteblico vem numeroso e entusiasmado a apresentaccedilatildeo eacute formidaacutevel descontraiacuteda o que tem o efeito de natildeo espantar a audiecircncia (WOLFE 1996 p 369-370)

O festival que existe desde 1987 se tornou um evento anual que conta com

um conjunto de cacircmara formado por solistas virtuoses o grupo Bang on a Can All-

Stars uma orquestra a Spit Orchestra gravaccedilotildees que satildeo lanccediladas em CD e

transmissotildees radiofocircnicas O grupo Bang on a Can All-Stars tem uma constituiccedilatildeo

heterogecircnea tanto do ponto de vista dos instrumentos que fazem parte do grupo

quanto da linha de atuaccedilatildeo de seus muacutesicos Formado por instrumentos como

piano saxofone clarinete violoncelo guitarra eleacutetrica baixo eleacutetrico e percussatildeo19 o

grupo se caracteriza pela mistura de sonoridades de muacutesica erudita muacutesica pop e

jazz A formaccedilatildeo e a praacutetica dos muacutesicos ndash que tocam em orquestras sinfocircnicas

tradicionais participam de shows ou concertos gravam discos de muacutesica pop e

tocam em bandas de jazz ndash possibilita trabalhar com repertoacuterios diversificados

Assim o grupo se propotildee a divulgar diferentes tipos de manifestaccedilatildeo musical da

contemporaneidade o que o difere de outros grupos ndash como por exemplo lsquoSteve

Reich and Musiciansrsquo lsquoMichael Nyman Bandrsquo ou lsquoPhilip Glass Ensemblersquo ndash que tecircm

em seu repertoacuterio somente a produccedilatildeo do proacuteprio compositor que daacute nome ao grupo

ou daqueles que estatildeo diretamente associados a ele

18 Essa praacutetica de criar o proacuteprio grupo musical jaacute havia sido praticada por muacutesicos como Steve Reich Philip Glass Louis Andriessen (1939) e Michael Nyman (1944) entre outros 19 Os muacutesicos do Bang on a Can All-Stars satildeo atualmente Vicky Chow teclados Ken Thomson sopros Ashley Bathgate violoncelo Mark Stewart guitarra eleacutetrica Robert Black contrabaixos David Cossin percussatildeo

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Percebe-se nessa postura comum a muitos muacutesicos atuais a busca pela

diferenccedila se tornando mais importante do que a pretensatildeo de identidade estiliacutestica

Esse aspecto resulta em outra caracteriacutestica difundida entre os compositores

contemporacircneos que se dedicam agrave investigaccedilatildeo de novos meacutetodos narrativos

Muitos compositores atuais tecircm formaccedilatildeo acadecircmica em aacutereas como linguiacutestica

letras comunicaccedilatildeo ou filosofia campos do conhecimento considerados como

sendo profiacutecuos para a criaccedilatildeo musical Vaacuterios compositores atuam como

professores universitaacuterios nessas aacutereas e desenvolvem seu trabalho criativo com

base nesse conhecimento mais do que em teacutecnicas tradicionais de composiccedilatildeo

Conhecem essas teacutecnicas mas preferem deixaacute-las em segundo plano no processo

criativo ndash o que difere de certas linhas vanguardistas das deacutecadas de 1950 e 1960

em que a invenccedilatildeo de novos processos de estruturaccedilatildeo e meacutetodos compositivos

estavam em primeiro plano

O compositor brasileiro Eduardo Seincman (1958) escreveu uma seacuterie

intitulada A Danccedila dos Duplos20 em que cada uma das cinco peccedilas que compotildeem o

ciclo destinada a uma formaccedilatildeo instrumental diferente foi concebida a partir de uma

experiecircncia extramusical A Danccedila de Dorian21 para piano a quatro matildeos foi escrita

a partir da leitura do romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde Esta peccedila

conteacutem diversos elementos que caracterizam a investigaccedilatildeo de novos processos

narrativos Excertos do texto de Wilde foram apostos agrave partitura para orientar os

muacutesicos sobre qual segmento do romance corresponde a cada uma das passagens

musicais O compositor chama a atenccedilatildeo no entanto para o fato de que natildeo se

trata de muacutesica programaacutetica pois sua intenccedilatildeo natildeo eacute produzir uma descriccedilatildeo

musical ipsis litteris da narrativa de Wilde mas criar uma narrativa paralela

estritamente musical e que natildeo se vincula diretamente agrave sequecircncia de episoacutedios do

20 A Danccedila dos Duplos eacute formada pelas seguintes peccedilas A Danccedila Misteriosa (1986 ldquopara um anjo que nasceraacuterdquo) para piano solo A Danccedila Luacutegubre (1987) para flauta contralto marimba e piano A Danccedila de Dorian (1988 ldquobaseada no romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilderdquo) para piano a quatro matildeos A Danccedila do Dibuk (1988 ldquobaseada na peccedila de teatro O Dibuk de Sch An-Skirdquo) para marimba vibrafone e glockenspiel A Uacuteltima Danccedila (1989 ldquoinspirada na leitura de O Cisne de Leonardo da Vincirdquo) para flauta contralto e dois vibrafones 21 Esta que foi a muacutesica tocada na Abertura do Simpoacutesio Agora Arte e Pensamento no dia 24 de outubro de 2006 pelas pianistas Carolina Avellar e Elaine Foltran

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romance Neste sentido tornam-se importantes as citaccedilotildees das obras musicais

apresentadas no texto nas cenas em que Dorian Gray toca piano ou assiste a um

concerto

Cria-se uma nova narratividade musical atraveacutes de uma sinestesia muacuteltipla

na audiccedilatildeo da obra A estrutura musical se desdobra como uma sequecircncia de

imagens (visuais taacuteteis auditivas e mesmo olfativas) que satildeo justapostas umas agraves

outras agraves vezes por meio de transiccedilotildees gradativas agraves vezes por meio de

interrupccedilotildees abruptas como cortes cinematograacuteficos Conforme a muacutesica se

aproxima do final vai-se tornando mais tensa e agitada criando a atmosfera para o

desfecho extraordinaacuterio (Dorian Gray natildeo envelhece porque eacute a figura pintada em

seu retrato que se torna mais velha) atraveacutes da precipitaccedilatildeo de uma cena na outra

com o propoacutesito de alterar o rumo dos acontecimentos de modo inesperado

Percebe-se nesse sentido uma espeacutecie de anaacutelogo musical daquilo a que

Aristoacuteteles chamaria de resoluccedilatildeo cataacutertica atraveacutes da lsquoperipeacuteteiarsquo (peripeacutecia) isto eacute

a incorporaccedilatildeo de encadeamentos imprevistos no decorrer da accedilatildeo com o sentido

de produzir alteraccedilotildees suacutebitas dos estados de humor Entre os tipos de narrativa

destacados por Aristoacuteteles (narrativa episoacutedica narrativa simples e narrativa

complexa) o filoacutesofo dava preferecircncia agrave narrativa complexa que produz expectativa

por meio do acuacutemulo de accedilotildees e pelo emprego de princiacutepios como a

verossimilhanccedila dessas accedilotildees a necessidade dos acontecimentos no curso da

histoacuteria o reconhecimento (descoberta) de uma situaccedilatildeo vivida poreacutem natildeo

compreendida anteriormente e o imprevisto produzido por novas situaccedilotildees

Peripeacutecia eacute uma viravolta das accedilotildees em sentido contraacuterio [] segundo a verossimilhanccedila ou necessidade [] O reconhecimento como a palavra mesma indica eacute a mudanccedila do desconhecimento ao conhecimento ou agrave amizade ou ao oacutedio das pessoas marcadas para a ventura ou desdita O mais belo reconhecimento eacute o que se daacute ao mesmo tempo em que uma peripeacutecia como aconteceu no Eacutedipo [] Nesse passo se verificam duas partes da faacutebula a peripeacutecia e o reconhecimento mas haacute uma terceira o pateacutetico [] O pateacutetico consiste numa accedilatildeo que produz destruiccedilatildeo ou sofrimento como mortes em cena dores cruciantes ferimentos e ocorrecircncias desse gecircnero (ARISTOacuteTELES 1997 p 30-31)

Naturalmente Aristoacuteteles natildeo exigia a concomitacircncia de todas essas linhas

narrativas para a produccedilatildeo de estados cataacuterticos que na trageacutedia antiga vinham

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geralmente associados agrave muacutesica Quando se escuta A Danccedila de Dorian de

Seincman poreacutem a impressatildeo que se tem eacute que todos esses processos se

acumulam nos trechos finais da peccedila produzindo vaacuterias camadas de expressatildeo que

extrapolam a significaccedilatildeo especificamente musical na direccedilatildeo de uma espeacutecie de

experiecircncia esteacutetica multissensorial geralmente possibilitada pela combinaccedilatildeo de

diferentes linguagens artiacutesticas (poesia teatro muacutesica artes visuais etc) Alguns

processos narrativos ou semacircnticos empregados se assemelham a formulaccedilotildees de

compositores romacircnticos como Robert Schumann (1810-1856) poreacutem a totalidade

do resultado seria algo impensaacutevel antes da concepccedilatildeo da muacutesica de Seincman

Outro compositor que se interessa pela criaccedilatildeo de sensaccedilotildees sinesteacutesicas eacute o

uzbequistanecircs Dimitri Yanov-Yanovski (1963) Segundo depoimento do compositor

sua muacutesica estaacute centrada na intenccedilatildeo de criar diferentes processos de estruturaccedilatildeo

do tempo musical atraveacutes da oposiccedilatildeo de duraccedilotildees heterogecircneas apresentadas

simultaneamente Esses meacutetodos produzem dois resultados distintos que se

complementam o efeito psicoloacutegico de contraccedilatildeo e distensatildeo do tempo e o

processo linguiacutestico de polifonia narrativa que eacute obtida pelo entrecruzamento de

muacuteltiplos significados (que podem ser musicais textuais dramaacuteticos ou plaacutesticos) A

investigaccedilatildeo de novos princiacutepios de comunicabilidade e a valorizaccedilatildeo do processo

musical por meio de meacutetodos repetitivos colocam Yanovski entre os compositores

atuais cujos trabalhos apresentam processos multidirecionais que resultam em

novas formas de produccedilatildeo e recepccedilatildeo musicais Tambeacutem nesse sentido vaacuterios

muacutesicos atuais se diferenciam das geraccedilotildees anteriores pois valorizam o ato de

recepccedilatildeo como sendo tatildeo ou mais importante do que as teacutecnicas de composiccedilatildeo

visto que entendem que estas devem estar a serviccedilo daqueles ndash o que conduz a

uma arte centrada nos processos esteacutesicos e nas possibilidades de interaccedilatildeo

comunicativa entre o compositor o inteacuterprete e o puacuteblico22

22 A avaliaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o compositor e o inteacuterprete eacute outro aspecto extremamente relevante nas discussotildees sobre a muacutesica contemporacircnea Nas tendecircncias vanguardistas em geral o compositor muitas vezes busca escrever uma ldquomuacutesica contra o instrumentordquo o que gera grandes dificuldades de execuccedilatildeo Brian Ferneyhough (1943) um dos mais importantes compositores da poacutes-vanguarda e partiacutecipe da Nova Complexidade (note-se o antagonismo com relaccedilatildeo agrave lsquoNova Simplicidadersquo) costuma dizer com intenccedilatildeo motivadora e polecircmica que escreve mais notas do que o muacutesico consegue tocar para que ele tenha que escolher entre as notas escritas e interferir no

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3 Traccedilos Gerais

Percebe-se com as reflexotildees apresentadas acima sobre aspectos da muacutesica

atual (e sempre lembrando que este ensaio aborda uma parcela da totalidade da

produccedilatildeo contemporacircnea) que vivemos em um periacuteodo em que haacute muacutesicos e

musicoacutelogos23 dedicados agrave investigaccedilatildeo de toda e qualquer produccedilatildeo musical seja

ela proacutexima ou distante geograficamente seja recente ou remota no tempo

Pesquisadores atuais dedicam-se inclusive agrave descoberta de processos e materiais

que natildeo satildeo condizentes com seu gosto pessoal pois o que importa eacute que toda e

qualquer parcela da produccedilatildeo humana estaacute aiacute para ser conhecida

independentemente agradar ou natildeo ao estudioso24

Assim quebram-se hierarquias seculares em que se considerava

determinada parcela da produccedilatildeo de alguma eacutepoca superior agraves outras ou se

entendia que determinada regiatildeo do planeta produz algo de maior importacircncia

cultural ou histoacuterica do que outras Essas posiccedilotildees etnocecircntricas ainda hoje

defendidas por alguns como o criacutetico literaacuterio Harold Bloom por exemplo satildeo

questionadas por natildeo serem condizentes com as infinitas possibilidades atuais de

acesso agrave informaccedilatildeo pois satildeo restritivas do ponto de vista do gosto no sentido em

que elevam opiniotildees meramente pessoais de seus autores agrave categoria de valor

universal

A postura abrangente de pensadores contemporacircneos como Michel Meyer

vem de encontro agravequeles pontos de vista exclusivistas em que se confunde lsquoopiniatildeorsquo

com lsquoconhecimentorsquo Para Meyer

[] cada um tem o direito de ser diferente de realizar sua diferenccedila contanto que a igualdade de direitos da [outra] pessoa seja respeitada

processo de criaccedilatildeo da obra de forma que cada nova interpretaccedilatildeo soaraacute diferente das demais Ferneyhough parece buscar resultados semelhantes aos de John Cage poreacutem pelo caminho inverso Essa discussatildeo poreacutem extrapola os limites deste ensaio 23 Vale esclarecer que se entende por musicoacutelogo aqui todo aquele profissional que se dedica agrave pesquisa em muacutesica seja atraveacutes da musicologia histoacuterica musicologia sistemaacutetica ou etnomusicologia da anaacutelise musical psicologia da muacutesica criacutetica musical ou da esteacutetica musical entre outras Sendo assim musicologia eacute entendida como sendo a aacuterea que engloba todos os campos teoacutericos do saber musical 24 Um bom exemplo neste sentido eacute a incansaacutevel pesquisa sobre o Neoclassicismo francecircs realizada

por Michel Faure musicoacutelogo que se posiciona antagonicamente com relaccedilatildeo agravequela tendecircncia esteacutetico-musical

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Inversamente a universalidade eacute imperativa mas natildeo pode secirc-lo em detrimento das diferenccedilas que constituiacutemos e que nos faz ser [aquilo que somos] Cada um tem o direito agrave sua histoacuteria e o dever de cada um eacute respeitar esse direito nos outros A universalidade sem diferenccedila eacute tatildeo totalitaacuteria quanto a diferenccedila sem universalidade (MEYER 2000 p 148)

Tem-se assim uma nova postura criacutetica (que tambeacutem pode ser denominada

metacriacutetica) a qual propotildee que ao exercitar a criacutetica se inicie fazendo criacutetica aos

proacuteprios valores pessoais e inclusive agraves possibilidades de exerciacutecio da criacutetica no

domiacutenio de determinados contextos Isso aplicado ao campo da muacutesica que eacute uma

arte e natildeo uma ciecircncia exata leva agrave abertura de novas perspectivas e ao

entendimento de que os pontos de vista dos outros tecircm tanto direito agrave existecircncia

quanto os nossos Isso natildeo significa igualdade de criteacuterios mas igualdade de direito

pois pode haver diferenccedilas na qualidade dos valores sendo que alguns princiacutepios

podem estar mais fundamentados do que outros O que faz levar em consideraccedilatildeo

que em qualquer sistema de valores os criteacuterios apropriados para sua avaliaccedilatildeo

estatildeo no exame de sua estrutura loacutegica interna entrecruzada com sua adequaccedilatildeo agrave

realidade Entretanto nem mesmo a argumentaccedilatildeo mais sistematizada e bem

fundamentada eacute garantia de excelecircncia em se tratando de arte pois esta eacute uma

aacuterea onde os criteacuterios satildeo qualitativos e portanto natildeo podem ser quantizados ndash e jaacute

houve quem (como Max Bense) se esforccedilou em mensurar matematicamente a arte

poreacutem em nenhum caso se alcanccedilou um resultado considerado minimamente

satisfatoacuterio junto agrave comunidade artiacutestica

Quando o muacutesico se torna mais receptivo agraves diferentes opiniotildees que circulam

no campo da esteacutetica musical percebe tambeacutem que diferentes processos musicais

podem ser combinados em uma uacutenica peccedila de muacutesica natildeo importando onde ou

quando esses processos se originaram Essas fontes podem ser justapostas uma

apoacutes a outra na sequecircncia de eventos sonoros assim como podem ser sobrepostas

em um uacutenico momento do tempo musical Isso depende de vaacuterios fatores muitos

deles ligados aos anseios do proacuteprio artista Tambeacutem se abrem novas possibilidades

de significaccedilatildeo atraveacutes da muacutesica que natildeo permanece restrita a valores

exclusivamente teacutecnicos ou formais Por outro lado a teacutecnica e a forma sempre

poderatildeo ser incorporadas em situaccedilotildees musicais de iacutendole mais ampla do que a

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mera oposiccedilatildeo dicotocircmica entre lsquomodernorsquo e lsquopoacutes-modernorsquo lsquomuacutesica novarsquo e lsquonova

muacutesicarsquo ou entre lsquopreferecircncia pela forma e pela teacutecnicarsquo e lsquopreferecircncia pelo conteuacutedo

e pelas estruturas narrativasrsquo Para o compositor italiano Luca Lombardi (1945)

ldquouma filosofia da nova muacutesica escrita hoje natildeo poderia dividir de maneira

maniqueiacutesta o mundo em [] progressistas e reacionaacuterios mas deveria dar conta da

multipolaridade da situaccedilatildeo atual A realidade ndash e natildeo somente a realidade musical ndash

eacute complexa contraditoacuteria e consequentemente ndash para exprimir em termos positivos ndash

ricardquo (Lombardi apud MICHEL 1998 p 104)

A tradiccedilatildeo natildeo eacute mais entendida como sistema fechado em que determinada

interpretaccedilatildeo se torna lsquoa explicaccedilatildeorsquo dos fatos mas tambeacutem satildeo valorizadas as

reaccedilotildees pessoais particularizadas e mesmo idiossincraacuteticas Tambeacutem se torna

problemaacutetico asseverar algo sobre lsquoa tradiccedilatildeorsquo sendo que se reconhece a

simultaneidade de inuacutemeras lsquotradiccedilotildeesrsquo algumas complementares entre si outras

antagocircnicas mas todas com igual direito agrave existecircncia A identidade passa pela

diferenccedila entre um e outro e essa diferenccedila passa pela universalidade dos valores

que podem reconhecer a diferenccedila de um no outro assim como a identidade de

cada um somente pode ser reconhecida quando se tem conhecimento da

universalidade relativa (ou contextual) de cada uma das partes constituintes do todo

identitaacuterio25 A valorizaccedilatildeo da diferenccedila pode conduzir agrave aceitaccedilatildeo da multiplicidade

das praacuteticas musicais seus materiais acuacutesticos suas teacutecnicas seus processos de

elaboraccedilatildeo seus significados intriacutensecos e extriacutensecos suas praacuteticas e seus

valores pois ldquoo conteuacutedo eacute em suma a teoria que daacute significado agrave muacutesicardquo

(BUCKINX 1998 p 91)

Como resultado tecircm-se alcanccedilado novas funcionalidades no campo musical

isto eacute descobrem-se novas possibilidades de uso ou aplicaccedilatildeo da muacutesica que

correspondem agraves necessidades das novas geraccedilotildees A diversidade de funccedilotildees

musicais que se disseminaram desde a Antiguidade foi-se tornando cada vez mais

restrita nos uacuteltimos anos do seacuteculo XX periacuteodo em que alguns dividiam as funccedilotildees

em apenas lsquomuacutesica de concertorsquo e lsquomuacutesica de entretenimentorsquo reforccedilando outra

25 Pluralia tantum mesmo o singular eacute plural

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dicotomia com caraacuteter de preconceito social Nos uacuteltimos anos outras funccedilotildees tecircm

sido observadas como a funccedilatildeo de aglutinaccedilatildeo social comum nas tribos indiacutegenas

que necessitavam da uniatildeo grupal para garantir a sobrevivecircncia Quando se pratica

muacutesica como interferecircncia urbana se traz um grande contingente de pessoas para

uma praccedila puacuteblica e se as oferece experiecircncias que se diferenciam do lugar-comum

estaacute-se recuperando aquela praacutetica de aglutinaccedilatildeo social

Quando o compositor estoniano Arvo Paumlrt (1935) busca sonoridades

medievais e orientais em combinaccedilatildeo com as siacutenteses operadas pelo Minimalismo

para expressar seus valores miacutesticos de caraacuteter ecumecircnico em uma peccedila como

Summa (1977) estaacute retomando a funccedilatildeo congregacional da muacutesica anteriormente

mantida somente no acircmbito dos templos religiosos A muacutesica de Paumlrt eacute tocada tanto

em rituais religiosos como em salas de concerto e em manifestaccedilotildees puacuteblicas ao ar

livre

Outra funccedilatildeo que estaacute sendo redescoberta por muacutesicos eruditos

contemporacircneos eacute a muacutesica de diversatildeo Cabe uma distinccedilatildeo importante entre os

termos lsquodivertirrsquo e lsquodistrairrsquo Divertir na acepccedilatildeo empregada aqui significa lsquoseparar-

se ser diferente divergirrsquo Assim a funccedilatildeo de divertir pode ser compreendida em

um sentido metacriacutetico como divergecircncia em relaccedilatildeo ao estado de coisas

dominante Distrair significa lsquorasgar vender a retalhorsquo tambeacutem pode ser entendido

como lsquodesviar ardilosamente a atenccedilatildeo do adversaacuterio para fazecirc-lo cometer errosrsquo e

nesse sentido o termo pode se adequar agravequelas experiecircncias que conduzem ao

alheamento da proacutepria condiccedilatildeo da condiccedilatildeo do outro e da realidade circundante

Depreendido desse modo surge outra noccedilatildeo do conceito de lsquomuacutesica de diversatildeorsquo

que pode ser tomada como uma nova funcionalidade da muacutesica que se apotildee ao

estado de distraccedilatildeo

Exemplo recente nesse sentido eacute a Revoluccedilatildeo Laranja na Ucracircnia em

2005 em que a populaccedilatildeo das grandes cidades foi agraves ruas vestindo laranja a cor

da oposiccedilatildeo para protestar contra as fraudes eleitorais que mantinham o primeiro-

ministro Viktor Yanukovich no poder Vaacuterios grupos musicais tocando jazz muacutesica

pop muacutesica folcloacuterica ou muacutesica claacutessica se revezavam para manter a praccedila de Kiev

repleta de muacutesica vinte e quatro horas por dia No Brasil atual em novembro de

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2016 um grupo de estudantes permaneceu danccedilando em frente agrave universidade em

Curitiba por um dia inteiro em protesto agrave PEC 24155 Como estavam em uma zona

residencial para natildeo fazer barulho em respeito aos moradores cada um deles

portava seus proacuteprios fones de ouvido e danccedilavam embalados pelas muacutesicas que

lhes agradavam Vaacuterias muacutesicas ao mesmo tempo Cada um na sua Seu slogan

ldquo20 horas em movimento contra 20 anos de congelamentordquo

Post-Scriptum Presumir que os compositores das novas geraccedilotildees

permaneccedilam escrevendo muacutesica da mesma maneira que os muacutesicos de geraccedilotildees

anteriores seria o mesmo que esperar que estes continuassem fazendo muacutesica

como seus antepassados Se forem tomados intervalos de aproximadamente meio

seacuteculo pode-se considerar que pretender que Thomas Adegraves (1971) continue a

escrever muacutesica como Pierre Boulez (1925) seria o mesmo que supor que Boulez

continuaria a pensar muacutesica da mesma forma que Arnold Schoenberg (1874-1951)

que Schoenberg ter-se-ia mantido na mesma linha de investigaccedilatildeo que Anton

Bruckner (1824-1896) que Bruckner natildeo poderia ter concebido muacutesica diferente de

Ludwig van Beethoven (1770-1827) que teria seguido na linha de Niccolograve Piccinini

(1728-1800) o qual permaneceria pensando como Antonio Vivaldi (1678-1741)

Segundo esse raciociacutenio Adegraves apenas escreveria autecircnticos concertos barrocos (o

que eacute uma hipoacutetese no miacutenimo intrigante)

O quadro abaixo sintetiza as principais caracteriacutesticas da muacutesica

contemporacircnea de acordo com as acepccedilotildees discutidas neste ensaio

ACEPCcedilOtildeES REFERENCIAIS ATITUDES PROCEDIMENTOS VALORES RESULTADOS 1 Continuidade da Modernidade

1 Liquidaccedilatildeo dos Sistemas Totalizantes (Modal Tonal Serial)

1 Experimentalismo (expansatildeo das possibilidades teacutecnicas compositivas e instrumentais)

1 Poacutes-Vanguarda 2 Espectralismo 3 Nova Complexidade

1 Arte Especulativa 2 Diversidade Contextual (cada momento no tempo dirige-se a vaacuterios pontos do espaccedilo)

1 Criaccedilatildeo de estruturas inovadoras 2 Espacializaccedilatildeo do tempo 3 Arte poeacutetico-centrada (importa a criaccedilatildeo)

2 Retorno agrave Tradiccedilatildeo

2 Criacutetica ao Historicismo e ao Determinismo

2 Retorno ao passado (alguma eacutepoca em algum

4 Tendecircncias restauradoras (reutilizaccedilatildeo de

3 Apropriaccedilatildeo do Legado

4 Permanecircncia do passado em um presente

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Histoacuterico lugar) processos tradicionais Neomodalismo Neotonalismo etc) 5 Retorno agrave melodia ao contraponto e agrave harmonia

Histoacuterico transformado 5 Evidecircncia de procedimentos eou estilemas oriundos de tradiccedilotildees culturais variadas

3 Superaccedilatildeo do Modernismo

3 Questionamento das vanguardas do Estruturalismo e das tendecircncias formalistas (importam todos os aspectos da produccedilatildeo e recepccedilatildeo artiacutesticas e natildeo apenas seu niacutevel imanente)

3 Novos processos de comunicabilidade

6 Meacutetodos repetitivos (Poacutes-Minimalismo) 7 Nova Simplicidade 8 Apropriaccedilatildeo de Linguagens (folclore popular urbana pop etc)

4Valorizaccedilatildeo do Processo 5 Pluralidade e identidade pulverizada (quebra de conceitos como a unidade estiliacutestica e a distinccedilatildeo de gecircneros)

6 Nova Narratividade 7 Hibridismo Estiliacutestico 8 Arte esteacutesico-centrada (importa a recepccedilatildeo)

4 Traccedilos Gerais

4 Investigaccedilatildeo de toda e qualquer produccedilatildeo musical independente de eacutepoca ou lugar

4 Metacriacutetica como criacutetica ao Criticismo convencional

9 Poliestiliacutestica (citaccedilatildeo alusatildeo colagem) 10 Multiculturalismo (justaposiccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo de processos musicais oriundos de diferentes fontes)

6 Valorizaccedilatildeo da Diferenccedila (importam reaccedilotildees peculiares a aspectos especiacuteficos da tradiccedilatildeo e natildeo a lsquoTradiccedilatildeorsquo como lsquoSistemarsquo)

9 Multidirecionalidade na produccedilatildeo e na recepccedilatildeo musicais 10 Novas funcionalidades do fazer musical

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Montenegro ano 16 n 32 p 52-94 juldez 2016 Disponiacutevel em

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RAMAUT-CHEVASSUS Beatrice Musique et postmoderniteacute Paris PUF 1998 RATNER Leonard Classic music ndash expression form and style New York Schirmer 1980 RIHM Wolfgang Wolfgang Rihm in conversation with Kirk Noreen and Joshua Cody Disponiacutevel emlthttpwwwsospesocomcontentsarticlesrihm_p2htmlgt Acessado em 24 de janeiro de 2006 RIVERA BAQUERO Angel Alfonso Imagem um ponto de partida para a organizaccedilatildeo estrutural e formal no processo composicional Memorial de Mestrado Porto Alegre UFRGS 2014 ROCHBERG George THE key that will open CD George Rochberg Symphony Nordm 5 Black Sounds Transcendental Variations Saarbruumlcken Radio Symphony Orchestra Christopher Lyndon-Gee Naxos 2003 1 disco compacto (6103 min) digital esteacutereo 8559115 SCHNITTKE Alfred Les tendances polyestilistiques dans la musique moderne Analyse Musicale Paris n 33 nov 1998 p 132-134 SCHOENBERG Arnold Style and Idea Berkeley University of California 1975 SCHWARZ Robert Minimalists London Phaidon 1996 SOURIAU Eacutetienne Vocabulaire drsquoestheacutetique Paris PUF 1999 STRAVINSKY Igor Poeacutetica musical Madrid Taurus 1986 WALKER John A A arte desde o pop Rio de Janeiro Labor 1977 WOLFE Julia Interview In LELONG Steacutephane (Org) Nouvelle musique Paris Balland 1996

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VALLE Lutiere Dalla Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens

fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 95-108 juldez 2016

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Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das

imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente

Lutiere Dalla Valle1

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

Resumo O objetivo neste texto eacute abordar o cinema enquanto dispositivodisparador para a formaccedilatildeo docente compreendendo-o como artefato produzido pela cultura que produz formas de ver e ser visto Neste iacutenterim subsidiado por experiecircncias de aprendizagem no contexto da formaccedilatildeo docente respaldado pela abordagem narrativa e perspectiva da cultura visual busca-se estabelecer relaccedilotildees entre arte e subjetividade no que tange agraves construccedilotildees sociais histoacutericasculturais e ideoloacutegicas presentes nas visualidades veiculadas pela cinematografia Para tanto explora-se o conceito edu(vo)cativo atribuiacutedo ao cinema que compreende os aspectos educativo evocativo e cativo que envolvem a aprendizagem mediada pelas visualidades Palavras-chave Potecircncia Edu(vo)cativa cinema formaccedilatildeo docente Abstract The objective of this text is to approach the film as device for teacher training understanding it as an artifact produced by the culture that produces ways of seeing and being seen In the interim subsidized by learning experiences in the context of teacher training supported by the narrative approach and perspective of visual culture we seek to establish relationships between art and subjectivity in relation to social historical cultural and ideological constructions present in visualities conveyed by cinematography So it explores the concept edu(vo)cational attributed to the film comprising the educational evocative and captive aspects involving learning mediated visualities Key-words Edu(vo)cational power movies images teacher training

1 Doutor em Artes Visuais e Educaccedilatildeo (Universidad de BarcelonaES 2012) Mestre em Educacioacuten y Artes Visuales un Enfoque Construccionista (Universitat de Barcelona EspanhaUB 2009) Mestre em Educaccedilatildeo pela Universidade Federal de Santa Maria (CEPPGEUFSM2008) Linha de Pesquisa Educaccedilatildeo e Artes Possui Especializaccedilatildeo em Arte e Visualidade pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) Licenciatura Plena em Desenho e Plaacutestica (Universidade Federal de Santa Maria2003) Bacharelado em Desenho e Plaacutestica (Universidade Federal de Santa Maria2002) Atualmente atua como Coordenador do Curso de Artes Visuais - Licenciatura e Bacharelado DAVCALUFSM professor adjunto no Departamento de Artes Visuais CALUFSM tambeacutem no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes VisuaisPPGART - Linha de Pesquisa Arte e Cultura e nos Cursos de Graduaccedilatildeo Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais Co-orienta no Doutorado em Educaccedilatildeo Linha de Educaccedilatildeo e Artes do CEUFSM Investiga as relaccedilotildees entre Artes Visuais e Cultura Visual relacionado agrave formaccedilatildeo de artistas e professores de artes visuais Tem experiecircncia na aacuterea de artes visuais com ecircnfase em entornos educativos LiacutederCoordenador dos seguintes Grupos de Pesquisa e Extensatildeo Grupo de Estudos e Pesquisas Artes Visuais e IMediaccedilotildees (AVICALUFSM) Nuacutecleo Educativo Claacuteudio Carriconde (NECCA CALUFSM) Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte e Medicina (GEPAMCALUFSM) Grupo de Estudos Cinema e Educaccedilatildeo (GECED) Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Contemporacircnea e Educaccedilatildeo da Cultura Visual Pegadogias Culturais na alfabetizaccedilatildeo infantil Rota das Esculturas e Pintura Mural no Campus (DAVUFSM) Membro pesquisador do GEPAEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Educaccedilatildeo e Cultura UFSM Linhas de Interesse e Investigaccedilatildeo Formaccedilatildeo de Professores Estudos da Cultura Visual Estudos sobre Cinema e Educaccedilatildeo Formaccedilatildeo de Artistas Agentes Culturais e Processos de Mediaccedilatildeo em Espaccedilos Expositivos Formais e Natildeo-Formais Contato lutieredallavallenetbr

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Introduccedilatildeo

Os seres humanos natildeo terminam em sua proacutepria pele satildeo expressatildeo da cultura Considerar o mundo como um fluxo indiferente da informaccedilatildeo que eacute processada pelos indiviacuteduos cada um atuando agrave sua maneira supotildee perder

de vista como se formam os indiviacuteduos e como funcionam Ou para citar novamente Geertz lsquonatildeo existe uma natureza humana independente da

culturarsquo (BRUNER 1991 28)

Diaacutelogos entre cinema e educaccedilatildeo tecircm sido recorrentes em nossos contextos

educativos O uso do cinema como um ponto de partida para desenvolver projetos

educativos - sobretudo nos uacuteltimos dez anos no contexto nacional - tem assinalado

variadas experimentaccedilotildees publicaccedilotildees a partir de agrupamentos de textos

produzidos em grupos de pesquisa ensaios atravessamentos diversos em que o

cinema constitui-se fio condutor eou mote reflexivo para desencadear escritas

narrativas dissertaccedilotildees e teses de doutorado em Educaccedilatildeo e aacutereas afins Talvez

resultado do vasto processo de contaminaccedilatildeo eou proliferaccedilatildeo de imagens oriundas

das mais diversas fontes que suscitam possibilidades educativas e favorecem

experiecircncias de aprendizagens significativas mediadas por pedagogias culturais

articulando desta maneira tentativas curiosas em abordar a cinematografia a partir

de acircngulos e enquadramentos diversos em que satildeo apresentadas distintas formas

de ver e ser visto pelas visualidades

Haacute experimentaccedilotildees que apostam em praacuteticas educativas embasadas pela

criacutetica pela produccedilatildeo criativa e emancipatoacuteria transitando entre campos que

articulam conceitos e contextos plurais de produccedilatildeo de significados Por outro lado

eacute recorrente tambeacutem a tentativa de pedagogizar o cinema seguindo um receituaacuterio

de como fazer como ver e o que ver nos filmes

Diante destas consideraccedilotildees adianto que neste texto proponho pensar e

articular o cinema de modo relacional afetivo muacuteltiplo em devir algo que natildeo estaacute

pronto onde existem infinitas probabilidades de aproximaccedilatildeo e diaacutelogo

configurando-se tambeacutem como dispositivo edu(vo)cativo ponto de partida um

comeccedilo isento da intenccedilatildeo de prescrever um meacutetodo a ser implementado

Igualmente refletir sobre o que podemos aprender coma partir das imagens

produzidas pelo cinema e como as experiecircncias de aprender podem ser

potencializadas a partir dos filmes isto eacute investigar como o cinema pode configurar-

se edu(vo)cativo na formaccedilatildeo docente

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A Potecircncia Edu(vo)cativa das imagens fiacutelmicas

Toda voz individual como nos mostra Bajtin estaacute abstraiacuteda de um diaacutelogo

(BRUNER 1991 14)

Edu(vo)cativo origina-se da junccedilatildeo de trecircs palavras educativo evocativo

cativo2 eacute desta forma que nos aproximamos do cinema na busca por propor uma

justaposiccedilatildeo com a imagem fiacutelmica em que sejam articuladas as relaccedilotildees de

aprendizagem potencializadas a partir de sua visualizaccedilatildeo Igualmente tendo em

vista que as imagens em movimento carregam particularidades especiacuteficas de sua

natureza visualafetiva a ideia eacute pensar que o cinema natildeo poderia ser conjecturado

dentro de uma uacutenica estrutura linguiacutestica agrave qual nos vinculamos em nossos

contextos culturais geograacuteficos e temporais pois amplia os campos da percepccedilatildeo

abrindo-se mais para a experimentaccedilatildeo subjetiva do que a uma compreensatildeo

formal de significaccedilatildeo previamente apreendida Da mesma forma discursivamente

constitui-se potecircncia simboacutelica recheada de elementos oriundos de imaginaacuterios

coletivos nos quais ancoramos nossas percepccedilotildees mais iacutentimas assim como os

imaginaacuterios produzidos pelas culturas

Neste contexto entendemos o cinema como artefato educativo pois nos

ensina modos de ver e sermos vistos de ser e estar envolvendo tudo o que

potencializa visotildees de mundo de construccedilatildeo e legitimaccedilatildeo de concepccedilotildees de

mundo eacute tambeacutem evocativo pois diz respeito agraves percepccedilotildees que envolvem a

memoacuteria agravequilo que permanece como referencial anterior e que em relaccedilatildeo com as

novas conexotildees pode reconfigurar-se estabelecer novasoutras conexotildees

2 O Conceito Edu(vo)cativo vem sendo pensado no Grupo de Estudos e Pesquisas Cinema e Educaccedilatildeo (GECEDCNPq) O GECED configura-se a partir do cinema como mobilizador de aprendizagens em variados acircmbitos e contextos educativos formais e natildeo formais de ensino onde cada membro propotildee um enfoque particular em relaccedilatildeo ao cinema e um enfoque de pesquisa Desta forma haacute pesquisas que relacionam diferentes abordagens tais como cinema e gecircnero cinema e subjetividade cinema e infacircncia cinema e educaccedilatildeo cinema e formaccedilatildeo docente O marco teoacuterico-metodoloacutegico respalda-se pela perspectiva educativa da cultura visual e pedagogias culturais amparado por autores como Fernando Hernaacutendez Nicholas Mirzoef David Darts Raimundo Martins Irene Tourinho acerca dos Modos de Endereccedilamento com a obra de Elizabeth Ellsworth acerca do cinema e educaccedilatildeo Adriana Fresquet dentre outros No que diz respeito agraves construccedilotildees sociaisculturais e ideoloacutegicas bem como satildeo produzidos os significados Jerome Bruner e Kenneth Gergen consistem nas principais referecircncias

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produzindo outras vias traz agrave tona movimenta do interno para o externo emerge

faz surgir E por fim o termo cativo busca estabelecer relaccedilotildees com aquilo que

seduz que aprisiona que deteacutem atenccedilatildeo que afeta que domina um filme natildeo

apenas mobiliza mas evoca potencializa educa constroacutei legitima instrui

Pensando o cinema a partir da conjunccedilatildeo leacutexica proposta agrave luz da

perspectiva educativa dos estudos da cultura visual podemos dizer que este

mobiliza formas de compreensatildeo que talvez natildeo sejam possiacuteveis de outra ordem

Os atravessamentos que o cinema estabelece com espectadores envolve

conhecimento da linguagem mobilizaccedilatildeo de conceitos e imagens previamente

apreendidas configurando-se no plano sensorial sonoro visual da accedilatildeo que

materializa-se em seu tempo de visualizaccedilatildeo a partir de um entre e sucessivos

momentos Nas palavras de Adriana Fresquet

[] de fato o cinema nos oferece uma janela pela qual podemos nos assomar ao mundo para ver o que estaacute laacute fora distante no espaccedilo ou no tempo para ver o que natildeo conseguimos ver com nossos proacuteprios olhos de modo direto Ao mesmo tempo essa janela vira espelho e nos permite fazer longas viagens para o interior tatildeo ou mais distante de nosso conhecimento imediato e possiacutevel (2013 p 19)

Para Fresquet ldquoa tela de cinema (ou do visor da cacircmera) se instaura como

uma nova forma de membrana para permear um outro modo de comunicaccedilatildeo com o

outrordquo (2013 p 19) Ou seja os sistemas de representaccedilatildeo criados e veiculados

pelas produccedilotildees cinematograacuteficas ativam e potencializam imaginaacuterios ao dar forma

agravequilo que antes de se tornar visualmente comumcotidiano era apenas mundo das

ideias A partir do cinema o imaginaacuterio visual ganhou forma ritmo movimento e voz

As visualidades adquiriram o status de imagempensamento tendo em vista que

articulam em noacutes uma multiplicidade de relaccedilotildees construccedilotildees definiccedilotildees e

conceitos que soacute satildeo possiacuteveis atraveacutes daquilo que os olhos captam e formulam

mentalmente

Quando vemos uma imagem objeto ou artefato recorremos agraves informaccedilotildees gerais eou ao conhecimento especiacutefico que possuiacutemos Recorremos a haacutebitos valores referecircncias e contexto para dar sentidosignificado ao que vemos Cada indiviacuteduo utiliza suas informaccedilotildees conhecimento haacutebitos e referecircncias para estruturar e dar sentido agraves coisas que visualiza valorizando-as diferentemente negociando seus significados de acordo com o contexto sua trajetoacuteria cultural e seus interesses (MARTINS TOURINHO 2011 p 54-55)

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No contexto educativo torna-se edu(vo)cativo uma vez que haacute uma

multiplicidade de caminhos de natureza relacional os quais mobilizamos durante um

processo interpretativo ndash seja ele no campo da arte ou da educaccedilatildeo da ciecircncia ou

da sociologia Portanto aprender com a partir do cinema implica abandonar a ideia

de um uacutenico caminho a ser seguido de forma riacutegida pois sugere estabelecer

relaccedilotildees Diante de infinitas possibilidades de abordagem ndash principalmente tendo em

vista a presenccedila constante de representaccedilotildees visuais oriundas de diversas fontes ndash

o desafio de fugir das concepccedilotildees estereotipadas de uso do cinema em sala de aula

propunha reinventaacute-las atraveacutes de praacuteticas investigativas experimentais movediccedilas

questionadoras comeccedilando pelo exerciacutecio de reconhecer a potencialidade

narrativaevocativa dos filmes O que pode um filme Como abordaacute-lo enquanto

potecircncia agrave aprendizagem

Neste iacutenterim noccedilotildees de identidade e subjetividade examinadas (re)vistas

compreendidas e articuladas a partir da perspectiva educativa da cultura visual nos

oferecem pistas e tambeacutem evidecircncias para interrogarmos a sua construccedilatildeo e

tambeacutem os estereoacutetipos que contribuem para definir condutas delinear posiccedilotildees

hieraacuterquicas e legitimar papeacuteis sociais sobretudo no que tange agrave construccedilatildeo da

docecircncia O olhar produzido pela cinematografia hollywoodiana ndash de maior difusatildeo

em nossa cultura ndash que se constitui forte veiacuteculo de construccedilatildeo e produccedilatildeo de

identidades (natildeo apenas as identidades docentes) revisitado pode desencadear

processos de questionamento e reelaboraccedilatildeo pois como argumenta Fernando

Hernaacutendez

Os estudos da Cultura Visual nos permitem a aproximaccedilatildeo com essas novas realidades a partir de uma perspectiva de reconstruccedilatildeo das proacuteprias referecircncias culturais e das maneiras de as crianccedilas jovens famiacutelias e educadores olharem (-se) e serem olhados Reconstruccedilatildeo natildeo somente de caraacuteter histoacuterico mas a partir do momento presente mediante o trabalho de campo ou a anaacutelise e a criaccedilatildeo de textos e imagens Reconstruccedilatildeo que daacute ecircnfase agrave funccedilatildeo mediadora das subjetividades e das relaccedilotildees agraves formas de representaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo de novos saberes acerca destas realidades (HERNAacuteNDEZ 2007 37)

Tomando como ponto de partida o argumento do autor em favor da

perspectiva educativa da cultura visual as produccedilotildees fiacutelmicas nos conferem uacutenicas

ou infinitas visotildees de mundo de ser de estar e atuar nas mais variadas situaccedilotildees

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cotidianas Natildeo apenas aprendemos a olhar e compreender as narrativas visuais

desde a infacircncia mas tambeacutem nossas formas de ver passam a ser articuladas a

partir do lugar que ocupamos ndash social cultural histoacuterico Natildeo apenas visualizamos

uma narrativa decodificando a sequecircncia de imagens mas reconstruiacutemos e

recontamos internamente a partir daquilo que compreendemos da visualidade

daquilo que apreendemos Portanto enquanto dispositivo do olhar o cinema pode

contribuir para desvelar imagens assim como pensar sobre quequais lugares

ocupam dentro dos imaginaacuterios coletivos e quais satildeo as possibilidades de

transgredi-los em favor de articulaccedilotildees mais subjetivas autorais e inclusivas

Problematizar o cinema (no sentido de pensar o que evocaprovocamobiliza)

sugere praacuteticas de desnaturalizaccedilatildeo do olhar e especial atenccedilatildeo agraves contingecircncias

que delineiam nossas relaccedilotildees com o mundo nossas experiecircncias cotidianas Em

decorrecircncia podemos nutrir-nos de estrateacutegias criacuteticas para questionar padrotildees

desmontar estruturas hegemocircnicas discursos riacutegidos e propor fissuras brechas em

que nossa subjetividade seja potencializada Partindo da concepccedilatildeo de que noccedilotildees

de verdade e realidade igualmente correspondem a construccedilotildees sociais culturais e

histoacutericas podemos permitir-nos distanciarmo-nos desprendermo-nos de

concepccedilotildees alicerccediladas em padrotildees e posicionamentos fechados e inflexiacuteveis Esse

distanciamento nos permite repensar o que eacute normativo a fim de examinar de onde

surgiu e como a essa normatividade natildeo corresponde uma uacutenica verdade mas uma

referecircncia datada localizada e impregnada de ideologias

Examinar a docecircncia agrave luz do que dizem suas representaccedilotildees no cinema

colocam frente a frente as distintas versotildees que nos satildeo oferecidas enquanto papeacuteis

sociais eacute recorrente a figura docente caricaturada atraveacutes de modelos messiacircnicos

assistencialistas e transformadores dispostos a abrir matildeo de suas expectativas de

vida para solucionar os mais variados problemas de seus alunos Poucas satildeo as

narrativas que evidenciam uma docecircncia fragilizada hostil e afetiva ou ainda como

profissatildeo3

3 No livro Pedagogias Culturais organizado por Raimundo Martins e Irene Tourinho (Editora da UFSM 2014)

discuto esta questatildeo no texto ldquoAprendendo a ser docente atraveacutes de filmes possiacuteveis tracircnsitos entre cinema e educaccedilatildeordquo (p 141-164) Neste faccedilo referecircncia a uma seacuterie de tiacutetulos de filmes que tecircm como tema

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O cinema como ponto de partida na formaccedilatildeo docente

Tomar a perspectiva educativa da cultura visual como ancoradouro nos

favorece interrogar as elaboraccedilotildees discursivas que envolvem a construccedilatildeo do olhar

e tambeacutem os estereoacutetipos que contribuem para definir condutas delinear posiccedilotildees

hieraacuterquicas e legitimar papeacuteis sociais Sobretudo o olhar produzido pela

cinematografia hollywoodiana ndash de maior difusatildeo em nossa cultura ndash que se constitui

forte veiacuteculo de construccedilatildeo e produccedilatildeo de identidades

Acredita-se que cada espectador aporte sua proacutepria experiecircncia histoacuteria e

identidade agrave compreensatildeo de um texto fiacutelmico Contudo eacute possiacutevel que as

narrativas visuais privilegiem certas posiccedilotildees - mesmo que haja certa autonomia

para colocar interpretaccedilotildees personalizadas - pois estas interpretaccedilotildees se

encontraratildeo afetadas pelos limites impostos pelo enquadramento pela delimitaccedilatildeo

de algueacutem sobre o que tornar visiacutevel e o que deixar fora

As interpelaccedilotildees entre narrativas visuais textos discursivos e processos

cognitivos satildeo aspectos importantes que merecem ser discutidos sob a luz da

ideologia presente nos roteiros uma vez que problematizaacute-los pode configurar-se

como ferramenta pedagoacutegica para pensar a complexidade das concepccedilotildees que

elaboramos a partir do que visualizamos

Quando as imagens fiacutelmicas se convertem em aparatos de propulsatildeo para

desencadear aspectos problematizadores no campo social a respeito de questotildees

de gecircnero credo liberdade respeito cidadania e educaccedilatildeo as narrativas fiacutelmicas

funcionam como dispositivos possibilitando que os estudantes exercitem a

experiecircncia da indagaccedilatildeo

Ao examinar as relaccedilotildees dos sujeitos envolvidos com experiecircncias de

visualizaccedilatildeo de filmes durante o desenvolvimento de disciplinas na universidade no

curso de Licenciatura em Artes Visuais - seus diaacutelogos interpretaccedilotildees e

reconstruccedilotildees - percebeu-se que a negociaccedilatildeo eacute fundamental para desenvolver e

estimular a construccedilatildeo do conhecimento a partir de uma abordagem educativa

poliacutetica criacutetica que potencialize o caraacuteter subjetivo e colaborativo comentre os

professores com maior difusatildeo em contextos educativos formais tencionando a partir de algumas experiecircncias durante a formaccedilatildeo inicial e continuada de professores

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sujeitos Diante da experiecircncia de aprender coma partir do cinema estamos lidando

com imprevisibilidades incongruecircncias insatisfaccedilatildeo e a constante possibilidade de

revermos nossas concepccedilotildees e demais processos constitutivos O ambiente

educativo pode configurar-se como lugar de tensionamentos de imagens que

afetam e reverberam conexotildees inventivas que articulam distintos saberes

A partir das consideraccedilotildees elaboradas juntamente com os sujeitos em

formaccedilatildeo podemos pensar o cinema como dispositivo que produz e faz circular

modos de ver ser relacionar e pensar os diversos coacutedigos culturais com os quais

dialogamos diariamente Contribui tambeacutem para refletirmos sobre a construccedilatildeo de

imaginaacuterios e do mesmo modo para advertir-nos sugerir eou alertar-nos frente agraves

incertezas que configuram nossos dilemas existenciais que encontram sua potecircncia

nas relaccedilotildees que estabelecemos diariamente

Neste iacutenterim as produccedilotildees cinematograacuteficas -- enquanto artefatos

produzidos pelas distintas culturas inseridos e veiculados por determinados

discursos e ideaacuterios de acordo com as contingecircncias vigentes de seu tempo --

possibilitam noccedilotildees de realidade pois refletem questotildees sociais que permeiam seu

tempo Sob este aspecto Raimundo Martins argumenta

A ilusatildeo de realidade de que se valem as obras fotograacuteficas e sobretudo as cinematograacuteficas brinca com a percepccedilatildeo da plateacuteia Assim raramente eacute levado em consideraccedilatildeo o fato de que em uacuteltima instacircncia toda imagem constitui um conjunto de pontos de vista que decorrem de certos modos de interpretaccedilatildeo da realidade recortes que enfatizam determinadas informaccedilotildees em detrimento de outras o que vemos ao contemplar as imagens teacutecnicas natildeo eacute o mundo mas determinados conceitos relativos ao mundo a despeito da automaticidade da impressatildeo do mundo sobre a superfiacutecie da imagem (MARTINS 2007 115-116)

Ao mobilizar o campo da afetividade por meio da narrativa que nos eacute contada

bem como a proximidade com os personagens envolvidos haacute quase sempre uma

conexatildeo imediata (em maior ou menor grau) o que coloca os espectadores em

situaccedilatildeo de igualdade de relaccedilatildeo iacutentima Inscrevemos nossas proacuteprias relaccedilotildees com

a vida plasmada na tela e estabelecemos algumas relaccedilotildees ao reviver nossas

proacuteprias experiecircncias ou ainda projetarmos sonhos desejos medos aventuras

imaginaacuterias

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Neste vieacutes afetivo haacute ilimitadas interlocuccedilotildees com o cinema o que talvez

configure nossa questatildeo principal Como pensarpropor o cinema edu(vo)cativo no

contexto da formaccedilatildeo docente E aleacutem desta Qual a relevacircncia desta articulaccedilatildeo

durante a formaccedilatildeo docente

De modo geral como jaacute foi mencionado experiecircncias de aprender com o

cinema na escola privilegiam a vontade do professorprofessora em dar continuidade

a um determinado conteuacutedo e o filme parece ser uma opccedilatildeo ilustrativa de

determinado fenocircmeno eou fato a ser apreendido Natildeo que esta abordagem natildeo

seja relevante ao contraacuterio pode ser um bom argumento O problema eacute quando

restringe-se apenas agrave ilustraccedilatildeo natildeo abrindo espaccedilos ao que reverbera a

visualizaccedilatildeo de um filme Ou ainda quando natildeo se problematizam as visotildees de

realidade representadas na tela ndash no que diz respeito aos enquadramentos

discursos e demais significados que satildeo relacionados muitas vezes de maneira

impliacutecita

Nessa direccedilatildeo a educaccedilatildeo da cultura visual eacute aberta a novas e diversas formas de conhecimentos promove o entendimento de meios de opressatildeo dissimulada rejeita a cultura do Positivismo aceita a ideia de que os fatos e os valores satildeo indivisiacuteveis e sobretudo admite que o conhecimento eacute socialmente construiacutedo e relacionado intrinsecamente ao poder (DIAS 2011 62)

Talvez o questionamento pontuado por Belidson Dias adquira maior potecircncia

ao trazer para a discussatildeo a recente lei que torna obrigatoacuteria a exibiccedilatildeo de pelo

menos duas horas de filmes produzidos nacionalmente nas escolas de Educaccedilatildeo

Baacutesica Aiacute reside uma de nossas grandes preocupaccedilotildees

Que filmes Que formas de exibiccedilatildeo Que engajamento dos professores e da comunidade Que formas de acesso agraves obras Como regulamentar a Lei Haacute filmes com tecnologias assistivas que permitam sua aces- sibilidade a professores e estudantes cegos e surdos Como engajar outros atores ndash Ancine Secretaria do Audiovisual secretarias de educaccedilatildeo MEC Quem custearaacute as accedilotildees E sobretudo o que esperar dessa relaccedilatildeo do cinema com a educaccedilatildeo (FRESQUET MIGLIORIN 2015 4)

Aleacutem disso quais aacutereas Quais docentes Que preparaccedilatildeo preacutevia O que

precisa saberconhecer o docente que iraacute abordar o cinema enquanto dispositivo

Haacute que ensinar coacutedigos da linguagem E no que tange agrave visualidade o que propor

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Seria da competecircncia da aacuterea das artes visuais Propor pensar sobre os elementos

esteacuteticos Etc

Neste cenaacuterio abrem-se muitos debates em torno desta obrigatoriedade por

um lado esta regulamentaccedilatildeo faz com que o cinema deixe de participar apenas

como complemento ilustraccedilatildeo como decorativorecreativo tornando-se objeto

principal ponto de partida agrave reflexatildeo em torno dos coacutedigos culturais que o formulam

legitimam e distribuem noccedilotildees de realidade Por outro proposiccedilotildees prescritivas

destituiacutedas de negociaccedilatildeo coletiva -- que desconsidera o cinema enquanto obra

aberta -- podem desencadear versotildees estereotipadas que devido agrave obrigatoriedade

venham a ser desenvolvidas por profissionais despreparados dispostos a cumprir

tarefas apenas

Ao discutir a lei Adriana Fresquet e Cezar Migliorin sugerem alguns princiacutepios

que poderiam ser levados em consideraccedilatildeo diante das aproximaccedilotildees com a

educaccedilatildeo Para os autores ao tomar a lei como ponto de partida deveriacuteamos ter em

mente estas dez consideraccedilotildees

1 Democratizar o acesso 2 Acesso diversidade e capilaridade de decisotildees 3 Valorizar as accedilotildees existentes e locais 4 O cinema deve ser arriscado 5 Cinema eacute conhecimento e invenccedilatildeo de mundo 6 A escola natildeo forma consumidores 7 Tensatildeo na estrutura das escolas 8 Por que cinema brasileiro 9 Promover a criaccedilatildeo com imagens 10 A experiecircncia com o cinema (FRESQUET MIGLIORIN 2015 6-17)

Diante destes aspectos expostos talvez fosse interessante retomarmos o

conceito de ldquodesaprenderreaprenderrdquo proposto por Adriana Fresquet (2007) no livro

ldquoImagens do Desaprender uma experiecircncia de aprender com o cinemardquo em que

narra a seguinte relaccedilatildeo

Desaprender eacute algo mais que aprender coisas opostas sobre um mesmo tema assunto valor questatildeo da vida Desaprender pode ateacute indicar erradamente a ideacuteia de esquecer o aprendido Poreacutem o seu significado e intenccedilatildeo eacute exatamente o contraacuterio Tal eacute a forccedila da irreversibilidade da aprendizagem que desaprender significa fundamentalmente lsquolembrarrsquo as coisas aprendidas que querem ser desaprendidas Desaprender eacute aprender a natildeo querecirc-las mais para si a natildeo outorgar mais o estatuto de verdade de sentido ou de interesse Verdade aprendida com outros desde sempre adquire valor de inquestionaacutevel Desaprender eacute animar-se a questionar tais verdades Desaprender eacute tambeacutem fazer o esforccedilo de conscientizar todo o vivido na contramatildeo evocando o impacto histoacuterico e emocional que teve aquela aprendizagem que hoje deseja ser modificada (FRESQUET 2007 49)

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Portanto as muacuteltiplas relaccedilotildees promovidas pelas narrativas fiacutelmicas nos

fazem pensar em diversas maneiras de abordar a visualidade comeccedilando pelo

acircmbito da sensibilidade da emoccedilatildeo do afeto ateacute avanccedilarmos pelo terreno da

pedagogia onde nos encontramos com a relaccedilatildeo ensinaraprender Partimos do

princiacutepio de que o cinema se inscreve em uma temporalidade compreensiacutevel a

praticamente todos os puacuteblicos ao representar as diversas etapas do

desenvolvimento humano as descobertas infantis a adolescecircncia e a juventude a

maturidade e a velhice nas suas mais variadas manifestaccedilotildees e a utilizarmos como

ponto de partida para comeccedilar nossa viagem Durante o percurso eacute possiacutevel

visualizar terrenos feacuterteis e tambeacutem arenosos lugares remotos de nossa memoacuteria e

outros recocircncavos repletos de figuras miacuteticas fantasmagorias e possibilidades

Estes dispositivos desestabilizam e mobilizam outras aprendizagens

promovem crises que geram avanccedilos instigam a pensar alternativas Satildeo forccedilas

que produzem o deslocamento e a descoberta de outras dimensotildees de outras

linhas de pensamento Incitam tambeacutem a adotar uma postura criacutetica impulsionada

pelo desejo de criar espaccedilos e alternativas para aprender sobre o mundo a partir do

diaacutelogo com o outro a reconhecer-se pelas diferenccedilas a pensar o ambiente de

formaccedilatildeo inicial e continuada da docecircncia como exerciacutecio do olhar criacutetico e

mobilizador

Sobre o cinema e suas provocaccedilotildees um desfecho provisoacuterio

Referecircncia na moda no comportamento na muacutesica e nos mais variados

acircmbitos das experiecircncias humanas o cinema configura-se como fenocircmeno cultural

de grande impacto na configuraccedilatildeo de imaginaacuterios desde a infacircncia Desde muito

cedo somos introduzidos agrave loacutegica narrativa sequencial que apresenta muitas

realidades Eacute recorrente em nossa contemporaneidade nos depararmos com

personagens criados pelo cinema em acessoacuterios utensiacutelios domeacutesticos adereccedilos

materiais pedagoacutegicos brinquedos etc propagando uma legiatildeo de muitos heroacuteis (e

rariacutessimas heroiacutenas) que inevitavelmente invadem a escola reproduzindo-se nas

canccedilotildees brincadeiras corporeidades comportamentos Diante destes contextos

Como a docecircncia articula estas experiecircncias visuais enquanto mote inicial a ser

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VALLE Lutiere Dalla Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens

fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 95-108 juldez 2016

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esmiuccedilado Que relaccedilotildees com as imagens fiacutelmicas osas docentes tecircm

apreendidas Como satildeo seus enfrentamentos relaccedilotildees com o cinema

Talvez seja relevante pensarmos alternativas nas quais estudos sobre cinema

e educaccedilatildeo possam estar presentes durante a formaccedilatildeo inicial e continuada da

docecircncia para propor relaccedilotildees de aprendizagem a partir da imprevisibilidade seu

papel e sua utilizaccedilatildeo dentro dos ambientes de aprendizagem tendo como premissa

natildeo cairmos na tentativa de pedagogizaacute-lo ou tornaacute-lo mais um instrumento fechado

ou previsiacutevel mas de tomaacute-lo como obra aberta ndash a partir da concepccedilatildeo do rizoma ndash

para tomar vias distintas Bricolar propor conexotildees com outras narrativas abordaacute-lo

sem tentar traduzir o que eacute essencialmente percepccedilatildeo visualsensorialemocional e

que obviamente requer outro tipo de relaccedilatildeo outros coacutedigos outras loacutegicas

Para finalizar estaacute escrita retomo os vocaacutebulos que a iniciam provocaccedilotildees

descontinuidades desfechos com o intuito de sinalizar como poderiam operar no

campo educativo ndash ao menos como pretendo que sejam pensados aqui

O cinema enquanto provocador que desafia incita o questionamento retira

da calmaria e lanccedila na tempestade desacomoda instiga o pensamento retira do

lugar comum causa desconforto Neste contexto por significados que possam ser

revistosrevisados reconceituados Imaginaacuterios produzidos pela cinematografia

dominante (em nossos contextos) possam ser repensados ou em alguns casos

como argumenta Adriana Fresquet desaprendidos e reaprendidos a partir de outras

loacutegicasrelaccedilotildees

(Des)continuidade tem duplo sentido no cinema a ideia de movimento se daacute

pela sequecircncia contiacutenua de imagens trabalha-se com a continuidade de um roteiro

Uma descontinuidade seria uma ruptura da continuidade da linearidade Poderia ir

na contramatildeo a contrapelo Caracteriza-se como uma interrupccedilatildeo A continuidade

no cinema busca uma coerecircncia loacutegica que envolve sonoridade e fluxo visual na

sucessatildeo de imagens o que pode envolver cortes durante uma montagem pois

cabe ao continuiacutesta manter a conexatildeo desejada pelo roteiro entre as cenas

concedendo entendimento agrave narrativa que estaacute sendo contada Juntamente com o

diretor ou diretora de um filme colabora com todas as demais especificidades

teacutecnicas que participam da histoacuteria a ser contada dos enquadramentos aos

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VALLE Lutiere Dalla Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens

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cenaacuterios objetos de cena etc Entatildeo O que seria umuma (Des)Continuiacutesta em

educaccedilatildeo

Talvez aqueleaquela que ocupa-se da provocaccedilatildeo que incita o jogo que

lanccedila convites que desafia Sabemos que a escola nos moldes atuais natildeo

configura-se uacutenica fonte de saberes mas espaccedilo de diaacutelogo de negociaccedilatildeo

formulaccedilatildeo

Desfecho do ponto de vista literaacuterio diz respeito agrave finalizaccedilatildeo ao desenlace

de uma tramanarrativa Pode ser entendido tambeacutem como local de chegada depois

de alguns trechos percorridos Neste texto desfecho pode ser concebido tambeacutem

como siacutentese do processo desenvolvido poreacutem aberto ainda no ato de acontecer

Entendo desfechos como provisoacuterios embora pareccedila relevante percebermos

processos de soluccedilotildees de problemas pontos que podem ser destacados ao teacutermino

de uma jornada de uma investida uma aposta Acredito que desfechos satildeo

importantes pois impelem a retomar a jornada examinar o percurso movimentar-se

em temporalidades diversas para compreender como se articula o momento

presente Transformando-o em verbo desfecho - desfechar - poderia ser des-fechar

tornaacute-lo em aberto apesar de haver jaacute percorrido uma trajetoacuteria examina-se o

recorrido poreacutem servindo como propulsor a dar segmento a tomar novas

experiecircncias seguir aprendendo des-fechando processos educativos

Referecircncias

BRUNER Jerome Actos de significado maacutes allaacute de la revolucioacuten cognitiva Madrid Alianza Editorial 1991 DIAS Belidson O imundo da cultura visual Brasiacutelia Editora da poacutes-graduaccedilatildeo em arte da Universidade de Brasiacutelia 2011 ELLSWORTH Elizabeth Posiciones en la ensentildeanza diferencia pedagogiacutea y el poder de la direccionalidad Madrid Akal 2005 FRESQUET Adriana Cinema e educaccedilatildeo reflexotildees e experiecircncias com professores e estudantes de educaccedilatildeo baacutesica dentro e ldquoforardquo da escola Belo Horizonte Autecircntica 2013

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FRESQUET Adriana Imagens do desaprender uma experiecircncia de aprender com o cinema Rio de Janeiro UFRJ 2007 FRESQUET Adriana MIGLIORIN Cezar Da obrigatoriedade do cinema na escola notas para uma reflexatildeo sobre a lei 1300614 In FRESQUET Adriana (Org) Cinema e Educaccedilatildeo a lei 13006 Reflexotildees perspectivas e propostas Belo Horizonte Universo Produccedilatildeo 2015 HERNAacuteNDEZ Fernando Catadores da Cultura Visual uma proposta para uma nova narrativa educacional Porto Alegre Mediaccedilatildeo 2007 MARTINS Alice Faacutetima Imagens do cinema cultura contemporacircnea e o ensino de artes visuais In OLIVEIRA M O de (Ed) Arte educaccedilatildeo e cultura Santa Maria Ed da UFSM 111-130 2007 MARTINS Raimundo TOURINHO Irene (Org) Circunstacircncias e ingerecircncias da cultura visual In MARTINS R y TOURINHO I (Eds) Educaccedilatildeo da cultura visual conceitos e contextos Santa Maria Ed da UFSM (paacuteg 51-68) 2011

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PerformanceS1

Fernando Pinheiro Villar 2 Universidade de Brasiacutelia - UnB

Aproximando-se do primeiro ano apoacutes 11 de setembro continuamos sem saber

o que sabemos e o que natildeo sabemos sobre a destruiccedilatildeo dos preacutedios do World Trade

Center em Nova York O que podemos ter certeza eacute que antes da queda das torres

gecircmeas jaacute viviacuteamos crises aceleradas empor nossa supermodernidade crise de

certezas crise social crise de conceitos crise de significados Realidades que se

transformam continuamente demandam novos conceitos e revisatildeo constante de

conceitos existentes para negociar com as novas praacuteticas artiacutesticas teorias famiacutelias

trabalho sexualidades etnias ensino e meacutetodos

Performance eacute apontada como um conceito chave em estudos culturais

contemporacircneos Este artigo aborda performances artiacutesticas Enfatizo o lsquoartiacutesticasrsquo

como necessaacuterio recorte e por minha experiecircncia praacutetica Mas este recorte natildeo evita a

interferecircncia de outros significados nem indica um terreno mais tranquilo para

taxonomias

No meio de uma semana de debates sobre lsquoperformancersquo na Universidade de

Brasiacutelia em maio de 2002 um estudante disse que parecia lsquohaver uma certa

glamourizaccedilatildeo da duacutevida ou da dificuldade de definir performancersquo3 Mais preocupante eacute

a banalizaccedilatildeo da duacutevida em torno da amplitude do conceito gecircnero artiacutestico objeto de

estudo eou metodologia de criacutetica e pesquisa que performance pode significar Este

1 Publicado em CARREIRA Andreacute VILLAR Fernando Pinheiro GRAMMONT Guiomar de RAVETTI Graciela e ROJO Sara (orgs) Mediaccedilotildees performaacuteticas latino-americanas (Belo Horizonte FALEUFMG 2003) p 71 - p80 2 Autor encenador e diretor Professor da graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo do Departamento de Artes Cecircnicas do Instituto de Artes da Universidade de Brasiacutelia Graduado na UnB em Artes Plaacutesticas poacutes-graduado em Direccedilatildeo no Drama Studio London e PhD no Queen Mary CollegeUniversity of London Fundador dos grupos Vidas Erradas (83-89) TUCAN (92-08) e CHIA LIIAA (2007) tem trabalhado com diversos grupos artistas e instituiccedilotildees de ensino do Brasil e Europa Professor visitante na University of Manchester e na UNICAMP com vaacuterios artigos publicados e alguns livros organizados sobre teatro performance e hibridismos artiacutesticos contemporacircneos 3 Seminaacuterio preparatoacuterio para o evento performaacutetico artiacutestico Gecircnesis de performances (28 29072002) organizados pelo ex-aluno de Artes Cecircnicas e funcionaacuterio da UnB Magno de Assis

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artigo natildeo elimina duacutevidas sobre performance mas busca discordar de ambas

banalizaccedilatildeo e glamourizaccedilatildeo destas duacutevidas

O tiacutetulo lsquoperformanceSrsquo inicia esta empreitada afirmando a pluralidade do

conceito performance Assumir-se a multiplicidade de significados atrelados ao

significante lsquoperformancersquo eacute condiccedilatildeo inicial para seu entendimento Sabemos que

lsquoperformancersquo tem orientado inspirado eou desobstruiacutedo teorias e praacuteticas de

sociologia antropologia linguiacutestica psicologia filosofia neurologia artes cecircnicas artes

plaacutesticas muacutesica e danccedila entre outros campos de conhecimento Essa amplitude

conceitual pode provocar um desconforto com a abrangecircncia desconcertante e

escorregadia de performance como conceito como objeto de estudo como gecircnero

artiacutestico ou como metodologia de criacutetica e pesquisa

Um dos principais significados aliados ao significante performance eacute o de

desempenho O significado de desempenho afirma a observaccedilatildeo analiacutetica de

comportamentos humanos produtos eletrocircnicos e mecacircnicos ou de atores xampus

transeuntes oacuteleos atletas sapatos de corrida animais fios condutores ou de minerais

Na observaccedilatildeo do desempenho humano performance pode tambeacutem significar

comportamentos que se repetem Ou accedilotildees cotidianas que satildeo ensaiadas ou

preparadas - e observadas Assim sendo uma performance sem consciecircncia do fato de

estar sendo vista como tal pode significar uma performance cotidiana cultural ou social

Para Richard Schechner ldquotudo no comportamento humano indica que performamos

nossa existecircncia especialmente nossa existecircncia socialrdquo (1982 14) Steven Connor

considera que ldquose tornou difiacutecil estarmos seguros onde que uma accedilatildeo termina e uma

performance comeccedilardquo (108) Schechner e Connor datildeo uma ideia do possiacutevel alcance de

performance Este alcance detona diferentes linhas de pesquisa e teorias sobre

performance em campos distintos Pelo recorte optado por esta comunicaccedilatildeo estou me

atendo mais agraves performances artiacutesticas exibiccedilotildees ou accedilotildees declaradas publicamente

como tais accedilotildees conscientes mesmo que liminais construiacutedas e organizadas por

agentes que as mostraratildeo como opccedilatildeo profissional ou amadora entrada franca

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cobrando um ingresso ou distribuindo convite em espaccedilos ao ar livre semi-abertos ou

cobertos

A performance artiacutestica se caracteriza(va) muito pela fuga de qualquer

possibilidade de categorizaccedilatildeo Esta evasatildeo de escaninhos esteacuteticos caracteriza(ria)

aquilo que artistas objetivam(vam) natildeo ser caracterizado Com a heranccedila forte das

Vanguardas Histoacutericas das uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX e das trecircs primeiras

deacutecadas do seacuteculo XX vanguardas do periacuteodo poacutes-Segunda Guerra Mundial

continua(ra)m indo contra restriccedilotildees das possibilidades expressivas das artes e

rechaccedilando definiccedilotildees que se pretendiam definitivas

As Vanguardas Histoacutericas satildeo compostas pelo Simbolismo Expressionismo

Futurismo Construtivismo Dada Surrealismo Bauhaus ou Adolphe Appia Gordon

Craig Isadora Duncan Vsevolod Meyerhold Vladimir Mayakovsky Marcel Duchamp

Antonin Artaud entre tantos outros Darwin Nietzsche Marx Wagner Freud Einstein

Edison nos lembram que a virada do seacuteculo XIX para o XX tambeacutem testemunha uma

crise de conceitos e certezas consideraacutevel Aliados agrave revoluccedilatildeo no pensamento humano

provocada por estes pensadores artistas e cientistas o motor a lacircmpada eleacutetrica

locomotivas teleacutegrafos e o cinema transformam comportamentos e sociedades Ainda

com ecos do idealismo do Romantismo em buscar o intercacircmbio entre diferentes artes

artistas de vaacuterias correntes e tendecircncias deixam um legado de accedilotildees textos e

manifestos que transitam e querem transitar aleacutem das fronteiras convencionais de cada

linguagem Durante todo o seacuteculo XX o impacto das duas guerras mundiais no mesmo

seacuteculo foi refletido diretamente numa arte que promovia a primazia da accedilatildeo

testemunhada de interferecircncia puacuteblica como paliativo passageiro para a impotecircncia do

ser humano diante da destruiccedilatildeo inoacutecua Artistas das Vanguardas Histoacutericas da

primeira e segunda metades do seacuteculo XX questionam entatildeo de forma radical a

convencionalidade de suas linguagens e de seus puacuteblicos no bojo de intensas

transformaccedilotildees econocircmicas sociais e poliacuteticas As fronteiras entre arte e vida se

misturam

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Na entatildeo nova ediccedilatildeo do Oxford Dictionary em 1971 lsquoperformance artrsquo eacute incluiacuteda

no verbete lsquoperformancersquo como uma suposta arte de accedilotildees realizada por artistas

plaacutesticos para plateias presentes Depois da Segunda Guerra Mundial outros termos e

conceitos jaacute tentam acompanhar uma intensa atividade de artistas em torno do eixo

tempo-espaccedilo com testemunhas Estas atividades manipulam nexos com accedilatildeo corporal

e a presenccedila do autor realizando seu processo sua obra ou sua obra em processo para

espectadores visitantes puacuteblico ou testemunhas Uma das tentativas de conceituaccedilatildeo

para estas obras foi lsquointermiacutediarsquo [(intermedia ou interlinguagem)] cunhado em 1967

por Dick Higgins do Fluxus (Higgins 1978) Um ano depois Richard Kostelanetz

defendeu o termo lsquoteatro dos meios misturadosrsquo (Kostelanetz 1970) Mas eacute

lsquoperformance artrsquo nos paiacuteses anglo-saxocircnicos e lsquoperformancersquo em paiacuteses de liacutengua

latina que consegue abarcar uma praacutetica artiacutestica interdisciplinar Sem desconhecer a

heranccedila das Vanguardas Histoacutericas performance art ou performance conteria action

paintings John Cage arte conceitual minimalismo espacialismo Happenings action

art arte corporal aktionism vienense arte feminista art povera parangoleacutes de Oiticica

bichos de Ligia Clark teatro instrumental environments viacutedeo arte colaboraccedilotildees

decollage assemblage arte cineacutetica o neo-dada do Gutai endurance art Flaacutevio

Impeacuterio Artur Barrio ou Laurie Anderson entre tantos outros grupos e artistas

Em 1981 Douglas Davis jaacute propotildee o termo lsquopost-performancismrsquo para defender

uma arte aleacutem do teatro performance ou artes plaacutesticas Em 1992 Josette Feraacutel coloca

performance como o nascimento de um gecircnero com a morte de sua funccedilatildeo anaacuterquica

anti-categorizaccedilotildees Em 1999 Paul Schimmel anuncia a morte de performance art por

volta de 1979 No entanto as referecircncias cruzadas e trocas entre gecircneros hiacutebridos e

mo(vi)mentos foram se acelerando durante as deacutecadas de 1980 e 1990

simultaneamente dificultando e promovendo novos termos e roacutetulos Autores como

Gregory Battcock (1984) RoseLee Goldberg (1984) ou Herbert Blau (1992)

reconhecem que lsquoperformancersquo seria o termo para a contiacutenua expansatildeo do terreno

ampliado que performance art conquistou Utilizando um artigo anterior performance no

final do seacuteculo XX

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[] parece ser um conceito guarda-chuva que abriga uma livre pluralidade de expressotildees cecircnicas socircnicas e visuais Atraveacutes de performance inuacutemeros estudos de diferentes artes revelam um comportamento cuidadoso para evitar novas definiccedilotildees que natildeo respeitem as diferenccedilas e o caraacuteter anaacuterquico das artes em desordenar e escapar de novas categorizaccedilotildees Performance inclui entre outros campos de estudo rituais festas populares comportamento cotidiano linguumliacutestica ciecircncias sociais cultura psicologia [performing self criacutetica em performance] o evento teatral a encenaccedilatildeo de peccedilas drama ou dramaturgia escrita dramaturgia de imagens e outras produccedilotildees multi pluri anti ou interdiscliplinares em frente de plateacuteias em diversos tipos de espaccedilo cecircnico aleacutem do teatro O termo e conceito performance vai contra uma visatildeo logocecircntrica e exclusiva de teatro como lsquoa representaccedilatildeo de dramas eurocecircntricosrsquo (Schechner 1992 9) Para os estudos de teatro a metodologia e sistema de criticismo proposto por performance resgata o irrepetiacutevel efecircmero transitoacuterio momento de exposiccedilatildeo da linguagem cecircnica com a presenccedila de atores e espectadores privilegia-se a performance como um dos principais focos de significados do teatro (Villar de Queiroz 1999 249)

Para os estudos e praacutetica de teatro o texto performaacutetico ou o performance text eacute

um derivado do significante performance fundamental Batendo de frente com a visatildeo

antagocircnica quando exclusivista de teatro como domiacutenio da literatura dramaacutetica o texto

performaacutetico seria o texto da encenaccedilatildeo em curso a mise-en-scegravene fluindo ante e entre

os sentidos dos presentes la puesta en escena acontecendo uma rede intertextual

Ainda haacute uma defasagem da jovem academia de teatro em reconhecer o texto

performaacutetico artiacutestico na linguagem cecircnica Isso pode dever-se em parte agrave

supervalorizaccedilatildeo persistente e descontextualizada historicamente da visatildeo aristoteacutelica

de teatro em Poeacutetica Mais forte razatildeo eacute a impossibilidade do registro da performance

uacutenica irrepetiacutevel efecircmera transitoacuteria Essa impossibilidade caracteriza um choque

frontal com abordagens materialistas de cultura que tem em textos de peccedilas

documentos partituras quadros esculturas monumentos e edifiacutecios suas evidecircncias

para descrever o comportamento humano O viacutedeo o DVD e novas tecnologias alteram

um pouco a impossibilidade de registros do evento aacuteudio-cineacutetico-temporal e visual que

uma performance teatral coreograacutefica musical ou artiacutestica pode ser Novas tecnologias

natildeo podem entretanto cortar a impossibilidade de reproduccedilatildeo de um evento

caracterizado pela junccedilatildeo de pessoas durante sua vida uacutenica que morre para renascer

diferente no proacuteximo dia Como Dyonisus

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A maioria do teatro convencional claacutessico familiar eou teatratildeo e muito do teatro

de pesquisa de artistas com visibilidade internacional e respaldo criacutetico estaria

caracterizado pela representaccedilatildeo de um laacute-entatildeo Este laacute-entatildeo eacute reproduzido em um

palco ou espaccedilo eleito com atores ou atrizes vivendo personagens escritos por um

autor ou autora seguindo marcaccedilotildees de um diretor ou diretora Performance

privilegiaria o aqui-agora do durante da apresentaccedilatildeo seja onde for de uma accedilatildeo

desenrolada e apresentada por seu autor-ator-diretor-encenador-produtor o

performador tenta ser o proacuteprio meio esteacutetico ndash ele ou ela se colocam como linguagem

processo e obra Mas esta diferenciaccedilatildeo pode natildeo resistir ao fato de que o uso atual

quase omnipresente do termo performance abala certezas linguiacutesticas e esteacuteticas

anglo-saxocircnicas e latinas Na liacutengua inglesa por exemplo performance sempre foi

associada agrave apresentaccedilatildeo representaccedilatildeo ou exposiccedilatildeo cecircnica ou musical em frente a

uma plateia e [agrave] interpretaccedilatildeo de artistas Em 1990 o Diccionario Actual de la Lengua

Espantildeola apresenta performance como entre outros significados lsquorepresentacioacuten de

cine y teatrorsquo e lsquoactuacioacuten de un artistarsquo (1219) Estudantes no Brasil me convidam para

assistir a suas performances mesmo que sejam representaccedilotildees naturalistas de

personagens de Calderoacuten de la Barca Shakespeare ou Nelson Rodrigues dirigidos por

um diretor ou uma professora

As aacuteguas de performance e de teatro se confundem e confundem Em 1987 o

diretor e acadecircmico Michael Kirby lembrava que ldquotodo teatro eacute performance mas nem

toda performance eacute teatrordquo (xi) Em 1992 Herbert Blau reconhece sua saudade ldquode um

tempo em que se algueacutem falasse de performance estaria falando de teatrordquo (2) Em

1996 Elin Diamond recorda que ldquose performance eacute o reverso do teatro convencional

teatro tambeacutem eacute o reverso de performancerdquo (4) Em 1997 a artista e professora da New

York University Deb Magolin por exemplo celebra que ldquoperformance eacute um teatro de

inclusatildeo Qualquer um pode fazerrdquo (69) Para vaacuterios criacuteticos acadecircmicos e artistas no

mundo performance seria o teatro poacutes-moderno ou teatro contemporacircneo de

vanguarda

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Ainda persiste uma tendecircncia que considera performance art e performance

como variaccedilotildees da arte teatral Esta tendecircncia convive com uma perspectiva oposta

que exclui teatro da histoacuteria de performance e de performance art Ambas

perspectivas parecem reafirmar concepccedilotildees binaacuterias que natildeo reconhecem um campo

artiacutestico ampliado interdisciplinar aleacutem das disciplinas que se juntaram chocaram-se

ou digladiaram-se ateacute o nascimento de uma outra disciplina linguagem ou objeto que

se independe das matrizes anteriores e continua um caminho proacuteprio Disciplinas

liacutenguas paiacuteses e pessoas satildeo universos em construccedilatildeo e negociaccedilatildeo com seus meios

ambientes A dialeacutetica cultural promove novas disciplinas liacutenguas territoacuterios e

fronteiras mudanccedilas e se o mundo performa o teatro continuaraacute sendo um siacutetio de

performances sobre performances do mundo

Em 1980 Timothy J Wiles lanccedilava o termo lsquoteatro performancersquo para descrever

uma diversidade cecircnica revelada por uma dramaturgia e estilos de interpretaccedilatildeo

distintos do realismo naturalista ou do teatro eacutepico Essa diversidade tambeacutem era

revelada por inovaccedilotildees formais que segundo Wiles haviam criado ldquouma situaccedilatildeo

desconfortaacutevel para todos os historiadores de esteacuteticardquo (112) Com lsquoperformance teatrorsquo

a primazia dada ao texto performaacutetico questiona encapsulamentos da linguagem cecircnica

em limites da literatura dramaacutetica e questiona tambeacutem hierarquias fixas de criaccedilatildeo

direccedilatildeo e autoria Teatro performance transita por diferentes linguagens artiacutesticas

resultando em outra Teatro performance assume um espaccedilo intermediaacuterio

interdisciplinar entre performance art e teatro

Nuances interdisciplinares nas artes e ciecircncias ou obras interdisciplinares

artiacutesticas natildeo podem ser mais ignoradas em sua notoacuteria presenccedila em nossa

contemporaneidade Praacuteticas artisticamente interdisciplinares tecircm uma histoacuteria que

remonta [a] seacuteculos antes de Cristo na praacutetica oriental e ocidental se focarmos o

manual para artiacutesticos cecircnicos indiano Natya-Sastra ou os festivais gregos Artistas

renascentistas italianos e a oacutepera barroca apresentam impulsos interdisciplinares

claros Estes impulsos se aceleram de forma radical nas sucessivas transformaccedilotildees

esteacuteticas promovidas pelas vanguardas do seacuteculo XX Poacutes 1968 e poacutes performance art

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tanto o omnipresente conceito metodologia de pesquisa e criacutetica de performance

quanto as performances artiacutesticas desenvolvidas nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo

XX reforccedilam a necessidade de abordar-se interdisciplinaridade entre as artes

Esta breviacutessima perspectiva histoacuterica objetiva apontar uma presenccedila e uma

necessidade de estudos de um fenocircmeno interdisciplinar entre as artes Entretanto

assim como performance interdisciplinaridade tambeacutem pode ter uso indevido ou

diletante dentro dos muacuteltiplos acircngulos e mundos simultacircneos e paradoxais da

supermodernidade Tambeacutem como performance lsquointerdisciplinaridadersquo tem desafiado

certezas epistemoloacutegicas

Na uacuteltima deacutecada podemos encontrar novas propostas em torno de

disciplinaridades Judith Butler (1990) e Baz Englers (1996) propotildeem a discussatildeo de

lsquopoacutes-disciplinaridadesrsquo Dwight Conquergood e Joseph Roach definem performance

para Marvin Carlson como uma lsquoanti-disciplinarsquo (189) Fechando a deacutecada Roy Ascott

usa o termo lsquoumiacutediarsquo (moistmedia) para descrever um lsquointerespaccedilo entre o mundo seco

da virtualidade e o mundo molhado da naturezarsquo (9)

Transdisciplinaridade poacutes-disciplinaridades anti-disciplinas e umiacutedias atestam

todas processos interdisciplinares Como interdisciplinas artiacutesticas poacutes-disciplinas anti-

disciplinas e umiacutedias satildeo lsquointermiacutediasrsquo satildeo resultantes de disciplinas que dialogaram ou

digladiaram-se atraveacutes de encontro troca negociaccedilotildees eou choque gerando uma

nova disciplina Assim sendo meu entendimento de interdisciplinaridade natildeo confere

com o simples juntar de disciplinas diferentes ou muito menos com o improdutivo de

realidades pseudo interdisciplinares que natildeo se tocam nem se trocam Investigo

interdisciplinaridade artiacutestica para estudar ensinar e praticar negociaccedilotildees e

intercacircmbios entre diferentes linguagens ou disciplinas artiacutesticas que resultaram em

novos campos de accedilatildeo em outros territoacuterios de mutaccedilatildeo artiacutestica e de possibilidades

expressivas Interdisciplinas artiacutesticas seriam entatildeo outras disciplinas ou intermiacutedias

tais como as jaacute citadas performance art e teatro performance danccedila teatro butoh

muacutesica teatro arte computacional teatro acuacutestico teatro digital instalaccedilatildeo roboacutetica

criacutetica em performance ou viacutedeo poesia

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Terroristas oficiais e disfarccedilados continuam a defender fronteiras imutaacuteveis e a

dividir pessoas quando soacute existe uma raccedila a humana Enquanto a natureza se delicia

com a diversidade interesses econocircmicos impotildeem modelos hegemocircnicos injustos e

uniformizantes que querem evitar a particularidade a convivecircncia ou a diferenccedila Os

mercados globalizados nos orgasmos muacuteltiplos do capitalismo selvagem conquistam

novas trilhas para o livre fluir de capitais mas natildeo de pessoas

A paz o livre exerciacutecio de sexualidades igualdade novas fronteiras e o

assentamento de pessoas em condiccedilotildees mais justas satildeo evitados no Brasil e no mundo

por problemas pessoais mal resolvidos interesses escusos e paranoias

governamentais Como lembrou Lucia Sander em palestra-performance em Maceioacute

neste ano Einstein dizia que ldquoeacute mais faacutecil dividir um aacutetomo que destruir um

preconceitordquo E Susan Sontag afirmou anos depois que a histoacuteria do preconceito eacute tatildeo

antiga quanto a histoacuteria das questotildees pessoais mal resolvidas As artes incluindo

performance e outras interdisciplinas artiacutesticas vazam esses escudos anti-

transformaccedilotildees e tentam exemplificar outras possibilidades de outros mundos

simultacircneos e distintos que se trocam e produzem outros mundos inclusivos e

questionadores de absolutismos restringentes A batalha continua sintomaacutetica

enigmaacutetica e performaacutetica

Referecircncias ASCOTT Roy lsquoArte emergente interativa tecnoeacutetica e uacutemidarsquo Trad Cleacuteria Maria Costa Anais do 1 Encontro Internacional de Arte e Tecnologia Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1999 p19 - p29 BARTHES Roland Image-Music-Text Trad Stephen Heath Nova York Hill and Wang 1977 BATTCOCK Gregory e NICKAS Robert eds The Art of Performance Nova York E P Duncan amp Co 1984 BLAU Herbert lsquoThe Prospect Before Usrsquo Discourse 142 1992 p 1- p 25

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BUTLER Judith Gender Trouble Londres e Nova York Routledge 1990 CAMPBELL Patrick ed Analysing Performance A Critical Reader Manchester e Nova York Manchester University Press 1996 CARLSON Marvin Performance A Critical Introduction Londres e Nova York Routledge 1996 CONNOR Steven lsquoPostmodern Performancersquo In Campbell 1996 p 107- p 24 DAVIS Douglas lsquoPost-Performancismrsquo Artforum 202 (1981) pp 31-9 DIAMOND Elin ed Performance amp Cultural Politics (Londres e Nova York Routledge 1996) ENGLER Balz lsquoPostdisciplinarityrsquo In Faria Neide (ed) Language and Literature Today Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1996 p 852-9 FAZENDA Ivani Catarina Arantes Interdisciplinaridade um projeto em parceria Satildeo Paulo Loyola 1991 FEacuteRAL Josette lsquoWhat is Left from Performance Art Autopsy of a Function Birth of a Genrersquo Discourse 142 1992 pp 142-62 GOLDERG RoseLee lsquoPerformance The Golden Yearsrsquo in Battcock e Nickas (1984) pp 71-94 HIGGINS Dick A Dialectics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978) JAPIASSU Hilton Interdisciplinaridade e patologia do saber (Rio de Janeiro Imago 1976) KIRBY Michael A Formalist Theatre Philadelphia University of Pennsylvania Press 1987 KOSTELANETZ Richard The Theatre of Mixed Means An Introduction to Happenings Kinetic Environments and Other Mixed-Media Performances (Londres Pitman 1970) MAGOLIN Deb lsquoA Perfect Theatre for One Teaching ldquoPerformance Compositionrdquorsquo TDR 412 (1997) pp 68-81

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ORTHOFF Geraldo Tradiccedilatildeo e inovaccedilatildeo especializaccedilatildeo e interdisciplinaridade no ensino das artes (Brasiacutelia Editora D 1994) SCHECHNER Richard The End of Humanism (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982) ________ A New Paradigm for the Theatre in the AcademyTDR Vol 364 (1992) pp 7-10 SCHIMMEL Paul ed Out of Actions between Performance and the Object 1949-1979 (Londres e Nova York Thames and Hudson 1998) VILLAR de Queiroz Fernando Antonio Pinheiro lsquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi of La Fura dels Bausrsquo Romance Quarterly 464 (1999) pp 248-54 ______________ lsquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rsquo tese de PHD defendida e aprovada em 08 de janeiro de 2001 Senate House University of London (2001) WILES Timothy J The Theatre Event (Chicago The University of Chicago Press 1980)

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Estudo sobre a participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental

Pacircmela Goumlethel Dutra1 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel2

Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Ana Maria Bueno Accorsi3 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Resumo O artigo apresenta a pesquisa com um grupo instrumental em uma escola puacuteblica municipal em TaquariRS Partiu dos questionamentos Qual o significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental Quais as expectativas dos estudantes que participam desses grupos Qual a influecircncia da muacutesica para estes participantes Quais as expectativas de estudantes familiares e comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre o envolvimento dos familiares dos estudantes O objetivo foi compreender a importacircncia da participaccedilatildeo em um grupo instrumental escolar Constatou-se a importacircncia da participaccedilatildeo no grupo instrumental apontado por todos investigados Entende-se que esta pesquisa contribua para a construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para a educaccedilatildeo musical nas escolas bem como para a implementaccedilatildeo da legislaccedilatildeo que dispotildee sobre a inserccedilatildeo da muacutesica no Brasil Palavras-chave Educaccedilatildeo musical grupos instrumentais muacutesica na Educaccedilatildeo Baacutesica

1 Estudante do curso de Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Musical na Universidade Estadual pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Licenciada em Pedagogia pelo Centro Universitaacuterio Leonardo da Vinci Cursando o 9ordm semestre de licenciatura em Muacutesica pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Participou do grupo de pesquisa na Uergs intitulado Educaccedilatildeo Musical diferentes tempos e espaccedilos com linhas de pesquisas sobre processos de ensino e aprendizado em muacutesica e poliacuteticas em Educaccedilatildeo Musical Professora de muacutesica do municiacutepio de Taquari- RS desde 2013 no qual atua em atividades de Educaccedilatildeo Musical no curriacuteculo do ensino baacutesico nos anos iniciais e finais do ensino fundamental e em atividades escolares no extracurricular com aulas de instrumentos e na formaccedilatildeo de grupos instrumentais bandas marciais e coro infanto-juvenil 2 Doutora e Mestre em Educaccedilatildeo Musical pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Especialista em Informaacutetica na Educaccedilatildeo Ecircnfase em Instrumentaccedilatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul Licenciada em Muacutesica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Coordena o curso de Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Musical na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Unidade de Montenegro Eacute coordenadora da Aacuterea Muacutesica do Programa de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia em Montenegro da CAPESUERGS Coordena a Comissatildeo de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo da Uergs-Montenegro orientando bolsistas de iniciaccedilatildeo cientiacutefica em muacutesica e artes da FAPERGS CNPq e UERGS Eacute coordenadora dos grupos de pesquisa registrados no CNPq Arte criaccedilatildeo interdisciplinaridade e educaccedilatildeo e Educaccedilatildeo Musical diferentes tempos e espaccedilos Coordena o Programa de Extensatildeo Universitaacuteria do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo pela Uergs Eacute Diretora Cientiacutefica da Coleccedilatildeo Educaccedilatildeo Musical da Editora Prismas de Curitiba Faz parte da Comissatildeo Gauacutecha de Folclore e da Fundaccedilatildeo Santos Herrmann Eacute integrante da Academia Montenegrina de Letras ocupando a Cadeira nordm5 Faz parte da Associaccedilatildeo Montenegrina de Escritores 3 Possui graduaccedilatildeo em Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (1976) mestrado em Linguumliacutestica e Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (1999) e doutorado em Linguumliacutestica e Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (2005) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e Consultora Terapecircutica em Dependecircncia Quiacutemica Coordena o Curso de Licenciatura em Letras Portuguecircs e Literaturas de Liacutengua Portuguesa e o Curso de Especializaccedilatildeo Teoria e Praacutetica da Formaccedilatildeo do Leitor

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Abstract The article presents the research with an instrumental group at a municipal public school in TaquariRS The research started from the questions What is the meaning of student participation in an instrumental group What are the expectations of the students participating in these groups What is the influence of music on these participants What are the expectations of students families and the school community in relation to the group How does the involvement of the students family members occur The objective was to understand the importance of participation in a school instrumental group It was verified the importance of the participation in the instrumental group indicated by all investigated It is understood that this research contributes to the construction of public policies for music education in schools as well as for the implementation of the legislation that regulates the insertion of music in Brazil Keywords Musical education instrumental musical groups music in Basic Education

Introduccedilatildeo

As diversas possibilidades de inserccedilatildeo da muacutesica na escola conquistaram

legitimidade com a Lei nordm 11769 de 18 de agosto de 2008 Mais recentemente em

3 de maio de 2016 foi publicada a Lei nordm 13278 que incluiu artes visuais danccedila

muacutesica e teatro nos curriacuteculos dos diversos niacuteveis da Educaccedilatildeo Baacutesica A nova

legislaccedilatildeo altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional nordm 9394 de

1996 (LDB 93941996) estabelecendo um prazo de cinco anos para que os

sistemas de ensino promovam a formaccedilatildeo de professores para implantar esses

componentes curriculares nas escolas A partir dessas leis tem-se a obrigatoriedade

da inclusatildeo da muacutesica no curriacuteculo das escolas Neste sentido pode-se pensar na

diversidade dos modos de a muacutesica se configurar na escola inclusive como

atividade extracurricular Nesse sentido Wolffenbuumlttel (2014) aponta

Muitas vezes as escolas optam pelo desenvolvimento de determinadas atividades - dentre essas as musicais - em outras dimensotildees que natildeo as tradicionais relacionadas com tempos e espaccedilos curriculares Surgem assim as atividades extracurriculares como alternativas para o ensino

escolar (WOLFFENBUumlTTEL 2014 p 56)

Percebe-se portanto que as atividades musicais extracurriculares

possibilitam a inserccedilatildeo da muacutesica se assim for a opccedilatildeo da escola Poreacutem natildeo

inviabilizam a implementaccedilatildeo da muacutesica no ensino regular da mesma instituiccedilatildeo

podendo a escola oferecer tanto atividades musicais no ensino regular quanto

extracurricular

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Sobre as funccedilotildees sociais envolvidas nas praacuteticas instrumentais de grupos

musicais Bozzetto (2012) aponta a importacircncia da participaccedilatildeo de crianccedilas e jovens

em projetos que envolvam atividades musicais Em sua anaacutelise a autora afirma

A importacircncia de que projetos que satildeo erguidos com a funccedilatildeo de inserccedilatildeo social atraveacutes da muacutesica mantenham viva e coerente essa afirmativa cientes de que dar a oportunidade a uma crianccedila e jovem notadamente de camadas de baixa renda eacute abrir um mundo de possibilidades que com o tempo de convivecircncia podem se tornar uma referecircncia de mundo social para toda uma vida (BOZZETTO 2012 p 266)

Bozzetto (2012) finaliza essa discussatildeo refletindo sobre a necessidade de os

projetos sociais entenderem seu papel de inclusatildeo social destacando que a tarefa

do educador musical eacute a de ldquocontribuir para uma educaccedilatildeo musical mais justa e

humana e da importacircncia de sua inserccedilatildeo em projetos que reconheccedilam a praacutetica

musical como oportunidade de inclusatildeo socialrdquo (p 266)

Joly e Joly (2011) investigaram as praacuteticas sociais e os processos educativos

que acontecem em ambiente de orquestra No sentido das praacuteticas sociais as

autoras refletem sobre as ldquorelaccedilotildees que se estabelecem entre pessoas pessoas e

comunidade na qual se inserem pessoas e grupos grupos entre si grupos e

sociedade mais amplardquo (p 80)

De acordo com Bastiatildeo (2012) nosso paiacutes eacute multicultural possuindo vaacuterias

culturas diferentes e cada regiatildeo possui uma manifestaccedilatildeo folcloacuterica musical

proacutepria Nesse sentido o educador musical poderaacute atraveacutes da praacutetica de conjunto

trabalhar esse contexto ldquodadas a riqueza e a diversidade da muacutesica popular

brasileira ndash observam-se a valorizaccedilatildeo e a inserccedilatildeo das muacutesicas e manifestaccedilotildees da

cultura oral nos contextos acadecircmico e regular de ensinordquo (p 60)

Entende-se que atividades que envolvem grupos instrumentais nos quais a

praacutetica de conjunto estaacute inserida no seu cotidiano contemplam o que os Paracircmetros

Curriculares Nacionais (PCNs) tratam sobre os objetivos de expressatildeo e

comunicaccedilatildeo em muacutesica tais como

Improvisaccedilatildeo composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeo com instrumentos musicais tais como flauta percussatildeo etc eou vozes (observando tessitura e questatildeo de muda vocal) fazendo uso de teacutecnicas instrumental e vocal baacutesicas participando de conjuntos instrumentais eou vocais desenvolvendo autoconfianccedila senso criacutetico e atitude de cooperaccedilatildeo (BRASIL 1998 p 83)

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Ainda no que tange aos PCNs satildeo relacionados objetivos de interpretaccedilatildeo

acompanhamento recriaccedilatildeo e realizaccedilatildeo de arranjos

Arranjos de muacutesica do meio sociocultural e do patrimocircnio musical construiacutedo pela humanidade nos diferentes espaccedilos geograacuteficos eacutepocas povos culturas e etnias tocando eou cantando individualmente eou em grupo (banda canto coral e outros) construindo relaccedilotildees de respeito e diaacutelogo (BRASIL 1998 p 83)

Considerando-se a potencialidade da muacutesica na escola bem como a

existecircncia de atividades extracurriculares caracterizadas como organizaccedilotildees de

grupos instrumentais em diversas escolas alguns questionamentos surgiram Qual o

significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental Quais as

expectativas dos estudantes que participam destes grupos Qual a influecircncia da

muacutesica para esses participantes Quais as expectativas de estudantes familiares e

comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre o envolvimento dos

familiares dos estudantes Esta pesquisa portanto objetivou compreender a

importacircncia de fazer parte de um grupo instrumental escolar

O Grupo Instrumental Investigado

A investigaccedilatildeo sobre a importacircncia da participaccedilatildeo em um grupo instrumental

escolar originou-se a partir da inserccedilatildeo de uma das autoras deste artigo como

professora de muacutesica em uma escola puacuteblica municipal em TaquariRS O foco da

pesquisa deu-se a partir dessa atuaccedilatildeo considerando-se as atividades no

contraturno escolar

Os ensaios do grupo ocorrem uma vez por semana no uacuteltimo periacuteodo do

turno da tarde apoacutes as aulas coletivas de instrumentos de sopro Contando com

catorze estudantes de 10 a 18 anos de idade a atividade oportuniza a

experimentaccedilatildeo e o manuseio de diversos instrumentos musicais permitindo muitos

aprendizados importantes para o desenvolvimento musical dos estudantes

Atraveacutes da aquisiccedilatildeo de variados instrumentos musicais o grupo tem tido a

possibilidade de fazer apresentaccedilotildees em variadas configuraccedilotildees grupais incluindo

o formato de banda marcial possibilitando aos estudantes experimentar e manusear

uma diversidade musical

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Esta praacutetica extrapola os tempos e espaccedilos escolares agregando pessoas da

comunidade bem como egressos que continuam participando das atividades

musicais O grupo instrumental faz apresentaccedilotildees locais incluindo o comeacutercio local

as instituiccedilotildees beneficentes aleacutem das demais regiotildees do municiacutepio e de fora dele

Metodologia

A proposta metodoloacutegica desta investigaccedilatildeo incluiu a abordagem qualitativa o

meacutetodo estudo de caso e entrevistas e observaccedilotildees como teacutecnicas para a coleta dos

dados A anaacutelise dos dados consistiu na anaacutelise de conteuacutedo

A Abordagem Qualitativa

Para a pesquisa foi utilizada a abordagem qualitativa Martins (2004) explica

que a ldquometodologia qualitativa mais do que qualquer outra levanta questotildees eacuteticas

principalmente devido agrave proximidade entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 295)

Aleacutem disso eacute a partir de cada dado coletado conforme suas caracteriacutesticas que se

faz uma interaccedilatildeo entre os conteuacutedos atraveacutes dessa interaccedilatildeo a pesquisa traz suas

impressotildees e percepccedilotildees

A razatildeo para a escolha da abordagem qualitativa para realizaccedilatildeo deste

trabalho relacionou-se ao fato de a mesma possibilitar a reflexatildeo sobre a

participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental no contexto escolar e na

sociedade em que estatildeo inseridos

O Estudo de Caso

O estudo de caso caracteriza-se por atender a determinado objetivo atraveacutes

da investigaccedilatildeo de um caso especiacutefico Eacute muito utilizado quando se pretende

compreender explorar ou descrever acontecimentos e contextos complexos nos

quais estatildeo simultaneamente envolvidos diversos fatores Para Yin (2001) o estudo

de caso ldquocontribui de forma inigualaacutevel para a compreensatildeo que temos dos

fenocircmenos individuais organizacionais sociais e poliacuteticosrdquo (p 21)

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As Entrevistas Semiestruturadas

As entrevistas semiestruturadas permitiram aprofundar as questotildees

especiacuteficas desta pesquisa A entrevista semiestruturada eacute uma ldquoseacuterie de perguntas

abertas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o entrevistador

pode acrescentar perguntas de esclarecimentordquo (LAVILLE DIONE p 188) Todas

as entrevistas foram realizadas na escola na qual existe o grupo instrumental em

horaacuterios previamente combinados

Ao todo foram feitas cinco entrevistas sendo as mesmas realizadas com dois

estudantes integrantes do grupo instrumental com a matildee de um dos estudantes

com a diretora da escola e com uma professora Como acontece nas entrevistas do

tipo semiestruturada seguiu-se um roteiro mas com a possibilidade de serem

acrescidas outras perguntas conforme necessaacuterio

Considerando-se a escolha dos entrevistados foram seguidos alguns

criteacuterios Selecionou-se um estudante (denominado Estudante J) que participa do

grupo desde o iniacutecio das atividades Neste caso suas informaccedilotildees poderiam

fornecer uma visatildeo geral sobre a importacircncia de participar do grupo haacute mais tempo

O outro estudante (denominado Estudante W) foi escolhido por ter ingressado

recentemente no grupo instrumental e poderia fornecer outra visatildeo a respeito desta

participaccedilatildeo Deste modo aleacutem de ambos os estudantes terem concordado com a

participaccedilatildeo na pesquisa e de terem tempo disponiacutevel para serem entrevistados

eles poderiam contribuir com as informaccedilotildees sobre sua participaccedilatildeo mas tendo

tempos de participaccedilatildeo diferentes no grupo Foi entrevistada tambeacutem a matildee do

Estudante J que participa desde o iniacutecio das atividades do grupo instrumental A

professora que participou da pesquisa foi selecionada por ser docente na escola em

que o grupo instrumental tem suas atividades aleacutem de ter lecionado para os

estudantes investigados Adicionalmente esclarece-se que a professora concordou

em fornecer a entrevista e teve tempo para a mesma Por fim a diretora foi

entrevistada por ter importantes contribuiccedilotildees para a pesquisa considerando-se sua

visatildeo como gestora da escola

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A Anaacutelise dos Dados

Para a realizaccedilatildeo da anaacutelise dos dados coletados nesta investigaccedilatildeo utilizou-

se a anaacutelise de conteuacutedo a partir da proposta de Moraes (1999) Para Moraes

(1999) a anaacutelise de conteuacutedo ldquoconstitui uma metodologia de pesquisa usada para

descrever e interpretar o conteuacutedo de toda classe de documentos e textosrdquo (p 2) A

anaacutelise de conteuacutedo viabilizou a anaacutelise dos dados transcritos tendo contato com

diversos textos corroborando a conclusatildeo da anaacutelise sobre o assunto da pesquisa

atingindo assim os objetivos

Para a realizaccedilatildeo desta anaacutelise alguns procedimentos foram necessaacuterios

como as etapas que Moraes (1999) propotildee tais como a ldquopreparaccedilatildeo das

informaccedilotildeesrdquo a qual foi feita por meio de entrevistas semiestruturadas Deve-se

salientar que as entrevistas foram gravadas no gravador de aacuteudio do celular Apoacutes a

realizaccedilatildeo das entrevistas as mesmas foram integralmente transcritas Efetuadas as

transcriccedilotildees das cinco entrevistas todas passaram pelo processo de revisatildeo e

textualizaccedilatildeo a fim de ajustar possiacuteveis inconsistecircncias de dados ou mesmo

correccedilotildees ortograacuteficas e gramaticais necessaacuterias

Para Moraes (1999) este procedimento eacute importante para iniciar o processo

de codificaccedilatildeo dos materiais estabelecendo um coacutedigo que possibilite identificar

rapidamente cada elemento da amostra de depoimentos ou documentos a serem

analisados

Todo este processo resultou na constituiccedilatildeo de um caderno denominado

Caderno de Entrevistas 2015 (C E 2015) contendo as entrevistas dos estudantes

J e W da matildee do Estudante J da professora e da diretora da escola

Posteriormente este Caderno de Entrevistas 2015 passou por uma leitura

minuciosa considerando-se o processo de ldquounitarizaccedilatildeordquo proposto por Moraes

(1999) servindo de base para as etapas subsequentes quais sejam a

categorizaccedilatildeo e a anaacutelise dos dados Aleacutem do Caderno de Entrevistas tambeacutem foi

constituiacutedo outro caderno denominado Caderno de Categorizaccedilatildeo 2015 (C C

2015) A categorizaccedilatildeo consiste em um procedimento de ldquoagrupar dados

considerando a parte comum existente entre eles Classifica-se por semelhanccedila ou

analogia segundo criteacuterios previamente estabelecidos ou definidos no processordquo

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(MORAES 1999 p 6) Neste caderno os dados coletados foram separados por

categorias sendo que posteriormente depois de rigorosa anaacutelise das categorias

criadas compuseram os Resultados e a Anaacutelise dos Dados juntamente com a

realizaccedilatildeo da anaacutelise fundamentada no referencial teoacuterico desta pesquisa Salienta-

se que estas atividades foram precedidas de uma cuidadosa e ampla leitura do texto

final

Aleacutem dos cadernos mencionados foi constituiacutedo um Caderno de Fotografias

2015 (C F 2015) no qual se encontram as imagens dos eventos dos quais o grupo

instrumental participou servindo como complemento para a anaacutelise dos dados

Desse modo considerando-se o material coletado e organizado resultaram

as seguintes categorias de anaacutelise Os Entrevistados A Importacircncia da Participaccedilatildeo

dos Estudantes nas Atividades do Grupo Instrumental Influecircncias de Participar em

um Grupo Instrumental para a vida dos Estudantes Participantes e Familiares

Envolvidos Expectativas em Relaccedilatildeo agraves Atividades Instrumentais Estas categorias

foram analisadas a partir de um referencial teoacuterico da educaccedilatildeo musical o qual eacute

apresentado a seguir

Referencial Teoacuterico

O referencial teoacuterico selecionado para a anaacutelise dos dados desta investigaccedilatildeo

sobre a importacircncia da participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental

escolar foi constituiacutedo por conceitos de educaccedilatildeo musical e do desenvolvimento

musical de crianccedilas e adolescentes

A Educaccedilatildeo Musical

Kraemer (2000) trata da questatildeo epistemoloacutegica da educaccedilatildeo musical dentre

outros assuntos pertinentes ao tema Define como pedagogia da muacutesica o campo da

educaccedilatildeo musical explicando que a pedagogia da muacutesica ldquodivide seu objeto com as

disciplinas chamadas ciecircncias humanas filosofia antropologia sociologia ciecircncias

poliacuteticas histoacuteriardquo Para Kraemer (2000) ldquoeacute dada a relaccedilatildeo com a musicologia

(assim como com a praacutetica da muacutesica e a vida musical)rdquo (p 52) A psicologia da

muacutesica ldquoinvestiga o comportamento musical e as vivecircncias musicaisrdquo (p 55) e a

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sociologia da muacutesica ldquoas condiccedilotildees sociais e os efeitos da muacutesica assim como

relaccedilotildees sociais que estejam relacionadas agrave muacutesicardquo (p 57)

A partir desses fatores trazidos pelo autor eacute possiacutevel constatar o quanto eacute

vasto o campo da educaccedilatildeo musical agregando a muacutesica a vaacuterias aacutereas do

conhecimento e podendo ser trabalhada dentro dessas linguagens Assim cada

aspecto tem importantes contribuiccedilotildees para o conhecimento musical num todo

Assim como a pedagogia acrescenta em sua didaacutetica e se complementa com

as outras aacutereas do conhecimento para ter mais ecircxito no ensino-aprendizagem e na

relaccedilatildeo estudante-professor podemos fazer o mesmo com a muacutesica agregando

essas aacutereas no fazer didaacutetico-musical Satildeo aacutereas que se complementam em

diversas situaccedilotildees Desse modo a muacutesica tem um papel integrador e

transdisciplinar assim como o papel da pedagogia que considera ldquoa vida humana

sob aspectos da educaccedilatildeo formaccedilatildeo instruccedilatildeo e didaacuteticardquo (KRAEMER 2000 p

60)

Eacute necessaacuterio que na muacutesica assim como na pedagogia existam esses

olhares num contexto amplo da educaccedilatildeo observando todos os aspectos relevantes

no desenvolvimento integral do estudante independente de como a disciplina estaacute

inserida na escola seja de forma curricular ou extracurricular Eacute importante que os

professores de muacutesica considerem a educaccedilatildeo musical como um todo objetivando a

formaccedilatildeo do cidadatildeo Natildeo se desconsidera a teacutecnica da execuccedilatildeo musical

igualmente importante Todavia outros conceitos que fazem parte da educaccedilatildeo

musical satildeo igualmente necessaacuterios

Englobando aspectos socioloacutegicos nos quais eacute observado o comportamento

de uma determinada sociedade e a forma com que se organizam no tempo livre e

trabalho Kraemer (2000) relaciona a muacutesica agrave sociologia explicando

A sociologia da muacutesica examina as condiccedilotildees sociais e os efeitos da muacutesica assim como relaccedilotildees sociais que estejam relacionadas com a muacutesica Ela considera o manuseio com a muacutesica como um processo social e analisa o comportamento do homem relacionado com a muacutesica em direccedilatildeo agraves influecircncias sociais instituiccedilotildees e grupos (KRAEMER 2000 p 57)

Para Swanwick (2003) eacute fundamental unir atividades de execuccedilatildeo

apreciaccedilatildeo e criaccedilatildeo para que os estudantes se desenvolvam artisticamente O foco

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reside especialmente no que acontece quando a pessoa se relaciona com muacutesica

no fazer musical

Swanwick (2003) propotildee trecircs atividades principais na muacutesica compor ouvir

muacutesica e tocaacute-la Ele reuacutene estas atividades em sua proposta conhecida no Brasil

como TECLA constituiacuteda pelo estudo da histoacuteria da muacutesica (literatura) e pela

aquisiccedilatildeo de habilidades (em inglecircs skill aquisition) denominado de teacutecnica Tem-

se assim T de teacutecnica E de execuccedilatildeo C de composiccedilatildeo L de literatura e A de

apreciaccedilatildeo E atraveacutes de sua proposta o autor aborda diversos fatores que

envolvem esse contexto Conceitos a se considerar em qualquer lugar em que o

educador musical possa estar atuando assim como os de Kraemer (2000) seja em

sala de aula anos iniciais e finais ou em um coro um grupo instrumental ou banda

escolar ou marcial com crianccedilas jovens ou adultos Onde haacute pessoas que de

alguma forma estatildeo se relacionando com muacutesica essas concepccedilotildees podem ser

utilizadas

O Desenvolvimento Musical de Crianccedilas e Adolescentes

O estudante ao se identificar com o que estaacute sendo proposto nas atividades

de ensino e aprendizagem no caso de atividades instrumentais em que o estudante

eacute considerado como um propositor e natildeo apenas plateia sentir-se-aacute responsaacutevel

pelas atividades e pelo sucesso das mesmas O estudante se sente valorizado o

que aumenta sua autoestima colabora para seu desenvolvimento pessoal no

sentido intelectual resultando familiarizaccedilatildeo e encantamento com o fazer musical

Nesse sentido Swanwick (2003) discorre sobre a importacircncia de ldquoconsiderar

o discurso musical dos alunosrdquo A partir daiacute o discurso ldquoconversaccedilatildeo musical natildeo

pode ser nunca um monoacutelogo Cada estudante traz consigo um domiacutenio de

compreensatildeo musical quando chega a nossas instituiccedilotildees educacionaisrdquo

(SWANWICK 2003 p 66)

Considerando a muacutesica como discurso ldquoprocederemos baseados na ideia de

que ela pode fazer uma diferenccedila na maneira como vivemos e como podemos

refletir sobre nossa vidardquo (SWANWICK 2003 p 78) Despertar no estudante o

encantamento com o fazer musical oportunizando a compreensatildeo dos aspectos

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musicais Swanwick (2003) explica que as ldquoteacutecnicas e manuseio de materiais

sonoros satildeo importantes mas sabemos que eles natildeo satildeo a soma total da

compreensatildeo musicalrdquo (p 67) Mesmo em grupos musicais que tecircm por base as

atividades instrumentais de aprendizagem de instrumento e praacutetica de conjunto

existem diversas possibilidades para alcanccedilar os objetivos musicais propostos

sensibilizando para a aprendizagem musical

Conforme Wolffenbuumlttel (2014) as atividades extracurriculares servem como

ldquoperspectiva de ampliaccedilatildeo das possibilidades das escolas Estudos realizados em

diferentes paiacuteses sugerem que as atividades extracurriculares satildeo capazes de

contribuir para o desenvolvimento dos alunosrdquo (p 56)

Em relaccedilatildeo agraves possibilidades musicais para desenvolver a compreensatildeo

musical Swanwick (2003) aponta a importacircncia de os estudantes terem ldquoa

oportunidade de produzir e responder agrave muacutesica em todas as camadas do discurso

musical qualquer que seja a atividaderdquo (SWANWICK 2003 p 97) As atividades

musicais em grupos instrumentais contemplam o que os PCNs sugerem para as

atividades musicais no que se refere agrave ldquoCriaccedilatildeo a partir do aprendizado de

instrumentos do canto de materiais sonoros diversos e da utilizaccedilatildeo do corpo como

instrumento procurando o domiacutenio de conteuacutedos da linguagem musicalrdquo (BRASIL

1998 p 83)

Resultados e Anaacutelise dos Dados

A partir da anaacutelise dos dados resultaram quatro categorias Os Entrevistados

A Importacircncia da Participaccedilatildeo dos Estudantes nas Atividades do Grupo

Instrumental Influecircncias de Participar em um Grupo Instrumental para a vida dos

Estudantes Participantes e Familiares Envolvidos Expectativas em Relaccedilatildeo agraves

Atividades Instrumentais

Os Entrevistados

Foram entrevistadas cinco pessoas dois estudantes a matildee de um dos

estudantes uma professora e a diretora da escola

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Um dos estudantes do grupo instrumental o Estudante J participa das

atividades musicais extracurriculares desde abril de 2013 ele iniciou com aulas de

flauta doce e apoacutes a criaccedilatildeo do grupo instrumental teve a oportunidade de

experimentar e manusear outros instrumentos musicais iniciando seus estudos no

saxofone alto o qual toca no grupo ateacute os dias de hoje Seu pai e seu avocirc tambeacutem

tocam instrumentos musicais sendo que desde crianccedila o Estudante J disse

conviver com essas audiccedilotildees tendo aprendido muacutesica e em especial as noccedilotildees de

ritmo atraveacutes do ensinamento de seus familiares (C E 2015 p 11) O Estudante J

salientou que gosta muito de escutar muacutesica sertaneja muacutesica gauacutecha e vaacuterios

outros gecircneros musicais (C E 2015 p 12)

O Estudante W que tem 18 anos de idade participa das atividades do grupo

instrumental desde junho de 2014 tendo comeccedilado a tocar o instrumento musical

metalofone apoacutes a flauta doce este estudante iniciou seus estudos no saxofone alto

desde o iniacutecio de 2015 O Estudante W continuou no grupo instrumental mesmo

apoacutes sua saiacuteda da escola devido ao teacutermino de seus estudos no Ensino

Fundamental Este estudante explicou que nunca foi reprovado mas devido a

problemas familiares parou de estudar por um determinado tempo Diferentemente

do Estudante J o Estudante W natildeo tem familiares com conhecimentos musicais

sendo o primeiro a ter contato com a muacutesica na escola (C E 2015 p 7) O

Estudante W explicou que costuma escutar muacutesica em casa todos os dias

raramente assiste agrave televisatildeo e gosta muito de ouvir muacutesica sertaneja (C E 2015

p 9) Ele relatou que quase todo o dia pratica estudos no saxofone alto ou tem

contato com o instrumento mesmo que seja somente para fazer os procedimentos

de limpeza (C E 2015 p 8)

Eacute possiacutevel apoacutes caracterizar os estudantes organizar e categorizar suas

falas apontar aspectos relativos aos seus gostos e preferecircncias musicais Nesse

sentido Swanwick (2003) postula a necessidade dessa praacutetica de ldquoconsiderar o

discurso musical dos alunosrdquo (p 66) pois estes ao se apresentarem trazem suas

identidades musicais E nesse sentido considerar o discurso musical nos ensaios

do grupo instrumental foi um dos importantes procedimentos realizados

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Em relaccedilatildeo agrave famiacutelia foi entrevistada a matildee do Estudante J o qual eacute

participante do grupo instrumental desde 2013 tambeacutem entrevistado nessa

pesquisa

Representando os professores de sala de aula dos estudantes participantes

do grupo instrumental foi entrevistada a professora do componente curricular de

matemaacutetica Ela leciona para as turmas do 5ordm ao 9ordm ano fazendo parte do processo

de ensino e aprendizagem de estudantes de diferentes faixas etaacuterias que satildeo

participantes do grupo

Por fim da equipe diretiva da escola foi entrevistada a diretora a qual ocupa

este cargo de gestatildeo desde abril de 2014 Anteriormente era vice-diretora da

escola

A Importacircncia da Participaccedilatildeo de Estudantes nas Atividades do Grupo Instrumental

A partir da realizaccedilatildeo desta pesquisa constatou-se a importacircncia que o grupo

instrumental tem na vida de todos os envolvidos com este tipo de trabalho Quer

sejam os estudantes que participam do grupo quer sejam as famiacutelias ndash nesta

pesquisa caracterizadas pela entrevista com uma matildee ndash quer sejam os professores

que trabalham com esses estudantes que estatildeo participando do grupo e com

certeza a equipe diretiva caracterizada pela diretora todos percebem esta

importacircncia Cada um do seu modo demonstrou a intensidade da importacircncia desta

participaccedilatildeo

Os estudantes percebem que ao participarem do grupo instrumental aleacutem de

gostarem eles constatam diversos aprendizados tanto musicais quanto

extramusicais A este respeito o Estudante W relatou ldquoPercebo que para mim

ajudou bastante e eu acho que as pessoas gostam do que a gente faz bem dizer

assimrdquo (C E 2015 p 7)

Em outro momento da entrevista o Estudante W explicou sobre sua

socializaccedilatildeo no grupo e em relaccedilatildeo ao rendimento escolar De acordo com seu

depoimento ldquoAcho bom fiz vaacuterias amizades tambeacutem e gosto das apresentaccedilotildees

Sinto-me bem agrave vontade E melhorei meu rendimento bastante e a aprendizagemrdquo

(C E 2015 p 7)

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Quanto agrave oportunidade que lhe foi dada em relaccedilatildeo agrave muacutesica de participar do

grupo musical o Estudante W salientou este aspecto explicando ldquoSempre gostei de

muacutesica e nunca tinha tido a oportunidade de entrar e acabei gostando muitordquo (C E

2015 p 7)

O Estudante J outro entrevistado nesta pesquisa a respeito de seu apreccedilo

pelas aulas de instrumento explicou ldquoEu gosto muito das aulas eacute bom estar aqui

[na escola] estudando muacutesica e aprendendo outros instrumentos novos isso eacute bem

legalrdquo (C E 2015 p 11)

A matildee do Estudante J explicou sobre como percebe a participaccedilatildeo de seu

filho bem como sobre o que esta participaccedilatildeo resulta na famiacutelia modificando-a

inclusive

Ele gosta muito chega a hora de vir natildeo interessa se estaacute chovendo ou se natildeo estaacute ele [seu filho] se arruma e vem [agrave escola] de qualquer jeito Ele gosta muito isso foi uma coisa que vocecircs [da escola] fizeram que foi oacutetimo neacute [] Porque ele fica faceiro chega na hora ele guarda aquele instrumento com muito carinho muito bem guardado Ele gosta muito mesmo (C E 2015 p 3)

A professora dos estudantes que participam do grupo instrumental tambeacutem

observou o reflexo desta participaccedilatildeo no seu trabalho pedagoacutegico no cotidiano da

escola Para a professora ldquoAquele comprometimento que eles tecircm com o horaacuterio da

muacutesica de aprender e tudo mais causa neles um compromisso com o resto das

disciplinas em sala de aula tambeacutemrdquo (C E 2015 p 16) A diretora da escola

tambeacutem contribuiu com a anaacutelise fornecendo importantes dados sobre a participaccedilatildeo

dos estudantes da escola no grupo instrumental De acordo com a diretora

A participaccedilatildeo dos estudantes no grupo para mim eacute acima de tudo muita emoccedilatildeo porque eu sempre acreditei no projeto tentei da melhor maneira possiacutevel focar e conseguir mecanismos para que ele pudesse existir E eu vejo que estar no grupo eacute um grande investimento para essas crianccedilas e adolescentes na construccedilatildeo integral da sua personalidade da sua maneira de pensar e de ver o mundo (C E 2015 p 14)

A diretora ainda acrescentou um comentaacuterio sobre a repercussatildeo do grupo

instrumental na comunidade ressaltando a importacircncia desse fator ao explicar

O grupo instrumental traz a questatildeo da comunidade pois natildeo ficou apenas na escola Ele foi para a comunidade local no bairro ele foi para o centro da cidade as pessoas conhecem o grupo as pessoas convidam para participar de eventos Entatildeo eu acho que para a professora de muacutesica eacute

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profissionalismo para mim eacute emoccedilatildeo e para eles eu acho que eacute um trabalho de autoestima de grande valor porque satildeo crianccedilas de uma localidade rural que nunca se imaginaria de seguir um caminho de estrada de chatildeo com um saxofone (C E 2015 p 15)

As atividades musicais existentes no grupo instrumental da escola repercutem

junto agrave comunidade escolar no seu entorno demais regiotildees do municiacutepio e fora

dele E essa repercussatildeo eacute devida ao incentivo por parte da escola aos estudos

musicais dos estudantes do grupo instrumental e aos demais estudantes da escola e

de fora da escola Isso ocorre no caso do Estudante W que jaacute concluiu seus

estudos mas permanece na escola o que incentiva os demais estudantes a

optarem pela muacutesica como profissatildeo

Observou-se uma concordacircncia entre os entrevistados quando enfatizaram a

extrema importacircncia de os estudantes participarem do grupo instrumental (C E

2015) principalmente no que diz respeito agraves funccedilotildees da muacutesica Esta anaacutelise remete

a Kraemer (2000) considerando-se as funccedilotildees da muacutesica Do mesmo modo os

aspectos socioloacutegicos e psicoloacutegicos apresentaram-se relevantes para esta anaacutelise

O relacionamento entre as pessoas desenvolvido atraveacutes das atividades musicais

no grupo instrumental apresentou-se fortemente Kraemer (2000) ao analisar as

relaccedilotildees entre as pessoas e a importacircncia que a muacutesica pode ter em suas vidas

explica que a pedagogia da muacutesica ocupa-se com ldquoas relaccedilotildees entre a(s) pessoa(s)

e a(s) muacutesica(s) sob os aspectos de apropriaccedilatildeo e de transmissatildeordquo (KRAEMER

2000 p 51) Isto foi encontrado nesse grupo bem como nas falas dos

entrevistados

Nesse sentido a partir das entrevistas realizadas que oportunizaram analisar

e correlacionar os conteuacutedos das falas ao referencial teoacuterico principalmente neste

caso como aponta Kraemer (2000) observa-se a importacircncia da muacutesica para as

pessoas bem como a potecircncia de estar em um grupo instrumental em espaccedilos

escolares

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Influecircncias de Participar de um Grupo Instrumental para a Vida dos Estudantes

Participantes e Familiares Envolvidos

Atraveacutes das entrevistas com os estudantes J e W observou-se a influecircncia

que a muacutesica exerce em suas vidas desde a entrada no grupo instrumental Neste

sentido o Estudante W explicou ldquoMinha famiacutelia apoia bastante eles gostam Em

casa eles pedem para tocar agraves vezes A voacute adora e apoia bastante sempre me

perguntando se eu tirei muacutesica nova alguma coisardquo (C E 2015 p 8)

Aleacutem disso ao comentar sobre o impacto em sua vida o Estudante W

explicou ldquoMelhorou bastante minha vida musical e familiar com isso eu me sinto

muito melhorrdquo (C E 2015 p 9) O Estudante W foi convidado a entrar no grupo

instrumental poreacutem natildeo tinha grandes expectativas musicais E foi se envolvendo

com o fazer musical despertando o interesse de aprender diversos instrumentos

musicais O Estudante W levou esse encantamento para seus familiares seus

ensaios musicais promovem satisfaccedilatildeo em sua famiacutelia promovendo uniatildeo e

interaccedilatildeo dos mesmos durante esse processo

O Estudante J externou em sua fala que ao entrar no grupo ocorreram

muitas mudanccedilas em seu modo de ser Em seu depoimento ele destacou

mudanccedilas quanto ao comprometimento e agrave pontualidade Ele observa que consegue

cumprir o que eacute solicitado pela professora estaacute estudando mais Assim ldquome ajudou

bastante ateacute na aula normal estou mais comportado fazendo todos os trabalhos

melhorrdquo (C E 2015 p 12)

Em relaccedilatildeo agrave famiacutelia a matildee do Estudante J enfatizou a grande socializaccedilatildeo e

o clima de harmonia que a famiacutelia experienciou por meio do contato de seu filho com

o instrumento musical em casa (C E 2015)

Observa-se nos depoimentos a funccedilatildeo da muacutesica no campo socioloacutegico que

vai ao encontro do que Kraemer (2000) acredita jaacute que ldquoconsidera o manuseio com

a muacutesica como um processo socialrdquo e analisa o ldquocomportamento do homem

relacionado com a muacutesica em direccedilatildeo agraves influecircncias sociais institucionais e gruposrdquo

(p 57) Eacute possiacutevel atraveacutes dos dados coletados observar a influecircncia social e

comportamental que a muacutesica exerce entre os agentes envolvidos seja no acircmbito

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familiar ou no processo de desenvolvimento intelectual dos estudantes participantes

do grupo

Nas falas da escola caracterizadas pela entrevista com a diretora e com a

professora foi possiacutevel verificar que ambas tambeacutem trataram da influecircncia que

resulta da participaccedilatildeo no grupo instrumental A professora explicou suas

observaccedilotildees quanto aos estudantes participantes do grupo instrumental feitas na

sua aula Ela leciona haacute muitos anos na escola e por isso tem um grande

conhecimento dos estudantes os tem acompanhado antes mesmo de ingressarem

no grupo instrumental Ao conhecer os estudantes ela pode analisar mais

amplamente De acordo com a professora

A gente nota uma diferenccedila bastante elevada neles Que eles se concentram mais em sala de aula e isso ajuda para o futuro deles e isso eacute muito bom Pois a gente sabe que tudo na vida precisa de concentraccedilatildeo precisa de carinho para fazer as coisas precisa de dedicaccedilatildeo E isso eu vejo enquanto eles aprendem muacutesica Eacute claro que isso reflete em sala de aula tambeacutem (C E 2015 p 17)

Foi possiacutevel constatar ao analisar a entrevista da professora no que se

relaciona agrave psicologia da muacutesica o que Kraemer (2000) explica sobre as

ldquosemelhanccedilas e diferenccedilas observaacuteveis de comportamento e da vivecircncia musicalrdquo (p

55) Assim pode-se analisar as funccedilotildees da educaccedilatildeo musical que envolvem ldquotarefas

da pedagogia da muacutesica [que] devem ser definidas juntamente com a aquisiccedilatildeo de

conhecimento compreender e interpretar descrever e esclarecer conscientizar e

transformarrdquo (KRAEMER 2000 p 66)

Os dados obtidos nas entrevistas no que diz respeito agrave participaccedilatildeo dos

estudantes no grupo instrumental tambeacutem remetem agrave importacircncia da oferta de

atividades no turno inverso escolar Nesse sentido Wolffenbuumlttel (2014) explica que

as atividades extracurriculares tecircm uma perspectiva de ampliaccedilatildeo das possibilidades

das escolas Segundo a autora as ldquoatividades extracurriculares satildeo capazes de

contribuir para o desenvolvimento dos alunosrdquo (p 56)

Expectativas em Relaccedilatildeo agraves Atividades Instrumentais

Ao longo das entrevistas os estudantes participantes do grupo instrumental

externaram suas expectativas musicais em relaccedilatildeo a esta participaccedilatildeo O Estudante

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W foi aleacutem acrescentando sua expectativa profissional De acordo com seu

depoimento ldquoEu pretendo evoluir de repente fazer uma faculdade de muacutesica que

me interessa bastante esse caminhordquo (C E 2015 p 8)

O Estudante J em sua entrevista afirmou sobre as expectativas em relaccedilatildeo agrave

participaccedilatildeo no grupo pretendendo aperfeiccediloar-se para uma melhor representaccedilatildeo

de sua escola De acordo com ele esta participaccedilatildeo se daacute no sentido de ldquofazer o

que tem que fazer natildeo deixar de ensaiar em casa e fazer o melhor Espero que

cada vez melhore para representar melhor a escola e aprender tambeacutemrdquo (C E

2015 p 12) Em suas expectativas profissionais apontou a vontade de seguir

profissionalmente na muacutesica Para ele ldquoAh se surgir alguma oportunidade eu quero

fazer uma faculdade de muacutesica neacute Quero me formarrdquo (C E 2015 p 12) Nesta

fala externada pelo Estudante J observa-se o que os PCNs sugerem em relaccedilatildeo a

um dos objetivos gerais para a muacutesica na escola qual seja adquirir ldquoconhecimento

sobre profissotildees e profissionais da aacuterea musical considerando diferentes aacutereas de

atuaccedilatildeo e caracteriacutesticas do trabalhordquo (BRASIL 1998 p 82)

A participaccedilatildeo dos estudantes no grupo instrumental eacute de suma importacircncia

o que se evidenciou em suas falas em relaccedilatildeo agraves expectativas profissionais

remetendo agraves funccedilotildees da muacutesica e da educaccedilatildeo musical nos acircmbitos psicoloacutegico e

social estando em sintonia com as anaacutelises de Kraemer (2000) apresentadas

anteriormente

Observou-se que todos os entrevistados tecircm expectativas musicais

estudantes que inclusive mencionaram pretender seguir nas atividades musicais

como profissatildeo demonstrando encantamento com o fazer musical e indicando

pretensotildees profissionais A diretora por sua vez mencionou em sua fala esperar

que o grupo instrumental cada vez se estruture mais para assim atender mais

estudantes Ela se preocupa portanto em atender agraves demandas escolares e da

comunidade

Salienta-se que todo esse envolvimento teve como ponto de partida uma

atividade extracurricular (WOLFFENBUumlTTEL 2014) E o bom desempenho do grupo

eacute advindo de vaacuterios esforccedilos sendo que a muacutesica e seu ensino atraveacutes da

educaccedilatildeo musical estaacute desempenhando suas funccedilotildees na vida dos estudantes e dos

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familiares (KRAEMER 2000) Observou-se tambeacutem a valorizaccedilatildeo dos estudantes

participantes como sujeitos propositores no trabalho pedagoacutegico-musical

(SWANWICK 2003) resultando no encantamento do fazer musical colaborando

para o desenvolvimento integral dos sujeitos envolvidos considerando-se as

atividades musicais do grupo instrumental

Consideraccedilotildees Finais

Apoacutes a realizaccedilatildeo desta pesquisa foi possiacutevel responder aos

questionamentos apresentados na introduccedilatildeo deste artigo e que nortearam esta

investigaccedilatildeo quais sejam Qual o significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um

grupo instrumental Quais as expectativas dos estudantes que participam destes

grupos Qual a influecircncia da muacutesica para estes participantes Quais as expectativas

de estudantes familiares e comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre

o envolvimento dos familiares dos estudantes

Quanto ao significado da participaccedilatildeo dos estudantes no grupo instrumental

observou-se que a mesma reflete diversos aspectos positivos nas vidas de todos os

envolvidos o que segundo os estudantes do grupo instrumental possui vaacuterios

significados e representaccedilotildees em seus cotidianos Para eles significa ter melhoria

no comportamento na socializaccedilatildeo no processo de ensino e aprendizagem no

comprometimento na pontualidade na concentraccedilatildeo e no conviacutevio familiar

Agregam o significado de ldquofelicidaderdquo na convivecircncia que o grupo instrumental

proporciona e ainda destacam a importacircncia de representar a escola e a

abrangecircncia desta participaccedilatildeo junto agrave comunidade Todos os entrevistados

relacionaram significados com a importacircncia de o grupo existir na escola

apontando-o como desencadeador desses diversos contextos significativos para

eles

As expectativas dos participantes deste grupo foram tambeacutem

questionamentos desta pesquisa Constatou-se que os estudantes possuem

expectativas profissionais em relaccedilatildeo agrave muacutesica quando acrescentaram o interesse

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em continuar seus estudos musicais para culminar com o ingresso em um curso

superior em muacutesica

Outro questionamento foi a influecircncia da muacutesica para os participantes deste

grupo De acordo com os dados coletados e analisados observa-se que o grupo

instrumental influencia de forma positiva suas vidas visto que foram observadas

mudanccedilas positivas pela matildee pela professora e pela diretora aleacutem dos estudantes

principalmente nas suas condutas e atuaccedilotildees no acircmbito familiar e escolar

resultando em melhorias nas relaccedilotildees sociais e no ensino e aprendizagem

As expectativas dos estudantes familiares e comunidade escolar quanto ao

grupo instrumental foi um dos questionamentos que oportunizou inuacutemeros

aprendizados no que diz respeito agrave pesquisa Observou-se que todos os

entrevistados esperam que o grupo se estruture cada vez mais para que os

benefiacutecios de participar de um grupo instrumental sejam ampliados para mais

estudantes ressaltando expectativas em relaccedilatildeo agrave evoluccedilatildeo como instrumentistas

para continuar contribuindo na qualidade e no crescimento do grupo

Por fim o envolvimento dos familiares dos participantes deste grupo foi um

questionamento que se apresentou de forma bastante marcante nesta pesquisa De

acordo com as entrevistas pocircde-se compreender o envolvimento significativo da

famiacutelia no processo de desenvolvimento musical do estudante identificou-se que a

famiacutelia participa da rotina de estudos e que proporciona momentos de integraccedilatildeo

nos ensaios de repertoacuterio dos estudantes com os demais familiares Isso

desencadeia reflexotildees sobre a importacircncia de seu filho ter contato com um

instrumento musical e de conviver em um grupo instrumental motivando-o para a

permanecircncia no mesmo

Alguns fatos surpreenderam no decorrer desta pesquisa como momentos de

emoccedilatildeo na entrevista com a diretora na fala fervorosa da matildee do Estudante J em

relaccedilatildeo agrave rotina de ensaios musicais do filho e a integraccedilatildeo familiar que promove As

entrevistadas ao responderem aos questionamentos da entrevista emocionaram-se

muito demonstrando a forte relaccedilatildeo advinda da existecircncia do grupo instrumental na

escola

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Deve-se salientar tambeacutem que a pesquisa possibilitou a reflexatildeo sobre os

fazeres pedagoacutegico-musicais da professora de muacutesica atuante na escola a qual

coordena o grupo instrumental investigado Foi possiacutevel neste processo

investigativo constatar a dimensatildeo e a importacircncia desse trabalho na vida dos

estudantes identificando atraveacutes dos depoimentos analisados a responsabilidade

que os profissionais da aacuterea da educaccedilatildeo musical tecircm Eacute importante portanto que

sempre se esteja atento agraves atitudes procedimentos e metodologias utilizados pois

somos importantes neste processo para aleacutem do encantamento do fazer musical

para uma aprendizagem que contribua com a formaccedilatildeo de um ser humano integral

Ao longo da pesquisa outros dados relevantes foram coletados apontando

futuras investigaccedilotildees Desse modo resultaram novos questionamentos como O

que levou outros estudantes a desistirem de participar do grupo instrumental ao

longo de sua trajetoacuteria Qual a importacircncia de os estudantes que participam de um

grupo instrumental terem a oportunidade de manusear diversos instrumentos

musicais

Ao finalizar a investigaccedilatildeo prospecta-se que a mesma possa contribuir para a

construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para a educaccedilatildeo musical no contexto escolar

Entende-se tambeacutem que este trabalho possa contribuir com a implementaccedilatildeo da

legislaccedilatildeo que dispotildee sobre a inserccedilatildeo da muacutesica nas escolas brasileiras e assim

somar de maneira significativa na vida dos estudantes participantes como no caso

do grupo instrumental pesquisado

Referecircncias BASTIAtildeO Zuraida Abud Praacutetica de conjunto instrumental na educaccedilatildeo baacutesica Muacutesica na Educaccedilatildeo Baacutesica Londrina v4 n4 p 58-69 novembro de 2012

BOZZETTO Adriana Projetos educativos de famiacutelias e formaccedilatildeo musical de crianccedilas e jovens em uma orquestra Porto Alegre 2012 295 f Tese (Doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2012 BRASIL Secretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Paracircmetros curriculares nacionais arte Secretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Brasiacutelia DF 1998116 p

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DUTRA Pacircmela Goumlethel WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim ACCORSI Ana Maria Bueno Estudo sobre a

participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 120-

141 juldez 2016 Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

BRASIL Lei nordm 11769 de 16 de agosto de 2008 Altera a Lei ndeg 9394 de 20 dezembro de 1990 para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino de muacutesica na educaccedilatildeo baacutesica Brasiacutelia 2008 Disponiacutevel em lthttpwwwplanaltogovbrccivil_03LEISL9394htmgt Acesso em 15 set 2015 JOLY Maria Carolina Leme JOLY Ilza Zenker Leme Praacuteticas musicais coletivas um olhar para a convivecircncia em uma orquestra comunitaacuteria Revista da ABEM Londrina v19 n26 p 79-91 jul Dez 2011 KRAEMER Rudolf Dimensotildees e funccedilotildees do conhecimento pedagoacutegico musical Em Pauta Porto Alegre v11 n 1617 p 50-73 abrnov 2000 LAVILLE Christian DIONNE Jean A construccedilatildeo do Saber manual de metodologia da pesquisa em ciecircncias humanas Porto Alegre Artmed 1999 MARTINS Heloiacutesa Helena Tde Souza Metodologia qualitativa de pesquisa Educaccedilatildeo e Pesquisa Satildeo Paulo V 30 n2 p 289-300 maioago 2004 Disponiacutevel em lt httpwwwscielobrpdfepv30n2v30n2a07pdfgt Acesso em 25 ago 2015 MORAES Roque Anaacutelise de conteuacutedo Revista Educaccedilatildeo Porto Alegre v 22 n 37 p 7-32 1999 SWANWICK Keith Ensinando muacutesica musicalmente Satildeo Paulo Moderna 2003 VENTURA Magda Maria O estudo de caso como modalidade de pesquisa Revista da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro v 20 n 5 p 383-386 setout 2007 Disponiacutevel em lthttpsociedadescardiolbrsocerjrevista2007_05a2007_v20_n05_art10pdfgt Acesso em 15 ago 2015 WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim A inserccedilatildeo da muacutesica nos projetos poliacutetico-pedagoacutegicos da educaccedilatildeo baacutesica 1ordf ed Curitiba Editora Prismas 2014 YIN Robert K Estudo de caso planejamento e meacutetodos 2ordf ed Porto Alegre Bookman 2001

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TEATRO PARA QUEM A ARTE DE TEATRAR PARA TODOS Um estudo

sobre acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RS

Izabel Cristina da Silveira1

Fundaccedilatildeo de Arte e Cultura de Gravataiacute - FUNDARC

Resumo Este trabalho busca investigar analisar e viabilizar diaacutelogos reflexotildees e percepccedilotildees em torno do tema da acessibilidade cultural sob a oacuteptica do contexto teatral no estado do Rio Grande do Sul com um recorte pontual no municiacutepio de Porto Alegre capital do estado a fim de promover a inclusatildeo social da pessoa com deficiecircncia no acircmbito cultural Para tanto servem como suporte para anaacutelise registros pesquisa e observaccedilotildees de seis grupos de teatro do municiacutepio supracitado e suas relaccedilotildees com o assunto em pauta aleacutem de discussotildees das noccedilotildees de deficiecircncia acessibilidade e Legislaccedilatildeo vigente Palavras-chave Acessibilidade teatro inclusatildeo Abstract This work aims to investigate analyze and facilitate dialogues reflections and insights on the theme of cultural accessibility from the perspective of the theatrical context in the state of Rio Grande do Sul with a point cut in the city of Porto Alegre the state capital to promote social inclusion of persons with disabilities in the cultural sphere To serve both as support for analysis records research and observations six theater groups of the aforementioned municipality and its relations with the subject at hand in addition to discussing the shortcomings notions of accessibility and current legislation Keywords Accessibility theater inclusion

Introduccedilatildeo

[] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferenccedila nos inferioriza e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza Daiacute a necessidade de uma igualdade que reconheccedila as diferenccedilas e de uma diferenccedila que natildeo produza alimente ou reproduza as desigualdades (Boaventura de Souza Santos 2003 p56)

A pauta da acessibilidade nos meios de comunicaccedilatildeo e equipamentos

culturais tem se configurado como um importante tema de discussatildeo e luta entre

grupos e sociedade em decorrecircncia dos direitos da pessoa com deficiecircncia Os

esforccedilos neste sentido visam natildeo apenas proporcionar o acesso a produtos

culturais a uma parcela da populaccedilatildeo que se encontra excluiacuteda como tambeacutem

estabelecer um novo patamar de igualdade baseado na valorizaccedilatildeo da diversidade

1 Coordenadora do Departamento de Artes Cecircnicas da Fundarc em Gravataiacute Diretora e professora de teatro na

Cia Teatral Tem Gente no Palco Poacutes Graduada em Acessibilidade Cultural pela UFRJ Graduada em

Licenciatura em Teatro pela UFRGS

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Ao longo dos anos essas reivindicaccedilotildees tecircm provocado diversas mudanccedilas

no comportamento social que passa a identificar a pessoa com deficiecircncia como um

sujeito pertencente agrave sociedade que possui representatividade cidadatilde e econocircmica

Esse reconhecimento gera a necessidade de mudanccedilas e adaptaccedilotildees tambeacutem nas

manifestaccedilotildees culturais e artiacutesticas

Sendo assim o presente artigo busca trazer agrave tona tais questionamentos e

fomentar a discussatildeo do assunto problematizando e dialogando a fim de colaborar

efetivamente para a pauta da acessibilidade para todos e buscar alternativas

possiacuteveis para acessibilizar espetaacuteculos teatrais em suas apresentaccedilotildees

Para tanto realizou-se estudo praacutetico-teoacuterico junto a grupos teatrais do estado

do Rio Grande do Sul atuantes na capital Porto Alegre Optou-se por um recorte

pontual no maior centro urbano e cultural do estado com cenaacuterio teatral fortemente

constituiacutedo e onde se localiza o Curso de Graduaccedilatildeo em Teatro em uma das mais

conceituadas Universidades do Brasil ndash a Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS)

Levando-se em conta o grande nuacutemero de grupos teatrais existentes em

Porto Alegre e a impossibilidade de uma pesquisa que abranja todas as demandas

a metodologia deste trabalho teve como base uma amostragem de dados com

pesquisa e acompanhamento de 06 (seis) grupos teatrais profissionais com

empresa constituiacuteda e atuaccedilatildeo no mercado artiacutestico haacute mais de 05 (cinco) anos A

escolha se deu por conhecimento dos grupos e do trabalho que desenvolvem

levando-se em conta tambeacutem a disponibilidade dos mesmos e o contato que

possuem ou natildeo com o tema Para tanto foram selecionados entre os 06 (seis)

grupos pesquisados 02 (dois) que jaacute desenvolvem ou desenvolveram trabalhos em

acessibilidade cultural e outros 04 (quatro) que natildeo tecircm contato direto

A pesquisa caracteriza-se por seu caraacuteter qualitativo e quantitativo visando

compreender e interpretar este grupo determinado comportamento opiniotildees e

expectativas destes indiviacuteduos criando uma base de conhecimentos para depois

quantificaacute-los a partir de entrevista estruturada Este trabalho natildeo tem como intuito

apontar procedimentos certos ou errados mas levantar a problematizaratildeo da

acessibilidade no meio teatral tanto fiacutesico quanto de concepccedilatildeo instigando a

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comunidade artiacutestica e demais a refletir e perceber a necessidade de uma cultura

acessiacutevel a todos propondo ideias e atitudes que de fato promovam a inclusatildeo

social

Com um vieacutes de poliacutetica cultural o estudo levanta dados referentes agraves

poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo desenvolvidas no acircmbito da acessibilidade

cultural tendo como base a Lei Federal de Incentivo agrave Cultura (Lei Rouanet) a Lei

de Incentivo agrave Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (LIC) e o Fundo Municipal de

Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural do municiacutepio de Porto Alegre (Fumproarte)

procurando transitar pelas trecircs instacircncias governamentais de fomento agrave cultura no

Brasil

Para melhor fundamentaccedilatildeo alguns referenciais teoacutericos satildeo utilizados e

discutidos ao longo deste trabalho como embasamento para discussotildees acerca da

deficiecircncia e seu processo de inclusatildeo do teatro sob vieacutes acessiacutevel e da legislaccedilatildeo

vigente referente ao tema Em um segundo momento satildeo pontuados assuntos

referentes agrave acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais tendo como objeto de

estudo os grupos de teatro referidos a partir de entrevistas e aplicaccedilatildeo de

questionaacuterio com perguntas objetivas e abertas sobre a temaacutetica com amostra

teacutecnica dos resultados e anaacutelise discursiva sobre os dados coletados

Entre seus objetivos especiacuteficos alguns jaacute mencionados no corpo deste texto

que serviram de norteadores para o desenvolvimento deste trabalho estatildeo traccedilar

um panoramadiagnoacutestico da inclusatildeo social e cultural da pessoa com deficiecircncia a

partir do enfoque do teatro e seus espetaacuteculos qualificar accedilotildees desenvolvidas ao

encontro das demandas de acessibilidade discutir poliacuteticas puacuteblicas e culturais a

partir da interface com mecanismos de incentivo agrave cultura como Leis e Editais

analisar as dificuldades encontradas pelos grupos pesquisados no processo de

inclusatildeo relacionar o teatro e seu caraacuteter contestador e democraacutetico com a luta por

direitos das pessoas com deficiecircncia ampliar o diaacutelogo e reconhecimento da

importacircncia da igualdade baseada na valorizaccedilatildeo da diversidade

Todos esses objetivos e questionamentos vecircm ao encontro do propoacutesito

maior desta pesquisa que se fundamenta em viabilizar a discussatildeo reflexatildeo e

percepccedilatildeo em torno da acessibilidade cultural dentro do contexto teatral no estado

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do Rio Grande do Sul promovendo assim a inclusatildeo social da pessoa com

deficiecircncia

Contextualizaccedilatildeo histoacuterica social e legal

O teatro surge antes mesmo da Greacutecia Antiga Acredita-se que jaacute na Preacute-

Histoacuteria o Homem para se comunicar representavaencenava suas accedilotildees

principalmente as caccediladas para seus familiares e amigos Era uma maneira luacutedica e

de faacutecil compreensatildeo de contar e preservar sua histoacuteria Natildeo se tinha ainda o

espetaacuteculo teatral que de fato tem sua origem na Civilizaccedilatildeo Grega mas as

primeiras manifestaccedilotildees artiacutesticas comeccedilam a surgir e mais importante que isso o

ato de se comunicar

O espetaacuteculo teatral precisa ser entendido sentido internalizado para

somente entatildeo desempenhar seu papel significador de instrumento social e cultural

Para tanto o seu ato de comunicar deve ser abrangente natildeo seletivo ou excludente

Como arte democraacutetica que eacute deve ou deveria ser para todos

Todos Como Claudia Werneck ndash jornalista escritora e militante em inclusatildeo

social ndash intitula em um dos seus livros ldquoQuem cabe no seu todosrdquo E ao usar a

palavra TODOS a autora convida o leitor a acompanhar suas certezas e anguacutestias

sobre as diretrizes e encaminhamentos da inclusatildeo no Brasil Claudia questiona

instiga potildee agrave prova o que se costuma entender e chamar de Todos A sociedade eacute

constituiacuteda por diferentes Todos totalmente distintos entre si que segundo

Werneck precisam ser ampliados e reconhecidos para entatildeo tornarem-se um

TODOS somente Um TODOS social humano ldquo[] defendo que o direito agrave

igualdade social soacute seraacute garantido com o reconhecimento e a legitimaccedilatildeo de TODAS

as diferenccedilasrdquo (WERNECK 2012 p 29)

A psicoacuteloga e professora Virgiacutenia Kastrup em seu artigo ldquoCegos e videntes se

encontram no museu da dicotomia agrave partilha do sensiacutevelrdquo (p3) reafirma a

importacircncia das diferenccedilas para a construccedilatildeo de uma sociedade mais inclusiva

Eacute preciso atentar para o fato que o mundo comum natildeo eacute feito de igualdades e identidades [] Para o mundo ser comum no sentido amplo e inclusivo ele deve comportar a heterogeneidade Natildeo apenas toleraacute-la mas honrar-se com as muacuteltiplas diferenccedilas que nele habitam (KASTRUP p3)

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O Brasil apresenta segundo uacuteltimo censo do Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatiacutestica (IBGE) de 2010 cerca de 456 milhotildees de pessoas com deficiecircncia

239 da populaccedilatildeo que declara ter algum tipo de deficiecircncia Destas a deficiecircncia

visual aparece em maior nuacutemero (188) -- tendo a regiatildeo Sul do paiacutes com maior

abrangecircncia de casos -- seguida pela deficiecircncia fiacutesica (7) e depois auditiva (51)

e intelectual (14) segundo publicaccedilatildeo do Jornal Estadatildeo de 290620122

Com nuacutemeros tatildeo significativos natildeo se pode pensar que a inclusatildeo de

pessoas com deficiecircncia seja um assunto remoto ou longiacutenquo que a sociedade natildeo

esteja ciente e integrada a tal fato Mas o que acontece no campo da praacutetica eacute bem

diverso da teoria

Muito do que se pode constatar eacute que a falta de inclusatildeo da pessoa com

deficiecircncia se reafirma a partir de barreiras atitudinais fundamentadas em uma

cultura histoacuterico-social que construiu um estereoacutetipo de separaccedilatildeo entre pessoas

saudaacuteveis e pessoas ldquodoentesrdquo com problemas leia-se deficiecircncia Quebrar

tais barreiras se torna muito mais difiacutecil do que solucionar barreiras fiacutesicas palpaacuteveis

e concretas

Sob o vieacutes filosoacutefico-social

O homem em sua busca incessante por descobrir-se por encontrar seu lugar

no mundo anseia por elementos que o faccedilam sentir-se ldquovivordquo uacutetil sujeito ativo de

sua histoacuteria Os viacutenculos sociais natildeo fazem parte apenas da necessidade cataacutertica

do ser humano da sua busca por encontrar-se por pertencer a um lugar mas satildeo

tambeacutem laccedilos culturalmente construiacutedos O Homem quer e precisa se sentir parte

integrante da sociedade que o cerca Pessoas agrupam-se em torno de

pensamentos objetivos eou ideais em comum Encontrar semelhantes eacute a

certificaccedilatildeo de sua identidade eacute o natildeo se estar soacute Eacute protegerem-se em seus nichos

sociais de um mundo tantas vezes opressor desigual e competitivo

Diante de uma realidade calcada em valores descartaacuteveis natildeo eacute de se

admirar que atos de solidariedade sejam cada vez mais raros Sendo assim os

sup1 Fonte Agecircncia Brasil de 21082015 via site wwwebccombr

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viacutenculos humanos natildeo se constituem em laccedilos radicados em accedilotildees para o outro

mas sim em benefiacutecio proacuteprio O socioacutelogo Zygmunt Bauman sabiamente destaca

Os viacutenculos humanos satildeo confortavelmente frouxos mas por isso mesmo terrivelmente precaacuterios e eacute tatildeo difiacutecil praticar a solidariedade quanto compreender seus benefiacutecios e mais ainda suas virtudes morais (BAUMAN 2007 P30)

Para tanto ao se pensar em inclusatildeo se faz tambeacutem necessaacuterio aleacutem do

social e histoacuterico voltar o olhar para o intriacutenseco filosoacutefico O que leva as pessoas a

natildeo quererem enxergar o outro em suas especificidades e diversidades Alfredo

Bosi em seu livro Fenomenologia do Olhar nos apresenta este fenocircmeno e como

ele se manifesta ldquo[] o ato de olhar significa um dirigir a mente para um ato de

intencionalidade Eacute ter sua intenccedilatildeo voltada para o objeto de interesserdquo (BOSI

1988 p65) O olhar de cada um possui diferenccedilas e estas estatildeo ligadas agraves suas

vivecircncias o que se consegue captar e lhe eacute significativo O olhar para Bosi como

forma de expressatildeo que reconhece e percebe o outro em sua plenitude

Em um estudo mais intimista da fenomenologia da percepccedilatildeo atraveacutes dos

pensamentos do filoacutesofo e fenomenoacutelogo francecircs Maurice Merleau-Ponty (1908 -

1961) podemos constatar que haacute uma universalidade do sentir e sobre ela que

repousa nossa identificaccedilatildeo a constituiccedilatildeo do eu a generalizaccedilatildeo do corpo e a

percepccedilatildeo do outro onde para Ponty (1994 p 260) ldquotodo o saber se instala no

horizonte da percepccedilatildeordquo e reafirma que ldquose a percepccedilatildeo interpreta ela soacute o faz a

partir do mundo de forma sensiacutevelrdquo Pensar natildeo eacute somente razatildeo mas um refletir

sobre o mundo sensiacutevel A fenomenologia eacute uma atitude de reflexatildeo do fenocircmeno

que se mostra para noacutes na relaccedilatildeo que estabelecemos com os outros no mundo

Os fenocircmenos constituem o mundo como noacutes o experimentamos segundo nossas

experiecircncias e pensamentos Toda nossa relaccedilatildeo com o mundo natildeo teria razatildeo se

natildeo comeccedilasse pela percepccedilatildeo ou seja pelos sentidos Noacutes eacute que buscamos o

sentido daquilo que se mostra

No momento em que se deixa de perceber de olhar o outro e de fato

enxergaacute-lo em suas diferenccedilas e igualdades estes deixam de serem vistos como

possiacuteveis sujeitos de suas histoacuterias Sua autonomia eacute podada por assistencialismos

ou segregaccedilatildeo social A humanizaccedilatildeo dilui-se com a mesma intensidade com que o

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individualismo se enraiacuteza O Homem corre contra o tempo As relaccedilotildees passam a

adquirir um caraacuteter efecircmero e superficial e tudo se torna banal Natildeo basta mais

pertencer a uma sociedade eacute preciso ser o melhor aquele que corre na frente

ldquoCom mais frequecircncia ainda a exclusatildeo tende hoje a ser uma rua de matildeo uacutenicardquo

(BAUMAM 2007 p 75) Vivemos em ldquotempos liacutequidosrdquo

O cerceamento seja fiacutesico intelectual ou cultural se daacute de tal forma que o

indiviacuteduo perde sua autonomia transformando-se mecanicamente em apenas um

produto do meio O teatro surge neste contexto como um desses caminhos

possiacuteveis de serem trilhados como desmistificador de conceitos preestabelecidos

Quem faz essa pergunta ldquoqual eacute a sua utilidaderdquo deve estar atento a si mesmo a essa atitude que leva a negar o valor das aacutervores que natildeo datildeo frutos A aacutervore que natildeo daacute fruto ndash proverbialmente inuacutetil ndash se converte em algo essencial nas cidades sem oxigecircnio (BARBA 1991 p 145)

Quando o teatro entra em cena

Haacute uma diferenccedila fundamental entre a ciecircncia e a arte [] A ciecircncia atua diretamente sobre a realidade modificando-a Pelo contraacuterio a arte modifica os modificadores da sociedade transforma os transformadores (BOAL 1983)

A arte e sua estreita relaccedilatildeo com o homem e a sociedade a qual este

pertence torna-se um importante instrumento de discussatildeo e transformaccedilatildeo social

que natildeo pode ser esquecido nem perdido no emaranhado de modismos que

tendem a surgir Ao pensarmos a arte como elemento transformador capaz de

estabelecer diferentes relaccedilotildees de contextos e olhares somos remetidos agraves

possiacuteveis conexotildees e diaacutelogos que surgem a partir de sua experimentaccedilatildeo Sendo

assim o espectador deixa sua posiccedilatildeo de receptor passivo para ir ao encontro de

relaccedilotildees interativas que lhe permitam conceber seu proacuteprio conhecimento em

relaccedilatildeo agrave arte agrave obra ao espetaacuteculo

Amanda Tojal (2014 p15) a partir da anaacutelise dos processos de comunicaccedilatildeo

museoloacutegica que comeccedilam a se afirmar na sociedade contemporacircnea chama a

atenccedilatildeo para a forma de participaccedilatildeo do sujeito receptor ndash ldquo[] de uma condiccedilatildeo

anteriormente mais passiva como simples assimilador de uma mensagem ndash para

uma condiccedilatildeo mais dialoacutegica isto eacute a de um participante mais ativo no processo de

apreensatildeo e de ressignificaccedilatildeo do objeto cultural []rdquo

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Um equipamento cultural independentemente do segmento ndash museu galeria

teatro biblioteca ndash deve a priori comunicar Estabelecer essa via de comunicaccedilatildeo de

forma efetiva diante do heterogecircneo e oportunizar a qualquer pessoa o acesso e o

contato com a arte e suas manifestaccedilotildees A acessibilidade passa ou deveria passar

mais fortemente para aleacutem da acessibilidade fiacutesica e concreta gerando uma

reflexatildeo sobre como acessibilizar a comunicaccedilatildeo e a interaccedilatildeo A pessoa com

deficiecircncia deve ter atendido seu desejo de se sentir parte integrante do todo de

entender e reconhecer seu direito de pertencimento de ser ouvido de olhar para o

mundo de sentir se relacionar e acima de tudo de ter autonomia e liberdade

A acessibilidade natildeo eacute um favor que estaacute sendo feito eacute um direito de toda

pessoa com deficiecircncia Eacute garantir o direito maior e universal de toda e qualquer

pessoa de ir e vir de sua liberdade Conforme o Glossaacuterio de Acessibilidade

fornecido pelo Curso de Extensatildeo em EAD Acessibilidade em Ambientes Culturais

da UFRGS ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul o termo Acessibilidade

designa

Condiccedilatildeo para utilizaccedilatildeo com seguranccedila e autonomia total ou assistida dos espaccedilos mobiliaacuterios e equipamentos urbanos das edificaccedilotildees dos serviccedilos de transporte e dos dispositivos sistemas e meios de comunicaccedilatildeo e informaccedilatildeo por pessoa com deficiecircncia ou mobilidade reduzida

Sendo assim a acessibilidade cultural discussatildeo geral deste artigo eacute uma

das condiccedilotildees baacutesicas para que pessoas com algum tipo de deficiecircncia possam ter

acesso aos instrumentos e mecanismos de cultura usufruindo de suas

manifestaccedilotildees artiacutesticas

O teatro ensina contesta mostra sugere questiona natildeo se acomoda diante

do passivo do irremediaacutevel E como ainda pessoas ficam fora de suas salas

Como ainda muitas pessoas com deficiecircncia natildeo podem natildeo tecircm como assistir

usufruir de uma peccedila de teatro ir a um teatro consumir cultura viva Porque satildeo

diferentes O que deveria ser comum normal se torna o a mais o plus o

diferencial Ver espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis eacute com dia e hora marcada

A arte teatral por si soacute jaacute apresenta uma gama de problemaacuteticas a serem

transpostas Natildeo eacute faacutecil fazer teatro como natildeo eacute faacutecil fazer cultura no Brasil Grupos

normalmente possuem orccedilamentos e recursos reduzidos para montagem de seus

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trabalhos a formaccedilatildeo de plateia eacute uma luta constante a valorizaccedilatildeo e entendimento

da profissionalizaccedilatildeo do artista tem sido uma conquista em pequenas doses Diante

desse quadro parece surgir quase como um ldquoincocircmodordquo a questatildeo da acessibilidade

cultural no meio teatral Proporcionar espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis quando natildeo haacute

nem Casas de Teatro acessiacuteveis Quando as instacircncias governamentais acreditam

que os menores orccedilamentos e cortes devem comeccedilar pelas manifestaccedilotildees

artiacutesticas Com uma arbitrariedade latente tais questionamentos corroboram para a

divergecircncia selada entre praacutetica e teoria No entanto assim como nos lembra

Claudia Werneck em seu livro Ningueacutem mais vai ser bonzinho na sociedade

inclusiva ldquosomos cidadatildeos responsaacuteveis pela qualidade de vida do nosso

semelhante por mais diferente que ele seja ou nos pareccedila serrdquo

Tornar espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis natildeo eacute uma tarefa faacutecil e comumente

realizada Eacute necessaacuterio um entendimento conhecimento de causa recursos e

profissionais disponiacuteveis para que natildeo se caia na vala comum do ldquofazer por fazerrdquo

Quando se estaacute interferindo tatildeo diretamente na vida de outras pessoas todo o

cuidado eacute pouco e um estudo detalhado de todas as possibilidades viaacuteveis faz a

diferenccedila no resultado final

Atualmente alguns recursos satildeo vistos como fundamentais para serem

aplicados quando a proposta eacute acessibilizar um espetaacuteculo teatral Audiodescriccedilatildeo

Libras (Liacutengua Brasileira de Sinais) Estenotipia (legenda em tempo real) Braile QR

Code (coacutedigo bidimensional) Caixa alta texto simples e contraste Reconhecimento

de palco Rampas de acesso

O Teatro Acessiacutevel passa pela aplicabilidade dessas tecnologias mas

principalmente e fundamentalmente pela quebra das barreiras atitudinais frente agrave

percepccedilatildeo destas questotildees A ldquoEscola de Genterdquo Organizaccedilatildeo Natildeo Governamental

fundada em 2002 por Claacuteudia Werneck no Rio de Janeiro trabalha haacute bastante

tempo o tema da inclusatildeo e tem no teatro na representaccedilatildeo teatral um grande

propagador de luta e difusor dos direitos da pessoa com deficiecircncia no Brasil Tem

como objetivo transformar poliacuteticas puacuteblicas em poliacuteticas inclusivas para que

pessoas com e sem deficiecircncia exerccedilam seus direitos humanos desde a infacircncia

Em 2003 O Grupo Teatro Acessiacutevel ldquoOs Inclusos e os Sisosrdquo da ldquoEscola de

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Genterdquo foi criado como meio de mobilizaccedilatildeo pela diversidade inclusatildeo e

acessibilidade Em 2011 a ldquoEscola de Genterdquo idealizou a campanha ldquoTeatro

Acessiacutevel Arte Prazer e Direitosrdquo e produziu o primeiro espetaacuteculo infantojuvenil

com total acessibilidade no paiacutes o musical rock Um Amigo Diferente que se

tornou o siacutembolo da Campanha Teatro Acessiacutevel Arte Prazer e Direitos

Em 2013 entrou em vigor o Projeto de Lei 61292013 de autoria dos

deputados federais Jean Wyllys Jandira Feghali Mara Gabrilli e Rosinha Adefal

que institui o dia 19 de setembro como o ldquoDia Nacional do Teatro Acessiacutevelrdquo Para os

autores do Projeto ldquoa data ajudaraacute a divulgar a cultura por meio de atividades

cecircnicas que utilizem praacuteticas de acessibilidade fiacutesica e comunicativa a pessoas com

deficiecircnciardquo3

Accedilotildees concretas sendo pensadas e realizadas para o desenvolvimento de

poliacuteticas puacuteblicas que estejam ao encontro de praacuteticas acessiacuteveis no contexto teatral

e cultural

Leis e poliacuteticas puacuteblicas

Por muito tempo as pessoas com deficiecircncia foram vistas como um problema

familiar social e cliacutenico Consideradas ldquoaberraccedilotildeesrdquo de puniccedilotildees divinas ou doentes

incapazes essas pessoas tecircm lutado por seus direitos e conquistas de cidadania

principalmente por ocuparem seu lugar de sujeitos ativos na sociedade a que

pertencem

Por ainda muito se pensar ser um problema familiar e natildeo social a sociedade

vem deixando de dar o suporte necessaacuterio agraves pessoas com deficiecircncia quando o

que se tem eacute uma ldquodiacutevida humana e socialrdquo para com as mesmas

Simplesmente fechar os olhos e fingir natildeo estar vendo tapar os ouvidos e se

isentar de qualquer responsabilidade natildeo resolve o problema Ter acesso aos

instrumentos culturais agrave cultura eacute um direito universal e constitucional de todo e

qualquer cidadatildeo ldquoA Constituiccedilatildeo Brasileira eacute inclusiva [] natildeo eacute integradora

porque natildeo admite que apenas em determinadas condiccedilotildees o exerciacutecio dos direitos

3 Disponiacutevel em ltwwwcamaralegbrgt Acesso em 03 de julho de 2014

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humanos seja observado exercido exigidordquo (WERNECK 2012 P 62) Conforme

afirmaccedilatildeo do Artigo 215 da Constituiccedilatildeo Federal de 1988

Art 215 O Estado garantiraacute a todos o pleno exerciacutecio dos direitos culturais e acesso agraves fontes da cultura nacional e apoiaraacute e incentivaraacute a valorizaccedilatildeo

e a difusatildeo das manifestaccedilotildees culturais

A inclusatildeo da pessoa com deficiecircncia e mais especificamente o tema da

Acessibilidade Cultural tem conquistado seu espaccedilo diante do poder puacuteblico e

poliacutetico Leis de direitos satildeo aprovadas discussotildees traccediladas e reivindicaccedilotildees

formuladas A Lei Brasileira de Inclusatildeo da Pessoa com Deficiecircncia Lei 131462015

foi uma das grandes conquistas na luta pela inclusatildeo onde especifica em seu

capiacutetulo IX e artigo 42 que

A pessoa com deficiecircncia tem direito agrave cultura ao esporte ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas sendo-lhe garantido o acesso I - a bens culturais em formato acessiacutevel II - a programas de televisatildeo cinema teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessiacutevel

Sendo assim na legislaccedilatildeo mais recente que temos de defesa dos direitos da

pessoa com deficiecircncia em nosso paiacutes haacute a garantia por parte destes ao acesso

agraves atividades culturais entre elas o teatro Lei esta que origina o Estatuto da

Pessoa com Deficiecircncia ldquoum dos mais importantes instrumentos de emancipaccedilatildeo

civil e social dessa parcela da sociedaderdquo segundo o Senador Paulo Paim (autor da

Lei) que entrou em vigor no dia 02 de janeiro de 2016 O Estatuto da Pessoa com

Deficiecircncia traz regras e orientaccedilotildees para que os direitos dessa parcela da

populaccedilatildeo sejam garantidos e estabelece puniccedilotildees para atitudes discriminatoacuterias ldquoO

documento consolida as leis existentes e avanccedila nos princiacutepios da Cidadaniardquo

reitera Paim

Em seu Capiacutetulo IX ndash Do Direito agrave Cultura ao Esporte ao Turismo e ao Lazer

Art 43 prevecirc ldquoO poder puacuteblico deve promover a participaccedilatildeo da pessoa com

deficiecircncia em atividades artiacutesticas intelectuais culturais esportivas e recreativas

com vistas ao seu protagonismordquo

Outro importante marco legislatoacuterio no referente agrave acessibilidade cultural eacute o

Plano Nacional de Cultura (PNC) ldquoinstituiacutedo pela Lei 12343 de 02 de dezembro de

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2010 tem por finalidade o planejamento e implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de

longo prazo (ateacute 2020) voltadas agrave proteccedilatildeo e promoccedilatildeo da diversidade cultural

brasileirardquo (Ministeacuterio da Cultura)

Em especial a Meta 29 do Ministeacuterio da Cultura que se refere agrave

acessibilidade de espaccedilos e instrumentos culturais afirmando que

100 de bibliotecas puacuteblicas museus cinemas teatros arquivos puacuteblicos e centros culturais devem atender aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolver accedilotildees de promoccedilatildeo da fruiccedilatildeo cultural por parte das pessoas com deficiecircncia

Seguindo a linha de referenciais norteadores no tema da acessibilidade

temos como leitura obrigatoacuteria a publicaccedilatildeo do livro Nada sobre noacutes sem Noacutes

relatoacuterio final da Oficina Nacional de Indicaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Culturais para

Inclusatildeo de Pessoas com Deficiecircncia que se realizou na cidade do Rio de Janeiro

no periacuteodo de 16 a 18 de outubro de 2008 numa parceria da Secretaria da

Identidade e da Diversidade Cultural do Ministeacuterio da Cultura (SIDMinC) com a

Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Ministeacuterio da Sauacutede e com apoio da Caixa

Econocircmica Federal (CEF) Esta Oficina foi destinada a artistas gestores puacuteblicos

pesquisadores e agentes culturais da sociedade civil representativos do campo da

produccedilatildeo cultural das pessoas com deficiecircncia Conforme consta na introduccedilatildeo

desta publicaccedilatildeo o objetivo dessa oficina foi

Indicar diretrizes e accedilotildees no sentido de contribuir para a construccedilatildeo de poliacuteticas culturais de patrimocircnio difusatildeo fomento e acessibilidade para pessoas com deficiecircncia A oficina foi constituiacuteda a partir de um processo participativo e por isso adotamos o lema lsquoNada sobre Noacutes sem Noacutesrsquo

Por fim um dos documentos mais significativos de orientaccedilatildeo para poliacuteticas

puacuteblicas direcionadas agraves pessoas com deficiecircncia eacute a Convenccedilatildeo dos Direitos das

Pessoas com Deficiecircncia da ONU de 2008 em que o Brasil eacute um dos paiacuteses

signataacuterios ou seja aceitou estar juridicamente vinculado agrave obrigaccedilatildeo de tratar as

pessoas com deficiecircncia como sujeitos de direito com direitos bem definidos tal

como qualquer outra pessoa A Convenccedilatildeo eacute um Tratado Internacional de Direitos

Humanos aprovado na Assembleia Geral da ONU em 13 de dezembro de 2006 e

assinado pelo Brasil em 30 de marccedilo de 2007 Entrou em vigor em 03 de maio de

2008 apoacutes ter sido ratificado por 20 (vinte) paiacuteses membros das Naccedilotildees Unidas Eacute

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um instrumento que reafirma os princiacutepios universais (dignidade integralidade

igualdade acessibilidade e natildeo discriminaccedilatildeo) a todos os cidadatildeos em particular agraves

pessoas com deficiecircncia Tem como objetivo promover proteger e assegurar o

exerciacutecio pleno de todos os direitos humanos e fundamentais por parte de todas as

pessoas com deficiecircncia e promover o respeito pela sua dignidade

Metodologia A partir de uma pesquisa praacutetica teoacuterica 06 (seis) grupos de teatro do

municiacutepio de Porto Alegre no estado do Rio Grande do Sul foram entrevistados

respondendo um questionaacuterio com perguntas objetivas e abertas e instigados a

dialogar sobre a pauta da acessibilidade cultural no meio teatral Para uma base

analiacutetica e de avaliaccedilatildeo com os referidos grupos o estudo daraacute conta

primeiramente de discutir as Leis de Incentivo agrave Cultura uma federal ndash Lei Rouanet

uma estadual ndash LIC e um Fundo Municipal de Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural

do municiacutepio de Porto Alegre ndash FUMPROARTE transitando assim pelas trecircs

esferas governamentais

A Lei Federal de Incentivo agrave Cultura (Lei nordm 8313 de 23 de dezembro de

1991) eacute a lei que institui poliacuteticas puacuteblicas para a cultura nacional atraveacutes do

Programa Nacional de Apoio agrave Cultura (Pronac) O grande diferencial da Lei

Rouanet eacute o mecanismo de incentivos fiscais em deduccedilotildees do Imposto de Renda

(IR) fornecidos agraves empresas (pessoas juriacutedicas) e cidadatildeos (pessoas fiacutesicas) que

invistam em accedilotildees culturais em um percentual de 4 e 6 respectivamente

A Lei surgiu com o intuito de fomentar e estimular as empresas e cidadatildeos a

investirem em cultura aleacutem de efetivamente promover poliacutetica cultural em

acessibilidade Conforme sua Instruccedilatildeo Normativa Nordm 1 de 24 de junho de 2013

para propostas e projetos culturais define em seu Art 3ordm as medidas de

acessibilidade que devem ser observadas

XI ndash medidas de acessibilidade intervenccedilotildees que objetivem priorizar ou facilitar o livre acesso de idosos e pessoas com deficiecircncia ou mobilidade reduzida assim definidos em legislaccedilatildeo especiacutefica de modo a possibilitar-lhes o pleno exerciacutecio de seus direitos culturais por meio da disponibilizaccedilatildeo ou adaptaccedilatildeo de espaccedilos equipamentos transporte comunicaccedilatildeo e quaisquer bens ou serviccedilos agraves suas limitaccedilotildees fiacutesicas

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sensoriais ou cognitivas de forma segura de forma autocircnoma ou acompanhada []

Jaacute na Lei de Incentivo agrave Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (LIC) natildeo haacute

referecircncias ao campo da acessibilidade Em sua Instruccedilatildeo Normativa Nordm 01 de 29

de fevereiro de 2016 da Secretaria da Cultura do Estado (SEDAC) natildeo haacute qualquer

menccedilatildeo ao tema A LIC assim como o FAC ndash Fundo de Apoio agrave Cultura fazem

parte do Sistema Unificado PROacute-CULTURA do RS programa que consiste no apoio

e fomento agraves atividades culturais do estado

Poderatildeo ser beneficiados pela LIC projetos culturais nas aacutereas de artes

plaacutesticas e grafismos artes cecircnicas e carnaval de rua cinema e viacutedeo literatura

muacutesica artesanato e folclore acervo e patrimocircnio histoacuterico e cultural

Aprovada e sancionada em 19 de agosto de 1996 a Lei Nordm 10846 (LIC)

institui a deduccedilatildeo fiscal de ICMS em ateacute 75 do valor aplicado pela empresa em

projetos culturais sendo os outros 25 repassados pelo patrocinador ao FAC

instituiacutedo pela Lei Nordm 11706 de 18 de dezembro de 2001 que tem por finalidade

financiar projetos culturais em 100 do seu valor e fomentar a produccedilatildeo artiacutestico-

cultural do Rio Grande do Sul mas tambeacutem natildeo apresenta criteacuterios referentes agrave

acessibilidade de forma obrigatoacuteria em seus editais destinados agraves Artes Cecircnicas

mais especificamente agrave aacuterea do teatro

O Fundo Municipal de Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural do municiacutepio de

Porto Alegre (FUMPROARTE) que eacute gerido pela Secretaria Municipal da Cultura

deste municiacutepio foi criado como forma de apoio agrave produccedilatildeo artiacutestica local com a

finalidade de financiar projetos de bolsas de pesquisa e de produccedilatildeo artiacutestico-

cultural Criado pela Lei Nordm 7328 de 04 de outubro de 1993 o FUMPROARTE abre

normalmente dois concursos anuais que satildeo divulgados atraveacutes de editais puacuteblicos

Podem concorrer ao Edital de Projetos apresentados pessoas fiacutesicas ou juriacutedicas

que proponham accedilotildees em qualquer aacuterea cultural

Analisando seu uacuteltimo edital de 2015 eacute possiacutevel observar que no capiacutetulo 4

Inscriccedilatildeo no item 43 Retorno de Interesse Puacuteblico no subitem 434 consta que ldquoos

projetos poderatildeo contemplar ainda accedilotildees de promoccedilatildeo de acessibilidade para

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pessoas com deficiecircncia []rdquo O que evidencia a sua natildeo obrigatoriedade

(ldquopoderatildeordquo) do criteacuterio ldquoacessibilidaderdquo para avaliaccedilatildeo dos projetos

Propondo um melhor entendimento e relaccedilatildeo com os resultados obtidos na

pesquisa os grupos entrevistados seratildeo aqui brevemente contextualizados

Grupo Las Brujas Cia de Teatro e Feiticcedilos

Tempo de atuaccedilatildeo 05 anos Integrantes 07 pessoas

O grupo surge em 2011 e em 2012 criou o espetaacuteculo infantil ldquoA Menina do

Cabelo Vermelhordquo que atraveacutes de sua personagem ldquoFiloacuterdquo busca trabalhar a

diversidade e inclusatildeo Em 2013 o grupo firmou uma parceria com a OVNI

Acessibilidade Universal ndash empresa com sede em Porto AlegreRS que produz

audiodescriccedilatildeo (AD) e legendas para surdos e ensurdecidos (LSE) ndash e consolidou-

se como o primeiro trabalho de teatro infantil da Regiatildeo Sul a proporcionar recurso

de audiodescriccedilatildeo aberta (onde natildeo satildeo utilizados aparelhos individuais para a

recepccedilatildeo) em suas sessotildees Aleacutem de audiodescriccedilatildeo em 2014 o espetaacuteculo teve

sessotildees com traduccedilatildeo simultacircnea em Libras ndash Liacutengua Brasileira de Sinais -- para

pessoas com deficiecircncia auditiva e distribuiacuteram livros e aacuteudios-livro ao puacuteblico

presente

Teatro Sarcaustico

Tempo de atuaccedilatildeo 12 anos Integrantes 13 pessoas

Com uma formaccedilatildeo de 12 (doze) anos o grupo que surgiu dentro do

Departamento de Arte Dramaacutetica da UFRGS jaacute tem um longo caminho de trabalhos

e espetaacuteculos montados notoriamente reconhecidos pelo puacuteblico e criacutetica Sua linha

de trabalho estaacute embasada no corpo e suas manifestaccedilotildees improvisaccedilotildees intensas

textos e criaccedilotildees proacuteprias

Uma das coordenadoras do grupo comenta que ele esteve sempre tatildeo

preocupado em trabalhar se autossustentar por tratar-se de um grupo

independente que a questatildeo da acessibilidade lhes passou ldquobatidordquo Algo novo para

se pensar mas que nunca realizaram nenhuma accedilatildeo contemplando a temaacutetica e a

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falta de recursos e orccedilamentos por si soacute jaacute eacute um grande complicador para

acessibilizar espetaacuteculos

Apesar de natildeo trabalharem direto com a questatildeo da acessibilidade o grupo

estaacute preocupado em discutir e dialogar sobre a diversidade a exclusatildeo Um dos

seus uacuteltimos espetaacuteculos uma montagem infantil ndash ldquoFranky Frankenstein um

Divertido conto de Terror sobre Amizaderdquo - aborda a ldquodiferenccedilardquo a diversidade no

mundo atual

Rococoacute Produccedilotildees Artiacutesticas e Culturais

Tempo de atuaccedilatildeo 05 anos Integrantes 02 coordenadores + 10 colaboradores

diretos

A empresa e grupo de teatro Rococoacute surgem a partir de dois atores e

bailarinos que trabalham em uma linha de investigaccedilatildeo da cultura tradicionalista

gauacutecha pluralidades de linguagens e formaccedilatildeo de plateia atraveacutes de editais

prefeituras SESC educaccedilatildeo escolas oficinas e assessoria em projetos culturais

Seu uacuteltimo espetaacuteculo ldquoEra uma vezContos Lendas e Cantigasrdquo do Projeto

ldquoA Visita da Fantasiardquo eacute bastante narrativo o que acredita Henrique ajuda que

pessoas com deficiecircncia visual possam entendecirc-lo melhor Fazem tambeacutem

reconhecimento de palco cenaacuterio figurinos quando haacute alguma deficiecircncia visual

Mas Henrique expressa a dificuldade de conhecimento que se tem sobre

acessibilidade no meio artiacutestico de entendimento ldquoNatildeo se pensa no assunto natildeo

enxergamosrdquo Disse que chegaram a pensar somente quando o espetaacuteculo jaacute estava

circulando

Grupo Trilho de Teatro Popular

Tempo de atuaccedilatildeo 10 anos Integrantes 05 pessoas

O Grupo Trilho trabalha essencialmente na linha social e didaacutetica de Bertolt

Brecht e do clown nas oficinas e montagens de seus espetaacuteculos Satildeo um grupo

independente que participa de editais mas seus orccedilamentos partem mais da venda

de espetaacuteculos e oficinas

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Um dos coordenadores e fundadores do grupo fala de nunca terem

trabalhado a questatildeo da acessibilidade e nem pensarem em aplicaacute-la por

desconhecimento do assunto pela falta de recursos financeiros e por serem outras

as demandas tratadas pelo grupo mesmo que de minorias como preconceito

racismo sexualidade gecircnero a pauta da deficiecircncia nunca esteve presente

Apesar de natildeo trabalharem diretamente com acessibilidade Daniel frisa que o

teatro de rua muito presente nos espetaacuteculos do grupo por sua democratizaccedilatildeo eacute

em partes mais acessiacutevel

Associaccedilatildeo Cultural Depoacutesito de Teatro

Tempo de atuaccedilatildeo 20 anos Integrantes 06 pessoas

O Grupo Depoacutesito do Teatro eacute uma entidade cultural sem fins

lucrativos fundada em 1996 Durante todos seus anos de atuaccedilatildeo produziu e

montou mais de 25 espetaacuteculos profissionais reconhecidos pela criacutetica e puacuteblico

conquistando inuacutemeras indicaccedilotildees e precircmios do Trofeacuteu Accedilorianos e Tibicuera da

Prefeitura de Porto Alegre

O grupo tem como um de seus principais objetivos a ldquotroca humana a

constituiccedilatildeo de sujeitos criativos autecircnticos e profundamente sensiacuteveisrdquo relata o

diretor e fundador da Associaccedilatildeo Cultural Depoacutesito de Teatro Poreacutem afirma

tambeacutem nunca terem trabalho acessibilidade ou com recursos acessiacuteveis em seus

espetaacuteculos ou oficinas

Grupo Signatores (Teatro com Surdos)

Tempo de atuaccedilatildeo 06 anos Integrantes 14 pessoas

O Signatores eacute um grupo de teatro biliacutengue sendo a primeira liacutengua a Liacutengua

Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a segunda o Portuguecircs E os membros do grupo

satildeo pesquisadores e professores especialistas na aacuterea de Educaccedilatildeo e Artes da

Comunidade Surda

Todos os seus espetaacuteculos satildeo representados por atores surdos em LIBRAS

e acompanhados por personagens narradores aacuteudio em Portuguecircs Os espetaacuteculos

apresentados pelo grupo foram ldquoAventuras no Reino Surdordquo ldquoMemoacuteria na Ponta dos

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Dedosrdquo ldquoO ensaio de Alicerdquo e ldquoAlice no Paiacutes das Maravilhasrdquo O grupo jaacute foi

contemplado com vaacuterios Editais a niacutevel municipal e estadual e financiamento

atraveacutes da Lei Rouanet

Em entrevista com a diretora ela pontua as diretrizes de trabalho do

Signatores Este que tem se mostrado um grupo bastante atuante no Estado quando

o assunto eacute inclusatildeo social acessibilidade e diversidade ldquoA proposta do Grupo

Signatores eacute incentivar a formaccedilatildeo de docentes e pesquisadores na aacuterea teatral e

aproximar jovens e adultos surdos dos palcos investigando as possibilidades de

criaccedilatildeo artiacutestica dos surdos [] invertendo a loacutegica vigenterdquo

Resultados de dados

Com base no questionaacuterio aplicado no acompanhamento e entrevistas aos

grupos surgem os diferentes questionamentos quanto ao entendimento e

conhecimento sobre questotildees referentes agrave acessibilidade e suas legislaccedilotildees assim

como aplicabilidade dos recursos acessiacuteveis O Graacutefico 1 denota que a maioria dos

grupos entrevistados jaacute teve contato com tema sobre acessibilidade cultural

(pergunta 1) e em uma quase equivalecircncia jaacute trabalhou com pessoas com

deficiecircncia ou teve acesso a recursos acessiacuteveis (perguntas 2 e 3) Em sua maioria

jaacute participou de algum edital de Lei de Incentivo agrave cultura (pergunta 4)

GRAacuteFICO 1

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Jaacute no Graacutefico 2 evidencia-se o desconhecimento de Poliacuteticas Puacuteblicas e

Legislaccedilatildeo sobre o tema da acessibilidade cultural (perguntas 5 e 8) As perguntas 6

e 7 referem-se respectivamente agrave existecircncia de grupos de teatro que trabalham

com recursos acessiacuteveis em seus projetos e se haacute Casas de Teatro acessiacuteveis em

Porto Alegre Todos os grupos pontuaram a falta de um conhecimento maior e

percepccedilatildeo em relaccedilatildeo ao assunto pautado e natildeo se consideram ldquoacessiacuteveisrdquo de

forma plena e eficaz Evidenciou-se o interesse de todos em pensar discutir e

aprender mais sobre acessibilidade

GRAacuteFICO 2

Conclusotildees

Com base nos resultados obtidos com as pesquisas e discussotildees pode-se

avaliar que poliacuteticas puacuteblicas que garantam os direitos culturais das pessoas com

deficiecircncia devem transitar por todas as esferas governamentais e natildeo ficarem

restritas ao acircmbito burocraacutetico que muitas vezes as consolidam O diaacutelogo entre

poder puacuteblico Instituiccedilotildees e gestores culturais eacute de cunho fundamental para a

articulaccedilatildeo de propostas e medidas inclusivas que de fato consolidem-se no cenaacuterio

cultural

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O que temos visto ainda eacute uma consciecircncia social muito enraizada e que

precisa ser constantemente trabalhada em barreiras atitudinais que natildeo permitem

ampliar a visatildeo quando o que estaacute em pauta satildeo as deficiecircncias Sabemos que

atraveacutes da cultura e educaccedilatildeo caminharemos para um futuro mais promissor com

menos desigualdades sociais menos violecircncia mais possibilidades ldquoO teatro

permite a construccedilatildeo de mentes mais livres e de cidadatildeos mais esclarecidos e

ativosrdquo (VIGANOacute 2006 p 36)

O olhar sentir o outro satildeo premissas baacutesicas para o comunicar Natildeo haacute

construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais e humanas se natildeo houver o reconhecimento do outro

como parte integrante de nossas vidas

Natildeo basta um pouco de eacutetica uma pitada de cidadania toques de cumplicidade um quecirc de direitos fundamentais Sempre que discutirmos estes assuntos agraves uacuteltimas consequecircncias estaremos colaborando para resolver a principal questatildeo incluir pessoas com deficiecircncia [] no TODOS social incondicionalmente (WERNECK 2012 p 27)

Referecircncias BARBA Eugenio Aleacutem das ilhas flutuantes Campinas SP Hucitec 1991 BAUMAN Zygmunt Tempos Liacutequidos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 BOAL Augusto 200 exerciacutecios e jogos para o ator e o natildeo-ator com vontade de dizer algo atraveacutes do teatro 5ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo SA 1983 BOSSI Alfredo Fenomenologia do olhar In BOSSI A O Olhar Satildeo Paulo Companhia das Letras 1988 BRASIL Ministeacuterio da Cultura As metas do Plano Nacional de Cultura Brasiacutelia Ministeacuterio da Cultura 2012 Disponiacutevel em lt httpswwwplanaltogovbrccivil_03_ato2007-20102010leil12343htmgt Acesso em 21 de dezembro de 2016 BRASIL Constituiccedilatildeo Federal 1988 BRASIL Convenccedilatildeo dos Direitos das Pessoas com Deficiecircncia da ONU 2008 Disponiacutevel em lt httpwwwplanaltogovbrccivil_03_Ato2007-20102009DecretoD6949htmgt Acesso em 21 de dezembro de 2016

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KASTRUP Virinia Vergara Luiz Guilherme Cegos e videntes se encontram no museu da dicotomia agrave partilha do sensiacutevel Ineacutedito MERLEAU-PONTY Maurice Fenomenologia da Percepccedilatildeo Martins Fontes 1994 Oficina Nacional de Indicaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Culturais para Inclusatildeo de Pessoas com Deficiecircncia Nada sobre noacutes sem noacutes Relatoacuterio final 16 a 18 de outubro de 2008 Rio de janeiro Rj ENSPFIOCRUZ 2009 SANTOS Boaventura de Sousa Reconhecer para libertar os caminhos do cosmopolitanismo multicultural Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003 TOJAL Amanda Pinto da Fonseca Comunicaccedilatildeo museoloacutegica e accedilatildeo educativa inclusiva mudanccedila de paradigmas In CARDOSO Eduardo CUTY Jeniffer (Org) Acessibilidade em ambientes culturais relatos de experiecircncias Porto Alegre Marcavisual 2014 VIGANOacute Suzana Schmidt As regras do jogo a accedilatildeo sociocultural em teatro e o ideal democraacutetico Satildeo Paulo Hucitec 2006 WERNECK Claudia Ningueacutem mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva Rio de Janeiro Editora WVA 2009 WERNECK Claudia Quem cabe no seu todos Rio de Janeiro Editora WVA 2006

Page 3: Fundação Municipal de Artes de Montenegro · Priscila Mathias Rosa – Vice-diretora Executiva Márcia Moura Cordeiro Pessoa Dal Bello ... (UNL/SANTA FE) Ana Maria Haddad Baptista

Sumaacuterio

Editorial

Editorial

LER EDITORIAL

Maria Isabel Petry Kehrwald P04 - P06

Artigos

A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de caso

LER ARTIGO

Marcio Guedes Correa P07 - P14

Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo Paul Valeacutery Espiritografias

LER ARTIGO

Idalina Krause de Campos P15 - P35

Gravura procedimentos alternativos em litografia contemporacircnea

L

Ana Paula Schoninger van Grol Lurdi Blauth P36 - P51

Pluralia Tantum reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea

LER ARTIGO

Fernando Lewis de Mattos P52 - P94

Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente

LER ARTIGO

Lutiere Dalla Valle P95 - P108

PerformanceS

LER ARTIGO

Fernando Pinheiro Villar P109 - P119

Estudo sobre a Participaccedilatildeo de Estudantes em um Grupo Instrumental

LER ARTIGO

Dutra Goumlethel Pacircmela Cristina Rolim Wolffenbuumlttel Accorsi Bueno Ana Maria

P120 - P141

Teatro para quem A arte de teatrar para todos - Um estudo sobre acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RS

LER ARTIGO

Izabel Cristina da Silveira P142 - P162

4 | P aacute g i n a

EDITORIAL

Nesta 32ordf ediccedilatildeo da Revista da FUNDARTE oferecemos aos nossos leitores

oito artigos centrados nas aacutereas das artes visuais muacutesica teatro educaccedilatildeo criadora

e cinema Eles estatildeo perpassados por enfoques educativos teoacutericos e artiacutesticos e

ancorados no tema ldquoArte e Educaccedilatildeo poeacutetica pesquisa e docecircnciardquo As

abordagens dos autores contemplam diferentes pontos de vista ora apresentando

processos artiacutesticos e performances ora refletindo sobre a pedagogia e a accedilatildeo

docente Eacute um panorama diversificado com propostas que enriquecem as discussotildees

em torno do tema

O primeiro artigo denominado ldquoA polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da

muacutesica popular uma proposta analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de casordquo

de Marcio Guedes Correa do Instituto de Artes da Unesp apresenta estudos de caso

na aacuterea da muacutesica que reforccedilam a importacircncia do contraponto tanto para a

organizaccedilatildeo do ensino da muacutesica popular quanto para a compreensatildeo do saber

musical Almada e Lima satildeo alguns dos autores que datildeo suporte agrave investigaccedilatildeo

Idalina Krause de Campos da UFRGS discorre em seu artigo ldquoFazer

tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery espiritografiasrdquo sobre conceitos de

leitura e escrita (escrileitura) e Filosofia da Diferenccedila entre outros que buscam

desenvolver uma consciecircncia da importacircncia do processo de pensar A pesquisa da

autora trata de uma praacutetica de ensino criadora centrada na obra de Valeacutery com

aportes teoacutericos tambeacutem de Deleuze e Corazza

As experiecircncia realizadas com diferentes meios e modos de produzir imagens

satildeo o foco do artigo ldquoGravura procedimentos alternativos em litografia

contemporacircneardquo de Ana Paula Schoninger van Grol da FeevaleNH

Procedimentos tradicionais satildeo inter-relacionados com processos de tecnologias

digitais propondo novas possibilidades de criaccedilatildeo de matrizes e aproveitamento de

materiais alternativos Blauth e Veneroso contribuem para o estudo da autora

5 | P aacute g i n a

Fernando Lewis de Mattos da UFRGS em seu ensaio ldquoPluralia Tantum

reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircneardquo apresenta elementos histoacutericos da

esfera musical e discorre sobre caracteriacutesticas da muacutesica contemporacircnea Aponta

paralelamente aspectos do conservadorismo da muacutesica atual presentes em nosso

cotidiano Suas argumentaccedilotildees apoiam-se em extensa bibliografia da qual citamos

Buckinx e Koellreutter

ldquoProvocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa

das imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docenterdquo aborda o cinema como dispositivo

provocador de formaccedilatildeo docente que conforme o autor Lutiere Dalla Valle da

UFSM ldquoproduz formas de ver e ser vistordquo O texto estabelece relaccedilotildees entre arte e

subjetividade presentes na cinematografia e explora o conceito de edu(vo)cativo

identificado nas aprendizagens mediadas pelas visualidades Contribuem para as

reflexotildees Dias Fresquet e Hernaacutendes

Fernando Pinheiro Villar aborda a pluraridade do conceito de performances

artiacutesticas relacionadas ao desempenho no seu artigo PerfomanceS Para o autor o

significado de desempenho afirma a observaccedilatildeo analiacutetica de comportamentos

humanos podendo significar comportamentos que se repetem ou accedilotildees cotidianas

que satildeo ensaiadas ou preparadas e observadas Segundo o autor ldquouma performance

sem consciecircncia do fato de estar sendo vista como tal pode significar uma

performance cotidiana cultural ou socialrdquo

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel Pacircmela Goumlethel Dutra e Ana Maria Bueno

Accorsi no artigo Estudo sobre a participaccedilatildeo de estudantes em um Grupo

Instrumental apresenta a pesquisa realizada em uma escola Municipal de TaquariR

que teve como objetivo compreender a importacircncia da participaccedilatildeo dos alunos em

grupos instrumentais diante das diversas possiblidades da inserccedilatildeo da muacutesica a partir

da nova legislaccedilatildeo

Como promover a inclusatildeo social da pessoa com deficiecircncia no acircmbito cultural

eacute a preocupaccedilatildeo de Izabel Cristina da Silveira da FUNDARCRS expressa no artigo

6 | P aacute g i n a

ldquoTeatro para quem A arte de teatrar para todos um estudo sobre

acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RSrdquo que fecha esta Revista O

estudo praacutetico-teoacuterico desvela discussotildees questionamentos e legislaccedilatildeo em torno do

tema na tentativa de buscar alternativas para a acessibilidade Barba Tojal e

Werneck satildeo alguns dos teoacutericos consultados

Agradecemos imensamente aos que enviaram seus artigos para compor a 32ordf

Revista da FUNDARTE Desejamos uma boa leitura e que as reflexotildees oferecidas

pelos autores contribuam para a busca de novos e inquietantes saberes

Maria Isabel Petry Kehrwald Conselho Editorial da Revista

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta

analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de caso

Marcio Guedes Correa1

Instituto de Artes da Unesp

Resumo O repertoacuterio estudado nos cursos formais de muacutesica popular eacute em grande parte tonal de textura homofocircnica estruturado como melodia acompanhada No entanto eacute possiacutevel reconhecer estruturas polifocircnicas subordinadas agrave homofonia dos acompanhamentos instrumentais frequentemente realizados para acompanhar canccedilotildees Pode-se conjecturar que tais estruturas estejam presentes no repertoacuterio como um eco da polifonia vocal do renascimento e do barroco jaacute que muitas escolhas de acordes se datildeo ldquode ouvidordquo e natildeo necessariamente por uma opccedilatildeo teacutecnica e funcional em relaccedilatildeo agrave harmonia Portanto a harmonia informalmente chamada de funcional da muacutesica popular pode carregar em si diversas expectativas de direccedilatildeo ou resoluccedilatildeo que satildeo mais de ordem meloacutedica do que harmocircnica Este estudo espera contribuir para a revalorizaccedilatildeo do estudo de contraponto dentro das matrizes curriculares de muacutesica popular jaacute que eacute notoacuterio que tal disciplina vem sendo extinta do ambiente formal de educaccedilatildeo musical Palavras-chave ensino da muacutesica popular cifra alfanumeacuterica polifonia em muacutesica popular contraponto em muacutesica popular Abstract The repertoire studied in formal courses of popular music is largely tonal It has homophonic texture and itrsquos structured as na accompanied melody However it is possible to recognize polyphonic structures under the homophone of instrumental accompaniments often performed to accompany songs One can conjecture that such structures are present in the repertoire as an echo of the vocal polyphony of the Renaissance and the Baroque as many chord choices are given by ear and not necessarily by a technical and functional option with regard to harmony Therefore the functional harmony informally called popular music can load itself diverse expectations of management or resolution that are more melodic than harmonic order This study hopes to contribute to the upgrading of counterpoint study within the curriculum matrices of popular music as it is clear that this discipline is being extinguished of the formal setting of music education Keywords teaching of popular music alphanumeric cipher polyphony in popular music counterpoint in popular music

Primeiro estudo de caso o movimento meloacutedico do baixo impliacutecito na cifra do

choro em Um a Zero de Pixinguinha

No ensino do repertoacuterio popular eacute muito comum a utilizaccedilatildeo de partituras que

contecircm melodias cifradas Esta forma de registro musical oferece a melodia principal

(anaacuteloga ao cantus firmus) grafada em partitura o que garante uma certa precisatildeo

na compreensatildeo dessa camada mas todos os outros elementos componentes da

1 Graduado em Licenciatura em Muacutesica pela FAAM mestre em muacutesica pelo Instituto de Artes da Unesp Doutorando em muacutesica da Unesp ndash Instituto de Artes sob orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Sonia R Albano de Lima Contato correamarcioguedesgmailcom

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elaboraccedilatildeo musical ficam representados unicamente pela cifra alfanumeacuterica A cifra

confere ao interprete um grau de liberdade desejaacutevel na muacutesica popular mas essa

mesma liberdade pode ser em alguma medida prejudicial no ensino de muacutesica

popular quando se trata da compreensatildeo total do discurso a praacutetica aliada a

compreensatildeo racional do fazer musical

A cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular eacute em primeira instacircncia uma

representaccedilatildeo de simultaneidades mais especificamente dos acordes da muacutesica

tonal Mas da informaccedilatildeo harmocircnica que a cifra oferece eacute possiacutevel depreender

tambeacutem procedimentos meloacutedicos complementares agrave melodia principal ou seja do

contraponto impliacutecito e subordinado agrave estrutura homofocircnica Pode-se considerar que

o caso mais audiacutevel estaacute nas melodias empregadas no baixo Em cifras em que haacute

fartura de acordes com inversatildeo percebe-se uma clara intenccedilatildeo de movimentar o

baixo melodicamente ou seja de conferir a essa camada estrutural contornos

meloacutedicos associados ao seu papel de delinear as fundamentais das funccedilotildees

harmocircnicas No repertoacuterio relacionado ao choro o violatildeo de sete cordas desenvolve

a funccedilatildeo de baixo que aleacutem de reforccedilar a estrutura harmocircnica tonal estaacute em

contraponto constante com a melodia principal

A composiccedilatildeo ldquoUm a Zerordquo de Pixinguinha eacute um exemplo disso

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Figura 1 ldquoUm a Zerordquo (Pixinguinha) Irmatildeos Vitale 1997

O exemplo da figura 1 traz a primeira parte da composiccedilatildeo A quantidade de

inversotildees de acordes presente procura dar pistas da realizaccedilatildeo do baixo comumente

tocado no violatildeo de sete cordas Isso retira do baixo o papel monoacutetono de garantir a

fundamental de cada funccedilatildeo harmocircnica Com base nesta cifra o muacutesico popular de

modo anaacutelogo ao muacutesico barroco realiza o baixo Na figura dois encontra-se uma

sugestatildeo de realizaccedilatildeo do baixo com base nas cifras

Figura 2 Realizaccedilatildeo do baixo em ldquoUm a Zerordquo de Pixinguinha Imagem concebida e editada pelo autor

Segundo estudo de caso a polifonia tonal no acompanhamento da canccedilatildeo

ldquoQuando o carnaval chegarrdquo de Chico Buarque

O ensino de harmonia da muacutesica popular ldquomais especificamente aquela que

eacute informalmente denominada harmonia funcionalrdquo (ALMADA 2013 p 12) se

preocupa em primeiro lugar em determinar a funccedilatildeo de cada um dos acordes

encontrados no discurso musical Este tipo de ensino tem objetivos diversos

compreender estruturas harmocircnicas orientar a praacutetica da improvisaccedilatildeo meloacutedica

guiar estudos de rearmonizaccedilatildeo e substituiccedilatildeo de acordes entre outros Poreacutem em

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alguns casos acordes podem ser simultaneidades geradas por direccedilotildees meloacutedicas

distintas na conduccedilatildeo de cada voz ldquoNo estudo da harmonia tonal acordes podem

surgir a partir de combinaccedilotildees de linhas meloacutedicas relativamente independentesrdquo

(LIMA 2008 p 63) Ainda que tais procedimentos meloacutedicos possam natildeo ser

conscientes pelo muacutesico que desenvolve a funccedilatildeo de acompanhamento pode-se

conjecturar que sua percepccedilatildeo auditiva esteja imbuiacuteda de sonoridades

caracteriacutesticas da muacutesica vocal polifocircnica e isso em algum momento pode

transparecer em acompanhamentos instrumentais

No presente estudo de caso eacute possiacutevel observar procedimentos polifocircnicos

na conduccedilatildeo dos acordes da primeira parte da canccedilatildeo ldquoQuando o Carnaval Chegarrdquo

de Chico Buarque Em diversas entrevistas o compositor carioca revela que

aprendeu a tocar violatildeo sozinho tentando imitar o violatildeo de Joatildeo Gilberto e

portanto natildeo conhece harmonia e suas regras As escolhas de acordes feitas por

compositores autodidatas se datildeo quase unicamente por sonoridade Ou seja um

acorde eacute seguido por outro porque o som eacute satisfatoacuterio para os objetivos do

compositor Disso pode-se compreender que tais escolhas harmocircnicas estatildeo

carregadas de expectativas meloacutedicas ou seja cada acorde eacute ouvido como um

conjunto simultacircneo de notas potencialmente meloacutedicas como o satildeo no estudo da

harmonia tradicional Portanto este estudo pretende apontar para a possibilidade de

anaacutelise harmocircnica em que alguns acordes sejam considerados simultaneidades de

expectativas meloacutedicas e estes tecircm menor concordacircncia com a anaacutelise harmocircnica

ou funcional

O estudo da harmonia natildeo pressupotildee obrigatoriamente apenas simultaneidade () eacute importante que seja considerado o movimento meloacutedico de cada linha (voz) A inter-relaccedilatildeo entre melodia harmonia ritmo dinacircmica textura etc satildeo fatores que devem ser levados em conta na anaacutelise e na composiccedilatildeo de uma peccedila (LIMA 2008 p 117)

Eacute necessaacuterio estudar certas passagens harmocircnicas agrave luz da polifonia e

portanto do contraponto

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Figura 4 anaacutelise do contraponto presente na harmonia de ldquoQuando o Carnaval Chegarrdquo de Chico Buarque Imagem concebida e editada pelo autor

O exemplo da Figura 4 oferece uma opccedilatildeo de compreensatildeo harmocircnica

diferente da sugerida na partitura O primeiro acorde eacute visto como faacute meio diminuto

na primeira inversatildeo em vez de laacute menor com sexta maior como sugerido na cifra

original O acorde seguinte o primeiro grau eacute um sol maior com seacutetima maior

portanto sua sensiacutevel faacute fundamental do acorde anterior ainda estaacute presente

como um retardo O terceiro acorde embora estruturalmente se iguale ao acorde de

laacute bemol diminuto de seacutetima diminuta nessa proposta de anaacutelise se daacute pela

consequecircncia de quatro figuraccedilotildees meloacutedicas bordadura no baixo nota de

passagem no tenor retardo no contralto e antecipaccedilatildeo no soprano Portanto ele natildeo

tem menos funccedilatildeo harmocircnica e mais implicaccedilotildees meloacutedicas

Quando se prolonga todas as notas que satildeo rearticuladas nos acordes do

exemplo da figura 4 depara-se com um contraponto a quatro vozes

predominantemente de segunda espeacutecie

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Figura 5 conclusatildeo contrapontiacutestica da primeira parte da canccedilatildeo ldquoquando o carnaval chegarrdquo Imagem concebida e editada pelo autor

Portanto nesta proposta de anaacutelise harmocircnica natildeo eacute possiacutevel desconsiderar

o contraponto e implicaccedilotildees polifocircnicas

Terceiro estudo de caso contraponto cromaacutetico nas dissonacircncias acima da

seacutetima no acompanhamento da canccedilatildeo ldquosamba do aviatildeordquo de Tom Jobim

A harmonia da muacutesica popular poacutes bossa-nova conferiu ldquoemancipaccedilatildeo agrave

dissonacircnciardquo emprestando a expressatildeo de Schoenberg Portanto a dissonacircncia natildeo

mais direciona os acordes no sentido de suas resoluccedilotildees mas emprestam a eles

sonoridades instaacuteveis e de alguma maneira ao mesmo tempo resolutas As

dissonacircncias conferem certa impressatildeo a cada um dos acordes mas natildeo

apresentam funccedilatildeo de interligaccedilatildeo dos fenocircmenos harmocircnicos atraveacutes da resoluccedilatildeo

delas Esta interligaccedilatildeo novamente se daacute muito mais por expectativas meloacutedicas

embutidas como vozes simultacircneas formadoras dos acordes

Embora a emancipaccedilatildeo da dissonacircncia seja plenamente presente no

repertoacuterio popular poacutes bossa-nova em alguns casos natildeo se pode desconsiderar

estruturas contrapontiacutesticas presentes nestas composiccedilotildees Eacute claro que neste caso

especiacutefico as dissonacircncias natildeo satildeo resolvidas mas suas irresoluccedilotildees natildeo raro

recaem sobre construccedilotildees meloacutedicas em vozes internas dos acordes subordinadas

agrave melodia principal ao baixo e claro agrave harmonia

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Figura 6 contraponto cromaacutetico na canccedilatildeo ldquosamba do aviatildeordquo de Tom Jobim Imagem concebida e editada pelo autor

No fragmento musical da figura 6 eacute possiacutevel identificar uma melodia cromaacutetica

embutida nas dissonacircncias acima da seacutetima A partir do compasso 5 as notas doacute

doacute si e laacute satildeo respectivamente deacutecima terceira maior deacutecima terceira menor

deacutecima segunda e deacutecima primeira aumentada do acorde de mi maior com seacutetima

menor Essas dissonacircncias constroem uma melodia cromaacutetica um contraponto

cromaacutetico

Essa melodia eacute imitada a partir do compasso 7 uma seacutetima maior abaixo nas

notas reacute do do e si respectivamente deacutecima primeira justa deacutecima maior deacutecima

menor e nona maior dos acordes laacute maior com seacutetima maior e laacute menor com seacutetima

menor A melodia cromaacutetica original e sua imitaccedilatildeo uma seacutetima menor abaixo

comeccedilam e terminam em dissonacircncia

Consideraccedilotildees Finais

As propostas aqui apresentadas pretendem apontar para uma contribuiccedilatildeo

dos gecircneros de muacutesica erudita na estruturaccedilatildeo do ensino da muacutesica popular mais

especificamente buscam valorizar o estudo da disciplina contraponto Talvez as

estruturaccedilotildees dos curriacuteculos de cursos de muacutesica possam ser de certo modo

exclusivamente populares apenas na escolha do repertoacuterio a ser aprendido e ainda

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

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assim persiste a discussatildeo do que vem a ser muacutesica popular e muacutesica erudita e se

essa fronteira existe com tanta clareza No acircmbito da estruturaccedilatildeo teacutecnica e teoacuterica

a hibridez dos conhecimentos historicamente categorizados como de muacutesica erudita

e popular parece ser inevitaacutevel O estudo do contraponto parece ainda ser

indispensaacutevel para fomentar uma compreensatildeo mais ampla do saber musical em

diversos acircmbitos em diferentes gecircneros e estilos

Referecircncias

ALMADA Carlos Contraponto em muacutesica popular fundamentaccedilatildeo teoacuterica e aplicaccedilotildees Rio de Janeiro Editora UFRJ 2013

BORTZ Graziela Direccedilatildeo e Movimento em Solfejos Tonais Percepta ndash revista de cogniccedilatildeo musical Curitiba 1 (1) 95-107 novembro de 2013 CARRASQUEIRA Maria Joseacute O melhor de Pixinguinha Songbook Satildeo Paulo Irmatildeo Vitale 1997 LIMA Marisa Ramirez Rosa de Harmonia Satildeo Paulo Embraform 2008 LIMA Sonia Regina Albano de Performance e interpretaccedilatildeo musical uma praacutetica interdisciplinar Satildeo Paulo Musa Editora 2006 NOGUEIRA Marcos Fernandes Pupo Agrupamentos Sonoros Plenos na Muacutesica de Simultaneidades Acuacutesticas e Estruturais Revista Muacutesica Hodie Goiacircnia v12 nordm 2 p87-972012 Disponiacutevel em lthttpwwwmusicahodiemusbr122artigo_7pdfgt Acesso em 07 de dezembro de 2016 SCHOENBERG Arnold Exerciacutecios Preliminares em Contraponto Traduccedilatildeo de Eduardo Seincman Satildeo Paulo Via Lettera 2001

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CAMPOS Idalina Krause de Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery esperitografias Revista da

Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 15-35 juldez 2016 Disponiacutevel em

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Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery espiritografias

Idalina Krause de Campos1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo Este artigo analisa as possibilidades de um fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo tendo como foco o poeta e pensador francecircs Paul Valeacutery e seus procedimentos muacuteltiplos de escrita uma escrita que opera com a leitura ― escrileitura ― e eacute considerada uma operaccedilatildeo ativa de consciecircncia que possibilita ampliar o uso das faculdades intelectivas de um espiacuterito que lecirc e escreve Propotildee atuar e operar com o meacutetodo do informe em atravessamentos imaginativos da filosofia com a literatura e a educaccedilatildeo da diferenccedila aleacutem de utilizar o conhecimento como invenccedilatildeo por meio de procedimentos tradutoacuterios que possibilitem accedilotildees criadoras em educaccedilatildeo Palavras-chave Valeacutery educaccedilatildeo escrileituras traduccedilatildeo Abstract This paper analyzes the possibilities of a translating action in education by focusing on the French poet and thinker Paul Valeacutery and his multiple writing procedures a kind of writing that operates with reading ― reading-writing ― and is considered as an active operation of awareness that favors the use of intellective faculties of a spirit that reads and writes It proposes to act and operate with the inform method in imaginative intersections between philosophy literature and education of difference besides using knowledge as invention by means of translating procedures that enable creation actions in education Keywords Valeacutery education reading-writings translation

Introduccedilatildeo

O escritor Paul Valeacutery nasceu em Segravete (1871) Comuna francesa no periacuteodo

da Guerra Franco-Prussiana A porta para o mar do Mediterracircneo eacute um porto de

encantos incomparaacuteveis de um horizonte vasto banhado pelas aacuteguas de bacias e

canais que desaacuteguam no mar O pensador eacute autor de uma obra vasta

profundamente original que possui uma intensidade uacutenica e merece ser analisada

em funccedilatildeo de seu movimento de escrita e leitura (escrileitura) pois ele pesquisou

1 Possui graduaccedilatildeo em Licenciatura e Bacharelado em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul (1986) Especializaccedilatildeo em Filosofia Cliacutenica pela Faculdade Joatildeo Bagozzi e Instituto Packter

(2008) Mestrado em Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo (PPGEDU) pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (2013) na Linha Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo Atualmente eacute Doutoranda bolsista CAPES

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo na Linha

Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo Participa como pesquisadora dos projetos Dramatizaccedilatildeo do infantil na

comeacutedia intelectual do curriacuteculo meacutetodo Valeacutery-Deleuze Escrileituras um modo de ler-escrever em meio agrave

vida e Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila Membro integrante do BOP

ndash Bando de Orientaccedilatildeo e Pesquisa da Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo e do Grupo de

Pesquisa DIF ndash artistagens fabulaccedilotildees variaccedilotildees

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CAMPOS Idalina Krause de Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery esperitografias Revista da

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estudou e escreveu sobre conteuacutedos integrantes das mais diversas aacutereas do

conhecimento e que satildeo repletos de nuances e de viva poesia

Tal perspectiva oriunda de seus escritos propicia utilizar o conhecimento

como invenccedilatildeo para criar um compoacutesito de escrita e leitura e com ele produzir

meios que possibilitem accedilotildees criadoras em educaccedilatildeo o que propicia ao espiacuterito

construir a sua proacutepria realidade no campo ambiental da linguagem

Ainda em seus primeiros anos de vida o Mediterracircneo que banha a cidade

torna-se uma festa aos olhos curiosos do infante Valeacutery que considera tudo das

cores aos cheiros das formas agraves imagens de uma natureza exuberante ldquouma

verdadeira loucura de luz combinada com a loucura da aacuteguardquo (VALEacuteRY 2011 p

127) Satildeo seus primeiros passos de pensador e que trazem em germe um pensar

em estado nascente pois se deixa seduzir pela liberdade pelos estados poeacuteticos

com um olhar voltado para o mar o que eacute tambeacutem um olhar para o possiacutevel

Os olhos de Valeacutery abraccedilam o que haacute de humano e de inumano em uma

paisagem de natureza primitiva quase intocada mesclada com as atividades dos

homens que ali habitam Um grande cenaacuterio de teatro cujo personagem principal eacute

a luz que ilumina o mar Ali onde Afrodite passeia e que ao cair da tarde

crepuscular com o mar jaacute escuro deixa ver na rebentaccedilatildeo brilhos extraordinaacuterios

Onde a luz de fogo rosa insistente do sol daacute seu adeus ao dia deixando que entre

em cena a escuridatildeo da jaacute noite onde se entreveem os fantasmas que danccedilam

sobre as torres e muros de Aiguesmortes Sombras que festejam os cadaacuteveres

pesados dos atuns animais quase do tamanho de um homem trazidos pelos barcos

de pesca que adentram a costa em seu ldquoretorno da cruzadardquo (VALEacuteRY 2011 p

130)

Ao amanhecer a peccedila teatral do viviacutevel segue e a luz dos raios solares

derrama-se pelos molhes Eacute quando o pequeno Valeacutery tenciona banhar-se na

imensidatildeo cristalina do mar Poreacutem baixa os olhos e estremece diante de uma cena

singular que mistura carnificina e beleza Jazem sobre a ldquoaacutegua maravilhosamente

lisa e transparenterdquo restos de ldquoviacutesceras e entranhas de todo o bando de Netunordquo

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CAMPOS Idalina Krause de Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery esperitografias Revista da

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(VALEacuteRY 2011 p 130) Satildeo muacuteltiplas tonalidades de cores roacuteseo-puacuterpuras coral

sanguinolenta vermelhidatildeo de uma mortandade repulsivamente sinistra embalada

pelas ondas letaacutergicas

O espanto eacute inevitaacutevel e o faz esquecer o banho matinal Mas apesar do

susto que invade sua alma os olhos guardam alguma admiraccedilatildeo pelo

acontecimento fazendo vagar pensamentos relacionando o morticiacutenio repleto de

cores com imagens espectrais Misturas de tonalidades imersas na aquosidade de

um liacutempido e cristalino mar que poderiam bem servir para um fazer artiacutestico aos

homens de talento afeitos agraves curiosidades e agraves capturas de um olhar artistador

Natildeo perdura nessa imagem repentina o conteuacutedo pobre mas como pondera

Deleuze em O Esgotado (2010 p 85) vale nessa visatildeo a energia condensada ldquoa

prodigiosa energia captada prestes a explodir fazendo com que as imagens nunca

durem muito tempo [] A imagem dura o tempo furtivo de nosso prazer de nosso

olharrdquo Assim aparece a forccedila de sentimento de Valeacutery influenciado e estimulado

pelas deidades poeacuteticas do mar do ceacuteu e do sol

E o que decorre disso tudo eacute uma produccedilatildeo intelectual que foca em muacuteltiplas

temaacuteticas tendo como pano de fundo o funcionamento do intelecto atraveacutes de

accedilotildees de pensar o proacuteprio pensamento para verificar o que estes pensamentos

implicam Uma produccedilatildeo que abarca o viviacutevel e que merece ser investigada como

um meio possiacutevel para ser apropriado no acircmbito do ensino contemporacircneo em

funccedilatildeo de sua diversidade e de sua potecircncia textual

Pelo que foi possiacutevel observar em nossas pesquisas Valeacutery configura-se num

misto de poeta de pensador e de criacutetico da cultura tendo sido traduzido por

escritores e tambeacutem por poetas em vaacuterios idiomas No entanto apesar de possuir

um reconhecimento internacional pelo conjunto de suas obras produzidas eacute ainda

pouco explorado no Brasil especialmente no que tange ao uso teoacuterico e praacutetico do

seu pensamento no campo da educaccedilatildeo

Em suma como afirma Gonccedilalves (2011 p 238) Valeacutery eacute O Alquimista do

Espiacuterito ldquodevido ao seu sistema plural de linguagensrdquo em que ocorrem

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transmutaccedilotildees de montagem e desmontagem de escrita Uma verdadeira alquimia

contraacuteria agrave anestesia do gesto para que uma segunda natureza possa se apresentar

ao texto atraveacutes de um operar espiritual em constante variaccedilatildeo e que neste fazer

operativo produz uma escrita visceral e mutante cuja mateacuteria eacute a vida que se

experimenta no campo do saber como um processo aberto muacuteltiplo e desafiador

para assim buscar fazer com ele uma educaccedilatildeo disposta a disseminar as aventuras

do pensamento

Espiacuterito

Valeacutery utiliza-se da palavra francesa esprit para aludir ao Eu embora haja em

seu pensamento a distinccedilatildeo entre dois tipos de espiacuterito Moi que seria o Eu

empiacuterico (self-variance) e Moi que seria o Eu puro (Idolle de lrsquoIntelect) a ser

cultuado e buscado Este uacuteltimo conceito de Eu puro necessita ser entendido com

uma significaccedilatildeo peculiar qual seja o Eu como intelecto como inteligecircncia

Nessa perspectiva o presente artigo aborda um possiacutevel fazer tradutoacuterio em

educaccedilatildeo conjuntamente com o pensador Paul Valeacutery de modo a buscar atraveacutes

do movimento de leitura e escrita exercitar conscientemente os pensamentos que

possibilitam transitar no campo diverso do saber

O espiacuterito ndash ou Eu-empiacuterico ndash desenvolve-se conscientemente exercitando os

processos do pensar com a finalidade de conhecer Pensamento ativado via

processos de criaccedilatildeo oriundos de uma self-variance (autovariaccedilatildeo do espiacuterito)

disciplinada e rigorosa passando a verificar o que esses pensamentos implicam

procurando vecirc-los com precisatildeo e pesquisar seus labirintos sua mecacircnica psiacutequica

iacutentima e seu meacutetodo operativo

Valeacutery (2011 p179) conceitualiza as accedilotildees do pensar as invenccedilotildees

produzidas pela inteligecircncia onde o Eu-empiacuterico que se utiliza da leitura e da

escrita e consequentemente pensa define-se ldquoatraveacutes da relaccedilatildeo entre um 2010 p

85) certo lsquoespiacuteritorsquo e a linguagemrdquo Ou seja pondo em movimento um Eu-funcional

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pode-se desenvolver uma consciecircncia do processo do pensar para fins de

conhecimento expressos por intermeacutedio da linguagem

Espiacuterito este visto como um sujeito que natildeo se assujeita mas aspira agrave

criaccedilatildeo e a realiza sem divindade reguladora sem idealismo (Eu absoluto do

Idealismo Alematildeo) e distante da metafiacutesica da alma imortal (Eu substancial do

racionalismo de Descartes) Portanto o Eu puro valeacuteryano natildeo guarda uma

moralidade consistindo na invariabilidade naquilo que natildeo muda no espiacuterito O

espiacuterito eacute abordado como um signo de pura possibilidade de uma virtualidade ao

qual o Eu empiacuterico aspira e tende Eu que passa por uma ascese e encontra-se ―

purificado de paixotildees de outros iacutedolos e idolatrias ― de forma a se tornar liberto

para agir e pensar

A nossa pesquisa da escrita valeacuteryana gera e explora meios de afirmar e de

proporcionar possibilidades criadoras em educaccedilatildeo justamente porque ndash como

salienta Corazza (2010 p 2) ndash o espiacuterito humano enfrenta dificuldades para pensar

o informe de maneira que necessitamos ldquode uma Educaccedilatildeo ou pedagogia dos

sentidos associando a vivecircncia dos limites formais com a criaccedilatildeo artistadorardquo

A pesquisa trata portanto de um fazer compositivo de escrita de uma praacutetica

de ensino numa construccedilatildeo conjunta com a obra de Valeacutery que busca o valor do

pensar humano observa seu funcionamento e sua accedilatildeo fecunda de pensar Por seu

intermeacutedio construiacutemos operaccedilotildees escrileitoras tradutoacuterias (escrita-leitura e leitura

escrita) capturando as forccedilas que aproximam percepccedilatildeo e criaccedilatildeo

Pensamos que a Filosofia da Diferenccedila pode servir-se das pesquisas deste

poeta-pensador como um disparador de escrita que busca um novo modo de ver e

de pensar o pensamento no qual a linguagem a verdade a consciecircncia de si satildeo

inseparaacuteveis e inter-relacionadas Pensar que possibilita o alargamento das

fronteiras da linguagem educacional na medida em que quebra concepccedilotildees

filosoacuteficas e cientiacuteficas consideradas verdadeiras e incontestaacuteveis

Inter-relaccedilatildeo na qual o espiacuterito Estudante-Escritor- Educador (EEE) estaacute

sempre se autoproduzindo por via de uma self-variance num processo contiacutenuo de

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geraccedilatildeo de sentidos imanentes singulares e particulares os quais reivindicam

novas possibilidades de invenccedilatildeo de emissatildeo de signos que se inscrevem para

escriturar sentidos oriundos das sensaccedilotildees num empirismo de pensar constante

cujos procedimentos implicam necessariamente o campo do vivido Pesquisamos

nesse processo variante o ambiente humano por entre dramas e comeacutedias do

vivido no campo educacional ou ainda uma dracomeacutedia humana repleta de

potenciais vicissitudes que servem como disparadores para uma invenccedilatildeo

produtora de escrita texto-manifesto exposto por via da linguagem e suas

convenccedilotildees

Meacutetodo

O meacutetodo utilizado na pesquisa eacute o do informe que desenvolve um tipo de

pesquisa que possibilita enfrentar a dificuldade de pensar o informe Meacutetodo este

que se interroga e que varia durante todo o processo de sua execuccedilatildeo natildeo

possuindo um regramento estanque ou dogmaacutetico o que baniria o prazer do

inusitado

Esse meacutetodo age atraveacutes de capturas das forccedilas dos textos das imagens

das musicalidades das vozes e dos conhecimentos isto eacute de tudo que deveacutem em

vida potente e que possa ser adequado agraves praacuteticas de ensino pois conforme Valeacutery

(1997 p 59) ldquoeacute o que contenho de desconhecido a mim mesmo que me faz ser eu

mesmordquo

Na praacutetica o que observamos eacute um desejo que ronda ldquocomo uma mina a ceacuteu

abertordquo (BARTHES 2013 p12) que propicia criar uma fantasia de exploraccedilatildeo e por

intermeacutedio dela construir um ritmo proacuteprio de accedilatildeo exploratoacuteria um como para viver

junto com vida e obra de determinado pensador saboreando cotidianamente

ldquobocados de saber = pesquisardquo Assim por entre bocados de pesquisa esse meacutetodo

produz ficccedilatildeo de modo que ldquoos pesquisadores capturam forccedilas imaginaacuterias

fantasiacutesticas e intelectuais que os conduzem ao trabalho criadorrdquo (CORAZZA 2012

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p19) levando o espiacuterito a experimentar um novo fazer ou seja uma pesquisa gaia

na educaccedilatildeo contemporacircnea

Por este vieacutes tal meacutetodo busca dar adeus agraves metanarrativas de ambiccedilatildeo

universal insistente nos entremeios do territoacuterio educacional Sua ambiccedilatildeo universal

eacute hermeacutetica e portanto falha pois impede uma discussatildeo que se quer aberta e natildeo

reprodutora de conhecimento Esta abertura pode trazer ao proacuteprio curriacuteculo e agrave

didaacutetica um entoar de novas vozes capazes de compor narrativas novas fazendo

na accedilatildeo de ensinar um espaccedilo criacutetico um lugar puacuteblico para discussotildees diversas

Ou seja capturar o que ateacute entatildeo foi excluiacutedo ou natildeo contemplado nas

metanarrativas em funccedilatildeo de sua supressatildeo por natildeo pertencerem aos dogmas

ditos universais Busca-se assim o vatildeo o desvio o detalhe tendo a linguagem

como movimento isto eacute em fluxo constante no movimento de criaccedilatildeo

Desse modo aquilo que sabemos que nos pertence natildeo conta pois

procuramos o que natildeo foi ainda construiacutedo o que resta para ser adquirido

transformado e que se anuncia nos entremeios dos textos Sendo assim a literatura

a filosofia e a educaccedilatildeo entrecruzam-se visto que seus conhecimentos e saberes

satildeo investigados por via das proacuteprias escrileituras que interrogam as tramas

compositivas do intelecto

Pode-se tambeacutem afirmar que o referido meacutetodo tem apreccedilo pelo espiacuterito

crianccedila ― que jamais deveria morrer em noacutes ― pois que ele traz em si a forccedila da

curiosidade da persistecircncia da descoberta haacute neste espiacuterito pagatildeo e poeta um

infinito de possibilidades Como elucida Eduardo Galeano em entrevista chamada eacute

Tempo de viver sem medo2 ldquoeacute preciso olhar o que natildeo se olha o que merece ser

olhado tanto o micro mundo e ao mesmo tempo sermos capazes de contemplar o

universordquo E para tanto eacute preciso se ter uma visatildeo microscoacutepica e outra telescoacutepica

para assim tentar desvendar o que haacute de misterioso na existecircncia

2 Entrevista de Eduardo Galeano disponiacutevel em canal moritz Ptnet acesso em 05 de julho de

2016

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As escrileituras produzidas em uma praacutexis do informe portanto satildeo criadas

em conjunto com os meandros labiriacutenticos e espirituais dos quais nos ocupamos

escolhidos pela apaixonada necessidade de escrever Natildeo se verifica uma doutrina

mas um meacutetodo para operaccedilotildees espirituais tracircnsitos pelos macros e micros

mundos ofertados pelo existir Os espiacuteritos operam em variaccedilatildeo e lanccedilam um novo

olhar para o que ainda natildeo foi visto ou seja o que ainda ignoramos e com estes

novos elementos do que se detecta surgem vatildeos e frestas que propiciam uma

composiccedilatildeo de escrita viva

Sendo assim o meacutetodo do informe nada mais eacute do que um fazer mutante

avesso ao sedentarismo intelectual um ato fiacutesico corporal posto em movimento

atraveacutes de estudos e pesquisas abrindo possibilidades para que o espiacuterito trabalhe

e medite sobre a produccedilatildeo de uma obra ― de um espiacuterito criador ― numa atitude

interrogativa transformada em problema que questiona pelo vieacutes de Valeacutery (2011 p

200) O que a obra produz em noacutes

Todo corpo posto em atividade eacute energia despendida e tambeacutem adquirida a

todo instante um organismo em constante mutaccedilatildeo Uma forma fluente ― referida

por Duns Scot como um onde ou (ubi) ― e capaz de uma determinaccedilatildeo qualitativa

anaacuteloga ao calor adquirido pelo corpo que se aquece atraveacutes do contato e do

contaacutegio com outros corpos que os circundam E nesta metamorfose contiacutenua e

energeacutetica o espiacuterito se propotildee a buscar maior lucidez para o intelecto e conhecer a

fundo a problemaacutetica a que se propotildee num exerciacutecio que se realiza atraveacutes de um

nomadismo de pensamento ativo sempre em deslocamento que busca o novo

De fato com o espiacuterito entendido desde a perspectiva valeacuteryana atraveacutes dos

movimentos de escrileituras da pesquisa com o artifiacutecio da literatura movimentamos

uma malha intelectiva que possibilita a construccedilatildeo de espiritografias Ou seja vamos

ao mundo de um espiacuterito e com ele escrevemos a partir de um estudo de vida e de

obra ou de uma Vidarbo Trata-se do interesse ldquopor Vida (Biografia) e por Obra

(Bibliografia) Soacute que em vez de Vida e Obra tomadas em separado ou uma

derivada e mesmo causa da outra trata de Vidarbordquo (CORAZZA 2010) tomada

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conjuntamente Essas operaccedilotildees das faculdades intelectivas repletas de afecccedilotildees

permitem e compotildeem o meacutetodo do informe como um mecanismo que exige um tipo

de construccedilatildeo no qual o inesperado eacute condiccedilatildeo processual

Projetos

Essas operaccedilotildees de meacutetodo do informe tiveram suas experimentaccedilotildees e

pesquisas empiacutericas cultivadas em trecircs projetos desenvolvidos pela pesquisadora e

professora doutora Sandra Mara Corazza e seus orientandos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica

mestrado e doutorado na Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferenccedila em

Educaccedilatildeo integrante do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo (PPGEdu) da

Faculdade de Educaccedilatildeo (FACED) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS) quais sejam Dramatizaccedilatildeo do infantil na comeacutedia intelectual do curriacuteculo

meacutetodo Valeacutery-Deleuze (2010) Escrileituras um modo de ler-escrever em meio agrave

vida e Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila

(2014 ndash 2019)

O projeto atual almeja complementar correlacionar e consolidar a formaccedilatildeo

de professores-pesquisadores atraveacutes da observaccedilatildeo e anaacutelise dos resultados e

impactos das produccedilotildees oriundas das trecircs pesquisas investigando um curriacuteculo e

uma didaacutetica da diferenccedila visando criar e fortalecer a ampliaccedilatildeo e a consolidaccedilatildeo

da qualidade de uma pesquisa-docecircncia

Desde o iniacutecio o meacutetodo do informe apontava para um tipo de pesquisa

construcionista enquanto um convite para estudos e praacuteticas de escrita as quais

atraveacutes das aventuras do intelecto facultam ao espiacuterito construir a sua proacutepria

realidade no campo ambiental da linguagem pensando o informe com Valeacutery e sua

Comeacutedia Intelectual e com Deleuze e o seu Meacutetodo de Dramatizaccedilatildeo aleacutem de

recorrer tambeacutem a Roland Barthes e ao seu conceito de Biografemaacutetica (CORAZZA

e OLIVEIRA 2015)

O Projeto Escrileituras (2011-2015) apoiado pelo Programa Observatoacuterio da

Educaccedilatildeo (CAPESINEP) teve como proposiccedilatildeo um fazer-educaccedilatildeo por meio de

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Oficinas abrindo assim possibilidades de criaccedilatildeo de escrileituras em educaccedilatildeo

Oficinas que tinham em sua percepccedilatildeo criaccedilatildeo e desenvolvimento dois meios

possiacuteveis para movimentos experimentais de escrita a formaccedilatildeo que acompanhava

os bolsistas e pesquisadores participantes e cursos e accedilotildees de extensatildeo oferecidos

a professores da Educaccedilatildeo Baacutesica

Totalizando um registro de 570 oficinas desenvolvidas pelo projeto foi

desenvolvida a Oficina espiritograacutefica de co-criaccedilatildeo dialoacutegica propondo aos

participantes um exerciacutecio de pensamento valeacuteryano que explorasse a forma de

escrita ldquodiaacutelogordquo atraveacutes de textos filosoacuteficos e literaacuterios que tratavam do tema

A oficina buscava pensar de forma luacutecida condiccedilotildees de criar personagens

que pensam o proacuteprio pensamento afirmando o espiacuterito que opera e escreve com

prazer ciente ldquoque cada um eacute a medida das coisasrdquo (VALEacuteRY 2011) E atraveacutes

desta empiria de escrita proposta na oficina proporcionou um aporte teoacuterico e

praacutetico para composiccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de mestrado Alfabeto espiritograacutefico

escrileituras em educaccedilatildeo (CAMPOS 2013)

Espiritografia

Dessa accedilatildeo empiacuterica a palavra espiritografia comeccedila a tomar forccedila nas

pesquisas possibilitando ao espiacuterito escrileitor investigar outros Espiacuteritos e suas

vidarbos e com eles passar a criar procedimentos capazes de promover uma

produccedilatildeo de escrita espiritograacutefica experimental que se ocupa de erracircncias acasos

e o inusitado e que se configura em uma tese intitulada A Educaccedilatildeo da Diferenccedila

com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico (CAMPOS 2015) com proposta jaacute

qualificada em 2015 e com defesa final prevista para 2017

Deste modo o espaccedilo curricular afirmava-se de maneira transversal com a

filosofia com as artes e com as ciecircncias tomando para si a tarefa de compor um

curriacuteculo como uma construccedilatildeo aberta fazendo dos conhecimentos que se colocam

em movimento um compoacutesito multidimensional de leitura e de escrita potenciais

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Assim o Projeto Escrileituras optou por afirmar um curriacuteculo mutante

provocando com isso que sua didaacutetica tambeacutem o fosse Ou seja didaacutetica e

curriacuteculo possibilitaram atraveacutes das Oficinas a ampliaccedilatildeo da visatildeo de mundo por

via do conhecimento que serve como um disparador para a edificaccedilatildeo de outros

mundos possiacuteveis isto eacute um modo de viver e de ldquomaquinar a educaccedilatildeo com prazer

aventureiro e espiacuterito aventurosordquo (CORAZZA 2014)

Abrindo dobras na pesquisa foi possiacutevel falar e escrever sobre Autor

Infacircncia Curriacuteculo e Educador ndash unidades analiacuteticas referidas como AICE e

integrantes de procedimentos didaacuteticos Jaacute o curriacuteculo foi composto pelas seguintes

unidades analiacuteticas Espaccedilos Imagens e Signos (EIS) os quais satildeo postos em

movimento por meio de um nomadismo intelectual experimentado no proacuteprio

territoacuterio da educaccedilatildeo valendo-se dos procedimentos muacuteltiplos de escrita de Valeacutery

para um fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo

Atraveacutes de um Meacutetodo do Informe utilizando o conhecimento como invenccedilatildeo

que por via de transbordamentos de pesquisa esses elementos possibilitaram criar

um novo meacutetodo chamado espiritograacutefico ndash defendido na tese A Educaccedilatildeo da

Diferenccedila com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico (CAMPOS 2015) ndash pelo qual foi

possiacutevel a criaccedilatildeo de alguns tipos de espiritografias tradutoacuterias como Plagiotroacutepica

Imageacutetica Mise en Scegravene Desviante Extra-Ordinaacuteria Jogada Aula-Empiacuterica

Poeacutetica

Escrever eacute traduzir conforme afirma Valeacutery na eacutepoca em que traduzia as

Bucoacutelicas de Virgiacutelio (1944) destacado no livro de Haroldo de Campos (2013)

Transcriaccedilatildeo

Escrever o que quer que seja desde o momento em que o ato de escrever exige reflexatildeo e natildeo eacute uma inscriccedilatildeo maquinal e sem detenccedilas de uma palavra interior toda espontacircnea eacute um trabalho de traduccedilatildeo exatamente comparaacutevel agravequele que opera a transmutaccedilatildeo de um texto de uma liacutengua em outra (VALEacuteRY apud CAMPOS 2013 paacuteg61-62)

Essas forccedilas operativas da escrita (e da leitura) servem como impulso para

uma trajetoacuteria autoconsciente do espiacuterito que se aventura entre rasuras em busca

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do novo Produzindo uma escrita tradutoacuteria aberta sujeita a interaccedilotildees e oscilaccedilotildees

oriundas daquele espiacuterito que age sobre o texto criamos uma didactique da

novidade da erracircncia de AICE que pode gerar intranquilidade pois caccedila em meios

muacuteltiplos de escrita ― rigorosa e complexa ― seus desdobramentos enigmaacuteticos

perseguindo a exatidatildeo dos sentidos por entre Espaccedilos Imagens e Signos (EIS) do

Curriacuteculo

Sendo assim AICE (Didaacutetica) e EIS (Curriacuteculo) tomam para si uma poeacutetica de

pesquisa que se quer empiacuterica num processo de releitura e de reescrita do viviacutevel

no campo educacional e que acabam produzindo um diferencial curricular e didaacutetico

da diferenccedila visto que criam novas epistemes possibilitando ldquopensar uma didaacutetica e

um curriacuteculo tradutoacuteriosrdquo (CORAZZA 2014 p5)

Em seu texto A Tentaccedilatildeo de (Satildeo) Flaubert Valeacutery (2011) escreve sobre a

diaboacutelica tentaccedilatildeo humana e poeacutetica de provocar uma escrita amebiana como meio

para um jogo escritural do viviacutevel pois viver eacute a todo instante sentir falta de alguma

coisa e modificar-se para atingi-la para desse modo tender a substituir-se no

estado de sentir falta de alguma coisa Trata-se de um movimento corpoacutereo como o

feito pela ameba ou seja de transubstanciaccedilatildeo com o objeto amado pois ldquovivemos

do instaacutevel pelo instaacutevel no instaacutevel essa eacute a funccedilatildeo completa da Sensibilidade

que eacute a mola diaboacutelica da vida dos seres organizadosrdquo (VALEacuteRY 2011 p 83)

Essas perspectivas poeacuteticas sobre escrita leitura curriacuteculo e didaacutetica

possibilitam no espaccedilo da aulaoficina a emergecircncia de procedimentos

interpretativos das mateacuterias curriculares que funcionam como meio de invenccedilatildeo

recriando assim culturas e discursos atraveacutes de exerciacutecios rigorosos cocircmicos e

dramaacuteticos do pensamento Nesse sentido como um espaccedilo de ficccedilatildeo a aula eacute

planejada para que de algum modo funcione como um laboratoacuterio coletivo em que

se examina e promove-se a educaccedilatildeo do espiacuterito

Assim satildeo promovidos encontros imanentes que fornecem coordenadas

para o pensamento criacutetico que eacute experimentado num empirismo transcendental no

qual ldquoa Ideia natildeo eacute o elemento do saber mas de um lsquoaprenderrsquo infinitordquo (DELEUZE

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2006 p310) Nesse tipo de empirismo o que vale eacute o valor agregado ao espiacuterito

das forccedilas que do pensamento se apossa e que satildeo capazes de produzir novas

imagens que enunciam e novamente atualizam o pensar Com textos literaacuterios os

espiacuteritos escrileitores em movimentos de self-variance passam a acompanhar

essas danccedilas dramaacuteticas em meio agrave vida in-formada

Trata-se de um pensar vivo capaz de escriturar novos sentidos e de inscrever

signos que satildeo vitalmente transcriados pois operam para ldquoatravessar a ortodoxia

dos textosrdquo (CORAZZA 2014) e com eles criar uma escrita indomesticada criacutetica e

vivificadora Damos assim vida a uma nova praacutexis de ensino capaz de construir

espiritografias na qual o espiacuterito age por si enquanto move-se entre leituras e

escritas Espiacuterito que se interroga observa o proacuteprio fazer da escrita literaacuteria que

tem como tarefa anotar borrar fazer muacuteltiplas reflexotildees combinaccedilotildees tentativas e

falhas

Notemos que o espiacuterito ocupa trecircs lugares funcionais em seu laboratoacuterio

proacuteprio quais sejam EEE ndash o de Estudante (espiacuterito em curso tradutoacuterio de escrita)

o de Escritor (espiacuterito autor tradutor e transcriador) e o de Educador (espiacuterito em

exerciacutecio de traduccedilatildeo no exerciacutecio do magisteacuterio) Eacute esse atravessamento entre

lugares que movimenta EIS (Curriacuteculo) e AICE (Didaacutetica) os quais pela via da

traduccedilatildeo satildeo reimaginados Vislumbramos de acordo com Corazza (2013 p 219)

um fazer tradutoacuterio ldquopara aleacutem do literalismo rudimentar e da banalidade explicativardquo

que daacute nova vida ao educador-artista e cujas traduccedilotildees ldquopoderatildeo por vezes tornar-

se mais importantes que os originaisrdquo pois se configuram como uma ldquoestrateacutegia de

renovaccedilatildeo dos sistemas educacionais e culturais contemporacircneosrdquo

Experimentaccedilotildees

A partir do desenvolvimento de algumas Oficinas de Transcriaccedilatildeo durante o

Projeto Escrileituras continuamos estudando e pesquisando o pensamento de

Valeacutery na direccedilatildeo de construir tipos de espiritografias como uma praacutetica que

promove novos movimentos que tomam as unidades analiacuteticas de EIS AICE na qual

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buscamos combinar e correlacionar EIS com AICE (Espaccedilos Imagens e Signos a

Autor Infantil Curriacuteculo Educador) e nesse processo combinatoacuterio e correlacional

operacionalizar escrileituras tradutoacuterias que se articulassem com a praacutexis do ensinar

escrever orientar pesquisar colocando esses verbos em foco por meio de um fazer

espiritograacutefico Tal procedimento exploratoacuterio-experimental de pesquisa tem como

intuito criar meios para a produccedilatildeo de accedilotildees de pensamento na pesquisa

Nessa direccedilatildeo detalharemos um dos tipos de espiritografia aludida no texto

a Espiritografia Plagiotroacutepica Lembrando o que salienta o proacuteprio Valeacutery (2011 p

110) ldquoeu sei apenas o que sei fazerrdquo expomos os movimentos empiacutericos de escrita

feitos para criar essa espiritografia atraveacutes de movimentos de EIS AICE

apresentados a seguir por meio de um resumo do seu Glossaacuterio

EIS AICE

Espaccedilos - que se habitam e produzem

condiccedilotildees para novamente serem

habitados ao esvaziar-se na

constituiccedilatildeo de novas margens que a

sua vez lhes doam novas instacircncias

habitaacuteveis

Imagens - ausentes que presentificam

presenccedilas e Imagens presentes que

presentificam ausecircncias

Signos - satildeo dotados das forccedilas dos

encontros que podem exercer uma

violecircncia sobre o pensamento

violecircncia que implica na criaccedilatildeo do

pensar no proacuteprio pensamento

Autor-Tradutor - escreve lecirc interpreta aprende

compotildee apenas para desencadear devires

Infantil - como forccedila ativa e vontade de potecircncia

afirmativa

Curriacuteculo - cria a alegria afirmativa de educar

Educador - exercita se interrogar se tudo o que disse

ateacute entatildeo eacute tudo o que pode dizer se tudo o que viu

ateacute agora eacute de fato tudo o que pode ver se tudo o

que pensa eacute tudo o que pode pensar se tudo o que

sente eacute tudo o que pode sentir se tudo o que traduziu

eacute tudo que pode traduzir

O texto inspirador para a produccedilatildeo dessa espiritografia eacute o livro de Gonccedilalo

Tavares (2011) intitulado O senhor Valeacutery e a loacutegica tomado como um disparador

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como um meio potente para a produccedilatildeo de escrita Esse meio textual produz um

outro para falar e escrever sobre a Vidarbo (vida-obra) de Paul Valeacutery criando-se

assim um personagem O Monsieur Valeacutery

Esse texto eacute produzido por intermeacutedio de escrileituras que contemplam o

ainda natildeo visto ou ainda natildeo atribuiacutedo de valor para a criaccedilatildeo do personagem na

medida em que pesquisamos sobre a vida e a obra de Valeacutery de modo a escrever

sobre este personagem peculiarmente

Por via de um olhar outro que natildeo o de Tavares mas do olhar do espiacuterito

escrileitor que pesquisa vida e obra de outro espiacuterito no caso Valeacutery almejamos

compor uma espiritografia com e sobre este personagem do pensamento o que

pressupotildee ir ao mundo deste espiacuterito do qual se escreve observando como se daacute o

seu pensar Desta maneira foram produzidos quatro minicontos O Atum O

Ostinato O Sonho e Sem Destino (CAMPOS 2015) Abaixo seguem os dois

primeiros dessa seacuterie

O Atum

MONSIEUR VALEacuteRY era pequenino mas adorava nadar

Ele explicava

Sou igual a um atum soacute que em tamanho menor

Mas isto constitui para ele um problema

Mais tarde o monsieur Valeacutery pocircs-se a pensar que os pescadores podiam

confundi-lo com um atum e pescaacute-lo Sabia por suas leituras ser o Atum o mais

antigo deus criador do mundo Mediterracircneo e observou em seu livro a grande

Serpente Atum pai de Eneacuteade e Helioacutepolis E tal pensamento o animou um pouco

Dias depois saiu para passear agrave beira-mar e desenhou serpentes na areia E

pensava sobre a evoluccedilatildeo das espeacutecies e murmurava ldquose o homem estaacute situado ao

final de um longo esforccedilo geneacutetico tambeacutem seraacute preciso situar esta criatura fria sem

pata sem pelos sem plumas no iniacutecio deste mesmo esforccedilordquo E concluiu Haacute algo

de serpente no homem assim deve tambeacutem haver em mim

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Monsieur Valeacutery costumava fazer caacutelculos enquanto caminhava e riscava

atraacutes de si com uma varinha uma linha e ia medindo Caminhou caminhou de

suacutebito olhou para traacutes e viu a linha e pocircs-se a imaginar a Serpente como uma linha

viva E pensava que a linha eacute uma abstraccedilatildeo encarnada soacute enxergamos a sua parte

proacutexima manifesta Mas ele sabia que a linha seguia pelo invisiacutevel infinito de um

lado e de outro

O Ostinato

MONSIEUR VALEacuteRY cresceu assim como tambeacutem cresceu sua curiosidade

sobre as serpentes que seguia a rabiscar

Monsieur Valeacutery ainda costumava nadar poreacutem agora com maior

desenvoltura

Jogava-se ao mar e nadava de costas cachorrinho borboleta

Enquanto dava suas braccediladas e mergulhos no mar sem fim sentia-se

acompanhado

Entatildeo o monsieur Valeacutery pensava

― Seraacute Afrodite Ou seraacute Netuno

E enquanto caminhava para casa apoacutes seus nados volta e meia olhava para

traacutes observando a linha pintalgada pelos pingos que escorriam de seu corpo

Entatildeo Monsieur Valeacutery exclamava

― Que bela geometria

E logo se aborrecia

Monsieur Valeacutery era um perfeccionista e para se distrair durante o percurso

de volta para casa ia compondo versos Ostinatos que o enterneciam e lhe traziam

aromas de um pensamento Ele costumava declamaacute-los assim

Fonte minha fonte aacutegua friamente presente

Suave com os animais com os humanos clemente

Que tentados por si seguem ao fundo a morte

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Tudo te eacute sonho Irmatilde impaacutevida da Sorte3

Importa salientar que natildeo haacute um plaacutegio porque natildeo eacute coacutepia ou mera

reproduccedilatildeo textual mas de uma plagiotropia no sentido de Haroldo de Campos

(1997 p249) qual seja uma ldquoapropriaccedilatildeo seletiva natildeo histoacuterica para utilidade

imediata de um fazer poeacutetico situado na lsquoagoridadersquo o momento de ruptura em que

determinado presente (o nosso) se reinventa ao se reconhecer na eleiccedilatildeo de um

determinado passadordquo

Em outras palavras estabelecemos um diaacutelogo entre os espiacuteritos de Valeacutery

de Tavares e de um escrileitor que quer compor uma espiritografia O espiacuterito que

escreve lecirc repensa e mastiga o que chega dos textos de Tavares e de Valeacutery Essa

relaccedilatildeo estabelecida entre os espiacuteritos que leem e escrevem adquire potecircncia pelas

afecccedilotildees de forccedilas oriundas da accedilatildeo de leitura-escrita e gera novas relaccedilotildees com

os textos que satildeo entatildeo renovados e reinventados pelo meacutetodo espiritograacutefico

O EIS AICE do Curriacuteculo e da Didaacutetica com suas unidades analiacuteticas eacute posto

como bloco em movimento atraveacutes de um nomadismo intelectual que opera como

conhecimento e como invenccedilatildeo no territoacuterio da educaccedilatildeo de uma maneira

espiritograacutefica valeacuteryana Podemos descrever da seguinte maneira os movimentos

tradutoacuterios que ocorrem nessas unidades analiacuteticas de EIS AICE

EIS

Espaccedilos - satildeo criados entre e com Tavares e Valeacutery espaccedilos de escrita

novas margens que o espiacuterito escrileitor passa a habitar

Imagem - ausentes de Tavares e Valeacutery que se presentificam na agoridade

com novas imagens de pensamentos criadas que se ldquoreinventa ao se reconhecer na

eleiccedilatildeo de um determinado passadordquo (Campos 1997 p249) e que lhe serviu de

disparador como um rastro de escrita

3 Do poema Fragmentos de Narciso e outros poemas (VALEacuteRY 2013 p 61)

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Signos ndash encontro de forccedilas de um espiacuterito que escreve em Self-variance

com Valeacutery e com Tavares E desta violecircncia levantam-se problemas e com eles se

cria pois criaccedilatildeo pressupotildee pensar no proacuteprio pensamento e como eles se datildeo

entre leitura e escrita

AICE

Autor-tradutor ndash ler e escrever na educaccedilatildeo como operaccedilatildeo literaacuteria valer-se

da literatura que desencadeia movimentos de pensar interpretar aprender

compor devires tradutoacuterio

Infantil ndash do infante da crianccedila que descobre pois tem a forccedila ativa ativada

por uma vontade de potecircncia que quer afirmar-se com alegria

Curriacuteculo ndash Alegria que transborda pois se afirmam novos meios de educar

que natildeo o ldquoeu professotu escutasrdquo pois na teimosia que nos impele a educar eacute

necessaacuterio ir aleacutem da mera reproduccedilatildeo de textos

Educador ndash EEE (estudante escritor educador) trecircs papeacuteis intercambiaacuteveis

propiacutecios a interrogar-se levantar questotildees na busca de novos olhares ldquovatildeosrdquo

sobre o ainda natildeo visto que possibilita novas composiccedilotildees de escrita

Consideraccedilotildees Finais

Ao pensar sobre o processo de pesquisa exposto no presente artigo

sinalizamos a relevacircncia do pensamento de Paul Valeacutery e de sua apropriaccedilatildeo efetiva

no campo da educaccedilatildeo por considerar que os seus procedimentos de escrita

concedem ao espiacuterito que busca se educar agir com maior lucidez de pensamento

ou seja cultivar o Eu-empiacuterico que lecirc e escreve importando-se mais com o meio de

ocorrecircncia textual do que com um fim ou com uma meta

Tratamos em siacutentese de um fazer conjunto com Paul Valeacutery atraveacutes dos

seguintes aportes a) o Meacutetodo do Informe utilizado como processo experimental

para falar ler e escrever sobre a educaccedilatildeo com Valeacutery b) atraveacutes de uma Self-

variance do espiacuterito colocar-se em movimento funcional construcionista onde

autoeduca-se no entre-lugar variante de EEE c) a escrileitura conceitualizada como

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um campo aberto agrave formaccedilatildeo e ao fazer docente que mescla linguagem e

conhecimento

A vidarbo de Valeacutery engendra na didaacutetica e no curriacuteculo uma vontade de

expressatildeo unida agraves sensaccedilotildees experimentadas no viviacutevel em novos traccedilados

compositivos de escrita Para pensar e operar uma didaacutetica (AICE) e um curriacuteculo

(EIS) tradutoacuterios o estudo tambeacutem aponta que a pesquisa eacute mutante e aberta a

novas interferecircncias visto que o Meacutetodo do Informe transmuta-se no proacuteprio

percurso investigativo em um Meacutetodo Espiritograacutefico

Pelo que podemos observar acerca dos resultados e impactos das produccedilotildees

oriundas das trecircs pesquisas anteriormente citadas que pesquisam e produzem um

curriacuteculo e uma didaacutetica da diferenccedila eles vecircm proporcionando encontros

produtivos que ampliam e qualificam as pesquisas educacionais

Cabe enfatizar que no cotidiano educacional o que se traduz aleacutem de textos

eacute a proacutepria vida como potecircncia ou movimento de criaccedilatildeo almejando que a

existecircncia possa ser concebida como arte pois de acordo com Valeacutery (1977

p217) ldquoa arte natildeo eacute nada mais do que um pedagogo poreacutem mais importante ―

pois ela pode me ensinar a dispor do meu espiacuterito para aleacutem de suas aplicaccedilotildees

praacuteticasrdquo Trata-se entatildeo de um escrever vivendo espreitar a realidade e sobre ela

levantar novos problemas que promovem no espiacuterito dobras sobre si mesmo num

fazer poeacutetico-criador em elaboraccedilatildeo constante um modo de existir intensivo de arte-

vida que toma o viviacutevel como mateacuteria para assim transmutaacute-la no campo da

educaccedilatildeo contemporacircnea

Referecircncias CAMPOS Haroldo de Transcriaccedilatildeo Satildeo Paulo perspectiva 2013

_______ Haroldo de O Arco-Iacuteris Branco Rios de Janeiro Imago 1997 CAMPOS Maria Idalina Krause de Alfabeto Espiritograacutefico Escrileituras em Educaccedilatildeo Porto Alegre 2013 Projeto de dissertaccedilatildeo (Dissertaccedilatildeo em Educaccedilatildeo)

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Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2013 Disponiacutevel em lthttphdlhandlenet1018370246gt _______ Maria Idalina Krause de A Educaccedilatildeo da Diferenccedila com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico Porto Alegre 2014-2017 Projeto de tese (Tese qualificada em Educaccedilatildeo) Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2014 CORAZZA Sandra Mara OLIVEIRA Marcos da Rocha ADOacute Maacuteximo Daniel Lamela (Orgs) Biografemaacutetica na educaccedilatildeo Vidarbos (Caderno de Notas 7) Porto Alegre UFRGS Doisa 2015 _______ Sandra Mara Ensaio sobre EIS AICE proposiccedilatildeo e estrateacutegia para pesquisar em educaccedilatildeo Porto Alegre Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo CNPq 2014 30 p (No prelo) _______ Sandra Mara O que se transcria em educaccedilatildeo Porto Alegre ndash RS UFRGS Doisa 2013 _______ Sandra Mara Introduccedilatildeo ao meacutetodo biografemaacutetico In COSTA Luciano Bedin da FONSECA Tania Mara Galli (Org) Vidas do Fora habitantes do silecircncio Porto Alegre Editora da UFRGS 2010 _______ Sandra Mara Dramatizaccedilatildeo do infantil na comeacutedia intelectual do curriacuteculo meacutetodo Valeacutery-Deleuze Projeto de Pesquisa ndash Bolsa de produtividade CNPq 2010 _______ Sandra Mara Meacutetodo Valeacutery-Deleuze um drama na comeacutedia intelectual da educaccedilatildeo Educaccedilatildeo amp Realidade Porto Alegre v 37 n 3 Dec 2012 Disponiacutevel em lthttpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S2175-62362012000300016amplng=enampnrm=isogt Acessado em 13 de Julho de 2016 _______ Sandra Mara Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila (2014-2019) Projeto de Pesquisa de Produtividade (CNPq) _______ Gilles Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 2006 _______ Gilles A ilha deserta e outros textos Textos e entrevistas (1953-1974) Satildeo Paulo Iluminuras 2006 (Org Luiz B L Orlandi) DELEUZE Sobre o teatro Um manifesto de menos O esgotado Rio de Janeiro Editora Zahar 2010

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TAVARES Gonccedilalo M O senhor Valeacutery e a Loacutegica 1 ed Rio de Janeiro Casa da Palavra 2011 VALEacuteRY Paul Variedades Trad Maiza Martins de Siqueira Satildeo Paulo Iluminuras 2011 _______ Paul Fragmentos de Narciso e outros poemas Trad Juacutelio Castantildeon Guimaratildees Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 2013 _______ Cahiers Paris Gallimard 1977

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Gravura procedimentos alternativos em litografia contemporacircnea

Ana Paula Schoninger van Grol1 Universidade Feevale

Lurdi Blauth2

Universidade Feevale

Resumo O estudo aborda a inter-relaccedilatildeo da arte com distintos meios de produccedilatildeo de imagens mediando procedimentos tradicionais com processos de tecnologias digitais As experiecircncias satildeo realizadas no campo da gravura contemporacircnea com o intuito de propor outras possibilidades de criaccedilatildeo de matrizes pela utilizaccedilatildeo e o aproveitamento de materiais alternativos e o uso de produtos menos toacutexicos Consideramos que eacute importante estimular o uso destes outros meios principalmente em ateliecircs de gravura xilogravura gravura em metal litografia e serigrafia Neste momento apresentamos alguns resultados parciais no acircmbito da litografia cujas pesquisas foram desenvolvidas no ateliecirc de gravura da Universidade Feevale Palavras-chave Arte tecnologia gravura litografia Abstract The research takes into consideration the relation among the different ways of producing images associating traditional methods with digital technology processes The experiences are taken in the field of contemporary printing intenting propouse other possibilities in creating printing matrices from use and exploitation of alternative material and non-toxic products It is considered that it is important to stimulate the use of alternative means particularly in art labs such as xylography metal engraving lithography and silkscreen To the present moment will be presented some partial results related to lithograph all researches were accomplished at the art laboratory in Universidade Feevale Keywords Art technology printing lithography

Introduccedilatildeo

Os movimentos artiacutesticos no iniacutecio de seacuteculo XX transgridem as formas

tradicionais da arte como podemos observar no surrealismo futurismo e dadaiacutesmo e

nas publicaccedilotildees em manifestos que confrontam questotildees sociais e culturais A

invenccedilatildeo da fotografia intensifica a aproximaccedilatildeo entre a arte e a tecnologia liberando

os artistas da questatildeo da representaccedilatildeo tradicional de espaccedilo para realizarem novas

1 Graduada em Artes Visuais trabalha como professora de liacutengua inglesa Eacute diretora do grupo de teatro de rua DRIME e tambeacutem atua como artista plaacutestica 2 Doutora em Artes Visuais pela UFRGS (2005) e Doctorat sandwich en Art Plastique - Universiteacute Paris 1 (Pantheacuteon-Sorbonne) (2003) Artista visual pesquisadora e professora nos cursos de Artes Visuais Design Graacutefico e no PPG em Processos e Manifestaccedilotildees Culturais Universidade Feevale

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experiecircncias Em 1910 quando Pablo Picasso e Georges Braque inserem em suas

pinturas outros materiais como fragmentos de jornais elementos da tipografia entre

outros impressos fazem uma alusatildeo direta ao cotidiano e ao progresso dos novos

meios tecnoloacutegicos da eacutepoca Tais fragmentos colados sobre a superfiacutecie da tela aleacutem

de redimensionarem a relaccedilatildeo da representaccedilatildeo do espaccedilo ilusionista da perspectiva

introduzem uma nova forma de tempo e espaccedilo Os limites tradicionais e a

representaccedilatildeo objetiva da arte comeccedilam a ser questionados sobretudo com a

utilizaccedilatildeo e a experimentaccedilatildeo de novos materiais bem como tambeacutem a expressatildeo

pessoal do artista

No acircmbito do desenvolvimento da gravura percebemos a coexistecircncia com

inovaccedilotildees teacutecnicas as quais satildeo constantemente renovadas e incorporadas aos

procedimentos tradicionais de criaccedilatildeo de imagens sobre distintas matrizes e processos

de reproduccedilatildeo sobre diferentes suportes Atualmente o conceito inicial da gravura se

transforma junto com a evoluccedilatildeo da cultura e dos novos meios tecnoloacutegicos Ela natildeo

envolve necessariamente gravaccedilatildeo isto eacute subtraircortar mateacuteria de uma superfiacutecie

como eacute feito nos meios mais tradicionais como a xilogravura e a calcografia Utiliza-se a

adiccedilatildeo de pigmentos os quais modificam a superfiacutecie de uma matriz atraveacutes de

processos quiacutemicos confronta-se tambeacutem com a gravaccedilatildeo fotograacutefica a eletrografia e

a computaccedilatildeo graacutefica buscando assim a inter-relaccedilatildeo com outras linguagens

Tais desdobramentos tencionam as suas especificidades teacutecnicas propondo

uma maior flexibilidade e autonomia em relaccedilatildeo aos seus meios convencionais de

gravaccedilatildeo e impressatildeo Contudo as linguagens tradicionais natildeo satildeo descartadas uma

vez que eacute fundamental termos conhecimento das caracteriacutesticas dos seus

procedimentos originais que continuam sendo desenvolvidos por inuacutemeros artistas Ou

seja satildeo produzidas gravuras com meios teacutecnicos da xilogravura calcografia serigrafia

e litografia e de acordo com as singularidades criativas de cada artista satildeo

incorporados desenhos pinturas colagens transferecircncia de fotografias digitais coacutepia

uacutenica em contraponto com a reproduccedilatildeo de imagens

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Neste estudo investigamos a criaccedilatildeo de imagens por meio de experimentaccedilotildees

praacuteticas com procedimentos analoacutegicos (gravura) incluindo a utilizaccedilatildeo de recursos

provenientes de tecnologias digitais (fotografia) e a transferecircncia de imagens sobre

matrizes alternativas

O enfoque das nossas experimentaccedilotildees eacute buscar materiais que possam suprir

os procedimentos tradicionais da litografia devido a dois fatores primeiro satildeo poucos

ateliecircs que possuem as pedras litograacuteficas o que impede o seu faacutecil acesso segundo

aliada aos constantes desdobramentos e potencialidades da linguagem graacutefica eacute

fundamental a experimentaccedilatildeo de outros materiais mais acessiacuteveis e menos toacutexicos

Cabe mencionar que tais experimentaccedilotildees partem de informaccedilotildees obtidas por

pesquisas apresentadas em sites da internet artigos e estudos oriundos de testagens

realizadas em outros paiacuteses No entanto percebemos que os procedimentos natildeo

resultam em apenas transcrever teacutecnicas implicam em tentar adotar materiais similares

em nosso contexto aleacutem de indicarem outras possibilidades de criaccedilatildeo artiacutestica

Os experimentos e pesquisas relatados aqui satildeo vinculados ao projeto de

pesquisa Arte e Tecnologia Interfaces Hiacutebridas da Imagem entre Mediaccedilotildees e

Remediaccedilotildees que acontece sob orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Lurdi Blauth nos ateliecircs de arte

da Universidade Feevale O objeto de estudo investiga possibilidades hiacutebridas que

inter-relacionam meios analoacutegicos e digitais de diferentes linguagens esteacuteticas como a

gravura fotografia videoarte e tecnologias digitais

Litografia princiacutepios baacutesicos

A litografia descoberta por Alois Senefelder em 1796 comeccedilou a ser utilizada

de forma utilitaacuteria para impressatildeo de documentos roacutetulos cartazes mapas jornais

aleacutem de apresentar uma nova possibilidade expressiva para os artistas A teacutecnica da

litografia tem como princiacutepio baacutesico o fenocircmeno quiacutemico de repulsatildeo entre gordura e

aacutegua tornando-se um meio de reproduccedilatildeo de imagens Antes da invenccedilatildeo da litografia

toda a gravura pressupunha gravaccedilatildeo isto eacute a incisatildeo sobre uma superfiacutecie resultando

numa imagem que podia ser transferida pelo seu relevo Isto quer dizer que a gravura

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estava associada agrave incisatildeo agrave subtraccedilatildeo o oposto de adiccedilatildeo De acordo com George

Kornis3 (2015)

O advento da litografia no seacuteculo XIX ndash um processo fundado apenas em uma accedilatildeo quiacutemica sobre uma matriz em pedra ndash possibilitou um grau de liberdade diante da incisatildeo e ampliou a escala de reprodutibilidade da imagem graacutefica Na litografia a linguagem graacutefica aproxima-se ainda mais do desenho Essa nova teacutecnica prescinde da incisatildeo o que amplia o acesso a novos artistas que optam por incorporar tambeacutem a expressatildeo graacutefica ao seu trabalho

Importantes artistas comeccedilam a utilizar a teacutecnica como meio de expressatildeo

Goya como podemos observar na obra Touradas de 1825 (fig 1) Gustave Doreacute

Renoir Ceacutezanne Toulouse-Lautrec Bonnard entre outros realizam novas

experimentaccedilotildees introduzindo inclusive a cor nos meios litograacuteficos

Figura 1 Francisco Joseacute de Goya Touradas 1825 Fonte Disponiacutevel em httpwwwpatrimoniodehuescaesmuseo-de-huesca-francisco-de-goya-y-

lucientes-grabados-de-tauromaquia-y-lienzo-del-sr-de-veian-s-xviii

A linguagem graacutefica aliada agraves transformaccedilotildees do seacuteculo XXI continua a sua

constante atualizaccedilatildeo teacutecnica pela convergecircncia de meios digitais e de teacutecnicas

seculares da gravura configurando-se pela exploraccedilatildeo de uma diversidade de novas

proposiccedilotildees esteacuteticas Nesse aspecto igualmente eacute colocado em discussatildeo o seu

caraacuteter original relacionado com a produccedilatildeo de uma matriz uacutenica e a reproduccedilatildeo de

3 KORNIS George Gravura passado presente e futuro Publicado em 13 de maio de 2015 Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=mCmY_Oj3x64gt Acesso em 29 de julho de 2016

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estampas idecircnticas Para Nicole Malenfant (2012 p73) ldquoeacute na abertura para praacuteticas de

natureza interdisciplinar que a gravura transgrediu ainda mais o quadro de sua

especificidade para integrar a abordagem de criaccedilatildeo agrave perspectiva de uma

lsquopermeabilidade de fronteirasrsquo Em outras palavras estas novas abordagens inter-

relacionam procedimentos materialidades e conceitos ampliando inclusive o caraacuteter

mais intimista da gravura bem como as estruturas de suas praacuteticas teacutecnicas

convencionais que se desdobram no contato com as tecnologias digitais

Atualmente falamos em gravuras digitais que se distinguem das praacuteticas

tradicionais da gravura que ldquoeacute feita com base na construccedilatildeo pictoacuterica e utiliza

ferramentas proacuteprias aos softwares da imagem para elaborar uma proposta visual que

pode incluir elementos fotograacuteficos que se relacionem com outros elementos do todo da

imagemrdquo (MALENFANT 2012 p72) Embora as especificidades de cada procedimento

empregado estejam em sintonia eacute preciso levar em conta as peculiaridades e

denominaccedilotildees dos meios de reproduccedilatildeo e impressatildeo e suas diferentes granulaccedilotildees na

imagem A incorporaccedilatildeo da imagem fotograacutefica por meio de transferecircncia para outros

suportes e matrizes que permitem a sua reproduccedilatildeo se distingue da materialidade das

impressotildees manuais

Ainda de acordo com Malenfant

As pesquisas para transferir imagens fotograacuteficas ou digitais para matrizes que permitem se servir da impressatildeo artesanal tambeacutem enriqueceram essas imagens com uma materialidade diferente advindas da siacutentese de suas disciplinas implicadas Esses novos avanccedilos no plano teacutecnico permitem associar as ferramentas digitais ao processo de criaccedilatildeo da imagem e ampliam o campo da exploraccedilatildeo esteacuteticardquo (2012 p73)

Nessa perspectiva haacute uma liberdade muito maior em elaborar proposiccedilotildees

esteacuteticas que dialogam com uma diversidade de materiais e materialidades e de certa

maneira transgridem as delimitaccedilotildees para integrar novas formas de criaccedilatildeo no campo

ampliado da arte

Desse modo as investigaccedilotildees praacuteticas desta pesquisa se desdobram com a

exploraccedilatildeo de procedimentos alternativos para a gravura litograacutefica A partir do

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conhecimento de alguns princiacutepios baacutesicos da litografia procuramos trabalhar com

alguns meacutetodos que natildeo necessitam da utilizaccedilatildeo da pedra calcaacuteria cujo material eacute

escasso e limitado a poucos ateliecircs no Rio Grande do Sul

Contexto inicial

Para o desenvolvimento dos meios tradicionais da litografia eacute necessaacuterio uma

seacuterie de procedimentos que implicam no uso de diversos materiais como pedra

litograacutefica (calcaacuteria) materiais para desenho (Tousche laacutepis crayon) solvente

(removedor aacutegua-raz ou varsol) goma araacutebica breu aacutecido aceacutetico aacutecido niacutetrico entre

outros O processo eacute relativamente complexo pois depende da repulsatildeo entre gordura

e aacutegua A imagem eacute produzida sobre a superfiacutecie da pedra calcaacuteria com materiais

oleosos e depois de concluiacuteda satildeo aplicados diferentes componentes quiacutemicos que

iratildeo fixaacute-la Ou seja eacute necessaacuterio que todas as etapas sejam consideradas em sua

sequecircncia e geralmente requer o auxiacutelio de profissionais capacitados para a impressatildeo

aleacutem de outros cuidados teacutecnicos para que haja um bom resultado na obra final

Visando atender aos objetivos da pesquisa buscamos desenvolver a teacutecnica

com meacutetodos diversos realizando experimentaccedilotildees com diferentes suportes para a

produccedilatildeo de matrizes que se aproximem aos meios litograacuteficos Aleacutem disso buscamos

relacionar a pesquisa agraves tecnologias digitais seja no processo de criaccedilatildeo eou na

elaboraccedilatildeo das imagens graacuteficas

Experimentaccedilotildees praacuteticas

Inicialmente foram testados vaacuterios procedimentos e materiais tendo como

proposiccedilatildeo na medida do possiacutevel utilizar materiais menos nocivos ao ambiente

Nessas experimentaccedilotildees vaacuterios testes natildeo apresentaram os resultados esperados ou

adequados agrave proposta da investigaccedilatildeo contudo possibilitaram outras descobertas

Os estudos em ateliecirc tecircm como referecircncia o artigo ldquoLa siligrafiacutea Un proceso

alternativo en la graacutefica muacuteltiple contemporaacuteneardquo de Hortensia Miacutenguez Garciacutea e

Carles Meacutendez Llopis (2014) que sugere o uso de silicone e solvente sobre chapa

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offset Apoacutes algumas tentativas foi possiacutevel reproduzir a imagem contudo os

resultados deste experimento natildeo foram totalmente satisfatoacuterios em qualidade de

impressatildeo aleacutem do mais natildeo se enquadravam com os objetivos da pesquisa na

aplicaccedilatildeo dos materiais ndash que ainda apresentavam certa toxicidade (figura 2)

Figura 2 Ana van Grol - Detalhes do processo com litografia alternativa Fonte Arquivo pessoal

A partir destas experiecircncias realizadas em ateliecirc concluiacutemos que seratildeo

necessaacuterios mais estudos e praacuteticas para se obter melhores resultados para a

reproduccedilatildeo das imagens

Litografia natildeo toacutexica com refrigerante de cola e produtos caseiros

Nesta segunda etapa novos estudos bibliograacuteficos propiciaram outras testagens

com materiais e processos de litografia alternativa Percebemos que em muitos paiacuteses

jaacute estatildeo sendo pesquisados outros meacutetodos mais acessiacuteveis e de faacutecil manuseio

Nesse aspecto eacute interessante observar que encontramos pouco material em portuguecircs

inclusive os materiais sugeridos satildeo similares aos produzidos aqui no Brasil poreacutem

existe uma diferenccedila na qualidade dos mesmos

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Foram pesquisados em diversos viacutedeos disponiacuteveis na internet que tratam de

processos semelhantes ao de litografia alternativa Mencionamos alguns exemplos

como o ateliecirc francecircs Art Emilion4 (o qual tambeacutem produziu um manual para execuccedilatildeo

do processo) e o viacutedeo Kitchen Lithography Demo por Felicia Digiovanni5 ambos

demonstrando a teacutecnica com refrigerante de cola O processo utilizando somente

vinagre para substituir o refrigerante apresentado por ldquojjewelartrdquo tambeacutem fez parte do

experimento poreacutem natildeo apresentou os resultados esperados

De acordo com as demonstraccedilotildees do ateliecirc de arte Art Eacutemilion o procedimento

faz uso dos seguintes materiais oacuteleo de cozinha vinagre branco refrigerante de cola

papel alumiacutenio esponja litograacutefica tinta para talho doce rolo para entintagem laacutepis

para desenho litograacutefico (e outros materiais gordurosos para o mesmo fim como sabatildeo

de glicerina) papel para impressatildeo e aacutegua

O desenvolvimento da teacutecnica envolve as seguintes etapas

1 O papel alumiacutenio deve ser posto sobre uma chapa acriacutelica ou algo semelhante

para facilitar o trabalho o lado a ser usado eacute o fosco

2 Apoacutes limpar o papel alumiacutenio com aacutelcool pode-se fazer o desenho com giz

gorduroso ou sabatildeo de glicerina

3 O banho de refrigerante de cola eacute o passo seguinte mas deve-se ter a certeza

de que o desenho estaacute totalmente seco para isso Este processo toma alguns

segundos e eacute necessaacuterio assegurar-se de passar por toda a superfiacutecie

4 Depois disso deve-se lavar com aacutegua e secar levemente com papel toalha

5 O oacuteleo de canola deve ser espalhado por toda a superfiacutecie com uma gaze para

retirar o desenho do alumiacutenio

6 Eacute necessaacuterio passar a esponja de litografia sobre o desenho devendo estar

umedecida com aacutegua e ser aplicada entre as etapas de entintagem com tinta

4 EMILLION Aizier Lithography Maison ndash Kitchen lithography Disponiacutevel em lt httpwwwatelier-kitchen-printorgproducts-pagemanuelsproduitshandbook-of-kitchen-lithogt Acesso em 09 de junho de 2016 5DIGIOVANI Felicia Kitchen Lithography Demo Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=UuBUlEt6vWwgt Acesso em 09 de junho de 2016

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para talho doce ou tipograacutefica com um rolo de borracha Na primeira passada eacute

possiacutevel que a tinta se fixe a todas as partes poreacutem a esponja molhada deve

ser aplicada vaacuterias vezes assim como a tinta ateacute que ao final a tinta aderiraacute

somente na imagem (figura 3)

Figura 3 Ana van Grol - testes de litografia alternativa com coca cola do atelier Art Eacutemilion Fonte Arquivo pessoal

Nos primeiros resultados apenas era possiacutevel reconhecer vestiacutegios das

imagens e teacutecnica entretanto ao repetir o processo algumas vezes e analisar os

procedimentos realizados era notaacutevel a melhora das impressotildees (figura 4)

Figura 4 Ana van Grol ndash detalhe da impressatildeo com maior fidelidade entre o desenho inicial e sua impressatildeo final

Fonte Arquivo pessoal

Eacute curioso salientar um aspecto em que diferem nossos estudos dos

experimentos realizados nos viacutedeos observados enquanto que em nossas praacuteticas a

tinta eacute fixada no plano de fundo da imagem nos viacutedeos ela adere nos desenhos sendo

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assim o sistema que repele a tinta acontece invertido e por esse motivo continuamos

as testagens para obter resultados mais proacuteximos aos dos viacutedeos

Nestas experimentaccedilotildees os resultados foram satisfatoacuterios tecnicamente poreacutem

ainda natildeo foram consideradas questotildees esteacuteticas e conceituais enquanto linguagem

artiacutestica Na etapa seguinte buscamos aliar a transferecircncia de imagens para a criaccedilatildeo

de matrizes com papel alumiacutenio utilizando outros procedimentos e materiais

A transferecircncia de imagem sobre matriz de alumiacutenio

A articulaccedilatildeo da gravura tem seus antecedentes histoacutericos que remetem aos

primoacuterdios da fotografia relacionados agrave gravaccedilatildeo de sombra luz e impressatildeo O uso de

recursos tecnoloacutegicos pela facilidade de acesso propicia a ampla reproduccedilatildeo de

imagens assim como a fotografia digital contribui para a renovaccedilatildeo e a interaccedilatildeo com

outras linguagens artiacutesticas No entanto diante das inuacutemeras possibilidades de

reproduzir coacutepias por tecnologias digitais a questatildeo da reproduccedilatildeo atraveacutes da gravura

jaacute natildeo eacute tatildeo relevante Com o avanccedilo dessas tecnologias digitais abrem-se novos

caminhos para a gravura Maria do Carmo Veneroso6 coloca que

Eacute pois a qualidade graacutefica e a possibilidade do uso da imagem fotograacutefica entre outras coisas que vai caracterizar a praacutetica dos gravadores atualmente A reprodutibilidade deixa portanto de ser um valor em si jaacute que com o desenvolvimento da induacutestria graacutefica muitas outras formas de impressatildeo mais raacutepidas e mais eficientes se impotildeem deixando que a gravura se realize plenamente em meio e tangenciando outras linguagens plaacutesticas Essa mudanccedila de paradigma faz com que a gravura se desenvolva como linguagem lanccedilando matildeo dos recursos teacutecnicos disponiacuteveis (2007 p1512)

A autonomia das linguagens graacuteficas propicia que sejam articulados distintos

meios e procedimentos borrando as fronteiras e delimitaccedilotildees teacutecnicas para originar

outras praacuteticas e confrontos esteacuteticos O caminho da gravura artiacutestica comeccedila a se

modificar significativamente quando a tecnologia e os meios de reproduccedilatildeo fotograacutefica

6 Blog Litografia 2010 ndash CAPECAUSP Disponiacutevel em lthttpcap-lito-2010blogspotcombr201003litografias-de-artistas-cezannehtmlgt Acesso em 09 de junho de 2016

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satildeo incluiacutedos aos procedimentos tradicionais ldquoRobert Rauschenberg por exemplo

desafiou os meios convencionais da gravura introduzindo elementos jaacute impressos

atraveacutes da transferecircncia de imagens Tambeacutem ampliou as escalas fiacutesicas misturando

diversas teacutecnicas graacuteficas que satildeo impressas sobre tela para substituir o papelrdquo

(BLAUTH 2011 p27) (Figura 5)

Figura 5 Robert Rauschenberg Shades 1964 Seis litografias impressas sobre acriacutelico 15 x 1438 x 11 58 p Ediccedilatildeo 24

Fonte MOMA Disponiacutevel em httpswwwmomaorgcollectionworks14718

Neste estudo apresentamos resultados parciais de procedimentos e meacutetodos

com o intuito de transferir a fotografia digital para criaccedilatildeo de matrizes com papel

alumiacutenio Inicialmente satildeo realizadas algumas testagens com outros tipos de matrizes

(acetato lata de refrigerante) e meios de transferecircncia (tela de serigrafia calor e

salicilato de metila)

Um dos materiais testados foi o acetato com imagem impressa em toner preto

aacutegua e esponja para molhar o acetato antes de entintar tinta para talho doce rolo de

borracha papel proacuteprio para a impressatildeo e prensa

Fazendo uso das impressotildees a laser e conhecendo suas propriedades o acetato

foi entintado e impresso Apoacutes alguns testes o resultado foi satisfatoacuterio (figura 6)

poreacutem natildeo com total controle sobre as impressotildees Encontramos neste meacutetodo a

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possibilidade de unir a tecnologia com a reproduccedilatildeo de imagem aos materiais

alternativos na produccedilatildeo de gravura

Figura 6 Ana van Grol Processo e resultado acetato impresso a laser gravura direta com tinta para talho doce

Fonte Arquivo pessoal

Em outra experiecircncia eacute feita a transferecircncia de impressatildeo a laser com calor e

pressatildeo e a tinta para talho doce acaba por fazer a interaccedilatildeo necessaacuteria utilizando-se

do meacutetodo de limpar a placa com oacuteleo antes de entintaacute-la A tinta de talho doce eacute

aplicada com rolo de borracha vaacuterias vezes e entre os intervalos de cada entintagem eacute

necessaacuterio limpar a tinta com esponja litograacutefica embebida em aacutegua (figura 7)

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Figura 7 Ana van Grol Processo e resultado de trabalho com transferecircncia de coacutepia a laser e

impressatildeo direta com tinta para talho doce Fonte Arquivo pessoal

Outro procedimento de transferecircncia de imagem impressa a laser eacute o produto

denominado de salicilato de metila associado ao processo de impressatildeo com a prensa

Com este material obtemos resultados mais satisfatoacuterios quando a imagem eacute impressa

sobre papel couchet ressaltando um certo contraste na imagem Neste caso (figura 8)

apoacutes a transferecircncia satildeo realizadas grafias aleatoacuterias com laacutepis litograacutefico gorduroso e

depois satildeo empregados os procedimentos de fixaccedilatildeo da imagem sobre o alumiacutenio uso

de polvilho melado ou mel imersatildeo em refrigerante cola oacuteleo de cozinha (para retirar a

imagem) esponja embebida em aacutegua e tinta para impressatildeo (para talho doce) Nesse

processo a imagem transferida natildeo desaparece apenas o desenho feito com material

gorduroso

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Figura 8 Lurdi Blauth Teste de transferecircncia de imagem com salicilato de metila Fonte Arquivo pessoal

A serigrafia tambeacutem serve de aporte ao desejo de transferir uma imagem e

reproduzi-la em impressotildees Em si o processo de serigrafia consiste em sensibilizar a

tela de nylon com uma imagem que poderaacute ser reproduzida sobre outras superfiacutecies

com uso de tinta proacutepria No caso da litografia alternativa utilizamos o sabatildeo de

glicerina como ldquotintardquo ou seja na funccedilatildeo de base protetora para o banho de

refrigerante Para isso foi necessaacuterio criar uma pasta (na textura de tinta) para

reproduzir a imagem da tela para o papel alumiacutenio Mais tarde com a mistura de sabatildeo

jaacute seca foram aplicadas as etapas posteriores o resultado pode ser observado na

impressatildeo (figura 9)

Figura 9 Ana van Grol - impressatildeo com uso de serigrafia como forma de transferecircncia de imagem

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Fonte Arquivo pessoal

A impressatildeo apresentou resultados bem satisfatoacuterios quanto agrave qualidade de

imagem contudo outras misturas semelhantes agrave de sabatildeo de glicerina neutro devem

ser testadas e podem apresentar melhor aderecircncia eou resistecircncia ao banho de

refrigerante

Algumas consideraccedilotildees

Diante da pluralidade de meios e possibilidades artiacutesticas testadas procuramos

utilizar materiais alternativos e produtos atoacutexicos buscando aproveitar materiais

disponiacuteveis na tentativa de abrir outros meios de reproduccedilatildeo de imagens O caminho

continua em aberto e o que nos motiva eacute a nossa convicccedilatildeo na continuidade da

exploraccedilatildeo de novas perspectivas para o campo da arte e em especial agrave litografia

testada com diferentes procedimentos Entendemos que diversos fatores interferem

devido agraves caracteriacutesticas e qualidade dos materiais empregados os quais muitas

vezes apresentam resultados inesperados

As experimentaccedilotildees realizadas ateacute o momento nos indicam a continuidade da

pesquisa buscando meios variados para o campo da gravura que possam ser

socializados principalmente nos ateliecircs que ainda utilizam materiais prejudiciais Dessa

forma pretendemos tambeacutem contribuir com a conscientizaccedilatildeo dos cuidados

relacionados agrave sauacutede dos artistas e do meio ambiente Em nossas conclusotildees parciais

percebemos que as possibilidades satildeo inuacutemeras para a criaccedilatildeo e reproduccedilatildeo de

imagens com materiais ldquocaseirosrdquo e com o seguimento de nossas investigaccedilotildees e

testagens temos a convicccedilatildeo de que podemos estimular a adesatildeo e a interaccedilatildeo com

outros artistas e assim obtermos melhores resultados

Portanto o campo das linguagens graacuteficas e os seus meios de reproduccedilatildeo direta

ou indireta da imagem tem suas qualidades intriacutensecas em cada processo contudo se

natildeo suscitarem transformaccedilotildees tornam-se vazias e desnecessaacuterias Podemos dizer

que natildeo importam os meios empregados pois os ldquoproblemasrdquo artiacutesticos devem ser

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confrontados com novos questionamentos esteacuteticos seja pelo uso do computador na

imagem digital na fotografia ou mesmo os meios considerados tradicionais como

gravura a pintura a escultura podendo ter (ou natildeo) qualidade contemporacircnea

Referecircncias BLAUTH Lurdi Marcas Passagens e Condensaccedilotildees ndash investigaccedilotildees de um processo de gravura contemporacircnea Porto Alegre Editora da UFRGS 2011 GARCIacuteA Hortensia Miacutenguez e LLOPIS Carles Meacutendez La siligrafiacutea Un proceso alternativo en la graacutefica muacuteltiple contemporacircnea In Revista El Artista n 11 Pamplona Colombia Universidad Distrital Francisco Joseacute de Caldas 2014 MALENFANT Nicole A gravura entre a identidade disciplinar e suas manifestaccedilotildees em um quadro interdisciplinar In Revista Porto Arte v 1 n1 (jun 1990) Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Visuais 1990 VENEROSO Maria do Carmo Gravura e Fotografia - Um estudo das possibilidades da gravura como uma linguagem artiacutestica autocircnoma na contemporaneidade e sua associaccedilatildeo com a fotografia In 16deg Encontro Nacional da Associaccedilatildeo Nacional de Pesquisadores de Artes Plaacutesticas Dinacircmicas Epistemoloacutegicas em Artes Visuais ndash 24 a 28 de setembro de 2007 ndash Florianoacutepolis SC

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Pluralia Tantum reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea

Fernando Lewis de Mattos1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

1 Consideraccedilotildees preliminares sobre o conservadorismo em muacutesica Antes de iniciar esta explanaccedilatildeo sobre algumas caracteriacutesticas da muacutesica

contemporacircnea gostaria de apontar aspectos do conservadorismo existente na

muacutesica atual

Mesmo atraveacutes de um vislumbre raacutepido sobre a Histoacuteria da Muacutesica percebe-

se que em todas as eacutepocas houve aqueles artistas que se esforccedilaram para expandir

a sensibilidade de seu tempo e aqueles (artistas teoacutericos criacuteticos pensadores e

parte do puacuteblico) que natildeo foram capazes de compreender o significado das

transformaccedilotildees ou natildeo estavam dispostos a abrir matildeo de seus valores

aparentemente bem fundamentados para escutar com a devida atenccedilatildeo as

realizaccedilotildees de seus contemporacircneos

Nem mesmo grandes pensadores estiveram livres de juiacutezos preconcebidos

ou natildeo foram capazes de apreciar a abrangecircncia de certas inovaccedilotildees no campo

artiacutestico de sua eacutepoca Platatildeo por exemplo revoltou-se contra a nova muacutesica de

seu tempo com seus trecircs gecircneros (diatocircnico cromaacutetico e enarmocircnico) e a

ampliaccedilatildeo vertiginosa das possibilidades de expressatildeo considerada perigosa pelo

filoacutesofo por romper com os fundamentos numeacutericos e com as normas pitagoacutericas da

muacutesica tradicional Rousseau e Diderot percebiam em Rameau somente o muacutesico

da corte chegando a ridicularizar suas oacuteperas por haver um grande contingente de

1 Possui Graduaccedilatildeo em Muacutesica - Habilitaccedilatildeo Violatildeo (1988) Mestrado em Muacutesica - Ecircnfase Educaccedilatildeo Musical

(1997) e Doutorado em Muacutesica - ecircnfase em Composiccedilatildeo (2005) pela Universidade Federal do Rio Grande do

Sul Atualmente eacute Professor Associado do Departamento de Muacutesica no Instituto de Artes da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul onde atua nas disciplinas Anaacutelise Musical Harmonia Esteacutetica da Muacutesica no

curso de Muacutesica e as disciplinas Praacuteticas Artiacutesticas e Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Muacutesica no curso de Histoacuteria da

Arte Soacutecio-fundador da Arena - Associaccedilatildeo Cultural Socioambiental onde ministra cursos regularmente

Instrumentista (cordas dedilhadas) dedicado agrave pesquisa e interpretaccedilatildeo de muacutesica antiga europeia (alauacutedes e

guitarras) muacutesica tradicional brasileira (viola caipira e guitarra romacircntica) e muacutesica contemporacircnea (violatildeo e

decacorde) compositor com obras para diferentes formaccedilotildees vocais e instrumentais muacutesica incidental para

teatro viacutedeo e cinema e produccedilatildeo de material sonoro para exposiccedilotildees Dedica-se tambeacutem agrave pesquisa e

interpretaccedilatildeo de muacutesica brasileira moderna e contemporacircnea

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instrumentos de percussatildeo tratando-as como natildeo sendo muacutesica mas somente um

amontoado de sons que produziam um barulho infernal Para Diderot Rameau era

[] aquele muacutesico ceacutelebre que nos livrou do canto chatildeo de Lully o qual recitamos haacute mais de cem anos que escreveu tantas visotildees ininteligiacuteveis e verdades apocaliacutepticas sobre a teoria da muacutesica sobre as quais nem ele nem ningueacutem jamais entendeu nada2 e de quem temos um certo nuacutemero de oacuteperas onde haacute harmonias fragmentos de cantos ideias desconexas ruiacutedos estrondosos voos triunfos lances gloacuterias murmuacuterios vitoacuterias de perder o focirclego aacuterias de danccedila que duraratildeo eternamente e que depois de ter enterrado o Florentino seraacute enterrado pelos virtuoses italianos (DIDEROT 1983 p 47-48)

Nietzsche que assim como Platatildeo e Rousseau tambeacutem era muacutesico viu no

Parsifal de Wagner apenas a capitulaccedilatildeo aos valores de uma arte germacircnica

redentora e consolatoacuteria que abdicava do ideal da muacutesica como retorno agrave inocecircncia

da arte atraveacutes do espiacuterito dionisiacuteaco Se houve este aspecto conservador na muacutesica

de Wagner havia muito mais pois foi a partir de suas inovaccedilotildees que compositores

como Mahler Debussy e Schoenberg conduziram suas proacuteprias experiecircncias

Mesmo que nem sempre tenha sido por razotildees especificamente musicais3 as

sucessivas reaccedilotildees agraves novas sonoridades levam a crer que a abertura para praacuteticas

musicais inusuais pode ser algo difiacutecil de ser alcanccedilado

No meio musical atual podem-se distinguir duas espeacutecies de

conservadorismo o conservadorismo preacute-moderno e o conservadorismo modernista

O conservadorismo preacute-moderno eacute aquele mais generalizado e hegemocircnico

predominante entre os programadores culturais administradores de teatro diretores

artiacutesticos de orquestras e afins Essa espeacutecie de conservadorismo se opotildee a toda e

qualquer criaccedilatildeo musical natildeo coincidente com os procedimentos e valores da

muacutesica do Periacuteodo Tonal situado entre as produccedilotildees de Johann Sebastian Bach

(1685-1750) e Johannes Brahms (1833-1897) Para aqueles que defendem ainda

hoje esses valores a muacutesica tonal eacute tida como sendo lsquouniversalrsquo mesmo que seja o

2 Jean-Philippe Rameau (1683-1764) foi um dos maiores muacutesicos e teoacutericos de sua eacutepoca foi o primeiro a sistematizar mais de duzentos anos de praacutetica musical em seu Tratado de Harmonia (1722) que eacute ainda hoje considerado como um dos escritos mais importantes sobre o assunto 3 Platatildeo estava preocupado com a educaccedilatildeo dos jovens os enciclopedistas viam em Rameau um representante do Ancien Reacutegime e Nietzsche sentiu-se traiacutedo por Wagner em seu ideal de superar o predomiacutenio do espiacuterito apoliacuteneo no campo musical

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fruto do trabalho de muacutesicos de uma regiatildeo restrita do planeta que corresponde a

aproximadamente trecircs paiacuteses da Europa Ocidental (Itaacutelia Franccedila e principalmente

Alemanha) e produzida em um curto periacuteodo de tempo entre os seacuteculos XVIII e

XIX

Um bom exemplo desse tipo de conservadorismo estaacute naquela afirmaccedilatildeo

comum em certos meios musicais onde prevalecem valores convencionais ldquonatildeo

toco muacutesica contemporacircnea porque as pessoas natildeo tecircm como saber se estou

tocando as notas certas ou erradas e quando escuto uma muacutesica dessas natildeo sei se

o muacutesico estaacute tocando bem ou natildeo Por isso considero essa muacutesica como sendo

de menor importacircnciardquo Nota-se aqui um pensamento tautoloacutegico centrado apenas

na proacutepria experiecircncia pessoal e sem qualquer interesse pela produccedilatildeo que estaacute agrave

sua volta Tautoloacutegico no sentido em que o sujeito natildeo tem como avaliar aquela

interpretaccedilatildeo porque natildeo conhece a muacutesica e natildeo conhece aquela muacutesica porque

natildeo se permite avaliar a interpretaccedilatildeo O raciociacutenio artificioso estaacute em que como o

indiviacuteduo natildeo conhece a muacutesica natildeo se esforccedila para escutar sua interpretaccedilatildeo

portanto natildeo pode julgaacute-la e se natildeo eacute possiacutevel emitir juiacutezo a muacutesica natildeo tem valor ndash

como se fosse necessaacuterio conhecer a muacutesica para saber se algueacutem a estaacute

interpretando adequadamente como se a capacidade de anaacutelise natildeo estivesse no

conhecimento que o sujeito tem do objeto analisado Trata-se de uma atitude

autocentrada porque esses muacutesicos

[] soacute conhecem a arte que consomem e soacute consomem a que reconhecem portanto sua consciecircncia eacute leve e parcial Como sustentar o pacto se eacute tatildeo menos sofrido dormir com a consciecircncia leve sem a pretensatildeo de uma arte feita tambeacutem para arte sem a sombra do domiacutenio gigantesco Talvez arte feita somente para o mundo para o plano da distraccedilatildeo substacircncia que dissolve instantaneamente o artista Arte distraiacuteda quase arte quase atenccedilatildeo quase conteuacutedo insuficiecircncia (BERNARDES 1998 p 7)

Quem crecirc que julga a arte a partir dessa espeacutecie de raciociacutenio apenas se

limita a reconhecer aquilo que jaacute conhece ou seja nesse ponto natildeo haacute

conhecimento apenas reconhecimento Ouvem-se tambeacutem alguns muacutesicos que se

negam a tocar novos repertoacuterios argumentando que natildeo se dedicam a estudar a

muacutesica atual porque ela natildeo acrescenta muito agrave teacutecnica do seu instrumento Esse

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ponto de vista parece ainda mais esvaziado pois fica confinado nos limites da

teacutecnica onde natildeo se alcanccedila jamais a condiccedilatildeo de arte

O conservadorismo moderno eacute atualmente defendido por aqueles que foram

os protagonistas de grandes transformaccedilotildees teacutecnicas e esteacuteticas da muacutesica de

meados do seacuteculo XX (do poacutes-guerra agrave deacutecada de 1970) e seus disciacutepulos esses

muacutesicos opotildeem-se a qualquer mudanccedila de direcionamento que natildeo corresponda agraves

novidades introduzidas pelas vanguardas tardias e confundem novos processos

narrativos e novos significados musicais com a arte de um passado ao qual sempre

se opuseram Natildeo tecircm a capacidade de compreender que as novas geraccedilotildees

percebem o mundo de outra maneira tecircm outros anseios e consequentemente

outras necessidades Portanto produzem outra arte O musicoacutelogo Paul Bekker

afirmava que os muacutesicos de sua eacutepoca natildeo escreviam da mesma maneira que os

grandes gecircnios do passado ldquopelo simples fato de serem pessoas diferentesrdquo

(BEKKER 1928 p 217) Parece que os protagonistas das vanguardas (a quem

Bekker estava se referindo) natildeo se deram conta de que o tempo continua a passar e

que os mais jovens que vieram depois deles tambeacutem tecircm outras necessidades ndash o

que obviamente leva agrave criaccedilatildeo de outra muacutesica diferente da sua

Haacute tambeacutem aqueles que pretendem que a arte se limite agrave aplicaccedilatildeo de novos

processos tecnoloacutegicos esquecendo que a arte eacute antes de tudo expansatildeo da

sensibilidade e do pensamento e que a teacutecnica natildeo eacute condiccedilatildeo para a arte A

tecnologia pode ser mais um recurso para a realizaccedilatildeo artiacutestica natildeo seu fim

Quando a muacutesica eacute valorizada somente pelos procedimentos tecnoloacutegicos

empregados na sua produccedilatildeo tambeacutem fica confinada nos limites da teacutecnica e natildeo

alcanccedila sua condiccedilatildeo esteacutetica O emprego de recursos tecnoloacutegicos vem a partir de

necessidades mais amplas do que a simples aplicaccedilatildeo de teacutecnicas recentes Se o

emprego de novas tecnologias fosse criteacuterio para a avaliaccedilatildeo da arte as primeiras

experiecircncias com muacutesica eletrocircnica seriam atualmente obsoletas (e seria no

miacutenimo enganoso considerar ultrapassadas as peccedilas eletrocircnicas de Schaeffer

Henry ou Stockhausen dos anos rsquo50) Por sua vez a novidade tecnoloacutegica natildeo

implica necessariamente na produccedilatildeo de arte nova

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Como o tempo eacute inexoraacutevel os indiviacuteduos humanos de hoje satildeo outros do

que em outros tempos as sociedades satildeo outras haacute outras maneiras de perceber o

mundo e refletir sobre ele tambeacutem o resultado da produccedilatildeo desses indiviacuteduos eacute

necessariamente outro Natildeo tem como ser diferente Isso indica que toda espeacutecie de

conservadorismo estaacute fadada ao fracasso o movimento se manifesta em todos os

aspectos e em todos os lugares Natildeo tem como negar a transformaccedilatildeo ela

simplesmente estaacute aiacute Haacute que aceitaacute-la ou trabalhar com ela para a criaccedilatildeo de

processos que possam conduzir a novos significados e novos meios de fazer e

perceber muacutesica Isso natildeo eacute dito de um ponto de vista apenas teacutecnico ou

pragmaacutetico mas acima de tudo conceitual pois a muacutesica como diria Platatildeo

alcanccedila seu mais alto niacutevel quando ultrapassa as pretensotildees praacuteticas mais

imediatistas e eacute nesse sentido que Soacutecrates no diaacutelogo Feacutedon compara o ato de

criar muacutesica ao haacutebito de filosofar

Negar que o tempo se prolonga incessantemente e perdura sem interrupccedilatildeo

levando consigo toda a sorte de transformaccedilotildees em todos os aspectos da realidade

significa dar as costas ao devir em seu fluxo ininterrupto de ir e vir em muacuteltiplas

direccedilotildees O que eacute uacutetil intrigante e considerado como atual para determinado grupo

humano pode natildeo o ser para outros grupos e eacute necessaacuterio aceitar isso para

compreender algo da diversidade da produccedilatildeo artiacutestica hodierna Eacute necessaacuterio sair

do proacuteprio centro para apreender algo da realidade circundante

2 Caracteriacutesticas da muacutesica atual

Haacute vaacuterias maneiras de distribuir as diferentes correntes de composiccedilatildeo da

muacutesica contemporacircnea Podem-se diferenciar as tendecircncias atuais de acordo com

procedimentos teacutecnicos como muacutesica serial muacutesica neotonal muacutesica minimalista

muacutesica eletrocircnica e outras conforme a ecircnfase em um ou outro elemento da

composiccedilatildeo como por exemplo os muacutesicos que valorizam o timbre as tendecircncias

em que o mais importante eacute o ritmo os movimentos de retorno agrave melodia agrave

harmonia ou ao contraponto aquelas linhas em que o importante estaacute no tipo de

escrita musical como a muacutesica com escrita precisa a escrita em forma de roteiro a

muacutesica aleatoacuteria e a improvisaccedilatildeo espontacircnea (que prescinde da escrita) poderiam

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tambeacutem ser consideradas as relaccedilotildees da muacutesica com outras aacutereas em que se

levariam em consideraccedilatildeo subdivisotildees como o teatro musical as instalaccedilotildees

sonoras ou as tendecircncias de multimiacutedia aleacutem de muacutesica para danccedila e a muacutesica

para cinema entre outras o ambiente musical atual poderia ainda ser dividido

entre os grupos derivados das vanguardas como a muacutesica atonal a muacutesica serial a

muacutesica estocaacutestica e a muacutesica espectral

Haveria ainda outras tantas possibilidades de demarcaccedilatildeo das tendecircncias

da muacutesica contemporacircnea Optou-se poreacutem neste ensaio por uma organizaccedilatildeo

mais ou menos extriacutenseca agrave proacutepria muacutesica e que poderia se adequar a outras

manifestaccedilotildees culturais atuais O que importa no esboccedilo a seguir satildeo os valores

que movem os muacutesicos em direccedilotildees que se entrecruzam em algumas de suas

caracteriacutesticas em alguns muacutesicos ou grupos de compositores Com base nas

referecircncias tomadas a partir de tradiccedilotildees imediatas ou remotas isto eacute nas tradiccedilotildees

do modernismo ou em tradiccedilotildees anteriores que tecircm sido resgatadas nos uacuteltimos

anos podem ser demarcadas trecircs linhas gerais na esteacutetica musical

contemporacircnea4

1 Continuidade da Modernidade

2 Retorno agrave Tradiccedilatildeo e

3 Superaccedilatildeo do Modernismo

A intenccedilatildeo com essa divisatildeo natildeo eacute enquadrar toda e qualquer manifestaccedilatildeo

musical contemporacircnea em alguma dessas trecircs tendecircncias gerais mas ao

contraacuterio procurar entender essas manifestaccedilotildees no sentido dos valores que podem

estar impliacutecitos ou expliacutecitos latentes ou manifestos conscientes ou inconscientes

nas diferentes produccedilotildees da muacutesica atual

Antes de iniciar a elaboraccedilatildeo sobre cada uma dessas tendecircncias eacute

necessaacuterio esclarecer algo da terminologia que seraacute empregada ao longo deste

ensaio

4 A organizaccedilatildeo adotada aqui leva em consideraccedilatildeo alguns princiacutepios elaborados por Ramaut-Chevassus (1998) o que natildeo significa poreacutem que se permanece no escopo de suas proposiccedilotildees

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Em primeiro lugar quando se fala de lsquomuacutesica contemporacircnearsquo neste texto se

estaacute abordando uma parcela da totalidade da muacutesica produzida atualmente que eacute a

assim chamada lsquomuacutesica eruditarsquo aquela produzida por muacutesicos que se dedicam ao

estudo da Teoria Musical agrave Histoacuteria da Muacutesica e agrave colocaccedilatildeo e soluccedilatildeo de

problemas teacutecnicos esteacuteticos ou relativos aos vaacuterios niacuteveis de significaccedilatildeo que

podem estar engendrados no fazer musical Isso significa que este ensaio se dedica

agravequelas manifestaccedilotildees musicais em que o foco principal estaacute na reflexatildeo sobre

problemas relativos agrave muacutesica como arte portadora de significados e suas

implicaccedilotildees culturais e natildeo se apresentam apenas como reaccedilatildeo imediata ao meio

circundante5

Uma diferenciaccedilatildeo importante para as discussotildees que se seguem diz

respeito aos termos lsquoModernidadersquo e lsquoModernismorsquo

No contexto deste ensaio entende-se por Modernidade o grande periacuteodo

histoacuterico da cultura ocidental que sobreveio apoacutes a quebra da hegemonia da Igreja

Catoacutelica Romana em meados do seacuteculo XV isto eacute a partir do Renascimento Este eacute

um periacuteodo marcado por transformaccedilotildees em todos os campos e atividades

humanas que influenciaram profundamente o fazer musical em todos os seus

aspectos No acircmbito da sistematizaccedilatildeo da muacutesica europeia o antigo Sistema Modal

medieval com sua diversidade de modos foi cedendo lugar agraves novas organizaccedilotildees

com base na dualidade de modos do Sistema Tonal Os princiacutepios do contraponto

vatildeo-se tornando menos importantes ateacute que em meados do seacuteculo XVIII a

harmonia passa a ser o principal meacutetodo de organizaccedilatildeo musical Nessa eacutepoca a

Teoria dos Afetos jaacute estava plenamente elaborada para sua aplicabilidade na muacutesica

de cena na oacutepera e no oratoacuterio

Na segunda metade do seacuteculo XVIII o Sistema Tonal estaacute completamente

organizado com possibilidade de modulaccedilatildeo para todas as tonalidades e o emprego

de cromatismo em qualquer segmento independente da escala de base atraveacutes do

temperamento igual Nos seacuteculos XVIII e XIX as diversas teorias de explicaccedilatildeo da

5 Isso natildeo significa qualquer preferecircncia do ponto de vista valorativo por esta ou aquela manifestaccedilatildeo musical mas apenas que as consideraccedilotildees sobre a muacutesica contemporacircnea apresentadas neste ensaio satildeo relativas agrave parcela da muacutesica atual comumente denominada lsquomuacutesica eruditarsquo

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realidade satildeo aproveitadas pelos muacutesicos com a intenccedilatildeo de compreender e

justificar suas escolhas Essa reflexatildeo sobre a proacutepria produccedilatildeo leva os

compositores agrave procura de originalidade na busca da lsquofantasia criadorarsquo e de novos

significados emocionais que se desenvolvem no Romantismo e desembocam nas

vaacuterias correntes modernistas do seacuteculo XX

O Modernismo equivale a todos aqueles movimentos de ruptura com a

tradiccedilatildeo6 oitocentista que se desenvolveram ao longo da primeira metade do seacuteculo

XX tendo seu marco inicial geralmente fixado no Impressionismo francecircs das

uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX No campo musical esse Modernismo eacute marcado

pela negaccedilatildeo do Sistema Tonal Negaccedilatildeo essa que se manifestou em vaacuterias

direccedilotildees pois se na muacutesica de Debussy e Ravel que estatildeo entre os primeiros a

romper com a tonalidade tradicional foram incorporados processos percebidos na

escuta de muacutesica do Extremo Oriente em especial a orquestra de gamelatildeo balinesa

Stravinsky e Bartoacutek entre outros aproveitaram elementos folcloacutericos do Leste

Europeu e juntamente com Milhaud desenvolveram a politonalidade em que vaacuterias

escalas satildeo sobrepostas com a intenccedilatildeo de obscurecer a funcionalidade tonal7

Se os compositores latinos e eslavos (como diria Schoenberg) buscavam a

superaccedilatildeo do Tonalismo oitocentista atraveacutes da incorporaccedilatildeo de processos e

materiais sonoros aproveitados de culturas extraeuropeias no meio musical

germacircnico e mais especificamente no acircmbito da Segunda Escola de Viena sob a

lideranccedila de Arnold Schoenberg (1874-1951) os jovens muacutesicos estavam

conduzindo as possibilidades cromaacuteticas ao extremo atraveacutes do Atonalismo desde

os primeiros anos do seacuteculo XX e do Dodecafonismo a partir da deacutecada de 1920

Esta muacutesica mais densa psicologicamente e considerada como sendo mais

6 Note-se que a noccedilatildeo de lsquoruptura com a tradiccedilatildeorsquo atraveacutes da lsquonova artersquo (Philippe de Vitry 1322) com a criaccedilatildeo de lsquonovas muacutesicasrsquo (Giulio Caccini 1601) com a concepccedilatildeo de um lsquoestilo modernorsquo que aporta em uma lsquosegunda praacuteticarsquo (Monteverdi 1605) natildeo eacute caracteriacutestica apenas do Modernismo mas da Modernidade como um todo 7 Eacute interessante notar que Darius Milhaud (1892-1974) considerado como um dos primeiros a empregar teacutecnicas politonais nas duas suiacutetes para piano intituladas Saudades do Brasil (com o tiacutetulo original em portuguecircs) de 1920 e 1921 certamente aproveitou esse recurso a partir da sua experiecircncia com o compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920) com quem conviveu no Rio de Janeiro na eacutepoca em que este foi diretor da Escola Nacional de Muacutesica Nepomuceno jaacute havia escrito em 1902 suas Variations sur un thegraveme original Op 29 (com o tiacutetulo em francecircs) onde empregou explicitamente sobreposiccedilatildeo de tonalidades inclusive com diferentes armaduras de clave

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complexa e de difiacutecil assimilaccedilatildeo foi o ponto de partida para grande parte das

experiecircncias das vanguardas tardias (1950-1970) em que se elaboraram e

aprofundaram inuacutemeras teacutecnicas e processos de organizaccedilatildeo musical com base em

seacuteries de alturas seacuteries de duraccedilotildees seacuteries de timbres etc chegando ao que se

chamou de Serialismo Integral no qual todos os paracircmetros da composiccedilatildeo seriam

serializados Ateacute mesmo Stravinsky principal antiacutepoda de Schoenberg chegou a

praticar teacutecnicas seriais Entre os principais compositores dessa geraccedilatildeo que

comeccedilou a aparecer apoacutes a Segunda Guerra nos festivais de muacutesica nova de

Darmstadt estatildeo Pierre Boulez (1925) Luciano Berio (1925-2003) e Karlheinz

Stockhausen (1928)

No final da deacutecada de 1950 houve entre os compositores que participavam

dos movimentos de vanguarda diversas reaccedilotildees agrave extrema racionalizaccedilatildeo dos

processos de composiccedilatildeo empregados pelos serialistas do grupo de Darmstadt As

mais difundidas foram as diferentes espeacutecies de muacutesica aleatoacuteria certamente

influenciadas por John Cage (1912-1992) Tambeacutem entre os compositores mais

jovens se desenvolveram novas praacuteticas com base nas relaccedilotildees mais rudimentares

entre os sons ou a partir da organizaccedilatildeo espectral da seacuterie harmocircnica Muacutesicos do

Leste Europeu como o polonecircs Krzysztof Penderecki (1933) ou o huacutengaro Gyorgy

Ligeti (1923) seguiram caminhos completamente independentes com relaccedilatildeo agrave

corrente dominante da Europa Ocidental Tambeacutem nos Estados Unidos houve

reaccedilatildeo agraves praacuteticas dos serialistas atraveacutes do Minimalismo de compositores como

Terry Riley (1935) Steve Reich (1936) e Philip Glass (1937) Pode-se considerar o

Minimalismo puro como o uacuteltimo dos movimentos modernistas no sentido de buscar

a ruptura com a tradiccedilatildeo ou com as praacuteticas das geraccedilotildees anteriores

O que caracteriza esses movimentos modernos apesar de sua diversidade eacute

a busca de hegemonia de cada um deles Por essa razatildeo o Modernismo se

caracteriza pelo lsquomanifestorsquo em que satildeo apresentados os valores da nova arte e se

explicitam em que sentido essa arte eacute nova de que maneira ela se diferencia das

outras e como pode ultrapassaacute-las Assim cada novo trabalho produzido pelo artista

moderno tem o caraacuteter de um programa com a exposiccedilatildeo de suas intenccedilotildees e

projetos em que satildeo apresentados os novos recursos descobertos por ele e seus

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colegas Haacute dessa maneira a crenccedila em uma progressividade determinada da

cultura em que se percebe a Histoacuteria de forma diacrocircnica como um processo

evolutivo contiacutenuo em que cada nova geraccedilatildeo deve acrescentar algo agraves conquistas

das geraccedilotildees anteriores para estar agrave sua altura e se diferenciar delas

Como o que pode ser quantificado na arte satildeo os materiais empregados e as

teacutecnicas com que esses materiais satildeo manipulados desenvolveram-se em grande

parte valores tecnicistas predominantes entre os movimentos de vanguarda em que

o importante seria a descoberta ou a criaccedilatildeo de novas teacutecnicas e o emprego de

novos recursos acuacutesticos Nesse sentido a lsquoexpressatildeo de conteuacutedosrsquo foi relegada a

um segundo plano quando natildeo passou a ser tomada como um resiacuteduo indesejaacutevel

de valores do Romantismo oitocentista Esse preceito pode ser exemplificado com a

conhecida afirmaccedilatildeo de Stravinsky ldquoinspiraccedilatildeo arte artista satildeo termos no miacutenimo

obscuros que nos impedem de ver claramente um campo onde tudo eacute equiliacutebrio

caacutelculo onde o que se passa eacute o sopro do espiacuterito especulativordquo

(STRAVINSKY 1986 p 54)

Cada grupo ou movimento artiacutestico buscava desenvolver seu proacuteprio sistema

de organizaccedilatildeo sonora seus proacuteprios meacutetodos de elaboraccedilatildeo musical e se

esforccedilava por descobrir novos materiais e recursos acuacutesticos que o posicionassem agrave

frente de seus concorrentes Havia por exemplo grande rivalidade entre a Escola

de Viena e os muacutesicos atuantes em Paris Schoenberg chegou a afirmar em seu

ensaio Muacutesica Nacional de 1931 que ldquoningueacutem ainda se deu conta que minha

muacutesica nascida em solo germacircnico livre de influecircncias estrangeiras eacute o exemplo

vivo de uma arte efetivamente capaz de se opor agraves esperanccedilas latinas e eslavas de

hegemonia porque se trata de uma arte essencialmente derivada das tradiccedilotildees da

muacutesica germacircnicardquo (SCHOENBERG 1975 p 173)

A noccedilatildeo da rivalidade entre franceses e germacircnicos no periacuteodo entre

guerras pode ser apreendida com a citaccedilatildeo do texto mais influente no meio musical

francecircs da deacutecada de 1920 O Galo e o Arlequim escrito por Jean Cocteau em

1918

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Schoenberg eacute um mestre todos os nossos muacutesicos e Stravinsky lhe devem algo mas Schoenberg eacute sobretudo um muacutesico de quadro negro Soacutecrates dizia lsquoQuem eacute este homem que come patildeo como se fosse a boa carne e a boa carne como se fosse patildeorsquo Resposta o melocircmano alematildeo (COCTEAU 1995 p 433-434)

Essas citaccedilotildees podem dar alguma noccedilatildeo do que eram os confrontos entre os

grupos modernistas na primeira metade do seacuteculo XX Os principais representantes

desses debates podem ser facilmente agrupados entre os partidaacuterios do

Neoclassicismo franco-russo que tinham em Stravinsky e no Grupo dos Seis seus

expoentes mais destacados e o Expressionismo germacircnico do qual os participantes

da Segunda Escola de Viena eram os principais portadores de conceitos e valores

Naturalmente houve grande nuacutemero de muacutesicos independentes poreacutem estes

geralmente se localizavam fora da Europa Ocidental Entre eles podem-se citar Bela

Bartoacutek (1881-1945) na Hungria Charles Ives (1874-1954) nos Estados Unidos

Carlos Chaacutevez (1899-1978) no Meacutexico Heitor Villa-Lobos (1887-1959) no Brasil e

Alberto Ginastera (1916-1983) na Argentina

21 Continuidade da Modernidade

As tendecircncias da muacutesica contemporacircnea em que a principal caracteriacutestica se

pode encontrar na busca de afirmaccedilatildeo dos pressupostos da Modernidade isto eacute em

que o artista percebe o fluxo histoacuterico de maneira contiacutenua e procura acrescentar

algo de original a ele satildeo aquelas que se desenvolveram a partir das vanguardas

tardias das deacutecadas de 1950 e 1960

Esses compositores que se alinham aos valores da poacutes-vanguarda podem

ser identificados entre aqueles que empregam processos derivados da muacutesica

atonal e serial que organizam suas estruturas sonoras com base em referecircncias

matemaacuteticas (com o emprego de algoritmos ou com base em estruturas

estocaacutesticas entre outras) e que desenvolveram suas investigaccedilotildees a partir da

muacutesica espectral do dececircnio de 1970 Haacute tambeacutem aqueles muacutesicos que se

dedicam agrave pesquisa na aacuterea de muacutesica e tecnologia a partir das experiecircncias da

muacutesica concreta da muacutesica eletrocircnica e eletroacuacutestica e podem ser alinhados no

escopo das tendecircncias de poacutes-vanguarda da muacutesica contemporacircnea O compositor

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Michel Chion (1947) tem empregado a expressatildeo lsquomuacutesica acusmaacuteticarsquo para designar

certos experimentos que se desdobraram a partir da muacutesica concreta

Com o intuito de ultrapassar cada fase histoacuterica com base em descobertas

originais esses compositores tecircm em geral como sua principal referecircncia a

superaccedilatildeo dos sistemas totalizantes que definiram os caminhos da Modernidade

Isso significa que mesmo aqueles que se dedicam agrave organizaccedilatildeo do material

acuacutestico com base em estruturas sistemaacuteticas natildeo se definem por uma via uacutenica de

estruturaccedilatildeo sonora ou seja natildeo seguem um princiacutepio sistecircmico uacutenico mas se

abrem para outras possibilidades conforme os elementos musicais se apresentam agrave

sua percepccedilatildeo pois muitos desses muacutesicos estatildeo abertos agrave casualidade mesmo

quando organizam seu trabalho a partir de processos racionais intriacutensecos ou com

base em caacutelculos predeterminados Nesse sentido a poacutes-vanguarda se diferencia

das vanguardas do poacutes-guerra para as quais qualquer intromissatildeo da percepccedilatildeo

imediata no processo compositivo significava ceder espaccedilo agrave subjetividade e

consequentemente aos valores liacutericos do Romantismo oitocentista

Muitos compositores atuais assumem uma atitude renovada com relaccedilatildeo ao

material sonoro pois mesmo aqueles que mais se esforccedilam em manter criteacuterios

quantitativos com preferecircncia por estruturas abstratas distanciadas das

experiecircncias cotidianas demonstram interesse pela pluralidade que qualquer

estrutura sonora traz em si Entendem com isso que os criteacuterios de valoraccedilatildeo de

qualquer produccedilatildeo dependem dos contextos especiacuteficos em que ocorrem e que natildeo

se podem definir antecipadamente quais os caminhos por que deve seguir

determinado conteuacutedo musical Esse entendimento conduz a outro terreno de

ordem mais esteacutetica do que teacutecnica que eacute a abertura para manifestaccedilotildees culturais

diferenciadas Enquanto um muacutesico de vanguarda da geraccedilatildeo de Boulez por

exemplo somente encontra valor em realizaccedilotildees que se assemelham agraves suas ou se

encontram no mesmo campo de atuaccedilatildeo um muacutesico de geraccedilatildeo posterior tem a

capacidade de reconhecer valor em algo que ele proacuteprio natildeo faria porque percebe

que satildeo impulsos criteacuterios e o gosto pessoal que estatildeo em causa entende que os

valores satildeo relativos ao contexto em que ocorrem e fora desse contexto podem

perder seu significado

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Haacute outros muacutesicos que seguem a tendecircncia de se mover no acircmbito dos

valores modernos poreacutem se diferenciam daqueles comentados acima por

desdenharem da lsquohierarquia de gostosrsquo do meio musical isto eacute fazem a leitura das

muacutesicas atuais sem hierarquizar os diversos tipos de manifestaccedilatildeo cultural Esses

muacutesicos percebem como sendo equivalentes do ponto de vista valorativo as

abordagens loacutegicas ou abstratas em comparaccedilatildeo agravequelas centradas na absorccedilatildeo do

mundo cotidiano eles procuram estreitar os elos que ligam as diferentes formas de

manifestaccedilatildeo musical atuais Entre as teacutecnicas de estruturaccedilatildeo musical mais usuais

nesta linha de atuaccedilatildeo do campo musical estatildeo a apropriaccedilatildeo a citaccedilatildeo a alusatildeo e

a colagem

Com base no princiacutepio da apropriaccedilatildeo de elementos oriundos de qualquer

muacutesica para a conformaccedilatildeo de uma nova estrutura sonora os materiais podem ser

apropriados de seu contexto original sob diferentes aspectos O compositor russo

Alfred Schnittke (1934-1998) um dos fundadores dessa tendecircncia de assimilaccedilatildeo de

diversos tipos de manifestaccedilatildeo cultural diferencia citaccedilatildeo e alusatildeo da seguinte

maneira a citaccedilatildeo consiste na apropriaccedilatildeo direta de um fragmento musical para a

composiccedilatildeo de uma nova muacutesica isto eacute se cita literalmente uma linha meloacutedica

uma sequecircncia riacutetmica ou um encadeamento harmocircnico de modo a tornaacute-lo

reconheciacutevel ao passo que a alusatildeo consiste em somente sugerir a lsquomaneirarsquo de

outro muacutesico ou escola atraveacutes de um fragmento musical escrito pelo proacuteprio

compositor ldquoO princiacutepio de alusatildeo se manifesta por evocaccedilotildees sutis e natildeo por

anuacutencios expliacutecitos proacuteximos de citaccedilotildees sem realmente o serem Esse princiacutepio se

opotildee agrave classificaccedilatildeordquo (SCHNITTKE 1998 p 29) Assim faz-se alusatildeo sem citar

literalmente o modelo original

A teacutecnica da colagem que surgiu na pintura cubista e foi amplamente

utilizada pelos escritores surrealistas pelos dadaiacutestas e pelos muacutesicos franceses do

Grupo dos Seis eacute uma das principais teacutecnicas de elaboraccedilatildeo musical empregadas a

partir da apropriaccedilatildeo de materiais heterogecircneos esparsos ao longo de determinada

obra A colagem consiste na justaposiccedilatildeo ou na sobreposiccedilatildeo de elementos com

origens distintas e produz um resultado almejado por vaacuterios muacutesicos nos uacuteltimos

anos que eacute a produccedilatildeo de texturas sonoras heterofocircnicas nas quais se tem a niacutetida

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sensaccedilatildeo de estar escutando diversas muacutesicas simultaneamente Eacute interessante

notar que essa teacutecnica jaacute era empregada por Charles Ives desde o iniacutecio do seacuteculo

XX Sua Unanswered Question (1906) jaacute opunha trecircs ideias musicais distintas sem

que se produzisse qualquer tipo de interaccedilatildeo entre elas

Esses procedimentos e teacutecnicas de apropriaccedilatildeo citaccedilatildeo alusatildeo e colagem

podem ser agrupados em um conceito geral denominado por Schnittke de

lsquopoliestiliacutesticarsquo Para este compositor

[] apesar de todas as dificuldades e todos os perigos que encerram a poliestiliacutestica seus benefiacutecios indiscutiacuteveis jaacute satildeo evidentes Estes residem no alargamento da expressatildeo musical em uma maior facilidade para integrar os estilos lsquonobresrsquo e os estilos lsquocomunsrsquo os estilos lsquobanaisrsquo e os estilos lsquorefinadosrsquo ou em uma palavra em um universo alargado e em uma democratizaccedilatildeo de estilos A realidade musical pode ser objetivada de forma documental pois natildeo aparece unicamente como o reflexo do indiviacuteduo mas tambeacutem atraveacutes das citaccedilotildees [] Na realidade seria difiacutecil encontrar outra teacutecnica musical que fosse tatildeo bem adaptada quanto a poliestiliacutestica agrave expressatildeo da ideacuteia filosoacutefica de continuidade (SCHNITTKE 1989 p 134)

Com essas reflexotildees Schnittke aponta para a pluralidade como criteacuterio de

valoraccedilatildeo da arte e elimina a busca de hegemonia de uma tendecircncia sobre as

outras como sendo um princiacutepio esteacutetico vaacutelido Nota-se inclusive a ironia de

Schnittke com relaccedilatildeo aos conceitos tradicionais de lsquoestilos nobresrsquo ou lsquoestilos

banaisrsquo Essa espeacutecie de hierarquizaccedilatildeo vem de longa data pois jaacute na eacutepoca de

Mozart se diferenciavam o lsquoestilo elevadorsquo de caraacuteter afirmativo e enfaacutetico digno de

representar a nobreza e os sentimentos nobres o lsquoestilo meacutediorsquo mais ingecircnuo e

leve sobre o qual se dizia que ldquodeve agradar ao ouvinte sem excitaacute-lo ou levaacute-lo agrave

reflexatildeordquo e o lsquoestilo baixorsquo considerado ruacutestico e simples poderia aparecer na forma

de danccedilas populares e era proacuteprio para a representaccedilatildeo de camponeses e das

classes sociais inferiores (cf RATNER 1980 p 9) O que Schnittke estaacute fazendo eacute

uma criacutetica agraves categorizaccedilotildees riacutegidas dos estilos musicais com base em

preconceitos sociais No uacuteltimo movimento de sua Sonata para Violino e Orquestra

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de Cacircmara Op 508 (1968) um longo segmento eacute elaborado com base na citaccedilatildeo de

trechos de Vivaldi combinados com a melodia da canccedilatildeo La Cucaracha9

O resultado dessas teacutecnicas de apropriaccedilatildeo e colagem eacute uma espeacutecie de

hibridismo estiliacutestico em que eacute abolido o preceito da unidade de estilo conforme foi

preconizado pelo teoacuterico tcheco Eduard Hanslick em meados do seacuteculo XIX e se

manteve como valor intocaacutevel ateacute a deacutecada de 1970 Hanslick chegou ao ponto de

afirmar que se deveria ldquodizer lsquotal compositor tem estilorsquo com o mesmo sentido que

quando se diz de algueacutem lsquoele tem caraacuteterrsquordquo (HANSLICK 1989 p 96) Naturalmente

essa definiccedilatildeo quase moralizante do conceito de estilo natildeo se sustenta atualmente

ateacute porque apoacutes o decliacutenio dos metadiscursos e dos grandes sistemas de

explicaccedilatildeo da realidade natildeo se justifica a aplicaccedilatildeo de um criteacuterio uacutenico de caraacuteter

universal para a avaliaccedilatildeo da produccedilatildeo cultural Cada nova peccedila musical cada

nova criaccedilatildeo no campo da arte traz em si a chave para a sua compreensatildeo e com

isso carrega tambeacutem os criteacuterios para sua avaliaccedilatildeo Eacute faacutecil demonstrar o equiacutevoco

de um criacutetico de muacutesica quando ao escutar uma peccedila atonal reclama da falta de

um centro tonal definido no qual possa apoiar sua audiccedilatildeo poder-se-ia responder a

outro criacutetico que considerasse aborrecida a estrutura da arte minimalista da mesma

forma que John Walker ldquoo aborrecimento eacute presumivelmente apenas uma emoccedilatildeo

tatildeo legiacutetima para a arte como qualquer outrardquo (WALKER 1977 p 27) Parece ser

igualmente simples perceber que procurar unidade de estilo na obra de um

compositor que como Schnittke professa a diversidade estiliacutestica estaacute fora de

cogitaccedilatildeo

Em um sentido geral nessa linha da produccedilatildeo contemporacircnea em que os

valores esteacuteticos seguem com base na continuidade das caracteriacutesticas inerentes da

Modernidade permanece importando em primeiro plano o processo criativo O que

significa que o resultado segue sendo uma arte centrada no fazer fundamentada na

poiacuteēsis acima de qualquer outro criteacuterio valorativo Isso significa que seus

fundamentos permanecem focalizados no indiviacuteduo criador que se coloca

8 Esta peccedila eacute uma transcriccedilatildeo da Sonata nordm 1 Op 30 (1963) para violino e piano 9 Eacute interessante notar que o proacuteprio Mozart jaacute fazia colagens com alusotildees ao estilo elevado e ao estilo baixo em suas oacuteperas Don Giovanni e Bodas de Fiacutegaro que causaram polecircmica em algumas cidades europeias devido ao seu conteuacutedo que subvertia os valores sociais da eacutepoca

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livremente como um inventor de novas sonoridades novas combinaccedilotildees acuacutesticas

novas teacutecnicas novos materiais e novos processos de elaboraccedilatildeo musical

22 Retorno agrave Tradiccedilatildeo

Ao contraacuterio da acepccedilatildeo anterior os muacutesicos que se colocam de maneira

favoraacutevel com relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo tecircm sua fundamentaccedilatildeo na criacutetica ao Historicismo

Assim questionam a crenccedila de que as transformaccedilotildees histoacutericas satildeo o resultado de

princiacutepios universais tatildeo objetivos quanto as leis da Fiacutesica ou das Ciecircncias Naturais

e que eacute necessaacuterio descobrir quais satildeo esses princiacutepios para operar sobre eles10 Os

muacutesicos que se alinham agraves tendecircncias de retorno agrave tradiccedilatildeo fazem criacutetica a essa

concepccedilatildeo unidirecional da Histoacuteria e creem na possibilidade de sobreposiccedilatildeo das

diversas produccedilotildees musicais do passado e do presente o que significa que esses

muacutesicos estatildeo dispostos a retomar experiecircncias anteriores de qualquer eacutepoca ou

lugar ou evocar essas experiecircncias a partir de novos pontos de vista com o intuito

de atualizaacute-las em um momento especiacutefico da contemporaneidade

(Com relaccedilatildeo a essa discussatildeo os muacutesicos que se aplicam agrave continuidade da

Modernidade operam em grande parte com aquele princiacutepio historicista poreacutem jaacute

compreendido em contextos especiacuteficos e natildeo mais universais Nesta acepccedilatildeo da

muacutesica contemporacircnea ainda se tem a Histoacuteria como a dimensatildeo mais abrangente

para a explicaccedilatildeo da realidade e das transformaccedilotildees sociais e culturais A diferenccedila

com relaccedilatildeo agraves explicaccedilotildees modernas estaacute em que a dimensatildeo histoacuterica eacute

compreendida a partir de um ou outro ponto de vista isto eacute busca-se contextualizar

e relativizar os princiacutepios histoacutericos mesmo que esses princiacutepios ainda sejam

considerados como a melhor via de explicaccedilatildeo das transformaccedilotildees sociais poliacuteticas

econocircmicas ou culturais)

Entendido dessa maneira percebe-se que com relaccedilatildeo agrave ldquoideia filosoacutefica de

continuidaderdquo (para retomar agrave expressatildeo de Schnittke citada anteriormente)

aqueles muacutesicos que se colocam na posiccedilatildeo de lsquoretorno agrave tradiccedilatildeorsquo assumem uma

10 No acircmbito especiacutefico da muacutesica isso significaria a existecircncia de um direcionamento uniacutevoco dos fatos musicais atraveacutes da Histoacuteria e que a tarefa do muacutesico seria encontrar os princiacutepios que regem esse fluir contiacutenuo para criar a partir deles e transcendecirc-los

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postura necessariamente antagocircnica a qualquer espeacutecie de Historicismo mesmo

contextual ou relativo Com isso tem-se uma antinomia existente entre os dois

pontos de vista pois se para aqueles que pretendem dar continuidade aos valores

da Modernidade a tradiccedilatildeo deve ser investigada para ser ultrapassada no sentido

de que o artista deve dar continuidade agraves transformaccedilotildees histoacutericas para estar agrave

altura de seu tempo para aqueles que defendem o retorno ao passado a tradiccedilatildeo

deve ser compreendida para servir de suporte agrave criaccedilatildeo da nova muacutesica que natildeo

tem necessariamente que ultrapassaacute-la mas operar com ela

A atitude mais saliente na acepccedilatildeo da muacutesica atual de lsquoretorno agrave tradiccedilatildeorsquo eacute

a busca de valores e elementos estiliacutesticos do passado com o sentido de aproveitaacute-

los em estruturas musicais homogecircneas Essa caracteriacutestica distingue esse grupo

de valores de retorno ao passado dos outros dois grupos (lsquocontinuidade da

Modernidadersquo e lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo) para os quais as possibilidades de

aproveitamento de elementos diacutespares se daacute atraveacutes da fragmentaccedilatildeo e da colagem

heterofocircnica Com isso tem-se outro aspecto diferencial na relaccedilatildeo entre as

acepccedilotildees da muacutesica atual pois se por um lado aqueles que pretendem ultrapassar

a tradiccedilatildeo operam sobre um princiacutepio de continuidade histoacuterica que deve ser

reconhecido e ampliado por outro lado esses mesmos muacutesicos propotildeem a

descontinuidade e a fragmentaccedilatildeo da estrutura musical per se quando se trata de

cada peccedila de muacutesica em particular pois compreendem que estruturas sonoras

contiacutenuas jaacute estariam ultrapassadas por fazerem recuar agraves caracteriacutesticas mais

proeminentes da muacutesica tonal ou seja agraves praacuteticas musicais do seacuteculo XVIII e XIX

cujas possibilidades de discursividade e narratividade jaacute estariam esgotadas

Ao contraacuterio os muacutesicos que professam o retorno agrave tradiccedilatildeo por serem

criacuteticos com relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo diacrocircnica da Histoacuteria geralmente argumentam

em favor da retomada de estruturas musicais contiacutenuas por entenderem que os

processos de fragmentaccedilatildeo operados pelas vanguardas jaacute foram exauridos ao

extremo e portanto esvaziados Assim ao defenderem concepccedilotildees sincrocircnicas dos

fatos histoacutericos segundo as quais se pode ter uma percepccedilatildeo de ldquotudo ao mesmo

tempo agorardquo se sentem agrave vontade para sobrepor os meacutetodos de elaboraccedilatildeo

musical do Classicismo ou do Romantismo aos seus anseios de iacutendole

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eminentemente contemporacircnea Tem-se assim outra constataccedilatildeo que

complementa aquela do paraacutegrafo anterior os muacutesicos que se alinham aos

princiacutepios de retorno agrave tradiccedilatildeo propotildeem uma leitura sincrocircnica e portanto

descontiacutenua da Histoacuteria poreacutem a estrutura musical resultante da elaboraccedilatildeo de cada

peccedila particular se torna contiacutenua pelo resgate de processos discursivos e narrativos

em suas composiccedilotildees

Essas praacuteticas de retorno ao passado muitas vezes satildeo professadas sem a

definiccedilatildeo de eacutepoca ou regiatildeo especiacutefica mas se abrem agrave possibilidade de passar

por diferentes pontos geograacuteficos mais ou menos remotos e por diferentes periacuteodos

da Histoacuteria sem que isso signifique a perda da coesatildeo estiliacutestica (a identidade

estiliacutestica se torna novamente importante apesar de natildeo ser mais um princiacutepio

esteacutetico inflexiacutevel) De qualquer forma mesmo com uma concepccedilatildeo sincrocircnica da

Histoacuteria eacute comum que muitos desses muacutesicos se fixem em algum ponto do tempo

ou do espaccedilo para a criaccedilatildeo de uma peccedila ou de um conjunto de obras Outra

caracteriacutestica bastante comum entre os muacutesicos que se esforccedilam em retomar

aspectos da tradiccedilatildeo eacute o fato de centrarem seus esforccedilos na investigaccedilatildeo da muacutesica

europeia Isso natildeo significa que natildeo existem estudos sobre a muacutesica de outras

culturas sendo que os processos musicais extraeuropeus mais estudados satildeo o

sistema de ragas da muacutesica indiana e a estrutura riacutetmica aditiva da muacutesica africana

e oriental Um bom exemplo nesse sentido eacute a temporada que Steve Reich passou

em Gana em 1970 periacuteodo em que estudou sob a orientaccedilatildeo de um percussionista

jeje no Instituto de Estudos Africanos experiecircncia que lhe permitiu acrescentar

processos riacutetmicos aditivos e subtrativos agrave sua muacutesica ampliando as possibilidades

das suas primeiras experiecircncias minimalistas

Devido agrave inclinaccedilatildeo para aproveitar caracteriacutesticas da muacutesica do passado

vaacuterios muacutesicos tecircm sido criticados como portadores de uma postura conservadora

Michel Faure um criacutetico severo do Neoclassicismo francecircs do entre guerras por

consideraacute-lo um estilo ldquosocialmente concordataacuteriordquo e de ldquoafirmaccedilatildeo nacionalistardquo

considera ser essa atitude de retorno ao passado existente na muacutesica

contemporacircnea uma espeacutecie de reediccedilatildeo do Neoclassicismo histoacuterico Para o autor

ldquoos neoclaacutessicos natildeo satildeo jamais considerados como reacionaacuterios ndash assim como os

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poacutes-modernos natildeo aceitam a pecha de passadistas [] Os empreacutestimos que eles

fazem frequentemente lsquodescontextualizamrsquo os fragmentos aos quais fazem

referecircnciardquo (FAURE 1998 p 78) Bem ressurge aqui o mesmo problema da criacutetica

mal direcionada jaacute mencionado anteriormente Se a intenccedilatildeo desses muacutesicos eacute

recuperar processos tradicionais se buscam criar uma espeacutecie de representaccedilatildeo da

multiplicidade cultural da contemporaneidade atraveacutes da apropriaccedilatildeo do legado

histoacuterico nada mais adequado do que a descontextualizaccedilatildeo dos materiais

empregados de sua lsquohistoricidadersquo original e sua adequaccedilatildeo agrave nova situaccedilatildeo em que

esses elementos se encontram Percebe-se na criacutetica de Faure preceitos de

continuidade e pureza histoacuterica que natildeo se adeacutequam aos neoclaacutessicos nem aos poacutes-

modernos pois ambos subvertem os coacutedigos que servem de premissa agrave sua criacutetica

Um dos arautos da nova muacutesica Boudewijn Buckinx apresenta um exemplo

muito comum de retomada da tradiccedilatildeo ao afirmar que o compositor atual ldquonatildeo

escreve tatildeo-somente um concerto grosso Ele escolhe uma possibilidade ndash o

concerto grosso ndash entre diversas Portanto natildeo eacute propriamente um concerto grosso

mas uma peccedila que toma o concerto grosso por sujeitordquo (BUCKINX 1998 p 60-61)

Poder-se-ia dizer tomando de empreacutestimo as palavras de Wolfgang Rihm que se

trata de uma ldquomuacutesica sobre a muacutesicardquo ou em alguns casos de muacutesica sobre

muacutesicas Se assim for a criacutetica de Faure se esvazia pois existe uma tecircnue diferenccedila

entre permanecer em determinado estado de coisas sem se aventurar a outros e

voltar a esse estado quando se tem interesse em recorrer a ele Esta eacute a divergecircncia

existente entre o conservadorismo preacute-moderno mencionado anteriormente e a

tendecircncia contemporacircnea de retorno agrave tradiccedilatildeo (distinccedilatildeo que o conservadorismo

modernista parece natildeo ser capaz de perceber) natildeo se estaacute no passado volta-se a

ele quando se o considera adequado

Em vista disso torna-se importante entender como os processos e materiais

tradicionais satildeo reutilizados sob a perspectiva da nova muacutesica para diferenciar a

atitude de retorno agrave tradiccedilatildeo com base em um ponto de vista criacutetico da mera

permanecircncia conservadora de valores convencionais de forma subserviente e sem

nem mesmo compreender o que esses valores podem ter significado em sua

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eacutepoca11 Diferenciar aquilo que foi denominado no iniacutecio deste ensaio como

conservadorismo preacute-moderno da atitude criacutetica com relaccedilatildeo aos pontos de vista

historicistas e evolucionistas da cultura tambeacutem significa distinguir o conhecimento

extensivo da tradiccedilatildeo da simples sujeiccedilatildeo a valores passadistas Um artista que

pesquisa profundamente em sua aacuterea de atuaccedilatildeo natildeo se preocupa em primeiro

plano com a feiccedilatildeo externa dos resultados de suas investigaccedilotildees o que lhe

importam satildeo as possibilidades que suas descobertas podem trazer no plano da

criaccedilatildeo Ao contraacuterio um muacutesico que se apresenta com uma aparecircncia novidadeira

pode estar extremamente apegado agraves convenccedilotildees de determinada linha de

produccedilatildeo e mesmo que essa linha seja muito recente a falta de abertura para

outras aacutereas de investigaccedilatildeo pode mantecirc-lo submisso a convenccedilotildees jaacute assimiladas

por geraccedilotildees passadas mesmo que ele proacuteprio natildeo se aperceba disso Muitas

vezes a aparecircncia de novidade mascara uma seacuterie de valores apegados a

convenccedilotildees riacutegidas que natildeo se sustentariam sob o crivo da criacutetica

A sutil diferenccedila entre o Neotonalismo de um compositor como George

Rochberg (1918) e a imitaccedilatildeo trivial do estilo dos primeiros romacircnticos (sem ir aleacutem

dos procedimentos teacutecnicos) estaacute na atitude com relaccedilatildeo agrave lsquovivecircncia da

simultaneidadersquo Para Rochberg ldquoa esperanccedila da muacutesica contemporacircnea reside em

aprender como reconciliar todas as maneiras de opostos contradiccedilotildees paradoxos o

passado com o presente tonalidade com atonalidade Eacute por isso que em minha

muacutesica mais recente tenho tentado utilizar essas combinaccedilotildees que reafirmam os

valores primordiais da muacutesicardquo (ROCHBERG 2003 p 3) Essa noccedilatildeo da diferenccedila

entre o passado e o presente essa busca de conciliaccedilatildeo dos opostos diverge de um

ponto de vista conservador ou de uma postura epigocircnica pois o epiacutegono apenas

reproduz o passado agrave maneira deste ou daquele mestre ao passo que o artista

criador se apoia em aspectos do passado para produzir um trabalho artiacutestico que

11 Muitas vezes a simplificaccedilatildeo dos meios significa a criaccedilatildeo de algo que pode impulsionar grandes transformaccedilotildees Quando Giulio Caccini (1551-1618) defendia o uso de triacuteades maiores e menores para a elaboraccedilatildeo das nuove musiche de sua eacutepoca estava propalando uma simplificaccedilatildeo da textura musical uma homofonia mundana que se opunha agrave complexidade polifocircnica da muacutesica sacra Essa simplificaccedilatildeo trazia o germe para algumas das grandes conquistas da muacutesica europeia dos trezentos anos seguintes inclusive a criaccedilatildeo de um novo gecircnero musical a oacutepera

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traz algum frescor agrave educaccedilatildeo dos sentidos alguma maneira peculiar de descobrir

ou perceber o mundo

Com a retomada de processos de organizaccedilatildeo modal ou tonal haacute

necessariamente o retorno de melodias claramente definidas a renovaccedilatildeo das

teacutecnicas de contraponto e a ampliaccedilatildeo de estruturas harmocircnicas de caraacuteter

diatocircnico Um dos compositores mais importantes da vanguarda das deacutecadas de

1950 e 1960 Krzysztof Penderecki soube atualizar seu estilo em meados da

deacutecada de 1970 quando passou a combinar estruturas diatocircnicas ampliadas com

base na produccedilatildeo dos grandes sinfonistas da passagem do seacuteculo XIX ao seacuteculo XX

(Gustav Mahler e Richard Strauss entre outros) com os resultados de suas

pesquisas acuacutesticas do periacuteodo vanguardista A consequecircncia eacute uma muacutesica

fortemente dramaacutetica com aspectos que lembram o Romantismo tardio e elementos

da vanguarda da deacutecada de 1960 elaborados de maneira que o resultado se

apresenta como uma muacutesica inusitada que jamais poderia ter sido concebida em

outra eacutepoca ou por outro artista

O legado histoacuterico natildeo eacute mais desprezado ou entendido apenas como um

passado a ser ultrapassado mas ao contraacuterio eacute tambeacutem identificado como uma

fonte inesgotaacutevel de possibilidades teacutecnicas e expressivas que podem ser

reaproveitadas de muitas formas possiacuteveis sem que isso incorra necessariamente

em postura conservadora ou em atitude epigonal Outro compositor que tambeacutem

soube atualizar seus processos compositivos eacute o huacutengaro Gyorgy Ligeti que tem

combinado seus experimentos microtonais e estruturas micropolifocircnicas levados a

cabo nas deacutecadas de 1960 e 1970 com outros meacutetodos de organizaccedilatildeo harmocircnica

engendrados a partir das relaccedilotildees acuacutesticas baacutesicas existentes em seus

conglomerados sonoros Esses processos datildeo vazatildeo agrave existecircncia de linhas

meloacutedicas claramente definidas com caraacuteter modal vigoroso e algumas vezes

fazem alusotildees agrave muacutesica popular e folcloacuterica de sua regiatildeo

Essa atitude com relaccedilatildeo ao passado traz novos modos de entendimento das

culturas tradicionais aleacutem da acomodaccedilatildeo de valores muitas vezes tomados como

contraditoacuterios em estruturas coesas Evidenciam-se natildeo apenas as tradiccedilotildees locais

com relaccedilatildeo agrave proacutepria formaccedilatildeo do indiviacuteduo como tambeacutem outras tradiccedilotildees que se

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buscam atraveacutes de meios natildeo-convencionais Compreende-se que natildeo eacute necessaacuterio

viver as experiecircncias de determinada sociedade para absorver parte de seus valores

ou de sua produccedilatildeo cultural ateacute porque os habitantes das grandes cidades estatildeo

expostos cotidianamente a tantos estiacutemulos advindos de origens distintas que se

criam identidades multiculturais mesmo quando natildeo se tem conhecimento intriacutenseco

de suas propriedades Qualquer cidadatildeo meacutedio atual tem noccedilotildees fundamentais

sobre os haacutebitos de vaacuterios povos originaacuterios de localidades onde nunca esteve A

tecnologia permite ao artista contemporacircneo ter acesso agrave produccedilatildeo de seus pares

de qualquer outra regiatildeo do planeta quase simultaneamente agrave sua criaccedilatildeo e

divulgaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel conhecer aspectos de culturas remotas no tempo

atraveacutes de pesquisas arqueoloacutegicas e sua divulgaccedilatildeo em grande escala nos meios

de comunicaccedilatildeo Isso permite sermos contemporacircneos de outras eacutepocas e

conterracircneos dos povos de outros lugares

23 Superaccedilatildeo do Modernismo

As linhas de atuaccedilatildeo que se opotildeem agrave mentalidade das vanguardas tardias o

fazem por razotildees diversas daquelas que motivam as tendecircncias de retorno agrave

tradiccedilatildeo pois este retorno ao passado geralmente significa um passado visto pela

oacutetica da Modernidade (em geral satildeo leituras atualizadas das tradiccedilotildees do Ocidente

isto eacute das praacuteticas musicais do Renascimento ao Romantismo) Nesse sentido

especiacutefico haacute pontos em comum entre as duas acepccedilotildees abordadas anteriormente

(lsquocontinuidade da Modernidadersquo e lsquoretorno agrave Tradiccedilatildeorsquo) pois seja por dar

continuidade agraves praacuteticas da era moderna atraveacutes de sua ampliaccedilatildeo seja por

resgatar essas praacuteticas com base em novos meios de elaboraccedilatildeo musical a

Modernidade permanece como sendo forte ponto de referecircncia em ambos os casos

Diferentemente aqueles que se colocam com uma postura de lsquosuperaccedilatildeo do

Modernismorsquo geralmente focam seus interesses na ruptura com as tradiccedilotildees

modernistas mais recentes e natildeo na Modernidade como um todo

Aleacutem disso natildeo satildeo apenas as culturas tradicionais que interessam a esta

terceira linhagem mas tambeacutem outros aspectos da cultura contemporacircnea inclusive

a cultura pop e os meios de comunicaccedilatildeo de massa Esses muacutesicos acreditam

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estarem produzindo uma fissura na Modernidade ao se abrirem para toda e qualquer

espeacutecie de produccedilatildeo cultural sem hierarquizaacute-las12 Acreditam portanto que

estamos no iniacutecio de uma nova eacutepoca e natildeo em um periacuteodo de continuidade da

Modernidade ou de retomada dos valores de sua tradiccedilatildeo13

Podem-se esboccedilar algumas imagens geomeacutetricas para representar essas trecircs

formas de pensamento para a primeira acepccedilatildeo da muacutesica contemporacircnea que

professa a lsquocontinuidade da Modernidadersquo o tempo teria a imagem de uma linha reta

que se movimenta em determinado sentido (mesmo que alguns desses artistas

faccedilam criacutetica agrave mentalidade linear a linha parece bem representar o ponto de vista

evolucionista da cultura) para a segunda acepccedilatildeo aquela em que se pratica o

lsquoretorno agrave Tradiccedilatildeorsquo poder-se-ia formular a imagem do tempo em forma circular pois

o ciacuterculo eacute uma figura em que natildeo haacute sentido predeterminado pois se pode iniciar

ou terminar em qualquer ponto da circunferecircncia e se movimentar em sentido

horaacuterio ou anti-horaacuterio para a terceira acepccedilatildeo que propotildee a lsquosuperaccedilatildeo do

Modernismorsquo a imagem de uma esfera parece ser a mais adequada pois natildeo se

estaacute focando o tempo em apenas uma dimensatildeo mas abre-se o leque para toda e

qualquer manifestaccedilatildeo perceptiacutevel atualmente no tempo e no espaccedilo Com isso

tem-se a possibilidade de produzir movimentos de qualquer ponto para qualquer

outro ponto seguindo em qualquer sentido ou direccedilatildeo (para baixopara cima para a

esquerdapara a direita para traacutespara frente) ndash por isso a imagem tridimensional14

12 Note-se que neste aspecto haacute pontos de interseccedilatildeo entre certas tendecircncias de lsquocontinuidade da Modernidadersquo e aquelas que professam a lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo pois o princiacutepio da poliestiliacutestica defendido por Schnittke e outros tambeacutem rompe com a hierarquizaccedilatildeo dos estilos O que diferencia ambos os grupos eacute o enfoque com que cada qual se apropria das diferentes formas de manifestaccedilatildeo cultural 13 Tambeacutem nesse sentido haacute interseccedilatildeo entre as duas acepccedilotildees pois se as tendecircncias de lsquocontinuidade da Modernidadersquo professam a ruptura com a tradiccedilatildeo musical oitocentista as tendecircncias de lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo professam outra ruptura com as tradiccedilotildees novecentistas Em ambos os casos haacute valores centrados no princiacutepio da ruptura mesmo que na primeira acepccedilatildeo esta ruptura faccedila parte de um processo contiacutenuo de superaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e no segundo caso seja entendida como uma fissura nesse processo 14 Este recurso de traccedilar analogias entre a estrutura das mentalidades e figuras geomeacutetricas jaacute foi delineado por Koellreutter (cf KOELLREUTTER 1987 p 29-32) compositor que confeccionou a partitura de sua peccedila Acronon em formato de esfera para representar sua concepccedilatildeo da mentalidade contemporacircnea Para Koellreutter poreacutem essas analogias aparecem com sentido diverso daquele apresentado aqui

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Para aqueles que se posicionam pela superaccedilatildeo do Modernismo as

vanguardas satildeo tidas como sendo formalistas ao extremo por se apoiarem

especificamente em criteacuterios teacutecnicos e formais para efetuarem seus julgamentos

Para entender o alcance dessa criacutetica eacute necessaacuterio adentrar um pouco em

algumas acepccedilotildees do termo lsquoformalismorsquo

Em seu Vocabulaacuterio de Esteacutetica Souriau informa que

[] eacute formalista aquele que daacute grande importacircncia agrave forma ou agraves formas poreacutem o termo forma pode ser tomado em diversos sentidos pode-se dar importacircncia a algo por razotildees de ordens bastante diferentes e enfim o termo formalismo foi frequentemente utilizado de maneira polecircmica mas em conflitos que natildeo eram sempre os mesmos de sorte que a palavra formalismo tem diversos sentidos que natildeo coincidem e cuja confusatildeo pode conduzir a erros graves (SOURIAU 1999 p 758)

Podem-se estabelecer a partir das classificaccedilotildees de Souriau trecircs sentidos

principais aplicados ao formalismo esteacutetico e empregados na criacutetica agraves tendecircncias

vanguardistas O primeiro sentido coincide com a censura a Hanslick criacutetico musical

de orientaccedilatildeo kantiana para quem a beleza esteacutetica seria inerente agrave existecircncia de

uma forma equilibrada e bem proporcionada o segundo sentido tem a ver com a

oposiccedilatildeo entre forma e conteuacutedo e se dirige principalmente agraves tendecircncias

modernistas de caraacuteter anticonteudista para as quais a estrutura eacute mais importante

do que o conteuacutedo representado ndash o que significa que para os criacuteticos atuais do

Modernismo o conteuacutedo ganha nova forccedila no terceiro sentido o termo lsquoformalistarsquo eacute

empregado para censurar as tendecircncias vanguardistas por centrarem suas

investigaccedilotildees em estruturas musicais abstratas criadas aprioristicamente sem levar

em consideraccedilatildeo a observaccedilatildeo do meio social ou cultural o que muitas vezes eacute

entendido como desprezo pela realidade

Em geral essas criacuteticas ao lsquoformalismorsquo das vanguardas surgem como

reaccedilotildees ao posicionamento antagocircnico dos muacutesicos de vanguarda das deacutecadas de

1950 e 1960 com relaccedilatildeo agrave muacutesica com sentido narrativo que necessariamente

traz o conteuacutedo ao primeiro plano e por conseguinte desvia a percepccedilatildeo dos

recursos teacutecnicos dos materiais sonoros e dos processos acuacutesticos envolvidos na

apreciaccedilatildeo musical Essa criacutetica modernista ao conteuacutedo vinha embutida em uma

criacutetica geral ao Romantismo e agrave muacutesica descritiva representada no seacuteculo XIX pelo

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lsquopoema sinfocircnicorsquo e pelas lsquopeccedilas caracteriacutesticasrsquo Ainda hoje em certos meios

musicais eacute comum a restriccedilatildeo agrave muacutesica descritiva em geral

Os muacutesicos vinculados agravequela via que pretende a superaccedilatildeo do Modernismo

ndash que agraves vezes chamam pejorativamente os movimentos de poacutes-vanguarda de

lsquoultramodernosrsquo ou lsquohipermodernosrsquo entendendo-os como o fruto de uma atitude

conservadora (cf BUCKINX 1998 p 22) ndash consideram que o lsquoformalismorsquo

vanguardista afastou o puacuteblico das salas de concerto e buscam novos processos de

comunicabilidade atraveacutes da investigaccedilatildeo mais ou menos sistemaacutetica de processos

narrativos e pela incorporaccedilatildeo da significaccedilatildeo musical direta

Eacute interessante notar a afericcedilatildeo de valor aos termos mencionados acima

lsquoUltramodernismorsquo e lsquoHipermodernismorsquo se essas expressotildees satildeo consideradas

negativamente pelos muacutesicos que professam a superaccedilatildeo do Modernismo satildeo

entendidas com sentido favoraacutevel pelos partidaacuterios da poacutes-vanguarda que

empregam essa terminologia para demonstrar que consideram determinada parcela

da produccedilatildeo atual como sendo extremamente significativa pois se apoiam nos

valores vanguardistas e os ultrapassam

Tem-se tambeacutem outra diferenccedila terminoloacutegica operada por alguns autores

que se faz apenas mudando a ordem dos termos lsquonova muacutesicarsquo e lsquomuacutesica novarsquo

Esta expressatildeo que foi amplamente empregada ao longo das deacutecadas de 1950 e

1960 estaacute ligada agraves tendecircncias vanguardistas e poacutes-vanguardistas No Brasil

houve inclusive um movimento de vanguarda autodenominado lsquoGrupo Muacutesica

Novarsquo que lanccedilou seu manifesto em 1963 com base nos princiacutepios do

Construtivismo e do Concretismo e terminou por influenciar o movimento

tropicalista na muacutesica popular O termo lsquonova muacutesicarsquo surgiu na deacutecada de 1990 na

Europa como contraposiccedilatildeo ao conceito de lsquomuacutesica novarsquo trata-se de muacutesicos que

absorvem diversas influecircncias e atuam em vaacuterias direccedilotildees natildeo pressupondo

qualquer identidade teoacuterica ou estiliacutestica entre si

Mesmo se eles satildeo muito diferentes e se tecircm personalidades e escrituras proacuteprias todos esses compositores se afastaram voluntariamente da corrente atonal da muacutesica contemporacircnea Eles sofreram diferentes influecircncias indo de muacutesicas natildeo-ocidentais ao jazz ao rock agrave muacutesica de variedades internacional passando pelo disco pelo funk ateacute a muacutesica techno e inclusive pelas generalidades de programas televisivos O que eles

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tecircm em comum eacute o fato de escutar o mundo sonoro que os envolve e que eacute o fundo musical de todos noacutes Eles tambeacutem tecircm uma filiaccedilatildeo direta a Stravinsky Eacute por isso que se pode separar a muacutesica lsquoeruditarsquo de hoje em duas grandes correntes A corrente lsquotonalrsquo consonante por opccedilatildeo pulsante e meloacutedica se situando em uma linha mais expressiva geralmente chamada de lsquoNova Muacutesicarsquo A corrente lsquoatonalrsquo caracterizada pela utilizaccedilatildeo quase sistemaacutetica de saltos de registro de assimetria riacutetmica e de dissonacircncias chamada tambeacutem de lsquomuacutesica contemporacircnearsquo (LELONG 1996 p 11)

Um dos movimentos de superaccedilatildeo do Modernismo que se pode colocar

como precursor dessa noccedilatildeo de lsquonova muacutesicarsquo eacute a lsquoNova Simplicidadersquo que teve

seu iniacutecio na deacutecada de 1970 com um grupo de compositores alematildees encabeccedilados

por Walter Zimmermann (1949) e Wolfgang Rihm (1952) Esses muacutesicos defendiam

a liberdade de escrita e a dissoluccedilatildeo do peso da Histoacuteria ndash que na sua opiniatildeo

engessava as praacuteticas vanguardistas ndash e preconizavam a absorccedilatildeo de experiecircncias

subjetivas de toda e qualquer natureza (vivecircncias impulsos emoccedilotildees preferecircncias

etc) que pudessem conduzir agrave produccedilatildeo de novos processos narrativos e agrave

depuraccedilatildeo dos meios empregados para a criaccedilatildeo musical Com essas intenccedilotildees

movimentaram-se na direccedilatildeo de estruturas mais elementares com gestos musicais

breves e texturas transparentes Entretanto os praticantes da Nova Simplicidade

natildeo se desviaram de configuraccedilotildees atonais apenas acrescentaram elementos de

caraacuteter tonal e deram vazatildeo a uma certa expressividade liacuterica em sua produccedilatildeo

Rihm em entrevista a Noreen e Cody comenta suas experiecircncias dos anos rsquo70 e

rsquo80

Eu sou um compositor intuitivo Mesmo se natildeo o fosse somente poderia escrever a minha proacutepria muacutesica Natildeo se pode criar arte com tabus Naturalmente somente quebrando tabus tambeacutem natildeo se faz arte Em ambos os casos o que surge satildeo objetos que [apenas] se parecem com arte [] De volta agraves triacuteades eu natildeo era de nenhuma maneira o uacutenico a empregaacute-las Talvez em minha muacutesica elas chocassem de forma mais provocativa provavelmente porque natildeo serviam ao propoacutesito de garantir lsquobelezarsquo mas eram empregadas no mesmo niacutevel que (quase) qualquer outra manifestaccedilatildeo sonora governadas por fluxos expressivos que natildeo poderiam ser inteiramente analisados de modo racional Isso era equivalente agrave alta traiccedilatildeo aos olhos dos modernistas (RIHM 2006 p 2)

Compositores que parecem seguir nessa mesma direccedilatildeo poreacutem com

interesses distintos satildeo os franceses Pascal Dusapin (1955) que trabalha com

misturas de elementos tonais e atonais carregados de forte lirismo e Reacutegis Campo

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(1968) cuja peccedila Commedia (1995) de escritura amplamente stravinskyana estaacute

organizada agrave base de muacuteltiplas linhas contrapontiacutesticas que se movimentam em

torno de uma melodia que se estende por quase quinze minutos

Outros grupos que tecircm sido bastante difundidos nos uacuteltimos anos satildeo

aqueles derivados do Minimalismo e que portanto empregam teacutecnicas de

organizaccedilatildeo repetitiva com base em um miacutenimo de elementos formadores de

processos sonoros Esses elementos baacutesicos ndash constituiacutedos de poucas notas

estrutura harmocircnica simples e riacutetmica perioacutedica ndash geralmente satildeo elaborados de

forma extremamente gradativa com a intenccedilatildeo de dar tempo agrave escuta Com isso

pretende-se dar ecircnfase aos processos perceptivos acima de qualquer princiacutepio

compositivo

O Minimalismo ortodoxo aquele dos anos 60 estava centrado em estruturas

ininterruptas fixas regulares e contiacutenuas no tempo Steve Reich partiu para suas

realizaccedilotildees mais peculiares da eacutepoca da experiecircncia de ouvir a mesma gravaccedilatildeo

reproduzida em dois aparelhos diferentes com rotaccedilotildees distintas o que gerou uma

defasagem gradual de tempo entre uma reproduccedilatildeo e outra O compositor declarou

[] enquanto eu ouvia esse processo gradual de mudanccedila de fase comecei a imaginar que esta seria uma forma extraordinaacuteria de estruturaccedilatildeo musical Esse processo afetou-me como um meio de alcanccedilar determinado nuacutemero de relaccedilotildees entre duas identidades sem nenhuma transiccedilatildeo Era um processo musical sem emenda ininterrupto (REICH apud SCHWARZ 1996 p 61)

Eacute interessante notar como esses princiacutepios de Reich e seus colegas

minimalistas da deacutecada de 1960 satildeo bastante lsquoformalistasrsquo para os muacutesicos mais

jovens e nesse sentido se assemelham aos valores vanguardistas da mesma

eacutepoca pois as preocupaccedilotildees com o processo com a estrutura ou com as teacutecnicas

de composiccedilatildeo estatildeo acima de qualquer outro aspecto envolvido na atividade

compositiva Por essa razatildeo essa fase do Minimalismo pode ser considerada como

sendo a uacuteltima manifestaccedilatildeo modernista pois mesmo que os processos de escuta

jaacute estivessem em evidecircncia o interesse principal estaacute na construccedilatildeo de estruturas

musicais abstratas Ao comparar a mentalidade de Reich da deacutecada de 1960 com

alguns comentaacuterios de John Adams (1947) um dos compositores mais destacados

da corrente atual a que alguns chamam de Poacutes-Minimalismo percebe-se que o

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ponto de vista deste estaacute descentrado do fazer e mais voltado para a absorccedilatildeo do

meio sonoro circundante

Eu sempre fui profundamente influenciado pelo rock pelo jazz e pela muacutesica pop Creio que eacute uma parte importante da experiecircncia de um norte-americano e penso que eacute a linha de demarcaccedilatildeo entre a velha geraccedilatildeo de compositores eruditos aqueles que nasceram antes da guerra e minha geraccedilatildeo ou a dos meus alunos Eacute por isso que natildeo tento me afastar dessa muacutesica nem tapar os ouvidos para ela Entretanto ao ler John Cage a gente nota que ele natildeo era sensiacutevel a essa muacutesica e ateacute mesmo a execrava Por minha parte eu gosto e ela influenciou bastante a minha proacutepria muacutesica (ADAMS 1996 p 20)

Ao contraacuterio do purismo muitas vezes pretendido pelos muacutesicos das deacutecadas

de 1950 e 1960 (que geralmente buscavam um estilo original sem admitir

ascendecircncias externas expliacutecitas pois essas influecircncias15 eram transformadas ateacute o

ponto em que se tornavam imperceptiacuteveis ou eram incorporadas em estruturas que

natildeo poderiam ser remetidas a outras realidades que a da proacutepria muacutesica em

questatildeo) vaacuterios compositores atuais estatildeo buscando a assimilaccedilatildeo expliacutecita de

diferentes fontes desde a muacutesica claacutessica europeia e a muacutesica tradicional de outras

culturas ateacute as diferentes manifestaccedilotildees populares e dos meios de comunicaccedilatildeo de

massa Adams eacute preciso a esse respeito

O que distingue minha muacutesica das outras eacute o fato de que ela eacute tatildeo lsquomiscigenadarsquo Se eu comparo minha muacutesica com a de Morton Feldman que eacute tatildeo pura a minha eacute uma espeacutecie de lsquogrande lixeirarsquo ali se encontra de tudo como em um grande lsquoensopadorsquo [] Cresci ao longo de um periacuteodo em que se podia escutar de tudo pois tudo estava registrado e isso vai continuar no proacuteximo milecircnio Eu costumo surfar na Internet todo o tempo e posso andar por tudo (ADAMS 1996 p 21)

Natildeo apenas Adams e os poacutes-minimalistas (que se diferenciam do

Minimalismo histoacuterico pela assimilaccedilatildeo expliacutecita de elementos exoacutegenos) como

tambeacutem outros muacutesicos das novas geraccedilotildees aproveitam influecircncias atraveacutes da

incorporaccedilatildeo de estilemas16 apropriados de diferentes tradiccedilotildees o que tambeacutem pode

15 O termo lsquoinfluecircnciarsquo foi tomado durante algum tempo como sendo depreciativo por indicar a ascendecircncia de determinado artista ou escola sobre outros Atualmente para os compositores das novas geraccedilotildees a ideia de ascendecircncia parece natildeo gerar constrangimento sendo inclusive um valor a ser aproveitado 16 lsquoEstilemarsquo eacute um termo apropriado da linguiacutestica empregado para designar traccedilos estiliacutesticos caracteriacutesticos de determinada obra escritor ou escola literaacuteria o que em muacutesica pode ser indicado

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incluir teacutecnicas de vanguarda Com isso esta muacutesica se torna mais corpoacuterea estaacute

vinculada agrave realidade circundante ou em outras palavras se faz mais mundana

Isso tambeacutem se deve agrave introduccedilatildeo de elementos de linguagens musicais

vernaculares consideradas como sendo parte da lsquofalarsquo cotidiana seja a muacutesica

autoacutectone ou a muacutesica tocada nos meios de comunicaccedilatildeo e que se torna com o

passar do tempo tatildeo absorvida pelas mentalidades que passa a ser entendida como

lsquolinguagem comumrsquo

Os chilenos Eduardo Caacuteceres (1954) e Aliosha Solovera (1963) tecircm

incorporado elementos de tradiccedilotildees locais em suas criaccedilotildees de caraacuteter

experimental Caacuteceres em sua peccedila Canciones ceremoniales para aprendiz de

machi para grupo vocal feminino aproveita textos em liacutengua mapudungum para

combinar diferentes ritmos apropriados dos iacutendios mapuches Na peccedila Ressonandes

(2002) para dez flautas cujo tiacutetulo alude agrave lsquoressonacircncia dos Andesrsquo Solovera busca

ldquoestabelecer um viacutenculo com a muacutesica das culturas preacute-colombianasrdquo atraveacutes da

experimentaccedilatildeo de sonoridades incomuns no instrumento Para o compositor ldquoa

flauta transversa se desliga de sua raiz cultural e eacute assumida em sua condiccedilatildeo mais

elementar como instrumento de soprordquo Eacute interessante notar nesse sentido o

paralelismo entre Ressonandes e a peccedila Nola (1994) para vaacuterias flautas e orquestra

de cordas do tajiquistanecircs Benjamin Yusupov (1962) que se refere agrave sua muacutesica da

seguinte maneira ldquoesta peccedila eacute uma busca de efeitos sonoros gerados pelas flautas

como se fossem instrumentos de cordas A combinaccedilatildeo com a muacutesica eacutetnica estaacute

associada a um certo esteticismo da muacutesica orientalrdquo Ambos aproveitam valores de

suas tradiccedilotildees locais para experimentar sonoridades inusuais em conjuntos de

flautas Solovera busca restituir o som elementar do sopro Yusupov tem o intuito de

fazer um instrumento de sopro soar como corda Apesar da similaridade conceptual

o resultado sonoro eacute bastante distinto

Em uma direccedilatildeo similar e com base em vivecircncias pessoais o colombiano

Angel Alfonso Rivera (1983) escreveu Quya-Killa (2013) para voz flauta percussatildeo

por padrotildees escalares contornos meloacutedicos figuraccedilotildees riacutetmicas encadeamentos harmocircnicos combinaccedilotildees instrumentais ou algum outro aspecto de qualquer natureza que identifique lsquoestilosrsquo ou lsquomaneirasrsquo

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(dois tom-tons maracas temple blocks prato suspenso) e piano A peccedila foi escrita a

partir da participaccedilatildeo em rituais e celebraccedilotildees indiacutegenas na Boliacutevia e no Peru dos

quais se destacam Pachamama (Ritual da Matildee Terra) Inti Raymi (Festa do Sol) e

Quya Raymi (Festa da Lua e da Fertilidade) A peccedila que eacute o resultado de

lembranccedilas afetivas desses rituais isto eacute os traccedilos que permanecem na memoacuteria

de forma pulsante e transformam a percepccedilatildeo do mundo estaacute organizada em trecircs

seccedilotildees derivadas das fases ritualpisticas Preparaccedilatildeo Oraccedilatildeo e Celebraccedilatildeo

Para o compositor

[] a muacutesica de culturas tribais gira em torno de um mundo proacuteprio com sonoridades que derivam do contorno da natureza dos animais e do proacuteprio homem As manifestaccedilotildees foneacuteticas os gestos e a miacutemica satildeo meios de comunicaccedilatildeo e neste contexto a muacutesica e a danccedila manifestam estreita relaccedilatildeo com os rituais e cerimocircnias [] Por se tratar de algo maacutegico e que possui caracteriacutesticas que podem ser aproveitadas na composiccedilatildeo considero que a imagem do ritual tem forte funccedilatildeo orientadora e organizacional sendo uma imagem que fundamenta e orienta os elementos do percurso criativo (RIVERA p 39-40)

Natildeo eacute necessaacuterio que o muacutesico esteja estreitamente vinculado a esta ou

agravequela tradiccedilatildeo para se sentir compelido a empregaacute-la em alguma obra O

compositor inglecircs Thomas Adegraves (1971) escreveu sua America a prophecy (1999)

para meio-soprano coro opcional e orquestra sinfocircnica para um projeto chamado

lsquoMensagens para o Milecircniorsquo promovido pela Orquestra Filarmocircnica de Nova Iorque

Interessante nesta peccedila eacute o fato de que o uacutenico texto em inglecircs eacute a traduccedilatildeo de um

fragmento da profecia maia que prenuncia o fim dos tempos os outros trechos

cantados na peccedila de Adegraves foram aproveitados de textos hispano-americanos Com

isso o compositor pretendia criar um mapa da Ameacuterica localizado ao Sul dos

Estados Unidos com o intuito de mostrar aos norte-americanos que eles natildeo foram

os primeiros americanos (escrito maia) como tambeacutem natildeo satildeo os uacutenicos

(fragmentos latino-americanos) Interessado pelas culturas preacute-colombianas e pelo

sincretismo cultural da Ameacuterica Latina atual o compositor disse em entrevista a

Tom Service que essa sua noccedilatildeo da Ameacuterica ldquocomeccedilou quando tive uma enorme

vista da piracircmide de Belize Havia aacutervores em todas as direccedilotildees Entretanto havia

estas pequenas saliecircncias que tambeacutem eram verdes e eram as antigas piracircmides

maiasrdquo (ADEgraveS apud FOX 2006 p 1) Outra representaccedilatildeo da Ameacuterica ocorreu-lhe a

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partir de um mapa surrealista publicado na revista belga Parietein em 1929 Essas

imagens aliadas aos textos escolhidos se tornaram o ponto de partida para a

estruturaccedilatildeo de America a prophecy

Outro exemplo agora no sentido da assimilaccedilatildeo dos meios de comunicaccedilatildeo

de massa em uma muacutesica de caraacuteter experimental eacute a peccedila de Michael Daugherty

(1954) intitulada Elvis Everywhere (1993) em que satildeo combinados cantores um

quarteto de cordas processos de manipulaccedilatildeo eletrocircnica dos sons e a voz de Elvis

Presley que funciona como uma espeacutecie de material unificador de todas as

sonoridades que acontecem ao longo da muacutesica

Natildeo posso escrever a miacutenima nota se natildeo tenho antes uma ideia Eacute geralmente um elemento visual um iacutedolo americano como Elvis um flamingo de plaacutestico cor-de-rosa ou ainda Jackie Kennedy que me evocam os sons [] Antes de compor Elvis Everywhere para o Quarteto Kronos assisti ao Congresso Internacional de Imitadores de Elvis onde ouvi cantar mais de duzentos Elvis Somente posso escrever muacutesica quando estou proacuteximo dela Seria difiacutecil transcrever musicalmente a poesia de Safo por exemplo Por outro lado assisti a todos os episoacutedios de Star Trek17 (DAUGHERTY 1996 p 105)

O que interessa para muitos artistas contemporacircneos eacute essa ruptura dos

limites daquilo que era tradicionalmente considerado como sendo lsquobom gostorsquo e lsquomau

gostorsquo lsquoarte e lsquoinduacutestria do entretenimentorsquo enfim todas as formas de dicotomia que

caracterizaram as correntes modernistas A intenccedilatildeo de superar essas dualidades

com uma atitude inclusiva em que as diferentes formas de manifestaccedilatildeo cultural

tecircm seu lugar na cultura contemporacircnea natildeo significa necessariamente aquela

postura ciacutenica do blaseacute que caracterizou o final do seacuteculo XX nas deacutecadas de 1980

e 1990 Ao contraacuterio estar aberto aos diferentes pontos de vista tambeacutem pode

significar assumir uma postura de caraacuteter pessoal poreacutem com o entendimento de

que esta eacute mais uma entre tantas possibilidades de conhecer a realidade e de se

relacionar com o mundo

Na busca de autonomia um grupo de compositores nova-iorquinos

encabeccedilados por Michael Gordon (1956) David Lang (1957) e Julia Wolfe (1958)

17 Essas consideraccedilotildees seriam impossiacuteveis se vindas de um compositor como Pierre Boulez por exemplo que consideraria essa assimilaccedilatildeo de elementos da cultura de massa como vulgarizaccedilatildeo da criaccedilatildeo musical

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criou o festival Bang on a Can e formou um grupo de cacircmara para divulgar sua

muacutesica e a de outros compositores de sua geraccedilatildeo18 Wolfe conta a origem do

festival em entrevista a Lelong

Noacutes queriacuteamos abalar as estruturas em Nova Iorque e ter um pretexto para tomarmos cafeacute da manhatilde juntos todos os dias Bang on a Can quase comeccedilou como uma brincadeira Noacutes chamamos assim ao primeiro festival porque pensamos que natildeo haveria outros mas terminou sendo um rastro de poacutelvora Muitas e muitas pessoas vieram no primeiro ano entre eles John Cage e Steve Reich Noacutes trabalhamos duramente para ampliar nosso puacuteblico para aleacutem do ciacuterculo dos amantes da Nova Muacutesica Fizemos nossa divulgaccedilatildeo bastante numerosa entre o puacuteblico de baleacute de teatro e de cinema Mesmo que o festival tenha se desenvolvido ainda se manteacutem a serviccedilo dos compositores com ideias novas com espiacuterito aventureiro O puacuteblico vem numeroso e entusiasmado a apresentaccedilatildeo eacute formidaacutevel descontraiacuteda o que tem o efeito de natildeo espantar a audiecircncia (WOLFE 1996 p 369-370)

O festival que existe desde 1987 se tornou um evento anual que conta com

um conjunto de cacircmara formado por solistas virtuoses o grupo Bang on a Can All-

Stars uma orquestra a Spit Orchestra gravaccedilotildees que satildeo lanccediladas em CD e

transmissotildees radiofocircnicas O grupo Bang on a Can All-Stars tem uma constituiccedilatildeo

heterogecircnea tanto do ponto de vista dos instrumentos que fazem parte do grupo

quanto da linha de atuaccedilatildeo de seus muacutesicos Formado por instrumentos como

piano saxofone clarinete violoncelo guitarra eleacutetrica baixo eleacutetrico e percussatildeo19 o

grupo se caracteriza pela mistura de sonoridades de muacutesica erudita muacutesica pop e

jazz A formaccedilatildeo e a praacutetica dos muacutesicos ndash que tocam em orquestras sinfocircnicas

tradicionais participam de shows ou concertos gravam discos de muacutesica pop e

tocam em bandas de jazz ndash possibilita trabalhar com repertoacuterios diversificados

Assim o grupo se propotildee a divulgar diferentes tipos de manifestaccedilatildeo musical da

contemporaneidade o que o difere de outros grupos ndash como por exemplo lsquoSteve

Reich and Musiciansrsquo lsquoMichael Nyman Bandrsquo ou lsquoPhilip Glass Ensemblersquo ndash que tecircm

em seu repertoacuterio somente a produccedilatildeo do proacuteprio compositor que daacute nome ao grupo

ou daqueles que estatildeo diretamente associados a ele

18 Essa praacutetica de criar o proacuteprio grupo musical jaacute havia sido praticada por muacutesicos como Steve Reich Philip Glass Louis Andriessen (1939) e Michael Nyman (1944) entre outros 19 Os muacutesicos do Bang on a Can All-Stars satildeo atualmente Vicky Chow teclados Ken Thomson sopros Ashley Bathgate violoncelo Mark Stewart guitarra eleacutetrica Robert Black contrabaixos David Cossin percussatildeo

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Percebe-se nessa postura comum a muitos muacutesicos atuais a busca pela

diferenccedila se tornando mais importante do que a pretensatildeo de identidade estiliacutestica

Esse aspecto resulta em outra caracteriacutestica difundida entre os compositores

contemporacircneos que se dedicam agrave investigaccedilatildeo de novos meacutetodos narrativos

Muitos compositores atuais tecircm formaccedilatildeo acadecircmica em aacutereas como linguiacutestica

letras comunicaccedilatildeo ou filosofia campos do conhecimento considerados como

sendo profiacutecuos para a criaccedilatildeo musical Vaacuterios compositores atuam como

professores universitaacuterios nessas aacutereas e desenvolvem seu trabalho criativo com

base nesse conhecimento mais do que em teacutecnicas tradicionais de composiccedilatildeo

Conhecem essas teacutecnicas mas preferem deixaacute-las em segundo plano no processo

criativo ndash o que difere de certas linhas vanguardistas das deacutecadas de 1950 e 1960

em que a invenccedilatildeo de novos processos de estruturaccedilatildeo e meacutetodos compositivos

estavam em primeiro plano

O compositor brasileiro Eduardo Seincman (1958) escreveu uma seacuterie

intitulada A Danccedila dos Duplos20 em que cada uma das cinco peccedilas que compotildeem o

ciclo destinada a uma formaccedilatildeo instrumental diferente foi concebida a partir de uma

experiecircncia extramusical A Danccedila de Dorian21 para piano a quatro matildeos foi escrita

a partir da leitura do romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde Esta peccedila

conteacutem diversos elementos que caracterizam a investigaccedilatildeo de novos processos

narrativos Excertos do texto de Wilde foram apostos agrave partitura para orientar os

muacutesicos sobre qual segmento do romance corresponde a cada uma das passagens

musicais O compositor chama a atenccedilatildeo no entanto para o fato de que natildeo se

trata de muacutesica programaacutetica pois sua intenccedilatildeo natildeo eacute produzir uma descriccedilatildeo

musical ipsis litteris da narrativa de Wilde mas criar uma narrativa paralela

estritamente musical e que natildeo se vincula diretamente agrave sequecircncia de episoacutedios do

20 A Danccedila dos Duplos eacute formada pelas seguintes peccedilas A Danccedila Misteriosa (1986 ldquopara um anjo que nasceraacuterdquo) para piano solo A Danccedila Luacutegubre (1987) para flauta contralto marimba e piano A Danccedila de Dorian (1988 ldquobaseada no romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilderdquo) para piano a quatro matildeos A Danccedila do Dibuk (1988 ldquobaseada na peccedila de teatro O Dibuk de Sch An-Skirdquo) para marimba vibrafone e glockenspiel A Uacuteltima Danccedila (1989 ldquoinspirada na leitura de O Cisne de Leonardo da Vincirdquo) para flauta contralto e dois vibrafones 21 Esta que foi a muacutesica tocada na Abertura do Simpoacutesio Agora Arte e Pensamento no dia 24 de outubro de 2006 pelas pianistas Carolina Avellar e Elaine Foltran

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romance Neste sentido tornam-se importantes as citaccedilotildees das obras musicais

apresentadas no texto nas cenas em que Dorian Gray toca piano ou assiste a um

concerto

Cria-se uma nova narratividade musical atraveacutes de uma sinestesia muacuteltipla

na audiccedilatildeo da obra A estrutura musical se desdobra como uma sequecircncia de

imagens (visuais taacuteteis auditivas e mesmo olfativas) que satildeo justapostas umas agraves

outras agraves vezes por meio de transiccedilotildees gradativas agraves vezes por meio de

interrupccedilotildees abruptas como cortes cinematograacuteficos Conforme a muacutesica se

aproxima do final vai-se tornando mais tensa e agitada criando a atmosfera para o

desfecho extraordinaacuterio (Dorian Gray natildeo envelhece porque eacute a figura pintada em

seu retrato que se torna mais velha) atraveacutes da precipitaccedilatildeo de uma cena na outra

com o propoacutesito de alterar o rumo dos acontecimentos de modo inesperado

Percebe-se nesse sentido uma espeacutecie de anaacutelogo musical daquilo a que

Aristoacuteteles chamaria de resoluccedilatildeo cataacutertica atraveacutes da lsquoperipeacuteteiarsquo (peripeacutecia) isto eacute

a incorporaccedilatildeo de encadeamentos imprevistos no decorrer da accedilatildeo com o sentido

de produzir alteraccedilotildees suacutebitas dos estados de humor Entre os tipos de narrativa

destacados por Aristoacuteteles (narrativa episoacutedica narrativa simples e narrativa

complexa) o filoacutesofo dava preferecircncia agrave narrativa complexa que produz expectativa

por meio do acuacutemulo de accedilotildees e pelo emprego de princiacutepios como a

verossimilhanccedila dessas accedilotildees a necessidade dos acontecimentos no curso da

histoacuteria o reconhecimento (descoberta) de uma situaccedilatildeo vivida poreacutem natildeo

compreendida anteriormente e o imprevisto produzido por novas situaccedilotildees

Peripeacutecia eacute uma viravolta das accedilotildees em sentido contraacuterio [] segundo a verossimilhanccedila ou necessidade [] O reconhecimento como a palavra mesma indica eacute a mudanccedila do desconhecimento ao conhecimento ou agrave amizade ou ao oacutedio das pessoas marcadas para a ventura ou desdita O mais belo reconhecimento eacute o que se daacute ao mesmo tempo em que uma peripeacutecia como aconteceu no Eacutedipo [] Nesse passo se verificam duas partes da faacutebula a peripeacutecia e o reconhecimento mas haacute uma terceira o pateacutetico [] O pateacutetico consiste numa accedilatildeo que produz destruiccedilatildeo ou sofrimento como mortes em cena dores cruciantes ferimentos e ocorrecircncias desse gecircnero (ARISTOacuteTELES 1997 p 30-31)

Naturalmente Aristoacuteteles natildeo exigia a concomitacircncia de todas essas linhas

narrativas para a produccedilatildeo de estados cataacuterticos que na trageacutedia antiga vinham

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geralmente associados agrave muacutesica Quando se escuta A Danccedila de Dorian de

Seincman poreacutem a impressatildeo que se tem eacute que todos esses processos se

acumulam nos trechos finais da peccedila produzindo vaacuterias camadas de expressatildeo que

extrapolam a significaccedilatildeo especificamente musical na direccedilatildeo de uma espeacutecie de

experiecircncia esteacutetica multissensorial geralmente possibilitada pela combinaccedilatildeo de

diferentes linguagens artiacutesticas (poesia teatro muacutesica artes visuais etc) Alguns

processos narrativos ou semacircnticos empregados se assemelham a formulaccedilotildees de

compositores romacircnticos como Robert Schumann (1810-1856) poreacutem a totalidade

do resultado seria algo impensaacutevel antes da concepccedilatildeo da muacutesica de Seincman

Outro compositor que se interessa pela criaccedilatildeo de sensaccedilotildees sinesteacutesicas eacute o

uzbequistanecircs Dimitri Yanov-Yanovski (1963) Segundo depoimento do compositor

sua muacutesica estaacute centrada na intenccedilatildeo de criar diferentes processos de estruturaccedilatildeo

do tempo musical atraveacutes da oposiccedilatildeo de duraccedilotildees heterogecircneas apresentadas

simultaneamente Esses meacutetodos produzem dois resultados distintos que se

complementam o efeito psicoloacutegico de contraccedilatildeo e distensatildeo do tempo e o

processo linguiacutestico de polifonia narrativa que eacute obtida pelo entrecruzamento de

muacuteltiplos significados (que podem ser musicais textuais dramaacuteticos ou plaacutesticos) A

investigaccedilatildeo de novos princiacutepios de comunicabilidade e a valorizaccedilatildeo do processo

musical por meio de meacutetodos repetitivos colocam Yanovski entre os compositores

atuais cujos trabalhos apresentam processos multidirecionais que resultam em

novas formas de produccedilatildeo e recepccedilatildeo musicais Tambeacutem nesse sentido vaacuterios

muacutesicos atuais se diferenciam das geraccedilotildees anteriores pois valorizam o ato de

recepccedilatildeo como sendo tatildeo ou mais importante do que as teacutecnicas de composiccedilatildeo

visto que entendem que estas devem estar a serviccedilo daqueles ndash o que conduz a

uma arte centrada nos processos esteacutesicos e nas possibilidades de interaccedilatildeo

comunicativa entre o compositor o inteacuterprete e o puacuteblico22

22 A avaliaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o compositor e o inteacuterprete eacute outro aspecto extremamente relevante nas discussotildees sobre a muacutesica contemporacircnea Nas tendecircncias vanguardistas em geral o compositor muitas vezes busca escrever uma ldquomuacutesica contra o instrumentordquo o que gera grandes dificuldades de execuccedilatildeo Brian Ferneyhough (1943) um dos mais importantes compositores da poacutes-vanguarda e partiacutecipe da Nova Complexidade (note-se o antagonismo com relaccedilatildeo agrave lsquoNova Simplicidadersquo) costuma dizer com intenccedilatildeo motivadora e polecircmica que escreve mais notas do que o muacutesico consegue tocar para que ele tenha que escolher entre as notas escritas e interferir no

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3 Traccedilos Gerais

Percebe-se com as reflexotildees apresentadas acima sobre aspectos da muacutesica

atual (e sempre lembrando que este ensaio aborda uma parcela da totalidade da

produccedilatildeo contemporacircnea) que vivemos em um periacuteodo em que haacute muacutesicos e

musicoacutelogos23 dedicados agrave investigaccedilatildeo de toda e qualquer produccedilatildeo musical seja

ela proacutexima ou distante geograficamente seja recente ou remota no tempo

Pesquisadores atuais dedicam-se inclusive agrave descoberta de processos e materiais

que natildeo satildeo condizentes com seu gosto pessoal pois o que importa eacute que toda e

qualquer parcela da produccedilatildeo humana estaacute aiacute para ser conhecida

independentemente agradar ou natildeo ao estudioso24

Assim quebram-se hierarquias seculares em que se considerava

determinada parcela da produccedilatildeo de alguma eacutepoca superior agraves outras ou se

entendia que determinada regiatildeo do planeta produz algo de maior importacircncia

cultural ou histoacuterica do que outras Essas posiccedilotildees etnocecircntricas ainda hoje

defendidas por alguns como o criacutetico literaacuterio Harold Bloom por exemplo satildeo

questionadas por natildeo serem condizentes com as infinitas possibilidades atuais de

acesso agrave informaccedilatildeo pois satildeo restritivas do ponto de vista do gosto no sentido em

que elevam opiniotildees meramente pessoais de seus autores agrave categoria de valor

universal

A postura abrangente de pensadores contemporacircneos como Michel Meyer

vem de encontro agravequeles pontos de vista exclusivistas em que se confunde lsquoopiniatildeorsquo

com lsquoconhecimentorsquo Para Meyer

[] cada um tem o direito de ser diferente de realizar sua diferenccedila contanto que a igualdade de direitos da [outra] pessoa seja respeitada

processo de criaccedilatildeo da obra de forma que cada nova interpretaccedilatildeo soaraacute diferente das demais Ferneyhough parece buscar resultados semelhantes aos de John Cage poreacutem pelo caminho inverso Essa discussatildeo poreacutem extrapola os limites deste ensaio 23 Vale esclarecer que se entende por musicoacutelogo aqui todo aquele profissional que se dedica agrave pesquisa em muacutesica seja atraveacutes da musicologia histoacuterica musicologia sistemaacutetica ou etnomusicologia da anaacutelise musical psicologia da muacutesica criacutetica musical ou da esteacutetica musical entre outras Sendo assim musicologia eacute entendida como sendo a aacuterea que engloba todos os campos teoacutericos do saber musical 24 Um bom exemplo neste sentido eacute a incansaacutevel pesquisa sobre o Neoclassicismo francecircs realizada

por Michel Faure musicoacutelogo que se posiciona antagonicamente com relaccedilatildeo agravequela tendecircncia esteacutetico-musical

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Inversamente a universalidade eacute imperativa mas natildeo pode secirc-lo em detrimento das diferenccedilas que constituiacutemos e que nos faz ser [aquilo que somos] Cada um tem o direito agrave sua histoacuteria e o dever de cada um eacute respeitar esse direito nos outros A universalidade sem diferenccedila eacute tatildeo totalitaacuteria quanto a diferenccedila sem universalidade (MEYER 2000 p 148)

Tem-se assim uma nova postura criacutetica (que tambeacutem pode ser denominada

metacriacutetica) a qual propotildee que ao exercitar a criacutetica se inicie fazendo criacutetica aos

proacuteprios valores pessoais e inclusive agraves possibilidades de exerciacutecio da criacutetica no

domiacutenio de determinados contextos Isso aplicado ao campo da muacutesica que eacute uma

arte e natildeo uma ciecircncia exata leva agrave abertura de novas perspectivas e ao

entendimento de que os pontos de vista dos outros tecircm tanto direito agrave existecircncia

quanto os nossos Isso natildeo significa igualdade de criteacuterios mas igualdade de direito

pois pode haver diferenccedilas na qualidade dos valores sendo que alguns princiacutepios

podem estar mais fundamentados do que outros O que faz levar em consideraccedilatildeo

que em qualquer sistema de valores os criteacuterios apropriados para sua avaliaccedilatildeo

estatildeo no exame de sua estrutura loacutegica interna entrecruzada com sua adequaccedilatildeo agrave

realidade Entretanto nem mesmo a argumentaccedilatildeo mais sistematizada e bem

fundamentada eacute garantia de excelecircncia em se tratando de arte pois esta eacute uma

aacuterea onde os criteacuterios satildeo qualitativos e portanto natildeo podem ser quantizados ndash e jaacute

houve quem (como Max Bense) se esforccedilou em mensurar matematicamente a arte

poreacutem em nenhum caso se alcanccedilou um resultado considerado minimamente

satisfatoacuterio junto agrave comunidade artiacutestica

Quando o muacutesico se torna mais receptivo agraves diferentes opiniotildees que circulam

no campo da esteacutetica musical percebe tambeacutem que diferentes processos musicais

podem ser combinados em uma uacutenica peccedila de muacutesica natildeo importando onde ou

quando esses processos se originaram Essas fontes podem ser justapostas uma

apoacutes a outra na sequecircncia de eventos sonoros assim como podem ser sobrepostas

em um uacutenico momento do tempo musical Isso depende de vaacuterios fatores muitos

deles ligados aos anseios do proacuteprio artista Tambeacutem se abrem novas possibilidades

de significaccedilatildeo atraveacutes da muacutesica que natildeo permanece restrita a valores

exclusivamente teacutecnicos ou formais Por outro lado a teacutecnica e a forma sempre

poderatildeo ser incorporadas em situaccedilotildees musicais de iacutendole mais ampla do que a

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mera oposiccedilatildeo dicotocircmica entre lsquomodernorsquo e lsquopoacutes-modernorsquo lsquomuacutesica novarsquo e lsquonova

muacutesicarsquo ou entre lsquopreferecircncia pela forma e pela teacutecnicarsquo e lsquopreferecircncia pelo conteuacutedo

e pelas estruturas narrativasrsquo Para o compositor italiano Luca Lombardi (1945)

ldquouma filosofia da nova muacutesica escrita hoje natildeo poderia dividir de maneira

maniqueiacutesta o mundo em [] progressistas e reacionaacuterios mas deveria dar conta da

multipolaridade da situaccedilatildeo atual A realidade ndash e natildeo somente a realidade musical ndash

eacute complexa contraditoacuteria e consequentemente ndash para exprimir em termos positivos ndash

ricardquo (Lombardi apud MICHEL 1998 p 104)

A tradiccedilatildeo natildeo eacute mais entendida como sistema fechado em que determinada

interpretaccedilatildeo se torna lsquoa explicaccedilatildeorsquo dos fatos mas tambeacutem satildeo valorizadas as

reaccedilotildees pessoais particularizadas e mesmo idiossincraacuteticas Tambeacutem se torna

problemaacutetico asseverar algo sobre lsquoa tradiccedilatildeorsquo sendo que se reconhece a

simultaneidade de inuacutemeras lsquotradiccedilotildeesrsquo algumas complementares entre si outras

antagocircnicas mas todas com igual direito agrave existecircncia A identidade passa pela

diferenccedila entre um e outro e essa diferenccedila passa pela universalidade dos valores

que podem reconhecer a diferenccedila de um no outro assim como a identidade de

cada um somente pode ser reconhecida quando se tem conhecimento da

universalidade relativa (ou contextual) de cada uma das partes constituintes do todo

identitaacuterio25 A valorizaccedilatildeo da diferenccedila pode conduzir agrave aceitaccedilatildeo da multiplicidade

das praacuteticas musicais seus materiais acuacutesticos suas teacutecnicas seus processos de

elaboraccedilatildeo seus significados intriacutensecos e extriacutensecos suas praacuteticas e seus

valores pois ldquoo conteuacutedo eacute em suma a teoria que daacute significado agrave muacutesicardquo

(BUCKINX 1998 p 91)

Como resultado tecircm-se alcanccedilado novas funcionalidades no campo musical

isto eacute descobrem-se novas possibilidades de uso ou aplicaccedilatildeo da muacutesica que

correspondem agraves necessidades das novas geraccedilotildees A diversidade de funccedilotildees

musicais que se disseminaram desde a Antiguidade foi-se tornando cada vez mais

restrita nos uacuteltimos anos do seacuteculo XX periacuteodo em que alguns dividiam as funccedilotildees

em apenas lsquomuacutesica de concertorsquo e lsquomuacutesica de entretenimentorsquo reforccedilando outra

25 Pluralia tantum mesmo o singular eacute plural

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dicotomia com caraacuteter de preconceito social Nos uacuteltimos anos outras funccedilotildees tecircm

sido observadas como a funccedilatildeo de aglutinaccedilatildeo social comum nas tribos indiacutegenas

que necessitavam da uniatildeo grupal para garantir a sobrevivecircncia Quando se pratica

muacutesica como interferecircncia urbana se traz um grande contingente de pessoas para

uma praccedila puacuteblica e se as oferece experiecircncias que se diferenciam do lugar-comum

estaacute-se recuperando aquela praacutetica de aglutinaccedilatildeo social

Quando o compositor estoniano Arvo Paumlrt (1935) busca sonoridades

medievais e orientais em combinaccedilatildeo com as siacutenteses operadas pelo Minimalismo

para expressar seus valores miacutesticos de caraacuteter ecumecircnico em uma peccedila como

Summa (1977) estaacute retomando a funccedilatildeo congregacional da muacutesica anteriormente

mantida somente no acircmbito dos templos religiosos A muacutesica de Paumlrt eacute tocada tanto

em rituais religiosos como em salas de concerto e em manifestaccedilotildees puacuteblicas ao ar

livre

Outra funccedilatildeo que estaacute sendo redescoberta por muacutesicos eruditos

contemporacircneos eacute a muacutesica de diversatildeo Cabe uma distinccedilatildeo importante entre os

termos lsquodivertirrsquo e lsquodistrairrsquo Divertir na acepccedilatildeo empregada aqui significa lsquoseparar-

se ser diferente divergirrsquo Assim a funccedilatildeo de divertir pode ser compreendida em

um sentido metacriacutetico como divergecircncia em relaccedilatildeo ao estado de coisas

dominante Distrair significa lsquorasgar vender a retalhorsquo tambeacutem pode ser entendido

como lsquodesviar ardilosamente a atenccedilatildeo do adversaacuterio para fazecirc-lo cometer errosrsquo e

nesse sentido o termo pode se adequar agravequelas experiecircncias que conduzem ao

alheamento da proacutepria condiccedilatildeo da condiccedilatildeo do outro e da realidade circundante

Depreendido desse modo surge outra noccedilatildeo do conceito de lsquomuacutesica de diversatildeorsquo

que pode ser tomada como uma nova funcionalidade da muacutesica que se apotildee ao

estado de distraccedilatildeo

Exemplo recente nesse sentido eacute a Revoluccedilatildeo Laranja na Ucracircnia em

2005 em que a populaccedilatildeo das grandes cidades foi agraves ruas vestindo laranja a cor

da oposiccedilatildeo para protestar contra as fraudes eleitorais que mantinham o primeiro-

ministro Viktor Yanukovich no poder Vaacuterios grupos musicais tocando jazz muacutesica

pop muacutesica folcloacuterica ou muacutesica claacutessica se revezavam para manter a praccedila de Kiev

repleta de muacutesica vinte e quatro horas por dia No Brasil atual em novembro de

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2016 um grupo de estudantes permaneceu danccedilando em frente agrave universidade em

Curitiba por um dia inteiro em protesto agrave PEC 24155 Como estavam em uma zona

residencial para natildeo fazer barulho em respeito aos moradores cada um deles

portava seus proacuteprios fones de ouvido e danccedilavam embalados pelas muacutesicas que

lhes agradavam Vaacuterias muacutesicas ao mesmo tempo Cada um na sua Seu slogan

ldquo20 horas em movimento contra 20 anos de congelamentordquo

Post-Scriptum Presumir que os compositores das novas geraccedilotildees

permaneccedilam escrevendo muacutesica da mesma maneira que os muacutesicos de geraccedilotildees

anteriores seria o mesmo que esperar que estes continuassem fazendo muacutesica

como seus antepassados Se forem tomados intervalos de aproximadamente meio

seacuteculo pode-se considerar que pretender que Thomas Adegraves (1971) continue a

escrever muacutesica como Pierre Boulez (1925) seria o mesmo que supor que Boulez

continuaria a pensar muacutesica da mesma forma que Arnold Schoenberg (1874-1951)

que Schoenberg ter-se-ia mantido na mesma linha de investigaccedilatildeo que Anton

Bruckner (1824-1896) que Bruckner natildeo poderia ter concebido muacutesica diferente de

Ludwig van Beethoven (1770-1827) que teria seguido na linha de Niccolograve Piccinini

(1728-1800) o qual permaneceria pensando como Antonio Vivaldi (1678-1741)

Segundo esse raciociacutenio Adegraves apenas escreveria autecircnticos concertos barrocos (o

que eacute uma hipoacutetese no miacutenimo intrigante)

O quadro abaixo sintetiza as principais caracteriacutesticas da muacutesica

contemporacircnea de acordo com as acepccedilotildees discutidas neste ensaio

ACEPCcedilOtildeES REFERENCIAIS ATITUDES PROCEDIMENTOS VALORES RESULTADOS 1 Continuidade da Modernidade

1 Liquidaccedilatildeo dos Sistemas Totalizantes (Modal Tonal Serial)

1 Experimentalismo (expansatildeo das possibilidades teacutecnicas compositivas e instrumentais)

1 Poacutes-Vanguarda 2 Espectralismo 3 Nova Complexidade

1 Arte Especulativa 2 Diversidade Contextual (cada momento no tempo dirige-se a vaacuterios pontos do espaccedilo)

1 Criaccedilatildeo de estruturas inovadoras 2 Espacializaccedilatildeo do tempo 3 Arte poeacutetico-centrada (importa a criaccedilatildeo)

2 Retorno agrave Tradiccedilatildeo

2 Criacutetica ao Historicismo e ao Determinismo

2 Retorno ao passado (alguma eacutepoca em algum

4 Tendecircncias restauradoras (reutilizaccedilatildeo de

3 Apropriaccedilatildeo do Legado

4 Permanecircncia do passado em um presente

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Histoacuterico lugar) processos tradicionais Neomodalismo Neotonalismo etc) 5 Retorno agrave melodia ao contraponto e agrave harmonia

Histoacuterico transformado 5 Evidecircncia de procedimentos eou estilemas oriundos de tradiccedilotildees culturais variadas

3 Superaccedilatildeo do Modernismo

3 Questionamento das vanguardas do Estruturalismo e das tendecircncias formalistas (importam todos os aspectos da produccedilatildeo e recepccedilatildeo artiacutesticas e natildeo apenas seu niacutevel imanente)

3 Novos processos de comunicabilidade

6 Meacutetodos repetitivos (Poacutes-Minimalismo) 7 Nova Simplicidade 8 Apropriaccedilatildeo de Linguagens (folclore popular urbana pop etc)

4Valorizaccedilatildeo do Processo 5 Pluralidade e identidade pulverizada (quebra de conceitos como a unidade estiliacutestica e a distinccedilatildeo de gecircneros)

6 Nova Narratividade 7 Hibridismo Estiliacutestico 8 Arte esteacutesico-centrada (importa a recepccedilatildeo)

4 Traccedilos Gerais

4 Investigaccedilatildeo de toda e qualquer produccedilatildeo musical independente de eacutepoca ou lugar

4 Metacriacutetica como criacutetica ao Criticismo convencional

9 Poliestiliacutestica (citaccedilatildeo alusatildeo colagem) 10 Multiculturalismo (justaposiccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo de processos musicais oriundos de diferentes fontes)

6 Valorizaccedilatildeo da Diferenccedila (importam reaccedilotildees peculiares a aspectos especiacuteficos da tradiccedilatildeo e natildeo a lsquoTradiccedilatildeorsquo como lsquoSistemarsquo)

9 Multidirecionalidade na produccedilatildeo e na recepccedilatildeo musicais 10 Novas funcionalidades do fazer musical

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RAMAUT-CHEVASSUS Beatrice Musique et postmoderniteacute Paris PUF 1998 RATNER Leonard Classic music ndash expression form and style New York Schirmer 1980 RIHM Wolfgang Wolfgang Rihm in conversation with Kirk Noreen and Joshua Cody Disponiacutevel emlthttpwwwsospesocomcontentsarticlesrihm_p2htmlgt Acessado em 24 de janeiro de 2006 RIVERA BAQUERO Angel Alfonso Imagem um ponto de partida para a organizaccedilatildeo estrutural e formal no processo composicional Memorial de Mestrado Porto Alegre UFRGS 2014 ROCHBERG George THE key that will open CD George Rochberg Symphony Nordm 5 Black Sounds Transcendental Variations Saarbruumlcken Radio Symphony Orchestra Christopher Lyndon-Gee Naxos 2003 1 disco compacto (6103 min) digital esteacutereo 8559115 SCHNITTKE Alfred Les tendances polyestilistiques dans la musique moderne Analyse Musicale Paris n 33 nov 1998 p 132-134 SCHOENBERG Arnold Style and Idea Berkeley University of California 1975 SCHWARZ Robert Minimalists London Phaidon 1996 SOURIAU Eacutetienne Vocabulaire drsquoestheacutetique Paris PUF 1999 STRAVINSKY Igor Poeacutetica musical Madrid Taurus 1986 WALKER John A A arte desde o pop Rio de Janeiro Labor 1977 WOLFE Julia Interview In LELONG Steacutephane (Org) Nouvelle musique Paris Balland 1996

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VALLE Lutiere Dalla Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens

fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 95-108 juldez 2016

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Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das

imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente

Lutiere Dalla Valle1

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

Resumo O objetivo neste texto eacute abordar o cinema enquanto dispositivodisparador para a formaccedilatildeo docente compreendendo-o como artefato produzido pela cultura que produz formas de ver e ser visto Neste iacutenterim subsidiado por experiecircncias de aprendizagem no contexto da formaccedilatildeo docente respaldado pela abordagem narrativa e perspectiva da cultura visual busca-se estabelecer relaccedilotildees entre arte e subjetividade no que tange agraves construccedilotildees sociais histoacutericasculturais e ideoloacutegicas presentes nas visualidades veiculadas pela cinematografia Para tanto explora-se o conceito edu(vo)cativo atribuiacutedo ao cinema que compreende os aspectos educativo evocativo e cativo que envolvem a aprendizagem mediada pelas visualidades Palavras-chave Potecircncia Edu(vo)cativa cinema formaccedilatildeo docente Abstract The objective of this text is to approach the film as device for teacher training understanding it as an artifact produced by the culture that produces ways of seeing and being seen In the interim subsidized by learning experiences in the context of teacher training supported by the narrative approach and perspective of visual culture we seek to establish relationships between art and subjectivity in relation to social historical cultural and ideological constructions present in visualities conveyed by cinematography So it explores the concept edu(vo)cational attributed to the film comprising the educational evocative and captive aspects involving learning mediated visualities Key-words Edu(vo)cational power movies images teacher training

1 Doutor em Artes Visuais e Educaccedilatildeo (Universidad de BarcelonaES 2012) Mestre em Educacioacuten y Artes Visuales un Enfoque Construccionista (Universitat de Barcelona EspanhaUB 2009) Mestre em Educaccedilatildeo pela Universidade Federal de Santa Maria (CEPPGEUFSM2008) Linha de Pesquisa Educaccedilatildeo e Artes Possui Especializaccedilatildeo em Arte e Visualidade pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) Licenciatura Plena em Desenho e Plaacutestica (Universidade Federal de Santa Maria2003) Bacharelado em Desenho e Plaacutestica (Universidade Federal de Santa Maria2002) Atualmente atua como Coordenador do Curso de Artes Visuais - Licenciatura e Bacharelado DAVCALUFSM professor adjunto no Departamento de Artes Visuais CALUFSM tambeacutem no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes VisuaisPPGART - Linha de Pesquisa Arte e Cultura e nos Cursos de Graduaccedilatildeo Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais Co-orienta no Doutorado em Educaccedilatildeo Linha de Educaccedilatildeo e Artes do CEUFSM Investiga as relaccedilotildees entre Artes Visuais e Cultura Visual relacionado agrave formaccedilatildeo de artistas e professores de artes visuais Tem experiecircncia na aacuterea de artes visuais com ecircnfase em entornos educativos LiacutederCoordenador dos seguintes Grupos de Pesquisa e Extensatildeo Grupo de Estudos e Pesquisas Artes Visuais e IMediaccedilotildees (AVICALUFSM) Nuacutecleo Educativo Claacuteudio Carriconde (NECCA CALUFSM) Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte e Medicina (GEPAMCALUFSM) Grupo de Estudos Cinema e Educaccedilatildeo (GECED) Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Contemporacircnea e Educaccedilatildeo da Cultura Visual Pegadogias Culturais na alfabetizaccedilatildeo infantil Rota das Esculturas e Pintura Mural no Campus (DAVUFSM) Membro pesquisador do GEPAEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Educaccedilatildeo e Cultura UFSM Linhas de Interesse e Investigaccedilatildeo Formaccedilatildeo de Professores Estudos da Cultura Visual Estudos sobre Cinema e Educaccedilatildeo Formaccedilatildeo de Artistas Agentes Culturais e Processos de Mediaccedilatildeo em Espaccedilos Expositivos Formais e Natildeo-Formais Contato lutieredallavallenetbr

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VALLE Lutiere Dalla Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens

fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 95-108 juldez 2016

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Introduccedilatildeo

Os seres humanos natildeo terminam em sua proacutepria pele satildeo expressatildeo da cultura Considerar o mundo como um fluxo indiferente da informaccedilatildeo que eacute processada pelos indiviacuteduos cada um atuando agrave sua maneira supotildee perder

de vista como se formam os indiviacuteduos e como funcionam Ou para citar novamente Geertz lsquonatildeo existe uma natureza humana independente da

culturarsquo (BRUNER 1991 28)

Diaacutelogos entre cinema e educaccedilatildeo tecircm sido recorrentes em nossos contextos

educativos O uso do cinema como um ponto de partida para desenvolver projetos

educativos - sobretudo nos uacuteltimos dez anos no contexto nacional - tem assinalado

variadas experimentaccedilotildees publicaccedilotildees a partir de agrupamentos de textos

produzidos em grupos de pesquisa ensaios atravessamentos diversos em que o

cinema constitui-se fio condutor eou mote reflexivo para desencadear escritas

narrativas dissertaccedilotildees e teses de doutorado em Educaccedilatildeo e aacutereas afins Talvez

resultado do vasto processo de contaminaccedilatildeo eou proliferaccedilatildeo de imagens oriundas

das mais diversas fontes que suscitam possibilidades educativas e favorecem

experiecircncias de aprendizagens significativas mediadas por pedagogias culturais

articulando desta maneira tentativas curiosas em abordar a cinematografia a partir

de acircngulos e enquadramentos diversos em que satildeo apresentadas distintas formas

de ver e ser visto pelas visualidades

Haacute experimentaccedilotildees que apostam em praacuteticas educativas embasadas pela

criacutetica pela produccedilatildeo criativa e emancipatoacuteria transitando entre campos que

articulam conceitos e contextos plurais de produccedilatildeo de significados Por outro lado

eacute recorrente tambeacutem a tentativa de pedagogizar o cinema seguindo um receituaacuterio

de como fazer como ver e o que ver nos filmes

Diante destas consideraccedilotildees adianto que neste texto proponho pensar e

articular o cinema de modo relacional afetivo muacuteltiplo em devir algo que natildeo estaacute

pronto onde existem infinitas probabilidades de aproximaccedilatildeo e diaacutelogo

configurando-se tambeacutem como dispositivo edu(vo)cativo ponto de partida um

comeccedilo isento da intenccedilatildeo de prescrever um meacutetodo a ser implementado

Igualmente refletir sobre o que podemos aprender coma partir das imagens

produzidas pelo cinema e como as experiecircncias de aprender podem ser

potencializadas a partir dos filmes isto eacute investigar como o cinema pode configurar-

se edu(vo)cativo na formaccedilatildeo docente

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VALLE Lutiere Dalla Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens

fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 95-108 juldez 2016

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A Potecircncia Edu(vo)cativa das imagens fiacutelmicas

Toda voz individual como nos mostra Bajtin estaacute abstraiacuteda de um diaacutelogo

(BRUNER 1991 14)

Edu(vo)cativo origina-se da junccedilatildeo de trecircs palavras educativo evocativo

cativo2 eacute desta forma que nos aproximamos do cinema na busca por propor uma

justaposiccedilatildeo com a imagem fiacutelmica em que sejam articuladas as relaccedilotildees de

aprendizagem potencializadas a partir de sua visualizaccedilatildeo Igualmente tendo em

vista que as imagens em movimento carregam particularidades especiacuteficas de sua

natureza visualafetiva a ideia eacute pensar que o cinema natildeo poderia ser conjecturado

dentro de uma uacutenica estrutura linguiacutestica agrave qual nos vinculamos em nossos

contextos culturais geograacuteficos e temporais pois amplia os campos da percepccedilatildeo

abrindo-se mais para a experimentaccedilatildeo subjetiva do que a uma compreensatildeo

formal de significaccedilatildeo previamente apreendida Da mesma forma discursivamente

constitui-se potecircncia simboacutelica recheada de elementos oriundos de imaginaacuterios

coletivos nos quais ancoramos nossas percepccedilotildees mais iacutentimas assim como os

imaginaacuterios produzidos pelas culturas

Neste contexto entendemos o cinema como artefato educativo pois nos

ensina modos de ver e sermos vistos de ser e estar envolvendo tudo o que

potencializa visotildees de mundo de construccedilatildeo e legitimaccedilatildeo de concepccedilotildees de

mundo eacute tambeacutem evocativo pois diz respeito agraves percepccedilotildees que envolvem a

memoacuteria agravequilo que permanece como referencial anterior e que em relaccedilatildeo com as

novas conexotildees pode reconfigurar-se estabelecer novasoutras conexotildees

2 O Conceito Edu(vo)cativo vem sendo pensado no Grupo de Estudos e Pesquisas Cinema e Educaccedilatildeo (GECEDCNPq) O GECED configura-se a partir do cinema como mobilizador de aprendizagens em variados acircmbitos e contextos educativos formais e natildeo formais de ensino onde cada membro propotildee um enfoque particular em relaccedilatildeo ao cinema e um enfoque de pesquisa Desta forma haacute pesquisas que relacionam diferentes abordagens tais como cinema e gecircnero cinema e subjetividade cinema e infacircncia cinema e educaccedilatildeo cinema e formaccedilatildeo docente O marco teoacuterico-metodoloacutegico respalda-se pela perspectiva educativa da cultura visual e pedagogias culturais amparado por autores como Fernando Hernaacutendez Nicholas Mirzoef David Darts Raimundo Martins Irene Tourinho acerca dos Modos de Endereccedilamento com a obra de Elizabeth Ellsworth acerca do cinema e educaccedilatildeo Adriana Fresquet dentre outros No que diz respeito agraves construccedilotildees sociaisculturais e ideoloacutegicas bem como satildeo produzidos os significados Jerome Bruner e Kenneth Gergen consistem nas principais referecircncias

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produzindo outras vias traz agrave tona movimenta do interno para o externo emerge

faz surgir E por fim o termo cativo busca estabelecer relaccedilotildees com aquilo que

seduz que aprisiona que deteacutem atenccedilatildeo que afeta que domina um filme natildeo

apenas mobiliza mas evoca potencializa educa constroacutei legitima instrui

Pensando o cinema a partir da conjunccedilatildeo leacutexica proposta agrave luz da

perspectiva educativa dos estudos da cultura visual podemos dizer que este

mobiliza formas de compreensatildeo que talvez natildeo sejam possiacuteveis de outra ordem

Os atravessamentos que o cinema estabelece com espectadores envolve

conhecimento da linguagem mobilizaccedilatildeo de conceitos e imagens previamente

apreendidas configurando-se no plano sensorial sonoro visual da accedilatildeo que

materializa-se em seu tempo de visualizaccedilatildeo a partir de um entre e sucessivos

momentos Nas palavras de Adriana Fresquet

[] de fato o cinema nos oferece uma janela pela qual podemos nos assomar ao mundo para ver o que estaacute laacute fora distante no espaccedilo ou no tempo para ver o que natildeo conseguimos ver com nossos proacuteprios olhos de modo direto Ao mesmo tempo essa janela vira espelho e nos permite fazer longas viagens para o interior tatildeo ou mais distante de nosso conhecimento imediato e possiacutevel (2013 p 19)

Para Fresquet ldquoa tela de cinema (ou do visor da cacircmera) se instaura como

uma nova forma de membrana para permear um outro modo de comunicaccedilatildeo com o

outrordquo (2013 p 19) Ou seja os sistemas de representaccedilatildeo criados e veiculados

pelas produccedilotildees cinematograacuteficas ativam e potencializam imaginaacuterios ao dar forma

agravequilo que antes de se tornar visualmente comumcotidiano era apenas mundo das

ideias A partir do cinema o imaginaacuterio visual ganhou forma ritmo movimento e voz

As visualidades adquiriram o status de imagempensamento tendo em vista que

articulam em noacutes uma multiplicidade de relaccedilotildees construccedilotildees definiccedilotildees e

conceitos que soacute satildeo possiacuteveis atraveacutes daquilo que os olhos captam e formulam

mentalmente

Quando vemos uma imagem objeto ou artefato recorremos agraves informaccedilotildees gerais eou ao conhecimento especiacutefico que possuiacutemos Recorremos a haacutebitos valores referecircncias e contexto para dar sentidosignificado ao que vemos Cada indiviacuteduo utiliza suas informaccedilotildees conhecimento haacutebitos e referecircncias para estruturar e dar sentido agraves coisas que visualiza valorizando-as diferentemente negociando seus significados de acordo com o contexto sua trajetoacuteria cultural e seus interesses (MARTINS TOURINHO 2011 p 54-55)

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No contexto educativo torna-se edu(vo)cativo uma vez que haacute uma

multiplicidade de caminhos de natureza relacional os quais mobilizamos durante um

processo interpretativo ndash seja ele no campo da arte ou da educaccedilatildeo da ciecircncia ou

da sociologia Portanto aprender com a partir do cinema implica abandonar a ideia

de um uacutenico caminho a ser seguido de forma riacutegida pois sugere estabelecer

relaccedilotildees Diante de infinitas possibilidades de abordagem ndash principalmente tendo em

vista a presenccedila constante de representaccedilotildees visuais oriundas de diversas fontes ndash

o desafio de fugir das concepccedilotildees estereotipadas de uso do cinema em sala de aula

propunha reinventaacute-las atraveacutes de praacuteticas investigativas experimentais movediccedilas

questionadoras comeccedilando pelo exerciacutecio de reconhecer a potencialidade

narrativaevocativa dos filmes O que pode um filme Como abordaacute-lo enquanto

potecircncia agrave aprendizagem

Neste iacutenterim noccedilotildees de identidade e subjetividade examinadas (re)vistas

compreendidas e articuladas a partir da perspectiva educativa da cultura visual nos

oferecem pistas e tambeacutem evidecircncias para interrogarmos a sua construccedilatildeo e

tambeacutem os estereoacutetipos que contribuem para definir condutas delinear posiccedilotildees

hieraacuterquicas e legitimar papeacuteis sociais sobretudo no que tange agrave construccedilatildeo da

docecircncia O olhar produzido pela cinematografia hollywoodiana ndash de maior difusatildeo

em nossa cultura ndash que se constitui forte veiacuteculo de construccedilatildeo e produccedilatildeo de

identidades (natildeo apenas as identidades docentes) revisitado pode desencadear

processos de questionamento e reelaboraccedilatildeo pois como argumenta Fernando

Hernaacutendez

Os estudos da Cultura Visual nos permitem a aproximaccedilatildeo com essas novas realidades a partir de uma perspectiva de reconstruccedilatildeo das proacuteprias referecircncias culturais e das maneiras de as crianccedilas jovens famiacutelias e educadores olharem (-se) e serem olhados Reconstruccedilatildeo natildeo somente de caraacuteter histoacuterico mas a partir do momento presente mediante o trabalho de campo ou a anaacutelise e a criaccedilatildeo de textos e imagens Reconstruccedilatildeo que daacute ecircnfase agrave funccedilatildeo mediadora das subjetividades e das relaccedilotildees agraves formas de representaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo de novos saberes acerca destas realidades (HERNAacuteNDEZ 2007 37)

Tomando como ponto de partida o argumento do autor em favor da

perspectiva educativa da cultura visual as produccedilotildees fiacutelmicas nos conferem uacutenicas

ou infinitas visotildees de mundo de ser de estar e atuar nas mais variadas situaccedilotildees

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cotidianas Natildeo apenas aprendemos a olhar e compreender as narrativas visuais

desde a infacircncia mas tambeacutem nossas formas de ver passam a ser articuladas a

partir do lugar que ocupamos ndash social cultural histoacuterico Natildeo apenas visualizamos

uma narrativa decodificando a sequecircncia de imagens mas reconstruiacutemos e

recontamos internamente a partir daquilo que compreendemos da visualidade

daquilo que apreendemos Portanto enquanto dispositivo do olhar o cinema pode

contribuir para desvelar imagens assim como pensar sobre quequais lugares

ocupam dentro dos imaginaacuterios coletivos e quais satildeo as possibilidades de

transgredi-los em favor de articulaccedilotildees mais subjetivas autorais e inclusivas

Problematizar o cinema (no sentido de pensar o que evocaprovocamobiliza)

sugere praacuteticas de desnaturalizaccedilatildeo do olhar e especial atenccedilatildeo agraves contingecircncias

que delineiam nossas relaccedilotildees com o mundo nossas experiecircncias cotidianas Em

decorrecircncia podemos nutrir-nos de estrateacutegias criacuteticas para questionar padrotildees

desmontar estruturas hegemocircnicas discursos riacutegidos e propor fissuras brechas em

que nossa subjetividade seja potencializada Partindo da concepccedilatildeo de que noccedilotildees

de verdade e realidade igualmente correspondem a construccedilotildees sociais culturais e

histoacutericas podemos permitir-nos distanciarmo-nos desprendermo-nos de

concepccedilotildees alicerccediladas em padrotildees e posicionamentos fechados e inflexiacuteveis Esse

distanciamento nos permite repensar o que eacute normativo a fim de examinar de onde

surgiu e como a essa normatividade natildeo corresponde uma uacutenica verdade mas uma

referecircncia datada localizada e impregnada de ideologias

Examinar a docecircncia agrave luz do que dizem suas representaccedilotildees no cinema

colocam frente a frente as distintas versotildees que nos satildeo oferecidas enquanto papeacuteis

sociais eacute recorrente a figura docente caricaturada atraveacutes de modelos messiacircnicos

assistencialistas e transformadores dispostos a abrir matildeo de suas expectativas de

vida para solucionar os mais variados problemas de seus alunos Poucas satildeo as

narrativas que evidenciam uma docecircncia fragilizada hostil e afetiva ou ainda como

profissatildeo3

3 No livro Pedagogias Culturais organizado por Raimundo Martins e Irene Tourinho (Editora da UFSM 2014)

discuto esta questatildeo no texto ldquoAprendendo a ser docente atraveacutes de filmes possiacuteveis tracircnsitos entre cinema e educaccedilatildeordquo (p 141-164) Neste faccedilo referecircncia a uma seacuterie de tiacutetulos de filmes que tecircm como tema

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O cinema como ponto de partida na formaccedilatildeo docente

Tomar a perspectiva educativa da cultura visual como ancoradouro nos

favorece interrogar as elaboraccedilotildees discursivas que envolvem a construccedilatildeo do olhar

e tambeacutem os estereoacutetipos que contribuem para definir condutas delinear posiccedilotildees

hieraacuterquicas e legitimar papeacuteis sociais Sobretudo o olhar produzido pela

cinematografia hollywoodiana ndash de maior difusatildeo em nossa cultura ndash que se constitui

forte veiacuteculo de construccedilatildeo e produccedilatildeo de identidades

Acredita-se que cada espectador aporte sua proacutepria experiecircncia histoacuteria e

identidade agrave compreensatildeo de um texto fiacutelmico Contudo eacute possiacutevel que as

narrativas visuais privilegiem certas posiccedilotildees - mesmo que haja certa autonomia

para colocar interpretaccedilotildees personalizadas - pois estas interpretaccedilotildees se

encontraratildeo afetadas pelos limites impostos pelo enquadramento pela delimitaccedilatildeo

de algueacutem sobre o que tornar visiacutevel e o que deixar fora

As interpelaccedilotildees entre narrativas visuais textos discursivos e processos

cognitivos satildeo aspectos importantes que merecem ser discutidos sob a luz da

ideologia presente nos roteiros uma vez que problematizaacute-los pode configurar-se

como ferramenta pedagoacutegica para pensar a complexidade das concepccedilotildees que

elaboramos a partir do que visualizamos

Quando as imagens fiacutelmicas se convertem em aparatos de propulsatildeo para

desencadear aspectos problematizadores no campo social a respeito de questotildees

de gecircnero credo liberdade respeito cidadania e educaccedilatildeo as narrativas fiacutelmicas

funcionam como dispositivos possibilitando que os estudantes exercitem a

experiecircncia da indagaccedilatildeo

Ao examinar as relaccedilotildees dos sujeitos envolvidos com experiecircncias de

visualizaccedilatildeo de filmes durante o desenvolvimento de disciplinas na universidade no

curso de Licenciatura em Artes Visuais - seus diaacutelogos interpretaccedilotildees e

reconstruccedilotildees - percebeu-se que a negociaccedilatildeo eacute fundamental para desenvolver e

estimular a construccedilatildeo do conhecimento a partir de uma abordagem educativa

poliacutetica criacutetica que potencialize o caraacuteter subjetivo e colaborativo comentre os

professores com maior difusatildeo em contextos educativos formais tencionando a partir de algumas experiecircncias durante a formaccedilatildeo inicial e continuada de professores

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sujeitos Diante da experiecircncia de aprender coma partir do cinema estamos lidando

com imprevisibilidades incongruecircncias insatisfaccedilatildeo e a constante possibilidade de

revermos nossas concepccedilotildees e demais processos constitutivos O ambiente

educativo pode configurar-se como lugar de tensionamentos de imagens que

afetam e reverberam conexotildees inventivas que articulam distintos saberes

A partir das consideraccedilotildees elaboradas juntamente com os sujeitos em

formaccedilatildeo podemos pensar o cinema como dispositivo que produz e faz circular

modos de ver ser relacionar e pensar os diversos coacutedigos culturais com os quais

dialogamos diariamente Contribui tambeacutem para refletirmos sobre a construccedilatildeo de

imaginaacuterios e do mesmo modo para advertir-nos sugerir eou alertar-nos frente agraves

incertezas que configuram nossos dilemas existenciais que encontram sua potecircncia

nas relaccedilotildees que estabelecemos diariamente

Neste iacutenterim as produccedilotildees cinematograacuteficas -- enquanto artefatos

produzidos pelas distintas culturas inseridos e veiculados por determinados

discursos e ideaacuterios de acordo com as contingecircncias vigentes de seu tempo --

possibilitam noccedilotildees de realidade pois refletem questotildees sociais que permeiam seu

tempo Sob este aspecto Raimundo Martins argumenta

A ilusatildeo de realidade de que se valem as obras fotograacuteficas e sobretudo as cinematograacuteficas brinca com a percepccedilatildeo da plateacuteia Assim raramente eacute levado em consideraccedilatildeo o fato de que em uacuteltima instacircncia toda imagem constitui um conjunto de pontos de vista que decorrem de certos modos de interpretaccedilatildeo da realidade recortes que enfatizam determinadas informaccedilotildees em detrimento de outras o que vemos ao contemplar as imagens teacutecnicas natildeo eacute o mundo mas determinados conceitos relativos ao mundo a despeito da automaticidade da impressatildeo do mundo sobre a superfiacutecie da imagem (MARTINS 2007 115-116)

Ao mobilizar o campo da afetividade por meio da narrativa que nos eacute contada

bem como a proximidade com os personagens envolvidos haacute quase sempre uma

conexatildeo imediata (em maior ou menor grau) o que coloca os espectadores em

situaccedilatildeo de igualdade de relaccedilatildeo iacutentima Inscrevemos nossas proacuteprias relaccedilotildees com

a vida plasmada na tela e estabelecemos algumas relaccedilotildees ao reviver nossas

proacuteprias experiecircncias ou ainda projetarmos sonhos desejos medos aventuras

imaginaacuterias

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Neste vieacutes afetivo haacute ilimitadas interlocuccedilotildees com o cinema o que talvez

configure nossa questatildeo principal Como pensarpropor o cinema edu(vo)cativo no

contexto da formaccedilatildeo docente E aleacutem desta Qual a relevacircncia desta articulaccedilatildeo

durante a formaccedilatildeo docente

De modo geral como jaacute foi mencionado experiecircncias de aprender com o

cinema na escola privilegiam a vontade do professorprofessora em dar continuidade

a um determinado conteuacutedo e o filme parece ser uma opccedilatildeo ilustrativa de

determinado fenocircmeno eou fato a ser apreendido Natildeo que esta abordagem natildeo

seja relevante ao contraacuterio pode ser um bom argumento O problema eacute quando

restringe-se apenas agrave ilustraccedilatildeo natildeo abrindo espaccedilos ao que reverbera a

visualizaccedilatildeo de um filme Ou ainda quando natildeo se problematizam as visotildees de

realidade representadas na tela ndash no que diz respeito aos enquadramentos

discursos e demais significados que satildeo relacionados muitas vezes de maneira

impliacutecita

Nessa direccedilatildeo a educaccedilatildeo da cultura visual eacute aberta a novas e diversas formas de conhecimentos promove o entendimento de meios de opressatildeo dissimulada rejeita a cultura do Positivismo aceita a ideia de que os fatos e os valores satildeo indivisiacuteveis e sobretudo admite que o conhecimento eacute socialmente construiacutedo e relacionado intrinsecamente ao poder (DIAS 2011 62)

Talvez o questionamento pontuado por Belidson Dias adquira maior potecircncia

ao trazer para a discussatildeo a recente lei que torna obrigatoacuteria a exibiccedilatildeo de pelo

menos duas horas de filmes produzidos nacionalmente nas escolas de Educaccedilatildeo

Baacutesica Aiacute reside uma de nossas grandes preocupaccedilotildees

Que filmes Que formas de exibiccedilatildeo Que engajamento dos professores e da comunidade Que formas de acesso agraves obras Como regulamentar a Lei Haacute filmes com tecnologias assistivas que permitam sua aces- sibilidade a professores e estudantes cegos e surdos Como engajar outros atores ndash Ancine Secretaria do Audiovisual secretarias de educaccedilatildeo MEC Quem custearaacute as accedilotildees E sobretudo o que esperar dessa relaccedilatildeo do cinema com a educaccedilatildeo (FRESQUET MIGLIORIN 2015 4)

Aleacutem disso quais aacutereas Quais docentes Que preparaccedilatildeo preacutevia O que

precisa saberconhecer o docente que iraacute abordar o cinema enquanto dispositivo

Haacute que ensinar coacutedigos da linguagem E no que tange agrave visualidade o que propor

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Seria da competecircncia da aacuterea das artes visuais Propor pensar sobre os elementos

esteacuteticos Etc

Neste cenaacuterio abrem-se muitos debates em torno desta obrigatoriedade por

um lado esta regulamentaccedilatildeo faz com que o cinema deixe de participar apenas

como complemento ilustraccedilatildeo como decorativorecreativo tornando-se objeto

principal ponto de partida agrave reflexatildeo em torno dos coacutedigos culturais que o formulam

legitimam e distribuem noccedilotildees de realidade Por outro proposiccedilotildees prescritivas

destituiacutedas de negociaccedilatildeo coletiva -- que desconsidera o cinema enquanto obra

aberta -- podem desencadear versotildees estereotipadas que devido agrave obrigatoriedade

venham a ser desenvolvidas por profissionais despreparados dispostos a cumprir

tarefas apenas

Ao discutir a lei Adriana Fresquet e Cezar Migliorin sugerem alguns princiacutepios

que poderiam ser levados em consideraccedilatildeo diante das aproximaccedilotildees com a

educaccedilatildeo Para os autores ao tomar a lei como ponto de partida deveriacuteamos ter em

mente estas dez consideraccedilotildees

1 Democratizar o acesso 2 Acesso diversidade e capilaridade de decisotildees 3 Valorizar as accedilotildees existentes e locais 4 O cinema deve ser arriscado 5 Cinema eacute conhecimento e invenccedilatildeo de mundo 6 A escola natildeo forma consumidores 7 Tensatildeo na estrutura das escolas 8 Por que cinema brasileiro 9 Promover a criaccedilatildeo com imagens 10 A experiecircncia com o cinema (FRESQUET MIGLIORIN 2015 6-17)

Diante destes aspectos expostos talvez fosse interessante retomarmos o

conceito de ldquodesaprenderreaprenderrdquo proposto por Adriana Fresquet (2007) no livro

ldquoImagens do Desaprender uma experiecircncia de aprender com o cinemardquo em que

narra a seguinte relaccedilatildeo

Desaprender eacute algo mais que aprender coisas opostas sobre um mesmo tema assunto valor questatildeo da vida Desaprender pode ateacute indicar erradamente a ideacuteia de esquecer o aprendido Poreacutem o seu significado e intenccedilatildeo eacute exatamente o contraacuterio Tal eacute a forccedila da irreversibilidade da aprendizagem que desaprender significa fundamentalmente lsquolembrarrsquo as coisas aprendidas que querem ser desaprendidas Desaprender eacute aprender a natildeo querecirc-las mais para si a natildeo outorgar mais o estatuto de verdade de sentido ou de interesse Verdade aprendida com outros desde sempre adquire valor de inquestionaacutevel Desaprender eacute animar-se a questionar tais verdades Desaprender eacute tambeacutem fazer o esforccedilo de conscientizar todo o vivido na contramatildeo evocando o impacto histoacuterico e emocional que teve aquela aprendizagem que hoje deseja ser modificada (FRESQUET 2007 49)

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Portanto as muacuteltiplas relaccedilotildees promovidas pelas narrativas fiacutelmicas nos

fazem pensar em diversas maneiras de abordar a visualidade comeccedilando pelo

acircmbito da sensibilidade da emoccedilatildeo do afeto ateacute avanccedilarmos pelo terreno da

pedagogia onde nos encontramos com a relaccedilatildeo ensinaraprender Partimos do

princiacutepio de que o cinema se inscreve em uma temporalidade compreensiacutevel a

praticamente todos os puacuteblicos ao representar as diversas etapas do

desenvolvimento humano as descobertas infantis a adolescecircncia e a juventude a

maturidade e a velhice nas suas mais variadas manifestaccedilotildees e a utilizarmos como

ponto de partida para comeccedilar nossa viagem Durante o percurso eacute possiacutevel

visualizar terrenos feacuterteis e tambeacutem arenosos lugares remotos de nossa memoacuteria e

outros recocircncavos repletos de figuras miacuteticas fantasmagorias e possibilidades

Estes dispositivos desestabilizam e mobilizam outras aprendizagens

promovem crises que geram avanccedilos instigam a pensar alternativas Satildeo forccedilas

que produzem o deslocamento e a descoberta de outras dimensotildees de outras

linhas de pensamento Incitam tambeacutem a adotar uma postura criacutetica impulsionada

pelo desejo de criar espaccedilos e alternativas para aprender sobre o mundo a partir do

diaacutelogo com o outro a reconhecer-se pelas diferenccedilas a pensar o ambiente de

formaccedilatildeo inicial e continuada da docecircncia como exerciacutecio do olhar criacutetico e

mobilizador

Sobre o cinema e suas provocaccedilotildees um desfecho provisoacuterio

Referecircncia na moda no comportamento na muacutesica e nos mais variados

acircmbitos das experiecircncias humanas o cinema configura-se como fenocircmeno cultural

de grande impacto na configuraccedilatildeo de imaginaacuterios desde a infacircncia Desde muito

cedo somos introduzidos agrave loacutegica narrativa sequencial que apresenta muitas

realidades Eacute recorrente em nossa contemporaneidade nos depararmos com

personagens criados pelo cinema em acessoacuterios utensiacutelios domeacutesticos adereccedilos

materiais pedagoacutegicos brinquedos etc propagando uma legiatildeo de muitos heroacuteis (e

rariacutessimas heroiacutenas) que inevitavelmente invadem a escola reproduzindo-se nas

canccedilotildees brincadeiras corporeidades comportamentos Diante destes contextos

Como a docecircncia articula estas experiecircncias visuais enquanto mote inicial a ser

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esmiuccedilado Que relaccedilotildees com as imagens fiacutelmicas osas docentes tecircm

apreendidas Como satildeo seus enfrentamentos relaccedilotildees com o cinema

Talvez seja relevante pensarmos alternativas nas quais estudos sobre cinema

e educaccedilatildeo possam estar presentes durante a formaccedilatildeo inicial e continuada da

docecircncia para propor relaccedilotildees de aprendizagem a partir da imprevisibilidade seu

papel e sua utilizaccedilatildeo dentro dos ambientes de aprendizagem tendo como premissa

natildeo cairmos na tentativa de pedagogizaacute-lo ou tornaacute-lo mais um instrumento fechado

ou previsiacutevel mas de tomaacute-lo como obra aberta ndash a partir da concepccedilatildeo do rizoma ndash

para tomar vias distintas Bricolar propor conexotildees com outras narrativas abordaacute-lo

sem tentar traduzir o que eacute essencialmente percepccedilatildeo visualsensorialemocional e

que obviamente requer outro tipo de relaccedilatildeo outros coacutedigos outras loacutegicas

Para finalizar estaacute escrita retomo os vocaacutebulos que a iniciam provocaccedilotildees

descontinuidades desfechos com o intuito de sinalizar como poderiam operar no

campo educativo ndash ao menos como pretendo que sejam pensados aqui

O cinema enquanto provocador que desafia incita o questionamento retira

da calmaria e lanccedila na tempestade desacomoda instiga o pensamento retira do

lugar comum causa desconforto Neste contexto por significados que possam ser

revistosrevisados reconceituados Imaginaacuterios produzidos pela cinematografia

dominante (em nossos contextos) possam ser repensados ou em alguns casos

como argumenta Adriana Fresquet desaprendidos e reaprendidos a partir de outras

loacutegicasrelaccedilotildees

(Des)continuidade tem duplo sentido no cinema a ideia de movimento se daacute

pela sequecircncia contiacutenua de imagens trabalha-se com a continuidade de um roteiro

Uma descontinuidade seria uma ruptura da continuidade da linearidade Poderia ir

na contramatildeo a contrapelo Caracteriza-se como uma interrupccedilatildeo A continuidade

no cinema busca uma coerecircncia loacutegica que envolve sonoridade e fluxo visual na

sucessatildeo de imagens o que pode envolver cortes durante uma montagem pois

cabe ao continuiacutesta manter a conexatildeo desejada pelo roteiro entre as cenas

concedendo entendimento agrave narrativa que estaacute sendo contada Juntamente com o

diretor ou diretora de um filme colabora com todas as demais especificidades

teacutecnicas que participam da histoacuteria a ser contada dos enquadramentos aos

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cenaacuterios objetos de cena etc Entatildeo O que seria umuma (Des)Continuiacutesta em

educaccedilatildeo

Talvez aqueleaquela que ocupa-se da provocaccedilatildeo que incita o jogo que

lanccedila convites que desafia Sabemos que a escola nos moldes atuais natildeo

configura-se uacutenica fonte de saberes mas espaccedilo de diaacutelogo de negociaccedilatildeo

formulaccedilatildeo

Desfecho do ponto de vista literaacuterio diz respeito agrave finalizaccedilatildeo ao desenlace

de uma tramanarrativa Pode ser entendido tambeacutem como local de chegada depois

de alguns trechos percorridos Neste texto desfecho pode ser concebido tambeacutem

como siacutentese do processo desenvolvido poreacutem aberto ainda no ato de acontecer

Entendo desfechos como provisoacuterios embora pareccedila relevante percebermos

processos de soluccedilotildees de problemas pontos que podem ser destacados ao teacutermino

de uma jornada de uma investida uma aposta Acredito que desfechos satildeo

importantes pois impelem a retomar a jornada examinar o percurso movimentar-se

em temporalidades diversas para compreender como se articula o momento

presente Transformando-o em verbo desfecho - desfechar - poderia ser des-fechar

tornaacute-lo em aberto apesar de haver jaacute percorrido uma trajetoacuteria examina-se o

recorrido poreacutem servindo como propulsor a dar segmento a tomar novas

experiecircncias seguir aprendendo des-fechando processos educativos

Referecircncias

BRUNER Jerome Actos de significado maacutes allaacute de la revolucioacuten cognitiva Madrid Alianza Editorial 1991 DIAS Belidson O imundo da cultura visual Brasiacutelia Editora da poacutes-graduaccedilatildeo em arte da Universidade de Brasiacutelia 2011 ELLSWORTH Elizabeth Posiciones en la ensentildeanza diferencia pedagogiacutea y el poder de la direccionalidad Madrid Akal 2005 FRESQUET Adriana Cinema e educaccedilatildeo reflexotildees e experiecircncias com professores e estudantes de educaccedilatildeo baacutesica dentro e ldquoforardquo da escola Belo Horizonte Autecircntica 2013

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VALLE Lutiere Dalla Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens

fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 95-108 juldez 2016

Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

FRESQUET Adriana Imagens do desaprender uma experiecircncia de aprender com o cinema Rio de Janeiro UFRJ 2007 FRESQUET Adriana MIGLIORIN Cezar Da obrigatoriedade do cinema na escola notas para uma reflexatildeo sobre a lei 1300614 In FRESQUET Adriana (Org) Cinema e Educaccedilatildeo a lei 13006 Reflexotildees perspectivas e propostas Belo Horizonte Universo Produccedilatildeo 2015 HERNAacuteNDEZ Fernando Catadores da Cultura Visual uma proposta para uma nova narrativa educacional Porto Alegre Mediaccedilatildeo 2007 MARTINS Alice Faacutetima Imagens do cinema cultura contemporacircnea e o ensino de artes visuais In OLIVEIRA M O de (Ed) Arte educaccedilatildeo e cultura Santa Maria Ed da UFSM 111-130 2007 MARTINS Raimundo TOURINHO Irene (Org) Circunstacircncias e ingerecircncias da cultura visual In MARTINS R y TOURINHO I (Eds) Educaccedilatildeo da cultura visual conceitos e contextos Santa Maria Ed da UFSM (paacuteg 51-68) 2011

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PerformanceS1

Fernando Pinheiro Villar 2 Universidade de Brasiacutelia - UnB

Aproximando-se do primeiro ano apoacutes 11 de setembro continuamos sem saber

o que sabemos e o que natildeo sabemos sobre a destruiccedilatildeo dos preacutedios do World Trade

Center em Nova York O que podemos ter certeza eacute que antes da queda das torres

gecircmeas jaacute viviacuteamos crises aceleradas empor nossa supermodernidade crise de

certezas crise social crise de conceitos crise de significados Realidades que se

transformam continuamente demandam novos conceitos e revisatildeo constante de

conceitos existentes para negociar com as novas praacuteticas artiacutesticas teorias famiacutelias

trabalho sexualidades etnias ensino e meacutetodos

Performance eacute apontada como um conceito chave em estudos culturais

contemporacircneos Este artigo aborda performances artiacutesticas Enfatizo o lsquoartiacutesticasrsquo

como necessaacuterio recorte e por minha experiecircncia praacutetica Mas este recorte natildeo evita a

interferecircncia de outros significados nem indica um terreno mais tranquilo para

taxonomias

No meio de uma semana de debates sobre lsquoperformancersquo na Universidade de

Brasiacutelia em maio de 2002 um estudante disse que parecia lsquohaver uma certa

glamourizaccedilatildeo da duacutevida ou da dificuldade de definir performancersquo3 Mais preocupante eacute

a banalizaccedilatildeo da duacutevida em torno da amplitude do conceito gecircnero artiacutestico objeto de

estudo eou metodologia de criacutetica e pesquisa que performance pode significar Este

1 Publicado em CARREIRA Andreacute VILLAR Fernando Pinheiro GRAMMONT Guiomar de RAVETTI Graciela e ROJO Sara (orgs) Mediaccedilotildees performaacuteticas latino-americanas (Belo Horizonte FALEUFMG 2003) p 71 - p80 2 Autor encenador e diretor Professor da graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo do Departamento de Artes Cecircnicas do Instituto de Artes da Universidade de Brasiacutelia Graduado na UnB em Artes Plaacutesticas poacutes-graduado em Direccedilatildeo no Drama Studio London e PhD no Queen Mary CollegeUniversity of London Fundador dos grupos Vidas Erradas (83-89) TUCAN (92-08) e CHIA LIIAA (2007) tem trabalhado com diversos grupos artistas e instituiccedilotildees de ensino do Brasil e Europa Professor visitante na University of Manchester e na UNICAMP com vaacuterios artigos publicados e alguns livros organizados sobre teatro performance e hibridismos artiacutesticos contemporacircneos 3 Seminaacuterio preparatoacuterio para o evento performaacutetico artiacutestico Gecircnesis de performances (28 29072002) organizados pelo ex-aluno de Artes Cecircnicas e funcionaacuterio da UnB Magno de Assis

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artigo natildeo elimina duacutevidas sobre performance mas busca discordar de ambas

banalizaccedilatildeo e glamourizaccedilatildeo destas duacutevidas

O tiacutetulo lsquoperformanceSrsquo inicia esta empreitada afirmando a pluralidade do

conceito performance Assumir-se a multiplicidade de significados atrelados ao

significante lsquoperformancersquo eacute condiccedilatildeo inicial para seu entendimento Sabemos que

lsquoperformancersquo tem orientado inspirado eou desobstruiacutedo teorias e praacuteticas de

sociologia antropologia linguiacutestica psicologia filosofia neurologia artes cecircnicas artes

plaacutesticas muacutesica e danccedila entre outros campos de conhecimento Essa amplitude

conceitual pode provocar um desconforto com a abrangecircncia desconcertante e

escorregadia de performance como conceito como objeto de estudo como gecircnero

artiacutestico ou como metodologia de criacutetica e pesquisa

Um dos principais significados aliados ao significante performance eacute o de

desempenho O significado de desempenho afirma a observaccedilatildeo analiacutetica de

comportamentos humanos produtos eletrocircnicos e mecacircnicos ou de atores xampus

transeuntes oacuteleos atletas sapatos de corrida animais fios condutores ou de minerais

Na observaccedilatildeo do desempenho humano performance pode tambeacutem significar

comportamentos que se repetem Ou accedilotildees cotidianas que satildeo ensaiadas ou

preparadas - e observadas Assim sendo uma performance sem consciecircncia do fato de

estar sendo vista como tal pode significar uma performance cotidiana cultural ou social

Para Richard Schechner ldquotudo no comportamento humano indica que performamos

nossa existecircncia especialmente nossa existecircncia socialrdquo (1982 14) Steven Connor

considera que ldquose tornou difiacutecil estarmos seguros onde que uma accedilatildeo termina e uma

performance comeccedilardquo (108) Schechner e Connor datildeo uma ideia do possiacutevel alcance de

performance Este alcance detona diferentes linhas de pesquisa e teorias sobre

performance em campos distintos Pelo recorte optado por esta comunicaccedilatildeo estou me

atendo mais agraves performances artiacutesticas exibiccedilotildees ou accedilotildees declaradas publicamente

como tais accedilotildees conscientes mesmo que liminais construiacutedas e organizadas por

agentes que as mostraratildeo como opccedilatildeo profissional ou amadora entrada franca

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cobrando um ingresso ou distribuindo convite em espaccedilos ao ar livre semi-abertos ou

cobertos

A performance artiacutestica se caracteriza(va) muito pela fuga de qualquer

possibilidade de categorizaccedilatildeo Esta evasatildeo de escaninhos esteacuteticos caracteriza(ria)

aquilo que artistas objetivam(vam) natildeo ser caracterizado Com a heranccedila forte das

Vanguardas Histoacutericas das uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX e das trecircs primeiras

deacutecadas do seacuteculo XX vanguardas do periacuteodo poacutes-Segunda Guerra Mundial

continua(ra)m indo contra restriccedilotildees das possibilidades expressivas das artes e

rechaccedilando definiccedilotildees que se pretendiam definitivas

As Vanguardas Histoacutericas satildeo compostas pelo Simbolismo Expressionismo

Futurismo Construtivismo Dada Surrealismo Bauhaus ou Adolphe Appia Gordon

Craig Isadora Duncan Vsevolod Meyerhold Vladimir Mayakovsky Marcel Duchamp

Antonin Artaud entre tantos outros Darwin Nietzsche Marx Wagner Freud Einstein

Edison nos lembram que a virada do seacuteculo XIX para o XX tambeacutem testemunha uma

crise de conceitos e certezas consideraacutevel Aliados agrave revoluccedilatildeo no pensamento humano

provocada por estes pensadores artistas e cientistas o motor a lacircmpada eleacutetrica

locomotivas teleacutegrafos e o cinema transformam comportamentos e sociedades Ainda

com ecos do idealismo do Romantismo em buscar o intercacircmbio entre diferentes artes

artistas de vaacuterias correntes e tendecircncias deixam um legado de accedilotildees textos e

manifestos que transitam e querem transitar aleacutem das fronteiras convencionais de cada

linguagem Durante todo o seacuteculo XX o impacto das duas guerras mundiais no mesmo

seacuteculo foi refletido diretamente numa arte que promovia a primazia da accedilatildeo

testemunhada de interferecircncia puacuteblica como paliativo passageiro para a impotecircncia do

ser humano diante da destruiccedilatildeo inoacutecua Artistas das Vanguardas Histoacutericas da

primeira e segunda metades do seacuteculo XX questionam entatildeo de forma radical a

convencionalidade de suas linguagens e de seus puacuteblicos no bojo de intensas

transformaccedilotildees econocircmicas sociais e poliacuteticas As fronteiras entre arte e vida se

misturam

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Na entatildeo nova ediccedilatildeo do Oxford Dictionary em 1971 lsquoperformance artrsquo eacute incluiacuteda

no verbete lsquoperformancersquo como uma suposta arte de accedilotildees realizada por artistas

plaacutesticos para plateias presentes Depois da Segunda Guerra Mundial outros termos e

conceitos jaacute tentam acompanhar uma intensa atividade de artistas em torno do eixo

tempo-espaccedilo com testemunhas Estas atividades manipulam nexos com accedilatildeo corporal

e a presenccedila do autor realizando seu processo sua obra ou sua obra em processo para

espectadores visitantes puacuteblico ou testemunhas Uma das tentativas de conceituaccedilatildeo

para estas obras foi lsquointermiacutediarsquo [(intermedia ou interlinguagem)] cunhado em 1967

por Dick Higgins do Fluxus (Higgins 1978) Um ano depois Richard Kostelanetz

defendeu o termo lsquoteatro dos meios misturadosrsquo (Kostelanetz 1970) Mas eacute

lsquoperformance artrsquo nos paiacuteses anglo-saxocircnicos e lsquoperformancersquo em paiacuteses de liacutengua

latina que consegue abarcar uma praacutetica artiacutestica interdisciplinar Sem desconhecer a

heranccedila das Vanguardas Histoacutericas performance art ou performance conteria action

paintings John Cage arte conceitual minimalismo espacialismo Happenings action

art arte corporal aktionism vienense arte feminista art povera parangoleacutes de Oiticica

bichos de Ligia Clark teatro instrumental environments viacutedeo arte colaboraccedilotildees

decollage assemblage arte cineacutetica o neo-dada do Gutai endurance art Flaacutevio

Impeacuterio Artur Barrio ou Laurie Anderson entre tantos outros grupos e artistas

Em 1981 Douglas Davis jaacute propotildee o termo lsquopost-performancismrsquo para defender

uma arte aleacutem do teatro performance ou artes plaacutesticas Em 1992 Josette Feraacutel coloca

performance como o nascimento de um gecircnero com a morte de sua funccedilatildeo anaacuterquica

anti-categorizaccedilotildees Em 1999 Paul Schimmel anuncia a morte de performance art por

volta de 1979 No entanto as referecircncias cruzadas e trocas entre gecircneros hiacutebridos e

mo(vi)mentos foram se acelerando durante as deacutecadas de 1980 e 1990

simultaneamente dificultando e promovendo novos termos e roacutetulos Autores como

Gregory Battcock (1984) RoseLee Goldberg (1984) ou Herbert Blau (1992)

reconhecem que lsquoperformancersquo seria o termo para a contiacutenua expansatildeo do terreno

ampliado que performance art conquistou Utilizando um artigo anterior performance no

final do seacuteculo XX

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[] parece ser um conceito guarda-chuva que abriga uma livre pluralidade de expressotildees cecircnicas socircnicas e visuais Atraveacutes de performance inuacutemeros estudos de diferentes artes revelam um comportamento cuidadoso para evitar novas definiccedilotildees que natildeo respeitem as diferenccedilas e o caraacuteter anaacuterquico das artes em desordenar e escapar de novas categorizaccedilotildees Performance inclui entre outros campos de estudo rituais festas populares comportamento cotidiano linguumliacutestica ciecircncias sociais cultura psicologia [performing self criacutetica em performance] o evento teatral a encenaccedilatildeo de peccedilas drama ou dramaturgia escrita dramaturgia de imagens e outras produccedilotildees multi pluri anti ou interdiscliplinares em frente de plateacuteias em diversos tipos de espaccedilo cecircnico aleacutem do teatro O termo e conceito performance vai contra uma visatildeo logocecircntrica e exclusiva de teatro como lsquoa representaccedilatildeo de dramas eurocecircntricosrsquo (Schechner 1992 9) Para os estudos de teatro a metodologia e sistema de criticismo proposto por performance resgata o irrepetiacutevel efecircmero transitoacuterio momento de exposiccedilatildeo da linguagem cecircnica com a presenccedila de atores e espectadores privilegia-se a performance como um dos principais focos de significados do teatro (Villar de Queiroz 1999 249)

Para os estudos e praacutetica de teatro o texto performaacutetico ou o performance text eacute

um derivado do significante performance fundamental Batendo de frente com a visatildeo

antagocircnica quando exclusivista de teatro como domiacutenio da literatura dramaacutetica o texto

performaacutetico seria o texto da encenaccedilatildeo em curso a mise-en-scegravene fluindo ante e entre

os sentidos dos presentes la puesta en escena acontecendo uma rede intertextual

Ainda haacute uma defasagem da jovem academia de teatro em reconhecer o texto

performaacutetico artiacutestico na linguagem cecircnica Isso pode dever-se em parte agrave

supervalorizaccedilatildeo persistente e descontextualizada historicamente da visatildeo aristoteacutelica

de teatro em Poeacutetica Mais forte razatildeo eacute a impossibilidade do registro da performance

uacutenica irrepetiacutevel efecircmera transitoacuteria Essa impossibilidade caracteriza um choque

frontal com abordagens materialistas de cultura que tem em textos de peccedilas

documentos partituras quadros esculturas monumentos e edifiacutecios suas evidecircncias

para descrever o comportamento humano O viacutedeo o DVD e novas tecnologias alteram

um pouco a impossibilidade de registros do evento aacuteudio-cineacutetico-temporal e visual que

uma performance teatral coreograacutefica musical ou artiacutestica pode ser Novas tecnologias

natildeo podem entretanto cortar a impossibilidade de reproduccedilatildeo de um evento

caracterizado pela junccedilatildeo de pessoas durante sua vida uacutenica que morre para renascer

diferente no proacuteximo dia Como Dyonisus

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A maioria do teatro convencional claacutessico familiar eou teatratildeo e muito do teatro

de pesquisa de artistas com visibilidade internacional e respaldo criacutetico estaria

caracterizado pela representaccedilatildeo de um laacute-entatildeo Este laacute-entatildeo eacute reproduzido em um

palco ou espaccedilo eleito com atores ou atrizes vivendo personagens escritos por um

autor ou autora seguindo marcaccedilotildees de um diretor ou diretora Performance

privilegiaria o aqui-agora do durante da apresentaccedilatildeo seja onde for de uma accedilatildeo

desenrolada e apresentada por seu autor-ator-diretor-encenador-produtor o

performador tenta ser o proacuteprio meio esteacutetico ndash ele ou ela se colocam como linguagem

processo e obra Mas esta diferenciaccedilatildeo pode natildeo resistir ao fato de que o uso atual

quase omnipresente do termo performance abala certezas linguiacutesticas e esteacuteticas

anglo-saxocircnicas e latinas Na liacutengua inglesa por exemplo performance sempre foi

associada agrave apresentaccedilatildeo representaccedilatildeo ou exposiccedilatildeo cecircnica ou musical em frente a

uma plateia e [agrave] interpretaccedilatildeo de artistas Em 1990 o Diccionario Actual de la Lengua

Espantildeola apresenta performance como entre outros significados lsquorepresentacioacuten de

cine y teatrorsquo e lsquoactuacioacuten de un artistarsquo (1219) Estudantes no Brasil me convidam para

assistir a suas performances mesmo que sejam representaccedilotildees naturalistas de

personagens de Calderoacuten de la Barca Shakespeare ou Nelson Rodrigues dirigidos por

um diretor ou uma professora

As aacuteguas de performance e de teatro se confundem e confundem Em 1987 o

diretor e acadecircmico Michael Kirby lembrava que ldquotodo teatro eacute performance mas nem

toda performance eacute teatrordquo (xi) Em 1992 Herbert Blau reconhece sua saudade ldquode um

tempo em que se algueacutem falasse de performance estaria falando de teatrordquo (2) Em

1996 Elin Diamond recorda que ldquose performance eacute o reverso do teatro convencional

teatro tambeacutem eacute o reverso de performancerdquo (4) Em 1997 a artista e professora da New

York University Deb Magolin por exemplo celebra que ldquoperformance eacute um teatro de

inclusatildeo Qualquer um pode fazerrdquo (69) Para vaacuterios criacuteticos acadecircmicos e artistas no

mundo performance seria o teatro poacutes-moderno ou teatro contemporacircneo de

vanguarda

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Ainda persiste uma tendecircncia que considera performance art e performance

como variaccedilotildees da arte teatral Esta tendecircncia convive com uma perspectiva oposta

que exclui teatro da histoacuteria de performance e de performance art Ambas

perspectivas parecem reafirmar concepccedilotildees binaacuterias que natildeo reconhecem um campo

artiacutestico ampliado interdisciplinar aleacutem das disciplinas que se juntaram chocaram-se

ou digladiaram-se ateacute o nascimento de uma outra disciplina linguagem ou objeto que

se independe das matrizes anteriores e continua um caminho proacuteprio Disciplinas

liacutenguas paiacuteses e pessoas satildeo universos em construccedilatildeo e negociaccedilatildeo com seus meios

ambientes A dialeacutetica cultural promove novas disciplinas liacutenguas territoacuterios e

fronteiras mudanccedilas e se o mundo performa o teatro continuaraacute sendo um siacutetio de

performances sobre performances do mundo

Em 1980 Timothy J Wiles lanccedilava o termo lsquoteatro performancersquo para descrever

uma diversidade cecircnica revelada por uma dramaturgia e estilos de interpretaccedilatildeo

distintos do realismo naturalista ou do teatro eacutepico Essa diversidade tambeacutem era

revelada por inovaccedilotildees formais que segundo Wiles haviam criado ldquouma situaccedilatildeo

desconfortaacutevel para todos os historiadores de esteacuteticardquo (112) Com lsquoperformance teatrorsquo

a primazia dada ao texto performaacutetico questiona encapsulamentos da linguagem cecircnica

em limites da literatura dramaacutetica e questiona tambeacutem hierarquias fixas de criaccedilatildeo

direccedilatildeo e autoria Teatro performance transita por diferentes linguagens artiacutesticas

resultando em outra Teatro performance assume um espaccedilo intermediaacuterio

interdisciplinar entre performance art e teatro

Nuances interdisciplinares nas artes e ciecircncias ou obras interdisciplinares

artiacutesticas natildeo podem ser mais ignoradas em sua notoacuteria presenccedila em nossa

contemporaneidade Praacuteticas artisticamente interdisciplinares tecircm uma histoacuteria que

remonta [a] seacuteculos antes de Cristo na praacutetica oriental e ocidental se focarmos o

manual para artiacutesticos cecircnicos indiano Natya-Sastra ou os festivais gregos Artistas

renascentistas italianos e a oacutepera barroca apresentam impulsos interdisciplinares

claros Estes impulsos se aceleram de forma radical nas sucessivas transformaccedilotildees

esteacuteticas promovidas pelas vanguardas do seacuteculo XX Poacutes 1968 e poacutes performance art

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tanto o omnipresente conceito metodologia de pesquisa e criacutetica de performance

quanto as performances artiacutesticas desenvolvidas nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo

XX reforccedilam a necessidade de abordar-se interdisciplinaridade entre as artes

Esta breviacutessima perspectiva histoacuterica objetiva apontar uma presenccedila e uma

necessidade de estudos de um fenocircmeno interdisciplinar entre as artes Entretanto

assim como performance interdisciplinaridade tambeacutem pode ter uso indevido ou

diletante dentro dos muacuteltiplos acircngulos e mundos simultacircneos e paradoxais da

supermodernidade Tambeacutem como performance lsquointerdisciplinaridadersquo tem desafiado

certezas epistemoloacutegicas

Na uacuteltima deacutecada podemos encontrar novas propostas em torno de

disciplinaridades Judith Butler (1990) e Baz Englers (1996) propotildeem a discussatildeo de

lsquopoacutes-disciplinaridadesrsquo Dwight Conquergood e Joseph Roach definem performance

para Marvin Carlson como uma lsquoanti-disciplinarsquo (189) Fechando a deacutecada Roy Ascott

usa o termo lsquoumiacutediarsquo (moistmedia) para descrever um lsquointerespaccedilo entre o mundo seco

da virtualidade e o mundo molhado da naturezarsquo (9)

Transdisciplinaridade poacutes-disciplinaridades anti-disciplinas e umiacutedias atestam

todas processos interdisciplinares Como interdisciplinas artiacutesticas poacutes-disciplinas anti-

disciplinas e umiacutedias satildeo lsquointermiacutediasrsquo satildeo resultantes de disciplinas que dialogaram ou

digladiaram-se atraveacutes de encontro troca negociaccedilotildees eou choque gerando uma

nova disciplina Assim sendo meu entendimento de interdisciplinaridade natildeo confere

com o simples juntar de disciplinas diferentes ou muito menos com o improdutivo de

realidades pseudo interdisciplinares que natildeo se tocam nem se trocam Investigo

interdisciplinaridade artiacutestica para estudar ensinar e praticar negociaccedilotildees e

intercacircmbios entre diferentes linguagens ou disciplinas artiacutesticas que resultaram em

novos campos de accedilatildeo em outros territoacuterios de mutaccedilatildeo artiacutestica e de possibilidades

expressivas Interdisciplinas artiacutesticas seriam entatildeo outras disciplinas ou intermiacutedias

tais como as jaacute citadas performance art e teatro performance danccedila teatro butoh

muacutesica teatro arte computacional teatro acuacutestico teatro digital instalaccedilatildeo roboacutetica

criacutetica em performance ou viacutedeo poesia

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Terroristas oficiais e disfarccedilados continuam a defender fronteiras imutaacuteveis e a

dividir pessoas quando soacute existe uma raccedila a humana Enquanto a natureza se delicia

com a diversidade interesses econocircmicos impotildeem modelos hegemocircnicos injustos e

uniformizantes que querem evitar a particularidade a convivecircncia ou a diferenccedila Os

mercados globalizados nos orgasmos muacuteltiplos do capitalismo selvagem conquistam

novas trilhas para o livre fluir de capitais mas natildeo de pessoas

A paz o livre exerciacutecio de sexualidades igualdade novas fronteiras e o

assentamento de pessoas em condiccedilotildees mais justas satildeo evitados no Brasil e no mundo

por problemas pessoais mal resolvidos interesses escusos e paranoias

governamentais Como lembrou Lucia Sander em palestra-performance em Maceioacute

neste ano Einstein dizia que ldquoeacute mais faacutecil dividir um aacutetomo que destruir um

preconceitordquo E Susan Sontag afirmou anos depois que a histoacuteria do preconceito eacute tatildeo

antiga quanto a histoacuteria das questotildees pessoais mal resolvidas As artes incluindo

performance e outras interdisciplinas artiacutesticas vazam esses escudos anti-

transformaccedilotildees e tentam exemplificar outras possibilidades de outros mundos

simultacircneos e distintos que se trocam e produzem outros mundos inclusivos e

questionadores de absolutismos restringentes A batalha continua sintomaacutetica

enigmaacutetica e performaacutetica

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DUTRA Pacircmela Goumlethel WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim ACCORSI Ana Maria Bueno Estudo sobre a

participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 120-

141 juldez 2016 Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

Estudo sobre a participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental

Pacircmela Goumlethel Dutra1 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel2

Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Ana Maria Bueno Accorsi3 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Resumo O artigo apresenta a pesquisa com um grupo instrumental em uma escola puacuteblica municipal em TaquariRS Partiu dos questionamentos Qual o significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental Quais as expectativas dos estudantes que participam desses grupos Qual a influecircncia da muacutesica para estes participantes Quais as expectativas de estudantes familiares e comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre o envolvimento dos familiares dos estudantes O objetivo foi compreender a importacircncia da participaccedilatildeo em um grupo instrumental escolar Constatou-se a importacircncia da participaccedilatildeo no grupo instrumental apontado por todos investigados Entende-se que esta pesquisa contribua para a construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para a educaccedilatildeo musical nas escolas bem como para a implementaccedilatildeo da legislaccedilatildeo que dispotildee sobre a inserccedilatildeo da muacutesica no Brasil Palavras-chave Educaccedilatildeo musical grupos instrumentais muacutesica na Educaccedilatildeo Baacutesica

1 Estudante do curso de Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Musical na Universidade Estadual pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Licenciada em Pedagogia pelo Centro Universitaacuterio Leonardo da Vinci Cursando o 9ordm semestre de licenciatura em Muacutesica pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Participou do grupo de pesquisa na Uergs intitulado Educaccedilatildeo Musical diferentes tempos e espaccedilos com linhas de pesquisas sobre processos de ensino e aprendizado em muacutesica e poliacuteticas em Educaccedilatildeo Musical Professora de muacutesica do municiacutepio de Taquari- RS desde 2013 no qual atua em atividades de Educaccedilatildeo Musical no curriacuteculo do ensino baacutesico nos anos iniciais e finais do ensino fundamental e em atividades escolares no extracurricular com aulas de instrumentos e na formaccedilatildeo de grupos instrumentais bandas marciais e coro infanto-juvenil 2 Doutora e Mestre em Educaccedilatildeo Musical pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Especialista em Informaacutetica na Educaccedilatildeo Ecircnfase em Instrumentaccedilatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul Licenciada em Muacutesica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Coordena o curso de Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Musical na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Unidade de Montenegro Eacute coordenadora da Aacuterea Muacutesica do Programa de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia em Montenegro da CAPESUERGS Coordena a Comissatildeo de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo da Uergs-Montenegro orientando bolsistas de iniciaccedilatildeo cientiacutefica em muacutesica e artes da FAPERGS CNPq e UERGS Eacute coordenadora dos grupos de pesquisa registrados no CNPq Arte criaccedilatildeo interdisciplinaridade e educaccedilatildeo e Educaccedilatildeo Musical diferentes tempos e espaccedilos Coordena o Programa de Extensatildeo Universitaacuteria do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo pela Uergs Eacute Diretora Cientiacutefica da Coleccedilatildeo Educaccedilatildeo Musical da Editora Prismas de Curitiba Faz parte da Comissatildeo Gauacutecha de Folclore e da Fundaccedilatildeo Santos Herrmann Eacute integrante da Academia Montenegrina de Letras ocupando a Cadeira nordm5 Faz parte da Associaccedilatildeo Montenegrina de Escritores 3 Possui graduaccedilatildeo em Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (1976) mestrado em Linguumliacutestica e Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (1999) e doutorado em Linguumliacutestica e Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (2005) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e Consultora Terapecircutica em Dependecircncia Quiacutemica Coordena o Curso de Licenciatura em Letras Portuguecircs e Literaturas de Liacutengua Portuguesa e o Curso de Especializaccedilatildeo Teoria e Praacutetica da Formaccedilatildeo do Leitor

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Abstract The article presents the research with an instrumental group at a municipal public school in TaquariRS The research started from the questions What is the meaning of student participation in an instrumental group What are the expectations of the students participating in these groups What is the influence of music on these participants What are the expectations of students families and the school community in relation to the group How does the involvement of the students family members occur The objective was to understand the importance of participation in a school instrumental group It was verified the importance of the participation in the instrumental group indicated by all investigated It is understood that this research contributes to the construction of public policies for music education in schools as well as for the implementation of the legislation that regulates the insertion of music in Brazil Keywords Musical education instrumental musical groups music in Basic Education

Introduccedilatildeo

As diversas possibilidades de inserccedilatildeo da muacutesica na escola conquistaram

legitimidade com a Lei nordm 11769 de 18 de agosto de 2008 Mais recentemente em

3 de maio de 2016 foi publicada a Lei nordm 13278 que incluiu artes visuais danccedila

muacutesica e teatro nos curriacuteculos dos diversos niacuteveis da Educaccedilatildeo Baacutesica A nova

legislaccedilatildeo altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional nordm 9394 de

1996 (LDB 93941996) estabelecendo um prazo de cinco anos para que os

sistemas de ensino promovam a formaccedilatildeo de professores para implantar esses

componentes curriculares nas escolas A partir dessas leis tem-se a obrigatoriedade

da inclusatildeo da muacutesica no curriacuteculo das escolas Neste sentido pode-se pensar na

diversidade dos modos de a muacutesica se configurar na escola inclusive como

atividade extracurricular Nesse sentido Wolffenbuumlttel (2014) aponta

Muitas vezes as escolas optam pelo desenvolvimento de determinadas atividades - dentre essas as musicais - em outras dimensotildees que natildeo as tradicionais relacionadas com tempos e espaccedilos curriculares Surgem assim as atividades extracurriculares como alternativas para o ensino

escolar (WOLFFENBUumlTTEL 2014 p 56)

Percebe-se portanto que as atividades musicais extracurriculares

possibilitam a inserccedilatildeo da muacutesica se assim for a opccedilatildeo da escola Poreacutem natildeo

inviabilizam a implementaccedilatildeo da muacutesica no ensino regular da mesma instituiccedilatildeo

podendo a escola oferecer tanto atividades musicais no ensino regular quanto

extracurricular

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Sobre as funccedilotildees sociais envolvidas nas praacuteticas instrumentais de grupos

musicais Bozzetto (2012) aponta a importacircncia da participaccedilatildeo de crianccedilas e jovens

em projetos que envolvam atividades musicais Em sua anaacutelise a autora afirma

A importacircncia de que projetos que satildeo erguidos com a funccedilatildeo de inserccedilatildeo social atraveacutes da muacutesica mantenham viva e coerente essa afirmativa cientes de que dar a oportunidade a uma crianccedila e jovem notadamente de camadas de baixa renda eacute abrir um mundo de possibilidades que com o tempo de convivecircncia podem se tornar uma referecircncia de mundo social para toda uma vida (BOZZETTO 2012 p 266)

Bozzetto (2012) finaliza essa discussatildeo refletindo sobre a necessidade de os

projetos sociais entenderem seu papel de inclusatildeo social destacando que a tarefa

do educador musical eacute a de ldquocontribuir para uma educaccedilatildeo musical mais justa e

humana e da importacircncia de sua inserccedilatildeo em projetos que reconheccedilam a praacutetica

musical como oportunidade de inclusatildeo socialrdquo (p 266)

Joly e Joly (2011) investigaram as praacuteticas sociais e os processos educativos

que acontecem em ambiente de orquestra No sentido das praacuteticas sociais as

autoras refletem sobre as ldquorelaccedilotildees que se estabelecem entre pessoas pessoas e

comunidade na qual se inserem pessoas e grupos grupos entre si grupos e

sociedade mais amplardquo (p 80)

De acordo com Bastiatildeo (2012) nosso paiacutes eacute multicultural possuindo vaacuterias

culturas diferentes e cada regiatildeo possui uma manifestaccedilatildeo folcloacuterica musical

proacutepria Nesse sentido o educador musical poderaacute atraveacutes da praacutetica de conjunto

trabalhar esse contexto ldquodadas a riqueza e a diversidade da muacutesica popular

brasileira ndash observam-se a valorizaccedilatildeo e a inserccedilatildeo das muacutesicas e manifestaccedilotildees da

cultura oral nos contextos acadecircmico e regular de ensinordquo (p 60)

Entende-se que atividades que envolvem grupos instrumentais nos quais a

praacutetica de conjunto estaacute inserida no seu cotidiano contemplam o que os Paracircmetros

Curriculares Nacionais (PCNs) tratam sobre os objetivos de expressatildeo e

comunicaccedilatildeo em muacutesica tais como

Improvisaccedilatildeo composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeo com instrumentos musicais tais como flauta percussatildeo etc eou vozes (observando tessitura e questatildeo de muda vocal) fazendo uso de teacutecnicas instrumental e vocal baacutesicas participando de conjuntos instrumentais eou vocais desenvolvendo autoconfianccedila senso criacutetico e atitude de cooperaccedilatildeo (BRASIL 1998 p 83)

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Ainda no que tange aos PCNs satildeo relacionados objetivos de interpretaccedilatildeo

acompanhamento recriaccedilatildeo e realizaccedilatildeo de arranjos

Arranjos de muacutesica do meio sociocultural e do patrimocircnio musical construiacutedo pela humanidade nos diferentes espaccedilos geograacuteficos eacutepocas povos culturas e etnias tocando eou cantando individualmente eou em grupo (banda canto coral e outros) construindo relaccedilotildees de respeito e diaacutelogo (BRASIL 1998 p 83)

Considerando-se a potencialidade da muacutesica na escola bem como a

existecircncia de atividades extracurriculares caracterizadas como organizaccedilotildees de

grupos instrumentais em diversas escolas alguns questionamentos surgiram Qual o

significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental Quais as

expectativas dos estudantes que participam destes grupos Qual a influecircncia da

muacutesica para esses participantes Quais as expectativas de estudantes familiares e

comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre o envolvimento dos

familiares dos estudantes Esta pesquisa portanto objetivou compreender a

importacircncia de fazer parte de um grupo instrumental escolar

O Grupo Instrumental Investigado

A investigaccedilatildeo sobre a importacircncia da participaccedilatildeo em um grupo instrumental

escolar originou-se a partir da inserccedilatildeo de uma das autoras deste artigo como

professora de muacutesica em uma escola puacuteblica municipal em TaquariRS O foco da

pesquisa deu-se a partir dessa atuaccedilatildeo considerando-se as atividades no

contraturno escolar

Os ensaios do grupo ocorrem uma vez por semana no uacuteltimo periacuteodo do

turno da tarde apoacutes as aulas coletivas de instrumentos de sopro Contando com

catorze estudantes de 10 a 18 anos de idade a atividade oportuniza a

experimentaccedilatildeo e o manuseio de diversos instrumentos musicais permitindo muitos

aprendizados importantes para o desenvolvimento musical dos estudantes

Atraveacutes da aquisiccedilatildeo de variados instrumentos musicais o grupo tem tido a

possibilidade de fazer apresentaccedilotildees em variadas configuraccedilotildees grupais incluindo

o formato de banda marcial possibilitando aos estudantes experimentar e manusear

uma diversidade musical

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Esta praacutetica extrapola os tempos e espaccedilos escolares agregando pessoas da

comunidade bem como egressos que continuam participando das atividades

musicais O grupo instrumental faz apresentaccedilotildees locais incluindo o comeacutercio local

as instituiccedilotildees beneficentes aleacutem das demais regiotildees do municiacutepio e de fora dele

Metodologia

A proposta metodoloacutegica desta investigaccedilatildeo incluiu a abordagem qualitativa o

meacutetodo estudo de caso e entrevistas e observaccedilotildees como teacutecnicas para a coleta dos

dados A anaacutelise dos dados consistiu na anaacutelise de conteuacutedo

A Abordagem Qualitativa

Para a pesquisa foi utilizada a abordagem qualitativa Martins (2004) explica

que a ldquometodologia qualitativa mais do que qualquer outra levanta questotildees eacuteticas

principalmente devido agrave proximidade entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 295)

Aleacutem disso eacute a partir de cada dado coletado conforme suas caracteriacutesticas que se

faz uma interaccedilatildeo entre os conteuacutedos atraveacutes dessa interaccedilatildeo a pesquisa traz suas

impressotildees e percepccedilotildees

A razatildeo para a escolha da abordagem qualitativa para realizaccedilatildeo deste

trabalho relacionou-se ao fato de a mesma possibilitar a reflexatildeo sobre a

participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental no contexto escolar e na

sociedade em que estatildeo inseridos

O Estudo de Caso

O estudo de caso caracteriza-se por atender a determinado objetivo atraveacutes

da investigaccedilatildeo de um caso especiacutefico Eacute muito utilizado quando se pretende

compreender explorar ou descrever acontecimentos e contextos complexos nos

quais estatildeo simultaneamente envolvidos diversos fatores Para Yin (2001) o estudo

de caso ldquocontribui de forma inigualaacutevel para a compreensatildeo que temos dos

fenocircmenos individuais organizacionais sociais e poliacuteticosrdquo (p 21)

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As Entrevistas Semiestruturadas

As entrevistas semiestruturadas permitiram aprofundar as questotildees

especiacuteficas desta pesquisa A entrevista semiestruturada eacute uma ldquoseacuterie de perguntas

abertas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o entrevistador

pode acrescentar perguntas de esclarecimentordquo (LAVILLE DIONE p 188) Todas

as entrevistas foram realizadas na escola na qual existe o grupo instrumental em

horaacuterios previamente combinados

Ao todo foram feitas cinco entrevistas sendo as mesmas realizadas com dois

estudantes integrantes do grupo instrumental com a matildee de um dos estudantes

com a diretora da escola e com uma professora Como acontece nas entrevistas do

tipo semiestruturada seguiu-se um roteiro mas com a possibilidade de serem

acrescidas outras perguntas conforme necessaacuterio

Considerando-se a escolha dos entrevistados foram seguidos alguns

criteacuterios Selecionou-se um estudante (denominado Estudante J) que participa do

grupo desde o iniacutecio das atividades Neste caso suas informaccedilotildees poderiam

fornecer uma visatildeo geral sobre a importacircncia de participar do grupo haacute mais tempo

O outro estudante (denominado Estudante W) foi escolhido por ter ingressado

recentemente no grupo instrumental e poderia fornecer outra visatildeo a respeito desta

participaccedilatildeo Deste modo aleacutem de ambos os estudantes terem concordado com a

participaccedilatildeo na pesquisa e de terem tempo disponiacutevel para serem entrevistados

eles poderiam contribuir com as informaccedilotildees sobre sua participaccedilatildeo mas tendo

tempos de participaccedilatildeo diferentes no grupo Foi entrevistada tambeacutem a matildee do

Estudante J que participa desde o iniacutecio das atividades do grupo instrumental A

professora que participou da pesquisa foi selecionada por ser docente na escola em

que o grupo instrumental tem suas atividades aleacutem de ter lecionado para os

estudantes investigados Adicionalmente esclarece-se que a professora concordou

em fornecer a entrevista e teve tempo para a mesma Por fim a diretora foi

entrevistada por ter importantes contribuiccedilotildees para a pesquisa considerando-se sua

visatildeo como gestora da escola

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A Anaacutelise dos Dados

Para a realizaccedilatildeo da anaacutelise dos dados coletados nesta investigaccedilatildeo utilizou-

se a anaacutelise de conteuacutedo a partir da proposta de Moraes (1999) Para Moraes

(1999) a anaacutelise de conteuacutedo ldquoconstitui uma metodologia de pesquisa usada para

descrever e interpretar o conteuacutedo de toda classe de documentos e textosrdquo (p 2) A

anaacutelise de conteuacutedo viabilizou a anaacutelise dos dados transcritos tendo contato com

diversos textos corroborando a conclusatildeo da anaacutelise sobre o assunto da pesquisa

atingindo assim os objetivos

Para a realizaccedilatildeo desta anaacutelise alguns procedimentos foram necessaacuterios

como as etapas que Moraes (1999) propotildee tais como a ldquopreparaccedilatildeo das

informaccedilotildeesrdquo a qual foi feita por meio de entrevistas semiestruturadas Deve-se

salientar que as entrevistas foram gravadas no gravador de aacuteudio do celular Apoacutes a

realizaccedilatildeo das entrevistas as mesmas foram integralmente transcritas Efetuadas as

transcriccedilotildees das cinco entrevistas todas passaram pelo processo de revisatildeo e

textualizaccedilatildeo a fim de ajustar possiacuteveis inconsistecircncias de dados ou mesmo

correccedilotildees ortograacuteficas e gramaticais necessaacuterias

Para Moraes (1999) este procedimento eacute importante para iniciar o processo

de codificaccedilatildeo dos materiais estabelecendo um coacutedigo que possibilite identificar

rapidamente cada elemento da amostra de depoimentos ou documentos a serem

analisados

Todo este processo resultou na constituiccedilatildeo de um caderno denominado

Caderno de Entrevistas 2015 (C E 2015) contendo as entrevistas dos estudantes

J e W da matildee do Estudante J da professora e da diretora da escola

Posteriormente este Caderno de Entrevistas 2015 passou por uma leitura

minuciosa considerando-se o processo de ldquounitarizaccedilatildeordquo proposto por Moraes

(1999) servindo de base para as etapas subsequentes quais sejam a

categorizaccedilatildeo e a anaacutelise dos dados Aleacutem do Caderno de Entrevistas tambeacutem foi

constituiacutedo outro caderno denominado Caderno de Categorizaccedilatildeo 2015 (C C

2015) A categorizaccedilatildeo consiste em um procedimento de ldquoagrupar dados

considerando a parte comum existente entre eles Classifica-se por semelhanccedila ou

analogia segundo criteacuterios previamente estabelecidos ou definidos no processordquo

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(MORAES 1999 p 6) Neste caderno os dados coletados foram separados por

categorias sendo que posteriormente depois de rigorosa anaacutelise das categorias

criadas compuseram os Resultados e a Anaacutelise dos Dados juntamente com a

realizaccedilatildeo da anaacutelise fundamentada no referencial teoacuterico desta pesquisa Salienta-

se que estas atividades foram precedidas de uma cuidadosa e ampla leitura do texto

final

Aleacutem dos cadernos mencionados foi constituiacutedo um Caderno de Fotografias

2015 (C F 2015) no qual se encontram as imagens dos eventos dos quais o grupo

instrumental participou servindo como complemento para a anaacutelise dos dados

Desse modo considerando-se o material coletado e organizado resultaram

as seguintes categorias de anaacutelise Os Entrevistados A Importacircncia da Participaccedilatildeo

dos Estudantes nas Atividades do Grupo Instrumental Influecircncias de Participar em

um Grupo Instrumental para a vida dos Estudantes Participantes e Familiares

Envolvidos Expectativas em Relaccedilatildeo agraves Atividades Instrumentais Estas categorias

foram analisadas a partir de um referencial teoacuterico da educaccedilatildeo musical o qual eacute

apresentado a seguir

Referencial Teoacuterico

O referencial teoacuterico selecionado para a anaacutelise dos dados desta investigaccedilatildeo

sobre a importacircncia da participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental

escolar foi constituiacutedo por conceitos de educaccedilatildeo musical e do desenvolvimento

musical de crianccedilas e adolescentes

A Educaccedilatildeo Musical

Kraemer (2000) trata da questatildeo epistemoloacutegica da educaccedilatildeo musical dentre

outros assuntos pertinentes ao tema Define como pedagogia da muacutesica o campo da

educaccedilatildeo musical explicando que a pedagogia da muacutesica ldquodivide seu objeto com as

disciplinas chamadas ciecircncias humanas filosofia antropologia sociologia ciecircncias

poliacuteticas histoacuteriardquo Para Kraemer (2000) ldquoeacute dada a relaccedilatildeo com a musicologia

(assim como com a praacutetica da muacutesica e a vida musical)rdquo (p 52) A psicologia da

muacutesica ldquoinvestiga o comportamento musical e as vivecircncias musicaisrdquo (p 55) e a

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sociologia da muacutesica ldquoas condiccedilotildees sociais e os efeitos da muacutesica assim como

relaccedilotildees sociais que estejam relacionadas agrave muacutesicardquo (p 57)

A partir desses fatores trazidos pelo autor eacute possiacutevel constatar o quanto eacute

vasto o campo da educaccedilatildeo musical agregando a muacutesica a vaacuterias aacutereas do

conhecimento e podendo ser trabalhada dentro dessas linguagens Assim cada

aspecto tem importantes contribuiccedilotildees para o conhecimento musical num todo

Assim como a pedagogia acrescenta em sua didaacutetica e se complementa com

as outras aacutereas do conhecimento para ter mais ecircxito no ensino-aprendizagem e na

relaccedilatildeo estudante-professor podemos fazer o mesmo com a muacutesica agregando

essas aacutereas no fazer didaacutetico-musical Satildeo aacutereas que se complementam em

diversas situaccedilotildees Desse modo a muacutesica tem um papel integrador e

transdisciplinar assim como o papel da pedagogia que considera ldquoa vida humana

sob aspectos da educaccedilatildeo formaccedilatildeo instruccedilatildeo e didaacuteticardquo (KRAEMER 2000 p

60)

Eacute necessaacuterio que na muacutesica assim como na pedagogia existam esses

olhares num contexto amplo da educaccedilatildeo observando todos os aspectos relevantes

no desenvolvimento integral do estudante independente de como a disciplina estaacute

inserida na escola seja de forma curricular ou extracurricular Eacute importante que os

professores de muacutesica considerem a educaccedilatildeo musical como um todo objetivando a

formaccedilatildeo do cidadatildeo Natildeo se desconsidera a teacutecnica da execuccedilatildeo musical

igualmente importante Todavia outros conceitos que fazem parte da educaccedilatildeo

musical satildeo igualmente necessaacuterios

Englobando aspectos socioloacutegicos nos quais eacute observado o comportamento

de uma determinada sociedade e a forma com que se organizam no tempo livre e

trabalho Kraemer (2000) relaciona a muacutesica agrave sociologia explicando

A sociologia da muacutesica examina as condiccedilotildees sociais e os efeitos da muacutesica assim como relaccedilotildees sociais que estejam relacionadas com a muacutesica Ela considera o manuseio com a muacutesica como um processo social e analisa o comportamento do homem relacionado com a muacutesica em direccedilatildeo agraves influecircncias sociais instituiccedilotildees e grupos (KRAEMER 2000 p 57)

Para Swanwick (2003) eacute fundamental unir atividades de execuccedilatildeo

apreciaccedilatildeo e criaccedilatildeo para que os estudantes se desenvolvam artisticamente O foco

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reside especialmente no que acontece quando a pessoa se relaciona com muacutesica

no fazer musical

Swanwick (2003) propotildee trecircs atividades principais na muacutesica compor ouvir

muacutesica e tocaacute-la Ele reuacutene estas atividades em sua proposta conhecida no Brasil

como TECLA constituiacuteda pelo estudo da histoacuteria da muacutesica (literatura) e pela

aquisiccedilatildeo de habilidades (em inglecircs skill aquisition) denominado de teacutecnica Tem-

se assim T de teacutecnica E de execuccedilatildeo C de composiccedilatildeo L de literatura e A de

apreciaccedilatildeo E atraveacutes de sua proposta o autor aborda diversos fatores que

envolvem esse contexto Conceitos a se considerar em qualquer lugar em que o

educador musical possa estar atuando assim como os de Kraemer (2000) seja em

sala de aula anos iniciais e finais ou em um coro um grupo instrumental ou banda

escolar ou marcial com crianccedilas jovens ou adultos Onde haacute pessoas que de

alguma forma estatildeo se relacionando com muacutesica essas concepccedilotildees podem ser

utilizadas

O Desenvolvimento Musical de Crianccedilas e Adolescentes

O estudante ao se identificar com o que estaacute sendo proposto nas atividades

de ensino e aprendizagem no caso de atividades instrumentais em que o estudante

eacute considerado como um propositor e natildeo apenas plateia sentir-se-aacute responsaacutevel

pelas atividades e pelo sucesso das mesmas O estudante se sente valorizado o

que aumenta sua autoestima colabora para seu desenvolvimento pessoal no

sentido intelectual resultando familiarizaccedilatildeo e encantamento com o fazer musical

Nesse sentido Swanwick (2003) discorre sobre a importacircncia de ldquoconsiderar

o discurso musical dos alunosrdquo A partir daiacute o discurso ldquoconversaccedilatildeo musical natildeo

pode ser nunca um monoacutelogo Cada estudante traz consigo um domiacutenio de

compreensatildeo musical quando chega a nossas instituiccedilotildees educacionaisrdquo

(SWANWICK 2003 p 66)

Considerando a muacutesica como discurso ldquoprocederemos baseados na ideia de

que ela pode fazer uma diferenccedila na maneira como vivemos e como podemos

refletir sobre nossa vidardquo (SWANWICK 2003 p 78) Despertar no estudante o

encantamento com o fazer musical oportunizando a compreensatildeo dos aspectos

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musicais Swanwick (2003) explica que as ldquoteacutecnicas e manuseio de materiais

sonoros satildeo importantes mas sabemos que eles natildeo satildeo a soma total da

compreensatildeo musicalrdquo (p 67) Mesmo em grupos musicais que tecircm por base as

atividades instrumentais de aprendizagem de instrumento e praacutetica de conjunto

existem diversas possibilidades para alcanccedilar os objetivos musicais propostos

sensibilizando para a aprendizagem musical

Conforme Wolffenbuumlttel (2014) as atividades extracurriculares servem como

ldquoperspectiva de ampliaccedilatildeo das possibilidades das escolas Estudos realizados em

diferentes paiacuteses sugerem que as atividades extracurriculares satildeo capazes de

contribuir para o desenvolvimento dos alunosrdquo (p 56)

Em relaccedilatildeo agraves possibilidades musicais para desenvolver a compreensatildeo

musical Swanwick (2003) aponta a importacircncia de os estudantes terem ldquoa

oportunidade de produzir e responder agrave muacutesica em todas as camadas do discurso

musical qualquer que seja a atividaderdquo (SWANWICK 2003 p 97) As atividades

musicais em grupos instrumentais contemplam o que os PCNs sugerem para as

atividades musicais no que se refere agrave ldquoCriaccedilatildeo a partir do aprendizado de

instrumentos do canto de materiais sonoros diversos e da utilizaccedilatildeo do corpo como

instrumento procurando o domiacutenio de conteuacutedos da linguagem musicalrdquo (BRASIL

1998 p 83)

Resultados e Anaacutelise dos Dados

A partir da anaacutelise dos dados resultaram quatro categorias Os Entrevistados

A Importacircncia da Participaccedilatildeo dos Estudantes nas Atividades do Grupo

Instrumental Influecircncias de Participar em um Grupo Instrumental para a vida dos

Estudantes Participantes e Familiares Envolvidos Expectativas em Relaccedilatildeo agraves

Atividades Instrumentais

Os Entrevistados

Foram entrevistadas cinco pessoas dois estudantes a matildee de um dos

estudantes uma professora e a diretora da escola

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Um dos estudantes do grupo instrumental o Estudante J participa das

atividades musicais extracurriculares desde abril de 2013 ele iniciou com aulas de

flauta doce e apoacutes a criaccedilatildeo do grupo instrumental teve a oportunidade de

experimentar e manusear outros instrumentos musicais iniciando seus estudos no

saxofone alto o qual toca no grupo ateacute os dias de hoje Seu pai e seu avocirc tambeacutem

tocam instrumentos musicais sendo que desde crianccedila o Estudante J disse

conviver com essas audiccedilotildees tendo aprendido muacutesica e em especial as noccedilotildees de

ritmo atraveacutes do ensinamento de seus familiares (C E 2015 p 11) O Estudante J

salientou que gosta muito de escutar muacutesica sertaneja muacutesica gauacutecha e vaacuterios

outros gecircneros musicais (C E 2015 p 12)

O Estudante W que tem 18 anos de idade participa das atividades do grupo

instrumental desde junho de 2014 tendo comeccedilado a tocar o instrumento musical

metalofone apoacutes a flauta doce este estudante iniciou seus estudos no saxofone alto

desde o iniacutecio de 2015 O Estudante W continuou no grupo instrumental mesmo

apoacutes sua saiacuteda da escola devido ao teacutermino de seus estudos no Ensino

Fundamental Este estudante explicou que nunca foi reprovado mas devido a

problemas familiares parou de estudar por um determinado tempo Diferentemente

do Estudante J o Estudante W natildeo tem familiares com conhecimentos musicais

sendo o primeiro a ter contato com a muacutesica na escola (C E 2015 p 7) O

Estudante W explicou que costuma escutar muacutesica em casa todos os dias

raramente assiste agrave televisatildeo e gosta muito de ouvir muacutesica sertaneja (C E 2015

p 9) Ele relatou que quase todo o dia pratica estudos no saxofone alto ou tem

contato com o instrumento mesmo que seja somente para fazer os procedimentos

de limpeza (C E 2015 p 8)

Eacute possiacutevel apoacutes caracterizar os estudantes organizar e categorizar suas

falas apontar aspectos relativos aos seus gostos e preferecircncias musicais Nesse

sentido Swanwick (2003) postula a necessidade dessa praacutetica de ldquoconsiderar o

discurso musical dos alunosrdquo (p 66) pois estes ao se apresentarem trazem suas

identidades musicais E nesse sentido considerar o discurso musical nos ensaios

do grupo instrumental foi um dos importantes procedimentos realizados

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Em relaccedilatildeo agrave famiacutelia foi entrevistada a matildee do Estudante J o qual eacute

participante do grupo instrumental desde 2013 tambeacutem entrevistado nessa

pesquisa

Representando os professores de sala de aula dos estudantes participantes

do grupo instrumental foi entrevistada a professora do componente curricular de

matemaacutetica Ela leciona para as turmas do 5ordm ao 9ordm ano fazendo parte do processo

de ensino e aprendizagem de estudantes de diferentes faixas etaacuterias que satildeo

participantes do grupo

Por fim da equipe diretiva da escola foi entrevistada a diretora a qual ocupa

este cargo de gestatildeo desde abril de 2014 Anteriormente era vice-diretora da

escola

A Importacircncia da Participaccedilatildeo de Estudantes nas Atividades do Grupo Instrumental

A partir da realizaccedilatildeo desta pesquisa constatou-se a importacircncia que o grupo

instrumental tem na vida de todos os envolvidos com este tipo de trabalho Quer

sejam os estudantes que participam do grupo quer sejam as famiacutelias ndash nesta

pesquisa caracterizadas pela entrevista com uma matildee ndash quer sejam os professores

que trabalham com esses estudantes que estatildeo participando do grupo e com

certeza a equipe diretiva caracterizada pela diretora todos percebem esta

importacircncia Cada um do seu modo demonstrou a intensidade da importacircncia desta

participaccedilatildeo

Os estudantes percebem que ao participarem do grupo instrumental aleacutem de

gostarem eles constatam diversos aprendizados tanto musicais quanto

extramusicais A este respeito o Estudante W relatou ldquoPercebo que para mim

ajudou bastante e eu acho que as pessoas gostam do que a gente faz bem dizer

assimrdquo (C E 2015 p 7)

Em outro momento da entrevista o Estudante W explicou sobre sua

socializaccedilatildeo no grupo e em relaccedilatildeo ao rendimento escolar De acordo com seu

depoimento ldquoAcho bom fiz vaacuterias amizades tambeacutem e gosto das apresentaccedilotildees

Sinto-me bem agrave vontade E melhorei meu rendimento bastante e a aprendizagemrdquo

(C E 2015 p 7)

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Quanto agrave oportunidade que lhe foi dada em relaccedilatildeo agrave muacutesica de participar do

grupo musical o Estudante W salientou este aspecto explicando ldquoSempre gostei de

muacutesica e nunca tinha tido a oportunidade de entrar e acabei gostando muitordquo (C E

2015 p 7)

O Estudante J outro entrevistado nesta pesquisa a respeito de seu apreccedilo

pelas aulas de instrumento explicou ldquoEu gosto muito das aulas eacute bom estar aqui

[na escola] estudando muacutesica e aprendendo outros instrumentos novos isso eacute bem

legalrdquo (C E 2015 p 11)

A matildee do Estudante J explicou sobre como percebe a participaccedilatildeo de seu

filho bem como sobre o que esta participaccedilatildeo resulta na famiacutelia modificando-a

inclusive

Ele gosta muito chega a hora de vir natildeo interessa se estaacute chovendo ou se natildeo estaacute ele [seu filho] se arruma e vem [agrave escola] de qualquer jeito Ele gosta muito isso foi uma coisa que vocecircs [da escola] fizeram que foi oacutetimo neacute [] Porque ele fica faceiro chega na hora ele guarda aquele instrumento com muito carinho muito bem guardado Ele gosta muito mesmo (C E 2015 p 3)

A professora dos estudantes que participam do grupo instrumental tambeacutem

observou o reflexo desta participaccedilatildeo no seu trabalho pedagoacutegico no cotidiano da

escola Para a professora ldquoAquele comprometimento que eles tecircm com o horaacuterio da

muacutesica de aprender e tudo mais causa neles um compromisso com o resto das

disciplinas em sala de aula tambeacutemrdquo (C E 2015 p 16) A diretora da escola

tambeacutem contribuiu com a anaacutelise fornecendo importantes dados sobre a participaccedilatildeo

dos estudantes da escola no grupo instrumental De acordo com a diretora

A participaccedilatildeo dos estudantes no grupo para mim eacute acima de tudo muita emoccedilatildeo porque eu sempre acreditei no projeto tentei da melhor maneira possiacutevel focar e conseguir mecanismos para que ele pudesse existir E eu vejo que estar no grupo eacute um grande investimento para essas crianccedilas e adolescentes na construccedilatildeo integral da sua personalidade da sua maneira de pensar e de ver o mundo (C E 2015 p 14)

A diretora ainda acrescentou um comentaacuterio sobre a repercussatildeo do grupo

instrumental na comunidade ressaltando a importacircncia desse fator ao explicar

O grupo instrumental traz a questatildeo da comunidade pois natildeo ficou apenas na escola Ele foi para a comunidade local no bairro ele foi para o centro da cidade as pessoas conhecem o grupo as pessoas convidam para participar de eventos Entatildeo eu acho que para a professora de muacutesica eacute

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profissionalismo para mim eacute emoccedilatildeo e para eles eu acho que eacute um trabalho de autoestima de grande valor porque satildeo crianccedilas de uma localidade rural que nunca se imaginaria de seguir um caminho de estrada de chatildeo com um saxofone (C E 2015 p 15)

As atividades musicais existentes no grupo instrumental da escola repercutem

junto agrave comunidade escolar no seu entorno demais regiotildees do municiacutepio e fora

dele E essa repercussatildeo eacute devida ao incentivo por parte da escola aos estudos

musicais dos estudantes do grupo instrumental e aos demais estudantes da escola e

de fora da escola Isso ocorre no caso do Estudante W que jaacute concluiu seus

estudos mas permanece na escola o que incentiva os demais estudantes a

optarem pela muacutesica como profissatildeo

Observou-se uma concordacircncia entre os entrevistados quando enfatizaram a

extrema importacircncia de os estudantes participarem do grupo instrumental (C E

2015) principalmente no que diz respeito agraves funccedilotildees da muacutesica Esta anaacutelise remete

a Kraemer (2000) considerando-se as funccedilotildees da muacutesica Do mesmo modo os

aspectos socioloacutegicos e psicoloacutegicos apresentaram-se relevantes para esta anaacutelise

O relacionamento entre as pessoas desenvolvido atraveacutes das atividades musicais

no grupo instrumental apresentou-se fortemente Kraemer (2000) ao analisar as

relaccedilotildees entre as pessoas e a importacircncia que a muacutesica pode ter em suas vidas

explica que a pedagogia da muacutesica ocupa-se com ldquoas relaccedilotildees entre a(s) pessoa(s)

e a(s) muacutesica(s) sob os aspectos de apropriaccedilatildeo e de transmissatildeordquo (KRAEMER

2000 p 51) Isto foi encontrado nesse grupo bem como nas falas dos

entrevistados

Nesse sentido a partir das entrevistas realizadas que oportunizaram analisar

e correlacionar os conteuacutedos das falas ao referencial teoacuterico principalmente neste

caso como aponta Kraemer (2000) observa-se a importacircncia da muacutesica para as

pessoas bem como a potecircncia de estar em um grupo instrumental em espaccedilos

escolares

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Influecircncias de Participar de um Grupo Instrumental para a Vida dos Estudantes

Participantes e Familiares Envolvidos

Atraveacutes das entrevistas com os estudantes J e W observou-se a influecircncia

que a muacutesica exerce em suas vidas desde a entrada no grupo instrumental Neste

sentido o Estudante W explicou ldquoMinha famiacutelia apoia bastante eles gostam Em

casa eles pedem para tocar agraves vezes A voacute adora e apoia bastante sempre me

perguntando se eu tirei muacutesica nova alguma coisardquo (C E 2015 p 8)

Aleacutem disso ao comentar sobre o impacto em sua vida o Estudante W

explicou ldquoMelhorou bastante minha vida musical e familiar com isso eu me sinto

muito melhorrdquo (C E 2015 p 9) O Estudante W foi convidado a entrar no grupo

instrumental poreacutem natildeo tinha grandes expectativas musicais E foi se envolvendo

com o fazer musical despertando o interesse de aprender diversos instrumentos

musicais O Estudante W levou esse encantamento para seus familiares seus

ensaios musicais promovem satisfaccedilatildeo em sua famiacutelia promovendo uniatildeo e

interaccedilatildeo dos mesmos durante esse processo

O Estudante J externou em sua fala que ao entrar no grupo ocorreram

muitas mudanccedilas em seu modo de ser Em seu depoimento ele destacou

mudanccedilas quanto ao comprometimento e agrave pontualidade Ele observa que consegue

cumprir o que eacute solicitado pela professora estaacute estudando mais Assim ldquome ajudou

bastante ateacute na aula normal estou mais comportado fazendo todos os trabalhos

melhorrdquo (C E 2015 p 12)

Em relaccedilatildeo agrave famiacutelia a matildee do Estudante J enfatizou a grande socializaccedilatildeo e

o clima de harmonia que a famiacutelia experienciou por meio do contato de seu filho com

o instrumento musical em casa (C E 2015)

Observa-se nos depoimentos a funccedilatildeo da muacutesica no campo socioloacutegico que

vai ao encontro do que Kraemer (2000) acredita jaacute que ldquoconsidera o manuseio com

a muacutesica como um processo socialrdquo e analisa o ldquocomportamento do homem

relacionado com a muacutesica em direccedilatildeo agraves influecircncias sociais institucionais e gruposrdquo

(p 57) Eacute possiacutevel atraveacutes dos dados coletados observar a influecircncia social e

comportamental que a muacutesica exerce entre os agentes envolvidos seja no acircmbito

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familiar ou no processo de desenvolvimento intelectual dos estudantes participantes

do grupo

Nas falas da escola caracterizadas pela entrevista com a diretora e com a

professora foi possiacutevel verificar que ambas tambeacutem trataram da influecircncia que

resulta da participaccedilatildeo no grupo instrumental A professora explicou suas

observaccedilotildees quanto aos estudantes participantes do grupo instrumental feitas na

sua aula Ela leciona haacute muitos anos na escola e por isso tem um grande

conhecimento dos estudantes os tem acompanhado antes mesmo de ingressarem

no grupo instrumental Ao conhecer os estudantes ela pode analisar mais

amplamente De acordo com a professora

A gente nota uma diferenccedila bastante elevada neles Que eles se concentram mais em sala de aula e isso ajuda para o futuro deles e isso eacute muito bom Pois a gente sabe que tudo na vida precisa de concentraccedilatildeo precisa de carinho para fazer as coisas precisa de dedicaccedilatildeo E isso eu vejo enquanto eles aprendem muacutesica Eacute claro que isso reflete em sala de aula tambeacutem (C E 2015 p 17)

Foi possiacutevel constatar ao analisar a entrevista da professora no que se

relaciona agrave psicologia da muacutesica o que Kraemer (2000) explica sobre as

ldquosemelhanccedilas e diferenccedilas observaacuteveis de comportamento e da vivecircncia musicalrdquo (p

55) Assim pode-se analisar as funccedilotildees da educaccedilatildeo musical que envolvem ldquotarefas

da pedagogia da muacutesica [que] devem ser definidas juntamente com a aquisiccedilatildeo de

conhecimento compreender e interpretar descrever e esclarecer conscientizar e

transformarrdquo (KRAEMER 2000 p 66)

Os dados obtidos nas entrevistas no que diz respeito agrave participaccedilatildeo dos

estudantes no grupo instrumental tambeacutem remetem agrave importacircncia da oferta de

atividades no turno inverso escolar Nesse sentido Wolffenbuumlttel (2014) explica que

as atividades extracurriculares tecircm uma perspectiva de ampliaccedilatildeo das possibilidades

das escolas Segundo a autora as ldquoatividades extracurriculares satildeo capazes de

contribuir para o desenvolvimento dos alunosrdquo (p 56)

Expectativas em Relaccedilatildeo agraves Atividades Instrumentais

Ao longo das entrevistas os estudantes participantes do grupo instrumental

externaram suas expectativas musicais em relaccedilatildeo a esta participaccedilatildeo O Estudante

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W foi aleacutem acrescentando sua expectativa profissional De acordo com seu

depoimento ldquoEu pretendo evoluir de repente fazer uma faculdade de muacutesica que

me interessa bastante esse caminhordquo (C E 2015 p 8)

O Estudante J em sua entrevista afirmou sobre as expectativas em relaccedilatildeo agrave

participaccedilatildeo no grupo pretendendo aperfeiccediloar-se para uma melhor representaccedilatildeo

de sua escola De acordo com ele esta participaccedilatildeo se daacute no sentido de ldquofazer o

que tem que fazer natildeo deixar de ensaiar em casa e fazer o melhor Espero que

cada vez melhore para representar melhor a escola e aprender tambeacutemrdquo (C E

2015 p 12) Em suas expectativas profissionais apontou a vontade de seguir

profissionalmente na muacutesica Para ele ldquoAh se surgir alguma oportunidade eu quero

fazer uma faculdade de muacutesica neacute Quero me formarrdquo (C E 2015 p 12) Nesta

fala externada pelo Estudante J observa-se o que os PCNs sugerem em relaccedilatildeo a

um dos objetivos gerais para a muacutesica na escola qual seja adquirir ldquoconhecimento

sobre profissotildees e profissionais da aacuterea musical considerando diferentes aacutereas de

atuaccedilatildeo e caracteriacutesticas do trabalhordquo (BRASIL 1998 p 82)

A participaccedilatildeo dos estudantes no grupo instrumental eacute de suma importacircncia

o que se evidenciou em suas falas em relaccedilatildeo agraves expectativas profissionais

remetendo agraves funccedilotildees da muacutesica e da educaccedilatildeo musical nos acircmbitos psicoloacutegico e

social estando em sintonia com as anaacutelises de Kraemer (2000) apresentadas

anteriormente

Observou-se que todos os entrevistados tecircm expectativas musicais

estudantes que inclusive mencionaram pretender seguir nas atividades musicais

como profissatildeo demonstrando encantamento com o fazer musical e indicando

pretensotildees profissionais A diretora por sua vez mencionou em sua fala esperar

que o grupo instrumental cada vez se estruture mais para assim atender mais

estudantes Ela se preocupa portanto em atender agraves demandas escolares e da

comunidade

Salienta-se que todo esse envolvimento teve como ponto de partida uma

atividade extracurricular (WOLFFENBUumlTTEL 2014) E o bom desempenho do grupo

eacute advindo de vaacuterios esforccedilos sendo que a muacutesica e seu ensino atraveacutes da

educaccedilatildeo musical estaacute desempenhando suas funccedilotildees na vida dos estudantes e dos

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familiares (KRAEMER 2000) Observou-se tambeacutem a valorizaccedilatildeo dos estudantes

participantes como sujeitos propositores no trabalho pedagoacutegico-musical

(SWANWICK 2003) resultando no encantamento do fazer musical colaborando

para o desenvolvimento integral dos sujeitos envolvidos considerando-se as

atividades musicais do grupo instrumental

Consideraccedilotildees Finais

Apoacutes a realizaccedilatildeo desta pesquisa foi possiacutevel responder aos

questionamentos apresentados na introduccedilatildeo deste artigo e que nortearam esta

investigaccedilatildeo quais sejam Qual o significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um

grupo instrumental Quais as expectativas dos estudantes que participam destes

grupos Qual a influecircncia da muacutesica para estes participantes Quais as expectativas

de estudantes familiares e comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre

o envolvimento dos familiares dos estudantes

Quanto ao significado da participaccedilatildeo dos estudantes no grupo instrumental

observou-se que a mesma reflete diversos aspectos positivos nas vidas de todos os

envolvidos o que segundo os estudantes do grupo instrumental possui vaacuterios

significados e representaccedilotildees em seus cotidianos Para eles significa ter melhoria

no comportamento na socializaccedilatildeo no processo de ensino e aprendizagem no

comprometimento na pontualidade na concentraccedilatildeo e no conviacutevio familiar

Agregam o significado de ldquofelicidaderdquo na convivecircncia que o grupo instrumental

proporciona e ainda destacam a importacircncia de representar a escola e a

abrangecircncia desta participaccedilatildeo junto agrave comunidade Todos os entrevistados

relacionaram significados com a importacircncia de o grupo existir na escola

apontando-o como desencadeador desses diversos contextos significativos para

eles

As expectativas dos participantes deste grupo foram tambeacutem

questionamentos desta pesquisa Constatou-se que os estudantes possuem

expectativas profissionais em relaccedilatildeo agrave muacutesica quando acrescentaram o interesse

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em continuar seus estudos musicais para culminar com o ingresso em um curso

superior em muacutesica

Outro questionamento foi a influecircncia da muacutesica para os participantes deste

grupo De acordo com os dados coletados e analisados observa-se que o grupo

instrumental influencia de forma positiva suas vidas visto que foram observadas

mudanccedilas positivas pela matildee pela professora e pela diretora aleacutem dos estudantes

principalmente nas suas condutas e atuaccedilotildees no acircmbito familiar e escolar

resultando em melhorias nas relaccedilotildees sociais e no ensino e aprendizagem

As expectativas dos estudantes familiares e comunidade escolar quanto ao

grupo instrumental foi um dos questionamentos que oportunizou inuacutemeros

aprendizados no que diz respeito agrave pesquisa Observou-se que todos os

entrevistados esperam que o grupo se estruture cada vez mais para que os

benefiacutecios de participar de um grupo instrumental sejam ampliados para mais

estudantes ressaltando expectativas em relaccedilatildeo agrave evoluccedilatildeo como instrumentistas

para continuar contribuindo na qualidade e no crescimento do grupo

Por fim o envolvimento dos familiares dos participantes deste grupo foi um

questionamento que se apresentou de forma bastante marcante nesta pesquisa De

acordo com as entrevistas pocircde-se compreender o envolvimento significativo da

famiacutelia no processo de desenvolvimento musical do estudante identificou-se que a

famiacutelia participa da rotina de estudos e que proporciona momentos de integraccedilatildeo

nos ensaios de repertoacuterio dos estudantes com os demais familiares Isso

desencadeia reflexotildees sobre a importacircncia de seu filho ter contato com um

instrumento musical e de conviver em um grupo instrumental motivando-o para a

permanecircncia no mesmo

Alguns fatos surpreenderam no decorrer desta pesquisa como momentos de

emoccedilatildeo na entrevista com a diretora na fala fervorosa da matildee do Estudante J em

relaccedilatildeo agrave rotina de ensaios musicais do filho e a integraccedilatildeo familiar que promove As

entrevistadas ao responderem aos questionamentos da entrevista emocionaram-se

muito demonstrando a forte relaccedilatildeo advinda da existecircncia do grupo instrumental na

escola

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Deve-se salientar tambeacutem que a pesquisa possibilitou a reflexatildeo sobre os

fazeres pedagoacutegico-musicais da professora de muacutesica atuante na escola a qual

coordena o grupo instrumental investigado Foi possiacutevel neste processo

investigativo constatar a dimensatildeo e a importacircncia desse trabalho na vida dos

estudantes identificando atraveacutes dos depoimentos analisados a responsabilidade

que os profissionais da aacuterea da educaccedilatildeo musical tecircm Eacute importante portanto que

sempre se esteja atento agraves atitudes procedimentos e metodologias utilizados pois

somos importantes neste processo para aleacutem do encantamento do fazer musical

para uma aprendizagem que contribua com a formaccedilatildeo de um ser humano integral

Ao longo da pesquisa outros dados relevantes foram coletados apontando

futuras investigaccedilotildees Desse modo resultaram novos questionamentos como O

que levou outros estudantes a desistirem de participar do grupo instrumental ao

longo de sua trajetoacuteria Qual a importacircncia de os estudantes que participam de um

grupo instrumental terem a oportunidade de manusear diversos instrumentos

musicais

Ao finalizar a investigaccedilatildeo prospecta-se que a mesma possa contribuir para a

construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para a educaccedilatildeo musical no contexto escolar

Entende-se tambeacutem que este trabalho possa contribuir com a implementaccedilatildeo da

legislaccedilatildeo que dispotildee sobre a inserccedilatildeo da muacutesica nas escolas brasileiras e assim

somar de maneira significativa na vida dos estudantes participantes como no caso

do grupo instrumental pesquisado

Referecircncias BASTIAtildeO Zuraida Abud Praacutetica de conjunto instrumental na educaccedilatildeo baacutesica Muacutesica na Educaccedilatildeo Baacutesica Londrina v4 n4 p 58-69 novembro de 2012

BOZZETTO Adriana Projetos educativos de famiacutelias e formaccedilatildeo musical de crianccedilas e jovens em uma orquestra Porto Alegre 2012 295 f Tese (Doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2012 BRASIL Secretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Paracircmetros curriculares nacionais arte Secretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Brasiacutelia DF 1998116 p

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BRASIL Lei nordm 11769 de 16 de agosto de 2008 Altera a Lei ndeg 9394 de 20 dezembro de 1990 para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino de muacutesica na educaccedilatildeo baacutesica Brasiacutelia 2008 Disponiacutevel em lthttpwwwplanaltogovbrccivil_03LEISL9394htmgt Acesso em 15 set 2015 JOLY Maria Carolina Leme JOLY Ilza Zenker Leme Praacuteticas musicais coletivas um olhar para a convivecircncia em uma orquestra comunitaacuteria Revista da ABEM Londrina v19 n26 p 79-91 jul Dez 2011 KRAEMER Rudolf Dimensotildees e funccedilotildees do conhecimento pedagoacutegico musical Em Pauta Porto Alegre v11 n 1617 p 50-73 abrnov 2000 LAVILLE Christian DIONNE Jean A construccedilatildeo do Saber manual de metodologia da pesquisa em ciecircncias humanas Porto Alegre Artmed 1999 MARTINS Heloiacutesa Helena Tde Souza Metodologia qualitativa de pesquisa Educaccedilatildeo e Pesquisa Satildeo Paulo V 30 n2 p 289-300 maioago 2004 Disponiacutevel em lt httpwwwscielobrpdfepv30n2v30n2a07pdfgt Acesso em 25 ago 2015 MORAES Roque Anaacutelise de conteuacutedo Revista Educaccedilatildeo Porto Alegre v 22 n 37 p 7-32 1999 SWANWICK Keith Ensinando muacutesica musicalmente Satildeo Paulo Moderna 2003 VENTURA Magda Maria O estudo de caso como modalidade de pesquisa Revista da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro v 20 n 5 p 383-386 setout 2007 Disponiacutevel em lthttpsociedadescardiolbrsocerjrevista2007_05a2007_v20_n05_art10pdfgt Acesso em 15 ago 2015 WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim A inserccedilatildeo da muacutesica nos projetos poliacutetico-pedagoacutegicos da educaccedilatildeo baacutesica 1ordf ed Curitiba Editora Prismas 2014 YIN Robert K Estudo de caso planejamento e meacutetodos 2ordf ed Porto Alegre Bookman 2001

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SILVEIRA Izabel Cristina da Teatro para quem A arte de teatrar para todos Revista da Fundarte

Montenegro ano 16 n 32 p 142-162 juldez 2016 Disponiacutevel em

lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

TEATRO PARA QUEM A ARTE DE TEATRAR PARA TODOS Um estudo

sobre acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RS

Izabel Cristina da Silveira1

Fundaccedilatildeo de Arte e Cultura de Gravataiacute - FUNDARC

Resumo Este trabalho busca investigar analisar e viabilizar diaacutelogos reflexotildees e percepccedilotildees em torno do tema da acessibilidade cultural sob a oacuteptica do contexto teatral no estado do Rio Grande do Sul com um recorte pontual no municiacutepio de Porto Alegre capital do estado a fim de promover a inclusatildeo social da pessoa com deficiecircncia no acircmbito cultural Para tanto servem como suporte para anaacutelise registros pesquisa e observaccedilotildees de seis grupos de teatro do municiacutepio supracitado e suas relaccedilotildees com o assunto em pauta aleacutem de discussotildees das noccedilotildees de deficiecircncia acessibilidade e Legislaccedilatildeo vigente Palavras-chave Acessibilidade teatro inclusatildeo Abstract This work aims to investigate analyze and facilitate dialogues reflections and insights on the theme of cultural accessibility from the perspective of the theatrical context in the state of Rio Grande do Sul with a point cut in the city of Porto Alegre the state capital to promote social inclusion of persons with disabilities in the cultural sphere To serve both as support for analysis records research and observations six theater groups of the aforementioned municipality and its relations with the subject at hand in addition to discussing the shortcomings notions of accessibility and current legislation Keywords Accessibility theater inclusion

Introduccedilatildeo

[] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferenccedila nos inferioriza e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza Daiacute a necessidade de uma igualdade que reconheccedila as diferenccedilas e de uma diferenccedila que natildeo produza alimente ou reproduza as desigualdades (Boaventura de Souza Santos 2003 p56)

A pauta da acessibilidade nos meios de comunicaccedilatildeo e equipamentos

culturais tem se configurado como um importante tema de discussatildeo e luta entre

grupos e sociedade em decorrecircncia dos direitos da pessoa com deficiecircncia Os

esforccedilos neste sentido visam natildeo apenas proporcionar o acesso a produtos

culturais a uma parcela da populaccedilatildeo que se encontra excluiacuteda como tambeacutem

estabelecer um novo patamar de igualdade baseado na valorizaccedilatildeo da diversidade

1 Coordenadora do Departamento de Artes Cecircnicas da Fundarc em Gravataiacute Diretora e professora de teatro na

Cia Teatral Tem Gente no Palco Poacutes Graduada em Acessibilidade Cultural pela UFRJ Graduada em

Licenciatura em Teatro pela UFRGS

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Ao longo dos anos essas reivindicaccedilotildees tecircm provocado diversas mudanccedilas

no comportamento social que passa a identificar a pessoa com deficiecircncia como um

sujeito pertencente agrave sociedade que possui representatividade cidadatilde e econocircmica

Esse reconhecimento gera a necessidade de mudanccedilas e adaptaccedilotildees tambeacutem nas

manifestaccedilotildees culturais e artiacutesticas

Sendo assim o presente artigo busca trazer agrave tona tais questionamentos e

fomentar a discussatildeo do assunto problematizando e dialogando a fim de colaborar

efetivamente para a pauta da acessibilidade para todos e buscar alternativas

possiacuteveis para acessibilizar espetaacuteculos teatrais em suas apresentaccedilotildees

Para tanto realizou-se estudo praacutetico-teoacuterico junto a grupos teatrais do estado

do Rio Grande do Sul atuantes na capital Porto Alegre Optou-se por um recorte

pontual no maior centro urbano e cultural do estado com cenaacuterio teatral fortemente

constituiacutedo e onde se localiza o Curso de Graduaccedilatildeo em Teatro em uma das mais

conceituadas Universidades do Brasil ndash a Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS)

Levando-se em conta o grande nuacutemero de grupos teatrais existentes em

Porto Alegre e a impossibilidade de uma pesquisa que abranja todas as demandas

a metodologia deste trabalho teve como base uma amostragem de dados com

pesquisa e acompanhamento de 06 (seis) grupos teatrais profissionais com

empresa constituiacuteda e atuaccedilatildeo no mercado artiacutestico haacute mais de 05 (cinco) anos A

escolha se deu por conhecimento dos grupos e do trabalho que desenvolvem

levando-se em conta tambeacutem a disponibilidade dos mesmos e o contato que

possuem ou natildeo com o tema Para tanto foram selecionados entre os 06 (seis)

grupos pesquisados 02 (dois) que jaacute desenvolvem ou desenvolveram trabalhos em

acessibilidade cultural e outros 04 (quatro) que natildeo tecircm contato direto

A pesquisa caracteriza-se por seu caraacuteter qualitativo e quantitativo visando

compreender e interpretar este grupo determinado comportamento opiniotildees e

expectativas destes indiviacuteduos criando uma base de conhecimentos para depois

quantificaacute-los a partir de entrevista estruturada Este trabalho natildeo tem como intuito

apontar procedimentos certos ou errados mas levantar a problematizaratildeo da

acessibilidade no meio teatral tanto fiacutesico quanto de concepccedilatildeo instigando a

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comunidade artiacutestica e demais a refletir e perceber a necessidade de uma cultura

acessiacutevel a todos propondo ideias e atitudes que de fato promovam a inclusatildeo

social

Com um vieacutes de poliacutetica cultural o estudo levanta dados referentes agraves

poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo desenvolvidas no acircmbito da acessibilidade

cultural tendo como base a Lei Federal de Incentivo agrave Cultura (Lei Rouanet) a Lei

de Incentivo agrave Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (LIC) e o Fundo Municipal de

Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural do municiacutepio de Porto Alegre (Fumproarte)

procurando transitar pelas trecircs instacircncias governamentais de fomento agrave cultura no

Brasil

Para melhor fundamentaccedilatildeo alguns referenciais teoacutericos satildeo utilizados e

discutidos ao longo deste trabalho como embasamento para discussotildees acerca da

deficiecircncia e seu processo de inclusatildeo do teatro sob vieacutes acessiacutevel e da legislaccedilatildeo

vigente referente ao tema Em um segundo momento satildeo pontuados assuntos

referentes agrave acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais tendo como objeto de

estudo os grupos de teatro referidos a partir de entrevistas e aplicaccedilatildeo de

questionaacuterio com perguntas objetivas e abertas sobre a temaacutetica com amostra

teacutecnica dos resultados e anaacutelise discursiva sobre os dados coletados

Entre seus objetivos especiacuteficos alguns jaacute mencionados no corpo deste texto

que serviram de norteadores para o desenvolvimento deste trabalho estatildeo traccedilar

um panoramadiagnoacutestico da inclusatildeo social e cultural da pessoa com deficiecircncia a

partir do enfoque do teatro e seus espetaacuteculos qualificar accedilotildees desenvolvidas ao

encontro das demandas de acessibilidade discutir poliacuteticas puacuteblicas e culturais a

partir da interface com mecanismos de incentivo agrave cultura como Leis e Editais

analisar as dificuldades encontradas pelos grupos pesquisados no processo de

inclusatildeo relacionar o teatro e seu caraacuteter contestador e democraacutetico com a luta por

direitos das pessoas com deficiecircncia ampliar o diaacutelogo e reconhecimento da

importacircncia da igualdade baseada na valorizaccedilatildeo da diversidade

Todos esses objetivos e questionamentos vecircm ao encontro do propoacutesito

maior desta pesquisa que se fundamenta em viabilizar a discussatildeo reflexatildeo e

percepccedilatildeo em torno da acessibilidade cultural dentro do contexto teatral no estado

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do Rio Grande do Sul promovendo assim a inclusatildeo social da pessoa com

deficiecircncia

Contextualizaccedilatildeo histoacuterica social e legal

O teatro surge antes mesmo da Greacutecia Antiga Acredita-se que jaacute na Preacute-

Histoacuteria o Homem para se comunicar representavaencenava suas accedilotildees

principalmente as caccediladas para seus familiares e amigos Era uma maneira luacutedica e

de faacutecil compreensatildeo de contar e preservar sua histoacuteria Natildeo se tinha ainda o

espetaacuteculo teatral que de fato tem sua origem na Civilizaccedilatildeo Grega mas as

primeiras manifestaccedilotildees artiacutesticas comeccedilam a surgir e mais importante que isso o

ato de se comunicar

O espetaacuteculo teatral precisa ser entendido sentido internalizado para

somente entatildeo desempenhar seu papel significador de instrumento social e cultural

Para tanto o seu ato de comunicar deve ser abrangente natildeo seletivo ou excludente

Como arte democraacutetica que eacute deve ou deveria ser para todos

Todos Como Claudia Werneck ndash jornalista escritora e militante em inclusatildeo

social ndash intitula em um dos seus livros ldquoQuem cabe no seu todosrdquo E ao usar a

palavra TODOS a autora convida o leitor a acompanhar suas certezas e anguacutestias

sobre as diretrizes e encaminhamentos da inclusatildeo no Brasil Claudia questiona

instiga potildee agrave prova o que se costuma entender e chamar de Todos A sociedade eacute

constituiacuteda por diferentes Todos totalmente distintos entre si que segundo

Werneck precisam ser ampliados e reconhecidos para entatildeo tornarem-se um

TODOS somente Um TODOS social humano ldquo[] defendo que o direito agrave

igualdade social soacute seraacute garantido com o reconhecimento e a legitimaccedilatildeo de TODAS

as diferenccedilasrdquo (WERNECK 2012 p 29)

A psicoacuteloga e professora Virgiacutenia Kastrup em seu artigo ldquoCegos e videntes se

encontram no museu da dicotomia agrave partilha do sensiacutevelrdquo (p3) reafirma a

importacircncia das diferenccedilas para a construccedilatildeo de uma sociedade mais inclusiva

Eacute preciso atentar para o fato que o mundo comum natildeo eacute feito de igualdades e identidades [] Para o mundo ser comum no sentido amplo e inclusivo ele deve comportar a heterogeneidade Natildeo apenas toleraacute-la mas honrar-se com as muacuteltiplas diferenccedilas que nele habitam (KASTRUP p3)

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O Brasil apresenta segundo uacuteltimo censo do Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatiacutestica (IBGE) de 2010 cerca de 456 milhotildees de pessoas com deficiecircncia

239 da populaccedilatildeo que declara ter algum tipo de deficiecircncia Destas a deficiecircncia

visual aparece em maior nuacutemero (188) -- tendo a regiatildeo Sul do paiacutes com maior

abrangecircncia de casos -- seguida pela deficiecircncia fiacutesica (7) e depois auditiva (51)

e intelectual (14) segundo publicaccedilatildeo do Jornal Estadatildeo de 290620122

Com nuacutemeros tatildeo significativos natildeo se pode pensar que a inclusatildeo de

pessoas com deficiecircncia seja um assunto remoto ou longiacutenquo que a sociedade natildeo

esteja ciente e integrada a tal fato Mas o que acontece no campo da praacutetica eacute bem

diverso da teoria

Muito do que se pode constatar eacute que a falta de inclusatildeo da pessoa com

deficiecircncia se reafirma a partir de barreiras atitudinais fundamentadas em uma

cultura histoacuterico-social que construiu um estereoacutetipo de separaccedilatildeo entre pessoas

saudaacuteveis e pessoas ldquodoentesrdquo com problemas leia-se deficiecircncia Quebrar

tais barreiras se torna muito mais difiacutecil do que solucionar barreiras fiacutesicas palpaacuteveis

e concretas

Sob o vieacutes filosoacutefico-social

O homem em sua busca incessante por descobrir-se por encontrar seu lugar

no mundo anseia por elementos que o faccedilam sentir-se ldquovivordquo uacutetil sujeito ativo de

sua histoacuteria Os viacutenculos sociais natildeo fazem parte apenas da necessidade cataacutertica

do ser humano da sua busca por encontrar-se por pertencer a um lugar mas satildeo

tambeacutem laccedilos culturalmente construiacutedos O Homem quer e precisa se sentir parte

integrante da sociedade que o cerca Pessoas agrupam-se em torno de

pensamentos objetivos eou ideais em comum Encontrar semelhantes eacute a

certificaccedilatildeo de sua identidade eacute o natildeo se estar soacute Eacute protegerem-se em seus nichos

sociais de um mundo tantas vezes opressor desigual e competitivo

Diante de uma realidade calcada em valores descartaacuteveis natildeo eacute de se

admirar que atos de solidariedade sejam cada vez mais raros Sendo assim os

sup1 Fonte Agecircncia Brasil de 21082015 via site wwwebccombr

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viacutenculos humanos natildeo se constituem em laccedilos radicados em accedilotildees para o outro

mas sim em benefiacutecio proacuteprio O socioacutelogo Zygmunt Bauman sabiamente destaca

Os viacutenculos humanos satildeo confortavelmente frouxos mas por isso mesmo terrivelmente precaacuterios e eacute tatildeo difiacutecil praticar a solidariedade quanto compreender seus benefiacutecios e mais ainda suas virtudes morais (BAUMAN 2007 P30)

Para tanto ao se pensar em inclusatildeo se faz tambeacutem necessaacuterio aleacutem do

social e histoacuterico voltar o olhar para o intriacutenseco filosoacutefico O que leva as pessoas a

natildeo quererem enxergar o outro em suas especificidades e diversidades Alfredo

Bosi em seu livro Fenomenologia do Olhar nos apresenta este fenocircmeno e como

ele se manifesta ldquo[] o ato de olhar significa um dirigir a mente para um ato de

intencionalidade Eacute ter sua intenccedilatildeo voltada para o objeto de interesserdquo (BOSI

1988 p65) O olhar de cada um possui diferenccedilas e estas estatildeo ligadas agraves suas

vivecircncias o que se consegue captar e lhe eacute significativo O olhar para Bosi como

forma de expressatildeo que reconhece e percebe o outro em sua plenitude

Em um estudo mais intimista da fenomenologia da percepccedilatildeo atraveacutes dos

pensamentos do filoacutesofo e fenomenoacutelogo francecircs Maurice Merleau-Ponty (1908 -

1961) podemos constatar que haacute uma universalidade do sentir e sobre ela que

repousa nossa identificaccedilatildeo a constituiccedilatildeo do eu a generalizaccedilatildeo do corpo e a

percepccedilatildeo do outro onde para Ponty (1994 p 260) ldquotodo o saber se instala no

horizonte da percepccedilatildeordquo e reafirma que ldquose a percepccedilatildeo interpreta ela soacute o faz a

partir do mundo de forma sensiacutevelrdquo Pensar natildeo eacute somente razatildeo mas um refletir

sobre o mundo sensiacutevel A fenomenologia eacute uma atitude de reflexatildeo do fenocircmeno

que se mostra para noacutes na relaccedilatildeo que estabelecemos com os outros no mundo

Os fenocircmenos constituem o mundo como noacutes o experimentamos segundo nossas

experiecircncias e pensamentos Toda nossa relaccedilatildeo com o mundo natildeo teria razatildeo se

natildeo comeccedilasse pela percepccedilatildeo ou seja pelos sentidos Noacutes eacute que buscamos o

sentido daquilo que se mostra

No momento em que se deixa de perceber de olhar o outro e de fato

enxergaacute-lo em suas diferenccedilas e igualdades estes deixam de serem vistos como

possiacuteveis sujeitos de suas histoacuterias Sua autonomia eacute podada por assistencialismos

ou segregaccedilatildeo social A humanizaccedilatildeo dilui-se com a mesma intensidade com que o

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individualismo se enraiacuteza O Homem corre contra o tempo As relaccedilotildees passam a

adquirir um caraacuteter efecircmero e superficial e tudo se torna banal Natildeo basta mais

pertencer a uma sociedade eacute preciso ser o melhor aquele que corre na frente

ldquoCom mais frequecircncia ainda a exclusatildeo tende hoje a ser uma rua de matildeo uacutenicardquo

(BAUMAM 2007 p 75) Vivemos em ldquotempos liacutequidosrdquo

O cerceamento seja fiacutesico intelectual ou cultural se daacute de tal forma que o

indiviacuteduo perde sua autonomia transformando-se mecanicamente em apenas um

produto do meio O teatro surge neste contexto como um desses caminhos

possiacuteveis de serem trilhados como desmistificador de conceitos preestabelecidos

Quem faz essa pergunta ldquoqual eacute a sua utilidaderdquo deve estar atento a si mesmo a essa atitude que leva a negar o valor das aacutervores que natildeo datildeo frutos A aacutervore que natildeo daacute fruto ndash proverbialmente inuacutetil ndash se converte em algo essencial nas cidades sem oxigecircnio (BARBA 1991 p 145)

Quando o teatro entra em cena

Haacute uma diferenccedila fundamental entre a ciecircncia e a arte [] A ciecircncia atua diretamente sobre a realidade modificando-a Pelo contraacuterio a arte modifica os modificadores da sociedade transforma os transformadores (BOAL 1983)

A arte e sua estreita relaccedilatildeo com o homem e a sociedade a qual este

pertence torna-se um importante instrumento de discussatildeo e transformaccedilatildeo social

que natildeo pode ser esquecido nem perdido no emaranhado de modismos que

tendem a surgir Ao pensarmos a arte como elemento transformador capaz de

estabelecer diferentes relaccedilotildees de contextos e olhares somos remetidos agraves

possiacuteveis conexotildees e diaacutelogos que surgem a partir de sua experimentaccedilatildeo Sendo

assim o espectador deixa sua posiccedilatildeo de receptor passivo para ir ao encontro de

relaccedilotildees interativas que lhe permitam conceber seu proacuteprio conhecimento em

relaccedilatildeo agrave arte agrave obra ao espetaacuteculo

Amanda Tojal (2014 p15) a partir da anaacutelise dos processos de comunicaccedilatildeo

museoloacutegica que comeccedilam a se afirmar na sociedade contemporacircnea chama a

atenccedilatildeo para a forma de participaccedilatildeo do sujeito receptor ndash ldquo[] de uma condiccedilatildeo

anteriormente mais passiva como simples assimilador de uma mensagem ndash para

uma condiccedilatildeo mais dialoacutegica isto eacute a de um participante mais ativo no processo de

apreensatildeo e de ressignificaccedilatildeo do objeto cultural []rdquo

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Um equipamento cultural independentemente do segmento ndash museu galeria

teatro biblioteca ndash deve a priori comunicar Estabelecer essa via de comunicaccedilatildeo de

forma efetiva diante do heterogecircneo e oportunizar a qualquer pessoa o acesso e o

contato com a arte e suas manifestaccedilotildees A acessibilidade passa ou deveria passar

mais fortemente para aleacutem da acessibilidade fiacutesica e concreta gerando uma

reflexatildeo sobre como acessibilizar a comunicaccedilatildeo e a interaccedilatildeo A pessoa com

deficiecircncia deve ter atendido seu desejo de se sentir parte integrante do todo de

entender e reconhecer seu direito de pertencimento de ser ouvido de olhar para o

mundo de sentir se relacionar e acima de tudo de ter autonomia e liberdade

A acessibilidade natildeo eacute um favor que estaacute sendo feito eacute um direito de toda

pessoa com deficiecircncia Eacute garantir o direito maior e universal de toda e qualquer

pessoa de ir e vir de sua liberdade Conforme o Glossaacuterio de Acessibilidade

fornecido pelo Curso de Extensatildeo em EAD Acessibilidade em Ambientes Culturais

da UFRGS ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul o termo Acessibilidade

designa

Condiccedilatildeo para utilizaccedilatildeo com seguranccedila e autonomia total ou assistida dos espaccedilos mobiliaacuterios e equipamentos urbanos das edificaccedilotildees dos serviccedilos de transporte e dos dispositivos sistemas e meios de comunicaccedilatildeo e informaccedilatildeo por pessoa com deficiecircncia ou mobilidade reduzida

Sendo assim a acessibilidade cultural discussatildeo geral deste artigo eacute uma

das condiccedilotildees baacutesicas para que pessoas com algum tipo de deficiecircncia possam ter

acesso aos instrumentos e mecanismos de cultura usufruindo de suas

manifestaccedilotildees artiacutesticas

O teatro ensina contesta mostra sugere questiona natildeo se acomoda diante

do passivo do irremediaacutevel E como ainda pessoas ficam fora de suas salas

Como ainda muitas pessoas com deficiecircncia natildeo podem natildeo tecircm como assistir

usufruir de uma peccedila de teatro ir a um teatro consumir cultura viva Porque satildeo

diferentes O que deveria ser comum normal se torna o a mais o plus o

diferencial Ver espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis eacute com dia e hora marcada

A arte teatral por si soacute jaacute apresenta uma gama de problemaacuteticas a serem

transpostas Natildeo eacute faacutecil fazer teatro como natildeo eacute faacutecil fazer cultura no Brasil Grupos

normalmente possuem orccedilamentos e recursos reduzidos para montagem de seus

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trabalhos a formaccedilatildeo de plateia eacute uma luta constante a valorizaccedilatildeo e entendimento

da profissionalizaccedilatildeo do artista tem sido uma conquista em pequenas doses Diante

desse quadro parece surgir quase como um ldquoincocircmodordquo a questatildeo da acessibilidade

cultural no meio teatral Proporcionar espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis quando natildeo haacute

nem Casas de Teatro acessiacuteveis Quando as instacircncias governamentais acreditam

que os menores orccedilamentos e cortes devem comeccedilar pelas manifestaccedilotildees

artiacutesticas Com uma arbitrariedade latente tais questionamentos corroboram para a

divergecircncia selada entre praacutetica e teoria No entanto assim como nos lembra

Claudia Werneck em seu livro Ningueacutem mais vai ser bonzinho na sociedade

inclusiva ldquosomos cidadatildeos responsaacuteveis pela qualidade de vida do nosso

semelhante por mais diferente que ele seja ou nos pareccedila serrdquo

Tornar espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis natildeo eacute uma tarefa faacutecil e comumente

realizada Eacute necessaacuterio um entendimento conhecimento de causa recursos e

profissionais disponiacuteveis para que natildeo se caia na vala comum do ldquofazer por fazerrdquo

Quando se estaacute interferindo tatildeo diretamente na vida de outras pessoas todo o

cuidado eacute pouco e um estudo detalhado de todas as possibilidades viaacuteveis faz a

diferenccedila no resultado final

Atualmente alguns recursos satildeo vistos como fundamentais para serem

aplicados quando a proposta eacute acessibilizar um espetaacuteculo teatral Audiodescriccedilatildeo

Libras (Liacutengua Brasileira de Sinais) Estenotipia (legenda em tempo real) Braile QR

Code (coacutedigo bidimensional) Caixa alta texto simples e contraste Reconhecimento

de palco Rampas de acesso

O Teatro Acessiacutevel passa pela aplicabilidade dessas tecnologias mas

principalmente e fundamentalmente pela quebra das barreiras atitudinais frente agrave

percepccedilatildeo destas questotildees A ldquoEscola de Genterdquo Organizaccedilatildeo Natildeo Governamental

fundada em 2002 por Claacuteudia Werneck no Rio de Janeiro trabalha haacute bastante

tempo o tema da inclusatildeo e tem no teatro na representaccedilatildeo teatral um grande

propagador de luta e difusor dos direitos da pessoa com deficiecircncia no Brasil Tem

como objetivo transformar poliacuteticas puacuteblicas em poliacuteticas inclusivas para que

pessoas com e sem deficiecircncia exerccedilam seus direitos humanos desde a infacircncia

Em 2003 O Grupo Teatro Acessiacutevel ldquoOs Inclusos e os Sisosrdquo da ldquoEscola de

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Genterdquo foi criado como meio de mobilizaccedilatildeo pela diversidade inclusatildeo e

acessibilidade Em 2011 a ldquoEscola de Genterdquo idealizou a campanha ldquoTeatro

Acessiacutevel Arte Prazer e Direitosrdquo e produziu o primeiro espetaacuteculo infantojuvenil

com total acessibilidade no paiacutes o musical rock Um Amigo Diferente que se

tornou o siacutembolo da Campanha Teatro Acessiacutevel Arte Prazer e Direitos

Em 2013 entrou em vigor o Projeto de Lei 61292013 de autoria dos

deputados federais Jean Wyllys Jandira Feghali Mara Gabrilli e Rosinha Adefal

que institui o dia 19 de setembro como o ldquoDia Nacional do Teatro Acessiacutevelrdquo Para os

autores do Projeto ldquoa data ajudaraacute a divulgar a cultura por meio de atividades

cecircnicas que utilizem praacuteticas de acessibilidade fiacutesica e comunicativa a pessoas com

deficiecircnciardquo3

Accedilotildees concretas sendo pensadas e realizadas para o desenvolvimento de

poliacuteticas puacuteblicas que estejam ao encontro de praacuteticas acessiacuteveis no contexto teatral

e cultural

Leis e poliacuteticas puacuteblicas

Por muito tempo as pessoas com deficiecircncia foram vistas como um problema

familiar social e cliacutenico Consideradas ldquoaberraccedilotildeesrdquo de puniccedilotildees divinas ou doentes

incapazes essas pessoas tecircm lutado por seus direitos e conquistas de cidadania

principalmente por ocuparem seu lugar de sujeitos ativos na sociedade a que

pertencem

Por ainda muito se pensar ser um problema familiar e natildeo social a sociedade

vem deixando de dar o suporte necessaacuterio agraves pessoas com deficiecircncia quando o

que se tem eacute uma ldquodiacutevida humana e socialrdquo para com as mesmas

Simplesmente fechar os olhos e fingir natildeo estar vendo tapar os ouvidos e se

isentar de qualquer responsabilidade natildeo resolve o problema Ter acesso aos

instrumentos culturais agrave cultura eacute um direito universal e constitucional de todo e

qualquer cidadatildeo ldquoA Constituiccedilatildeo Brasileira eacute inclusiva [] natildeo eacute integradora

porque natildeo admite que apenas em determinadas condiccedilotildees o exerciacutecio dos direitos

3 Disponiacutevel em ltwwwcamaralegbrgt Acesso em 03 de julho de 2014

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humanos seja observado exercido exigidordquo (WERNECK 2012 P 62) Conforme

afirmaccedilatildeo do Artigo 215 da Constituiccedilatildeo Federal de 1988

Art 215 O Estado garantiraacute a todos o pleno exerciacutecio dos direitos culturais e acesso agraves fontes da cultura nacional e apoiaraacute e incentivaraacute a valorizaccedilatildeo

e a difusatildeo das manifestaccedilotildees culturais

A inclusatildeo da pessoa com deficiecircncia e mais especificamente o tema da

Acessibilidade Cultural tem conquistado seu espaccedilo diante do poder puacuteblico e

poliacutetico Leis de direitos satildeo aprovadas discussotildees traccediladas e reivindicaccedilotildees

formuladas A Lei Brasileira de Inclusatildeo da Pessoa com Deficiecircncia Lei 131462015

foi uma das grandes conquistas na luta pela inclusatildeo onde especifica em seu

capiacutetulo IX e artigo 42 que

A pessoa com deficiecircncia tem direito agrave cultura ao esporte ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas sendo-lhe garantido o acesso I - a bens culturais em formato acessiacutevel II - a programas de televisatildeo cinema teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessiacutevel

Sendo assim na legislaccedilatildeo mais recente que temos de defesa dos direitos da

pessoa com deficiecircncia em nosso paiacutes haacute a garantia por parte destes ao acesso

agraves atividades culturais entre elas o teatro Lei esta que origina o Estatuto da

Pessoa com Deficiecircncia ldquoum dos mais importantes instrumentos de emancipaccedilatildeo

civil e social dessa parcela da sociedaderdquo segundo o Senador Paulo Paim (autor da

Lei) que entrou em vigor no dia 02 de janeiro de 2016 O Estatuto da Pessoa com

Deficiecircncia traz regras e orientaccedilotildees para que os direitos dessa parcela da

populaccedilatildeo sejam garantidos e estabelece puniccedilotildees para atitudes discriminatoacuterias ldquoO

documento consolida as leis existentes e avanccedila nos princiacutepios da Cidadaniardquo

reitera Paim

Em seu Capiacutetulo IX ndash Do Direito agrave Cultura ao Esporte ao Turismo e ao Lazer

Art 43 prevecirc ldquoO poder puacuteblico deve promover a participaccedilatildeo da pessoa com

deficiecircncia em atividades artiacutesticas intelectuais culturais esportivas e recreativas

com vistas ao seu protagonismordquo

Outro importante marco legislatoacuterio no referente agrave acessibilidade cultural eacute o

Plano Nacional de Cultura (PNC) ldquoinstituiacutedo pela Lei 12343 de 02 de dezembro de

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2010 tem por finalidade o planejamento e implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de

longo prazo (ateacute 2020) voltadas agrave proteccedilatildeo e promoccedilatildeo da diversidade cultural

brasileirardquo (Ministeacuterio da Cultura)

Em especial a Meta 29 do Ministeacuterio da Cultura que se refere agrave

acessibilidade de espaccedilos e instrumentos culturais afirmando que

100 de bibliotecas puacuteblicas museus cinemas teatros arquivos puacuteblicos e centros culturais devem atender aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolver accedilotildees de promoccedilatildeo da fruiccedilatildeo cultural por parte das pessoas com deficiecircncia

Seguindo a linha de referenciais norteadores no tema da acessibilidade

temos como leitura obrigatoacuteria a publicaccedilatildeo do livro Nada sobre noacutes sem Noacutes

relatoacuterio final da Oficina Nacional de Indicaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Culturais para

Inclusatildeo de Pessoas com Deficiecircncia que se realizou na cidade do Rio de Janeiro

no periacuteodo de 16 a 18 de outubro de 2008 numa parceria da Secretaria da

Identidade e da Diversidade Cultural do Ministeacuterio da Cultura (SIDMinC) com a

Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Ministeacuterio da Sauacutede e com apoio da Caixa

Econocircmica Federal (CEF) Esta Oficina foi destinada a artistas gestores puacuteblicos

pesquisadores e agentes culturais da sociedade civil representativos do campo da

produccedilatildeo cultural das pessoas com deficiecircncia Conforme consta na introduccedilatildeo

desta publicaccedilatildeo o objetivo dessa oficina foi

Indicar diretrizes e accedilotildees no sentido de contribuir para a construccedilatildeo de poliacuteticas culturais de patrimocircnio difusatildeo fomento e acessibilidade para pessoas com deficiecircncia A oficina foi constituiacuteda a partir de um processo participativo e por isso adotamos o lema lsquoNada sobre Noacutes sem Noacutesrsquo

Por fim um dos documentos mais significativos de orientaccedilatildeo para poliacuteticas

puacuteblicas direcionadas agraves pessoas com deficiecircncia eacute a Convenccedilatildeo dos Direitos das

Pessoas com Deficiecircncia da ONU de 2008 em que o Brasil eacute um dos paiacuteses

signataacuterios ou seja aceitou estar juridicamente vinculado agrave obrigaccedilatildeo de tratar as

pessoas com deficiecircncia como sujeitos de direito com direitos bem definidos tal

como qualquer outra pessoa A Convenccedilatildeo eacute um Tratado Internacional de Direitos

Humanos aprovado na Assembleia Geral da ONU em 13 de dezembro de 2006 e

assinado pelo Brasil em 30 de marccedilo de 2007 Entrou em vigor em 03 de maio de

2008 apoacutes ter sido ratificado por 20 (vinte) paiacuteses membros das Naccedilotildees Unidas Eacute

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um instrumento que reafirma os princiacutepios universais (dignidade integralidade

igualdade acessibilidade e natildeo discriminaccedilatildeo) a todos os cidadatildeos em particular agraves

pessoas com deficiecircncia Tem como objetivo promover proteger e assegurar o

exerciacutecio pleno de todos os direitos humanos e fundamentais por parte de todas as

pessoas com deficiecircncia e promover o respeito pela sua dignidade

Metodologia A partir de uma pesquisa praacutetica teoacuterica 06 (seis) grupos de teatro do

municiacutepio de Porto Alegre no estado do Rio Grande do Sul foram entrevistados

respondendo um questionaacuterio com perguntas objetivas e abertas e instigados a

dialogar sobre a pauta da acessibilidade cultural no meio teatral Para uma base

analiacutetica e de avaliaccedilatildeo com os referidos grupos o estudo daraacute conta

primeiramente de discutir as Leis de Incentivo agrave Cultura uma federal ndash Lei Rouanet

uma estadual ndash LIC e um Fundo Municipal de Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural

do municiacutepio de Porto Alegre ndash FUMPROARTE transitando assim pelas trecircs

esferas governamentais

A Lei Federal de Incentivo agrave Cultura (Lei nordm 8313 de 23 de dezembro de

1991) eacute a lei que institui poliacuteticas puacuteblicas para a cultura nacional atraveacutes do

Programa Nacional de Apoio agrave Cultura (Pronac) O grande diferencial da Lei

Rouanet eacute o mecanismo de incentivos fiscais em deduccedilotildees do Imposto de Renda

(IR) fornecidos agraves empresas (pessoas juriacutedicas) e cidadatildeos (pessoas fiacutesicas) que

invistam em accedilotildees culturais em um percentual de 4 e 6 respectivamente

A Lei surgiu com o intuito de fomentar e estimular as empresas e cidadatildeos a

investirem em cultura aleacutem de efetivamente promover poliacutetica cultural em

acessibilidade Conforme sua Instruccedilatildeo Normativa Nordm 1 de 24 de junho de 2013

para propostas e projetos culturais define em seu Art 3ordm as medidas de

acessibilidade que devem ser observadas

XI ndash medidas de acessibilidade intervenccedilotildees que objetivem priorizar ou facilitar o livre acesso de idosos e pessoas com deficiecircncia ou mobilidade reduzida assim definidos em legislaccedilatildeo especiacutefica de modo a possibilitar-lhes o pleno exerciacutecio de seus direitos culturais por meio da disponibilizaccedilatildeo ou adaptaccedilatildeo de espaccedilos equipamentos transporte comunicaccedilatildeo e quaisquer bens ou serviccedilos agraves suas limitaccedilotildees fiacutesicas

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sensoriais ou cognitivas de forma segura de forma autocircnoma ou acompanhada []

Jaacute na Lei de Incentivo agrave Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (LIC) natildeo haacute

referecircncias ao campo da acessibilidade Em sua Instruccedilatildeo Normativa Nordm 01 de 29

de fevereiro de 2016 da Secretaria da Cultura do Estado (SEDAC) natildeo haacute qualquer

menccedilatildeo ao tema A LIC assim como o FAC ndash Fundo de Apoio agrave Cultura fazem

parte do Sistema Unificado PROacute-CULTURA do RS programa que consiste no apoio

e fomento agraves atividades culturais do estado

Poderatildeo ser beneficiados pela LIC projetos culturais nas aacutereas de artes

plaacutesticas e grafismos artes cecircnicas e carnaval de rua cinema e viacutedeo literatura

muacutesica artesanato e folclore acervo e patrimocircnio histoacuterico e cultural

Aprovada e sancionada em 19 de agosto de 1996 a Lei Nordm 10846 (LIC)

institui a deduccedilatildeo fiscal de ICMS em ateacute 75 do valor aplicado pela empresa em

projetos culturais sendo os outros 25 repassados pelo patrocinador ao FAC

instituiacutedo pela Lei Nordm 11706 de 18 de dezembro de 2001 que tem por finalidade

financiar projetos culturais em 100 do seu valor e fomentar a produccedilatildeo artiacutestico-

cultural do Rio Grande do Sul mas tambeacutem natildeo apresenta criteacuterios referentes agrave

acessibilidade de forma obrigatoacuteria em seus editais destinados agraves Artes Cecircnicas

mais especificamente agrave aacuterea do teatro

O Fundo Municipal de Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural do municiacutepio de

Porto Alegre (FUMPROARTE) que eacute gerido pela Secretaria Municipal da Cultura

deste municiacutepio foi criado como forma de apoio agrave produccedilatildeo artiacutestica local com a

finalidade de financiar projetos de bolsas de pesquisa e de produccedilatildeo artiacutestico-

cultural Criado pela Lei Nordm 7328 de 04 de outubro de 1993 o FUMPROARTE abre

normalmente dois concursos anuais que satildeo divulgados atraveacutes de editais puacuteblicos

Podem concorrer ao Edital de Projetos apresentados pessoas fiacutesicas ou juriacutedicas

que proponham accedilotildees em qualquer aacuterea cultural

Analisando seu uacuteltimo edital de 2015 eacute possiacutevel observar que no capiacutetulo 4

Inscriccedilatildeo no item 43 Retorno de Interesse Puacuteblico no subitem 434 consta que ldquoos

projetos poderatildeo contemplar ainda accedilotildees de promoccedilatildeo de acessibilidade para

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pessoas com deficiecircncia []rdquo O que evidencia a sua natildeo obrigatoriedade

(ldquopoderatildeordquo) do criteacuterio ldquoacessibilidaderdquo para avaliaccedilatildeo dos projetos

Propondo um melhor entendimento e relaccedilatildeo com os resultados obtidos na

pesquisa os grupos entrevistados seratildeo aqui brevemente contextualizados

Grupo Las Brujas Cia de Teatro e Feiticcedilos

Tempo de atuaccedilatildeo 05 anos Integrantes 07 pessoas

O grupo surge em 2011 e em 2012 criou o espetaacuteculo infantil ldquoA Menina do

Cabelo Vermelhordquo que atraveacutes de sua personagem ldquoFiloacuterdquo busca trabalhar a

diversidade e inclusatildeo Em 2013 o grupo firmou uma parceria com a OVNI

Acessibilidade Universal ndash empresa com sede em Porto AlegreRS que produz

audiodescriccedilatildeo (AD) e legendas para surdos e ensurdecidos (LSE) ndash e consolidou-

se como o primeiro trabalho de teatro infantil da Regiatildeo Sul a proporcionar recurso

de audiodescriccedilatildeo aberta (onde natildeo satildeo utilizados aparelhos individuais para a

recepccedilatildeo) em suas sessotildees Aleacutem de audiodescriccedilatildeo em 2014 o espetaacuteculo teve

sessotildees com traduccedilatildeo simultacircnea em Libras ndash Liacutengua Brasileira de Sinais -- para

pessoas com deficiecircncia auditiva e distribuiacuteram livros e aacuteudios-livro ao puacuteblico

presente

Teatro Sarcaustico

Tempo de atuaccedilatildeo 12 anos Integrantes 13 pessoas

Com uma formaccedilatildeo de 12 (doze) anos o grupo que surgiu dentro do

Departamento de Arte Dramaacutetica da UFRGS jaacute tem um longo caminho de trabalhos

e espetaacuteculos montados notoriamente reconhecidos pelo puacuteblico e criacutetica Sua linha

de trabalho estaacute embasada no corpo e suas manifestaccedilotildees improvisaccedilotildees intensas

textos e criaccedilotildees proacuteprias

Uma das coordenadoras do grupo comenta que ele esteve sempre tatildeo

preocupado em trabalhar se autossustentar por tratar-se de um grupo

independente que a questatildeo da acessibilidade lhes passou ldquobatidordquo Algo novo para

se pensar mas que nunca realizaram nenhuma accedilatildeo contemplando a temaacutetica e a

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falta de recursos e orccedilamentos por si soacute jaacute eacute um grande complicador para

acessibilizar espetaacuteculos

Apesar de natildeo trabalharem direto com a questatildeo da acessibilidade o grupo

estaacute preocupado em discutir e dialogar sobre a diversidade a exclusatildeo Um dos

seus uacuteltimos espetaacuteculos uma montagem infantil ndash ldquoFranky Frankenstein um

Divertido conto de Terror sobre Amizaderdquo - aborda a ldquodiferenccedilardquo a diversidade no

mundo atual

Rococoacute Produccedilotildees Artiacutesticas e Culturais

Tempo de atuaccedilatildeo 05 anos Integrantes 02 coordenadores + 10 colaboradores

diretos

A empresa e grupo de teatro Rococoacute surgem a partir de dois atores e

bailarinos que trabalham em uma linha de investigaccedilatildeo da cultura tradicionalista

gauacutecha pluralidades de linguagens e formaccedilatildeo de plateia atraveacutes de editais

prefeituras SESC educaccedilatildeo escolas oficinas e assessoria em projetos culturais

Seu uacuteltimo espetaacuteculo ldquoEra uma vezContos Lendas e Cantigasrdquo do Projeto

ldquoA Visita da Fantasiardquo eacute bastante narrativo o que acredita Henrique ajuda que

pessoas com deficiecircncia visual possam entendecirc-lo melhor Fazem tambeacutem

reconhecimento de palco cenaacuterio figurinos quando haacute alguma deficiecircncia visual

Mas Henrique expressa a dificuldade de conhecimento que se tem sobre

acessibilidade no meio artiacutestico de entendimento ldquoNatildeo se pensa no assunto natildeo

enxergamosrdquo Disse que chegaram a pensar somente quando o espetaacuteculo jaacute estava

circulando

Grupo Trilho de Teatro Popular

Tempo de atuaccedilatildeo 10 anos Integrantes 05 pessoas

O Grupo Trilho trabalha essencialmente na linha social e didaacutetica de Bertolt

Brecht e do clown nas oficinas e montagens de seus espetaacuteculos Satildeo um grupo

independente que participa de editais mas seus orccedilamentos partem mais da venda

de espetaacuteculos e oficinas

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Um dos coordenadores e fundadores do grupo fala de nunca terem

trabalhado a questatildeo da acessibilidade e nem pensarem em aplicaacute-la por

desconhecimento do assunto pela falta de recursos financeiros e por serem outras

as demandas tratadas pelo grupo mesmo que de minorias como preconceito

racismo sexualidade gecircnero a pauta da deficiecircncia nunca esteve presente

Apesar de natildeo trabalharem diretamente com acessibilidade Daniel frisa que o

teatro de rua muito presente nos espetaacuteculos do grupo por sua democratizaccedilatildeo eacute

em partes mais acessiacutevel

Associaccedilatildeo Cultural Depoacutesito de Teatro

Tempo de atuaccedilatildeo 20 anos Integrantes 06 pessoas

O Grupo Depoacutesito do Teatro eacute uma entidade cultural sem fins

lucrativos fundada em 1996 Durante todos seus anos de atuaccedilatildeo produziu e

montou mais de 25 espetaacuteculos profissionais reconhecidos pela criacutetica e puacuteblico

conquistando inuacutemeras indicaccedilotildees e precircmios do Trofeacuteu Accedilorianos e Tibicuera da

Prefeitura de Porto Alegre

O grupo tem como um de seus principais objetivos a ldquotroca humana a

constituiccedilatildeo de sujeitos criativos autecircnticos e profundamente sensiacuteveisrdquo relata o

diretor e fundador da Associaccedilatildeo Cultural Depoacutesito de Teatro Poreacutem afirma

tambeacutem nunca terem trabalho acessibilidade ou com recursos acessiacuteveis em seus

espetaacuteculos ou oficinas

Grupo Signatores (Teatro com Surdos)

Tempo de atuaccedilatildeo 06 anos Integrantes 14 pessoas

O Signatores eacute um grupo de teatro biliacutengue sendo a primeira liacutengua a Liacutengua

Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a segunda o Portuguecircs E os membros do grupo

satildeo pesquisadores e professores especialistas na aacuterea de Educaccedilatildeo e Artes da

Comunidade Surda

Todos os seus espetaacuteculos satildeo representados por atores surdos em LIBRAS

e acompanhados por personagens narradores aacuteudio em Portuguecircs Os espetaacuteculos

apresentados pelo grupo foram ldquoAventuras no Reino Surdordquo ldquoMemoacuteria na Ponta dos

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Dedosrdquo ldquoO ensaio de Alicerdquo e ldquoAlice no Paiacutes das Maravilhasrdquo O grupo jaacute foi

contemplado com vaacuterios Editais a niacutevel municipal e estadual e financiamento

atraveacutes da Lei Rouanet

Em entrevista com a diretora ela pontua as diretrizes de trabalho do

Signatores Este que tem se mostrado um grupo bastante atuante no Estado quando

o assunto eacute inclusatildeo social acessibilidade e diversidade ldquoA proposta do Grupo

Signatores eacute incentivar a formaccedilatildeo de docentes e pesquisadores na aacuterea teatral e

aproximar jovens e adultos surdos dos palcos investigando as possibilidades de

criaccedilatildeo artiacutestica dos surdos [] invertendo a loacutegica vigenterdquo

Resultados de dados

Com base no questionaacuterio aplicado no acompanhamento e entrevistas aos

grupos surgem os diferentes questionamentos quanto ao entendimento e

conhecimento sobre questotildees referentes agrave acessibilidade e suas legislaccedilotildees assim

como aplicabilidade dos recursos acessiacuteveis O Graacutefico 1 denota que a maioria dos

grupos entrevistados jaacute teve contato com tema sobre acessibilidade cultural

(pergunta 1) e em uma quase equivalecircncia jaacute trabalhou com pessoas com

deficiecircncia ou teve acesso a recursos acessiacuteveis (perguntas 2 e 3) Em sua maioria

jaacute participou de algum edital de Lei de Incentivo agrave cultura (pergunta 4)

GRAacuteFICO 1

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Jaacute no Graacutefico 2 evidencia-se o desconhecimento de Poliacuteticas Puacuteblicas e

Legislaccedilatildeo sobre o tema da acessibilidade cultural (perguntas 5 e 8) As perguntas 6

e 7 referem-se respectivamente agrave existecircncia de grupos de teatro que trabalham

com recursos acessiacuteveis em seus projetos e se haacute Casas de Teatro acessiacuteveis em

Porto Alegre Todos os grupos pontuaram a falta de um conhecimento maior e

percepccedilatildeo em relaccedilatildeo ao assunto pautado e natildeo se consideram ldquoacessiacuteveisrdquo de

forma plena e eficaz Evidenciou-se o interesse de todos em pensar discutir e

aprender mais sobre acessibilidade

GRAacuteFICO 2

Conclusotildees

Com base nos resultados obtidos com as pesquisas e discussotildees pode-se

avaliar que poliacuteticas puacuteblicas que garantam os direitos culturais das pessoas com

deficiecircncia devem transitar por todas as esferas governamentais e natildeo ficarem

restritas ao acircmbito burocraacutetico que muitas vezes as consolidam O diaacutelogo entre

poder puacuteblico Instituiccedilotildees e gestores culturais eacute de cunho fundamental para a

articulaccedilatildeo de propostas e medidas inclusivas que de fato consolidem-se no cenaacuterio

cultural

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O que temos visto ainda eacute uma consciecircncia social muito enraizada e que

precisa ser constantemente trabalhada em barreiras atitudinais que natildeo permitem

ampliar a visatildeo quando o que estaacute em pauta satildeo as deficiecircncias Sabemos que

atraveacutes da cultura e educaccedilatildeo caminharemos para um futuro mais promissor com

menos desigualdades sociais menos violecircncia mais possibilidades ldquoO teatro

permite a construccedilatildeo de mentes mais livres e de cidadatildeos mais esclarecidos e

ativosrdquo (VIGANOacute 2006 p 36)

O olhar sentir o outro satildeo premissas baacutesicas para o comunicar Natildeo haacute

construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais e humanas se natildeo houver o reconhecimento do outro

como parte integrante de nossas vidas

Natildeo basta um pouco de eacutetica uma pitada de cidadania toques de cumplicidade um quecirc de direitos fundamentais Sempre que discutirmos estes assuntos agraves uacuteltimas consequecircncias estaremos colaborando para resolver a principal questatildeo incluir pessoas com deficiecircncia [] no TODOS social incondicionalmente (WERNECK 2012 p 27)

Referecircncias BARBA Eugenio Aleacutem das ilhas flutuantes Campinas SP Hucitec 1991 BAUMAN Zygmunt Tempos Liacutequidos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 BOAL Augusto 200 exerciacutecios e jogos para o ator e o natildeo-ator com vontade de dizer algo atraveacutes do teatro 5ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo SA 1983 BOSSI Alfredo Fenomenologia do olhar In BOSSI A O Olhar Satildeo Paulo Companhia das Letras 1988 BRASIL Ministeacuterio da Cultura As metas do Plano Nacional de Cultura Brasiacutelia Ministeacuterio da Cultura 2012 Disponiacutevel em lt httpswwwplanaltogovbrccivil_03_ato2007-20102010leil12343htmgt Acesso em 21 de dezembro de 2016 BRASIL Constituiccedilatildeo Federal 1988 BRASIL Convenccedilatildeo dos Direitos das Pessoas com Deficiecircncia da ONU 2008 Disponiacutevel em lt httpwwwplanaltogovbrccivil_03_Ato2007-20102009DecretoD6949htmgt Acesso em 21 de dezembro de 2016

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KASTRUP Virinia Vergara Luiz Guilherme Cegos e videntes se encontram no museu da dicotomia agrave partilha do sensiacutevel Ineacutedito MERLEAU-PONTY Maurice Fenomenologia da Percepccedilatildeo Martins Fontes 1994 Oficina Nacional de Indicaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Culturais para Inclusatildeo de Pessoas com Deficiecircncia Nada sobre noacutes sem noacutes Relatoacuterio final 16 a 18 de outubro de 2008 Rio de janeiro Rj ENSPFIOCRUZ 2009 SANTOS Boaventura de Sousa Reconhecer para libertar os caminhos do cosmopolitanismo multicultural Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003 TOJAL Amanda Pinto da Fonseca Comunicaccedilatildeo museoloacutegica e accedilatildeo educativa inclusiva mudanccedila de paradigmas In CARDOSO Eduardo CUTY Jeniffer (Org) Acessibilidade em ambientes culturais relatos de experiecircncias Porto Alegre Marcavisual 2014 VIGANOacute Suzana Schmidt As regras do jogo a accedilatildeo sociocultural em teatro e o ideal democraacutetico Satildeo Paulo Hucitec 2006 WERNECK Claudia Ningueacutem mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva Rio de Janeiro Editora WVA 2009 WERNECK Claudia Quem cabe no seu todos Rio de Janeiro Editora WVA 2006

Page 4: Fundação Municipal de Artes de Montenegro · Priscila Mathias Rosa – Vice-diretora Executiva Márcia Moura Cordeiro Pessoa Dal Bello ... (UNL/SANTA FE) Ana Maria Haddad Baptista

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EDITORIAL

Nesta 32ordf ediccedilatildeo da Revista da FUNDARTE oferecemos aos nossos leitores

oito artigos centrados nas aacutereas das artes visuais muacutesica teatro educaccedilatildeo criadora

e cinema Eles estatildeo perpassados por enfoques educativos teoacutericos e artiacutesticos e

ancorados no tema ldquoArte e Educaccedilatildeo poeacutetica pesquisa e docecircnciardquo As

abordagens dos autores contemplam diferentes pontos de vista ora apresentando

processos artiacutesticos e performances ora refletindo sobre a pedagogia e a accedilatildeo

docente Eacute um panorama diversificado com propostas que enriquecem as discussotildees

em torno do tema

O primeiro artigo denominado ldquoA polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da

muacutesica popular uma proposta analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de casordquo

de Marcio Guedes Correa do Instituto de Artes da Unesp apresenta estudos de caso

na aacuterea da muacutesica que reforccedilam a importacircncia do contraponto tanto para a

organizaccedilatildeo do ensino da muacutesica popular quanto para a compreensatildeo do saber

musical Almada e Lima satildeo alguns dos autores que datildeo suporte agrave investigaccedilatildeo

Idalina Krause de Campos da UFRGS discorre em seu artigo ldquoFazer

tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery espiritografiasrdquo sobre conceitos de

leitura e escrita (escrileitura) e Filosofia da Diferenccedila entre outros que buscam

desenvolver uma consciecircncia da importacircncia do processo de pensar A pesquisa da

autora trata de uma praacutetica de ensino criadora centrada na obra de Valeacutery com

aportes teoacutericos tambeacutem de Deleuze e Corazza

As experiecircncia realizadas com diferentes meios e modos de produzir imagens

satildeo o foco do artigo ldquoGravura procedimentos alternativos em litografia

contemporacircneardquo de Ana Paula Schoninger van Grol da FeevaleNH

Procedimentos tradicionais satildeo inter-relacionados com processos de tecnologias

digitais propondo novas possibilidades de criaccedilatildeo de matrizes e aproveitamento de

materiais alternativos Blauth e Veneroso contribuem para o estudo da autora

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Fernando Lewis de Mattos da UFRGS em seu ensaio ldquoPluralia Tantum

reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircneardquo apresenta elementos histoacutericos da

esfera musical e discorre sobre caracteriacutesticas da muacutesica contemporacircnea Aponta

paralelamente aspectos do conservadorismo da muacutesica atual presentes em nosso

cotidiano Suas argumentaccedilotildees apoiam-se em extensa bibliografia da qual citamos

Buckinx e Koellreutter

ldquoProvocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa

das imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docenterdquo aborda o cinema como dispositivo

provocador de formaccedilatildeo docente que conforme o autor Lutiere Dalla Valle da

UFSM ldquoproduz formas de ver e ser vistordquo O texto estabelece relaccedilotildees entre arte e

subjetividade presentes na cinematografia e explora o conceito de edu(vo)cativo

identificado nas aprendizagens mediadas pelas visualidades Contribuem para as

reflexotildees Dias Fresquet e Hernaacutendes

Fernando Pinheiro Villar aborda a pluraridade do conceito de performances

artiacutesticas relacionadas ao desempenho no seu artigo PerfomanceS Para o autor o

significado de desempenho afirma a observaccedilatildeo analiacutetica de comportamentos

humanos podendo significar comportamentos que se repetem ou accedilotildees cotidianas

que satildeo ensaiadas ou preparadas e observadas Segundo o autor ldquouma performance

sem consciecircncia do fato de estar sendo vista como tal pode significar uma

performance cotidiana cultural ou socialrdquo

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel Pacircmela Goumlethel Dutra e Ana Maria Bueno

Accorsi no artigo Estudo sobre a participaccedilatildeo de estudantes em um Grupo

Instrumental apresenta a pesquisa realizada em uma escola Municipal de TaquariR

que teve como objetivo compreender a importacircncia da participaccedilatildeo dos alunos em

grupos instrumentais diante das diversas possiblidades da inserccedilatildeo da muacutesica a partir

da nova legislaccedilatildeo

Como promover a inclusatildeo social da pessoa com deficiecircncia no acircmbito cultural

eacute a preocupaccedilatildeo de Izabel Cristina da Silveira da FUNDARCRS expressa no artigo

6 | P aacute g i n a

ldquoTeatro para quem A arte de teatrar para todos um estudo sobre

acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RSrdquo que fecha esta Revista O

estudo praacutetico-teoacuterico desvela discussotildees questionamentos e legislaccedilatildeo em torno do

tema na tentativa de buscar alternativas para a acessibilidade Barba Tojal e

Werneck satildeo alguns dos teoacutericos consultados

Agradecemos imensamente aos que enviaram seus artigos para compor a 32ordf

Revista da FUNDARTE Desejamos uma boa leitura e que as reflexotildees oferecidas

pelos autores contribuam para a busca de novos e inquietantes saberes

Maria Isabel Petry Kehrwald Conselho Editorial da Revista

7 | P aacute g i n a

CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta

analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de caso

Marcio Guedes Correa1

Instituto de Artes da Unesp

Resumo O repertoacuterio estudado nos cursos formais de muacutesica popular eacute em grande parte tonal de textura homofocircnica estruturado como melodia acompanhada No entanto eacute possiacutevel reconhecer estruturas polifocircnicas subordinadas agrave homofonia dos acompanhamentos instrumentais frequentemente realizados para acompanhar canccedilotildees Pode-se conjecturar que tais estruturas estejam presentes no repertoacuterio como um eco da polifonia vocal do renascimento e do barroco jaacute que muitas escolhas de acordes se datildeo ldquode ouvidordquo e natildeo necessariamente por uma opccedilatildeo teacutecnica e funcional em relaccedilatildeo agrave harmonia Portanto a harmonia informalmente chamada de funcional da muacutesica popular pode carregar em si diversas expectativas de direccedilatildeo ou resoluccedilatildeo que satildeo mais de ordem meloacutedica do que harmocircnica Este estudo espera contribuir para a revalorizaccedilatildeo do estudo de contraponto dentro das matrizes curriculares de muacutesica popular jaacute que eacute notoacuterio que tal disciplina vem sendo extinta do ambiente formal de educaccedilatildeo musical Palavras-chave ensino da muacutesica popular cifra alfanumeacuterica polifonia em muacutesica popular contraponto em muacutesica popular Abstract The repertoire studied in formal courses of popular music is largely tonal It has homophonic texture and itrsquos structured as na accompanied melody However it is possible to recognize polyphonic structures under the homophone of instrumental accompaniments often performed to accompany songs One can conjecture that such structures are present in the repertoire as an echo of the vocal polyphony of the Renaissance and the Baroque as many chord choices are given by ear and not necessarily by a technical and functional option with regard to harmony Therefore the functional harmony informally called popular music can load itself diverse expectations of management or resolution that are more melodic than harmonic order This study hopes to contribute to the upgrading of counterpoint study within the curriculum matrices of popular music as it is clear that this discipline is being extinguished of the formal setting of music education Keywords teaching of popular music alphanumeric cipher polyphony in popular music counterpoint in popular music

Primeiro estudo de caso o movimento meloacutedico do baixo impliacutecito na cifra do

choro em Um a Zero de Pixinguinha

No ensino do repertoacuterio popular eacute muito comum a utilizaccedilatildeo de partituras que

contecircm melodias cifradas Esta forma de registro musical oferece a melodia principal

(anaacuteloga ao cantus firmus) grafada em partitura o que garante uma certa precisatildeo

na compreensatildeo dessa camada mas todos os outros elementos componentes da

1 Graduado em Licenciatura em Muacutesica pela FAAM mestre em muacutesica pelo Instituto de Artes da Unesp Doutorando em muacutesica da Unesp ndash Instituto de Artes sob orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Sonia R Albano de Lima Contato correamarcioguedesgmailcom

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elaboraccedilatildeo musical ficam representados unicamente pela cifra alfanumeacuterica A cifra

confere ao interprete um grau de liberdade desejaacutevel na muacutesica popular mas essa

mesma liberdade pode ser em alguma medida prejudicial no ensino de muacutesica

popular quando se trata da compreensatildeo total do discurso a praacutetica aliada a

compreensatildeo racional do fazer musical

A cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular eacute em primeira instacircncia uma

representaccedilatildeo de simultaneidades mais especificamente dos acordes da muacutesica

tonal Mas da informaccedilatildeo harmocircnica que a cifra oferece eacute possiacutevel depreender

tambeacutem procedimentos meloacutedicos complementares agrave melodia principal ou seja do

contraponto impliacutecito e subordinado agrave estrutura homofocircnica Pode-se considerar que

o caso mais audiacutevel estaacute nas melodias empregadas no baixo Em cifras em que haacute

fartura de acordes com inversatildeo percebe-se uma clara intenccedilatildeo de movimentar o

baixo melodicamente ou seja de conferir a essa camada estrutural contornos

meloacutedicos associados ao seu papel de delinear as fundamentais das funccedilotildees

harmocircnicas No repertoacuterio relacionado ao choro o violatildeo de sete cordas desenvolve

a funccedilatildeo de baixo que aleacutem de reforccedilar a estrutura harmocircnica tonal estaacute em

contraponto constante com a melodia principal

A composiccedilatildeo ldquoUm a Zerordquo de Pixinguinha eacute um exemplo disso

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Figura 1 ldquoUm a Zerordquo (Pixinguinha) Irmatildeos Vitale 1997

O exemplo da figura 1 traz a primeira parte da composiccedilatildeo A quantidade de

inversotildees de acordes presente procura dar pistas da realizaccedilatildeo do baixo comumente

tocado no violatildeo de sete cordas Isso retira do baixo o papel monoacutetono de garantir a

fundamental de cada funccedilatildeo harmocircnica Com base nesta cifra o muacutesico popular de

modo anaacutelogo ao muacutesico barroco realiza o baixo Na figura dois encontra-se uma

sugestatildeo de realizaccedilatildeo do baixo com base nas cifras

Figura 2 Realizaccedilatildeo do baixo em ldquoUm a Zerordquo de Pixinguinha Imagem concebida e editada pelo autor

Segundo estudo de caso a polifonia tonal no acompanhamento da canccedilatildeo

ldquoQuando o carnaval chegarrdquo de Chico Buarque

O ensino de harmonia da muacutesica popular ldquomais especificamente aquela que

eacute informalmente denominada harmonia funcionalrdquo (ALMADA 2013 p 12) se

preocupa em primeiro lugar em determinar a funccedilatildeo de cada um dos acordes

encontrados no discurso musical Este tipo de ensino tem objetivos diversos

compreender estruturas harmocircnicas orientar a praacutetica da improvisaccedilatildeo meloacutedica

guiar estudos de rearmonizaccedilatildeo e substituiccedilatildeo de acordes entre outros Poreacutem em

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alguns casos acordes podem ser simultaneidades geradas por direccedilotildees meloacutedicas

distintas na conduccedilatildeo de cada voz ldquoNo estudo da harmonia tonal acordes podem

surgir a partir de combinaccedilotildees de linhas meloacutedicas relativamente independentesrdquo

(LIMA 2008 p 63) Ainda que tais procedimentos meloacutedicos possam natildeo ser

conscientes pelo muacutesico que desenvolve a funccedilatildeo de acompanhamento pode-se

conjecturar que sua percepccedilatildeo auditiva esteja imbuiacuteda de sonoridades

caracteriacutesticas da muacutesica vocal polifocircnica e isso em algum momento pode

transparecer em acompanhamentos instrumentais

No presente estudo de caso eacute possiacutevel observar procedimentos polifocircnicos

na conduccedilatildeo dos acordes da primeira parte da canccedilatildeo ldquoQuando o Carnaval Chegarrdquo

de Chico Buarque Em diversas entrevistas o compositor carioca revela que

aprendeu a tocar violatildeo sozinho tentando imitar o violatildeo de Joatildeo Gilberto e

portanto natildeo conhece harmonia e suas regras As escolhas de acordes feitas por

compositores autodidatas se datildeo quase unicamente por sonoridade Ou seja um

acorde eacute seguido por outro porque o som eacute satisfatoacuterio para os objetivos do

compositor Disso pode-se compreender que tais escolhas harmocircnicas estatildeo

carregadas de expectativas meloacutedicas ou seja cada acorde eacute ouvido como um

conjunto simultacircneo de notas potencialmente meloacutedicas como o satildeo no estudo da

harmonia tradicional Portanto este estudo pretende apontar para a possibilidade de

anaacutelise harmocircnica em que alguns acordes sejam considerados simultaneidades de

expectativas meloacutedicas e estes tecircm menor concordacircncia com a anaacutelise harmocircnica

ou funcional

O estudo da harmonia natildeo pressupotildee obrigatoriamente apenas simultaneidade () eacute importante que seja considerado o movimento meloacutedico de cada linha (voz) A inter-relaccedilatildeo entre melodia harmonia ritmo dinacircmica textura etc satildeo fatores que devem ser levados em conta na anaacutelise e na composiccedilatildeo de uma peccedila (LIMA 2008 p 117)

Eacute necessaacuterio estudar certas passagens harmocircnicas agrave luz da polifonia e

portanto do contraponto

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Figura 4 anaacutelise do contraponto presente na harmonia de ldquoQuando o Carnaval Chegarrdquo de Chico Buarque Imagem concebida e editada pelo autor

O exemplo da Figura 4 oferece uma opccedilatildeo de compreensatildeo harmocircnica

diferente da sugerida na partitura O primeiro acorde eacute visto como faacute meio diminuto

na primeira inversatildeo em vez de laacute menor com sexta maior como sugerido na cifra

original O acorde seguinte o primeiro grau eacute um sol maior com seacutetima maior

portanto sua sensiacutevel faacute fundamental do acorde anterior ainda estaacute presente

como um retardo O terceiro acorde embora estruturalmente se iguale ao acorde de

laacute bemol diminuto de seacutetima diminuta nessa proposta de anaacutelise se daacute pela

consequecircncia de quatro figuraccedilotildees meloacutedicas bordadura no baixo nota de

passagem no tenor retardo no contralto e antecipaccedilatildeo no soprano Portanto ele natildeo

tem menos funccedilatildeo harmocircnica e mais implicaccedilotildees meloacutedicas

Quando se prolonga todas as notas que satildeo rearticuladas nos acordes do

exemplo da figura 4 depara-se com um contraponto a quatro vozes

predominantemente de segunda espeacutecie

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Figura 5 conclusatildeo contrapontiacutestica da primeira parte da canccedilatildeo ldquoquando o carnaval chegarrdquo Imagem concebida e editada pelo autor

Portanto nesta proposta de anaacutelise harmocircnica natildeo eacute possiacutevel desconsiderar

o contraponto e implicaccedilotildees polifocircnicas

Terceiro estudo de caso contraponto cromaacutetico nas dissonacircncias acima da

seacutetima no acompanhamento da canccedilatildeo ldquosamba do aviatildeordquo de Tom Jobim

A harmonia da muacutesica popular poacutes bossa-nova conferiu ldquoemancipaccedilatildeo agrave

dissonacircnciardquo emprestando a expressatildeo de Schoenberg Portanto a dissonacircncia natildeo

mais direciona os acordes no sentido de suas resoluccedilotildees mas emprestam a eles

sonoridades instaacuteveis e de alguma maneira ao mesmo tempo resolutas As

dissonacircncias conferem certa impressatildeo a cada um dos acordes mas natildeo

apresentam funccedilatildeo de interligaccedilatildeo dos fenocircmenos harmocircnicos atraveacutes da resoluccedilatildeo

delas Esta interligaccedilatildeo novamente se daacute muito mais por expectativas meloacutedicas

embutidas como vozes simultacircneas formadoras dos acordes

Embora a emancipaccedilatildeo da dissonacircncia seja plenamente presente no

repertoacuterio popular poacutes bossa-nova em alguns casos natildeo se pode desconsiderar

estruturas contrapontiacutesticas presentes nestas composiccedilotildees Eacute claro que neste caso

especiacutefico as dissonacircncias natildeo satildeo resolvidas mas suas irresoluccedilotildees natildeo raro

recaem sobre construccedilotildees meloacutedicas em vozes internas dos acordes subordinadas

agrave melodia principal ao baixo e claro agrave harmonia

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Figura 6 contraponto cromaacutetico na canccedilatildeo ldquosamba do aviatildeordquo de Tom Jobim Imagem concebida e editada pelo autor

No fragmento musical da figura 6 eacute possiacutevel identificar uma melodia cromaacutetica

embutida nas dissonacircncias acima da seacutetima A partir do compasso 5 as notas doacute

doacute si e laacute satildeo respectivamente deacutecima terceira maior deacutecima terceira menor

deacutecima segunda e deacutecima primeira aumentada do acorde de mi maior com seacutetima

menor Essas dissonacircncias constroem uma melodia cromaacutetica um contraponto

cromaacutetico

Essa melodia eacute imitada a partir do compasso 7 uma seacutetima maior abaixo nas

notas reacute do do e si respectivamente deacutecima primeira justa deacutecima maior deacutecima

menor e nona maior dos acordes laacute maior com seacutetima maior e laacute menor com seacutetima

menor A melodia cromaacutetica original e sua imitaccedilatildeo uma seacutetima menor abaixo

comeccedilam e terminam em dissonacircncia

Consideraccedilotildees Finais

As propostas aqui apresentadas pretendem apontar para uma contribuiccedilatildeo

dos gecircneros de muacutesica erudita na estruturaccedilatildeo do ensino da muacutesica popular mais

especificamente buscam valorizar o estudo da disciplina contraponto Talvez as

estruturaccedilotildees dos curriacuteculos de cursos de muacutesica possam ser de certo modo

exclusivamente populares apenas na escolha do repertoacuterio a ser aprendido e ainda

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assim persiste a discussatildeo do que vem a ser muacutesica popular e muacutesica erudita e se

essa fronteira existe com tanta clareza No acircmbito da estruturaccedilatildeo teacutecnica e teoacuterica

a hibridez dos conhecimentos historicamente categorizados como de muacutesica erudita

e popular parece ser inevitaacutevel O estudo do contraponto parece ainda ser

indispensaacutevel para fomentar uma compreensatildeo mais ampla do saber musical em

diversos acircmbitos em diferentes gecircneros e estilos

Referecircncias

ALMADA Carlos Contraponto em muacutesica popular fundamentaccedilatildeo teoacuterica e aplicaccedilotildees Rio de Janeiro Editora UFRJ 2013

BORTZ Graziela Direccedilatildeo e Movimento em Solfejos Tonais Percepta ndash revista de cogniccedilatildeo musical Curitiba 1 (1) 95-107 novembro de 2013 CARRASQUEIRA Maria Joseacute O melhor de Pixinguinha Songbook Satildeo Paulo Irmatildeo Vitale 1997 LIMA Marisa Ramirez Rosa de Harmonia Satildeo Paulo Embraform 2008 LIMA Sonia Regina Albano de Performance e interpretaccedilatildeo musical uma praacutetica interdisciplinar Satildeo Paulo Musa Editora 2006 NOGUEIRA Marcos Fernandes Pupo Agrupamentos Sonoros Plenos na Muacutesica de Simultaneidades Acuacutesticas e Estruturais Revista Muacutesica Hodie Goiacircnia v12 nordm 2 p87-972012 Disponiacutevel em lthttpwwwmusicahodiemusbr122artigo_7pdfgt Acesso em 07 de dezembro de 2016 SCHOENBERG Arnold Exerciacutecios Preliminares em Contraponto Traduccedilatildeo de Eduardo Seincman Satildeo Paulo Via Lettera 2001

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Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery espiritografias

Idalina Krause de Campos1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo Este artigo analisa as possibilidades de um fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo tendo como foco o poeta e pensador francecircs Paul Valeacutery e seus procedimentos muacuteltiplos de escrita uma escrita que opera com a leitura ― escrileitura ― e eacute considerada uma operaccedilatildeo ativa de consciecircncia que possibilita ampliar o uso das faculdades intelectivas de um espiacuterito que lecirc e escreve Propotildee atuar e operar com o meacutetodo do informe em atravessamentos imaginativos da filosofia com a literatura e a educaccedilatildeo da diferenccedila aleacutem de utilizar o conhecimento como invenccedilatildeo por meio de procedimentos tradutoacuterios que possibilitem accedilotildees criadoras em educaccedilatildeo Palavras-chave Valeacutery educaccedilatildeo escrileituras traduccedilatildeo Abstract This paper analyzes the possibilities of a translating action in education by focusing on the French poet and thinker Paul Valeacutery and his multiple writing procedures a kind of writing that operates with reading ― reading-writing ― and is considered as an active operation of awareness that favors the use of intellective faculties of a spirit that reads and writes It proposes to act and operate with the inform method in imaginative intersections between philosophy literature and education of difference besides using knowledge as invention by means of translating procedures that enable creation actions in education Keywords Valeacutery education reading-writings translation

Introduccedilatildeo

O escritor Paul Valeacutery nasceu em Segravete (1871) Comuna francesa no periacuteodo

da Guerra Franco-Prussiana A porta para o mar do Mediterracircneo eacute um porto de

encantos incomparaacuteveis de um horizonte vasto banhado pelas aacuteguas de bacias e

canais que desaacuteguam no mar O pensador eacute autor de uma obra vasta

profundamente original que possui uma intensidade uacutenica e merece ser analisada

em funccedilatildeo de seu movimento de escrita e leitura (escrileitura) pois ele pesquisou

1 Possui graduaccedilatildeo em Licenciatura e Bacharelado em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul (1986) Especializaccedilatildeo em Filosofia Cliacutenica pela Faculdade Joatildeo Bagozzi e Instituto Packter

(2008) Mestrado em Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo (PPGEDU) pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (2013) na Linha Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo Atualmente eacute Doutoranda bolsista CAPES

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo na Linha

Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo Participa como pesquisadora dos projetos Dramatizaccedilatildeo do infantil na

comeacutedia intelectual do curriacuteculo meacutetodo Valeacutery-Deleuze Escrileituras um modo de ler-escrever em meio agrave

vida e Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila Membro integrante do BOP

ndash Bando de Orientaccedilatildeo e Pesquisa da Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo e do Grupo de

Pesquisa DIF ndash artistagens fabulaccedilotildees variaccedilotildees

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estudou e escreveu sobre conteuacutedos integrantes das mais diversas aacutereas do

conhecimento e que satildeo repletos de nuances e de viva poesia

Tal perspectiva oriunda de seus escritos propicia utilizar o conhecimento

como invenccedilatildeo para criar um compoacutesito de escrita e leitura e com ele produzir

meios que possibilitem accedilotildees criadoras em educaccedilatildeo o que propicia ao espiacuterito

construir a sua proacutepria realidade no campo ambiental da linguagem

Ainda em seus primeiros anos de vida o Mediterracircneo que banha a cidade

torna-se uma festa aos olhos curiosos do infante Valeacutery que considera tudo das

cores aos cheiros das formas agraves imagens de uma natureza exuberante ldquouma

verdadeira loucura de luz combinada com a loucura da aacuteguardquo (VALEacuteRY 2011 p

127) Satildeo seus primeiros passos de pensador e que trazem em germe um pensar

em estado nascente pois se deixa seduzir pela liberdade pelos estados poeacuteticos

com um olhar voltado para o mar o que eacute tambeacutem um olhar para o possiacutevel

Os olhos de Valeacutery abraccedilam o que haacute de humano e de inumano em uma

paisagem de natureza primitiva quase intocada mesclada com as atividades dos

homens que ali habitam Um grande cenaacuterio de teatro cujo personagem principal eacute

a luz que ilumina o mar Ali onde Afrodite passeia e que ao cair da tarde

crepuscular com o mar jaacute escuro deixa ver na rebentaccedilatildeo brilhos extraordinaacuterios

Onde a luz de fogo rosa insistente do sol daacute seu adeus ao dia deixando que entre

em cena a escuridatildeo da jaacute noite onde se entreveem os fantasmas que danccedilam

sobre as torres e muros de Aiguesmortes Sombras que festejam os cadaacuteveres

pesados dos atuns animais quase do tamanho de um homem trazidos pelos barcos

de pesca que adentram a costa em seu ldquoretorno da cruzadardquo (VALEacuteRY 2011 p

130)

Ao amanhecer a peccedila teatral do viviacutevel segue e a luz dos raios solares

derrama-se pelos molhes Eacute quando o pequeno Valeacutery tenciona banhar-se na

imensidatildeo cristalina do mar Poreacutem baixa os olhos e estremece diante de uma cena

singular que mistura carnificina e beleza Jazem sobre a ldquoaacutegua maravilhosamente

lisa e transparenterdquo restos de ldquoviacutesceras e entranhas de todo o bando de Netunordquo

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(VALEacuteRY 2011 p 130) Satildeo muacuteltiplas tonalidades de cores roacuteseo-puacuterpuras coral

sanguinolenta vermelhidatildeo de uma mortandade repulsivamente sinistra embalada

pelas ondas letaacutergicas

O espanto eacute inevitaacutevel e o faz esquecer o banho matinal Mas apesar do

susto que invade sua alma os olhos guardam alguma admiraccedilatildeo pelo

acontecimento fazendo vagar pensamentos relacionando o morticiacutenio repleto de

cores com imagens espectrais Misturas de tonalidades imersas na aquosidade de

um liacutempido e cristalino mar que poderiam bem servir para um fazer artiacutestico aos

homens de talento afeitos agraves curiosidades e agraves capturas de um olhar artistador

Natildeo perdura nessa imagem repentina o conteuacutedo pobre mas como pondera

Deleuze em O Esgotado (2010 p 85) vale nessa visatildeo a energia condensada ldquoa

prodigiosa energia captada prestes a explodir fazendo com que as imagens nunca

durem muito tempo [] A imagem dura o tempo furtivo de nosso prazer de nosso

olharrdquo Assim aparece a forccedila de sentimento de Valeacutery influenciado e estimulado

pelas deidades poeacuteticas do mar do ceacuteu e do sol

E o que decorre disso tudo eacute uma produccedilatildeo intelectual que foca em muacuteltiplas

temaacuteticas tendo como pano de fundo o funcionamento do intelecto atraveacutes de

accedilotildees de pensar o proacuteprio pensamento para verificar o que estes pensamentos

implicam Uma produccedilatildeo que abarca o viviacutevel e que merece ser investigada como

um meio possiacutevel para ser apropriado no acircmbito do ensino contemporacircneo em

funccedilatildeo de sua diversidade e de sua potecircncia textual

Pelo que foi possiacutevel observar em nossas pesquisas Valeacutery configura-se num

misto de poeta de pensador e de criacutetico da cultura tendo sido traduzido por

escritores e tambeacutem por poetas em vaacuterios idiomas No entanto apesar de possuir

um reconhecimento internacional pelo conjunto de suas obras produzidas eacute ainda

pouco explorado no Brasil especialmente no que tange ao uso teoacuterico e praacutetico do

seu pensamento no campo da educaccedilatildeo

Em suma como afirma Gonccedilalves (2011 p 238) Valeacutery eacute O Alquimista do

Espiacuterito ldquodevido ao seu sistema plural de linguagensrdquo em que ocorrem

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transmutaccedilotildees de montagem e desmontagem de escrita Uma verdadeira alquimia

contraacuteria agrave anestesia do gesto para que uma segunda natureza possa se apresentar

ao texto atraveacutes de um operar espiritual em constante variaccedilatildeo e que neste fazer

operativo produz uma escrita visceral e mutante cuja mateacuteria eacute a vida que se

experimenta no campo do saber como um processo aberto muacuteltiplo e desafiador

para assim buscar fazer com ele uma educaccedilatildeo disposta a disseminar as aventuras

do pensamento

Espiacuterito

Valeacutery utiliza-se da palavra francesa esprit para aludir ao Eu embora haja em

seu pensamento a distinccedilatildeo entre dois tipos de espiacuterito Moi que seria o Eu

empiacuterico (self-variance) e Moi que seria o Eu puro (Idolle de lrsquoIntelect) a ser

cultuado e buscado Este uacuteltimo conceito de Eu puro necessita ser entendido com

uma significaccedilatildeo peculiar qual seja o Eu como intelecto como inteligecircncia

Nessa perspectiva o presente artigo aborda um possiacutevel fazer tradutoacuterio em

educaccedilatildeo conjuntamente com o pensador Paul Valeacutery de modo a buscar atraveacutes

do movimento de leitura e escrita exercitar conscientemente os pensamentos que

possibilitam transitar no campo diverso do saber

O espiacuterito ndash ou Eu-empiacuterico ndash desenvolve-se conscientemente exercitando os

processos do pensar com a finalidade de conhecer Pensamento ativado via

processos de criaccedilatildeo oriundos de uma self-variance (autovariaccedilatildeo do espiacuterito)

disciplinada e rigorosa passando a verificar o que esses pensamentos implicam

procurando vecirc-los com precisatildeo e pesquisar seus labirintos sua mecacircnica psiacutequica

iacutentima e seu meacutetodo operativo

Valeacutery (2011 p179) conceitualiza as accedilotildees do pensar as invenccedilotildees

produzidas pela inteligecircncia onde o Eu-empiacuterico que se utiliza da leitura e da

escrita e consequentemente pensa define-se ldquoatraveacutes da relaccedilatildeo entre um 2010 p

85) certo lsquoespiacuteritorsquo e a linguagemrdquo Ou seja pondo em movimento um Eu-funcional

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pode-se desenvolver uma consciecircncia do processo do pensar para fins de

conhecimento expressos por intermeacutedio da linguagem

Espiacuterito este visto como um sujeito que natildeo se assujeita mas aspira agrave

criaccedilatildeo e a realiza sem divindade reguladora sem idealismo (Eu absoluto do

Idealismo Alematildeo) e distante da metafiacutesica da alma imortal (Eu substancial do

racionalismo de Descartes) Portanto o Eu puro valeacuteryano natildeo guarda uma

moralidade consistindo na invariabilidade naquilo que natildeo muda no espiacuterito O

espiacuterito eacute abordado como um signo de pura possibilidade de uma virtualidade ao

qual o Eu empiacuterico aspira e tende Eu que passa por uma ascese e encontra-se ―

purificado de paixotildees de outros iacutedolos e idolatrias ― de forma a se tornar liberto

para agir e pensar

A nossa pesquisa da escrita valeacuteryana gera e explora meios de afirmar e de

proporcionar possibilidades criadoras em educaccedilatildeo justamente porque ndash como

salienta Corazza (2010 p 2) ndash o espiacuterito humano enfrenta dificuldades para pensar

o informe de maneira que necessitamos ldquode uma Educaccedilatildeo ou pedagogia dos

sentidos associando a vivecircncia dos limites formais com a criaccedilatildeo artistadorardquo

A pesquisa trata portanto de um fazer compositivo de escrita de uma praacutetica

de ensino numa construccedilatildeo conjunta com a obra de Valeacutery que busca o valor do

pensar humano observa seu funcionamento e sua accedilatildeo fecunda de pensar Por seu

intermeacutedio construiacutemos operaccedilotildees escrileitoras tradutoacuterias (escrita-leitura e leitura

escrita) capturando as forccedilas que aproximam percepccedilatildeo e criaccedilatildeo

Pensamos que a Filosofia da Diferenccedila pode servir-se das pesquisas deste

poeta-pensador como um disparador de escrita que busca um novo modo de ver e

de pensar o pensamento no qual a linguagem a verdade a consciecircncia de si satildeo

inseparaacuteveis e inter-relacionadas Pensar que possibilita o alargamento das

fronteiras da linguagem educacional na medida em que quebra concepccedilotildees

filosoacuteficas e cientiacuteficas consideradas verdadeiras e incontestaacuteveis

Inter-relaccedilatildeo na qual o espiacuterito Estudante-Escritor- Educador (EEE) estaacute

sempre se autoproduzindo por via de uma self-variance num processo contiacutenuo de

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geraccedilatildeo de sentidos imanentes singulares e particulares os quais reivindicam

novas possibilidades de invenccedilatildeo de emissatildeo de signos que se inscrevem para

escriturar sentidos oriundos das sensaccedilotildees num empirismo de pensar constante

cujos procedimentos implicam necessariamente o campo do vivido Pesquisamos

nesse processo variante o ambiente humano por entre dramas e comeacutedias do

vivido no campo educacional ou ainda uma dracomeacutedia humana repleta de

potenciais vicissitudes que servem como disparadores para uma invenccedilatildeo

produtora de escrita texto-manifesto exposto por via da linguagem e suas

convenccedilotildees

Meacutetodo

O meacutetodo utilizado na pesquisa eacute o do informe que desenvolve um tipo de

pesquisa que possibilita enfrentar a dificuldade de pensar o informe Meacutetodo este

que se interroga e que varia durante todo o processo de sua execuccedilatildeo natildeo

possuindo um regramento estanque ou dogmaacutetico o que baniria o prazer do

inusitado

Esse meacutetodo age atraveacutes de capturas das forccedilas dos textos das imagens

das musicalidades das vozes e dos conhecimentos isto eacute de tudo que deveacutem em

vida potente e que possa ser adequado agraves praacuteticas de ensino pois conforme Valeacutery

(1997 p 59) ldquoeacute o que contenho de desconhecido a mim mesmo que me faz ser eu

mesmordquo

Na praacutetica o que observamos eacute um desejo que ronda ldquocomo uma mina a ceacuteu

abertordquo (BARTHES 2013 p12) que propicia criar uma fantasia de exploraccedilatildeo e por

intermeacutedio dela construir um ritmo proacuteprio de accedilatildeo exploratoacuteria um como para viver

junto com vida e obra de determinado pensador saboreando cotidianamente

ldquobocados de saber = pesquisardquo Assim por entre bocados de pesquisa esse meacutetodo

produz ficccedilatildeo de modo que ldquoos pesquisadores capturam forccedilas imaginaacuterias

fantasiacutesticas e intelectuais que os conduzem ao trabalho criadorrdquo (CORAZZA 2012

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p19) levando o espiacuterito a experimentar um novo fazer ou seja uma pesquisa gaia

na educaccedilatildeo contemporacircnea

Por este vieacutes tal meacutetodo busca dar adeus agraves metanarrativas de ambiccedilatildeo

universal insistente nos entremeios do territoacuterio educacional Sua ambiccedilatildeo universal

eacute hermeacutetica e portanto falha pois impede uma discussatildeo que se quer aberta e natildeo

reprodutora de conhecimento Esta abertura pode trazer ao proacuteprio curriacuteculo e agrave

didaacutetica um entoar de novas vozes capazes de compor narrativas novas fazendo

na accedilatildeo de ensinar um espaccedilo criacutetico um lugar puacuteblico para discussotildees diversas

Ou seja capturar o que ateacute entatildeo foi excluiacutedo ou natildeo contemplado nas

metanarrativas em funccedilatildeo de sua supressatildeo por natildeo pertencerem aos dogmas

ditos universais Busca-se assim o vatildeo o desvio o detalhe tendo a linguagem

como movimento isto eacute em fluxo constante no movimento de criaccedilatildeo

Desse modo aquilo que sabemos que nos pertence natildeo conta pois

procuramos o que natildeo foi ainda construiacutedo o que resta para ser adquirido

transformado e que se anuncia nos entremeios dos textos Sendo assim a literatura

a filosofia e a educaccedilatildeo entrecruzam-se visto que seus conhecimentos e saberes

satildeo investigados por via das proacuteprias escrileituras que interrogam as tramas

compositivas do intelecto

Pode-se tambeacutem afirmar que o referido meacutetodo tem apreccedilo pelo espiacuterito

crianccedila ― que jamais deveria morrer em noacutes ― pois que ele traz em si a forccedila da

curiosidade da persistecircncia da descoberta haacute neste espiacuterito pagatildeo e poeta um

infinito de possibilidades Como elucida Eduardo Galeano em entrevista chamada eacute

Tempo de viver sem medo2 ldquoeacute preciso olhar o que natildeo se olha o que merece ser

olhado tanto o micro mundo e ao mesmo tempo sermos capazes de contemplar o

universordquo E para tanto eacute preciso se ter uma visatildeo microscoacutepica e outra telescoacutepica

para assim tentar desvendar o que haacute de misterioso na existecircncia

2 Entrevista de Eduardo Galeano disponiacutevel em canal moritz Ptnet acesso em 05 de julho de

2016

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As escrileituras produzidas em uma praacutexis do informe portanto satildeo criadas

em conjunto com os meandros labiriacutenticos e espirituais dos quais nos ocupamos

escolhidos pela apaixonada necessidade de escrever Natildeo se verifica uma doutrina

mas um meacutetodo para operaccedilotildees espirituais tracircnsitos pelos macros e micros

mundos ofertados pelo existir Os espiacuteritos operam em variaccedilatildeo e lanccedilam um novo

olhar para o que ainda natildeo foi visto ou seja o que ainda ignoramos e com estes

novos elementos do que se detecta surgem vatildeos e frestas que propiciam uma

composiccedilatildeo de escrita viva

Sendo assim o meacutetodo do informe nada mais eacute do que um fazer mutante

avesso ao sedentarismo intelectual um ato fiacutesico corporal posto em movimento

atraveacutes de estudos e pesquisas abrindo possibilidades para que o espiacuterito trabalhe

e medite sobre a produccedilatildeo de uma obra ― de um espiacuterito criador ― numa atitude

interrogativa transformada em problema que questiona pelo vieacutes de Valeacutery (2011 p

200) O que a obra produz em noacutes

Todo corpo posto em atividade eacute energia despendida e tambeacutem adquirida a

todo instante um organismo em constante mutaccedilatildeo Uma forma fluente ― referida

por Duns Scot como um onde ou (ubi) ― e capaz de uma determinaccedilatildeo qualitativa

anaacuteloga ao calor adquirido pelo corpo que se aquece atraveacutes do contato e do

contaacutegio com outros corpos que os circundam E nesta metamorfose contiacutenua e

energeacutetica o espiacuterito se propotildee a buscar maior lucidez para o intelecto e conhecer a

fundo a problemaacutetica a que se propotildee num exerciacutecio que se realiza atraveacutes de um

nomadismo de pensamento ativo sempre em deslocamento que busca o novo

De fato com o espiacuterito entendido desde a perspectiva valeacuteryana atraveacutes dos

movimentos de escrileituras da pesquisa com o artifiacutecio da literatura movimentamos

uma malha intelectiva que possibilita a construccedilatildeo de espiritografias Ou seja vamos

ao mundo de um espiacuterito e com ele escrevemos a partir de um estudo de vida e de

obra ou de uma Vidarbo Trata-se do interesse ldquopor Vida (Biografia) e por Obra

(Bibliografia) Soacute que em vez de Vida e Obra tomadas em separado ou uma

derivada e mesmo causa da outra trata de Vidarbordquo (CORAZZA 2010) tomada

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conjuntamente Essas operaccedilotildees das faculdades intelectivas repletas de afecccedilotildees

permitem e compotildeem o meacutetodo do informe como um mecanismo que exige um tipo

de construccedilatildeo no qual o inesperado eacute condiccedilatildeo processual

Projetos

Essas operaccedilotildees de meacutetodo do informe tiveram suas experimentaccedilotildees e

pesquisas empiacutericas cultivadas em trecircs projetos desenvolvidos pela pesquisadora e

professora doutora Sandra Mara Corazza e seus orientandos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica

mestrado e doutorado na Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferenccedila em

Educaccedilatildeo integrante do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo (PPGEdu) da

Faculdade de Educaccedilatildeo (FACED) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS) quais sejam Dramatizaccedilatildeo do infantil na comeacutedia intelectual do curriacuteculo

meacutetodo Valeacutery-Deleuze (2010) Escrileituras um modo de ler-escrever em meio agrave

vida e Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila

(2014 ndash 2019)

O projeto atual almeja complementar correlacionar e consolidar a formaccedilatildeo

de professores-pesquisadores atraveacutes da observaccedilatildeo e anaacutelise dos resultados e

impactos das produccedilotildees oriundas das trecircs pesquisas investigando um curriacuteculo e

uma didaacutetica da diferenccedila visando criar e fortalecer a ampliaccedilatildeo e a consolidaccedilatildeo

da qualidade de uma pesquisa-docecircncia

Desde o iniacutecio o meacutetodo do informe apontava para um tipo de pesquisa

construcionista enquanto um convite para estudos e praacuteticas de escrita as quais

atraveacutes das aventuras do intelecto facultam ao espiacuterito construir a sua proacutepria

realidade no campo ambiental da linguagem pensando o informe com Valeacutery e sua

Comeacutedia Intelectual e com Deleuze e o seu Meacutetodo de Dramatizaccedilatildeo aleacutem de

recorrer tambeacutem a Roland Barthes e ao seu conceito de Biografemaacutetica (CORAZZA

e OLIVEIRA 2015)

O Projeto Escrileituras (2011-2015) apoiado pelo Programa Observatoacuterio da

Educaccedilatildeo (CAPESINEP) teve como proposiccedilatildeo um fazer-educaccedilatildeo por meio de

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Oficinas abrindo assim possibilidades de criaccedilatildeo de escrileituras em educaccedilatildeo

Oficinas que tinham em sua percepccedilatildeo criaccedilatildeo e desenvolvimento dois meios

possiacuteveis para movimentos experimentais de escrita a formaccedilatildeo que acompanhava

os bolsistas e pesquisadores participantes e cursos e accedilotildees de extensatildeo oferecidos

a professores da Educaccedilatildeo Baacutesica

Totalizando um registro de 570 oficinas desenvolvidas pelo projeto foi

desenvolvida a Oficina espiritograacutefica de co-criaccedilatildeo dialoacutegica propondo aos

participantes um exerciacutecio de pensamento valeacuteryano que explorasse a forma de

escrita ldquodiaacutelogordquo atraveacutes de textos filosoacuteficos e literaacuterios que tratavam do tema

A oficina buscava pensar de forma luacutecida condiccedilotildees de criar personagens

que pensam o proacuteprio pensamento afirmando o espiacuterito que opera e escreve com

prazer ciente ldquoque cada um eacute a medida das coisasrdquo (VALEacuteRY 2011) E atraveacutes

desta empiria de escrita proposta na oficina proporcionou um aporte teoacuterico e

praacutetico para composiccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de mestrado Alfabeto espiritograacutefico

escrileituras em educaccedilatildeo (CAMPOS 2013)

Espiritografia

Dessa accedilatildeo empiacuterica a palavra espiritografia comeccedila a tomar forccedila nas

pesquisas possibilitando ao espiacuterito escrileitor investigar outros Espiacuteritos e suas

vidarbos e com eles passar a criar procedimentos capazes de promover uma

produccedilatildeo de escrita espiritograacutefica experimental que se ocupa de erracircncias acasos

e o inusitado e que se configura em uma tese intitulada A Educaccedilatildeo da Diferenccedila

com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico (CAMPOS 2015) com proposta jaacute

qualificada em 2015 e com defesa final prevista para 2017

Deste modo o espaccedilo curricular afirmava-se de maneira transversal com a

filosofia com as artes e com as ciecircncias tomando para si a tarefa de compor um

curriacuteculo como uma construccedilatildeo aberta fazendo dos conhecimentos que se colocam

em movimento um compoacutesito multidimensional de leitura e de escrita potenciais

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Assim o Projeto Escrileituras optou por afirmar um curriacuteculo mutante

provocando com isso que sua didaacutetica tambeacutem o fosse Ou seja didaacutetica e

curriacuteculo possibilitaram atraveacutes das Oficinas a ampliaccedilatildeo da visatildeo de mundo por

via do conhecimento que serve como um disparador para a edificaccedilatildeo de outros

mundos possiacuteveis isto eacute um modo de viver e de ldquomaquinar a educaccedilatildeo com prazer

aventureiro e espiacuterito aventurosordquo (CORAZZA 2014)

Abrindo dobras na pesquisa foi possiacutevel falar e escrever sobre Autor

Infacircncia Curriacuteculo e Educador ndash unidades analiacuteticas referidas como AICE e

integrantes de procedimentos didaacuteticos Jaacute o curriacuteculo foi composto pelas seguintes

unidades analiacuteticas Espaccedilos Imagens e Signos (EIS) os quais satildeo postos em

movimento por meio de um nomadismo intelectual experimentado no proacuteprio

territoacuterio da educaccedilatildeo valendo-se dos procedimentos muacuteltiplos de escrita de Valeacutery

para um fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo

Atraveacutes de um Meacutetodo do Informe utilizando o conhecimento como invenccedilatildeo

que por via de transbordamentos de pesquisa esses elementos possibilitaram criar

um novo meacutetodo chamado espiritograacutefico ndash defendido na tese A Educaccedilatildeo da

Diferenccedila com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico (CAMPOS 2015) ndash pelo qual foi

possiacutevel a criaccedilatildeo de alguns tipos de espiritografias tradutoacuterias como Plagiotroacutepica

Imageacutetica Mise en Scegravene Desviante Extra-Ordinaacuteria Jogada Aula-Empiacuterica

Poeacutetica

Escrever eacute traduzir conforme afirma Valeacutery na eacutepoca em que traduzia as

Bucoacutelicas de Virgiacutelio (1944) destacado no livro de Haroldo de Campos (2013)

Transcriaccedilatildeo

Escrever o que quer que seja desde o momento em que o ato de escrever exige reflexatildeo e natildeo eacute uma inscriccedilatildeo maquinal e sem detenccedilas de uma palavra interior toda espontacircnea eacute um trabalho de traduccedilatildeo exatamente comparaacutevel agravequele que opera a transmutaccedilatildeo de um texto de uma liacutengua em outra (VALEacuteRY apud CAMPOS 2013 paacuteg61-62)

Essas forccedilas operativas da escrita (e da leitura) servem como impulso para

uma trajetoacuteria autoconsciente do espiacuterito que se aventura entre rasuras em busca

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do novo Produzindo uma escrita tradutoacuteria aberta sujeita a interaccedilotildees e oscilaccedilotildees

oriundas daquele espiacuterito que age sobre o texto criamos uma didactique da

novidade da erracircncia de AICE que pode gerar intranquilidade pois caccedila em meios

muacuteltiplos de escrita ― rigorosa e complexa ― seus desdobramentos enigmaacuteticos

perseguindo a exatidatildeo dos sentidos por entre Espaccedilos Imagens e Signos (EIS) do

Curriacuteculo

Sendo assim AICE (Didaacutetica) e EIS (Curriacuteculo) tomam para si uma poeacutetica de

pesquisa que se quer empiacuterica num processo de releitura e de reescrita do viviacutevel

no campo educacional e que acabam produzindo um diferencial curricular e didaacutetico

da diferenccedila visto que criam novas epistemes possibilitando ldquopensar uma didaacutetica e

um curriacuteculo tradutoacuteriosrdquo (CORAZZA 2014 p5)

Em seu texto A Tentaccedilatildeo de (Satildeo) Flaubert Valeacutery (2011) escreve sobre a

diaboacutelica tentaccedilatildeo humana e poeacutetica de provocar uma escrita amebiana como meio

para um jogo escritural do viviacutevel pois viver eacute a todo instante sentir falta de alguma

coisa e modificar-se para atingi-la para desse modo tender a substituir-se no

estado de sentir falta de alguma coisa Trata-se de um movimento corpoacutereo como o

feito pela ameba ou seja de transubstanciaccedilatildeo com o objeto amado pois ldquovivemos

do instaacutevel pelo instaacutevel no instaacutevel essa eacute a funccedilatildeo completa da Sensibilidade

que eacute a mola diaboacutelica da vida dos seres organizadosrdquo (VALEacuteRY 2011 p 83)

Essas perspectivas poeacuteticas sobre escrita leitura curriacuteculo e didaacutetica

possibilitam no espaccedilo da aulaoficina a emergecircncia de procedimentos

interpretativos das mateacuterias curriculares que funcionam como meio de invenccedilatildeo

recriando assim culturas e discursos atraveacutes de exerciacutecios rigorosos cocircmicos e

dramaacuteticos do pensamento Nesse sentido como um espaccedilo de ficccedilatildeo a aula eacute

planejada para que de algum modo funcione como um laboratoacuterio coletivo em que

se examina e promove-se a educaccedilatildeo do espiacuterito

Assim satildeo promovidos encontros imanentes que fornecem coordenadas

para o pensamento criacutetico que eacute experimentado num empirismo transcendental no

qual ldquoa Ideia natildeo eacute o elemento do saber mas de um lsquoaprenderrsquo infinitordquo (DELEUZE

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2006 p310) Nesse tipo de empirismo o que vale eacute o valor agregado ao espiacuterito

das forccedilas que do pensamento se apossa e que satildeo capazes de produzir novas

imagens que enunciam e novamente atualizam o pensar Com textos literaacuterios os

espiacuteritos escrileitores em movimentos de self-variance passam a acompanhar

essas danccedilas dramaacuteticas em meio agrave vida in-formada

Trata-se de um pensar vivo capaz de escriturar novos sentidos e de inscrever

signos que satildeo vitalmente transcriados pois operam para ldquoatravessar a ortodoxia

dos textosrdquo (CORAZZA 2014) e com eles criar uma escrita indomesticada criacutetica e

vivificadora Damos assim vida a uma nova praacutexis de ensino capaz de construir

espiritografias na qual o espiacuterito age por si enquanto move-se entre leituras e

escritas Espiacuterito que se interroga observa o proacuteprio fazer da escrita literaacuteria que

tem como tarefa anotar borrar fazer muacuteltiplas reflexotildees combinaccedilotildees tentativas e

falhas

Notemos que o espiacuterito ocupa trecircs lugares funcionais em seu laboratoacuterio

proacuteprio quais sejam EEE ndash o de Estudante (espiacuterito em curso tradutoacuterio de escrita)

o de Escritor (espiacuterito autor tradutor e transcriador) e o de Educador (espiacuterito em

exerciacutecio de traduccedilatildeo no exerciacutecio do magisteacuterio) Eacute esse atravessamento entre

lugares que movimenta EIS (Curriacuteculo) e AICE (Didaacutetica) os quais pela via da

traduccedilatildeo satildeo reimaginados Vislumbramos de acordo com Corazza (2013 p 219)

um fazer tradutoacuterio ldquopara aleacutem do literalismo rudimentar e da banalidade explicativardquo

que daacute nova vida ao educador-artista e cujas traduccedilotildees ldquopoderatildeo por vezes tornar-

se mais importantes que os originaisrdquo pois se configuram como uma ldquoestrateacutegia de

renovaccedilatildeo dos sistemas educacionais e culturais contemporacircneosrdquo

Experimentaccedilotildees

A partir do desenvolvimento de algumas Oficinas de Transcriaccedilatildeo durante o

Projeto Escrileituras continuamos estudando e pesquisando o pensamento de

Valeacutery na direccedilatildeo de construir tipos de espiritografias como uma praacutetica que

promove novos movimentos que tomam as unidades analiacuteticas de EIS AICE na qual

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buscamos combinar e correlacionar EIS com AICE (Espaccedilos Imagens e Signos a

Autor Infantil Curriacuteculo Educador) e nesse processo combinatoacuterio e correlacional

operacionalizar escrileituras tradutoacuterias que se articulassem com a praacutexis do ensinar

escrever orientar pesquisar colocando esses verbos em foco por meio de um fazer

espiritograacutefico Tal procedimento exploratoacuterio-experimental de pesquisa tem como

intuito criar meios para a produccedilatildeo de accedilotildees de pensamento na pesquisa

Nessa direccedilatildeo detalharemos um dos tipos de espiritografia aludida no texto

a Espiritografia Plagiotroacutepica Lembrando o que salienta o proacuteprio Valeacutery (2011 p

110) ldquoeu sei apenas o que sei fazerrdquo expomos os movimentos empiacutericos de escrita

feitos para criar essa espiritografia atraveacutes de movimentos de EIS AICE

apresentados a seguir por meio de um resumo do seu Glossaacuterio

EIS AICE

Espaccedilos - que se habitam e produzem

condiccedilotildees para novamente serem

habitados ao esvaziar-se na

constituiccedilatildeo de novas margens que a

sua vez lhes doam novas instacircncias

habitaacuteveis

Imagens - ausentes que presentificam

presenccedilas e Imagens presentes que

presentificam ausecircncias

Signos - satildeo dotados das forccedilas dos

encontros que podem exercer uma

violecircncia sobre o pensamento

violecircncia que implica na criaccedilatildeo do

pensar no proacuteprio pensamento

Autor-Tradutor - escreve lecirc interpreta aprende

compotildee apenas para desencadear devires

Infantil - como forccedila ativa e vontade de potecircncia

afirmativa

Curriacuteculo - cria a alegria afirmativa de educar

Educador - exercita se interrogar se tudo o que disse

ateacute entatildeo eacute tudo o que pode dizer se tudo o que viu

ateacute agora eacute de fato tudo o que pode ver se tudo o

que pensa eacute tudo o que pode pensar se tudo o que

sente eacute tudo o que pode sentir se tudo o que traduziu

eacute tudo que pode traduzir

O texto inspirador para a produccedilatildeo dessa espiritografia eacute o livro de Gonccedilalo

Tavares (2011) intitulado O senhor Valeacutery e a loacutegica tomado como um disparador

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como um meio potente para a produccedilatildeo de escrita Esse meio textual produz um

outro para falar e escrever sobre a Vidarbo (vida-obra) de Paul Valeacutery criando-se

assim um personagem O Monsieur Valeacutery

Esse texto eacute produzido por intermeacutedio de escrileituras que contemplam o

ainda natildeo visto ou ainda natildeo atribuiacutedo de valor para a criaccedilatildeo do personagem na

medida em que pesquisamos sobre a vida e a obra de Valeacutery de modo a escrever

sobre este personagem peculiarmente

Por via de um olhar outro que natildeo o de Tavares mas do olhar do espiacuterito

escrileitor que pesquisa vida e obra de outro espiacuterito no caso Valeacutery almejamos

compor uma espiritografia com e sobre este personagem do pensamento o que

pressupotildee ir ao mundo deste espiacuterito do qual se escreve observando como se daacute o

seu pensar Desta maneira foram produzidos quatro minicontos O Atum O

Ostinato O Sonho e Sem Destino (CAMPOS 2015) Abaixo seguem os dois

primeiros dessa seacuterie

O Atum

MONSIEUR VALEacuteRY era pequenino mas adorava nadar

Ele explicava

Sou igual a um atum soacute que em tamanho menor

Mas isto constitui para ele um problema

Mais tarde o monsieur Valeacutery pocircs-se a pensar que os pescadores podiam

confundi-lo com um atum e pescaacute-lo Sabia por suas leituras ser o Atum o mais

antigo deus criador do mundo Mediterracircneo e observou em seu livro a grande

Serpente Atum pai de Eneacuteade e Helioacutepolis E tal pensamento o animou um pouco

Dias depois saiu para passear agrave beira-mar e desenhou serpentes na areia E

pensava sobre a evoluccedilatildeo das espeacutecies e murmurava ldquose o homem estaacute situado ao

final de um longo esforccedilo geneacutetico tambeacutem seraacute preciso situar esta criatura fria sem

pata sem pelos sem plumas no iniacutecio deste mesmo esforccedilordquo E concluiu Haacute algo

de serpente no homem assim deve tambeacutem haver em mim

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Monsieur Valeacutery costumava fazer caacutelculos enquanto caminhava e riscava

atraacutes de si com uma varinha uma linha e ia medindo Caminhou caminhou de

suacutebito olhou para traacutes e viu a linha e pocircs-se a imaginar a Serpente como uma linha

viva E pensava que a linha eacute uma abstraccedilatildeo encarnada soacute enxergamos a sua parte

proacutexima manifesta Mas ele sabia que a linha seguia pelo invisiacutevel infinito de um

lado e de outro

O Ostinato

MONSIEUR VALEacuteRY cresceu assim como tambeacutem cresceu sua curiosidade

sobre as serpentes que seguia a rabiscar

Monsieur Valeacutery ainda costumava nadar poreacutem agora com maior

desenvoltura

Jogava-se ao mar e nadava de costas cachorrinho borboleta

Enquanto dava suas braccediladas e mergulhos no mar sem fim sentia-se

acompanhado

Entatildeo o monsieur Valeacutery pensava

― Seraacute Afrodite Ou seraacute Netuno

E enquanto caminhava para casa apoacutes seus nados volta e meia olhava para

traacutes observando a linha pintalgada pelos pingos que escorriam de seu corpo

Entatildeo Monsieur Valeacutery exclamava

― Que bela geometria

E logo se aborrecia

Monsieur Valeacutery era um perfeccionista e para se distrair durante o percurso

de volta para casa ia compondo versos Ostinatos que o enterneciam e lhe traziam

aromas de um pensamento Ele costumava declamaacute-los assim

Fonte minha fonte aacutegua friamente presente

Suave com os animais com os humanos clemente

Que tentados por si seguem ao fundo a morte

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Tudo te eacute sonho Irmatilde impaacutevida da Sorte3

Importa salientar que natildeo haacute um plaacutegio porque natildeo eacute coacutepia ou mera

reproduccedilatildeo textual mas de uma plagiotropia no sentido de Haroldo de Campos

(1997 p249) qual seja uma ldquoapropriaccedilatildeo seletiva natildeo histoacuterica para utilidade

imediata de um fazer poeacutetico situado na lsquoagoridadersquo o momento de ruptura em que

determinado presente (o nosso) se reinventa ao se reconhecer na eleiccedilatildeo de um

determinado passadordquo

Em outras palavras estabelecemos um diaacutelogo entre os espiacuteritos de Valeacutery

de Tavares e de um escrileitor que quer compor uma espiritografia O espiacuterito que

escreve lecirc repensa e mastiga o que chega dos textos de Tavares e de Valeacutery Essa

relaccedilatildeo estabelecida entre os espiacuteritos que leem e escrevem adquire potecircncia pelas

afecccedilotildees de forccedilas oriundas da accedilatildeo de leitura-escrita e gera novas relaccedilotildees com

os textos que satildeo entatildeo renovados e reinventados pelo meacutetodo espiritograacutefico

O EIS AICE do Curriacuteculo e da Didaacutetica com suas unidades analiacuteticas eacute posto

como bloco em movimento atraveacutes de um nomadismo intelectual que opera como

conhecimento e como invenccedilatildeo no territoacuterio da educaccedilatildeo de uma maneira

espiritograacutefica valeacuteryana Podemos descrever da seguinte maneira os movimentos

tradutoacuterios que ocorrem nessas unidades analiacuteticas de EIS AICE

EIS

Espaccedilos - satildeo criados entre e com Tavares e Valeacutery espaccedilos de escrita

novas margens que o espiacuterito escrileitor passa a habitar

Imagem - ausentes de Tavares e Valeacutery que se presentificam na agoridade

com novas imagens de pensamentos criadas que se ldquoreinventa ao se reconhecer na

eleiccedilatildeo de um determinado passadordquo (Campos 1997 p249) e que lhe serviu de

disparador como um rastro de escrita

3 Do poema Fragmentos de Narciso e outros poemas (VALEacuteRY 2013 p 61)

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Signos ndash encontro de forccedilas de um espiacuterito que escreve em Self-variance

com Valeacutery e com Tavares E desta violecircncia levantam-se problemas e com eles se

cria pois criaccedilatildeo pressupotildee pensar no proacuteprio pensamento e como eles se datildeo

entre leitura e escrita

AICE

Autor-tradutor ndash ler e escrever na educaccedilatildeo como operaccedilatildeo literaacuteria valer-se

da literatura que desencadeia movimentos de pensar interpretar aprender

compor devires tradutoacuterio

Infantil ndash do infante da crianccedila que descobre pois tem a forccedila ativa ativada

por uma vontade de potecircncia que quer afirmar-se com alegria

Curriacuteculo ndash Alegria que transborda pois se afirmam novos meios de educar

que natildeo o ldquoeu professotu escutasrdquo pois na teimosia que nos impele a educar eacute

necessaacuterio ir aleacutem da mera reproduccedilatildeo de textos

Educador ndash EEE (estudante escritor educador) trecircs papeacuteis intercambiaacuteveis

propiacutecios a interrogar-se levantar questotildees na busca de novos olhares ldquovatildeosrdquo

sobre o ainda natildeo visto que possibilita novas composiccedilotildees de escrita

Consideraccedilotildees Finais

Ao pensar sobre o processo de pesquisa exposto no presente artigo

sinalizamos a relevacircncia do pensamento de Paul Valeacutery e de sua apropriaccedilatildeo efetiva

no campo da educaccedilatildeo por considerar que os seus procedimentos de escrita

concedem ao espiacuterito que busca se educar agir com maior lucidez de pensamento

ou seja cultivar o Eu-empiacuterico que lecirc e escreve importando-se mais com o meio de

ocorrecircncia textual do que com um fim ou com uma meta

Tratamos em siacutentese de um fazer conjunto com Paul Valeacutery atraveacutes dos

seguintes aportes a) o Meacutetodo do Informe utilizado como processo experimental

para falar ler e escrever sobre a educaccedilatildeo com Valeacutery b) atraveacutes de uma Self-

variance do espiacuterito colocar-se em movimento funcional construcionista onde

autoeduca-se no entre-lugar variante de EEE c) a escrileitura conceitualizada como

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um campo aberto agrave formaccedilatildeo e ao fazer docente que mescla linguagem e

conhecimento

A vidarbo de Valeacutery engendra na didaacutetica e no curriacuteculo uma vontade de

expressatildeo unida agraves sensaccedilotildees experimentadas no viviacutevel em novos traccedilados

compositivos de escrita Para pensar e operar uma didaacutetica (AICE) e um curriacuteculo

(EIS) tradutoacuterios o estudo tambeacutem aponta que a pesquisa eacute mutante e aberta a

novas interferecircncias visto que o Meacutetodo do Informe transmuta-se no proacuteprio

percurso investigativo em um Meacutetodo Espiritograacutefico

Pelo que podemos observar acerca dos resultados e impactos das produccedilotildees

oriundas das trecircs pesquisas anteriormente citadas que pesquisam e produzem um

curriacuteculo e uma didaacutetica da diferenccedila eles vecircm proporcionando encontros

produtivos que ampliam e qualificam as pesquisas educacionais

Cabe enfatizar que no cotidiano educacional o que se traduz aleacutem de textos

eacute a proacutepria vida como potecircncia ou movimento de criaccedilatildeo almejando que a

existecircncia possa ser concebida como arte pois de acordo com Valeacutery (1977

p217) ldquoa arte natildeo eacute nada mais do que um pedagogo poreacutem mais importante ―

pois ela pode me ensinar a dispor do meu espiacuterito para aleacutem de suas aplicaccedilotildees

praacuteticasrdquo Trata-se entatildeo de um escrever vivendo espreitar a realidade e sobre ela

levantar novos problemas que promovem no espiacuterito dobras sobre si mesmo num

fazer poeacutetico-criador em elaboraccedilatildeo constante um modo de existir intensivo de arte-

vida que toma o viviacutevel como mateacuteria para assim transmutaacute-la no campo da

educaccedilatildeo contemporacircnea

Referecircncias CAMPOS Haroldo de Transcriaccedilatildeo Satildeo Paulo perspectiva 2013

_______ Haroldo de O Arco-Iacuteris Branco Rios de Janeiro Imago 1997 CAMPOS Maria Idalina Krause de Alfabeto Espiritograacutefico Escrileituras em Educaccedilatildeo Porto Alegre 2013 Projeto de dissertaccedilatildeo (Dissertaccedilatildeo em Educaccedilatildeo)

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Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2013 Disponiacutevel em lthttphdlhandlenet1018370246gt _______ Maria Idalina Krause de A Educaccedilatildeo da Diferenccedila com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico Porto Alegre 2014-2017 Projeto de tese (Tese qualificada em Educaccedilatildeo) Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2014 CORAZZA Sandra Mara OLIVEIRA Marcos da Rocha ADOacute Maacuteximo Daniel Lamela (Orgs) Biografemaacutetica na educaccedilatildeo Vidarbos (Caderno de Notas 7) Porto Alegre UFRGS Doisa 2015 _______ Sandra Mara Ensaio sobre EIS AICE proposiccedilatildeo e estrateacutegia para pesquisar em educaccedilatildeo Porto Alegre Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo CNPq 2014 30 p (No prelo) _______ Sandra Mara O que se transcria em educaccedilatildeo Porto Alegre ndash RS UFRGS Doisa 2013 _______ Sandra Mara Introduccedilatildeo ao meacutetodo biografemaacutetico In COSTA Luciano Bedin da FONSECA Tania Mara Galli (Org) Vidas do Fora habitantes do silecircncio Porto Alegre Editora da UFRGS 2010 _______ Sandra Mara Dramatizaccedilatildeo do infantil na comeacutedia intelectual do curriacuteculo meacutetodo Valeacutery-Deleuze Projeto de Pesquisa ndash Bolsa de produtividade CNPq 2010 _______ Sandra Mara Meacutetodo Valeacutery-Deleuze um drama na comeacutedia intelectual da educaccedilatildeo Educaccedilatildeo amp Realidade Porto Alegre v 37 n 3 Dec 2012 Disponiacutevel em lthttpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S2175-62362012000300016amplng=enampnrm=isogt Acessado em 13 de Julho de 2016 _______ Sandra Mara Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila (2014-2019) Projeto de Pesquisa de Produtividade (CNPq) _______ Gilles Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 2006 _______ Gilles A ilha deserta e outros textos Textos e entrevistas (1953-1974) Satildeo Paulo Iluminuras 2006 (Org Luiz B L Orlandi) DELEUZE Sobre o teatro Um manifesto de menos O esgotado Rio de Janeiro Editora Zahar 2010

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TAVARES Gonccedilalo M O senhor Valeacutery e a Loacutegica 1 ed Rio de Janeiro Casa da Palavra 2011 VALEacuteRY Paul Variedades Trad Maiza Martins de Siqueira Satildeo Paulo Iluminuras 2011 _______ Paul Fragmentos de Narciso e outros poemas Trad Juacutelio Castantildeon Guimaratildees Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 2013 _______ Cahiers Paris Gallimard 1977

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Gravura procedimentos alternativos em litografia contemporacircnea

Ana Paula Schoninger van Grol1 Universidade Feevale

Lurdi Blauth2

Universidade Feevale

Resumo O estudo aborda a inter-relaccedilatildeo da arte com distintos meios de produccedilatildeo de imagens mediando procedimentos tradicionais com processos de tecnologias digitais As experiecircncias satildeo realizadas no campo da gravura contemporacircnea com o intuito de propor outras possibilidades de criaccedilatildeo de matrizes pela utilizaccedilatildeo e o aproveitamento de materiais alternativos e o uso de produtos menos toacutexicos Consideramos que eacute importante estimular o uso destes outros meios principalmente em ateliecircs de gravura xilogravura gravura em metal litografia e serigrafia Neste momento apresentamos alguns resultados parciais no acircmbito da litografia cujas pesquisas foram desenvolvidas no ateliecirc de gravura da Universidade Feevale Palavras-chave Arte tecnologia gravura litografia Abstract The research takes into consideration the relation among the different ways of producing images associating traditional methods with digital technology processes The experiences are taken in the field of contemporary printing intenting propouse other possibilities in creating printing matrices from use and exploitation of alternative material and non-toxic products It is considered that it is important to stimulate the use of alternative means particularly in art labs such as xylography metal engraving lithography and silkscreen To the present moment will be presented some partial results related to lithograph all researches were accomplished at the art laboratory in Universidade Feevale Keywords Art technology printing lithography

Introduccedilatildeo

Os movimentos artiacutesticos no iniacutecio de seacuteculo XX transgridem as formas

tradicionais da arte como podemos observar no surrealismo futurismo e dadaiacutesmo e

nas publicaccedilotildees em manifestos que confrontam questotildees sociais e culturais A

invenccedilatildeo da fotografia intensifica a aproximaccedilatildeo entre a arte e a tecnologia liberando

os artistas da questatildeo da representaccedilatildeo tradicional de espaccedilo para realizarem novas

1 Graduada em Artes Visuais trabalha como professora de liacutengua inglesa Eacute diretora do grupo de teatro de rua DRIME e tambeacutem atua como artista plaacutestica 2 Doutora em Artes Visuais pela UFRGS (2005) e Doctorat sandwich en Art Plastique - Universiteacute Paris 1 (Pantheacuteon-Sorbonne) (2003) Artista visual pesquisadora e professora nos cursos de Artes Visuais Design Graacutefico e no PPG em Processos e Manifestaccedilotildees Culturais Universidade Feevale

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experiecircncias Em 1910 quando Pablo Picasso e Georges Braque inserem em suas

pinturas outros materiais como fragmentos de jornais elementos da tipografia entre

outros impressos fazem uma alusatildeo direta ao cotidiano e ao progresso dos novos

meios tecnoloacutegicos da eacutepoca Tais fragmentos colados sobre a superfiacutecie da tela aleacutem

de redimensionarem a relaccedilatildeo da representaccedilatildeo do espaccedilo ilusionista da perspectiva

introduzem uma nova forma de tempo e espaccedilo Os limites tradicionais e a

representaccedilatildeo objetiva da arte comeccedilam a ser questionados sobretudo com a

utilizaccedilatildeo e a experimentaccedilatildeo de novos materiais bem como tambeacutem a expressatildeo

pessoal do artista

No acircmbito do desenvolvimento da gravura percebemos a coexistecircncia com

inovaccedilotildees teacutecnicas as quais satildeo constantemente renovadas e incorporadas aos

procedimentos tradicionais de criaccedilatildeo de imagens sobre distintas matrizes e processos

de reproduccedilatildeo sobre diferentes suportes Atualmente o conceito inicial da gravura se

transforma junto com a evoluccedilatildeo da cultura e dos novos meios tecnoloacutegicos Ela natildeo

envolve necessariamente gravaccedilatildeo isto eacute subtraircortar mateacuteria de uma superfiacutecie

como eacute feito nos meios mais tradicionais como a xilogravura e a calcografia Utiliza-se a

adiccedilatildeo de pigmentos os quais modificam a superfiacutecie de uma matriz atraveacutes de

processos quiacutemicos confronta-se tambeacutem com a gravaccedilatildeo fotograacutefica a eletrografia e

a computaccedilatildeo graacutefica buscando assim a inter-relaccedilatildeo com outras linguagens

Tais desdobramentos tencionam as suas especificidades teacutecnicas propondo

uma maior flexibilidade e autonomia em relaccedilatildeo aos seus meios convencionais de

gravaccedilatildeo e impressatildeo Contudo as linguagens tradicionais natildeo satildeo descartadas uma

vez que eacute fundamental termos conhecimento das caracteriacutesticas dos seus

procedimentos originais que continuam sendo desenvolvidos por inuacutemeros artistas Ou

seja satildeo produzidas gravuras com meios teacutecnicos da xilogravura calcografia serigrafia

e litografia e de acordo com as singularidades criativas de cada artista satildeo

incorporados desenhos pinturas colagens transferecircncia de fotografias digitais coacutepia

uacutenica em contraponto com a reproduccedilatildeo de imagens

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Neste estudo investigamos a criaccedilatildeo de imagens por meio de experimentaccedilotildees

praacuteticas com procedimentos analoacutegicos (gravura) incluindo a utilizaccedilatildeo de recursos

provenientes de tecnologias digitais (fotografia) e a transferecircncia de imagens sobre

matrizes alternativas

O enfoque das nossas experimentaccedilotildees eacute buscar materiais que possam suprir

os procedimentos tradicionais da litografia devido a dois fatores primeiro satildeo poucos

ateliecircs que possuem as pedras litograacuteficas o que impede o seu faacutecil acesso segundo

aliada aos constantes desdobramentos e potencialidades da linguagem graacutefica eacute

fundamental a experimentaccedilatildeo de outros materiais mais acessiacuteveis e menos toacutexicos

Cabe mencionar que tais experimentaccedilotildees partem de informaccedilotildees obtidas por

pesquisas apresentadas em sites da internet artigos e estudos oriundos de testagens

realizadas em outros paiacuteses No entanto percebemos que os procedimentos natildeo

resultam em apenas transcrever teacutecnicas implicam em tentar adotar materiais similares

em nosso contexto aleacutem de indicarem outras possibilidades de criaccedilatildeo artiacutestica

Os experimentos e pesquisas relatados aqui satildeo vinculados ao projeto de

pesquisa Arte e Tecnologia Interfaces Hiacutebridas da Imagem entre Mediaccedilotildees e

Remediaccedilotildees que acontece sob orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Lurdi Blauth nos ateliecircs de arte

da Universidade Feevale O objeto de estudo investiga possibilidades hiacutebridas que

inter-relacionam meios analoacutegicos e digitais de diferentes linguagens esteacuteticas como a

gravura fotografia videoarte e tecnologias digitais

Litografia princiacutepios baacutesicos

A litografia descoberta por Alois Senefelder em 1796 comeccedilou a ser utilizada

de forma utilitaacuteria para impressatildeo de documentos roacutetulos cartazes mapas jornais

aleacutem de apresentar uma nova possibilidade expressiva para os artistas A teacutecnica da

litografia tem como princiacutepio baacutesico o fenocircmeno quiacutemico de repulsatildeo entre gordura e

aacutegua tornando-se um meio de reproduccedilatildeo de imagens Antes da invenccedilatildeo da litografia

toda a gravura pressupunha gravaccedilatildeo isto eacute a incisatildeo sobre uma superfiacutecie resultando

numa imagem que podia ser transferida pelo seu relevo Isto quer dizer que a gravura

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estava associada agrave incisatildeo agrave subtraccedilatildeo o oposto de adiccedilatildeo De acordo com George

Kornis3 (2015)

O advento da litografia no seacuteculo XIX ndash um processo fundado apenas em uma accedilatildeo quiacutemica sobre uma matriz em pedra ndash possibilitou um grau de liberdade diante da incisatildeo e ampliou a escala de reprodutibilidade da imagem graacutefica Na litografia a linguagem graacutefica aproxima-se ainda mais do desenho Essa nova teacutecnica prescinde da incisatildeo o que amplia o acesso a novos artistas que optam por incorporar tambeacutem a expressatildeo graacutefica ao seu trabalho

Importantes artistas comeccedilam a utilizar a teacutecnica como meio de expressatildeo

Goya como podemos observar na obra Touradas de 1825 (fig 1) Gustave Doreacute

Renoir Ceacutezanne Toulouse-Lautrec Bonnard entre outros realizam novas

experimentaccedilotildees introduzindo inclusive a cor nos meios litograacuteficos

Figura 1 Francisco Joseacute de Goya Touradas 1825 Fonte Disponiacutevel em httpwwwpatrimoniodehuescaesmuseo-de-huesca-francisco-de-goya-y-

lucientes-grabados-de-tauromaquia-y-lienzo-del-sr-de-veian-s-xviii

A linguagem graacutefica aliada agraves transformaccedilotildees do seacuteculo XXI continua a sua

constante atualizaccedilatildeo teacutecnica pela convergecircncia de meios digitais e de teacutecnicas

seculares da gravura configurando-se pela exploraccedilatildeo de uma diversidade de novas

proposiccedilotildees esteacuteticas Nesse aspecto igualmente eacute colocado em discussatildeo o seu

caraacuteter original relacionado com a produccedilatildeo de uma matriz uacutenica e a reproduccedilatildeo de

3 KORNIS George Gravura passado presente e futuro Publicado em 13 de maio de 2015 Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=mCmY_Oj3x64gt Acesso em 29 de julho de 2016

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estampas idecircnticas Para Nicole Malenfant (2012 p73) ldquoeacute na abertura para praacuteticas de

natureza interdisciplinar que a gravura transgrediu ainda mais o quadro de sua

especificidade para integrar a abordagem de criaccedilatildeo agrave perspectiva de uma

lsquopermeabilidade de fronteirasrsquo Em outras palavras estas novas abordagens inter-

relacionam procedimentos materialidades e conceitos ampliando inclusive o caraacuteter

mais intimista da gravura bem como as estruturas de suas praacuteticas teacutecnicas

convencionais que se desdobram no contato com as tecnologias digitais

Atualmente falamos em gravuras digitais que se distinguem das praacuteticas

tradicionais da gravura que ldquoeacute feita com base na construccedilatildeo pictoacuterica e utiliza

ferramentas proacuteprias aos softwares da imagem para elaborar uma proposta visual que

pode incluir elementos fotograacuteficos que se relacionem com outros elementos do todo da

imagemrdquo (MALENFANT 2012 p72) Embora as especificidades de cada procedimento

empregado estejam em sintonia eacute preciso levar em conta as peculiaridades e

denominaccedilotildees dos meios de reproduccedilatildeo e impressatildeo e suas diferentes granulaccedilotildees na

imagem A incorporaccedilatildeo da imagem fotograacutefica por meio de transferecircncia para outros

suportes e matrizes que permitem a sua reproduccedilatildeo se distingue da materialidade das

impressotildees manuais

Ainda de acordo com Malenfant

As pesquisas para transferir imagens fotograacuteficas ou digitais para matrizes que permitem se servir da impressatildeo artesanal tambeacutem enriqueceram essas imagens com uma materialidade diferente advindas da siacutentese de suas disciplinas implicadas Esses novos avanccedilos no plano teacutecnico permitem associar as ferramentas digitais ao processo de criaccedilatildeo da imagem e ampliam o campo da exploraccedilatildeo esteacuteticardquo (2012 p73)

Nessa perspectiva haacute uma liberdade muito maior em elaborar proposiccedilotildees

esteacuteticas que dialogam com uma diversidade de materiais e materialidades e de certa

maneira transgridem as delimitaccedilotildees para integrar novas formas de criaccedilatildeo no campo

ampliado da arte

Desse modo as investigaccedilotildees praacuteticas desta pesquisa se desdobram com a

exploraccedilatildeo de procedimentos alternativos para a gravura litograacutefica A partir do

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conhecimento de alguns princiacutepios baacutesicos da litografia procuramos trabalhar com

alguns meacutetodos que natildeo necessitam da utilizaccedilatildeo da pedra calcaacuteria cujo material eacute

escasso e limitado a poucos ateliecircs no Rio Grande do Sul

Contexto inicial

Para o desenvolvimento dos meios tradicionais da litografia eacute necessaacuterio uma

seacuterie de procedimentos que implicam no uso de diversos materiais como pedra

litograacutefica (calcaacuteria) materiais para desenho (Tousche laacutepis crayon) solvente

(removedor aacutegua-raz ou varsol) goma araacutebica breu aacutecido aceacutetico aacutecido niacutetrico entre

outros O processo eacute relativamente complexo pois depende da repulsatildeo entre gordura

e aacutegua A imagem eacute produzida sobre a superfiacutecie da pedra calcaacuteria com materiais

oleosos e depois de concluiacuteda satildeo aplicados diferentes componentes quiacutemicos que

iratildeo fixaacute-la Ou seja eacute necessaacuterio que todas as etapas sejam consideradas em sua

sequecircncia e geralmente requer o auxiacutelio de profissionais capacitados para a impressatildeo

aleacutem de outros cuidados teacutecnicos para que haja um bom resultado na obra final

Visando atender aos objetivos da pesquisa buscamos desenvolver a teacutecnica

com meacutetodos diversos realizando experimentaccedilotildees com diferentes suportes para a

produccedilatildeo de matrizes que se aproximem aos meios litograacuteficos Aleacutem disso buscamos

relacionar a pesquisa agraves tecnologias digitais seja no processo de criaccedilatildeo eou na

elaboraccedilatildeo das imagens graacuteficas

Experimentaccedilotildees praacuteticas

Inicialmente foram testados vaacuterios procedimentos e materiais tendo como

proposiccedilatildeo na medida do possiacutevel utilizar materiais menos nocivos ao ambiente

Nessas experimentaccedilotildees vaacuterios testes natildeo apresentaram os resultados esperados ou

adequados agrave proposta da investigaccedilatildeo contudo possibilitaram outras descobertas

Os estudos em ateliecirc tecircm como referecircncia o artigo ldquoLa siligrafiacutea Un proceso

alternativo en la graacutefica muacuteltiple contemporaacuteneardquo de Hortensia Miacutenguez Garciacutea e

Carles Meacutendez Llopis (2014) que sugere o uso de silicone e solvente sobre chapa

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offset Apoacutes algumas tentativas foi possiacutevel reproduzir a imagem contudo os

resultados deste experimento natildeo foram totalmente satisfatoacuterios em qualidade de

impressatildeo aleacutem do mais natildeo se enquadravam com os objetivos da pesquisa na

aplicaccedilatildeo dos materiais ndash que ainda apresentavam certa toxicidade (figura 2)

Figura 2 Ana van Grol - Detalhes do processo com litografia alternativa Fonte Arquivo pessoal

A partir destas experiecircncias realizadas em ateliecirc concluiacutemos que seratildeo

necessaacuterios mais estudos e praacuteticas para se obter melhores resultados para a

reproduccedilatildeo das imagens

Litografia natildeo toacutexica com refrigerante de cola e produtos caseiros

Nesta segunda etapa novos estudos bibliograacuteficos propiciaram outras testagens

com materiais e processos de litografia alternativa Percebemos que em muitos paiacuteses

jaacute estatildeo sendo pesquisados outros meacutetodos mais acessiacuteveis e de faacutecil manuseio

Nesse aspecto eacute interessante observar que encontramos pouco material em portuguecircs

inclusive os materiais sugeridos satildeo similares aos produzidos aqui no Brasil poreacutem

existe uma diferenccedila na qualidade dos mesmos

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Foram pesquisados em diversos viacutedeos disponiacuteveis na internet que tratam de

processos semelhantes ao de litografia alternativa Mencionamos alguns exemplos

como o ateliecirc francecircs Art Emilion4 (o qual tambeacutem produziu um manual para execuccedilatildeo

do processo) e o viacutedeo Kitchen Lithography Demo por Felicia Digiovanni5 ambos

demonstrando a teacutecnica com refrigerante de cola O processo utilizando somente

vinagre para substituir o refrigerante apresentado por ldquojjewelartrdquo tambeacutem fez parte do

experimento poreacutem natildeo apresentou os resultados esperados

De acordo com as demonstraccedilotildees do ateliecirc de arte Art Eacutemilion o procedimento

faz uso dos seguintes materiais oacuteleo de cozinha vinagre branco refrigerante de cola

papel alumiacutenio esponja litograacutefica tinta para talho doce rolo para entintagem laacutepis

para desenho litograacutefico (e outros materiais gordurosos para o mesmo fim como sabatildeo

de glicerina) papel para impressatildeo e aacutegua

O desenvolvimento da teacutecnica envolve as seguintes etapas

1 O papel alumiacutenio deve ser posto sobre uma chapa acriacutelica ou algo semelhante

para facilitar o trabalho o lado a ser usado eacute o fosco

2 Apoacutes limpar o papel alumiacutenio com aacutelcool pode-se fazer o desenho com giz

gorduroso ou sabatildeo de glicerina

3 O banho de refrigerante de cola eacute o passo seguinte mas deve-se ter a certeza

de que o desenho estaacute totalmente seco para isso Este processo toma alguns

segundos e eacute necessaacuterio assegurar-se de passar por toda a superfiacutecie

4 Depois disso deve-se lavar com aacutegua e secar levemente com papel toalha

5 O oacuteleo de canola deve ser espalhado por toda a superfiacutecie com uma gaze para

retirar o desenho do alumiacutenio

6 Eacute necessaacuterio passar a esponja de litografia sobre o desenho devendo estar

umedecida com aacutegua e ser aplicada entre as etapas de entintagem com tinta

4 EMILLION Aizier Lithography Maison ndash Kitchen lithography Disponiacutevel em lt httpwwwatelier-kitchen-printorgproducts-pagemanuelsproduitshandbook-of-kitchen-lithogt Acesso em 09 de junho de 2016 5DIGIOVANI Felicia Kitchen Lithography Demo Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=UuBUlEt6vWwgt Acesso em 09 de junho de 2016

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para talho doce ou tipograacutefica com um rolo de borracha Na primeira passada eacute

possiacutevel que a tinta se fixe a todas as partes poreacutem a esponja molhada deve

ser aplicada vaacuterias vezes assim como a tinta ateacute que ao final a tinta aderiraacute

somente na imagem (figura 3)

Figura 3 Ana van Grol - testes de litografia alternativa com coca cola do atelier Art Eacutemilion Fonte Arquivo pessoal

Nos primeiros resultados apenas era possiacutevel reconhecer vestiacutegios das

imagens e teacutecnica entretanto ao repetir o processo algumas vezes e analisar os

procedimentos realizados era notaacutevel a melhora das impressotildees (figura 4)

Figura 4 Ana van Grol ndash detalhe da impressatildeo com maior fidelidade entre o desenho inicial e sua impressatildeo final

Fonte Arquivo pessoal

Eacute curioso salientar um aspecto em que diferem nossos estudos dos

experimentos realizados nos viacutedeos observados enquanto que em nossas praacuteticas a

tinta eacute fixada no plano de fundo da imagem nos viacutedeos ela adere nos desenhos sendo

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assim o sistema que repele a tinta acontece invertido e por esse motivo continuamos

as testagens para obter resultados mais proacuteximos aos dos viacutedeos

Nestas experimentaccedilotildees os resultados foram satisfatoacuterios tecnicamente poreacutem

ainda natildeo foram consideradas questotildees esteacuteticas e conceituais enquanto linguagem

artiacutestica Na etapa seguinte buscamos aliar a transferecircncia de imagens para a criaccedilatildeo

de matrizes com papel alumiacutenio utilizando outros procedimentos e materiais

A transferecircncia de imagem sobre matriz de alumiacutenio

A articulaccedilatildeo da gravura tem seus antecedentes histoacutericos que remetem aos

primoacuterdios da fotografia relacionados agrave gravaccedilatildeo de sombra luz e impressatildeo O uso de

recursos tecnoloacutegicos pela facilidade de acesso propicia a ampla reproduccedilatildeo de

imagens assim como a fotografia digital contribui para a renovaccedilatildeo e a interaccedilatildeo com

outras linguagens artiacutesticas No entanto diante das inuacutemeras possibilidades de

reproduzir coacutepias por tecnologias digitais a questatildeo da reproduccedilatildeo atraveacutes da gravura

jaacute natildeo eacute tatildeo relevante Com o avanccedilo dessas tecnologias digitais abrem-se novos

caminhos para a gravura Maria do Carmo Veneroso6 coloca que

Eacute pois a qualidade graacutefica e a possibilidade do uso da imagem fotograacutefica entre outras coisas que vai caracterizar a praacutetica dos gravadores atualmente A reprodutibilidade deixa portanto de ser um valor em si jaacute que com o desenvolvimento da induacutestria graacutefica muitas outras formas de impressatildeo mais raacutepidas e mais eficientes se impotildeem deixando que a gravura se realize plenamente em meio e tangenciando outras linguagens plaacutesticas Essa mudanccedila de paradigma faz com que a gravura se desenvolva como linguagem lanccedilando matildeo dos recursos teacutecnicos disponiacuteveis (2007 p1512)

A autonomia das linguagens graacuteficas propicia que sejam articulados distintos

meios e procedimentos borrando as fronteiras e delimitaccedilotildees teacutecnicas para originar

outras praacuteticas e confrontos esteacuteticos O caminho da gravura artiacutestica comeccedila a se

modificar significativamente quando a tecnologia e os meios de reproduccedilatildeo fotograacutefica

6 Blog Litografia 2010 ndash CAPECAUSP Disponiacutevel em lthttpcap-lito-2010blogspotcombr201003litografias-de-artistas-cezannehtmlgt Acesso em 09 de junho de 2016

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GROL Ana Paula Schoninger Van BLAUTH Lurdi Gravura procedimentos alternativos em litografia

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satildeo incluiacutedos aos procedimentos tradicionais ldquoRobert Rauschenberg por exemplo

desafiou os meios convencionais da gravura introduzindo elementos jaacute impressos

atraveacutes da transferecircncia de imagens Tambeacutem ampliou as escalas fiacutesicas misturando

diversas teacutecnicas graacuteficas que satildeo impressas sobre tela para substituir o papelrdquo

(BLAUTH 2011 p27) (Figura 5)

Figura 5 Robert Rauschenberg Shades 1964 Seis litografias impressas sobre acriacutelico 15 x 1438 x 11 58 p Ediccedilatildeo 24

Fonte MOMA Disponiacutevel em httpswwwmomaorgcollectionworks14718

Neste estudo apresentamos resultados parciais de procedimentos e meacutetodos

com o intuito de transferir a fotografia digital para criaccedilatildeo de matrizes com papel

alumiacutenio Inicialmente satildeo realizadas algumas testagens com outros tipos de matrizes

(acetato lata de refrigerante) e meios de transferecircncia (tela de serigrafia calor e

salicilato de metila)

Um dos materiais testados foi o acetato com imagem impressa em toner preto

aacutegua e esponja para molhar o acetato antes de entintar tinta para talho doce rolo de

borracha papel proacuteprio para a impressatildeo e prensa

Fazendo uso das impressotildees a laser e conhecendo suas propriedades o acetato

foi entintado e impresso Apoacutes alguns testes o resultado foi satisfatoacuterio (figura 6)

poreacutem natildeo com total controle sobre as impressotildees Encontramos neste meacutetodo a

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possibilidade de unir a tecnologia com a reproduccedilatildeo de imagem aos materiais

alternativos na produccedilatildeo de gravura

Figura 6 Ana van Grol Processo e resultado acetato impresso a laser gravura direta com tinta para talho doce

Fonte Arquivo pessoal

Em outra experiecircncia eacute feita a transferecircncia de impressatildeo a laser com calor e

pressatildeo e a tinta para talho doce acaba por fazer a interaccedilatildeo necessaacuteria utilizando-se

do meacutetodo de limpar a placa com oacuteleo antes de entintaacute-la A tinta de talho doce eacute

aplicada com rolo de borracha vaacuterias vezes e entre os intervalos de cada entintagem eacute

necessaacuterio limpar a tinta com esponja litograacutefica embebida em aacutegua (figura 7)

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Figura 7 Ana van Grol Processo e resultado de trabalho com transferecircncia de coacutepia a laser e

impressatildeo direta com tinta para talho doce Fonte Arquivo pessoal

Outro procedimento de transferecircncia de imagem impressa a laser eacute o produto

denominado de salicilato de metila associado ao processo de impressatildeo com a prensa

Com este material obtemos resultados mais satisfatoacuterios quando a imagem eacute impressa

sobre papel couchet ressaltando um certo contraste na imagem Neste caso (figura 8)

apoacutes a transferecircncia satildeo realizadas grafias aleatoacuterias com laacutepis litograacutefico gorduroso e

depois satildeo empregados os procedimentos de fixaccedilatildeo da imagem sobre o alumiacutenio uso

de polvilho melado ou mel imersatildeo em refrigerante cola oacuteleo de cozinha (para retirar a

imagem) esponja embebida em aacutegua e tinta para impressatildeo (para talho doce) Nesse

processo a imagem transferida natildeo desaparece apenas o desenho feito com material

gorduroso

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Figura 8 Lurdi Blauth Teste de transferecircncia de imagem com salicilato de metila Fonte Arquivo pessoal

A serigrafia tambeacutem serve de aporte ao desejo de transferir uma imagem e

reproduzi-la em impressotildees Em si o processo de serigrafia consiste em sensibilizar a

tela de nylon com uma imagem que poderaacute ser reproduzida sobre outras superfiacutecies

com uso de tinta proacutepria No caso da litografia alternativa utilizamos o sabatildeo de

glicerina como ldquotintardquo ou seja na funccedilatildeo de base protetora para o banho de

refrigerante Para isso foi necessaacuterio criar uma pasta (na textura de tinta) para

reproduzir a imagem da tela para o papel alumiacutenio Mais tarde com a mistura de sabatildeo

jaacute seca foram aplicadas as etapas posteriores o resultado pode ser observado na

impressatildeo (figura 9)

Figura 9 Ana van Grol - impressatildeo com uso de serigrafia como forma de transferecircncia de imagem

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Fonte Arquivo pessoal

A impressatildeo apresentou resultados bem satisfatoacuterios quanto agrave qualidade de

imagem contudo outras misturas semelhantes agrave de sabatildeo de glicerina neutro devem

ser testadas e podem apresentar melhor aderecircncia eou resistecircncia ao banho de

refrigerante

Algumas consideraccedilotildees

Diante da pluralidade de meios e possibilidades artiacutesticas testadas procuramos

utilizar materiais alternativos e produtos atoacutexicos buscando aproveitar materiais

disponiacuteveis na tentativa de abrir outros meios de reproduccedilatildeo de imagens O caminho

continua em aberto e o que nos motiva eacute a nossa convicccedilatildeo na continuidade da

exploraccedilatildeo de novas perspectivas para o campo da arte e em especial agrave litografia

testada com diferentes procedimentos Entendemos que diversos fatores interferem

devido agraves caracteriacutesticas e qualidade dos materiais empregados os quais muitas

vezes apresentam resultados inesperados

As experimentaccedilotildees realizadas ateacute o momento nos indicam a continuidade da

pesquisa buscando meios variados para o campo da gravura que possam ser

socializados principalmente nos ateliecircs que ainda utilizam materiais prejudiciais Dessa

forma pretendemos tambeacutem contribuir com a conscientizaccedilatildeo dos cuidados

relacionados agrave sauacutede dos artistas e do meio ambiente Em nossas conclusotildees parciais

percebemos que as possibilidades satildeo inuacutemeras para a criaccedilatildeo e reproduccedilatildeo de

imagens com materiais ldquocaseirosrdquo e com o seguimento de nossas investigaccedilotildees e

testagens temos a convicccedilatildeo de que podemos estimular a adesatildeo e a interaccedilatildeo com

outros artistas e assim obtermos melhores resultados

Portanto o campo das linguagens graacuteficas e os seus meios de reproduccedilatildeo direta

ou indireta da imagem tem suas qualidades intriacutensecas em cada processo contudo se

natildeo suscitarem transformaccedilotildees tornam-se vazias e desnecessaacuterias Podemos dizer

que natildeo importam os meios empregados pois os ldquoproblemasrdquo artiacutesticos devem ser

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confrontados com novos questionamentos esteacuteticos seja pelo uso do computador na

imagem digital na fotografia ou mesmo os meios considerados tradicionais como

gravura a pintura a escultura podendo ter (ou natildeo) qualidade contemporacircnea

Referecircncias BLAUTH Lurdi Marcas Passagens e Condensaccedilotildees ndash investigaccedilotildees de um processo de gravura contemporacircnea Porto Alegre Editora da UFRGS 2011 GARCIacuteA Hortensia Miacutenguez e LLOPIS Carles Meacutendez La siligrafiacutea Un proceso alternativo en la graacutefica muacuteltiple contemporacircnea In Revista El Artista n 11 Pamplona Colombia Universidad Distrital Francisco Joseacute de Caldas 2014 MALENFANT Nicole A gravura entre a identidade disciplinar e suas manifestaccedilotildees em um quadro interdisciplinar In Revista Porto Arte v 1 n1 (jun 1990) Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Visuais 1990 VENEROSO Maria do Carmo Gravura e Fotografia - Um estudo das possibilidades da gravura como uma linguagem artiacutestica autocircnoma na contemporaneidade e sua associaccedilatildeo com a fotografia In 16deg Encontro Nacional da Associaccedilatildeo Nacional de Pesquisadores de Artes Plaacutesticas Dinacircmicas Epistemoloacutegicas em Artes Visuais ndash 24 a 28 de setembro de 2007 ndash Florianoacutepolis SC

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Pluralia Tantum reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea

Fernando Lewis de Mattos1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

1 Consideraccedilotildees preliminares sobre o conservadorismo em muacutesica Antes de iniciar esta explanaccedilatildeo sobre algumas caracteriacutesticas da muacutesica

contemporacircnea gostaria de apontar aspectos do conservadorismo existente na

muacutesica atual

Mesmo atraveacutes de um vislumbre raacutepido sobre a Histoacuteria da Muacutesica percebe-

se que em todas as eacutepocas houve aqueles artistas que se esforccedilaram para expandir

a sensibilidade de seu tempo e aqueles (artistas teoacutericos criacuteticos pensadores e

parte do puacuteblico) que natildeo foram capazes de compreender o significado das

transformaccedilotildees ou natildeo estavam dispostos a abrir matildeo de seus valores

aparentemente bem fundamentados para escutar com a devida atenccedilatildeo as

realizaccedilotildees de seus contemporacircneos

Nem mesmo grandes pensadores estiveram livres de juiacutezos preconcebidos

ou natildeo foram capazes de apreciar a abrangecircncia de certas inovaccedilotildees no campo

artiacutestico de sua eacutepoca Platatildeo por exemplo revoltou-se contra a nova muacutesica de

seu tempo com seus trecircs gecircneros (diatocircnico cromaacutetico e enarmocircnico) e a

ampliaccedilatildeo vertiginosa das possibilidades de expressatildeo considerada perigosa pelo

filoacutesofo por romper com os fundamentos numeacutericos e com as normas pitagoacutericas da

muacutesica tradicional Rousseau e Diderot percebiam em Rameau somente o muacutesico

da corte chegando a ridicularizar suas oacuteperas por haver um grande contingente de

1 Possui Graduaccedilatildeo em Muacutesica - Habilitaccedilatildeo Violatildeo (1988) Mestrado em Muacutesica - Ecircnfase Educaccedilatildeo Musical

(1997) e Doutorado em Muacutesica - ecircnfase em Composiccedilatildeo (2005) pela Universidade Federal do Rio Grande do

Sul Atualmente eacute Professor Associado do Departamento de Muacutesica no Instituto de Artes da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul onde atua nas disciplinas Anaacutelise Musical Harmonia Esteacutetica da Muacutesica no

curso de Muacutesica e as disciplinas Praacuteticas Artiacutesticas e Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Muacutesica no curso de Histoacuteria da

Arte Soacutecio-fundador da Arena - Associaccedilatildeo Cultural Socioambiental onde ministra cursos regularmente

Instrumentista (cordas dedilhadas) dedicado agrave pesquisa e interpretaccedilatildeo de muacutesica antiga europeia (alauacutedes e

guitarras) muacutesica tradicional brasileira (viola caipira e guitarra romacircntica) e muacutesica contemporacircnea (violatildeo e

decacorde) compositor com obras para diferentes formaccedilotildees vocais e instrumentais muacutesica incidental para

teatro viacutedeo e cinema e produccedilatildeo de material sonoro para exposiccedilotildees Dedica-se tambeacutem agrave pesquisa e

interpretaccedilatildeo de muacutesica brasileira moderna e contemporacircnea

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instrumentos de percussatildeo tratando-as como natildeo sendo muacutesica mas somente um

amontoado de sons que produziam um barulho infernal Para Diderot Rameau era

[] aquele muacutesico ceacutelebre que nos livrou do canto chatildeo de Lully o qual recitamos haacute mais de cem anos que escreveu tantas visotildees ininteligiacuteveis e verdades apocaliacutepticas sobre a teoria da muacutesica sobre as quais nem ele nem ningueacutem jamais entendeu nada2 e de quem temos um certo nuacutemero de oacuteperas onde haacute harmonias fragmentos de cantos ideias desconexas ruiacutedos estrondosos voos triunfos lances gloacuterias murmuacuterios vitoacuterias de perder o focirclego aacuterias de danccedila que duraratildeo eternamente e que depois de ter enterrado o Florentino seraacute enterrado pelos virtuoses italianos (DIDEROT 1983 p 47-48)

Nietzsche que assim como Platatildeo e Rousseau tambeacutem era muacutesico viu no

Parsifal de Wagner apenas a capitulaccedilatildeo aos valores de uma arte germacircnica

redentora e consolatoacuteria que abdicava do ideal da muacutesica como retorno agrave inocecircncia

da arte atraveacutes do espiacuterito dionisiacuteaco Se houve este aspecto conservador na muacutesica

de Wagner havia muito mais pois foi a partir de suas inovaccedilotildees que compositores

como Mahler Debussy e Schoenberg conduziram suas proacuteprias experiecircncias

Mesmo que nem sempre tenha sido por razotildees especificamente musicais3 as

sucessivas reaccedilotildees agraves novas sonoridades levam a crer que a abertura para praacuteticas

musicais inusuais pode ser algo difiacutecil de ser alcanccedilado

No meio musical atual podem-se distinguir duas espeacutecies de

conservadorismo o conservadorismo preacute-moderno e o conservadorismo modernista

O conservadorismo preacute-moderno eacute aquele mais generalizado e hegemocircnico

predominante entre os programadores culturais administradores de teatro diretores

artiacutesticos de orquestras e afins Essa espeacutecie de conservadorismo se opotildee a toda e

qualquer criaccedilatildeo musical natildeo coincidente com os procedimentos e valores da

muacutesica do Periacuteodo Tonal situado entre as produccedilotildees de Johann Sebastian Bach

(1685-1750) e Johannes Brahms (1833-1897) Para aqueles que defendem ainda

hoje esses valores a muacutesica tonal eacute tida como sendo lsquouniversalrsquo mesmo que seja o

2 Jean-Philippe Rameau (1683-1764) foi um dos maiores muacutesicos e teoacutericos de sua eacutepoca foi o primeiro a sistematizar mais de duzentos anos de praacutetica musical em seu Tratado de Harmonia (1722) que eacute ainda hoje considerado como um dos escritos mais importantes sobre o assunto 3 Platatildeo estava preocupado com a educaccedilatildeo dos jovens os enciclopedistas viam em Rameau um representante do Ancien Reacutegime e Nietzsche sentiu-se traiacutedo por Wagner em seu ideal de superar o predomiacutenio do espiacuterito apoliacuteneo no campo musical

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fruto do trabalho de muacutesicos de uma regiatildeo restrita do planeta que corresponde a

aproximadamente trecircs paiacuteses da Europa Ocidental (Itaacutelia Franccedila e principalmente

Alemanha) e produzida em um curto periacuteodo de tempo entre os seacuteculos XVIII e

XIX

Um bom exemplo desse tipo de conservadorismo estaacute naquela afirmaccedilatildeo

comum em certos meios musicais onde prevalecem valores convencionais ldquonatildeo

toco muacutesica contemporacircnea porque as pessoas natildeo tecircm como saber se estou

tocando as notas certas ou erradas e quando escuto uma muacutesica dessas natildeo sei se

o muacutesico estaacute tocando bem ou natildeo Por isso considero essa muacutesica como sendo

de menor importacircnciardquo Nota-se aqui um pensamento tautoloacutegico centrado apenas

na proacutepria experiecircncia pessoal e sem qualquer interesse pela produccedilatildeo que estaacute agrave

sua volta Tautoloacutegico no sentido em que o sujeito natildeo tem como avaliar aquela

interpretaccedilatildeo porque natildeo conhece a muacutesica e natildeo conhece aquela muacutesica porque

natildeo se permite avaliar a interpretaccedilatildeo O raciociacutenio artificioso estaacute em que como o

indiviacuteduo natildeo conhece a muacutesica natildeo se esforccedila para escutar sua interpretaccedilatildeo

portanto natildeo pode julgaacute-la e se natildeo eacute possiacutevel emitir juiacutezo a muacutesica natildeo tem valor ndash

como se fosse necessaacuterio conhecer a muacutesica para saber se algueacutem a estaacute

interpretando adequadamente como se a capacidade de anaacutelise natildeo estivesse no

conhecimento que o sujeito tem do objeto analisado Trata-se de uma atitude

autocentrada porque esses muacutesicos

[] soacute conhecem a arte que consomem e soacute consomem a que reconhecem portanto sua consciecircncia eacute leve e parcial Como sustentar o pacto se eacute tatildeo menos sofrido dormir com a consciecircncia leve sem a pretensatildeo de uma arte feita tambeacutem para arte sem a sombra do domiacutenio gigantesco Talvez arte feita somente para o mundo para o plano da distraccedilatildeo substacircncia que dissolve instantaneamente o artista Arte distraiacuteda quase arte quase atenccedilatildeo quase conteuacutedo insuficiecircncia (BERNARDES 1998 p 7)

Quem crecirc que julga a arte a partir dessa espeacutecie de raciociacutenio apenas se

limita a reconhecer aquilo que jaacute conhece ou seja nesse ponto natildeo haacute

conhecimento apenas reconhecimento Ouvem-se tambeacutem alguns muacutesicos que se

negam a tocar novos repertoacuterios argumentando que natildeo se dedicam a estudar a

muacutesica atual porque ela natildeo acrescenta muito agrave teacutecnica do seu instrumento Esse

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ponto de vista parece ainda mais esvaziado pois fica confinado nos limites da

teacutecnica onde natildeo se alcanccedila jamais a condiccedilatildeo de arte

O conservadorismo moderno eacute atualmente defendido por aqueles que foram

os protagonistas de grandes transformaccedilotildees teacutecnicas e esteacuteticas da muacutesica de

meados do seacuteculo XX (do poacutes-guerra agrave deacutecada de 1970) e seus disciacutepulos esses

muacutesicos opotildeem-se a qualquer mudanccedila de direcionamento que natildeo corresponda agraves

novidades introduzidas pelas vanguardas tardias e confundem novos processos

narrativos e novos significados musicais com a arte de um passado ao qual sempre

se opuseram Natildeo tecircm a capacidade de compreender que as novas geraccedilotildees

percebem o mundo de outra maneira tecircm outros anseios e consequentemente

outras necessidades Portanto produzem outra arte O musicoacutelogo Paul Bekker

afirmava que os muacutesicos de sua eacutepoca natildeo escreviam da mesma maneira que os

grandes gecircnios do passado ldquopelo simples fato de serem pessoas diferentesrdquo

(BEKKER 1928 p 217) Parece que os protagonistas das vanguardas (a quem

Bekker estava se referindo) natildeo se deram conta de que o tempo continua a passar e

que os mais jovens que vieram depois deles tambeacutem tecircm outras necessidades ndash o

que obviamente leva agrave criaccedilatildeo de outra muacutesica diferente da sua

Haacute tambeacutem aqueles que pretendem que a arte se limite agrave aplicaccedilatildeo de novos

processos tecnoloacutegicos esquecendo que a arte eacute antes de tudo expansatildeo da

sensibilidade e do pensamento e que a teacutecnica natildeo eacute condiccedilatildeo para a arte A

tecnologia pode ser mais um recurso para a realizaccedilatildeo artiacutestica natildeo seu fim

Quando a muacutesica eacute valorizada somente pelos procedimentos tecnoloacutegicos

empregados na sua produccedilatildeo tambeacutem fica confinada nos limites da teacutecnica e natildeo

alcanccedila sua condiccedilatildeo esteacutetica O emprego de recursos tecnoloacutegicos vem a partir de

necessidades mais amplas do que a simples aplicaccedilatildeo de teacutecnicas recentes Se o

emprego de novas tecnologias fosse criteacuterio para a avaliaccedilatildeo da arte as primeiras

experiecircncias com muacutesica eletrocircnica seriam atualmente obsoletas (e seria no

miacutenimo enganoso considerar ultrapassadas as peccedilas eletrocircnicas de Schaeffer

Henry ou Stockhausen dos anos rsquo50) Por sua vez a novidade tecnoloacutegica natildeo

implica necessariamente na produccedilatildeo de arte nova

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Como o tempo eacute inexoraacutevel os indiviacuteduos humanos de hoje satildeo outros do

que em outros tempos as sociedades satildeo outras haacute outras maneiras de perceber o

mundo e refletir sobre ele tambeacutem o resultado da produccedilatildeo desses indiviacuteduos eacute

necessariamente outro Natildeo tem como ser diferente Isso indica que toda espeacutecie de

conservadorismo estaacute fadada ao fracasso o movimento se manifesta em todos os

aspectos e em todos os lugares Natildeo tem como negar a transformaccedilatildeo ela

simplesmente estaacute aiacute Haacute que aceitaacute-la ou trabalhar com ela para a criaccedilatildeo de

processos que possam conduzir a novos significados e novos meios de fazer e

perceber muacutesica Isso natildeo eacute dito de um ponto de vista apenas teacutecnico ou

pragmaacutetico mas acima de tudo conceitual pois a muacutesica como diria Platatildeo

alcanccedila seu mais alto niacutevel quando ultrapassa as pretensotildees praacuteticas mais

imediatistas e eacute nesse sentido que Soacutecrates no diaacutelogo Feacutedon compara o ato de

criar muacutesica ao haacutebito de filosofar

Negar que o tempo se prolonga incessantemente e perdura sem interrupccedilatildeo

levando consigo toda a sorte de transformaccedilotildees em todos os aspectos da realidade

significa dar as costas ao devir em seu fluxo ininterrupto de ir e vir em muacuteltiplas

direccedilotildees O que eacute uacutetil intrigante e considerado como atual para determinado grupo

humano pode natildeo o ser para outros grupos e eacute necessaacuterio aceitar isso para

compreender algo da diversidade da produccedilatildeo artiacutestica hodierna Eacute necessaacuterio sair

do proacuteprio centro para apreender algo da realidade circundante

2 Caracteriacutesticas da muacutesica atual

Haacute vaacuterias maneiras de distribuir as diferentes correntes de composiccedilatildeo da

muacutesica contemporacircnea Podem-se diferenciar as tendecircncias atuais de acordo com

procedimentos teacutecnicos como muacutesica serial muacutesica neotonal muacutesica minimalista

muacutesica eletrocircnica e outras conforme a ecircnfase em um ou outro elemento da

composiccedilatildeo como por exemplo os muacutesicos que valorizam o timbre as tendecircncias

em que o mais importante eacute o ritmo os movimentos de retorno agrave melodia agrave

harmonia ou ao contraponto aquelas linhas em que o importante estaacute no tipo de

escrita musical como a muacutesica com escrita precisa a escrita em forma de roteiro a

muacutesica aleatoacuteria e a improvisaccedilatildeo espontacircnea (que prescinde da escrita) poderiam

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tambeacutem ser consideradas as relaccedilotildees da muacutesica com outras aacutereas em que se

levariam em consideraccedilatildeo subdivisotildees como o teatro musical as instalaccedilotildees

sonoras ou as tendecircncias de multimiacutedia aleacutem de muacutesica para danccedila e a muacutesica

para cinema entre outras o ambiente musical atual poderia ainda ser dividido

entre os grupos derivados das vanguardas como a muacutesica atonal a muacutesica serial a

muacutesica estocaacutestica e a muacutesica espectral

Haveria ainda outras tantas possibilidades de demarcaccedilatildeo das tendecircncias

da muacutesica contemporacircnea Optou-se poreacutem neste ensaio por uma organizaccedilatildeo

mais ou menos extriacutenseca agrave proacutepria muacutesica e que poderia se adequar a outras

manifestaccedilotildees culturais atuais O que importa no esboccedilo a seguir satildeo os valores

que movem os muacutesicos em direccedilotildees que se entrecruzam em algumas de suas

caracteriacutesticas em alguns muacutesicos ou grupos de compositores Com base nas

referecircncias tomadas a partir de tradiccedilotildees imediatas ou remotas isto eacute nas tradiccedilotildees

do modernismo ou em tradiccedilotildees anteriores que tecircm sido resgatadas nos uacuteltimos

anos podem ser demarcadas trecircs linhas gerais na esteacutetica musical

contemporacircnea4

1 Continuidade da Modernidade

2 Retorno agrave Tradiccedilatildeo e

3 Superaccedilatildeo do Modernismo

A intenccedilatildeo com essa divisatildeo natildeo eacute enquadrar toda e qualquer manifestaccedilatildeo

musical contemporacircnea em alguma dessas trecircs tendecircncias gerais mas ao

contraacuterio procurar entender essas manifestaccedilotildees no sentido dos valores que podem

estar impliacutecitos ou expliacutecitos latentes ou manifestos conscientes ou inconscientes

nas diferentes produccedilotildees da muacutesica atual

Antes de iniciar a elaboraccedilatildeo sobre cada uma dessas tendecircncias eacute

necessaacuterio esclarecer algo da terminologia que seraacute empregada ao longo deste

ensaio

4 A organizaccedilatildeo adotada aqui leva em consideraccedilatildeo alguns princiacutepios elaborados por Ramaut-Chevassus (1998) o que natildeo significa poreacutem que se permanece no escopo de suas proposiccedilotildees

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Em primeiro lugar quando se fala de lsquomuacutesica contemporacircnearsquo neste texto se

estaacute abordando uma parcela da totalidade da muacutesica produzida atualmente que eacute a

assim chamada lsquomuacutesica eruditarsquo aquela produzida por muacutesicos que se dedicam ao

estudo da Teoria Musical agrave Histoacuteria da Muacutesica e agrave colocaccedilatildeo e soluccedilatildeo de

problemas teacutecnicos esteacuteticos ou relativos aos vaacuterios niacuteveis de significaccedilatildeo que

podem estar engendrados no fazer musical Isso significa que este ensaio se dedica

agravequelas manifestaccedilotildees musicais em que o foco principal estaacute na reflexatildeo sobre

problemas relativos agrave muacutesica como arte portadora de significados e suas

implicaccedilotildees culturais e natildeo se apresentam apenas como reaccedilatildeo imediata ao meio

circundante5

Uma diferenciaccedilatildeo importante para as discussotildees que se seguem diz

respeito aos termos lsquoModernidadersquo e lsquoModernismorsquo

No contexto deste ensaio entende-se por Modernidade o grande periacuteodo

histoacuterico da cultura ocidental que sobreveio apoacutes a quebra da hegemonia da Igreja

Catoacutelica Romana em meados do seacuteculo XV isto eacute a partir do Renascimento Este eacute

um periacuteodo marcado por transformaccedilotildees em todos os campos e atividades

humanas que influenciaram profundamente o fazer musical em todos os seus

aspectos No acircmbito da sistematizaccedilatildeo da muacutesica europeia o antigo Sistema Modal

medieval com sua diversidade de modos foi cedendo lugar agraves novas organizaccedilotildees

com base na dualidade de modos do Sistema Tonal Os princiacutepios do contraponto

vatildeo-se tornando menos importantes ateacute que em meados do seacuteculo XVIII a

harmonia passa a ser o principal meacutetodo de organizaccedilatildeo musical Nessa eacutepoca a

Teoria dos Afetos jaacute estava plenamente elaborada para sua aplicabilidade na muacutesica

de cena na oacutepera e no oratoacuterio

Na segunda metade do seacuteculo XVIII o Sistema Tonal estaacute completamente

organizado com possibilidade de modulaccedilatildeo para todas as tonalidades e o emprego

de cromatismo em qualquer segmento independente da escala de base atraveacutes do

temperamento igual Nos seacuteculos XVIII e XIX as diversas teorias de explicaccedilatildeo da

5 Isso natildeo significa qualquer preferecircncia do ponto de vista valorativo por esta ou aquela manifestaccedilatildeo musical mas apenas que as consideraccedilotildees sobre a muacutesica contemporacircnea apresentadas neste ensaio satildeo relativas agrave parcela da muacutesica atual comumente denominada lsquomuacutesica eruditarsquo

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realidade satildeo aproveitadas pelos muacutesicos com a intenccedilatildeo de compreender e

justificar suas escolhas Essa reflexatildeo sobre a proacutepria produccedilatildeo leva os

compositores agrave procura de originalidade na busca da lsquofantasia criadorarsquo e de novos

significados emocionais que se desenvolvem no Romantismo e desembocam nas

vaacuterias correntes modernistas do seacuteculo XX

O Modernismo equivale a todos aqueles movimentos de ruptura com a

tradiccedilatildeo6 oitocentista que se desenvolveram ao longo da primeira metade do seacuteculo

XX tendo seu marco inicial geralmente fixado no Impressionismo francecircs das

uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX No campo musical esse Modernismo eacute marcado

pela negaccedilatildeo do Sistema Tonal Negaccedilatildeo essa que se manifestou em vaacuterias

direccedilotildees pois se na muacutesica de Debussy e Ravel que estatildeo entre os primeiros a

romper com a tonalidade tradicional foram incorporados processos percebidos na

escuta de muacutesica do Extremo Oriente em especial a orquestra de gamelatildeo balinesa

Stravinsky e Bartoacutek entre outros aproveitaram elementos folcloacutericos do Leste

Europeu e juntamente com Milhaud desenvolveram a politonalidade em que vaacuterias

escalas satildeo sobrepostas com a intenccedilatildeo de obscurecer a funcionalidade tonal7

Se os compositores latinos e eslavos (como diria Schoenberg) buscavam a

superaccedilatildeo do Tonalismo oitocentista atraveacutes da incorporaccedilatildeo de processos e

materiais sonoros aproveitados de culturas extraeuropeias no meio musical

germacircnico e mais especificamente no acircmbito da Segunda Escola de Viena sob a

lideranccedila de Arnold Schoenberg (1874-1951) os jovens muacutesicos estavam

conduzindo as possibilidades cromaacuteticas ao extremo atraveacutes do Atonalismo desde

os primeiros anos do seacuteculo XX e do Dodecafonismo a partir da deacutecada de 1920

Esta muacutesica mais densa psicologicamente e considerada como sendo mais

6 Note-se que a noccedilatildeo de lsquoruptura com a tradiccedilatildeorsquo atraveacutes da lsquonova artersquo (Philippe de Vitry 1322) com a criaccedilatildeo de lsquonovas muacutesicasrsquo (Giulio Caccini 1601) com a concepccedilatildeo de um lsquoestilo modernorsquo que aporta em uma lsquosegunda praacuteticarsquo (Monteverdi 1605) natildeo eacute caracteriacutestica apenas do Modernismo mas da Modernidade como um todo 7 Eacute interessante notar que Darius Milhaud (1892-1974) considerado como um dos primeiros a empregar teacutecnicas politonais nas duas suiacutetes para piano intituladas Saudades do Brasil (com o tiacutetulo original em portuguecircs) de 1920 e 1921 certamente aproveitou esse recurso a partir da sua experiecircncia com o compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920) com quem conviveu no Rio de Janeiro na eacutepoca em que este foi diretor da Escola Nacional de Muacutesica Nepomuceno jaacute havia escrito em 1902 suas Variations sur un thegraveme original Op 29 (com o tiacutetulo em francecircs) onde empregou explicitamente sobreposiccedilatildeo de tonalidades inclusive com diferentes armaduras de clave

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complexa e de difiacutecil assimilaccedilatildeo foi o ponto de partida para grande parte das

experiecircncias das vanguardas tardias (1950-1970) em que se elaboraram e

aprofundaram inuacutemeras teacutecnicas e processos de organizaccedilatildeo musical com base em

seacuteries de alturas seacuteries de duraccedilotildees seacuteries de timbres etc chegando ao que se

chamou de Serialismo Integral no qual todos os paracircmetros da composiccedilatildeo seriam

serializados Ateacute mesmo Stravinsky principal antiacutepoda de Schoenberg chegou a

praticar teacutecnicas seriais Entre os principais compositores dessa geraccedilatildeo que

comeccedilou a aparecer apoacutes a Segunda Guerra nos festivais de muacutesica nova de

Darmstadt estatildeo Pierre Boulez (1925) Luciano Berio (1925-2003) e Karlheinz

Stockhausen (1928)

No final da deacutecada de 1950 houve entre os compositores que participavam

dos movimentos de vanguarda diversas reaccedilotildees agrave extrema racionalizaccedilatildeo dos

processos de composiccedilatildeo empregados pelos serialistas do grupo de Darmstadt As

mais difundidas foram as diferentes espeacutecies de muacutesica aleatoacuteria certamente

influenciadas por John Cage (1912-1992) Tambeacutem entre os compositores mais

jovens se desenvolveram novas praacuteticas com base nas relaccedilotildees mais rudimentares

entre os sons ou a partir da organizaccedilatildeo espectral da seacuterie harmocircnica Muacutesicos do

Leste Europeu como o polonecircs Krzysztof Penderecki (1933) ou o huacutengaro Gyorgy

Ligeti (1923) seguiram caminhos completamente independentes com relaccedilatildeo agrave

corrente dominante da Europa Ocidental Tambeacutem nos Estados Unidos houve

reaccedilatildeo agraves praacuteticas dos serialistas atraveacutes do Minimalismo de compositores como

Terry Riley (1935) Steve Reich (1936) e Philip Glass (1937) Pode-se considerar o

Minimalismo puro como o uacuteltimo dos movimentos modernistas no sentido de buscar

a ruptura com a tradiccedilatildeo ou com as praacuteticas das geraccedilotildees anteriores

O que caracteriza esses movimentos modernos apesar de sua diversidade eacute

a busca de hegemonia de cada um deles Por essa razatildeo o Modernismo se

caracteriza pelo lsquomanifestorsquo em que satildeo apresentados os valores da nova arte e se

explicitam em que sentido essa arte eacute nova de que maneira ela se diferencia das

outras e como pode ultrapassaacute-las Assim cada novo trabalho produzido pelo artista

moderno tem o caraacuteter de um programa com a exposiccedilatildeo de suas intenccedilotildees e

projetos em que satildeo apresentados os novos recursos descobertos por ele e seus

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colegas Haacute dessa maneira a crenccedila em uma progressividade determinada da

cultura em que se percebe a Histoacuteria de forma diacrocircnica como um processo

evolutivo contiacutenuo em que cada nova geraccedilatildeo deve acrescentar algo agraves conquistas

das geraccedilotildees anteriores para estar agrave sua altura e se diferenciar delas

Como o que pode ser quantificado na arte satildeo os materiais empregados e as

teacutecnicas com que esses materiais satildeo manipulados desenvolveram-se em grande

parte valores tecnicistas predominantes entre os movimentos de vanguarda em que

o importante seria a descoberta ou a criaccedilatildeo de novas teacutecnicas e o emprego de

novos recursos acuacutesticos Nesse sentido a lsquoexpressatildeo de conteuacutedosrsquo foi relegada a

um segundo plano quando natildeo passou a ser tomada como um resiacuteduo indesejaacutevel

de valores do Romantismo oitocentista Esse preceito pode ser exemplificado com a

conhecida afirmaccedilatildeo de Stravinsky ldquoinspiraccedilatildeo arte artista satildeo termos no miacutenimo

obscuros que nos impedem de ver claramente um campo onde tudo eacute equiliacutebrio

caacutelculo onde o que se passa eacute o sopro do espiacuterito especulativordquo

(STRAVINSKY 1986 p 54)

Cada grupo ou movimento artiacutestico buscava desenvolver seu proacuteprio sistema

de organizaccedilatildeo sonora seus proacuteprios meacutetodos de elaboraccedilatildeo musical e se

esforccedilava por descobrir novos materiais e recursos acuacutesticos que o posicionassem agrave

frente de seus concorrentes Havia por exemplo grande rivalidade entre a Escola

de Viena e os muacutesicos atuantes em Paris Schoenberg chegou a afirmar em seu

ensaio Muacutesica Nacional de 1931 que ldquoningueacutem ainda se deu conta que minha

muacutesica nascida em solo germacircnico livre de influecircncias estrangeiras eacute o exemplo

vivo de uma arte efetivamente capaz de se opor agraves esperanccedilas latinas e eslavas de

hegemonia porque se trata de uma arte essencialmente derivada das tradiccedilotildees da

muacutesica germacircnicardquo (SCHOENBERG 1975 p 173)

A noccedilatildeo da rivalidade entre franceses e germacircnicos no periacuteodo entre

guerras pode ser apreendida com a citaccedilatildeo do texto mais influente no meio musical

francecircs da deacutecada de 1920 O Galo e o Arlequim escrito por Jean Cocteau em

1918

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Schoenberg eacute um mestre todos os nossos muacutesicos e Stravinsky lhe devem algo mas Schoenberg eacute sobretudo um muacutesico de quadro negro Soacutecrates dizia lsquoQuem eacute este homem que come patildeo como se fosse a boa carne e a boa carne como se fosse patildeorsquo Resposta o melocircmano alematildeo (COCTEAU 1995 p 433-434)

Essas citaccedilotildees podem dar alguma noccedilatildeo do que eram os confrontos entre os

grupos modernistas na primeira metade do seacuteculo XX Os principais representantes

desses debates podem ser facilmente agrupados entre os partidaacuterios do

Neoclassicismo franco-russo que tinham em Stravinsky e no Grupo dos Seis seus

expoentes mais destacados e o Expressionismo germacircnico do qual os participantes

da Segunda Escola de Viena eram os principais portadores de conceitos e valores

Naturalmente houve grande nuacutemero de muacutesicos independentes poreacutem estes

geralmente se localizavam fora da Europa Ocidental Entre eles podem-se citar Bela

Bartoacutek (1881-1945) na Hungria Charles Ives (1874-1954) nos Estados Unidos

Carlos Chaacutevez (1899-1978) no Meacutexico Heitor Villa-Lobos (1887-1959) no Brasil e

Alberto Ginastera (1916-1983) na Argentina

21 Continuidade da Modernidade

As tendecircncias da muacutesica contemporacircnea em que a principal caracteriacutestica se

pode encontrar na busca de afirmaccedilatildeo dos pressupostos da Modernidade isto eacute em

que o artista percebe o fluxo histoacuterico de maneira contiacutenua e procura acrescentar

algo de original a ele satildeo aquelas que se desenvolveram a partir das vanguardas

tardias das deacutecadas de 1950 e 1960

Esses compositores que se alinham aos valores da poacutes-vanguarda podem

ser identificados entre aqueles que empregam processos derivados da muacutesica

atonal e serial que organizam suas estruturas sonoras com base em referecircncias

matemaacuteticas (com o emprego de algoritmos ou com base em estruturas

estocaacutesticas entre outras) e que desenvolveram suas investigaccedilotildees a partir da

muacutesica espectral do dececircnio de 1970 Haacute tambeacutem aqueles muacutesicos que se

dedicam agrave pesquisa na aacuterea de muacutesica e tecnologia a partir das experiecircncias da

muacutesica concreta da muacutesica eletrocircnica e eletroacuacutestica e podem ser alinhados no

escopo das tendecircncias de poacutes-vanguarda da muacutesica contemporacircnea O compositor

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Michel Chion (1947) tem empregado a expressatildeo lsquomuacutesica acusmaacuteticarsquo para designar

certos experimentos que se desdobraram a partir da muacutesica concreta

Com o intuito de ultrapassar cada fase histoacuterica com base em descobertas

originais esses compositores tecircm em geral como sua principal referecircncia a

superaccedilatildeo dos sistemas totalizantes que definiram os caminhos da Modernidade

Isso significa que mesmo aqueles que se dedicam agrave organizaccedilatildeo do material

acuacutestico com base em estruturas sistemaacuteticas natildeo se definem por uma via uacutenica de

estruturaccedilatildeo sonora ou seja natildeo seguem um princiacutepio sistecircmico uacutenico mas se

abrem para outras possibilidades conforme os elementos musicais se apresentam agrave

sua percepccedilatildeo pois muitos desses muacutesicos estatildeo abertos agrave casualidade mesmo

quando organizam seu trabalho a partir de processos racionais intriacutensecos ou com

base em caacutelculos predeterminados Nesse sentido a poacutes-vanguarda se diferencia

das vanguardas do poacutes-guerra para as quais qualquer intromissatildeo da percepccedilatildeo

imediata no processo compositivo significava ceder espaccedilo agrave subjetividade e

consequentemente aos valores liacutericos do Romantismo oitocentista

Muitos compositores atuais assumem uma atitude renovada com relaccedilatildeo ao

material sonoro pois mesmo aqueles que mais se esforccedilam em manter criteacuterios

quantitativos com preferecircncia por estruturas abstratas distanciadas das

experiecircncias cotidianas demonstram interesse pela pluralidade que qualquer

estrutura sonora traz em si Entendem com isso que os criteacuterios de valoraccedilatildeo de

qualquer produccedilatildeo dependem dos contextos especiacuteficos em que ocorrem e que natildeo

se podem definir antecipadamente quais os caminhos por que deve seguir

determinado conteuacutedo musical Esse entendimento conduz a outro terreno de

ordem mais esteacutetica do que teacutecnica que eacute a abertura para manifestaccedilotildees culturais

diferenciadas Enquanto um muacutesico de vanguarda da geraccedilatildeo de Boulez por

exemplo somente encontra valor em realizaccedilotildees que se assemelham agraves suas ou se

encontram no mesmo campo de atuaccedilatildeo um muacutesico de geraccedilatildeo posterior tem a

capacidade de reconhecer valor em algo que ele proacuteprio natildeo faria porque percebe

que satildeo impulsos criteacuterios e o gosto pessoal que estatildeo em causa entende que os

valores satildeo relativos ao contexto em que ocorrem e fora desse contexto podem

perder seu significado

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Haacute outros muacutesicos que seguem a tendecircncia de se mover no acircmbito dos

valores modernos poreacutem se diferenciam daqueles comentados acima por

desdenharem da lsquohierarquia de gostosrsquo do meio musical isto eacute fazem a leitura das

muacutesicas atuais sem hierarquizar os diversos tipos de manifestaccedilatildeo cultural Esses

muacutesicos percebem como sendo equivalentes do ponto de vista valorativo as

abordagens loacutegicas ou abstratas em comparaccedilatildeo agravequelas centradas na absorccedilatildeo do

mundo cotidiano eles procuram estreitar os elos que ligam as diferentes formas de

manifestaccedilatildeo musical atuais Entre as teacutecnicas de estruturaccedilatildeo musical mais usuais

nesta linha de atuaccedilatildeo do campo musical estatildeo a apropriaccedilatildeo a citaccedilatildeo a alusatildeo e

a colagem

Com base no princiacutepio da apropriaccedilatildeo de elementos oriundos de qualquer

muacutesica para a conformaccedilatildeo de uma nova estrutura sonora os materiais podem ser

apropriados de seu contexto original sob diferentes aspectos O compositor russo

Alfred Schnittke (1934-1998) um dos fundadores dessa tendecircncia de assimilaccedilatildeo de

diversos tipos de manifestaccedilatildeo cultural diferencia citaccedilatildeo e alusatildeo da seguinte

maneira a citaccedilatildeo consiste na apropriaccedilatildeo direta de um fragmento musical para a

composiccedilatildeo de uma nova muacutesica isto eacute se cita literalmente uma linha meloacutedica

uma sequecircncia riacutetmica ou um encadeamento harmocircnico de modo a tornaacute-lo

reconheciacutevel ao passo que a alusatildeo consiste em somente sugerir a lsquomaneirarsquo de

outro muacutesico ou escola atraveacutes de um fragmento musical escrito pelo proacuteprio

compositor ldquoO princiacutepio de alusatildeo se manifesta por evocaccedilotildees sutis e natildeo por

anuacutencios expliacutecitos proacuteximos de citaccedilotildees sem realmente o serem Esse princiacutepio se

opotildee agrave classificaccedilatildeordquo (SCHNITTKE 1998 p 29) Assim faz-se alusatildeo sem citar

literalmente o modelo original

A teacutecnica da colagem que surgiu na pintura cubista e foi amplamente

utilizada pelos escritores surrealistas pelos dadaiacutestas e pelos muacutesicos franceses do

Grupo dos Seis eacute uma das principais teacutecnicas de elaboraccedilatildeo musical empregadas a

partir da apropriaccedilatildeo de materiais heterogecircneos esparsos ao longo de determinada

obra A colagem consiste na justaposiccedilatildeo ou na sobreposiccedilatildeo de elementos com

origens distintas e produz um resultado almejado por vaacuterios muacutesicos nos uacuteltimos

anos que eacute a produccedilatildeo de texturas sonoras heterofocircnicas nas quais se tem a niacutetida

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sensaccedilatildeo de estar escutando diversas muacutesicas simultaneamente Eacute interessante

notar que essa teacutecnica jaacute era empregada por Charles Ives desde o iniacutecio do seacuteculo

XX Sua Unanswered Question (1906) jaacute opunha trecircs ideias musicais distintas sem

que se produzisse qualquer tipo de interaccedilatildeo entre elas

Esses procedimentos e teacutecnicas de apropriaccedilatildeo citaccedilatildeo alusatildeo e colagem

podem ser agrupados em um conceito geral denominado por Schnittke de

lsquopoliestiliacutesticarsquo Para este compositor

[] apesar de todas as dificuldades e todos os perigos que encerram a poliestiliacutestica seus benefiacutecios indiscutiacuteveis jaacute satildeo evidentes Estes residem no alargamento da expressatildeo musical em uma maior facilidade para integrar os estilos lsquonobresrsquo e os estilos lsquocomunsrsquo os estilos lsquobanaisrsquo e os estilos lsquorefinadosrsquo ou em uma palavra em um universo alargado e em uma democratizaccedilatildeo de estilos A realidade musical pode ser objetivada de forma documental pois natildeo aparece unicamente como o reflexo do indiviacuteduo mas tambeacutem atraveacutes das citaccedilotildees [] Na realidade seria difiacutecil encontrar outra teacutecnica musical que fosse tatildeo bem adaptada quanto a poliestiliacutestica agrave expressatildeo da ideacuteia filosoacutefica de continuidade (SCHNITTKE 1989 p 134)

Com essas reflexotildees Schnittke aponta para a pluralidade como criteacuterio de

valoraccedilatildeo da arte e elimina a busca de hegemonia de uma tendecircncia sobre as

outras como sendo um princiacutepio esteacutetico vaacutelido Nota-se inclusive a ironia de

Schnittke com relaccedilatildeo aos conceitos tradicionais de lsquoestilos nobresrsquo ou lsquoestilos

banaisrsquo Essa espeacutecie de hierarquizaccedilatildeo vem de longa data pois jaacute na eacutepoca de

Mozart se diferenciavam o lsquoestilo elevadorsquo de caraacuteter afirmativo e enfaacutetico digno de

representar a nobreza e os sentimentos nobres o lsquoestilo meacutediorsquo mais ingecircnuo e

leve sobre o qual se dizia que ldquodeve agradar ao ouvinte sem excitaacute-lo ou levaacute-lo agrave

reflexatildeordquo e o lsquoestilo baixorsquo considerado ruacutestico e simples poderia aparecer na forma

de danccedilas populares e era proacuteprio para a representaccedilatildeo de camponeses e das

classes sociais inferiores (cf RATNER 1980 p 9) O que Schnittke estaacute fazendo eacute

uma criacutetica agraves categorizaccedilotildees riacutegidas dos estilos musicais com base em

preconceitos sociais No uacuteltimo movimento de sua Sonata para Violino e Orquestra

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de Cacircmara Op 508 (1968) um longo segmento eacute elaborado com base na citaccedilatildeo de

trechos de Vivaldi combinados com a melodia da canccedilatildeo La Cucaracha9

O resultado dessas teacutecnicas de apropriaccedilatildeo e colagem eacute uma espeacutecie de

hibridismo estiliacutestico em que eacute abolido o preceito da unidade de estilo conforme foi

preconizado pelo teoacuterico tcheco Eduard Hanslick em meados do seacuteculo XIX e se

manteve como valor intocaacutevel ateacute a deacutecada de 1970 Hanslick chegou ao ponto de

afirmar que se deveria ldquodizer lsquotal compositor tem estilorsquo com o mesmo sentido que

quando se diz de algueacutem lsquoele tem caraacuteterrsquordquo (HANSLICK 1989 p 96) Naturalmente

essa definiccedilatildeo quase moralizante do conceito de estilo natildeo se sustenta atualmente

ateacute porque apoacutes o decliacutenio dos metadiscursos e dos grandes sistemas de

explicaccedilatildeo da realidade natildeo se justifica a aplicaccedilatildeo de um criteacuterio uacutenico de caraacuteter

universal para a avaliaccedilatildeo da produccedilatildeo cultural Cada nova peccedila musical cada

nova criaccedilatildeo no campo da arte traz em si a chave para a sua compreensatildeo e com

isso carrega tambeacutem os criteacuterios para sua avaliaccedilatildeo Eacute faacutecil demonstrar o equiacutevoco

de um criacutetico de muacutesica quando ao escutar uma peccedila atonal reclama da falta de

um centro tonal definido no qual possa apoiar sua audiccedilatildeo poder-se-ia responder a

outro criacutetico que considerasse aborrecida a estrutura da arte minimalista da mesma

forma que John Walker ldquoo aborrecimento eacute presumivelmente apenas uma emoccedilatildeo

tatildeo legiacutetima para a arte como qualquer outrardquo (WALKER 1977 p 27) Parece ser

igualmente simples perceber que procurar unidade de estilo na obra de um

compositor que como Schnittke professa a diversidade estiliacutestica estaacute fora de

cogitaccedilatildeo

Em um sentido geral nessa linha da produccedilatildeo contemporacircnea em que os

valores esteacuteticos seguem com base na continuidade das caracteriacutesticas inerentes da

Modernidade permanece importando em primeiro plano o processo criativo O que

significa que o resultado segue sendo uma arte centrada no fazer fundamentada na

poiacuteēsis acima de qualquer outro criteacuterio valorativo Isso significa que seus

fundamentos permanecem focalizados no indiviacuteduo criador que se coloca

8 Esta peccedila eacute uma transcriccedilatildeo da Sonata nordm 1 Op 30 (1963) para violino e piano 9 Eacute interessante notar que o proacuteprio Mozart jaacute fazia colagens com alusotildees ao estilo elevado e ao estilo baixo em suas oacuteperas Don Giovanni e Bodas de Fiacutegaro que causaram polecircmica em algumas cidades europeias devido ao seu conteuacutedo que subvertia os valores sociais da eacutepoca

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livremente como um inventor de novas sonoridades novas combinaccedilotildees acuacutesticas

novas teacutecnicas novos materiais e novos processos de elaboraccedilatildeo musical

22 Retorno agrave Tradiccedilatildeo

Ao contraacuterio da acepccedilatildeo anterior os muacutesicos que se colocam de maneira

favoraacutevel com relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo tecircm sua fundamentaccedilatildeo na criacutetica ao Historicismo

Assim questionam a crenccedila de que as transformaccedilotildees histoacutericas satildeo o resultado de

princiacutepios universais tatildeo objetivos quanto as leis da Fiacutesica ou das Ciecircncias Naturais

e que eacute necessaacuterio descobrir quais satildeo esses princiacutepios para operar sobre eles10 Os

muacutesicos que se alinham agraves tendecircncias de retorno agrave tradiccedilatildeo fazem criacutetica a essa

concepccedilatildeo unidirecional da Histoacuteria e creem na possibilidade de sobreposiccedilatildeo das

diversas produccedilotildees musicais do passado e do presente o que significa que esses

muacutesicos estatildeo dispostos a retomar experiecircncias anteriores de qualquer eacutepoca ou

lugar ou evocar essas experiecircncias a partir de novos pontos de vista com o intuito

de atualizaacute-las em um momento especiacutefico da contemporaneidade

(Com relaccedilatildeo a essa discussatildeo os muacutesicos que se aplicam agrave continuidade da

Modernidade operam em grande parte com aquele princiacutepio historicista poreacutem jaacute

compreendido em contextos especiacuteficos e natildeo mais universais Nesta acepccedilatildeo da

muacutesica contemporacircnea ainda se tem a Histoacuteria como a dimensatildeo mais abrangente

para a explicaccedilatildeo da realidade e das transformaccedilotildees sociais e culturais A diferenccedila

com relaccedilatildeo agraves explicaccedilotildees modernas estaacute em que a dimensatildeo histoacuterica eacute

compreendida a partir de um ou outro ponto de vista isto eacute busca-se contextualizar

e relativizar os princiacutepios histoacutericos mesmo que esses princiacutepios ainda sejam

considerados como a melhor via de explicaccedilatildeo das transformaccedilotildees sociais poliacuteticas

econocircmicas ou culturais)

Entendido dessa maneira percebe-se que com relaccedilatildeo agrave ldquoideia filosoacutefica de

continuidaderdquo (para retomar agrave expressatildeo de Schnittke citada anteriormente)

aqueles muacutesicos que se colocam na posiccedilatildeo de lsquoretorno agrave tradiccedilatildeorsquo assumem uma

10 No acircmbito especiacutefico da muacutesica isso significaria a existecircncia de um direcionamento uniacutevoco dos fatos musicais atraveacutes da Histoacuteria e que a tarefa do muacutesico seria encontrar os princiacutepios que regem esse fluir contiacutenuo para criar a partir deles e transcendecirc-los

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postura necessariamente antagocircnica a qualquer espeacutecie de Historicismo mesmo

contextual ou relativo Com isso tem-se uma antinomia existente entre os dois

pontos de vista pois se para aqueles que pretendem dar continuidade aos valores

da Modernidade a tradiccedilatildeo deve ser investigada para ser ultrapassada no sentido

de que o artista deve dar continuidade agraves transformaccedilotildees histoacutericas para estar agrave

altura de seu tempo para aqueles que defendem o retorno ao passado a tradiccedilatildeo

deve ser compreendida para servir de suporte agrave criaccedilatildeo da nova muacutesica que natildeo

tem necessariamente que ultrapassaacute-la mas operar com ela

A atitude mais saliente na acepccedilatildeo da muacutesica atual de lsquoretorno agrave tradiccedilatildeorsquo eacute

a busca de valores e elementos estiliacutesticos do passado com o sentido de aproveitaacute-

los em estruturas musicais homogecircneas Essa caracteriacutestica distingue esse grupo

de valores de retorno ao passado dos outros dois grupos (lsquocontinuidade da

Modernidadersquo e lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo) para os quais as possibilidades de

aproveitamento de elementos diacutespares se daacute atraveacutes da fragmentaccedilatildeo e da colagem

heterofocircnica Com isso tem-se outro aspecto diferencial na relaccedilatildeo entre as

acepccedilotildees da muacutesica atual pois se por um lado aqueles que pretendem ultrapassar

a tradiccedilatildeo operam sobre um princiacutepio de continuidade histoacuterica que deve ser

reconhecido e ampliado por outro lado esses mesmos muacutesicos propotildeem a

descontinuidade e a fragmentaccedilatildeo da estrutura musical per se quando se trata de

cada peccedila de muacutesica em particular pois compreendem que estruturas sonoras

contiacutenuas jaacute estariam ultrapassadas por fazerem recuar agraves caracteriacutesticas mais

proeminentes da muacutesica tonal ou seja agraves praacuteticas musicais do seacuteculo XVIII e XIX

cujas possibilidades de discursividade e narratividade jaacute estariam esgotadas

Ao contraacuterio os muacutesicos que professam o retorno agrave tradiccedilatildeo por serem

criacuteticos com relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo diacrocircnica da Histoacuteria geralmente argumentam

em favor da retomada de estruturas musicais contiacutenuas por entenderem que os

processos de fragmentaccedilatildeo operados pelas vanguardas jaacute foram exauridos ao

extremo e portanto esvaziados Assim ao defenderem concepccedilotildees sincrocircnicas dos

fatos histoacutericos segundo as quais se pode ter uma percepccedilatildeo de ldquotudo ao mesmo

tempo agorardquo se sentem agrave vontade para sobrepor os meacutetodos de elaboraccedilatildeo

musical do Classicismo ou do Romantismo aos seus anseios de iacutendole

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eminentemente contemporacircnea Tem-se assim outra constataccedilatildeo que

complementa aquela do paraacutegrafo anterior os muacutesicos que se alinham aos

princiacutepios de retorno agrave tradiccedilatildeo propotildeem uma leitura sincrocircnica e portanto

descontiacutenua da Histoacuteria poreacutem a estrutura musical resultante da elaboraccedilatildeo de cada

peccedila particular se torna contiacutenua pelo resgate de processos discursivos e narrativos

em suas composiccedilotildees

Essas praacuteticas de retorno ao passado muitas vezes satildeo professadas sem a

definiccedilatildeo de eacutepoca ou regiatildeo especiacutefica mas se abrem agrave possibilidade de passar

por diferentes pontos geograacuteficos mais ou menos remotos e por diferentes periacuteodos

da Histoacuteria sem que isso signifique a perda da coesatildeo estiliacutestica (a identidade

estiliacutestica se torna novamente importante apesar de natildeo ser mais um princiacutepio

esteacutetico inflexiacutevel) De qualquer forma mesmo com uma concepccedilatildeo sincrocircnica da

Histoacuteria eacute comum que muitos desses muacutesicos se fixem em algum ponto do tempo

ou do espaccedilo para a criaccedilatildeo de uma peccedila ou de um conjunto de obras Outra

caracteriacutestica bastante comum entre os muacutesicos que se esforccedilam em retomar

aspectos da tradiccedilatildeo eacute o fato de centrarem seus esforccedilos na investigaccedilatildeo da muacutesica

europeia Isso natildeo significa que natildeo existem estudos sobre a muacutesica de outras

culturas sendo que os processos musicais extraeuropeus mais estudados satildeo o

sistema de ragas da muacutesica indiana e a estrutura riacutetmica aditiva da muacutesica africana

e oriental Um bom exemplo nesse sentido eacute a temporada que Steve Reich passou

em Gana em 1970 periacuteodo em que estudou sob a orientaccedilatildeo de um percussionista

jeje no Instituto de Estudos Africanos experiecircncia que lhe permitiu acrescentar

processos riacutetmicos aditivos e subtrativos agrave sua muacutesica ampliando as possibilidades

das suas primeiras experiecircncias minimalistas

Devido agrave inclinaccedilatildeo para aproveitar caracteriacutesticas da muacutesica do passado

vaacuterios muacutesicos tecircm sido criticados como portadores de uma postura conservadora

Michel Faure um criacutetico severo do Neoclassicismo francecircs do entre guerras por

consideraacute-lo um estilo ldquosocialmente concordataacuteriordquo e de ldquoafirmaccedilatildeo nacionalistardquo

considera ser essa atitude de retorno ao passado existente na muacutesica

contemporacircnea uma espeacutecie de reediccedilatildeo do Neoclassicismo histoacuterico Para o autor

ldquoos neoclaacutessicos natildeo satildeo jamais considerados como reacionaacuterios ndash assim como os

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poacutes-modernos natildeo aceitam a pecha de passadistas [] Os empreacutestimos que eles

fazem frequentemente lsquodescontextualizamrsquo os fragmentos aos quais fazem

referecircnciardquo (FAURE 1998 p 78) Bem ressurge aqui o mesmo problema da criacutetica

mal direcionada jaacute mencionado anteriormente Se a intenccedilatildeo desses muacutesicos eacute

recuperar processos tradicionais se buscam criar uma espeacutecie de representaccedilatildeo da

multiplicidade cultural da contemporaneidade atraveacutes da apropriaccedilatildeo do legado

histoacuterico nada mais adequado do que a descontextualizaccedilatildeo dos materiais

empregados de sua lsquohistoricidadersquo original e sua adequaccedilatildeo agrave nova situaccedilatildeo em que

esses elementos se encontram Percebe-se na criacutetica de Faure preceitos de

continuidade e pureza histoacuterica que natildeo se adeacutequam aos neoclaacutessicos nem aos poacutes-

modernos pois ambos subvertem os coacutedigos que servem de premissa agrave sua criacutetica

Um dos arautos da nova muacutesica Boudewijn Buckinx apresenta um exemplo

muito comum de retomada da tradiccedilatildeo ao afirmar que o compositor atual ldquonatildeo

escreve tatildeo-somente um concerto grosso Ele escolhe uma possibilidade ndash o

concerto grosso ndash entre diversas Portanto natildeo eacute propriamente um concerto grosso

mas uma peccedila que toma o concerto grosso por sujeitordquo (BUCKINX 1998 p 60-61)

Poder-se-ia dizer tomando de empreacutestimo as palavras de Wolfgang Rihm que se

trata de uma ldquomuacutesica sobre a muacutesicardquo ou em alguns casos de muacutesica sobre

muacutesicas Se assim for a criacutetica de Faure se esvazia pois existe uma tecircnue diferenccedila

entre permanecer em determinado estado de coisas sem se aventurar a outros e

voltar a esse estado quando se tem interesse em recorrer a ele Esta eacute a divergecircncia

existente entre o conservadorismo preacute-moderno mencionado anteriormente e a

tendecircncia contemporacircnea de retorno agrave tradiccedilatildeo (distinccedilatildeo que o conservadorismo

modernista parece natildeo ser capaz de perceber) natildeo se estaacute no passado volta-se a

ele quando se o considera adequado

Em vista disso torna-se importante entender como os processos e materiais

tradicionais satildeo reutilizados sob a perspectiva da nova muacutesica para diferenciar a

atitude de retorno agrave tradiccedilatildeo com base em um ponto de vista criacutetico da mera

permanecircncia conservadora de valores convencionais de forma subserviente e sem

nem mesmo compreender o que esses valores podem ter significado em sua

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eacutepoca11 Diferenciar aquilo que foi denominado no iniacutecio deste ensaio como

conservadorismo preacute-moderno da atitude criacutetica com relaccedilatildeo aos pontos de vista

historicistas e evolucionistas da cultura tambeacutem significa distinguir o conhecimento

extensivo da tradiccedilatildeo da simples sujeiccedilatildeo a valores passadistas Um artista que

pesquisa profundamente em sua aacuterea de atuaccedilatildeo natildeo se preocupa em primeiro

plano com a feiccedilatildeo externa dos resultados de suas investigaccedilotildees o que lhe

importam satildeo as possibilidades que suas descobertas podem trazer no plano da

criaccedilatildeo Ao contraacuterio um muacutesico que se apresenta com uma aparecircncia novidadeira

pode estar extremamente apegado agraves convenccedilotildees de determinada linha de

produccedilatildeo e mesmo que essa linha seja muito recente a falta de abertura para

outras aacutereas de investigaccedilatildeo pode mantecirc-lo submisso a convenccedilotildees jaacute assimiladas

por geraccedilotildees passadas mesmo que ele proacuteprio natildeo se aperceba disso Muitas

vezes a aparecircncia de novidade mascara uma seacuterie de valores apegados a

convenccedilotildees riacutegidas que natildeo se sustentariam sob o crivo da criacutetica

A sutil diferenccedila entre o Neotonalismo de um compositor como George

Rochberg (1918) e a imitaccedilatildeo trivial do estilo dos primeiros romacircnticos (sem ir aleacutem

dos procedimentos teacutecnicos) estaacute na atitude com relaccedilatildeo agrave lsquovivecircncia da

simultaneidadersquo Para Rochberg ldquoa esperanccedila da muacutesica contemporacircnea reside em

aprender como reconciliar todas as maneiras de opostos contradiccedilotildees paradoxos o

passado com o presente tonalidade com atonalidade Eacute por isso que em minha

muacutesica mais recente tenho tentado utilizar essas combinaccedilotildees que reafirmam os

valores primordiais da muacutesicardquo (ROCHBERG 2003 p 3) Essa noccedilatildeo da diferenccedila

entre o passado e o presente essa busca de conciliaccedilatildeo dos opostos diverge de um

ponto de vista conservador ou de uma postura epigocircnica pois o epiacutegono apenas

reproduz o passado agrave maneira deste ou daquele mestre ao passo que o artista

criador se apoia em aspectos do passado para produzir um trabalho artiacutestico que

11 Muitas vezes a simplificaccedilatildeo dos meios significa a criaccedilatildeo de algo que pode impulsionar grandes transformaccedilotildees Quando Giulio Caccini (1551-1618) defendia o uso de triacuteades maiores e menores para a elaboraccedilatildeo das nuove musiche de sua eacutepoca estava propalando uma simplificaccedilatildeo da textura musical uma homofonia mundana que se opunha agrave complexidade polifocircnica da muacutesica sacra Essa simplificaccedilatildeo trazia o germe para algumas das grandes conquistas da muacutesica europeia dos trezentos anos seguintes inclusive a criaccedilatildeo de um novo gecircnero musical a oacutepera

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traz algum frescor agrave educaccedilatildeo dos sentidos alguma maneira peculiar de descobrir

ou perceber o mundo

Com a retomada de processos de organizaccedilatildeo modal ou tonal haacute

necessariamente o retorno de melodias claramente definidas a renovaccedilatildeo das

teacutecnicas de contraponto e a ampliaccedilatildeo de estruturas harmocircnicas de caraacuteter

diatocircnico Um dos compositores mais importantes da vanguarda das deacutecadas de

1950 e 1960 Krzysztof Penderecki soube atualizar seu estilo em meados da

deacutecada de 1970 quando passou a combinar estruturas diatocircnicas ampliadas com

base na produccedilatildeo dos grandes sinfonistas da passagem do seacuteculo XIX ao seacuteculo XX

(Gustav Mahler e Richard Strauss entre outros) com os resultados de suas

pesquisas acuacutesticas do periacuteodo vanguardista A consequecircncia eacute uma muacutesica

fortemente dramaacutetica com aspectos que lembram o Romantismo tardio e elementos

da vanguarda da deacutecada de 1960 elaborados de maneira que o resultado se

apresenta como uma muacutesica inusitada que jamais poderia ter sido concebida em

outra eacutepoca ou por outro artista

O legado histoacuterico natildeo eacute mais desprezado ou entendido apenas como um

passado a ser ultrapassado mas ao contraacuterio eacute tambeacutem identificado como uma

fonte inesgotaacutevel de possibilidades teacutecnicas e expressivas que podem ser

reaproveitadas de muitas formas possiacuteveis sem que isso incorra necessariamente

em postura conservadora ou em atitude epigonal Outro compositor que tambeacutem

soube atualizar seus processos compositivos eacute o huacutengaro Gyorgy Ligeti que tem

combinado seus experimentos microtonais e estruturas micropolifocircnicas levados a

cabo nas deacutecadas de 1960 e 1970 com outros meacutetodos de organizaccedilatildeo harmocircnica

engendrados a partir das relaccedilotildees acuacutesticas baacutesicas existentes em seus

conglomerados sonoros Esses processos datildeo vazatildeo agrave existecircncia de linhas

meloacutedicas claramente definidas com caraacuteter modal vigoroso e algumas vezes

fazem alusotildees agrave muacutesica popular e folcloacuterica de sua regiatildeo

Essa atitude com relaccedilatildeo ao passado traz novos modos de entendimento das

culturas tradicionais aleacutem da acomodaccedilatildeo de valores muitas vezes tomados como

contraditoacuterios em estruturas coesas Evidenciam-se natildeo apenas as tradiccedilotildees locais

com relaccedilatildeo agrave proacutepria formaccedilatildeo do indiviacuteduo como tambeacutem outras tradiccedilotildees que se

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buscam atraveacutes de meios natildeo-convencionais Compreende-se que natildeo eacute necessaacuterio

viver as experiecircncias de determinada sociedade para absorver parte de seus valores

ou de sua produccedilatildeo cultural ateacute porque os habitantes das grandes cidades estatildeo

expostos cotidianamente a tantos estiacutemulos advindos de origens distintas que se

criam identidades multiculturais mesmo quando natildeo se tem conhecimento intriacutenseco

de suas propriedades Qualquer cidadatildeo meacutedio atual tem noccedilotildees fundamentais

sobre os haacutebitos de vaacuterios povos originaacuterios de localidades onde nunca esteve A

tecnologia permite ao artista contemporacircneo ter acesso agrave produccedilatildeo de seus pares

de qualquer outra regiatildeo do planeta quase simultaneamente agrave sua criaccedilatildeo e

divulgaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel conhecer aspectos de culturas remotas no tempo

atraveacutes de pesquisas arqueoloacutegicas e sua divulgaccedilatildeo em grande escala nos meios

de comunicaccedilatildeo Isso permite sermos contemporacircneos de outras eacutepocas e

conterracircneos dos povos de outros lugares

23 Superaccedilatildeo do Modernismo

As linhas de atuaccedilatildeo que se opotildeem agrave mentalidade das vanguardas tardias o

fazem por razotildees diversas daquelas que motivam as tendecircncias de retorno agrave

tradiccedilatildeo pois este retorno ao passado geralmente significa um passado visto pela

oacutetica da Modernidade (em geral satildeo leituras atualizadas das tradiccedilotildees do Ocidente

isto eacute das praacuteticas musicais do Renascimento ao Romantismo) Nesse sentido

especiacutefico haacute pontos em comum entre as duas acepccedilotildees abordadas anteriormente

(lsquocontinuidade da Modernidadersquo e lsquoretorno agrave Tradiccedilatildeorsquo) pois seja por dar

continuidade agraves praacuteticas da era moderna atraveacutes de sua ampliaccedilatildeo seja por

resgatar essas praacuteticas com base em novos meios de elaboraccedilatildeo musical a

Modernidade permanece como sendo forte ponto de referecircncia em ambos os casos

Diferentemente aqueles que se colocam com uma postura de lsquosuperaccedilatildeo do

Modernismorsquo geralmente focam seus interesses na ruptura com as tradiccedilotildees

modernistas mais recentes e natildeo na Modernidade como um todo

Aleacutem disso natildeo satildeo apenas as culturas tradicionais que interessam a esta

terceira linhagem mas tambeacutem outros aspectos da cultura contemporacircnea inclusive

a cultura pop e os meios de comunicaccedilatildeo de massa Esses muacutesicos acreditam

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estarem produzindo uma fissura na Modernidade ao se abrirem para toda e qualquer

espeacutecie de produccedilatildeo cultural sem hierarquizaacute-las12 Acreditam portanto que

estamos no iniacutecio de uma nova eacutepoca e natildeo em um periacuteodo de continuidade da

Modernidade ou de retomada dos valores de sua tradiccedilatildeo13

Podem-se esboccedilar algumas imagens geomeacutetricas para representar essas trecircs

formas de pensamento para a primeira acepccedilatildeo da muacutesica contemporacircnea que

professa a lsquocontinuidade da Modernidadersquo o tempo teria a imagem de uma linha reta

que se movimenta em determinado sentido (mesmo que alguns desses artistas

faccedilam criacutetica agrave mentalidade linear a linha parece bem representar o ponto de vista

evolucionista da cultura) para a segunda acepccedilatildeo aquela em que se pratica o

lsquoretorno agrave Tradiccedilatildeorsquo poder-se-ia formular a imagem do tempo em forma circular pois

o ciacuterculo eacute uma figura em que natildeo haacute sentido predeterminado pois se pode iniciar

ou terminar em qualquer ponto da circunferecircncia e se movimentar em sentido

horaacuterio ou anti-horaacuterio para a terceira acepccedilatildeo que propotildee a lsquosuperaccedilatildeo do

Modernismorsquo a imagem de uma esfera parece ser a mais adequada pois natildeo se

estaacute focando o tempo em apenas uma dimensatildeo mas abre-se o leque para toda e

qualquer manifestaccedilatildeo perceptiacutevel atualmente no tempo e no espaccedilo Com isso

tem-se a possibilidade de produzir movimentos de qualquer ponto para qualquer

outro ponto seguindo em qualquer sentido ou direccedilatildeo (para baixopara cima para a

esquerdapara a direita para traacutespara frente) ndash por isso a imagem tridimensional14

12 Note-se que neste aspecto haacute pontos de interseccedilatildeo entre certas tendecircncias de lsquocontinuidade da Modernidadersquo e aquelas que professam a lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo pois o princiacutepio da poliestiliacutestica defendido por Schnittke e outros tambeacutem rompe com a hierarquizaccedilatildeo dos estilos O que diferencia ambos os grupos eacute o enfoque com que cada qual se apropria das diferentes formas de manifestaccedilatildeo cultural 13 Tambeacutem nesse sentido haacute interseccedilatildeo entre as duas acepccedilotildees pois se as tendecircncias de lsquocontinuidade da Modernidadersquo professam a ruptura com a tradiccedilatildeo musical oitocentista as tendecircncias de lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo professam outra ruptura com as tradiccedilotildees novecentistas Em ambos os casos haacute valores centrados no princiacutepio da ruptura mesmo que na primeira acepccedilatildeo esta ruptura faccedila parte de um processo contiacutenuo de superaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e no segundo caso seja entendida como uma fissura nesse processo 14 Este recurso de traccedilar analogias entre a estrutura das mentalidades e figuras geomeacutetricas jaacute foi delineado por Koellreutter (cf KOELLREUTTER 1987 p 29-32) compositor que confeccionou a partitura de sua peccedila Acronon em formato de esfera para representar sua concepccedilatildeo da mentalidade contemporacircnea Para Koellreutter poreacutem essas analogias aparecem com sentido diverso daquele apresentado aqui

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Para aqueles que se posicionam pela superaccedilatildeo do Modernismo as

vanguardas satildeo tidas como sendo formalistas ao extremo por se apoiarem

especificamente em criteacuterios teacutecnicos e formais para efetuarem seus julgamentos

Para entender o alcance dessa criacutetica eacute necessaacuterio adentrar um pouco em

algumas acepccedilotildees do termo lsquoformalismorsquo

Em seu Vocabulaacuterio de Esteacutetica Souriau informa que

[] eacute formalista aquele que daacute grande importacircncia agrave forma ou agraves formas poreacutem o termo forma pode ser tomado em diversos sentidos pode-se dar importacircncia a algo por razotildees de ordens bastante diferentes e enfim o termo formalismo foi frequentemente utilizado de maneira polecircmica mas em conflitos que natildeo eram sempre os mesmos de sorte que a palavra formalismo tem diversos sentidos que natildeo coincidem e cuja confusatildeo pode conduzir a erros graves (SOURIAU 1999 p 758)

Podem-se estabelecer a partir das classificaccedilotildees de Souriau trecircs sentidos

principais aplicados ao formalismo esteacutetico e empregados na criacutetica agraves tendecircncias

vanguardistas O primeiro sentido coincide com a censura a Hanslick criacutetico musical

de orientaccedilatildeo kantiana para quem a beleza esteacutetica seria inerente agrave existecircncia de

uma forma equilibrada e bem proporcionada o segundo sentido tem a ver com a

oposiccedilatildeo entre forma e conteuacutedo e se dirige principalmente agraves tendecircncias

modernistas de caraacuteter anticonteudista para as quais a estrutura eacute mais importante

do que o conteuacutedo representado ndash o que significa que para os criacuteticos atuais do

Modernismo o conteuacutedo ganha nova forccedila no terceiro sentido o termo lsquoformalistarsquo eacute

empregado para censurar as tendecircncias vanguardistas por centrarem suas

investigaccedilotildees em estruturas musicais abstratas criadas aprioristicamente sem levar

em consideraccedilatildeo a observaccedilatildeo do meio social ou cultural o que muitas vezes eacute

entendido como desprezo pela realidade

Em geral essas criacuteticas ao lsquoformalismorsquo das vanguardas surgem como

reaccedilotildees ao posicionamento antagocircnico dos muacutesicos de vanguarda das deacutecadas de

1950 e 1960 com relaccedilatildeo agrave muacutesica com sentido narrativo que necessariamente

traz o conteuacutedo ao primeiro plano e por conseguinte desvia a percepccedilatildeo dos

recursos teacutecnicos dos materiais sonoros e dos processos acuacutesticos envolvidos na

apreciaccedilatildeo musical Essa criacutetica modernista ao conteuacutedo vinha embutida em uma

criacutetica geral ao Romantismo e agrave muacutesica descritiva representada no seacuteculo XIX pelo

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lsquopoema sinfocircnicorsquo e pelas lsquopeccedilas caracteriacutesticasrsquo Ainda hoje em certos meios

musicais eacute comum a restriccedilatildeo agrave muacutesica descritiva em geral

Os muacutesicos vinculados agravequela via que pretende a superaccedilatildeo do Modernismo

ndash que agraves vezes chamam pejorativamente os movimentos de poacutes-vanguarda de

lsquoultramodernosrsquo ou lsquohipermodernosrsquo entendendo-os como o fruto de uma atitude

conservadora (cf BUCKINX 1998 p 22) ndash consideram que o lsquoformalismorsquo

vanguardista afastou o puacuteblico das salas de concerto e buscam novos processos de

comunicabilidade atraveacutes da investigaccedilatildeo mais ou menos sistemaacutetica de processos

narrativos e pela incorporaccedilatildeo da significaccedilatildeo musical direta

Eacute interessante notar a afericcedilatildeo de valor aos termos mencionados acima

lsquoUltramodernismorsquo e lsquoHipermodernismorsquo se essas expressotildees satildeo consideradas

negativamente pelos muacutesicos que professam a superaccedilatildeo do Modernismo satildeo

entendidas com sentido favoraacutevel pelos partidaacuterios da poacutes-vanguarda que

empregam essa terminologia para demonstrar que consideram determinada parcela

da produccedilatildeo atual como sendo extremamente significativa pois se apoiam nos

valores vanguardistas e os ultrapassam

Tem-se tambeacutem outra diferenccedila terminoloacutegica operada por alguns autores

que se faz apenas mudando a ordem dos termos lsquonova muacutesicarsquo e lsquomuacutesica novarsquo

Esta expressatildeo que foi amplamente empregada ao longo das deacutecadas de 1950 e

1960 estaacute ligada agraves tendecircncias vanguardistas e poacutes-vanguardistas No Brasil

houve inclusive um movimento de vanguarda autodenominado lsquoGrupo Muacutesica

Novarsquo que lanccedilou seu manifesto em 1963 com base nos princiacutepios do

Construtivismo e do Concretismo e terminou por influenciar o movimento

tropicalista na muacutesica popular O termo lsquonova muacutesicarsquo surgiu na deacutecada de 1990 na

Europa como contraposiccedilatildeo ao conceito de lsquomuacutesica novarsquo trata-se de muacutesicos que

absorvem diversas influecircncias e atuam em vaacuterias direccedilotildees natildeo pressupondo

qualquer identidade teoacuterica ou estiliacutestica entre si

Mesmo se eles satildeo muito diferentes e se tecircm personalidades e escrituras proacuteprias todos esses compositores se afastaram voluntariamente da corrente atonal da muacutesica contemporacircnea Eles sofreram diferentes influecircncias indo de muacutesicas natildeo-ocidentais ao jazz ao rock agrave muacutesica de variedades internacional passando pelo disco pelo funk ateacute a muacutesica techno e inclusive pelas generalidades de programas televisivos O que eles

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tecircm em comum eacute o fato de escutar o mundo sonoro que os envolve e que eacute o fundo musical de todos noacutes Eles tambeacutem tecircm uma filiaccedilatildeo direta a Stravinsky Eacute por isso que se pode separar a muacutesica lsquoeruditarsquo de hoje em duas grandes correntes A corrente lsquotonalrsquo consonante por opccedilatildeo pulsante e meloacutedica se situando em uma linha mais expressiva geralmente chamada de lsquoNova Muacutesicarsquo A corrente lsquoatonalrsquo caracterizada pela utilizaccedilatildeo quase sistemaacutetica de saltos de registro de assimetria riacutetmica e de dissonacircncias chamada tambeacutem de lsquomuacutesica contemporacircnearsquo (LELONG 1996 p 11)

Um dos movimentos de superaccedilatildeo do Modernismo que se pode colocar

como precursor dessa noccedilatildeo de lsquonova muacutesicarsquo eacute a lsquoNova Simplicidadersquo que teve

seu iniacutecio na deacutecada de 1970 com um grupo de compositores alematildees encabeccedilados

por Walter Zimmermann (1949) e Wolfgang Rihm (1952) Esses muacutesicos defendiam

a liberdade de escrita e a dissoluccedilatildeo do peso da Histoacuteria ndash que na sua opiniatildeo

engessava as praacuteticas vanguardistas ndash e preconizavam a absorccedilatildeo de experiecircncias

subjetivas de toda e qualquer natureza (vivecircncias impulsos emoccedilotildees preferecircncias

etc) que pudessem conduzir agrave produccedilatildeo de novos processos narrativos e agrave

depuraccedilatildeo dos meios empregados para a criaccedilatildeo musical Com essas intenccedilotildees

movimentaram-se na direccedilatildeo de estruturas mais elementares com gestos musicais

breves e texturas transparentes Entretanto os praticantes da Nova Simplicidade

natildeo se desviaram de configuraccedilotildees atonais apenas acrescentaram elementos de

caraacuteter tonal e deram vazatildeo a uma certa expressividade liacuterica em sua produccedilatildeo

Rihm em entrevista a Noreen e Cody comenta suas experiecircncias dos anos rsquo70 e

rsquo80

Eu sou um compositor intuitivo Mesmo se natildeo o fosse somente poderia escrever a minha proacutepria muacutesica Natildeo se pode criar arte com tabus Naturalmente somente quebrando tabus tambeacutem natildeo se faz arte Em ambos os casos o que surge satildeo objetos que [apenas] se parecem com arte [] De volta agraves triacuteades eu natildeo era de nenhuma maneira o uacutenico a empregaacute-las Talvez em minha muacutesica elas chocassem de forma mais provocativa provavelmente porque natildeo serviam ao propoacutesito de garantir lsquobelezarsquo mas eram empregadas no mesmo niacutevel que (quase) qualquer outra manifestaccedilatildeo sonora governadas por fluxos expressivos que natildeo poderiam ser inteiramente analisados de modo racional Isso era equivalente agrave alta traiccedilatildeo aos olhos dos modernistas (RIHM 2006 p 2)

Compositores que parecem seguir nessa mesma direccedilatildeo poreacutem com

interesses distintos satildeo os franceses Pascal Dusapin (1955) que trabalha com

misturas de elementos tonais e atonais carregados de forte lirismo e Reacutegis Campo

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(1968) cuja peccedila Commedia (1995) de escritura amplamente stravinskyana estaacute

organizada agrave base de muacuteltiplas linhas contrapontiacutesticas que se movimentam em

torno de uma melodia que se estende por quase quinze minutos

Outros grupos que tecircm sido bastante difundidos nos uacuteltimos anos satildeo

aqueles derivados do Minimalismo e que portanto empregam teacutecnicas de

organizaccedilatildeo repetitiva com base em um miacutenimo de elementos formadores de

processos sonoros Esses elementos baacutesicos ndash constituiacutedos de poucas notas

estrutura harmocircnica simples e riacutetmica perioacutedica ndash geralmente satildeo elaborados de

forma extremamente gradativa com a intenccedilatildeo de dar tempo agrave escuta Com isso

pretende-se dar ecircnfase aos processos perceptivos acima de qualquer princiacutepio

compositivo

O Minimalismo ortodoxo aquele dos anos 60 estava centrado em estruturas

ininterruptas fixas regulares e contiacutenuas no tempo Steve Reich partiu para suas

realizaccedilotildees mais peculiares da eacutepoca da experiecircncia de ouvir a mesma gravaccedilatildeo

reproduzida em dois aparelhos diferentes com rotaccedilotildees distintas o que gerou uma

defasagem gradual de tempo entre uma reproduccedilatildeo e outra O compositor declarou

[] enquanto eu ouvia esse processo gradual de mudanccedila de fase comecei a imaginar que esta seria uma forma extraordinaacuteria de estruturaccedilatildeo musical Esse processo afetou-me como um meio de alcanccedilar determinado nuacutemero de relaccedilotildees entre duas identidades sem nenhuma transiccedilatildeo Era um processo musical sem emenda ininterrupto (REICH apud SCHWARZ 1996 p 61)

Eacute interessante notar como esses princiacutepios de Reich e seus colegas

minimalistas da deacutecada de 1960 satildeo bastante lsquoformalistasrsquo para os muacutesicos mais

jovens e nesse sentido se assemelham aos valores vanguardistas da mesma

eacutepoca pois as preocupaccedilotildees com o processo com a estrutura ou com as teacutecnicas

de composiccedilatildeo estatildeo acima de qualquer outro aspecto envolvido na atividade

compositiva Por essa razatildeo essa fase do Minimalismo pode ser considerada como

sendo a uacuteltima manifestaccedilatildeo modernista pois mesmo que os processos de escuta

jaacute estivessem em evidecircncia o interesse principal estaacute na construccedilatildeo de estruturas

musicais abstratas Ao comparar a mentalidade de Reich da deacutecada de 1960 com

alguns comentaacuterios de John Adams (1947) um dos compositores mais destacados

da corrente atual a que alguns chamam de Poacutes-Minimalismo percebe-se que o

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ponto de vista deste estaacute descentrado do fazer e mais voltado para a absorccedilatildeo do

meio sonoro circundante

Eu sempre fui profundamente influenciado pelo rock pelo jazz e pela muacutesica pop Creio que eacute uma parte importante da experiecircncia de um norte-americano e penso que eacute a linha de demarcaccedilatildeo entre a velha geraccedilatildeo de compositores eruditos aqueles que nasceram antes da guerra e minha geraccedilatildeo ou a dos meus alunos Eacute por isso que natildeo tento me afastar dessa muacutesica nem tapar os ouvidos para ela Entretanto ao ler John Cage a gente nota que ele natildeo era sensiacutevel a essa muacutesica e ateacute mesmo a execrava Por minha parte eu gosto e ela influenciou bastante a minha proacutepria muacutesica (ADAMS 1996 p 20)

Ao contraacuterio do purismo muitas vezes pretendido pelos muacutesicos das deacutecadas

de 1950 e 1960 (que geralmente buscavam um estilo original sem admitir

ascendecircncias externas expliacutecitas pois essas influecircncias15 eram transformadas ateacute o

ponto em que se tornavam imperceptiacuteveis ou eram incorporadas em estruturas que

natildeo poderiam ser remetidas a outras realidades que a da proacutepria muacutesica em

questatildeo) vaacuterios compositores atuais estatildeo buscando a assimilaccedilatildeo expliacutecita de

diferentes fontes desde a muacutesica claacutessica europeia e a muacutesica tradicional de outras

culturas ateacute as diferentes manifestaccedilotildees populares e dos meios de comunicaccedilatildeo de

massa Adams eacute preciso a esse respeito

O que distingue minha muacutesica das outras eacute o fato de que ela eacute tatildeo lsquomiscigenadarsquo Se eu comparo minha muacutesica com a de Morton Feldman que eacute tatildeo pura a minha eacute uma espeacutecie de lsquogrande lixeirarsquo ali se encontra de tudo como em um grande lsquoensopadorsquo [] Cresci ao longo de um periacuteodo em que se podia escutar de tudo pois tudo estava registrado e isso vai continuar no proacuteximo milecircnio Eu costumo surfar na Internet todo o tempo e posso andar por tudo (ADAMS 1996 p 21)

Natildeo apenas Adams e os poacutes-minimalistas (que se diferenciam do

Minimalismo histoacuterico pela assimilaccedilatildeo expliacutecita de elementos exoacutegenos) como

tambeacutem outros muacutesicos das novas geraccedilotildees aproveitam influecircncias atraveacutes da

incorporaccedilatildeo de estilemas16 apropriados de diferentes tradiccedilotildees o que tambeacutem pode

15 O termo lsquoinfluecircnciarsquo foi tomado durante algum tempo como sendo depreciativo por indicar a ascendecircncia de determinado artista ou escola sobre outros Atualmente para os compositores das novas geraccedilotildees a ideia de ascendecircncia parece natildeo gerar constrangimento sendo inclusive um valor a ser aproveitado 16 lsquoEstilemarsquo eacute um termo apropriado da linguiacutestica empregado para designar traccedilos estiliacutesticos caracteriacutesticos de determinada obra escritor ou escola literaacuteria o que em muacutesica pode ser indicado

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incluir teacutecnicas de vanguarda Com isso esta muacutesica se torna mais corpoacuterea estaacute

vinculada agrave realidade circundante ou em outras palavras se faz mais mundana

Isso tambeacutem se deve agrave introduccedilatildeo de elementos de linguagens musicais

vernaculares consideradas como sendo parte da lsquofalarsquo cotidiana seja a muacutesica

autoacutectone ou a muacutesica tocada nos meios de comunicaccedilatildeo e que se torna com o

passar do tempo tatildeo absorvida pelas mentalidades que passa a ser entendida como

lsquolinguagem comumrsquo

Os chilenos Eduardo Caacuteceres (1954) e Aliosha Solovera (1963) tecircm

incorporado elementos de tradiccedilotildees locais em suas criaccedilotildees de caraacuteter

experimental Caacuteceres em sua peccedila Canciones ceremoniales para aprendiz de

machi para grupo vocal feminino aproveita textos em liacutengua mapudungum para

combinar diferentes ritmos apropriados dos iacutendios mapuches Na peccedila Ressonandes

(2002) para dez flautas cujo tiacutetulo alude agrave lsquoressonacircncia dos Andesrsquo Solovera busca

ldquoestabelecer um viacutenculo com a muacutesica das culturas preacute-colombianasrdquo atraveacutes da

experimentaccedilatildeo de sonoridades incomuns no instrumento Para o compositor ldquoa

flauta transversa se desliga de sua raiz cultural e eacute assumida em sua condiccedilatildeo mais

elementar como instrumento de soprordquo Eacute interessante notar nesse sentido o

paralelismo entre Ressonandes e a peccedila Nola (1994) para vaacuterias flautas e orquestra

de cordas do tajiquistanecircs Benjamin Yusupov (1962) que se refere agrave sua muacutesica da

seguinte maneira ldquoesta peccedila eacute uma busca de efeitos sonoros gerados pelas flautas

como se fossem instrumentos de cordas A combinaccedilatildeo com a muacutesica eacutetnica estaacute

associada a um certo esteticismo da muacutesica orientalrdquo Ambos aproveitam valores de

suas tradiccedilotildees locais para experimentar sonoridades inusuais em conjuntos de

flautas Solovera busca restituir o som elementar do sopro Yusupov tem o intuito de

fazer um instrumento de sopro soar como corda Apesar da similaridade conceptual

o resultado sonoro eacute bastante distinto

Em uma direccedilatildeo similar e com base em vivecircncias pessoais o colombiano

Angel Alfonso Rivera (1983) escreveu Quya-Killa (2013) para voz flauta percussatildeo

por padrotildees escalares contornos meloacutedicos figuraccedilotildees riacutetmicas encadeamentos harmocircnicos combinaccedilotildees instrumentais ou algum outro aspecto de qualquer natureza que identifique lsquoestilosrsquo ou lsquomaneirasrsquo

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(dois tom-tons maracas temple blocks prato suspenso) e piano A peccedila foi escrita a

partir da participaccedilatildeo em rituais e celebraccedilotildees indiacutegenas na Boliacutevia e no Peru dos

quais se destacam Pachamama (Ritual da Matildee Terra) Inti Raymi (Festa do Sol) e

Quya Raymi (Festa da Lua e da Fertilidade) A peccedila que eacute o resultado de

lembranccedilas afetivas desses rituais isto eacute os traccedilos que permanecem na memoacuteria

de forma pulsante e transformam a percepccedilatildeo do mundo estaacute organizada em trecircs

seccedilotildees derivadas das fases ritualpisticas Preparaccedilatildeo Oraccedilatildeo e Celebraccedilatildeo

Para o compositor

[] a muacutesica de culturas tribais gira em torno de um mundo proacuteprio com sonoridades que derivam do contorno da natureza dos animais e do proacuteprio homem As manifestaccedilotildees foneacuteticas os gestos e a miacutemica satildeo meios de comunicaccedilatildeo e neste contexto a muacutesica e a danccedila manifestam estreita relaccedilatildeo com os rituais e cerimocircnias [] Por se tratar de algo maacutegico e que possui caracteriacutesticas que podem ser aproveitadas na composiccedilatildeo considero que a imagem do ritual tem forte funccedilatildeo orientadora e organizacional sendo uma imagem que fundamenta e orienta os elementos do percurso criativo (RIVERA p 39-40)

Natildeo eacute necessaacuterio que o muacutesico esteja estreitamente vinculado a esta ou

agravequela tradiccedilatildeo para se sentir compelido a empregaacute-la em alguma obra O

compositor inglecircs Thomas Adegraves (1971) escreveu sua America a prophecy (1999)

para meio-soprano coro opcional e orquestra sinfocircnica para um projeto chamado

lsquoMensagens para o Milecircniorsquo promovido pela Orquestra Filarmocircnica de Nova Iorque

Interessante nesta peccedila eacute o fato de que o uacutenico texto em inglecircs eacute a traduccedilatildeo de um

fragmento da profecia maia que prenuncia o fim dos tempos os outros trechos

cantados na peccedila de Adegraves foram aproveitados de textos hispano-americanos Com

isso o compositor pretendia criar um mapa da Ameacuterica localizado ao Sul dos

Estados Unidos com o intuito de mostrar aos norte-americanos que eles natildeo foram

os primeiros americanos (escrito maia) como tambeacutem natildeo satildeo os uacutenicos

(fragmentos latino-americanos) Interessado pelas culturas preacute-colombianas e pelo

sincretismo cultural da Ameacuterica Latina atual o compositor disse em entrevista a

Tom Service que essa sua noccedilatildeo da Ameacuterica ldquocomeccedilou quando tive uma enorme

vista da piracircmide de Belize Havia aacutervores em todas as direccedilotildees Entretanto havia

estas pequenas saliecircncias que tambeacutem eram verdes e eram as antigas piracircmides

maiasrdquo (ADEgraveS apud FOX 2006 p 1) Outra representaccedilatildeo da Ameacuterica ocorreu-lhe a

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partir de um mapa surrealista publicado na revista belga Parietein em 1929 Essas

imagens aliadas aos textos escolhidos se tornaram o ponto de partida para a

estruturaccedilatildeo de America a prophecy

Outro exemplo agora no sentido da assimilaccedilatildeo dos meios de comunicaccedilatildeo

de massa em uma muacutesica de caraacuteter experimental eacute a peccedila de Michael Daugherty

(1954) intitulada Elvis Everywhere (1993) em que satildeo combinados cantores um

quarteto de cordas processos de manipulaccedilatildeo eletrocircnica dos sons e a voz de Elvis

Presley que funciona como uma espeacutecie de material unificador de todas as

sonoridades que acontecem ao longo da muacutesica

Natildeo posso escrever a miacutenima nota se natildeo tenho antes uma ideia Eacute geralmente um elemento visual um iacutedolo americano como Elvis um flamingo de plaacutestico cor-de-rosa ou ainda Jackie Kennedy que me evocam os sons [] Antes de compor Elvis Everywhere para o Quarteto Kronos assisti ao Congresso Internacional de Imitadores de Elvis onde ouvi cantar mais de duzentos Elvis Somente posso escrever muacutesica quando estou proacuteximo dela Seria difiacutecil transcrever musicalmente a poesia de Safo por exemplo Por outro lado assisti a todos os episoacutedios de Star Trek17 (DAUGHERTY 1996 p 105)

O que interessa para muitos artistas contemporacircneos eacute essa ruptura dos

limites daquilo que era tradicionalmente considerado como sendo lsquobom gostorsquo e lsquomau

gostorsquo lsquoarte e lsquoinduacutestria do entretenimentorsquo enfim todas as formas de dicotomia que

caracterizaram as correntes modernistas A intenccedilatildeo de superar essas dualidades

com uma atitude inclusiva em que as diferentes formas de manifestaccedilatildeo cultural

tecircm seu lugar na cultura contemporacircnea natildeo significa necessariamente aquela

postura ciacutenica do blaseacute que caracterizou o final do seacuteculo XX nas deacutecadas de 1980

e 1990 Ao contraacuterio estar aberto aos diferentes pontos de vista tambeacutem pode

significar assumir uma postura de caraacuteter pessoal poreacutem com o entendimento de

que esta eacute mais uma entre tantas possibilidades de conhecer a realidade e de se

relacionar com o mundo

Na busca de autonomia um grupo de compositores nova-iorquinos

encabeccedilados por Michael Gordon (1956) David Lang (1957) e Julia Wolfe (1958)

17 Essas consideraccedilotildees seriam impossiacuteveis se vindas de um compositor como Pierre Boulez por exemplo que consideraria essa assimilaccedilatildeo de elementos da cultura de massa como vulgarizaccedilatildeo da criaccedilatildeo musical

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criou o festival Bang on a Can e formou um grupo de cacircmara para divulgar sua

muacutesica e a de outros compositores de sua geraccedilatildeo18 Wolfe conta a origem do

festival em entrevista a Lelong

Noacutes queriacuteamos abalar as estruturas em Nova Iorque e ter um pretexto para tomarmos cafeacute da manhatilde juntos todos os dias Bang on a Can quase comeccedilou como uma brincadeira Noacutes chamamos assim ao primeiro festival porque pensamos que natildeo haveria outros mas terminou sendo um rastro de poacutelvora Muitas e muitas pessoas vieram no primeiro ano entre eles John Cage e Steve Reich Noacutes trabalhamos duramente para ampliar nosso puacuteblico para aleacutem do ciacuterculo dos amantes da Nova Muacutesica Fizemos nossa divulgaccedilatildeo bastante numerosa entre o puacuteblico de baleacute de teatro e de cinema Mesmo que o festival tenha se desenvolvido ainda se manteacutem a serviccedilo dos compositores com ideias novas com espiacuterito aventureiro O puacuteblico vem numeroso e entusiasmado a apresentaccedilatildeo eacute formidaacutevel descontraiacuteda o que tem o efeito de natildeo espantar a audiecircncia (WOLFE 1996 p 369-370)

O festival que existe desde 1987 se tornou um evento anual que conta com

um conjunto de cacircmara formado por solistas virtuoses o grupo Bang on a Can All-

Stars uma orquestra a Spit Orchestra gravaccedilotildees que satildeo lanccediladas em CD e

transmissotildees radiofocircnicas O grupo Bang on a Can All-Stars tem uma constituiccedilatildeo

heterogecircnea tanto do ponto de vista dos instrumentos que fazem parte do grupo

quanto da linha de atuaccedilatildeo de seus muacutesicos Formado por instrumentos como

piano saxofone clarinete violoncelo guitarra eleacutetrica baixo eleacutetrico e percussatildeo19 o

grupo se caracteriza pela mistura de sonoridades de muacutesica erudita muacutesica pop e

jazz A formaccedilatildeo e a praacutetica dos muacutesicos ndash que tocam em orquestras sinfocircnicas

tradicionais participam de shows ou concertos gravam discos de muacutesica pop e

tocam em bandas de jazz ndash possibilita trabalhar com repertoacuterios diversificados

Assim o grupo se propotildee a divulgar diferentes tipos de manifestaccedilatildeo musical da

contemporaneidade o que o difere de outros grupos ndash como por exemplo lsquoSteve

Reich and Musiciansrsquo lsquoMichael Nyman Bandrsquo ou lsquoPhilip Glass Ensemblersquo ndash que tecircm

em seu repertoacuterio somente a produccedilatildeo do proacuteprio compositor que daacute nome ao grupo

ou daqueles que estatildeo diretamente associados a ele

18 Essa praacutetica de criar o proacuteprio grupo musical jaacute havia sido praticada por muacutesicos como Steve Reich Philip Glass Louis Andriessen (1939) e Michael Nyman (1944) entre outros 19 Os muacutesicos do Bang on a Can All-Stars satildeo atualmente Vicky Chow teclados Ken Thomson sopros Ashley Bathgate violoncelo Mark Stewart guitarra eleacutetrica Robert Black contrabaixos David Cossin percussatildeo

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Percebe-se nessa postura comum a muitos muacutesicos atuais a busca pela

diferenccedila se tornando mais importante do que a pretensatildeo de identidade estiliacutestica

Esse aspecto resulta em outra caracteriacutestica difundida entre os compositores

contemporacircneos que se dedicam agrave investigaccedilatildeo de novos meacutetodos narrativos

Muitos compositores atuais tecircm formaccedilatildeo acadecircmica em aacutereas como linguiacutestica

letras comunicaccedilatildeo ou filosofia campos do conhecimento considerados como

sendo profiacutecuos para a criaccedilatildeo musical Vaacuterios compositores atuam como

professores universitaacuterios nessas aacutereas e desenvolvem seu trabalho criativo com

base nesse conhecimento mais do que em teacutecnicas tradicionais de composiccedilatildeo

Conhecem essas teacutecnicas mas preferem deixaacute-las em segundo plano no processo

criativo ndash o que difere de certas linhas vanguardistas das deacutecadas de 1950 e 1960

em que a invenccedilatildeo de novos processos de estruturaccedilatildeo e meacutetodos compositivos

estavam em primeiro plano

O compositor brasileiro Eduardo Seincman (1958) escreveu uma seacuterie

intitulada A Danccedila dos Duplos20 em que cada uma das cinco peccedilas que compotildeem o

ciclo destinada a uma formaccedilatildeo instrumental diferente foi concebida a partir de uma

experiecircncia extramusical A Danccedila de Dorian21 para piano a quatro matildeos foi escrita

a partir da leitura do romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde Esta peccedila

conteacutem diversos elementos que caracterizam a investigaccedilatildeo de novos processos

narrativos Excertos do texto de Wilde foram apostos agrave partitura para orientar os

muacutesicos sobre qual segmento do romance corresponde a cada uma das passagens

musicais O compositor chama a atenccedilatildeo no entanto para o fato de que natildeo se

trata de muacutesica programaacutetica pois sua intenccedilatildeo natildeo eacute produzir uma descriccedilatildeo

musical ipsis litteris da narrativa de Wilde mas criar uma narrativa paralela

estritamente musical e que natildeo se vincula diretamente agrave sequecircncia de episoacutedios do

20 A Danccedila dos Duplos eacute formada pelas seguintes peccedilas A Danccedila Misteriosa (1986 ldquopara um anjo que nasceraacuterdquo) para piano solo A Danccedila Luacutegubre (1987) para flauta contralto marimba e piano A Danccedila de Dorian (1988 ldquobaseada no romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilderdquo) para piano a quatro matildeos A Danccedila do Dibuk (1988 ldquobaseada na peccedila de teatro O Dibuk de Sch An-Skirdquo) para marimba vibrafone e glockenspiel A Uacuteltima Danccedila (1989 ldquoinspirada na leitura de O Cisne de Leonardo da Vincirdquo) para flauta contralto e dois vibrafones 21 Esta que foi a muacutesica tocada na Abertura do Simpoacutesio Agora Arte e Pensamento no dia 24 de outubro de 2006 pelas pianistas Carolina Avellar e Elaine Foltran

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romance Neste sentido tornam-se importantes as citaccedilotildees das obras musicais

apresentadas no texto nas cenas em que Dorian Gray toca piano ou assiste a um

concerto

Cria-se uma nova narratividade musical atraveacutes de uma sinestesia muacuteltipla

na audiccedilatildeo da obra A estrutura musical se desdobra como uma sequecircncia de

imagens (visuais taacuteteis auditivas e mesmo olfativas) que satildeo justapostas umas agraves

outras agraves vezes por meio de transiccedilotildees gradativas agraves vezes por meio de

interrupccedilotildees abruptas como cortes cinematograacuteficos Conforme a muacutesica se

aproxima do final vai-se tornando mais tensa e agitada criando a atmosfera para o

desfecho extraordinaacuterio (Dorian Gray natildeo envelhece porque eacute a figura pintada em

seu retrato que se torna mais velha) atraveacutes da precipitaccedilatildeo de uma cena na outra

com o propoacutesito de alterar o rumo dos acontecimentos de modo inesperado

Percebe-se nesse sentido uma espeacutecie de anaacutelogo musical daquilo a que

Aristoacuteteles chamaria de resoluccedilatildeo cataacutertica atraveacutes da lsquoperipeacuteteiarsquo (peripeacutecia) isto eacute

a incorporaccedilatildeo de encadeamentos imprevistos no decorrer da accedilatildeo com o sentido

de produzir alteraccedilotildees suacutebitas dos estados de humor Entre os tipos de narrativa

destacados por Aristoacuteteles (narrativa episoacutedica narrativa simples e narrativa

complexa) o filoacutesofo dava preferecircncia agrave narrativa complexa que produz expectativa

por meio do acuacutemulo de accedilotildees e pelo emprego de princiacutepios como a

verossimilhanccedila dessas accedilotildees a necessidade dos acontecimentos no curso da

histoacuteria o reconhecimento (descoberta) de uma situaccedilatildeo vivida poreacutem natildeo

compreendida anteriormente e o imprevisto produzido por novas situaccedilotildees

Peripeacutecia eacute uma viravolta das accedilotildees em sentido contraacuterio [] segundo a verossimilhanccedila ou necessidade [] O reconhecimento como a palavra mesma indica eacute a mudanccedila do desconhecimento ao conhecimento ou agrave amizade ou ao oacutedio das pessoas marcadas para a ventura ou desdita O mais belo reconhecimento eacute o que se daacute ao mesmo tempo em que uma peripeacutecia como aconteceu no Eacutedipo [] Nesse passo se verificam duas partes da faacutebula a peripeacutecia e o reconhecimento mas haacute uma terceira o pateacutetico [] O pateacutetico consiste numa accedilatildeo que produz destruiccedilatildeo ou sofrimento como mortes em cena dores cruciantes ferimentos e ocorrecircncias desse gecircnero (ARISTOacuteTELES 1997 p 30-31)

Naturalmente Aristoacuteteles natildeo exigia a concomitacircncia de todas essas linhas

narrativas para a produccedilatildeo de estados cataacuterticos que na trageacutedia antiga vinham

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geralmente associados agrave muacutesica Quando se escuta A Danccedila de Dorian de

Seincman poreacutem a impressatildeo que se tem eacute que todos esses processos se

acumulam nos trechos finais da peccedila produzindo vaacuterias camadas de expressatildeo que

extrapolam a significaccedilatildeo especificamente musical na direccedilatildeo de uma espeacutecie de

experiecircncia esteacutetica multissensorial geralmente possibilitada pela combinaccedilatildeo de

diferentes linguagens artiacutesticas (poesia teatro muacutesica artes visuais etc) Alguns

processos narrativos ou semacircnticos empregados se assemelham a formulaccedilotildees de

compositores romacircnticos como Robert Schumann (1810-1856) poreacutem a totalidade

do resultado seria algo impensaacutevel antes da concepccedilatildeo da muacutesica de Seincman

Outro compositor que se interessa pela criaccedilatildeo de sensaccedilotildees sinesteacutesicas eacute o

uzbequistanecircs Dimitri Yanov-Yanovski (1963) Segundo depoimento do compositor

sua muacutesica estaacute centrada na intenccedilatildeo de criar diferentes processos de estruturaccedilatildeo

do tempo musical atraveacutes da oposiccedilatildeo de duraccedilotildees heterogecircneas apresentadas

simultaneamente Esses meacutetodos produzem dois resultados distintos que se

complementam o efeito psicoloacutegico de contraccedilatildeo e distensatildeo do tempo e o

processo linguiacutestico de polifonia narrativa que eacute obtida pelo entrecruzamento de

muacuteltiplos significados (que podem ser musicais textuais dramaacuteticos ou plaacutesticos) A

investigaccedilatildeo de novos princiacutepios de comunicabilidade e a valorizaccedilatildeo do processo

musical por meio de meacutetodos repetitivos colocam Yanovski entre os compositores

atuais cujos trabalhos apresentam processos multidirecionais que resultam em

novas formas de produccedilatildeo e recepccedilatildeo musicais Tambeacutem nesse sentido vaacuterios

muacutesicos atuais se diferenciam das geraccedilotildees anteriores pois valorizam o ato de

recepccedilatildeo como sendo tatildeo ou mais importante do que as teacutecnicas de composiccedilatildeo

visto que entendem que estas devem estar a serviccedilo daqueles ndash o que conduz a

uma arte centrada nos processos esteacutesicos e nas possibilidades de interaccedilatildeo

comunicativa entre o compositor o inteacuterprete e o puacuteblico22

22 A avaliaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o compositor e o inteacuterprete eacute outro aspecto extremamente relevante nas discussotildees sobre a muacutesica contemporacircnea Nas tendecircncias vanguardistas em geral o compositor muitas vezes busca escrever uma ldquomuacutesica contra o instrumentordquo o que gera grandes dificuldades de execuccedilatildeo Brian Ferneyhough (1943) um dos mais importantes compositores da poacutes-vanguarda e partiacutecipe da Nova Complexidade (note-se o antagonismo com relaccedilatildeo agrave lsquoNova Simplicidadersquo) costuma dizer com intenccedilatildeo motivadora e polecircmica que escreve mais notas do que o muacutesico consegue tocar para que ele tenha que escolher entre as notas escritas e interferir no

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3 Traccedilos Gerais

Percebe-se com as reflexotildees apresentadas acima sobre aspectos da muacutesica

atual (e sempre lembrando que este ensaio aborda uma parcela da totalidade da

produccedilatildeo contemporacircnea) que vivemos em um periacuteodo em que haacute muacutesicos e

musicoacutelogos23 dedicados agrave investigaccedilatildeo de toda e qualquer produccedilatildeo musical seja

ela proacutexima ou distante geograficamente seja recente ou remota no tempo

Pesquisadores atuais dedicam-se inclusive agrave descoberta de processos e materiais

que natildeo satildeo condizentes com seu gosto pessoal pois o que importa eacute que toda e

qualquer parcela da produccedilatildeo humana estaacute aiacute para ser conhecida

independentemente agradar ou natildeo ao estudioso24

Assim quebram-se hierarquias seculares em que se considerava

determinada parcela da produccedilatildeo de alguma eacutepoca superior agraves outras ou se

entendia que determinada regiatildeo do planeta produz algo de maior importacircncia

cultural ou histoacuterica do que outras Essas posiccedilotildees etnocecircntricas ainda hoje

defendidas por alguns como o criacutetico literaacuterio Harold Bloom por exemplo satildeo

questionadas por natildeo serem condizentes com as infinitas possibilidades atuais de

acesso agrave informaccedilatildeo pois satildeo restritivas do ponto de vista do gosto no sentido em

que elevam opiniotildees meramente pessoais de seus autores agrave categoria de valor

universal

A postura abrangente de pensadores contemporacircneos como Michel Meyer

vem de encontro agravequeles pontos de vista exclusivistas em que se confunde lsquoopiniatildeorsquo

com lsquoconhecimentorsquo Para Meyer

[] cada um tem o direito de ser diferente de realizar sua diferenccedila contanto que a igualdade de direitos da [outra] pessoa seja respeitada

processo de criaccedilatildeo da obra de forma que cada nova interpretaccedilatildeo soaraacute diferente das demais Ferneyhough parece buscar resultados semelhantes aos de John Cage poreacutem pelo caminho inverso Essa discussatildeo poreacutem extrapola os limites deste ensaio 23 Vale esclarecer que se entende por musicoacutelogo aqui todo aquele profissional que se dedica agrave pesquisa em muacutesica seja atraveacutes da musicologia histoacuterica musicologia sistemaacutetica ou etnomusicologia da anaacutelise musical psicologia da muacutesica criacutetica musical ou da esteacutetica musical entre outras Sendo assim musicologia eacute entendida como sendo a aacuterea que engloba todos os campos teoacutericos do saber musical 24 Um bom exemplo neste sentido eacute a incansaacutevel pesquisa sobre o Neoclassicismo francecircs realizada

por Michel Faure musicoacutelogo que se posiciona antagonicamente com relaccedilatildeo agravequela tendecircncia esteacutetico-musical

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Inversamente a universalidade eacute imperativa mas natildeo pode secirc-lo em detrimento das diferenccedilas que constituiacutemos e que nos faz ser [aquilo que somos] Cada um tem o direito agrave sua histoacuteria e o dever de cada um eacute respeitar esse direito nos outros A universalidade sem diferenccedila eacute tatildeo totalitaacuteria quanto a diferenccedila sem universalidade (MEYER 2000 p 148)

Tem-se assim uma nova postura criacutetica (que tambeacutem pode ser denominada

metacriacutetica) a qual propotildee que ao exercitar a criacutetica se inicie fazendo criacutetica aos

proacuteprios valores pessoais e inclusive agraves possibilidades de exerciacutecio da criacutetica no

domiacutenio de determinados contextos Isso aplicado ao campo da muacutesica que eacute uma

arte e natildeo uma ciecircncia exata leva agrave abertura de novas perspectivas e ao

entendimento de que os pontos de vista dos outros tecircm tanto direito agrave existecircncia

quanto os nossos Isso natildeo significa igualdade de criteacuterios mas igualdade de direito

pois pode haver diferenccedilas na qualidade dos valores sendo que alguns princiacutepios

podem estar mais fundamentados do que outros O que faz levar em consideraccedilatildeo

que em qualquer sistema de valores os criteacuterios apropriados para sua avaliaccedilatildeo

estatildeo no exame de sua estrutura loacutegica interna entrecruzada com sua adequaccedilatildeo agrave

realidade Entretanto nem mesmo a argumentaccedilatildeo mais sistematizada e bem

fundamentada eacute garantia de excelecircncia em se tratando de arte pois esta eacute uma

aacuterea onde os criteacuterios satildeo qualitativos e portanto natildeo podem ser quantizados ndash e jaacute

houve quem (como Max Bense) se esforccedilou em mensurar matematicamente a arte

poreacutem em nenhum caso se alcanccedilou um resultado considerado minimamente

satisfatoacuterio junto agrave comunidade artiacutestica

Quando o muacutesico se torna mais receptivo agraves diferentes opiniotildees que circulam

no campo da esteacutetica musical percebe tambeacutem que diferentes processos musicais

podem ser combinados em uma uacutenica peccedila de muacutesica natildeo importando onde ou

quando esses processos se originaram Essas fontes podem ser justapostas uma

apoacutes a outra na sequecircncia de eventos sonoros assim como podem ser sobrepostas

em um uacutenico momento do tempo musical Isso depende de vaacuterios fatores muitos

deles ligados aos anseios do proacuteprio artista Tambeacutem se abrem novas possibilidades

de significaccedilatildeo atraveacutes da muacutesica que natildeo permanece restrita a valores

exclusivamente teacutecnicos ou formais Por outro lado a teacutecnica e a forma sempre

poderatildeo ser incorporadas em situaccedilotildees musicais de iacutendole mais ampla do que a

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mera oposiccedilatildeo dicotocircmica entre lsquomodernorsquo e lsquopoacutes-modernorsquo lsquomuacutesica novarsquo e lsquonova

muacutesicarsquo ou entre lsquopreferecircncia pela forma e pela teacutecnicarsquo e lsquopreferecircncia pelo conteuacutedo

e pelas estruturas narrativasrsquo Para o compositor italiano Luca Lombardi (1945)

ldquouma filosofia da nova muacutesica escrita hoje natildeo poderia dividir de maneira

maniqueiacutesta o mundo em [] progressistas e reacionaacuterios mas deveria dar conta da

multipolaridade da situaccedilatildeo atual A realidade ndash e natildeo somente a realidade musical ndash

eacute complexa contraditoacuteria e consequentemente ndash para exprimir em termos positivos ndash

ricardquo (Lombardi apud MICHEL 1998 p 104)

A tradiccedilatildeo natildeo eacute mais entendida como sistema fechado em que determinada

interpretaccedilatildeo se torna lsquoa explicaccedilatildeorsquo dos fatos mas tambeacutem satildeo valorizadas as

reaccedilotildees pessoais particularizadas e mesmo idiossincraacuteticas Tambeacutem se torna

problemaacutetico asseverar algo sobre lsquoa tradiccedilatildeorsquo sendo que se reconhece a

simultaneidade de inuacutemeras lsquotradiccedilotildeesrsquo algumas complementares entre si outras

antagocircnicas mas todas com igual direito agrave existecircncia A identidade passa pela

diferenccedila entre um e outro e essa diferenccedila passa pela universalidade dos valores

que podem reconhecer a diferenccedila de um no outro assim como a identidade de

cada um somente pode ser reconhecida quando se tem conhecimento da

universalidade relativa (ou contextual) de cada uma das partes constituintes do todo

identitaacuterio25 A valorizaccedilatildeo da diferenccedila pode conduzir agrave aceitaccedilatildeo da multiplicidade

das praacuteticas musicais seus materiais acuacutesticos suas teacutecnicas seus processos de

elaboraccedilatildeo seus significados intriacutensecos e extriacutensecos suas praacuteticas e seus

valores pois ldquoo conteuacutedo eacute em suma a teoria que daacute significado agrave muacutesicardquo

(BUCKINX 1998 p 91)

Como resultado tecircm-se alcanccedilado novas funcionalidades no campo musical

isto eacute descobrem-se novas possibilidades de uso ou aplicaccedilatildeo da muacutesica que

correspondem agraves necessidades das novas geraccedilotildees A diversidade de funccedilotildees

musicais que se disseminaram desde a Antiguidade foi-se tornando cada vez mais

restrita nos uacuteltimos anos do seacuteculo XX periacuteodo em que alguns dividiam as funccedilotildees

em apenas lsquomuacutesica de concertorsquo e lsquomuacutesica de entretenimentorsquo reforccedilando outra

25 Pluralia tantum mesmo o singular eacute plural

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dicotomia com caraacuteter de preconceito social Nos uacuteltimos anos outras funccedilotildees tecircm

sido observadas como a funccedilatildeo de aglutinaccedilatildeo social comum nas tribos indiacutegenas

que necessitavam da uniatildeo grupal para garantir a sobrevivecircncia Quando se pratica

muacutesica como interferecircncia urbana se traz um grande contingente de pessoas para

uma praccedila puacuteblica e se as oferece experiecircncias que se diferenciam do lugar-comum

estaacute-se recuperando aquela praacutetica de aglutinaccedilatildeo social

Quando o compositor estoniano Arvo Paumlrt (1935) busca sonoridades

medievais e orientais em combinaccedilatildeo com as siacutenteses operadas pelo Minimalismo

para expressar seus valores miacutesticos de caraacuteter ecumecircnico em uma peccedila como

Summa (1977) estaacute retomando a funccedilatildeo congregacional da muacutesica anteriormente

mantida somente no acircmbito dos templos religiosos A muacutesica de Paumlrt eacute tocada tanto

em rituais religiosos como em salas de concerto e em manifestaccedilotildees puacuteblicas ao ar

livre

Outra funccedilatildeo que estaacute sendo redescoberta por muacutesicos eruditos

contemporacircneos eacute a muacutesica de diversatildeo Cabe uma distinccedilatildeo importante entre os

termos lsquodivertirrsquo e lsquodistrairrsquo Divertir na acepccedilatildeo empregada aqui significa lsquoseparar-

se ser diferente divergirrsquo Assim a funccedilatildeo de divertir pode ser compreendida em

um sentido metacriacutetico como divergecircncia em relaccedilatildeo ao estado de coisas

dominante Distrair significa lsquorasgar vender a retalhorsquo tambeacutem pode ser entendido

como lsquodesviar ardilosamente a atenccedilatildeo do adversaacuterio para fazecirc-lo cometer errosrsquo e

nesse sentido o termo pode se adequar agravequelas experiecircncias que conduzem ao

alheamento da proacutepria condiccedilatildeo da condiccedilatildeo do outro e da realidade circundante

Depreendido desse modo surge outra noccedilatildeo do conceito de lsquomuacutesica de diversatildeorsquo

que pode ser tomada como uma nova funcionalidade da muacutesica que se apotildee ao

estado de distraccedilatildeo

Exemplo recente nesse sentido eacute a Revoluccedilatildeo Laranja na Ucracircnia em

2005 em que a populaccedilatildeo das grandes cidades foi agraves ruas vestindo laranja a cor

da oposiccedilatildeo para protestar contra as fraudes eleitorais que mantinham o primeiro-

ministro Viktor Yanukovich no poder Vaacuterios grupos musicais tocando jazz muacutesica

pop muacutesica folcloacuterica ou muacutesica claacutessica se revezavam para manter a praccedila de Kiev

repleta de muacutesica vinte e quatro horas por dia No Brasil atual em novembro de

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2016 um grupo de estudantes permaneceu danccedilando em frente agrave universidade em

Curitiba por um dia inteiro em protesto agrave PEC 24155 Como estavam em uma zona

residencial para natildeo fazer barulho em respeito aos moradores cada um deles

portava seus proacuteprios fones de ouvido e danccedilavam embalados pelas muacutesicas que

lhes agradavam Vaacuterias muacutesicas ao mesmo tempo Cada um na sua Seu slogan

ldquo20 horas em movimento contra 20 anos de congelamentordquo

Post-Scriptum Presumir que os compositores das novas geraccedilotildees

permaneccedilam escrevendo muacutesica da mesma maneira que os muacutesicos de geraccedilotildees

anteriores seria o mesmo que esperar que estes continuassem fazendo muacutesica

como seus antepassados Se forem tomados intervalos de aproximadamente meio

seacuteculo pode-se considerar que pretender que Thomas Adegraves (1971) continue a

escrever muacutesica como Pierre Boulez (1925) seria o mesmo que supor que Boulez

continuaria a pensar muacutesica da mesma forma que Arnold Schoenberg (1874-1951)

que Schoenberg ter-se-ia mantido na mesma linha de investigaccedilatildeo que Anton

Bruckner (1824-1896) que Bruckner natildeo poderia ter concebido muacutesica diferente de

Ludwig van Beethoven (1770-1827) que teria seguido na linha de Niccolograve Piccinini

(1728-1800) o qual permaneceria pensando como Antonio Vivaldi (1678-1741)

Segundo esse raciociacutenio Adegraves apenas escreveria autecircnticos concertos barrocos (o

que eacute uma hipoacutetese no miacutenimo intrigante)

O quadro abaixo sintetiza as principais caracteriacutesticas da muacutesica

contemporacircnea de acordo com as acepccedilotildees discutidas neste ensaio

ACEPCcedilOtildeES REFERENCIAIS ATITUDES PROCEDIMENTOS VALORES RESULTADOS 1 Continuidade da Modernidade

1 Liquidaccedilatildeo dos Sistemas Totalizantes (Modal Tonal Serial)

1 Experimentalismo (expansatildeo das possibilidades teacutecnicas compositivas e instrumentais)

1 Poacutes-Vanguarda 2 Espectralismo 3 Nova Complexidade

1 Arte Especulativa 2 Diversidade Contextual (cada momento no tempo dirige-se a vaacuterios pontos do espaccedilo)

1 Criaccedilatildeo de estruturas inovadoras 2 Espacializaccedilatildeo do tempo 3 Arte poeacutetico-centrada (importa a criaccedilatildeo)

2 Retorno agrave Tradiccedilatildeo

2 Criacutetica ao Historicismo e ao Determinismo

2 Retorno ao passado (alguma eacutepoca em algum

4 Tendecircncias restauradoras (reutilizaccedilatildeo de

3 Apropriaccedilatildeo do Legado

4 Permanecircncia do passado em um presente

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Histoacuterico lugar) processos tradicionais Neomodalismo Neotonalismo etc) 5 Retorno agrave melodia ao contraponto e agrave harmonia

Histoacuterico transformado 5 Evidecircncia de procedimentos eou estilemas oriundos de tradiccedilotildees culturais variadas

3 Superaccedilatildeo do Modernismo

3 Questionamento das vanguardas do Estruturalismo e das tendecircncias formalistas (importam todos os aspectos da produccedilatildeo e recepccedilatildeo artiacutesticas e natildeo apenas seu niacutevel imanente)

3 Novos processos de comunicabilidade

6 Meacutetodos repetitivos (Poacutes-Minimalismo) 7 Nova Simplicidade 8 Apropriaccedilatildeo de Linguagens (folclore popular urbana pop etc)

4Valorizaccedilatildeo do Processo 5 Pluralidade e identidade pulverizada (quebra de conceitos como a unidade estiliacutestica e a distinccedilatildeo de gecircneros)

6 Nova Narratividade 7 Hibridismo Estiliacutestico 8 Arte esteacutesico-centrada (importa a recepccedilatildeo)

4 Traccedilos Gerais

4 Investigaccedilatildeo de toda e qualquer produccedilatildeo musical independente de eacutepoca ou lugar

4 Metacriacutetica como criacutetica ao Criticismo convencional

9 Poliestiliacutestica (citaccedilatildeo alusatildeo colagem) 10 Multiculturalismo (justaposiccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo de processos musicais oriundos de diferentes fontes)

6 Valorizaccedilatildeo da Diferenccedila (importam reaccedilotildees peculiares a aspectos especiacuteficos da tradiccedilatildeo e natildeo a lsquoTradiccedilatildeorsquo como lsquoSistemarsquo)

9 Multidirecionalidade na produccedilatildeo e na recepccedilatildeo musicais 10 Novas funcionalidades do fazer musical

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Referecircncias

ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 1997 ADAMS John Interview In LELONG Steacutephane (Org) Nouvelle musique Paris Balland 1996 BEKKER Paul La Musique Paris Payot 1928 BERNARDES Maria Helena Arte suficiente Koralle Porto Alegre v 1 n 4 abr-mai 1998 p 7 BUCKINX Boudewijn O pequeno pomo ou a muacutesica do poacutes-modernismo Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 1998 COCTEAU Jean Le coq et lrsquoarlequin In Romans poeacutesies œuvres diverses Paris Librairie Geacuteneacuterale Franccedilaise p 425-478 1995 DAUGHERTY Michael Interview In LELONG Steacutephane (Org) Nouvelle musique Paris Balland 1996 DIDEROT Le neveu de Rameau Paris Flammarion 1983 FAURE Michel Peut-on definir le neo-classicisme Analyse Musicale Paris n 33 nov 1998 p 69-78 FOX Christopher Tempestuous times the recent music of Thomas Adegraves Disponiacutevel emlthttpwwwcomparticlesmi_qa3870is_200410ai_n9463309gt Acessado em 24 de janeiro de 2006 FUBINI Enrico Lrsquoestetica musicale dal settecento a oggi Torino Einaudi 2001 HANSLICK Eduard Do belo musical Campinas UNICAMP 1989 KOELLREUTTER H J Introduccedilatildeo agrave esteacutetica e agrave composiccedilatildeo musical contemporacircnea Porto Alegre Movimento 1987 LELONG Steacutephane Nouvelle musique Paris Balland 1996 MEYER Michel Petite Meacutetaphysique de la diffeacuterence religion art et socieacuteteacute Paris Librairie Geacuteneacuterale Franccedilaise 2000 MICHEL Pierre Essai de description der quelques tendances musicales nouvelles en Europe depuis le deacutebut des anneacutees 1970 en vue de leur analyse musicologique et estheacutetique Analyse Musicale Paris n 33 nov 1998 p 104-126

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RAMAUT-CHEVASSUS Beatrice Musique et postmoderniteacute Paris PUF 1998 RATNER Leonard Classic music ndash expression form and style New York Schirmer 1980 RIHM Wolfgang Wolfgang Rihm in conversation with Kirk Noreen and Joshua Cody Disponiacutevel emlthttpwwwsospesocomcontentsarticlesrihm_p2htmlgt Acessado em 24 de janeiro de 2006 RIVERA BAQUERO Angel Alfonso Imagem um ponto de partida para a organizaccedilatildeo estrutural e formal no processo composicional Memorial de Mestrado Porto Alegre UFRGS 2014 ROCHBERG George THE key that will open CD George Rochberg Symphony Nordm 5 Black Sounds Transcendental Variations Saarbruumlcken Radio Symphony Orchestra Christopher Lyndon-Gee Naxos 2003 1 disco compacto (6103 min) digital esteacutereo 8559115 SCHNITTKE Alfred Les tendances polyestilistiques dans la musique moderne Analyse Musicale Paris n 33 nov 1998 p 132-134 SCHOENBERG Arnold Style and Idea Berkeley University of California 1975 SCHWARZ Robert Minimalists London Phaidon 1996 SOURIAU Eacutetienne Vocabulaire drsquoestheacutetique Paris PUF 1999 STRAVINSKY Igor Poeacutetica musical Madrid Taurus 1986 WALKER John A A arte desde o pop Rio de Janeiro Labor 1977 WOLFE Julia Interview In LELONG Steacutephane (Org) Nouvelle musique Paris Balland 1996

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VALLE Lutiere Dalla Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens

fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 95-108 juldez 2016

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Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das

imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente

Lutiere Dalla Valle1

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

Resumo O objetivo neste texto eacute abordar o cinema enquanto dispositivodisparador para a formaccedilatildeo docente compreendendo-o como artefato produzido pela cultura que produz formas de ver e ser visto Neste iacutenterim subsidiado por experiecircncias de aprendizagem no contexto da formaccedilatildeo docente respaldado pela abordagem narrativa e perspectiva da cultura visual busca-se estabelecer relaccedilotildees entre arte e subjetividade no que tange agraves construccedilotildees sociais histoacutericasculturais e ideoloacutegicas presentes nas visualidades veiculadas pela cinematografia Para tanto explora-se o conceito edu(vo)cativo atribuiacutedo ao cinema que compreende os aspectos educativo evocativo e cativo que envolvem a aprendizagem mediada pelas visualidades Palavras-chave Potecircncia Edu(vo)cativa cinema formaccedilatildeo docente Abstract The objective of this text is to approach the film as device for teacher training understanding it as an artifact produced by the culture that produces ways of seeing and being seen In the interim subsidized by learning experiences in the context of teacher training supported by the narrative approach and perspective of visual culture we seek to establish relationships between art and subjectivity in relation to social historical cultural and ideological constructions present in visualities conveyed by cinematography So it explores the concept edu(vo)cational attributed to the film comprising the educational evocative and captive aspects involving learning mediated visualities Key-words Edu(vo)cational power movies images teacher training

1 Doutor em Artes Visuais e Educaccedilatildeo (Universidad de BarcelonaES 2012) Mestre em Educacioacuten y Artes Visuales un Enfoque Construccionista (Universitat de Barcelona EspanhaUB 2009) Mestre em Educaccedilatildeo pela Universidade Federal de Santa Maria (CEPPGEUFSM2008) Linha de Pesquisa Educaccedilatildeo e Artes Possui Especializaccedilatildeo em Arte e Visualidade pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) Licenciatura Plena em Desenho e Plaacutestica (Universidade Federal de Santa Maria2003) Bacharelado em Desenho e Plaacutestica (Universidade Federal de Santa Maria2002) Atualmente atua como Coordenador do Curso de Artes Visuais - Licenciatura e Bacharelado DAVCALUFSM professor adjunto no Departamento de Artes Visuais CALUFSM tambeacutem no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes VisuaisPPGART - Linha de Pesquisa Arte e Cultura e nos Cursos de Graduaccedilatildeo Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais Co-orienta no Doutorado em Educaccedilatildeo Linha de Educaccedilatildeo e Artes do CEUFSM Investiga as relaccedilotildees entre Artes Visuais e Cultura Visual relacionado agrave formaccedilatildeo de artistas e professores de artes visuais Tem experiecircncia na aacuterea de artes visuais com ecircnfase em entornos educativos LiacutederCoordenador dos seguintes Grupos de Pesquisa e Extensatildeo Grupo de Estudos e Pesquisas Artes Visuais e IMediaccedilotildees (AVICALUFSM) Nuacutecleo Educativo Claacuteudio Carriconde (NECCA CALUFSM) Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte e Medicina (GEPAMCALUFSM) Grupo de Estudos Cinema e Educaccedilatildeo (GECED) Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Contemporacircnea e Educaccedilatildeo da Cultura Visual Pegadogias Culturais na alfabetizaccedilatildeo infantil Rota das Esculturas e Pintura Mural no Campus (DAVUFSM) Membro pesquisador do GEPAEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Educaccedilatildeo e Cultura UFSM Linhas de Interesse e Investigaccedilatildeo Formaccedilatildeo de Professores Estudos da Cultura Visual Estudos sobre Cinema e Educaccedilatildeo Formaccedilatildeo de Artistas Agentes Culturais e Processos de Mediaccedilatildeo em Espaccedilos Expositivos Formais e Natildeo-Formais Contato lutieredallavallenetbr

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Introduccedilatildeo

Os seres humanos natildeo terminam em sua proacutepria pele satildeo expressatildeo da cultura Considerar o mundo como um fluxo indiferente da informaccedilatildeo que eacute processada pelos indiviacuteduos cada um atuando agrave sua maneira supotildee perder

de vista como se formam os indiviacuteduos e como funcionam Ou para citar novamente Geertz lsquonatildeo existe uma natureza humana independente da

culturarsquo (BRUNER 1991 28)

Diaacutelogos entre cinema e educaccedilatildeo tecircm sido recorrentes em nossos contextos

educativos O uso do cinema como um ponto de partida para desenvolver projetos

educativos - sobretudo nos uacuteltimos dez anos no contexto nacional - tem assinalado

variadas experimentaccedilotildees publicaccedilotildees a partir de agrupamentos de textos

produzidos em grupos de pesquisa ensaios atravessamentos diversos em que o

cinema constitui-se fio condutor eou mote reflexivo para desencadear escritas

narrativas dissertaccedilotildees e teses de doutorado em Educaccedilatildeo e aacutereas afins Talvez

resultado do vasto processo de contaminaccedilatildeo eou proliferaccedilatildeo de imagens oriundas

das mais diversas fontes que suscitam possibilidades educativas e favorecem

experiecircncias de aprendizagens significativas mediadas por pedagogias culturais

articulando desta maneira tentativas curiosas em abordar a cinematografia a partir

de acircngulos e enquadramentos diversos em que satildeo apresentadas distintas formas

de ver e ser visto pelas visualidades

Haacute experimentaccedilotildees que apostam em praacuteticas educativas embasadas pela

criacutetica pela produccedilatildeo criativa e emancipatoacuteria transitando entre campos que

articulam conceitos e contextos plurais de produccedilatildeo de significados Por outro lado

eacute recorrente tambeacutem a tentativa de pedagogizar o cinema seguindo um receituaacuterio

de como fazer como ver e o que ver nos filmes

Diante destas consideraccedilotildees adianto que neste texto proponho pensar e

articular o cinema de modo relacional afetivo muacuteltiplo em devir algo que natildeo estaacute

pronto onde existem infinitas probabilidades de aproximaccedilatildeo e diaacutelogo

configurando-se tambeacutem como dispositivo edu(vo)cativo ponto de partida um

comeccedilo isento da intenccedilatildeo de prescrever um meacutetodo a ser implementado

Igualmente refletir sobre o que podemos aprender coma partir das imagens

produzidas pelo cinema e como as experiecircncias de aprender podem ser

potencializadas a partir dos filmes isto eacute investigar como o cinema pode configurar-

se edu(vo)cativo na formaccedilatildeo docente

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A Potecircncia Edu(vo)cativa das imagens fiacutelmicas

Toda voz individual como nos mostra Bajtin estaacute abstraiacuteda de um diaacutelogo

(BRUNER 1991 14)

Edu(vo)cativo origina-se da junccedilatildeo de trecircs palavras educativo evocativo

cativo2 eacute desta forma que nos aproximamos do cinema na busca por propor uma

justaposiccedilatildeo com a imagem fiacutelmica em que sejam articuladas as relaccedilotildees de

aprendizagem potencializadas a partir de sua visualizaccedilatildeo Igualmente tendo em

vista que as imagens em movimento carregam particularidades especiacuteficas de sua

natureza visualafetiva a ideia eacute pensar que o cinema natildeo poderia ser conjecturado

dentro de uma uacutenica estrutura linguiacutestica agrave qual nos vinculamos em nossos

contextos culturais geograacuteficos e temporais pois amplia os campos da percepccedilatildeo

abrindo-se mais para a experimentaccedilatildeo subjetiva do que a uma compreensatildeo

formal de significaccedilatildeo previamente apreendida Da mesma forma discursivamente

constitui-se potecircncia simboacutelica recheada de elementos oriundos de imaginaacuterios

coletivos nos quais ancoramos nossas percepccedilotildees mais iacutentimas assim como os

imaginaacuterios produzidos pelas culturas

Neste contexto entendemos o cinema como artefato educativo pois nos

ensina modos de ver e sermos vistos de ser e estar envolvendo tudo o que

potencializa visotildees de mundo de construccedilatildeo e legitimaccedilatildeo de concepccedilotildees de

mundo eacute tambeacutem evocativo pois diz respeito agraves percepccedilotildees que envolvem a

memoacuteria agravequilo que permanece como referencial anterior e que em relaccedilatildeo com as

novas conexotildees pode reconfigurar-se estabelecer novasoutras conexotildees

2 O Conceito Edu(vo)cativo vem sendo pensado no Grupo de Estudos e Pesquisas Cinema e Educaccedilatildeo (GECEDCNPq) O GECED configura-se a partir do cinema como mobilizador de aprendizagens em variados acircmbitos e contextos educativos formais e natildeo formais de ensino onde cada membro propotildee um enfoque particular em relaccedilatildeo ao cinema e um enfoque de pesquisa Desta forma haacute pesquisas que relacionam diferentes abordagens tais como cinema e gecircnero cinema e subjetividade cinema e infacircncia cinema e educaccedilatildeo cinema e formaccedilatildeo docente O marco teoacuterico-metodoloacutegico respalda-se pela perspectiva educativa da cultura visual e pedagogias culturais amparado por autores como Fernando Hernaacutendez Nicholas Mirzoef David Darts Raimundo Martins Irene Tourinho acerca dos Modos de Endereccedilamento com a obra de Elizabeth Ellsworth acerca do cinema e educaccedilatildeo Adriana Fresquet dentre outros No que diz respeito agraves construccedilotildees sociaisculturais e ideoloacutegicas bem como satildeo produzidos os significados Jerome Bruner e Kenneth Gergen consistem nas principais referecircncias

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produzindo outras vias traz agrave tona movimenta do interno para o externo emerge

faz surgir E por fim o termo cativo busca estabelecer relaccedilotildees com aquilo que

seduz que aprisiona que deteacutem atenccedilatildeo que afeta que domina um filme natildeo

apenas mobiliza mas evoca potencializa educa constroacutei legitima instrui

Pensando o cinema a partir da conjunccedilatildeo leacutexica proposta agrave luz da

perspectiva educativa dos estudos da cultura visual podemos dizer que este

mobiliza formas de compreensatildeo que talvez natildeo sejam possiacuteveis de outra ordem

Os atravessamentos que o cinema estabelece com espectadores envolve

conhecimento da linguagem mobilizaccedilatildeo de conceitos e imagens previamente

apreendidas configurando-se no plano sensorial sonoro visual da accedilatildeo que

materializa-se em seu tempo de visualizaccedilatildeo a partir de um entre e sucessivos

momentos Nas palavras de Adriana Fresquet

[] de fato o cinema nos oferece uma janela pela qual podemos nos assomar ao mundo para ver o que estaacute laacute fora distante no espaccedilo ou no tempo para ver o que natildeo conseguimos ver com nossos proacuteprios olhos de modo direto Ao mesmo tempo essa janela vira espelho e nos permite fazer longas viagens para o interior tatildeo ou mais distante de nosso conhecimento imediato e possiacutevel (2013 p 19)

Para Fresquet ldquoa tela de cinema (ou do visor da cacircmera) se instaura como

uma nova forma de membrana para permear um outro modo de comunicaccedilatildeo com o

outrordquo (2013 p 19) Ou seja os sistemas de representaccedilatildeo criados e veiculados

pelas produccedilotildees cinematograacuteficas ativam e potencializam imaginaacuterios ao dar forma

agravequilo que antes de se tornar visualmente comumcotidiano era apenas mundo das

ideias A partir do cinema o imaginaacuterio visual ganhou forma ritmo movimento e voz

As visualidades adquiriram o status de imagempensamento tendo em vista que

articulam em noacutes uma multiplicidade de relaccedilotildees construccedilotildees definiccedilotildees e

conceitos que soacute satildeo possiacuteveis atraveacutes daquilo que os olhos captam e formulam

mentalmente

Quando vemos uma imagem objeto ou artefato recorremos agraves informaccedilotildees gerais eou ao conhecimento especiacutefico que possuiacutemos Recorremos a haacutebitos valores referecircncias e contexto para dar sentidosignificado ao que vemos Cada indiviacuteduo utiliza suas informaccedilotildees conhecimento haacutebitos e referecircncias para estruturar e dar sentido agraves coisas que visualiza valorizando-as diferentemente negociando seus significados de acordo com o contexto sua trajetoacuteria cultural e seus interesses (MARTINS TOURINHO 2011 p 54-55)

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No contexto educativo torna-se edu(vo)cativo uma vez que haacute uma

multiplicidade de caminhos de natureza relacional os quais mobilizamos durante um

processo interpretativo ndash seja ele no campo da arte ou da educaccedilatildeo da ciecircncia ou

da sociologia Portanto aprender com a partir do cinema implica abandonar a ideia

de um uacutenico caminho a ser seguido de forma riacutegida pois sugere estabelecer

relaccedilotildees Diante de infinitas possibilidades de abordagem ndash principalmente tendo em

vista a presenccedila constante de representaccedilotildees visuais oriundas de diversas fontes ndash

o desafio de fugir das concepccedilotildees estereotipadas de uso do cinema em sala de aula

propunha reinventaacute-las atraveacutes de praacuteticas investigativas experimentais movediccedilas

questionadoras comeccedilando pelo exerciacutecio de reconhecer a potencialidade

narrativaevocativa dos filmes O que pode um filme Como abordaacute-lo enquanto

potecircncia agrave aprendizagem

Neste iacutenterim noccedilotildees de identidade e subjetividade examinadas (re)vistas

compreendidas e articuladas a partir da perspectiva educativa da cultura visual nos

oferecem pistas e tambeacutem evidecircncias para interrogarmos a sua construccedilatildeo e

tambeacutem os estereoacutetipos que contribuem para definir condutas delinear posiccedilotildees

hieraacuterquicas e legitimar papeacuteis sociais sobretudo no que tange agrave construccedilatildeo da

docecircncia O olhar produzido pela cinematografia hollywoodiana ndash de maior difusatildeo

em nossa cultura ndash que se constitui forte veiacuteculo de construccedilatildeo e produccedilatildeo de

identidades (natildeo apenas as identidades docentes) revisitado pode desencadear

processos de questionamento e reelaboraccedilatildeo pois como argumenta Fernando

Hernaacutendez

Os estudos da Cultura Visual nos permitem a aproximaccedilatildeo com essas novas realidades a partir de uma perspectiva de reconstruccedilatildeo das proacuteprias referecircncias culturais e das maneiras de as crianccedilas jovens famiacutelias e educadores olharem (-se) e serem olhados Reconstruccedilatildeo natildeo somente de caraacuteter histoacuterico mas a partir do momento presente mediante o trabalho de campo ou a anaacutelise e a criaccedilatildeo de textos e imagens Reconstruccedilatildeo que daacute ecircnfase agrave funccedilatildeo mediadora das subjetividades e das relaccedilotildees agraves formas de representaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo de novos saberes acerca destas realidades (HERNAacuteNDEZ 2007 37)

Tomando como ponto de partida o argumento do autor em favor da

perspectiva educativa da cultura visual as produccedilotildees fiacutelmicas nos conferem uacutenicas

ou infinitas visotildees de mundo de ser de estar e atuar nas mais variadas situaccedilotildees

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cotidianas Natildeo apenas aprendemos a olhar e compreender as narrativas visuais

desde a infacircncia mas tambeacutem nossas formas de ver passam a ser articuladas a

partir do lugar que ocupamos ndash social cultural histoacuterico Natildeo apenas visualizamos

uma narrativa decodificando a sequecircncia de imagens mas reconstruiacutemos e

recontamos internamente a partir daquilo que compreendemos da visualidade

daquilo que apreendemos Portanto enquanto dispositivo do olhar o cinema pode

contribuir para desvelar imagens assim como pensar sobre quequais lugares

ocupam dentro dos imaginaacuterios coletivos e quais satildeo as possibilidades de

transgredi-los em favor de articulaccedilotildees mais subjetivas autorais e inclusivas

Problematizar o cinema (no sentido de pensar o que evocaprovocamobiliza)

sugere praacuteticas de desnaturalizaccedilatildeo do olhar e especial atenccedilatildeo agraves contingecircncias

que delineiam nossas relaccedilotildees com o mundo nossas experiecircncias cotidianas Em

decorrecircncia podemos nutrir-nos de estrateacutegias criacuteticas para questionar padrotildees

desmontar estruturas hegemocircnicas discursos riacutegidos e propor fissuras brechas em

que nossa subjetividade seja potencializada Partindo da concepccedilatildeo de que noccedilotildees

de verdade e realidade igualmente correspondem a construccedilotildees sociais culturais e

histoacutericas podemos permitir-nos distanciarmo-nos desprendermo-nos de

concepccedilotildees alicerccediladas em padrotildees e posicionamentos fechados e inflexiacuteveis Esse

distanciamento nos permite repensar o que eacute normativo a fim de examinar de onde

surgiu e como a essa normatividade natildeo corresponde uma uacutenica verdade mas uma

referecircncia datada localizada e impregnada de ideologias

Examinar a docecircncia agrave luz do que dizem suas representaccedilotildees no cinema

colocam frente a frente as distintas versotildees que nos satildeo oferecidas enquanto papeacuteis

sociais eacute recorrente a figura docente caricaturada atraveacutes de modelos messiacircnicos

assistencialistas e transformadores dispostos a abrir matildeo de suas expectativas de

vida para solucionar os mais variados problemas de seus alunos Poucas satildeo as

narrativas que evidenciam uma docecircncia fragilizada hostil e afetiva ou ainda como

profissatildeo3

3 No livro Pedagogias Culturais organizado por Raimundo Martins e Irene Tourinho (Editora da UFSM 2014)

discuto esta questatildeo no texto ldquoAprendendo a ser docente atraveacutes de filmes possiacuteveis tracircnsitos entre cinema e educaccedilatildeordquo (p 141-164) Neste faccedilo referecircncia a uma seacuterie de tiacutetulos de filmes que tecircm como tema

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O cinema como ponto de partida na formaccedilatildeo docente

Tomar a perspectiva educativa da cultura visual como ancoradouro nos

favorece interrogar as elaboraccedilotildees discursivas que envolvem a construccedilatildeo do olhar

e tambeacutem os estereoacutetipos que contribuem para definir condutas delinear posiccedilotildees

hieraacuterquicas e legitimar papeacuteis sociais Sobretudo o olhar produzido pela

cinematografia hollywoodiana ndash de maior difusatildeo em nossa cultura ndash que se constitui

forte veiacuteculo de construccedilatildeo e produccedilatildeo de identidades

Acredita-se que cada espectador aporte sua proacutepria experiecircncia histoacuteria e

identidade agrave compreensatildeo de um texto fiacutelmico Contudo eacute possiacutevel que as

narrativas visuais privilegiem certas posiccedilotildees - mesmo que haja certa autonomia

para colocar interpretaccedilotildees personalizadas - pois estas interpretaccedilotildees se

encontraratildeo afetadas pelos limites impostos pelo enquadramento pela delimitaccedilatildeo

de algueacutem sobre o que tornar visiacutevel e o que deixar fora

As interpelaccedilotildees entre narrativas visuais textos discursivos e processos

cognitivos satildeo aspectos importantes que merecem ser discutidos sob a luz da

ideologia presente nos roteiros uma vez que problematizaacute-los pode configurar-se

como ferramenta pedagoacutegica para pensar a complexidade das concepccedilotildees que

elaboramos a partir do que visualizamos

Quando as imagens fiacutelmicas se convertem em aparatos de propulsatildeo para

desencadear aspectos problematizadores no campo social a respeito de questotildees

de gecircnero credo liberdade respeito cidadania e educaccedilatildeo as narrativas fiacutelmicas

funcionam como dispositivos possibilitando que os estudantes exercitem a

experiecircncia da indagaccedilatildeo

Ao examinar as relaccedilotildees dos sujeitos envolvidos com experiecircncias de

visualizaccedilatildeo de filmes durante o desenvolvimento de disciplinas na universidade no

curso de Licenciatura em Artes Visuais - seus diaacutelogos interpretaccedilotildees e

reconstruccedilotildees - percebeu-se que a negociaccedilatildeo eacute fundamental para desenvolver e

estimular a construccedilatildeo do conhecimento a partir de uma abordagem educativa

poliacutetica criacutetica que potencialize o caraacuteter subjetivo e colaborativo comentre os

professores com maior difusatildeo em contextos educativos formais tencionando a partir de algumas experiecircncias durante a formaccedilatildeo inicial e continuada de professores

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sujeitos Diante da experiecircncia de aprender coma partir do cinema estamos lidando

com imprevisibilidades incongruecircncias insatisfaccedilatildeo e a constante possibilidade de

revermos nossas concepccedilotildees e demais processos constitutivos O ambiente

educativo pode configurar-se como lugar de tensionamentos de imagens que

afetam e reverberam conexotildees inventivas que articulam distintos saberes

A partir das consideraccedilotildees elaboradas juntamente com os sujeitos em

formaccedilatildeo podemos pensar o cinema como dispositivo que produz e faz circular

modos de ver ser relacionar e pensar os diversos coacutedigos culturais com os quais

dialogamos diariamente Contribui tambeacutem para refletirmos sobre a construccedilatildeo de

imaginaacuterios e do mesmo modo para advertir-nos sugerir eou alertar-nos frente agraves

incertezas que configuram nossos dilemas existenciais que encontram sua potecircncia

nas relaccedilotildees que estabelecemos diariamente

Neste iacutenterim as produccedilotildees cinematograacuteficas -- enquanto artefatos

produzidos pelas distintas culturas inseridos e veiculados por determinados

discursos e ideaacuterios de acordo com as contingecircncias vigentes de seu tempo --

possibilitam noccedilotildees de realidade pois refletem questotildees sociais que permeiam seu

tempo Sob este aspecto Raimundo Martins argumenta

A ilusatildeo de realidade de que se valem as obras fotograacuteficas e sobretudo as cinematograacuteficas brinca com a percepccedilatildeo da plateacuteia Assim raramente eacute levado em consideraccedilatildeo o fato de que em uacuteltima instacircncia toda imagem constitui um conjunto de pontos de vista que decorrem de certos modos de interpretaccedilatildeo da realidade recortes que enfatizam determinadas informaccedilotildees em detrimento de outras o que vemos ao contemplar as imagens teacutecnicas natildeo eacute o mundo mas determinados conceitos relativos ao mundo a despeito da automaticidade da impressatildeo do mundo sobre a superfiacutecie da imagem (MARTINS 2007 115-116)

Ao mobilizar o campo da afetividade por meio da narrativa que nos eacute contada

bem como a proximidade com os personagens envolvidos haacute quase sempre uma

conexatildeo imediata (em maior ou menor grau) o que coloca os espectadores em

situaccedilatildeo de igualdade de relaccedilatildeo iacutentima Inscrevemos nossas proacuteprias relaccedilotildees com

a vida plasmada na tela e estabelecemos algumas relaccedilotildees ao reviver nossas

proacuteprias experiecircncias ou ainda projetarmos sonhos desejos medos aventuras

imaginaacuterias

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Neste vieacutes afetivo haacute ilimitadas interlocuccedilotildees com o cinema o que talvez

configure nossa questatildeo principal Como pensarpropor o cinema edu(vo)cativo no

contexto da formaccedilatildeo docente E aleacutem desta Qual a relevacircncia desta articulaccedilatildeo

durante a formaccedilatildeo docente

De modo geral como jaacute foi mencionado experiecircncias de aprender com o

cinema na escola privilegiam a vontade do professorprofessora em dar continuidade

a um determinado conteuacutedo e o filme parece ser uma opccedilatildeo ilustrativa de

determinado fenocircmeno eou fato a ser apreendido Natildeo que esta abordagem natildeo

seja relevante ao contraacuterio pode ser um bom argumento O problema eacute quando

restringe-se apenas agrave ilustraccedilatildeo natildeo abrindo espaccedilos ao que reverbera a

visualizaccedilatildeo de um filme Ou ainda quando natildeo se problematizam as visotildees de

realidade representadas na tela ndash no que diz respeito aos enquadramentos

discursos e demais significados que satildeo relacionados muitas vezes de maneira

impliacutecita

Nessa direccedilatildeo a educaccedilatildeo da cultura visual eacute aberta a novas e diversas formas de conhecimentos promove o entendimento de meios de opressatildeo dissimulada rejeita a cultura do Positivismo aceita a ideia de que os fatos e os valores satildeo indivisiacuteveis e sobretudo admite que o conhecimento eacute socialmente construiacutedo e relacionado intrinsecamente ao poder (DIAS 2011 62)

Talvez o questionamento pontuado por Belidson Dias adquira maior potecircncia

ao trazer para a discussatildeo a recente lei que torna obrigatoacuteria a exibiccedilatildeo de pelo

menos duas horas de filmes produzidos nacionalmente nas escolas de Educaccedilatildeo

Baacutesica Aiacute reside uma de nossas grandes preocupaccedilotildees

Que filmes Que formas de exibiccedilatildeo Que engajamento dos professores e da comunidade Que formas de acesso agraves obras Como regulamentar a Lei Haacute filmes com tecnologias assistivas que permitam sua aces- sibilidade a professores e estudantes cegos e surdos Como engajar outros atores ndash Ancine Secretaria do Audiovisual secretarias de educaccedilatildeo MEC Quem custearaacute as accedilotildees E sobretudo o que esperar dessa relaccedilatildeo do cinema com a educaccedilatildeo (FRESQUET MIGLIORIN 2015 4)

Aleacutem disso quais aacutereas Quais docentes Que preparaccedilatildeo preacutevia O que

precisa saberconhecer o docente que iraacute abordar o cinema enquanto dispositivo

Haacute que ensinar coacutedigos da linguagem E no que tange agrave visualidade o que propor

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Seria da competecircncia da aacuterea das artes visuais Propor pensar sobre os elementos

esteacuteticos Etc

Neste cenaacuterio abrem-se muitos debates em torno desta obrigatoriedade por

um lado esta regulamentaccedilatildeo faz com que o cinema deixe de participar apenas

como complemento ilustraccedilatildeo como decorativorecreativo tornando-se objeto

principal ponto de partida agrave reflexatildeo em torno dos coacutedigos culturais que o formulam

legitimam e distribuem noccedilotildees de realidade Por outro proposiccedilotildees prescritivas

destituiacutedas de negociaccedilatildeo coletiva -- que desconsidera o cinema enquanto obra

aberta -- podem desencadear versotildees estereotipadas que devido agrave obrigatoriedade

venham a ser desenvolvidas por profissionais despreparados dispostos a cumprir

tarefas apenas

Ao discutir a lei Adriana Fresquet e Cezar Migliorin sugerem alguns princiacutepios

que poderiam ser levados em consideraccedilatildeo diante das aproximaccedilotildees com a

educaccedilatildeo Para os autores ao tomar a lei como ponto de partida deveriacuteamos ter em

mente estas dez consideraccedilotildees

1 Democratizar o acesso 2 Acesso diversidade e capilaridade de decisotildees 3 Valorizar as accedilotildees existentes e locais 4 O cinema deve ser arriscado 5 Cinema eacute conhecimento e invenccedilatildeo de mundo 6 A escola natildeo forma consumidores 7 Tensatildeo na estrutura das escolas 8 Por que cinema brasileiro 9 Promover a criaccedilatildeo com imagens 10 A experiecircncia com o cinema (FRESQUET MIGLIORIN 2015 6-17)

Diante destes aspectos expostos talvez fosse interessante retomarmos o

conceito de ldquodesaprenderreaprenderrdquo proposto por Adriana Fresquet (2007) no livro

ldquoImagens do Desaprender uma experiecircncia de aprender com o cinemardquo em que

narra a seguinte relaccedilatildeo

Desaprender eacute algo mais que aprender coisas opostas sobre um mesmo tema assunto valor questatildeo da vida Desaprender pode ateacute indicar erradamente a ideacuteia de esquecer o aprendido Poreacutem o seu significado e intenccedilatildeo eacute exatamente o contraacuterio Tal eacute a forccedila da irreversibilidade da aprendizagem que desaprender significa fundamentalmente lsquolembrarrsquo as coisas aprendidas que querem ser desaprendidas Desaprender eacute aprender a natildeo querecirc-las mais para si a natildeo outorgar mais o estatuto de verdade de sentido ou de interesse Verdade aprendida com outros desde sempre adquire valor de inquestionaacutevel Desaprender eacute animar-se a questionar tais verdades Desaprender eacute tambeacutem fazer o esforccedilo de conscientizar todo o vivido na contramatildeo evocando o impacto histoacuterico e emocional que teve aquela aprendizagem que hoje deseja ser modificada (FRESQUET 2007 49)

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Portanto as muacuteltiplas relaccedilotildees promovidas pelas narrativas fiacutelmicas nos

fazem pensar em diversas maneiras de abordar a visualidade comeccedilando pelo

acircmbito da sensibilidade da emoccedilatildeo do afeto ateacute avanccedilarmos pelo terreno da

pedagogia onde nos encontramos com a relaccedilatildeo ensinaraprender Partimos do

princiacutepio de que o cinema se inscreve em uma temporalidade compreensiacutevel a

praticamente todos os puacuteblicos ao representar as diversas etapas do

desenvolvimento humano as descobertas infantis a adolescecircncia e a juventude a

maturidade e a velhice nas suas mais variadas manifestaccedilotildees e a utilizarmos como

ponto de partida para comeccedilar nossa viagem Durante o percurso eacute possiacutevel

visualizar terrenos feacuterteis e tambeacutem arenosos lugares remotos de nossa memoacuteria e

outros recocircncavos repletos de figuras miacuteticas fantasmagorias e possibilidades

Estes dispositivos desestabilizam e mobilizam outras aprendizagens

promovem crises que geram avanccedilos instigam a pensar alternativas Satildeo forccedilas

que produzem o deslocamento e a descoberta de outras dimensotildees de outras

linhas de pensamento Incitam tambeacutem a adotar uma postura criacutetica impulsionada

pelo desejo de criar espaccedilos e alternativas para aprender sobre o mundo a partir do

diaacutelogo com o outro a reconhecer-se pelas diferenccedilas a pensar o ambiente de

formaccedilatildeo inicial e continuada da docecircncia como exerciacutecio do olhar criacutetico e

mobilizador

Sobre o cinema e suas provocaccedilotildees um desfecho provisoacuterio

Referecircncia na moda no comportamento na muacutesica e nos mais variados

acircmbitos das experiecircncias humanas o cinema configura-se como fenocircmeno cultural

de grande impacto na configuraccedilatildeo de imaginaacuterios desde a infacircncia Desde muito

cedo somos introduzidos agrave loacutegica narrativa sequencial que apresenta muitas

realidades Eacute recorrente em nossa contemporaneidade nos depararmos com

personagens criados pelo cinema em acessoacuterios utensiacutelios domeacutesticos adereccedilos

materiais pedagoacutegicos brinquedos etc propagando uma legiatildeo de muitos heroacuteis (e

rariacutessimas heroiacutenas) que inevitavelmente invadem a escola reproduzindo-se nas

canccedilotildees brincadeiras corporeidades comportamentos Diante destes contextos

Como a docecircncia articula estas experiecircncias visuais enquanto mote inicial a ser

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esmiuccedilado Que relaccedilotildees com as imagens fiacutelmicas osas docentes tecircm

apreendidas Como satildeo seus enfrentamentos relaccedilotildees com o cinema

Talvez seja relevante pensarmos alternativas nas quais estudos sobre cinema

e educaccedilatildeo possam estar presentes durante a formaccedilatildeo inicial e continuada da

docecircncia para propor relaccedilotildees de aprendizagem a partir da imprevisibilidade seu

papel e sua utilizaccedilatildeo dentro dos ambientes de aprendizagem tendo como premissa

natildeo cairmos na tentativa de pedagogizaacute-lo ou tornaacute-lo mais um instrumento fechado

ou previsiacutevel mas de tomaacute-lo como obra aberta ndash a partir da concepccedilatildeo do rizoma ndash

para tomar vias distintas Bricolar propor conexotildees com outras narrativas abordaacute-lo

sem tentar traduzir o que eacute essencialmente percepccedilatildeo visualsensorialemocional e

que obviamente requer outro tipo de relaccedilatildeo outros coacutedigos outras loacutegicas

Para finalizar estaacute escrita retomo os vocaacutebulos que a iniciam provocaccedilotildees

descontinuidades desfechos com o intuito de sinalizar como poderiam operar no

campo educativo ndash ao menos como pretendo que sejam pensados aqui

O cinema enquanto provocador que desafia incita o questionamento retira

da calmaria e lanccedila na tempestade desacomoda instiga o pensamento retira do

lugar comum causa desconforto Neste contexto por significados que possam ser

revistosrevisados reconceituados Imaginaacuterios produzidos pela cinematografia

dominante (em nossos contextos) possam ser repensados ou em alguns casos

como argumenta Adriana Fresquet desaprendidos e reaprendidos a partir de outras

loacutegicasrelaccedilotildees

(Des)continuidade tem duplo sentido no cinema a ideia de movimento se daacute

pela sequecircncia contiacutenua de imagens trabalha-se com a continuidade de um roteiro

Uma descontinuidade seria uma ruptura da continuidade da linearidade Poderia ir

na contramatildeo a contrapelo Caracteriza-se como uma interrupccedilatildeo A continuidade

no cinema busca uma coerecircncia loacutegica que envolve sonoridade e fluxo visual na

sucessatildeo de imagens o que pode envolver cortes durante uma montagem pois

cabe ao continuiacutesta manter a conexatildeo desejada pelo roteiro entre as cenas

concedendo entendimento agrave narrativa que estaacute sendo contada Juntamente com o

diretor ou diretora de um filme colabora com todas as demais especificidades

teacutecnicas que participam da histoacuteria a ser contada dos enquadramentos aos

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cenaacuterios objetos de cena etc Entatildeo O que seria umuma (Des)Continuiacutesta em

educaccedilatildeo

Talvez aqueleaquela que ocupa-se da provocaccedilatildeo que incita o jogo que

lanccedila convites que desafia Sabemos que a escola nos moldes atuais natildeo

configura-se uacutenica fonte de saberes mas espaccedilo de diaacutelogo de negociaccedilatildeo

formulaccedilatildeo

Desfecho do ponto de vista literaacuterio diz respeito agrave finalizaccedilatildeo ao desenlace

de uma tramanarrativa Pode ser entendido tambeacutem como local de chegada depois

de alguns trechos percorridos Neste texto desfecho pode ser concebido tambeacutem

como siacutentese do processo desenvolvido poreacutem aberto ainda no ato de acontecer

Entendo desfechos como provisoacuterios embora pareccedila relevante percebermos

processos de soluccedilotildees de problemas pontos que podem ser destacados ao teacutermino

de uma jornada de uma investida uma aposta Acredito que desfechos satildeo

importantes pois impelem a retomar a jornada examinar o percurso movimentar-se

em temporalidades diversas para compreender como se articula o momento

presente Transformando-o em verbo desfecho - desfechar - poderia ser des-fechar

tornaacute-lo em aberto apesar de haver jaacute percorrido uma trajetoacuteria examina-se o

recorrido poreacutem servindo como propulsor a dar segmento a tomar novas

experiecircncias seguir aprendendo des-fechando processos educativos

Referecircncias

BRUNER Jerome Actos de significado maacutes allaacute de la revolucioacuten cognitiva Madrid Alianza Editorial 1991 DIAS Belidson O imundo da cultura visual Brasiacutelia Editora da poacutes-graduaccedilatildeo em arte da Universidade de Brasiacutelia 2011 ELLSWORTH Elizabeth Posiciones en la ensentildeanza diferencia pedagogiacutea y el poder de la direccionalidad Madrid Akal 2005 FRESQUET Adriana Cinema e educaccedilatildeo reflexotildees e experiecircncias com professores e estudantes de educaccedilatildeo baacutesica dentro e ldquoforardquo da escola Belo Horizonte Autecircntica 2013

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FRESQUET Adriana Imagens do desaprender uma experiecircncia de aprender com o cinema Rio de Janeiro UFRJ 2007 FRESQUET Adriana MIGLIORIN Cezar Da obrigatoriedade do cinema na escola notas para uma reflexatildeo sobre a lei 1300614 In FRESQUET Adriana (Org) Cinema e Educaccedilatildeo a lei 13006 Reflexotildees perspectivas e propostas Belo Horizonte Universo Produccedilatildeo 2015 HERNAacuteNDEZ Fernando Catadores da Cultura Visual uma proposta para uma nova narrativa educacional Porto Alegre Mediaccedilatildeo 2007 MARTINS Alice Faacutetima Imagens do cinema cultura contemporacircnea e o ensino de artes visuais In OLIVEIRA M O de (Ed) Arte educaccedilatildeo e cultura Santa Maria Ed da UFSM 111-130 2007 MARTINS Raimundo TOURINHO Irene (Org) Circunstacircncias e ingerecircncias da cultura visual In MARTINS R y TOURINHO I (Eds) Educaccedilatildeo da cultura visual conceitos e contextos Santa Maria Ed da UFSM (paacuteg 51-68) 2011

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VILLAR Fernando Pinheiro PerformanceS Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 109-119 juldez

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PerformanceS1

Fernando Pinheiro Villar 2 Universidade de Brasiacutelia - UnB

Aproximando-se do primeiro ano apoacutes 11 de setembro continuamos sem saber

o que sabemos e o que natildeo sabemos sobre a destruiccedilatildeo dos preacutedios do World Trade

Center em Nova York O que podemos ter certeza eacute que antes da queda das torres

gecircmeas jaacute viviacuteamos crises aceleradas empor nossa supermodernidade crise de

certezas crise social crise de conceitos crise de significados Realidades que se

transformam continuamente demandam novos conceitos e revisatildeo constante de

conceitos existentes para negociar com as novas praacuteticas artiacutesticas teorias famiacutelias

trabalho sexualidades etnias ensino e meacutetodos

Performance eacute apontada como um conceito chave em estudos culturais

contemporacircneos Este artigo aborda performances artiacutesticas Enfatizo o lsquoartiacutesticasrsquo

como necessaacuterio recorte e por minha experiecircncia praacutetica Mas este recorte natildeo evita a

interferecircncia de outros significados nem indica um terreno mais tranquilo para

taxonomias

No meio de uma semana de debates sobre lsquoperformancersquo na Universidade de

Brasiacutelia em maio de 2002 um estudante disse que parecia lsquohaver uma certa

glamourizaccedilatildeo da duacutevida ou da dificuldade de definir performancersquo3 Mais preocupante eacute

a banalizaccedilatildeo da duacutevida em torno da amplitude do conceito gecircnero artiacutestico objeto de

estudo eou metodologia de criacutetica e pesquisa que performance pode significar Este

1 Publicado em CARREIRA Andreacute VILLAR Fernando Pinheiro GRAMMONT Guiomar de RAVETTI Graciela e ROJO Sara (orgs) Mediaccedilotildees performaacuteticas latino-americanas (Belo Horizonte FALEUFMG 2003) p 71 - p80 2 Autor encenador e diretor Professor da graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo do Departamento de Artes Cecircnicas do Instituto de Artes da Universidade de Brasiacutelia Graduado na UnB em Artes Plaacutesticas poacutes-graduado em Direccedilatildeo no Drama Studio London e PhD no Queen Mary CollegeUniversity of London Fundador dos grupos Vidas Erradas (83-89) TUCAN (92-08) e CHIA LIIAA (2007) tem trabalhado com diversos grupos artistas e instituiccedilotildees de ensino do Brasil e Europa Professor visitante na University of Manchester e na UNICAMP com vaacuterios artigos publicados e alguns livros organizados sobre teatro performance e hibridismos artiacutesticos contemporacircneos 3 Seminaacuterio preparatoacuterio para o evento performaacutetico artiacutestico Gecircnesis de performances (28 29072002) organizados pelo ex-aluno de Artes Cecircnicas e funcionaacuterio da UnB Magno de Assis

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VILLAR Fernando Pinheiro PerformanceS Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 109-119 juldez

2016 Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

artigo natildeo elimina duacutevidas sobre performance mas busca discordar de ambas

banalizaccedilatildeo e glamourizaccedilatildeo destas duacutevidas

O tiacutetulo lsquoperformanceSrsquo inicia esta empreitada afirmando a pluralidade do

conceito performance Assumir-se a multiplicidade de significados atrelados ao

significante lsquoperformancersquo eacute condiccedilatildeo inicial para seu entendimento Sabemos que

lsquoperformancersquo tem orientado inspirado eou desobstruiacutedo teorias e praacuteticas de

sociologia antropologia linguiacutestica psicologia filosofia neurologia artes cecircnicas artes

plaacutesticas muacutesica e danccedila entre outros campos de conhecimento Essa amplitude

conceitual pode provocar um desconforto com a abrangecircncia desconcertante e

escorregadia de performance como conceito como objeto de estudo como gecircnero

artiacutestico ou como metodologia de criacutetica e pesquisa

Um dos principais significados aliados ao significante performance eacute o de

desempenho O significado de desempenho afirma a observaccedilatildeo analiacutetica de

comportamentos humanos produtos eletrocircnicos e mecacircnicos ou de atores xampus

transeuntes oacuteleos atletas sapatos de corrida animais fios condutores ou de minerais

Na observaccedilatildeo do desempenho humano performance pode tambeacutem significar

comportamentos que se repetem Ou accedilotildees cotidianas que satildeo ensaiadas ou

preparadas - e observadas Assim sendo uma performance sem consciecircncia do fato de

estar sendo vista como tal pode significar uma performance cotidiana cultural ou social

Para Richard Schechner ldquotudo no comportamento humano indica que performamos

nossa existecircncia especialmente nossa existecircncia socialrdquo (1982 14) Steven Connor

considera que ldquose tornou difiacutecil estarmos seguros onde que uma accedilatildeo termina e uma

performance comeccedilardquo (108) Schechner e Connor datildeo uma ideia do possiacutevel alcance de

performance Este alcance detona diferentes linhas de pesquisa e teorias sobre

performance em campos distintos Pelo recorte optado por esta comunicaccedilatildeo estou me

atendo mais agraves performances artiacutesticas exibiccedilotildees ou accedilotildees declaradas publicamente

como tais accedilotildees conscientes mesmo que liminais construiacutedas e organizadas por

agentes que as mostraratildeo como opccedilatildeo profissional ou amadora entrada franca

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cobrando um ingresso ou distribuindo convite em espaccedilos ao ar livre semi-abertos ou

cobertos

A performance artiacutestica se caracteriza(va) muito pela fuga de qualquer

possibilidade de categorizaccedilatildeo Esta evasatildeo de escaninhos esteacuteticos caracteriza(ria)

aquilo que artistas objetivam(vam) natildeo ser caracterizado Com a heranccedila forte das

Vanguardas Histoacutericas das uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX e das trecircs primeiras

deacutecadas do seacuteculo XX vanguardas do periacuteodo poacutes-Segunda Guerra Mundial

continua(ra)m indo contra restriccedilotildees das possibilidades expressivas das artes e

rechaccedilando definiccedilotildees que se pretendiam definitivas

As Vanguardas Histoacutericas satildeo compostas pelo Simbolismo Expressionismo

Futurismo Construtivismo Dada Surrealismo Bauhaus ou Adolphe Appia Gordon

Craig Isadora Duncan Vsevolod Meyerhold Vladimir Mayakovsky Marcel Duchamp

Antonin Artaud entre tantos outros Darwin Nietzsche Marx Wagner Freud Einstein

Edison nos lembram que a virada do seacuteculo XIX para o XX tambeacutem testemunha uma

crise de conceitos e certezas consideraacutevel Aliados agrave revoluccedilatildeo no pensamento humano

provocada por estes pensadores artistas e cientistas o motor a lacircmpada eleacutetrica

locomotivas teleacutegrafos e o cinema transformam comportamentos e sociedades Ainda

com ecos do idealismo do Romantismo em buscar o intercacircmbio entre diferentes artes

artistas de vaacuterias correntes e tendecircncias deixam um legado de accedilotildees textos e

manifestos que transitam e querem transitar aleacutem das fronteiras convencionais de cada

linguagem Durante todo o seacuteculo XX o impacto das duas guerras mundiais no mesmo

seacuteculo foi refletido diretamente numa arte que promovia a primazia da accedilatildeo

testemunhada de interferecircncia puacuteblica como paliativo passageiro para a impotecircncia do

ser humano diante da destruiccedilatildeo inoacutecua Artistas das Vanguardas Histoacutericas da

primeira e segunda metades do seacuteculo XX questionam entatildeo de forma radical a

convencionalidade de suas linguagens e de seus puacuteblicos no bojo de intensas

transformaccedilotildees econocircmicas sociais e poliacuteticas As fronteiras entre arte e vida se

misturam

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Na entatildeo nova ediccedilatildeo do Oxford Dictionary em 1971 lsquoperformance artrsquo eacute incluiacuteda

no verbete lsquoperformancersquo como uma suposta arte de accedilotildees realizada por artistas

plaacutesticos para plateias presentes Depois da Segunda Guerra Mundial outros termos e

conceitos jaacute tentam acompanhar uma intensa atividade de artistas em torno do eixo

tempo-espaccedilo com testemunhas Estas atividades manipulam nexos com accedilatildeo corporal

e a presenccedila do autor realizando seu processo sua obra ou sua obra em processo para

espectadores visitantes puacuteblico ou testemunhas Uma das tentativas de conceituaccedilatildeo

para estas obras foi lsquointermiacutediarsquo [(intermedia ou interlinguagem)] cunhado em 1967

por Dick Higgins do Fluxus (Higgins 1978) Um ano depois Richard Kostelanetz

defendeu o termo lsquoteatro dos meios misturadosrsquo (Kostelanetz 1970) Mas eacute

lsquoperformance artrsquo nos paiacuteses anglo-saxocircnicos e lsquoperformancersquo em paiacuteses de liacutengua

latina que consegue abarcar uma praacutetica artiacutestica interdisciplinar Sem desconhecer a

heranccedila das Vanguardas Histoacutericas performance art ou performance conteria action

paintings John Cage arte conceitual minimalismo espacialismo Happenings action

art arte corporal aktionism vienense arte feminista art povera parangoleacutes de Oiticica

bichos de Ligia Clark teatro instrumental environments viacutedeo arte colaboraccedilotildees

decollage assemblage arte cineacutetica o neo-dada do Gutai endurance art Flaacutevio

Impeacuterio Artur Barrio ou Laurie Anderson entre tantos outros grupos e artistas

Em 1981 Douglas Davis jaacute propotildee o termo lsquopost-performancismrsquo para defender

uma arte aleacutem do teatro performance ou artes plaacutesticas Em 1992 Josette Feraacutel coloca

performance como o nascimento de um gecircnero com a morte de sua funccedilatildeo anaacuterquica

anti-categorizaccedilotildees Em 1999 Paul Schimmel anuncia a morte de performance art por

volta de 1979 No entanto as referecircncias cruzadas e trocas entre gecircneros hiacutebridos e

mo(vi)mentos foram se acelerando durante as deacutecadas de 1980 e 1990

simultaneamente dificultando e promovendo novos termos e roacutetulos Autores como

Gregory Battcock (1984) RoseLee Goldberg (1984) ou Herbert Blau (1992)

reconhecem que lsquoperformancersquo seria o termo para a contiacutenua expansatildeo do terreno

ampliado que performance art conquistou Utilizando um artigo anterior performance no

final do seacuteculo XX

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[] parece ser um conceito guarda-chuva que abriga uma livre pluralidade de expressotildees cecircnicas socircnicas e visuais Atraveacutes de performance inuacutemeros estudos de diferentes artes revelam um comportamento cuidadoso para evitar novas definiccedilotildees que natildeo respeitem as diferenccedilas e o caraacuteter anaacuterquico das artes em desordenar e escapar de novas categorizaccedilotildees Performance inclui entre outros campos de estudo rituais festas populares comportamento cotidiano linguumliacutestica ciecircncias sociais cultura psicologia [performing self criacutetica em performance] o evento teatral a encenaccedilatildeo de peccedilas drama ou dramaturgia escrita dramaturgia de imagens e outras produccedilotildees multi pluri anti ou interdiscliplinares em frente de plateacuteias em diversos tipos de espaccedilo cecircnico aleacutem do teatro O termo e conceito performance vai contra uma visatildeo logocecircntrica e exclusiva de teatro como lsquoa representaccedilatildeo de dramas eurocecircntricosrsquo (Schechner 1992 9) Para os estudos de teatro a metodologia e sistema de criticismo proposto por performance resgata o irrepetiacutevel efecircmero transitoacuterio momento de exposiccedilatildeo da linguagem cecircnica com a presenccedila de atores e espectadores privilegia-se a performance como um dos principais focos de significados do teatro (Villar de Queiroz 1999 249)

Para os estudos e praacutetica de teatro o texto performaacutetico ou o performance text eacute

um derivado do significante performance fundamental Batendo de frente com a visatildeo

antagocircnica quando exclusivista de teatro como domiacutenio da literatura dramaacutetica o texto

performaacutetico seria o texto da encenaccedilatildeo em curso a mise-en-scegravene fluindo ante e entre

os sentidos dos presentes la puesta en escena acontecendo uma rede intertextual

Ainda haacute uma defasagem da jovem academia de teatro em reconhecer o texto

performaacutetico artiacutestico na linguagem cecircnica Isso pode dever-se em parte agrave

supervalorizaccedilatildeo persistente e descontextualizada historicamente da visatildeo aristoteacutelica

de teatro em Poeacutetica Mais forte razatildeo eacute a impossibilidade do registro da performance

uacutenica irrepetiacutevel efecircmera transitoacuteria Essa impossibilidade caracteriza um choque

frontal com abordagens materialistas de cultura que tem em textos de peccedilas

documentos partituras quadros esculturas monumentos e edifiacutecios suas evidecircncias

para descrever o comportamento humano O viacutedeo o DVD e novas tecnologias alteram

um pouco a impossibilidade de registros do evento aacuteudio-cineacutetico-temporal e visual que

uma performance teatral coreograacutefica musical ou artiacutestica pode ser Novas tecnologias

natildeo podem entretanto cortar a impossibilidade de reproduccedilatildeo de um evento

caracterizado pela junccedilatildeo de pessoas durante sua vida uacutenica que morre para renascer

diferente no proacuteximo dia Como Dyonisus

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A maioria do teatro convencional claacutessico familiar eou teatratildeo e muito do teatro

de pesquisa de artistas com visibilidade internacional e respaldo criacutetico estaria

caracterizado pela representaccedilatildeo de um laacute-entatildeo Este laacute-entatildeo eacute reproduzido em um

palco ou espaccedilo eleito com atores ou atrizes vivendo personagens escritos por um

autor ou autora seguindo marcaccedilotildees de um diretor ou diretora Performance

privilegiaria o aqui-agora do durante da apresentaccedilatildeo seja onde for de uma accedilatildeo

desenrolada e apresentada por seu autor-ator-diretor-encenador-produtor o

performador tenta ser o proacuteprio meio esteacutetico ndash ele ou ela se colocam como linguagem

processo e obra Mas esta diferenciaccedilatildeo pode natildeo resistir ao fato de que o uso atual

quase omnipresente do termo performance abala certezas linguiacutesticas e esteacuteticas

anglo-saxocircnicas e latinas Na liacutengua inglesa por exemplo performance sempre foi

associada agrave apresentaccedilatildeo representaccedilatildeo ou exposiccedilatildeo cecircnica ou musical em frente a

uma plateia e [agrave] interpretaccedilatildeo de artistas Em 1990 o Diccionario Actual de la Lengua

Espantildeola apresenta performance como entre outros significados lsquorepresentacioacuten de

cine y teatrorsquo e lsquoactuacioacuten de un artistarsquo (1219) Estudantes no Brasil me convidam para

assistir a suas performances mesmo que sejam representaccedilotildees naturalistas de

personagens de Calderoacuten de la Barca Shakespeare ou Nelson Rodrigues dirigidos por

um diretor ou uma professora

As aacuteguas de performance e de teatro se confundem e confundem Em 1987 o

diretor e acadecircmico Michael Kirby lembrava que ldquotodo teatro eacute performance mas nem

toda performance eacute teatrordquo (xi) Em 1992 Herbert Blau reconhece sua saudade ldquode um

tempo em que se algueacutem falasse de performance estaria falando de teatrordquo (2) Em

1996 Elin Diamond recorda que ldquose performance eacute o reverso do teatro convencional

teatro tambeacutem eacute o reverso de performancerdquo (4) Em 1997 a artista e professora da New

York University Deb Magolin por exemplo celebra que ldquoperformance eacute um teatro de

inclusatildeo Qualquer um pode fazerrdquo (69) Para vaacuterios criacuteticos acadecircmicos e artistas no

mundo performance seria o teatro poacutes-moderno ou teatro contemporacircneo de

vanguarda

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Ainda persiste uma tendecircncia que considera performance art e performance

como variaccedilotildees da arte teatral Esta tendecircncia convive com uma perspectiva oposta

que exclui teatro da histoacuteria de performance e de performance art Ambas

perspectivas parecem reafirmar concepccedilotildees binaacuterias que natildeo reconhecem um campo

artiacutestico ampliado interdisciplinar aleacutem das disciplinas que se juntaram chocaram-se

ou digladiaram-se ateacute o nascimento de uma outra disciplina linguagem ou objeto que

se independe das matrizes anteriores e continua um caminho proacuteprio Disciplinas

liacutenguas paiacuteses e pessoas satildeo universos em construccedilatildeo e negociaccedilatildeo com seus meios

ambientes A dialeacutetica cultural promove novas disciplinas liacutenguas territoacuterios e

fronteiras mudanccedilas e se o mundo performa o teatro continuaraacute sendo um siacutetio de

performances sobre performances do mundo

Em 1980 Timothy J Wiles lanccedilava o termo lsquoteatro performancersquo para descrever

uma diversidade cecircnica revelada por uma dramaturgia e estilos de interpretaccedilatildeo

distintos do realismo naturalista ou do teatro eacutepico Essa diversidade tambeacutem era

revelada por inovaccedilotildees formais que segundo Wiles haviam criado ldquouma situaccedilatildeo

desconfortaacutevel para todos os historiadores de esteacuteticardquo (112) Com lsquoperformance teatrorsquo

a primazia dada ao texto performaacutetico questiona encapsulamentos da linguagem cecircnica

em limites da literatura dramaacutetica e questiona tambeacutem hierarquias fixas de criaccedilatildeo

direccedilatildeo e autoria Teatro performance transita por diferentes linguagens artiacutesticas

resultando em outra Teatro performance assume um espaccedilo intermediaacuterio

interdisciplinar entre performance art e teatro

Nuances interdisciplinares nas artes e ciecircncias ou obras interdisciplinares

artiacutesticas natildeo podem ser mais ignoradas em sua notoacuteria presenccedila em nossa

contemporaneidade Praacuteticas artisticamente interdisciplinares tecircm uma histoacuteria que

remonta [a] seacuteculos antes de Cristo na praacutetica oriental e ocidental se focarmos o

manual para artiacutesticos cecircnicos indiano Natya-Sastra ou os festivais gregos Artistas

renascentistas italianos e a oacutepera barroca apresentam impulsos interdisciplinares

claros Estes impulsos se aceleram de forma radical nas sucessivas transformaccedilotildees

esteacuteticas promovidas pelas vanguardas do seacuteculo XX Poacutes 1968 e poacutes performance art

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tanto o omnipresente conceito metodologia de pesquisa e criacutetica de performance

quanto as performances artiacutesticas desenvolvidas nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo

XX reforccedilam a necessidade de abordar-se interdisciplinaridade entre as artes

Esta breviacutessima perspectiva histoacuterica objetiva apontar uma presenccedila e uma

necessidade de estudos de um fenocircmeno interdisciplinar entre as artes Entretanto

assim como performance interdisciplinaridade tambeacutem pode ter uso indevido ou

diletante dentro dos muacuteltiplos acircngulos e mundos simultacircneos e paradoxais da

supermodernidade Tambeacutem como performance lsquointerdisciplinaridadersquo tem desafiado

certezas epistemoloacutegicas

Na uacuteltima deacutecada podemos encontrar novas propostas em torno de

disciplinaridades Judith Butler (1990) e Baz Englers (1996) propotildeem a discussatildeo de

lsquopoacutes-disciplinaridadesrsquo Dwight Conquergood e Joseph Roach definem performance

para Marvin Carlson como uma lsquoanti-disciplinarsquo (189) Fechando a deacutecada Roy Ascott

usa o termo lsquoumiacutediarsquo (moistmedia) para descrever um lsquointerespaccedilo entre o mundo seco

da virtualidade e o mundo molhado da naturezarsquo (9)

Transdisciplinaridade poacutes-disciplinaridades anti-disciplinas e umiacutedias atestam

todas processos interdisciplinares Como interdisciplinas artiacutesticas poacutes-disciplinas anti-

disciplinas e umiacutedias satildeo lsquointermiacutediasrsquo satildeo resultantes de disciplinas que dialogaram ou

digladiaram-se atraveacutes de encontro troca negociaccedilotildees eou choque gerando uma

nova disciplina Assim sendo meu entendimento de interdisciplinaridade natildeo confere

com o simples juntar de disciplinas diferentes ou muito menos com o improdutivo de

realidades pseudo interdisciplinares que natildeo se tocam nem se trocam Investigo

interdisciplinaridade artiacutestica para estudar ensinar e praticar negociaccedilotildees e

intercacircmbios entre diferentes linguagens ou disciplinas artiacutesticas que resultaram em

novos campos de accedilatildeo em outros territoacuterios de mutaccedilatildeo artiacutestica e de possibilidades

expressivas Interdisciplinas artiacutesticas seriam entatildeo outras disciplinas ou intermiacutedias

tais como as jaacute citadas performance art e teatro performance danccedila teatro butoh

muacutesica teatro arte computacional teatro acuacutestico teatro digital instalaccedilatildeo roboacutetica

criacutetica em performance ou viacutedeo poesia

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Terroristas oficiais e disfarccedilados continuam a defender fronteiras imutaacuteveis e a

dividir pessoas quando soacute existe uma raccedila a humana Enquanto a natureza se delicia

com a diversidade interesses econocircmicos impotildeem modelos hegemocircnicos injustos e

uniformizantes que querem evitar a particularidade a convivecircncia ou a diferenccedila Os

mercados globalizados nos orgasmos muacuteltiplos do capitalismo selvagem conquistam

novas trilhas para o livre fluir de capitais mas natildeo de pessoas

A paz o livre exerciacutecio de sexualidades igualdade novas fronteiras e o

assentamento de pessoas em condiccedilotildees mais justas satildeo evitados no Brasil e no mundo

por problemas pessoais mal resolvidos interesses escusos e paranoias

governamentais Como lembrou Lucia Sander em palestra-performance em Maceioacute

neste ano Einstein dizia que ldquoeacute mais faacutecil dividir um aacutetomo que destruir um

preconceitordquo E Susan Sontag afirmou anos depois que a histoacuteria do preconceito eacute tatildeo

antiga quanto a histoacuteria das questotildees pessoais mal resolvidas As artes incluindo

performance e outras interdisciplinas artiacutesticas vazam esses escudos anti-

transformaccedilotildees e tentam exemplificar outras possibilidades de outros mundos

simultacircneos e distintos que se trocam e produzem outros mundos inclusivos e

questionadores de absolutismos restringentes A batalha continua sintomaacutetica

enigmaacutetica e performaacutetica

Referecircncias ASCOTT Roy lsquoArte emergente interativa tecnoeacutetica e uacutemidarsquo Trad Cleacuteria Maria Costa Anais do 1 Encontro Internacional de Arte e Tecnologia Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1999 p19 - p29 BARTHES Roland Image-Music-Text Trad Stephen Heath Nova York Hill and Wang 1977 BATTCOCK Gregory e NICKAS Robert eds The Art of Performance Nova York E P Duncan amp Co 1984 BLAU Herbert lsquoThe Prospect Before Usrsquo Discourse 142 1992 p 1- p 25

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BUTLER Judith Gender Trouble Londres e Nova York Routledge 1990 CAMPBELL Patrick ed Analysing Performance A Critical Reader Manchester e Nova York Manchester University Press 1996 CARLSON Marvin Performance A Critical Introduction Londres e Nova York Routledge 1996 CONNOR Steven lsquoPostmodern Performancersquo In Campbell 1996 p 107- p 24 DAVIS Douglas lsquoPost-Performancismrsquo Artforum 202 (1981) pp 31-9 DIAMOND Elin ed Performance amp Cultural Politics (Londres e Nova York Routledge 1996) ENGLER Balz lsquoPostdisciplinarityrsquo In Faria Neide (ed) Language and Literature Today Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1996 p 852-9 FAZENDA Ivani Catarina Arantes Interdisciplinaridade um projeto em parceria Satildeo Paulo Loyola 1991 FEacuteRAL Josette lsquoWhat is Left from Performance Art Autopsy of a Function Birth of a Genrersquo Discourse 142 1992 pp 142-62 GOLDERG RoseLee lsquoPerformance The Golden Yearsrsquo in Battcock e Nickas (1984) pp 71-94 HIGGINS Dick A Dialectics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978) JAPIASSU Hilton Interdisciplinaridade e patologia do saber (Rio de Janeiro Imago 1976) KIRBY Michael A Formalist Theatre Philadelphia University of Pennsylvania Press 1987 KOSTELANETZ Richard The Theatre of Mixed Means An Introduction to Happenings Kinetic Environments and Other Mixed-Media Performances (Londres Pitman 1970) MAGOLIN Deb lsquoA Perfect Theatre for One Teaching ldquoPerformance Compositionrdquorsquo TDR 412 (1997) pp 68-81

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DUTRA Pacircmela Goumlethel WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim ACCORSI Ana Maria Bueno Estudo sobre a

participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 120-

141 juldez 2016 Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

Estudo sobre a participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental

Pacircmela Goumlethel Dutra1 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel2

Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Ana Maria Bueno Accorsi3 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Resumo O artigo apresenta a pesquisa com um grupo instrumental em uma escola puacuteblica municipal em TaquariRS Partiu dos questionamentos Qual o significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental Quais as expectativas dos estudantes que participam desses grupos Qual a influecircncia da muacutesica para estes participantes Quais as expectativas de estudantes familiares e comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre o envolvimento dos familiares dos estudantes O objetivo foi compreender a importacircncia da participaccedilatildeo em um grupo instrumental escolar Constatou-se a importacircncia da participaccedilatildeo no grupo instrumental apontado por todos investigados Entende-se que esta pesquisa contribua para a construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para a educaccedilatildeo musical nas escolas bem como para a implementaccedilatildeo da legislaccedilatildeo que dispotildee sobre a inserccedilatildeo da muacutesica no Brasil Palavras-chave Educaccedilatildeo musical grupos instrumentais muacutesica na Educaccedilatildeo Baacutesica

1 Estudante do curso de Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Musical na Universidade Estadual pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Licenciada em Pedagogia pelo Centro Universitaacuterio Leonardo da Vinci Cursando o 9ordm semestre de licenciatura em Muacutesica pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Participou do grupo de pesquisa na Uergs intitulado Educaccedilatildeo Musical diferentes tempos e espaccedilos com linhas de pesquisas sobre processos de ensino e aprendizado em muacutesica e poliacuteticas em Educaccedilatildeo Musical Professora de muacutesica do municiacutepio de Taquari- RS desde 2013 no qual atua em atividades de Educaccedilatildeo Musical no curriacuteculo do ensino baacutesico nos anos iniciais e finais do ensino fundamental e em atividades escolares no extracurricular com aulas de instrumentos e na formaccedilatildeo de grupos instrumentais bandas marciais e coro infanto-juvenil 2 Doutora e Mestre em Educaccedilatildeo Musical pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Especialista em Informaacutetica na Educaccedilatildeo Ecircnfase em Instrumentaccedilatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul Licenciada em Muacutesica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Coordena o curso de Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Musical na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Unidade de Montenegro Eacute coordenadora da Aacuterea Muacutesica do Programa de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia em Montenegro da CAPESUERGS Coordena a Comissatildeo de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo da Uergs-Montenegro orientando bolsistas de iniciaccedilatildeo cientiacutefica em muacutesica e artes da FAPERGS CNPq e UERGS Eacute coordenadora dos grupos de pesquisa registrados no CNPq Arte criaccedilatildeo interdisciplinaridade e educaccedilatildeo e Educaccedilatildeo Musical diferentes tempos e espaccedilos Coordena o Programa de Extensatildeo Universitaacuteria do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo pela Uergs Eacute Diretora Cientiacutefica da Coleccedilatildeo Educaccedilatildeo Musical da Editora Prismas de Curitiba Faz parte da Comissatildeo Gauacutecha de Folclore e da Fundaccedilatildeo Santos Herrmann Eacute integrante da Academia Montenegrina de Letras ocupando a Cadeira nordm5 Faz parte da Associaccedilatildeo Montenegrina de Escritores 3 Possui graduaccedilatildeo em Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (1976) mestrado em Linguumliacutestica e Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (1999) e doutorado em Linguumliacutestica e Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (2005) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e Consultora Terapecircutica em Dependecircncia Quiacutemica Coordena o Curso de Licenciatura em Letras Portuguecircs e Literaturas de Liacutengua Portuguesa e o Curso de Especializaccedilatildeo Teoria e Praacutetica da Formaccedilatildeo do Leitor

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DUTRA Pacircmela Goumlethel WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim ACCORSI Ana Maria Bueno Estudo sobre a

participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 120-

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Abstract The article presents the research with an instrumental group at a municipal public school in TaquariRS The research started from the questions What is the meaning of student participation in an instrumental group What are the expectations of the students participating in these groups What is the influence of music on these participants What are the expectations of students families and the school community in relation to the group How does the involvement of the students family members occur The objective was to understand the importance of participation in a school instrumental group It was verified the importance of the participation in the instrumental group indicated by all investigated It is understood that this research contributes to the construction of public policies for music education in schools as well as for the implementation of the legislation that regulates the insertion of music in Brazil Keywords Musical education instrumental musical groups music in Basic Education

Introduccedilatildeo

As diversas possibilidades de inserccedilatildeo da muacutesica na escola conquistaram

legitimidade com a Lei nordm 11769 de 18 de agosto de 2008 Mais recentemente em

3 de maio de 2016 foi publicada a Lei nordm 13278 que incluiu artes visuais danccedila

muacutesica e teatro nos curriacuteculos dos diversos niacuteveis da Educaccedilatildeo Baacutesica A nova

legislaccedilatildeo altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional nordm 9394 de

1996 (LDB 93941996) estabelecendo um prazo de cinco anos para que os

sistemas de ensino promovam a formaccedilatildeo de professores para implantar esses

componentes curriculares nas escolas A partir dessas leis tem-se a obrigatoriedade

da inclusatildeo da muacutesica no curriacuteculo das escolas Neste sentido pode-se pensar na

diversidade dos modos de a muacutesica se configurar na escola inclusive como

atividade extracurricular Nesse sentido Wolffenbuumlttel (2014) aponta

Muitas vezes as escolas optam pelo desenvolvimento de determinadas atividades - dentre essas as musicais - em outras dimensotildees que natildeo as tradicionais relacionadas com tempos e espaccedilos curriculares Surgem assim as atividades extracurriculares como alternativas para o ensino

escolar (WOLFFENBUumlTTEL 2014 p 56)

Percebe-se portanto que as atividades musicais extracurriculares

possibilitam a inserccedilatildeo da muacutesica se assim for a opccedilatildeo da escola Poreacutem natildeo

inviabilizam a implementaccedilatildeo da muacutesica no ensino regular da mesma instituiccedilatildeo

podendo a escola oferecer tanto atividades musicais no ensino regular quanto

extracurricular

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DUTRA Pacircmela Goumlethel WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim ACCORSI Ana Maria Bueno Estudo sobre a

participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 120-

141 juldez 2016 Disponiacutevel em lthttpseerfundartersgovbrindexphpRevistadaFundarteindexgt

Sobre as funccedilotildees sociais envolvidas nas praacuteticas instrumentais de grupos

musicais Bozzetto (2012) aponta a importacircncia da participaccedilatildeo de crianccedilas e jovens

em projetos que envolvam atividades musicais Em sua anaacutelise a autora afirma

A importacircncia de que projetos que satildeo erguidos com a funccedilatildeo de inserccedilatildeo social atraveacutes da muacutesica mantenham viva e coerente essa afirmativa cientes de que dar a oportunidade a uma crianccedila e jovem notadamente de camadas de baixa renda eacute abrir um mundo de possibilidades que com o tempo de convivecircncia podem se tornar uma referecircncia de mundo social para toda uma vida (BOZZETTO 2012 p 266)

Bozzetto (2012) finaliza essa discussatildeo refletindo sobre a necessidade de os

projetos sociais entenderem seu papel de inclusatildeo social destacando que a tarefa

do educador musical eacute a de ldquocontribuir para uma educaccedilatildeo musical mais justa e

humana e da importacircncia de sua inserccedilatildeo em projetos que reconheccedilam a praacutetica

musical como oportunidade de inclusatildeo socialrdquo (p 266)

Joly e Joly (2011) investigaram as praacuteticas sociais e os processos educativos

que acontecem em ambiente de orquestra No sentido das praacuteticas sociais as

autoras refletem sobre as ldquorelaccedilotildees que se estabelecem entre pessoas pessoas e

comunidade na qual se inserem pessoas e grupos grupos entre si grupos e

sociedade mais amplardquo (p 80)

De acordo com Bastiatildeo (2012) nosso paiacutes eacute multicultural possuindo vaacuterias

culturas diferentes e cada regiatildeo possui uma manifestaccedilatildeo folcloacuterica musical

proacutepria Nesse sentido o educador musical poderaacute atraveacutes da praacutetica de conjunto

trabalhar esse contexto ldquodadas a riqueza e a diversidade da muacutesica popular

brasileira ndash observam-se a valorizaccedilatildeo e a inserccedilatildeo das muacutesicas e manifestaccedilotildees da

cultura oral nos contextos acadecircmico e regular de ensinordquo (p 60)

Entende-se que atividades que envolvem grupos instrumentais nos quais a

praacutetica de conjunto estaacute inserida no seu cotidiano contemplam o que os Paracircmetros

Curriculares Nacionais (PCNs) tratam sobre os objetivos de expressatildeo e

comunicaccedilatildeo em muacutesica tais como

Improvisaccedilatildeo composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeo com instrumentos musicais tais como flauta percussatildeo etc eou vozes (observando tessitura e questatildeo de muda vocal) fazendo uso de teacutecnicas instrumental e vocal baacutesicas participando de conjuntos instrumentais eou vocais desenvolvendo autoconfianccedila senso criacutetico e atitude de cooperaccedilatildeo (BRASIL 1998 p 83)

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Ainda no que tange aos PCNs satildeo relacionados objetivos de interpretaccedilatildeo

acompanhamento recriaccedilatildeo e realizaccedilatildeo de arranjos

Arranjos de muacutesica do meio sociocultural e do patrimocircnio musical construiacutedo pela humanidade nos diferentes espaccedilos geograacuteficos eacutepocas povos culturas e etnias tocando eou cantando individualmente eou em grupo (banda canto coral e outros) construindo relaccedilotildees de respeito e diaacutelogo (BRASIL 1998 p 83)

Considerando-se a potencialidade da muacutesica na escola bem como a

existecircncia de atividades extracurriculares caracterizadas como organizaccedilotildees de

grupos instrumentais em diversas escolas alguns questionamentos surgiram Qual o

significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental Quais as

expectativas dos estudantes que participam destes grupos Qual a influecircncia da

muacutesica para esses participantes Quais as expectativas de estudantes familiares e

comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre o envolvimento dos

familiares dos estudantes Esta pesquisa portanto objetivou compreender a

importacircncia de fazer parte de um grupo instrumental escolar

O Grupo Instrumental Investigado

A investigaccedilatildeo sobre a importacircncia da participaccedilatildeo em um grupo instrumental

escolar originou-se a partir da inserccedilatildeo de uma das autoras deste artigo como

professora de muacutesica em uma escola puacuteblica municipal em TaquariRS O foco da

pesquisa deu-se a partir dessa atuaccedilatildeo considerando-se as atividades no

contraturno escolar

Os ensaios do grupo ocorrem uma vez por semana no uacuteltimo periacuteodo do

turno da tarde apoacutes as aulas coletivas de instrumentos de sopro Contando com

catorze estudantes de 10 a 18 anos de idade a atividade oportuniza a

experimentaccedilatildeo e o manuseio de diversos instrumentos musicais permitindo muitos

aprendizados importantes para o desenvolvimento musical dos estudantes

Atraveacutes da aquisiccedilatildeo de variados instrumentos musicais o grupo tem tido a

possibilidade de fazer apresentaccedilotildees em variadas configuraccedilotildees grupais incluindo

o formato de banda marcial possibilitando aos estudantes experimentar e manusear

uma diversidade musical

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Esta praacutetica extrapola os tempos e espaccedilos escolares agregando pessoas da

comunidade bem como egressos que continuam participando das atividades

musicais O grupo instrumental faz apresentaccedilotildees locais incluindo o comeacutercio local

as instituiccedilotildees beneficentes aleacutem das demais regiotildees do municiacutepio e de fora dele

Metodologia

A proposta metodoloacutegica desta investigaccedilatildeo incluiu a abordagem qualitativa o

meacutetodo estudo de caso e entrevistas e observaccedilotildees como teacutecnicas para a coleta dos

dados A anaacutelise dos dados consistiu na anaacutelise de conteuacutedo

A Abordagem Qualitativa

Para a pesquisa foi utilizada a abordagem qualitativa Martins (2004) explica

que a ldquometodologia qualitativa mais do que qualquer outra levanta questotildees eacuteticas

principalmente devido agrave proximidade entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 295)

Aleacutem disso eacute a partir de cada dado coletado conforme suas caracteriacutesticas que se

faz uma interaccedilatildeo entre os conteuacutedos atraveacutes dessa interaccedilatildeo a pesquisa traz suas

impressotildees e percepccedilotildees

A razatildeo para a escolha da abordagem qualitativa para realizaccedilatildeo deste

trabalho relacionou-se ao fato de a mesma possibilitar a reflexatildeo sobre a

participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental no contexto escolar e na

sociedade em que estatildeo inseridos

O Estudo de Caso

O estudo de caso caracteriza-se por atender a determinado objetivo atraveacutes

da investigaccedilatildeo de um caso especiacutefico Eacute muito utilizado quando se pretende

compreender explorar ou descrever acontecimentos e contextos complexos nos

quais estatildeo simultaneamente envolvidos diversos fatores Para Yin (2001) o estudo

de caso ldquocontribui de forma inigualaacutevel para a compreensatildeo que temos dos

fenocircmenos individuais organizacionais sociais e poliacuteticosrdquo (p 21)

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As Entrevistas Semiestruturadas

As entrevistas semiestruturadas permitiram aprofundar as questotildees

especiacuteficas desta pesquisa A entrevista semiestruturada eacute uma ldquoseacuterie de perguntas

abertas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o entrevistador

pode acrescentar perguntas de esclarecimentordquo (LAVILLE DIONE p 188) Todas

as entrevistas foram realizadas na escola na qual existe o grupo instrumental em

horaacuterios previamente combinados

Ao todo foram feitas cinco entrevistas sendo as mesmas realizadas com dois

estudantes integrantes do grupo instrumental com a matildee de um dos estudantes

com a diretora da escola e com uma professora Como acontece nas entrevistas do

tipo semiestruturada seguiu-se um roteiro mas com a possibilidade de serem

acrescidas outras perguntas conforme necessaacuterio

Considerando-se a escolha dos entrevistados foram seguidos alguns

criteacuterios Selecionou-se um estudante (denominado Estudante J) que participa do

grupo desde o iniacutecio das atividades Neste caso suas informaccedilotildees poderiam

fornecer uma visatildeo geral sobre a importacircncia de participar do grupo haacute mais tempo

O outro estudante (denominado Estudante W) foi escolhido por ter ingressado

recentemente no grupo instrumental e poderia fornecer outra visatildeo a respeito desta

participaccedilatildeo Deste modo aleacutem de ambos os estudantes terem concordado com a

participaccedilatildeo na pesquisa e de terem tempo disponiacutevel para serem entrevistados

eles poderiam contribuir com as informaccedilotildees sobre sua participaccedilatildeo mas tendo

tempos de participaccedilatildeo diferentes no grupo Foi entrevistada tambeacutem a matildee do

Estudante J que participa desde o iniacutecio das atividades do grupo instrumental A

professora que participou da pesquisa foi selecionada por ser docente na escola em

que o grupo instrumental tem suas atividades aleacutem de ter lecionado para os

estudantes investigados Adicionalmente esclarece-se que a professora concordou

em fornecer a entrevista e teve tempo para a mesma Por fim a diretora foi

entrevistada por ter importantes contribuiccedilotildees para a pesquisa considerando-se sua

visatildeo como gestora da escola

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A Anaacutelise dos Dados

Para a realizaccedilatildeo da anaacutelise dos dados coletados nesta investigaccedilatildeo utilizou-

se a anaacutelise de conteuacutedo a partir da proposta de Moraes (1999) Para Moraes

(1999) a anaacutelise de conteuacutedo ldquoconstitui uma metodologia de pesquisa usada para

descrever e interpretar o conteuacutedo de toda classe de documentos e textosrdquo (p 2) A

anaacutelise de conteuacutedo viabilizou a anaacutelise dos dados transcritos tendo contato com

diversos textos corroborando a conclusatildeo da anaacutelise sobre o assunto da pesquisa

atingindo assim os objetivos

Para a realizaccedilatildeo desta anaacutelise alguns procedimentos foram necessaacuterios

como as etapas que Moraes (1999) propotildee tais como a ldquopreparaccedilatildeo das

informaccedilotildeesrdquo a qual foi feita por meio de entrevistas semiestruturadas Deve-se

salientar que as entrevistas foram gravadas no gravador de aacuteudio do celular Apoacutes a

realizaccedilatildeo das entrevistas as mesmas foram integralmente transcritas Efetuadas as

transcriccedilotildees das cinco entrevistas todas passaram pelo processo de revisatildeo e

textualizaccedilatildeo a fim de ajustar possiacuteveis inconsistecircncias de dados ou mesmo

correccedilotildees ortograacuteficas e gramaticais necessaacuterias

Para Moraes (1999) este procedimento eacute importante para iniciar o processo

de codificaccedilatildeo dos materiais estabelecendo um coacutedigo que possibilite identificar

rapidamente cada elemento da amostra de depoimentos ou documentos a serem

analisados

Todo este processo resultou na constituiccedilatildeo de um caderno denominado

Caderno de Entrevistas 2015 (C E 2015) contendo as entrevistas dos estudantes

J e W da matildee do Estudante J da professora e da diretora da escola

Posteriormente este Caderno de Entrevistas 2015 passou por uma leitura

minuciosa considerando-se o processo de ldquounitarizaccedilatildeordquo proposto por Moraes

(1999) servindo de base para as etapas subsequentes quais sejam a

categorizaccedilatildeo e a anaacutelise dos dados Aleacutem do Caderno de Entrevistas tambeacutem foi

constituiacutedo outro caderno denominado Caderno de Categorizaccedilatildeo 2015 (C C

2015) A categorizaccedilatildeo consiste em um procedimento de ldquoagrupar dados

considerando a parte comum existente entre eles Classifica-se por semelhanccedila ou

analogia segundo criteacuterios previamente estabelecidos ou definidos no processordquo

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(MORAES 1999 p 6) Neste caderno os dados coletados foram separados por

categorias sendo que posteriormente depois de rigorosa anaacutelise das categorias

criadas compuseram os Resultados e a Anaacutelise dos Dados juntamente com a

realizaccedilatildeo da anaacutelise fundamentada no referencial teoacuterico desta pesquisa Salienta-

se que estas atividades foram precedidas de uma cuidadosa e ampla leitura do texto

final

Aleacutem dos cadernos mencionados foi constituiacutedo um Caderno de Fotografias

2015 (C F 2015) no qual se encontram as imagens dos eventos dos quais o grupo

instrumental participou servindo como complemento para a anaacutelise dos dados

Desse modo considerando-se o material coletado e organizado resultaram

as seguintes categorias de anaacutelise Os Entrevistados A Importacircncia da Participaccedilatildeo

dos Estudantes nas Atividades do Grupo Instrumental Influecircncias de Participar em

um Grupo Instrumental para a vida dos Estudantes Participantes e Familiares

Envolvidos Expectativas em Relaccedilatildeo agraves Atividades Instrumentais Estas categorias

foram analisadas a partir de um referencial teoacuterico da educaccedilatildeo musical o qual eacute

apresentado a seguir

Referencial Teoacuterico

O referencial teoacuterico selecionado para a anaacutelise dos dados desta investigaccedilatildeo

sobre a importacircncia da participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental

escolar foi constituiacutedo por conceitos de educaccedilatildeo musical e do desenvolvimento

musical de crianccedilas e adolescentes

A Educaccedilatildeo Musical

Kraemer (2000) trata da questatildeo epistemoloacutegica da educaccedilatildeo musical dentre

outros assuntos pertinentes ao tema Define como pedagogia da muacutesica o campo da

educaccedilatildeo musical explicando que a pedagogia da muacutesica ldquodivide seu objeto com as

disciplinas chamadas ciecircncias humanas filosofia antropologia sociologia ciecircncias

poliacuteticas histoacuteriardquo Para Kraemer (2000) ldquoeacute dada a relaccedilatildeo com a musicologia

(assim como com a praacutetica da muacutesica e a vida musical)rdquo (p 52) A psicologia da

muacutesica ldquoinvestiga o comportamento musical e as vivecircncias musicaisrdquo (p 55) e a

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sociologia da muacutesica ldquoas condiccedilotildees sociais e os efeitos da muacutesica assim como

relaccedilotildees sociais que estejam relacionadas agrave muacutesicardquo (p 57)

A partir desses fatores trazidos pelo autor eacute possiacutevel constatar o quanto eacute

vasto o campo da educaccedilatildeo musical agregando a muacutesica a vaacuterias aacutereas do

conhecimento e podendo ser trabalhada dentro dessas linguagens Assim cada

aspecto tem importantes contribuiccedilotildees para o conhecimento musical num todo

Assim como a pedagogia acrescenta em sua didaacutetica e se complementa com

as outras aacutereas do conhecimento para ter mais ecircxito no ensino-aprendizagem e na

relaccedilatildeo estudante-professor podemos fazer o mesmo com a muacutesica agregando

essas aacutereas no fazer didaacutetico-musical Satildeo aacutereas que se complementam em

diversas situaccedilotildees Desse modo a muacutesica tem um papel integrador e

transdisciplinar assim como o papel da pedagogia que considera ldquoa vida humana

sob aspectos da educaccedilatildeo formaccedilatildeo instruccedilatildeo e didaacuteticardquo (KRAEMER 2000 p

60)

Eacute necessaacuterio que na muacutesica assim como na pedagogia existam esses

olhares num contexto amplo da educaccedilatildeo observando todos os aspectos relevantes

no desenvolvimento integral do estudante independente de como a disciplina estaacute

inserida na escola seja de forma curricular ou extracurricular Eacute importante que os

professores de muacutesica considerem a educaccedilatildeo musical como um todo objetivando a

formaccedilatildeo do cidadatildeo Natildeo se desconsidera a teacutecnica da execuccedilatildeo musical

igualmente importante Todavia outros conceitos que fazem parte da educaccedilatildeo

musical satildeo igualmente necessaacuterios

Englobando aspectos socioloacutegicos nos quais eacute observado o comportamento

de uma determinada sociedade e a forma com que se organizam no tempo livre e

trabalho Kraemer (2000) relaciona a muacutesica agrave sociologia explicando

A sociologia da muacutesica examina as condiccedilotildees sociais e os efeitos da muacutesica assim como relaccedilotildees sociais que estejam relacionadas com a muacutesica Ela considera o manuseio com a muacutesica como um processo social e analisa o comportamento do homem relacionado com a muacutesica em direccedilatildeo agraves influecircncias sociais instituiccedilotildees e grupos (KRAEMER 2000 p 57)

Para Swanwick (2003) eacute fundamental unir atividades de execuccedilatildeo

apreciaccedilatildeo e criaccedilatildeo para que os estudantes se desenvolvam artisticamente O foco

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reside especialmente no que acontece quando a pessoa se relaciona com muacutesica

no fazer musical

Swanwick (2003) propotildee trecircs atividades principais na muacutesica compor ouvir

muacutesica e tocaacute-la Ele reuacutene estas atividades em sua proposta conhecida no Brasil

como TECLA constituiacuteda pelo estudo da histoacuteria da muacutesica (literatura) e pela

aquisiccedilatildeo de habilidades (em inglecircs skill aquisition) denominado de teacutecnica Tem-

se assim T de teacutecnica E de execuccedilatildeo C de composiccedilatildeo L de literatura e A de

apreciaccedilatildeo E atraveacutes de sua proposta o autor aborda diversos fatores que

envolvem esse contexto Conceitos a se considerar em qualquer lugar em que o

educador musical possa estar atuando assim como os de Kraemer (2000) seja em

sala de aula anos iniciais e finais ou em um coro um grupo instrumental ou banda

escolar ou marcial com crianccedilas jovens ou adultos Onde haacute pessoas que de

alguma forma estatildeo se relacionando com muacutesica essas concepccedilotildees podem ser

utilizadas

O Desenvolvimento Musical de Crianccedilas e Adolescentes

O estudante ao se identificar com o que estaacute sendo proposto nas atividades

de ensino e aprendizagem no caso de atividades instrumentais em que o estudante

eacute considerado como um propositor e natildeo apenas plateia sentir-se-aacute responsaacutevel

pelas atividades e pelo sucesso das mesmas O estudante se sente valorizado o

que aumenta sua autoestima colabora para seu desenvolvimento pessoal no

sentido intelectual resultando familiarizaccedilatildeo e encantamento com o fazer musical

Nesse sentido Swanwick (2003) discorre sobre a importacircncia de ldquoconsiderar

o discurso musical dos alunosrdquo A partir daiacute o discurso ldquoconversaccedilatildeo musical natildeo

pode ser nunca um monoacutelogo Cada estudante traz consigo um domiacutenio de

compreensatildeo musical quando chega a nossas instituiccedilotildees educacionaisrdquo

(SWANWICK 2003 p 66)

Considerando a muacutesica como discurso ldquoprocederemos baseados na ideia de

que ela pode fazer uma diferenccedila na maneira como vivemos e como podemos

refletir sobre nossa vidardquo (SWANWICK 2003 p 78) Despertar no estudante o

encantamento com o fazer musical oportunizando a compreensatildeo dos aspectos

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musicais Swanwick (2003) explica que as ldquoteacutecnicas e manuseio de materiais

sonoros satildeo importantes mas sabemos que eles natildeo satildeo a soma total da

compreensatildeo musicalrdquo (p 67) Mesmo em grupos musicais que tecircm por base as

atividades instrumentais de aprendizagem de instrumento e praacutetica de conjunto

existem diversas possibilidades para alcanccedilar os objetivos musicais propostos

sensibilizando para a aprendizagem musical

Conforme Wolffenbuumlttel (2014) as atividades extracurriculares servem como

ldquoperspectiva de ampliaccedilatildeo das possibilidades das escolas Estudos realizados em

diferentes paiacuteses sugerem que as atividades extracurriculares satildeo capazes de

contribuir para o desenvolvimento dos alunosrdquo (p 56)

Em relaccedilatildeo agraves possibilidades musicais para desenvolver a compreensatildeo

musical Swanwick (2003) aponta a importacircncia de os estudantes terem ldquoa

oportunidade de produzir e responder agrave muacutesica em todas as camadas do discurso

musical qualquer que seja a atividaderdquo (SWANWICK 2003 p 97) As atividades

musicais em grupos instrumentais contemplam o que os PCNs sugerem para as

atividades musicais no que se refere agrave ldquoCriaccedilatildeo a partir do aprendizado de

instrumentos do canto de materiais sonoros diversos e da utilizaccedilatildeo do corpo como

instrumento procurando o domiacutenio de conteuacutedos da linguagem musicalrdquo (BRASIL

1998 p 83)

Resultados e Anaacutelise dos Dados

A partir da anaacutelise dos dados resultaram quatro categorias Os Entrevistados

A Importacircncia da Participaccedilatildeo dos Estudantes nas Atividades do Grupo

Instrumental Influecircncias de Participar em um Grupo Instrumental para a vida dos

Estudantes Participantes e Familiares Envolvidos Expectativas em Relaccedilatildeo agraves

Atividades Instrumentais

Os Entrevistados

Foram entrevistadas cinco pessoas dois estudantes a matildee de um dos

estudantes uma professora e a diretora da escola

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Um dos estudantes do grupo instrumental o Estudante J participa das

atividades musicais extracurriculares desde abril de 2013 ele iniciou com aulas de

flauta doce e apoacutes a criaccedilatildeo do grupo instrumental teve a oportunidade de

experimentar e manusear outros instrumentos musicais iniciando seus estudos no

saxofone alto o qual toca no grupo ateacute os dias de hoje Seu pai e seu avocirc tambeacutem

tocam instrumentos musicais sendo que desde crianccedila o Estudante J disse

conviver com essas audiccedilotildees tendo aprendido muacutesica e em especial as noccedilotildees de

ritmo atraveacutes do ensinamento de seus familiares (C E 2015 p 11) O Estudante J

salientou que gosta muito de escutar muacutesica sertaneja muacutesica gauacutecha e vaacuterios

outros gecircneros musicais (C E 2015 p 12)

O Estudante W que tem 18 anos de idade participa das atividades do grupo

instrumental desde junho de 2014 tendo comeccedilado a tocar o instrumento musical

metalofone apoacutes a flauta doce este estudante iniciou seus estudos no saxofone alto

desde o iniacutecio de 2015 O Estudante W continuou no grupo instrumental mesmo

apoacutes sua saiacuteda da escola devido ao teacutermino de seus estudos no Ensino

Fundamental Este estudante explicou que nunca foi reprovado mas devido a

problemas familiares parou de estudar por um determinado tempo Diferentemente

do Estudante J o Estudante W natildeo tem familiares com conhecimentos musicais

sendo o primeiro a ter contato com a muacutesica na escola (C E 2015 p 7) O

Estudante W explicou que costuma escutar muacutesica em casa todos os dias

raramente assiste agrave televisatildeo e gosta muito de ouvir muacutesica sertaneja (C E 2015

p 9) Ele relatou que quase todo o dia pratica estudos no saxofone alto ou tem

contato com o instrumento mesmo que seja somente para fazer os procedimentos

de limpeza (C E 2015 p 8)

Eacute possiacutevel apoacutes caracterizar os estudantes organizar e categorizar suas

falas apontar aspectos relativos aos seus gostos e preferecircncias musicais Nesse

sentido Swanwick (2003) postula a necessidade dessa praacutetica de ldquoconsiderar o

discurso musical dos alunosrdquo (p 66) pois estes ao se apresentarem trazem suas

identidades musicais E nesse sentido considerar o discurso musical nos ensaios

do grupo instrumental foi um dos importantes procedimentos realizados

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Em relaccedilatildeo agrave famiacutelia foi entrevistada a matildee do Estudante J o qual eacute

participante do grupo instrumental desde 2013 tambeacutem entrevistado nessa

pesquisa

Representando os professores de sala de aula dos estudantes participantes

do grupo instrumental foi entrevistada a professora do componente curricular de

matemaacutetica Ela leciona para as turmas do 5ordm ao 9ordm ano fazendo parte do processo

de ensino e aprendizagem de estudantes de diferentes faixas etaacuterias que satildeo

participantes do grupo

Por fim da equipe diretiva da escola foi entrevistada a diretora a qual ocupa

este cargo de gestatildeo desde abril de 2014 Anteriormente era vice-diretora da

escola

A Importacircncia da Participaccedilatildeo de Estudantes nas Atividades do Grupo Instrumental

A partir da realizaccedilatildeo desta pesquisa constatou-se a importacircncia que o grupo

instrumental tem na vida de todos os envolvidos com este tipo de trabalho Quer

sejam os estudantes que participam do grupo quer sejam as famiacutelias ndash nesta

pesquisa caracterizadas pela entrevista com uma matildee ndash quer sejam os professores

que trabalham com esses estudantes que estatildeo participando do grupo e com

certeza a equipe diretiva caracterizada pela diretora todos percebem esta

importacircncia Cada um do seu modo demonstrou a intensidade da importacircncia desta

participaccedilatildeo

Os estudantes percebem que ao participarem do grupo instrumental aleacutem de

gostarem eles constatam diversos aprendizados tanto musicais quanto

extramusicais A este respeito o Estudante W relatou ldquoPercebo que para mim

ajudou bastante e eu acho que as pessoas gostam do que a gente faz bem dizer

assimrdquo (C E 2015 p 7)

Em outro momento da entrevista o Estudante W explicou sobre sua

socializaccedilatildeo no grupo e em relaccedilatildeo ao rendimento escolar De acordo com seu

depoimento ldquoAcho bom fiz vaacuterias amizades tambeacutem e gosto das apresentaccedilotildees

Sinto-me bem agrave vontade E melhorei meu rendimento bastante e a aprendizagemrdquo

(C E 2015 p 7)

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Quanto agrave oportunidade que lhe foi dada em relaccedilatildeo agrave muacutesica de participar do

grupo musical o Estudante W salientou este aspecto explicando ldquoSempre gostei de

muacutesica e nunca tinha tido a oportunidade de entrar e acabei gostando muitordquo (C E

2015 p 7)

O Estudante J outro entrevistado nesta pesquisa a respeito de seu apreccedilo

pelas aulas de instrumento explicou ldquoEu gosto muito das aulas eacute bom estar aqui

[na escola] estudando muacutesica e aprendendo outros instrumentos novos isso eacute bem

legalrdquo (C E 2015 p 11)

A matildee do Estudante J explicou sobre como percebe a participaccedilatildeo de seu

filho bem como sobre o que esta participaccedilatildeo resulta na famiacutelia modificando-a

inclusive

Ele gosta muito chega a hora de vir natildeo interessa se estaacute chovendo ou se natildeo estaacute ele [seu filho] se arruma e vem [agrave escola] de qualquer jeito Ele gosta muito isso foi uma coisa que vocecircs [da escola] fizeram que foi oacutetimo neacute [] Porque ele fica faceiro chega na hora ele guarda aquele instrumento com muito carinho muito bem guardado Ele gosta muito mesmo (C E 2015 p 3)

A professora dos estudantes que participam do grupo instrumental tambeacutem

observou o reflexo desta participaccedilatildeo no seu trabalho pedagoacutegico no cotidiano da

escola Para a professora ldquoAquele comprometimento que eles tecircm com o horaacuterio da

muacutesica de aprender e tudo mais causa neles um compromisso com o resto das

disciplinas em sala de aula tambeacutemrdquo (C E 2015 p 16) A diretora da escola

tambeacutem contribuiu com a anaacutelise fornecendo importantes dados sobre a participaccedilatildeo

dos estudantes da escola no grupo instrumental De acordo com a diretora

A participaccedilatildeo dos estudantes no grupo para mim eacute acima de tudo muita emoccedilatildeo porque eu sempre acreditei no projeto tentei da melhor maneira possiacutevel focar e conseguir mecanismos para que ele pudesse existir E eu vejo que estar no grupo eacute um grande investimento para essas crianccedilas e adolescentes na construccedilatildeo integral da sua personalidade da sua maneira de pensar e de ver o mundo (C E 2015 p 14)

A diretora ainda acrescentou um comentaacuterio sobre a repercussatildeo do grupo

instrumental na comunidade ressaltando a importacircncia desse fator ao explicar

O grupo instrumental traz a questatildeo da comunidade pois natildeo ficou apenas na escola Ele foi para a comunidade local no bairro ele foi para o centro da cidade as pessoas conhecem o grupo as pessoas convidam para participar de eventos Entatildeo eu acho que para a professora de muacutesica eacute

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profissionalismo para mim eacute emoccedilatildeo e para eles eu acho que eacute um trabalho de autoestima de grande valor porque satildeo crianccedilas de uma localidade rural que nunca se imaginaria de seguir um caminho de estrada de chatildeo com um saxofone (C E 2015 p 15)

As atividades musicais existentes no grupo instrumental da escola repercutem

junto agrave comunidade escolar no seu entorno demais regiotildees do municiacutepio e fora

dele E essa repercussatildeo eacute devida ao incentivo por parte da escola aos estudos

musicais dos estudantes do grupo instrumental e aos demais estudantes da escola e

de fora da escola Isso ocorre no caso do Estudante W que jaacute concluiu seus

estudos mas permanece na escola o que incentiva os demais estudantes a

optarem pela muacutesica como profissatildeo

Observou-se uma concordacircncia entre os entrevistados quando enfatizaram a

extrema importacircncia de os estudantes participarem do grupo instrumental (C E

2015) principalmente no que diz respeito agraves funccedilotildees da muacutesica Esta anaacutelise remete

a Kraemer (2000) considerando-se as funccedilotildees da muacutesica Do mesmo modo os

aspectos socioloacutegicos e psicoloacutegicos apresentaram-se relevantes para esta anaacutelise

O relacionamento entre as pessoas desenvolvido atraveacutes das atividades musicais

no grupo instrumental apresentou-se fortemente Kraemer (2000) ao analisar as

relaccedilotildees entre as pessoas e a importacircncia que a muacutesica pode ter em suas vidas

explica que a pedagogia da muacutesica ocupa-se com ldquoas relaccedilotildees entre a(s) pessoa(s)

e a(s) muacutesica(s) sob os aspectos de apropriaccedilatildeo e de transmissatildeordquo (KRAEMER

2000 p 51) Isto foi encontrado nesse grupo bem como nas falas dos

entrevistados

Nesse sentido a partir das entrevistas realizadas que oportunizaram analisar

e correlacionar os conteuacutedos das falas ao referencial teoacuterico principalmente neste

caso como aponta Kraemer (2000) observa-se a importacircncia da muacutesica para as

pessoas bem como a potecircncia de estar em um grupo instrumental em espaccedilos

escolares

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Influecircncias de Participar de um Grupo Instrumental para a Vida dos Estudantes

Participantes e Familiares Envolvidos

Atraveacutes das entrevistas com os estudantes J e W observou-se a influecircncia

que a muacutesica exerce em suas vidas desde a entrada no grupo instrumental Neste

sentido o Estudante W explicou ldquoMinha famiacutelia apoia bastante eles gostam Em

casa eles pedem para tocar agraves vezes A voacute adora e apoia bastante sempre me

perguntando se eu tirei muacutesica nova alguma coisardquo (C E 2015 p 8)

Aleacutem disso ao comentar sobre o impacto em sua vida o Estudante W

explicou ldquoMelhorou bastante minha vida musical e familiar com isso eu me sinto

muito melhorrdquo (C E 2015 p 9) O Estudante W foi convidado a entrar no grupo

instrumental poreacutem natildeo tinha grandes expectativas musicais E foi se envolvendo

com o fazer musical despertando o interesse de aprender diversos instrumentos

musicais O Estudante W levou esse encantamento para seus familiares seus

ensaios musicais promovem satisfaccedilatildeo em sua famiacutelia promovendo uniatildeo e

interaccedilatildeo dos mesmos durante esse processo

O Estudante J externou em sua fala que ao entrar no grupo ocorreram

muitas mudanccedilas em seu modo de ser Em seu depoimento ele destacou

mudanccedilas quanto ao comprometimento e agrave pontualidade Ele observa que consegue

cumprir o que eacute solicitado pela professora estaacute estudando mais Assim ldquome ajudou

bastante ateacute na aula normal estou mais comportado fazendo todos os trabalhos

melhorrdquo (C E 2015 p 12)

Em relaccedilatildeo agrave famiacutelia a matildee do Estudante J enfatizou a grande socializaccedilatildeo e

o clima de harmonia que a famiacutelia experienciou por meio do contato de seu filho com

o instrumento musical em casa (C E 2015)

Observa-se nos depoimentos a funccedilatildeo da muacutesica no campo socioloacutegico que

vai ao encontro do que Kraemer (2000) acredita jaacute que ldquoconsidera o manuseio com

a muacutesica como um processo socialrdquo e analisa o ldquocomportamento do homem

relacionado com a muacutesica em direccedilatildeo agraves influecircncias sociais institucionais e gruposrdquo

(p 57) Eacute possiacutevel atraveacutes dos dados coletados observar a influecircncia social e

comportamental que a muacutesica exerce entre os agentes envolvidos seja no acircmbito

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familiar ou no processo de desenvolvimento intelectual dos estudantes participantes

do grupo

Nas falas da escola caracterizadas pela entrevista com a diretora e com a

professora foi possiacutevel verificar que ambas tambeacutem trataram da influecircncia que

resulta da participaccedilatildeo no grupo instrumental A professora explicou suas

observaccedilotildees quanto aos estudantes participantes do grupo instrumental feitas na

sua aula Ela leciona haacute muitos anos na escola e por isso tem um grande

conhecimento dos estudantes os tem acompanhado antes mesmo de ingressarem

no grupo instrumental Ao conhecer os estudantes ela pode analisar mais

amplamente De acordo com a professora

A gente nota uma diferenccedila bastante elevada neles Que eles se concentram mais em sala de aula e isso ajuda para o futuro deles e isso eacute muito bom Pois a gente sabe que tudo na vida precisa de concentraccedilatildeo precisa de carinho para fazer as coisas precisa de dedicaccedilatildeo E isso eu vejo enquanto eles aprendem muacutesica Eacute claro que isso reflete em sala de aula tambeacutem (C E 2015 p 17)

Foi possiacutevel constatar ao analisar a entrevista da professora no que se

relaciona agrave psicologia da muacutesica o que Kraemer (2000) explica sobre as

ldquosemelhanccedilas e diferenccedilas observaacuteveis de comportamento e da vivecircncia musicalrdquo (p

55) Assim pode-se analisar as funccedilotildees da educaccedilatildeo musical que envolvem ldquotarefas

da pedagogia da muacutesica [que] devem ser definidas juntamente com a aquisiccedilatildeo de

conhecimento compreender e interpretar descrever e esclarecer conscientizar e

transformarrdquo (KRAEMER 2000 p 66)

Os dados obtidos nas entrevistas no que diz respeito agrave participaccedilatildeo dos

estudantes no grupo instrumental tambeacutem remetem agrave importacircncia da oferta de

atividades no turno inverso escolar Nesse sentido Wolffenbuumlttel (2014) explica que

as atividades extracurriculares tecircm uma perspectiva de ampliaccedilatildeo das possibilidades

das escolas Segundo a autora as ldquoatividades extracurriculares satildeo capazes de

contribuir para o desenvolvimento dos alunosrdquo (p 56)

Expectativas em Relaccedilatildeo agraves Atividades Instrumentais

Ao longo das entrevistas os estudantes participantes do grupo instrumental

externaram suas expectativas musicais em relaccedilatildeo a esta participaccedilatildeo O Estudante

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W foi aleacutem acrescentando sua expectativa profissional De acordo com seu

depoimento ldquoEu pretendo evoluir de repente fazer uma faculdade de muacutesica que

me interessa bastante esse caminhordquo (C E 2015 p 8)

O Estudante J em sua entrevista afirmou sobre as expectativas em relaccedilatildeo agrave

participaccedilatildeo no grupo pretendendo aperfeiccediloar-se para uma melhor representaccedilatildeo

de sua escola De acordo com ele esta participaccedilatildeo se daacute no sentido de ldquofazer o

que tem que fazer natildeo deixar de ensaiar em casa e fazer o melhor Espero que

cada vez melhore para representar melhor a escola e aprender tambeacutemrdquo (C E

2015 p 12) Em suas expectativas profissionais apontou a vontade de seguir

profissionalmente na muacutesica Para ele ldquoAh se surgir alguma oportunidade eu quero

fazer uma faculdade de muacutesica neacute Quero me formarrdquo (C E 2015 p 12) Nesta

fala externada pelo Estudante J observa-se o que os PCNs sugerem em relaccedilatildeo a

um dos objetivos gerais para a muacutesica na escola qual seja adquirir ldquoconhecimento

sobre profissotildees e profissionais da aacuterea musical considerando diferentes aacutereas de

atuaccedilatildeo e caracteriacutesticas do trabalhordquo (BRASIL 1998 p 82)

A participaccedilatildeo dos estudantes no grupo instrumental eacute de suma importacircncia

o que se evidenciou em suas falas em relaccedilatildeo agraves expectativas profissionais

remetendo agraves funccedilotildees da muacutesica e da educaccedilatildeo musical nos acircmbitos psicoloacutegico e

social estando em sintonia com as anaacutelises de Kraemer (2000) apresentadas

anteriormente

Observou-se que todos os entrevistados tecircm expectativas musicais

estudantes que inclusive mencionaram pretender seguir nas atividades musicais

como profissatildeo demonstrando encantamento com o fazer musical e indicando

pretensotildees profissionais A diretora por sua vez mencionou em sua fala esperar

que o grupo instrumental cada vez se estruture mais para assim atender mais

estudantes Ela se preocupa portanto em atender agraves demandas escolares e da

comunidade

Salienta-se que todo esse envolvimento teve como ponto de partida uma

atividade extracurricular (WOLFFENBUumlTTEL 2014) E o bom desempenho do grupo

eacute advindo de vaacuterios esforccedilos sendo que a muacutesica e seu ensino atraveacutes da

educaccedilatildeo musical estaacute desempenhando suas funccedilotildees na vida dos estudantes e dos

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familiares (KRAEMER 2000) Observou-se tambeacutem a valorizaccedilatildeo dos estudantes

participantes como sujeitos propositores no trabalho pedagoacutegico-musical

(SWANWICK 2003) resultando no encantamento do fazer musical colaborando

para o desenvolvimento integral dos sujeitos envolvidos considerando-se as

atividades musicais do grupo instrumental

Consideraccedilotildees Finais

Apoacutes a realizaccedilatildeo desta pesquisa foi possiacutevel responder aos

questionamentos apresentados na introduccedilatildeo deste artigo e que nortearam esta

investigaccedilatildeo quais sejam Qual o significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um

grupo instrumental Quais as expectativas dos estudantes que participam destes

grupos Qual a influecircncia da muacutesica para estes participantes Quais as expectativas

de estudantes familiares e comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre

o envolvimento dos familiares dos estudantes

Quanto ao significado da participaccedilatildeo dos estudantes no grupo instrumental

observou-se que a mesma reflete diversos aspectos positivos nas vidas de todos os

envolvidos o que segundo os estudantes do grupo instrumental possui vaacuterios

significados e representaccedilotildees em seus cotidianos Para eles significa ter melhoria

no comportamento na socializaccedilatildeo no processo de ensino e aprendizagem no

comprometimento na pontualidade na concentraccedilatildeo e no conviacutevio familiar

Agregam o significado de ldquofelicidaderdquo na convivecircncia que o grupo instrumental

proporciona e ainda destacam a importacircncia de representar a escola e a

abrangecircncia desta participaccedilatildeo junto agrave comunidade Todos os entrevistados

relacionaram significados com a importacircncia de o grupo existir na escola

apontando-o como desencadeador desses diversos contextos significativos para

eles

As expectativas dos participantes deste grupo foram tambeacutem

questionamentos desta pesquisa Constatou-se que os estudantes possuem

expectativas profissionais em relaccedilatildeo agrave muacutesica quando acrescentaram o interesse

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em continuar seus estudos musicais para culminar com o ingresso em um curso

superior em muacutesica

Outro questionamento foi a influecircncia da muacutesica para os participantes deste

grupo De acordo com os dados coletados e analisados observa-se que o grupo

instrumental influencia de forma positiva suas vidas visto que foram observadas

mudanccedilas positivas pela matildee pela professora e pela diretora aleacutem dos estudantes

principalmente nas suas condutas e atuaccedilotildees no acircmbito familiar e escolar

resultando em melhorias nas relaccedilotildees sociais e no ensino e aprendizagem

As expectativas dos estudantes familiares e comunidade escolar quanto ao

grupo instrumental foi um dos questionamentos que oportunizou inuacutemeros

aprendizados no que diz respeito agrave pesquisa Observou-se que todos os

entrevistados esperam que o grupo se estruture cada vez mais para que os

benefiacutecios de participar de um grupo instrumental sejam ampliados para mais

estudantes ressaltando expectativas em relaccedilatildeo agrave evoluccedilatildeo como instrumentistas

para continuar contribuindo na qualidade e no crescimento do grupo

Por fim o envolvimento dos familiares dos participantes deste grupo foi um

questionamento que se apresentou de forma bastante marcante nesta pesquisa De

acordo com as entrevistas pocircde-se compreender o envolvimento significativo da

famiacutelia no processo de desenvolvimento musical do estudante identificou-se que a

famiacutelia participa da rotina de estudos e que proporciona momentos de integraccedilatildeo

nos ensaios de repertoacuterio dos estudantes com os demais familiares Isso

desencadeia reflexotildees sobre a importacircncia de seu filho ter contato com um

instrumento musical e de conviver em um grupo instrumental motivando-o para a

permanecircncia no mesmo

Alguns fatos surpreenderam no decorrer desta pesquisa como momentos de

emoccedilatildeo na entrevista com a diretora na fala fervorosa da matildee do Estudante J em

relaccedilatildeo agrave rotina de ensaios musicais do filho e a integraccedilatildeo familiar que promove As

entrevistadas ao responderem aos questionamentos da entrevista emocionaram-se

muito demonstrando a forte relaccedilatildeo advinda da existecircncia do grupo instrumental na

escola

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Deve-se salientar tambeacutem que a pesquisa possibilitou a reflexatildeo sobre os

fazeres pedagoacutegico-musicais da professora de muacutesica atuante na escola a qual

coordena o grupo instrumental investigado Foi possiacutevel neste processo

investigativo constatar a dimensatildeo e a importacircncia desse trabalho na vida dos

estudantes identificando atraveacutes dos depoimentos analisados a responsabilidade

que os profissionais da aacuterea da educaccedilatildeo musical tecircm Eacute importante portanto que

sempre se esteja atento agraves atitudes procedimentos e metodologias utilizados pois

somos importantes neste processo para aleacutem do encantamento do fazer musical

para uma aprendizagem que contribua com a formaccedilatildeo de um ser humano integral

Ao longo da pesquisa outros dados relevantes foram coletados apontando

futuras investigaccedilotildees Desse modo resultaram novos questionamentos como O

que levou outros estudantes a desistirem de participar do grupo instrumental ao

longo de sua trajetoacuteria Qual a importacircncia de os estudantes que participam de um

grupo instrumental terem a oportunidade de manusear diversos instrumentos

musicais

Ao finalizar a investigaccedilatildeo prospecta-se que a mesma possa contribuir para a

construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para a educaccedilatildeo musical no contexto escolar

Entende-se tambeacutem que este trabalho possa contribuir com a implementaccedilatildeo da

legislaccedilatildeo que dispotildee sobre a inserccedilatildeo da muacutesica nas escolas brasileiras e assim

somar de maneira significativa na vida dos estudantes participantes como no caso

do grupo instrumental pesquisado

Referecircncias BASTIAtildeO Zuraida Abud Praacutetica de conjunto instrumental na educaccedilatildeo baacutesica Muacutesica na Educaccedilatildeo Baacutesica Londrina v4 n4 p 58-69 novembro de 2012

BOZZETTO Adriana Projetos educativos de famiacutelias e formaccedilatildeo musical de crianccedilas e jovens em uma orquestra Porto Alegre 2012 295 f Tese (Doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2012 BRASIL Secretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Paracircmetros curriculares nacionais arte Secretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Brasiacutelia DF 1998116 p

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BRASIL Lei nordm 11769 de 16 de agosto de 2008 Altera a Lei ndeg 9394 de 20 dezembro de 1990 para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino de muacutesica na educaccedilatildeo baacutesica Brasiacutelia 2008 Disponiacutevel em lthttpwwwplanaltogovbrccivil_03LEISL9394htmgt Acesso em 15 set 2015 JOLY Maria Carolina Leme JOLY Ilza Zenker Leme Praacuteticas musicais coletivas um olhar para a convivecircncia em uma orquestra comunitaacuteria Revista da ABEM Londrina v19 n26 p 79-91 jul Dez 2011 KRAEMER Rudolf Dimensotildees e funccedilotildees do conhecimento pedagoacutegico musical Em Pauta Porto Alegre v11 n 1617 p 50-73 abrnov 2000 LAVILLE Christian DIONNE Jean A construccedilatildeo do Saber manual de metodologia da pesquisa em ciecircncias humanas Porto Alegre Artmed 1999 MARTINS Heloiacutesa Helena Tde Souza Metodologia qualitativa de pesquisa Educaccedilatildeo e Pesquisa Satildeo Paulo V 30 n2 p 289-300 maioago 2004 Disponiacutevel em lt httpwwwscielobrpdfepv30n2v30n2a07pdfgt Acesso em 25 ago 2015 MORAES Roque Anaacutelise de conteuacutedo Revista Educaccedilatildeo Porto Alegre v 22 n 37 p 7-32 1999 SWANWICK Keith Ensinando muacutesica musicalmente Satildeo Paulo Moderna 2003 VENTURA Magda Maria O estudo de caso como modalidade de pesquisa Revista da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro v 20 n 5 p 383-386 setout 2007 Disponiacutevel em lthttpsociedadescardiolbrsocerjrevista2007_05a2007_v20_n05_art10pdfgt Acesso em 15 ago 2015 WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim A inserccedilatildeo da muacutesica nos projetos poliacutetico-pedagoacutegicos da educaccedilatildeo baacutesica 1ordf ed Curitiba Editora Prismas 2014 YIN Robert K Estudo de caso planejamento e meacutetodos 2ordf ed Porto Alegre Bookman 2001

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SILVEIRA Izabel Cristina da Teatro para quem A arte de teatrar para todos Revista da Fundarte

Montenegro ano 16 n 32 p 142-162 juldez 2016 Disponiacutevel em

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TEATRO PARA QUEM A ARTE DE TEATRAR PARA TODOS Um estudo

sobre acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RS

Izabel Cristina da Silveira1

Fundaccedilatildeo de Arte e Cultura de Gravataiacute - FUNDARC

Resumo Este trabalho busca investigar analisar e viabilizar diaacutelogos reflexotildees e percepccedilotildees em torno do tema da acessibilidade cultural sob a oacuteptica do contexto teatral no estado do Rio Grande do Sul com um recorte pontual no municiacutepio de Porto Alegre capital do estado a fim de promover a inclusatildeo social da pessoa com deficiecircncia no acircmbito cultural Para tanto servem como suporte para anaacutelise registros pesquisa e observaccedilotildees de seis grupos de teatro do municiacutepio supracitado e suas relaccedilotildees com o assunto em pauta aleacutem de discussotildees das noccedilotildees de deficiecircncia acessibilidade e Legislaccedilatildeo vigente Palavras-chave Acessibilidade teatro inclusatildeo Abstract This work aims to investigate analyze and facilitate dialogues reflections and insights on the theme of cultural accessibility from the perspective of the theatrical context in the state of Rio Grande do Sul with a point cut in the city of Porto Alegre the state capital to promote social inclusion of persons with disabilities in the cultural sphere To serve both as support for analysis records research and observations six theater groups of the aforementioned municipality and its relations with the subject at hand in addition to discussing the shortcomings notions of accessibility and current legislation Keywords Accessibility theater inclusion

Introduccedilatildeo

[] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferenccedila nos inferioriza e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza Daiacute a necessidade de uma igualdade que reconheccedila as diferenccedilas e de uma diferenccedila que natildeo produza alimente ou reproduza as desigualdades (Boaventura de Souza Santos 2003 p56)

A pauta da acessibilidade nos meios de comunicaccedilatildeo e equipamentos

culturais tem se configurado como um importante tema de discussatildeo e luta entre

grupos e sociedade em decorrecircncia dos direitos da pessoa com deficiecircncia Os

esforccedilos neste sentido visam natildeo apenas proporcionar o acesso a produtos

culturais a uma parcela da populaccedilatildeo que se encontra excluiacuteda como tambeacutem

estabelecer um novo patamar de igualdade baseado na valorizaccedilatildeo da diversidade

1 Coordenadora do Departamento de Artes Cecircnicas da Fundarc em Gravataiacute Diretora e professora de teatro na

Cia Teatral Tem Gente no Palco Poacutes Graduada em Acessibilidade Cultural pela UFRJ Graduada em

Licenciatura em Teatro pela UFRGS

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Ao longo dos anos essas reivindicaccedilotildees tecircm provocado diversas mudanccedilas

no comportamento social que passa a identificar a pessoa com deficiecircncia como um

sujeito pertencente agrave sociedade que possui representatividade cidadatilde e econocircmica

Esse reconhecimento gera a necessidade de mudanccedilas e adaptaccedilotildees tambeacutem nas

manifestaccedilotildees culturais e artiacutesticas

Sendo assim o presente artigo busca trazer agrave tona tais questionamentos e

fomentar a discussatildeo do assunto problematizando e dialogando a fim de colaborar

efetivamente para a pauta da acessibilidade para todos e buscar alternativas

possiacuteveis para acessibilizar espetaacuteculos teatrais em suas apresentaccedilotildees

Para tanto realizou-se estudo praacutetico-teoacuterico junto a grupos teatrais do estado

do Rio Grande do Sul atuantes na capital Porto Alegre Optou-se por um recorte

pontual no maior centro urbano e cultural do estado com cenaacuterio teatral fortemente

constituiacutedo e onde se localiza o Curso de Graduaccedilatildeo em Teatro em uma das mais

conceituadas Universidades do Brasil ndash a Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS)

Levando-se em conta o grande nuacutemero de grupos teatrais existentes em

Porto Alegre e a impossibilidade de uma pesquisa que abranja todas as demandas

a metodologia deste trabalho teve como base uma amostragem de dados com

pesquisa e acompanhamento de 06 (seis) grupos teatrais profissionais com

empresa constituiacuteda e atuaccedilatildeo no mercado artiacutestico haacute mais de 05 (cinco) anos A

escolha se deu por conhecimento dos grupos e do trabalho que desenvolvem

levando-se em conta tambeacutem a disponibilidade dos mesmos e o contato que

possuem ou natildeo com o tema Para tanto foram selecionados entre os 06 (seis)

grupos pesquisados 02 (dois) que jaacute desenvolvem ou desenvolveram trabalhos em

acessibilidade cultural e outros 04 (quatro) que natildeo tecircm contato direto

A pesquisa caracteriza-se por seu caraacuteter qualitativo e quantitativo visando

compreender e interpretar este grupo determinado comportamento opiniotildees e

expectativas destes indiviacuteduos criando uma base de conhecimentos para depois

quantificaacute-los a partir de entrevista estruturada Este trabalho natildeo tem como intuito

apontar procedimentos certos ou errados mas levantar a problematizaratildeo da

acessibilidade no meio teatral tanto fiacutesico quanto de concepccedilatildeo instigando a

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comunidade artiacutestica e demais a refletir e perceber a necessidade de uma cultura

acessiacutevel a todos propondo ideias e atitudes que de fato promovam a inclusatildeo

social

Com um vieacutes de poliacutetica cultural o estudo levanta dados referentes agraves

poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo desenvolvidas no acircmbito da acessibilidade

cultural tendo como base a Lei Federal de Incentivo agrave Cultura (Lei Rouanet) a Lei

de Incentivo agrave Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (LIC) e o Fundo Municipal de

Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural do municiacutepio de Porto Alegre (Fumproarte)

procurando transitar pelas trecircs instacircncias governamentais de fomento agrave cultura no

Brasil

Para melhor fundamentaccedilatildeo alguns referenciais teoacutericos satildeo utilizados e

discutidos ao longo deste trabalho como embasamento para discussotildees acerca da

deficiecircncia e seu processo de inclusatildeo do teatro sob vieacutes acessiacutevel e da legislaccedilatildeo

vigente referente ao tema Em um segundo momento satildeo pontuados assuntos

referentes agrave acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais tendo como objeto de

estudo os grupos de teatro referidos a partir de entrevistas e aplicaccedilatildeo de

questionaacuterio com perguntas objetivas e abertas sobre a temaacutetica com amostra

teacutecnica dos resultados e anaacutelise discursiva sobre os dados coletados

Entre seus objetivos especiacuteficos alguns jaacute mencionados no corpo deste texto

que serviram de norteadores para o desenvolvimento deste trabalho estatildeo traccedilar

um panoramadiagnoacutestico da inclusatildeo social e cultural da pessoa com deficiecircncia a

partir do enfoque do teatro e seus espetaacuteculos qualificar accedilotildees desenvolvidas ao

encontro das demandas de acessibilidade discutir poliacuteticas puacuteblicas e culturais a

partir da interface com mecanismos de incentivo agrave cultura como Leis e Editais

analisar as dificuldades encontradas pelos grupos pesquisados no processo de

inclusatildeo relacionar o teatro e seu caraacuteter contestador e democraacutetico com a luta por

direitos das pessoas com deficiecircncia ampliar o diaacutelogo e reconhecimento da

importacircncia da igualdade baseada na valorizaccedilatildeo da diversidade

Todos esses objetivos e questionamentos vecircm ao encontro do propoacutesito

maior desta pesquisa que se fundamenta em viabilizar a discussatildeo reflexatildeo e

percepccedilatildeo em torno da acessibilidade cultural dentro do contexto teatral no estado

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do Rio Grande do Sul promovendo assim a inclusatildeo social da pessoa com

deficiecircncia

Contextualizaccedilatildeo histoacuterica social e legal

O teatro surge antes mesmo da Greacutecia Antiga Acredita-se que jaacute na Preacute-

Histoacuteria o Homem para se comunicar representavaencenava suas accedilotildees

principalmente as caccediladas para seus familiares e amigos Era uma maneira luacutedica e

de faacutecil compreensatildeo de contar e preservar sua histoacuteria Natildeo se tinha ainda o

espetaacuteculo teatral que de fato tem sua origem na Civilizaccedilatildeo Grega mas as

primeiras manifestaccedilotildees artiacutesticas comeccedilam a surgir e mais importante que isso o

ato de se comunicar

O espetaacuteculo teatral precisa ser entendido sentido internalizado para

somente entatildeo desempenhar seu papel significador de instrumento social e cultural

Para tanto o seu ato de comunicar deve ser abrangente natildeo seletivo ou excludente

Como arte democraacutetica que eacute deve ou deveria ser para todos

Todos Como Claudia Werneck ndash jornalista escritora e militante em inclusatildeo

social ndash intitula em um dos seus livros ldquoQuem cabe no seu todosrdquo E ao usar a

palavra TODOS a autora convida o leitor a acompanhar suas certezas e anguacutestias

sobre as diretrizes e encaminhamentos da inclusatildeo no Brasil Claudia questiona

instiga potildee agrave prova o que se costuma entender e chamar de Todos A sociedade eacute

constituiacuteda por diferentes Todos totalmente distintos entre si que segundo

Werneck precisam ser ampliados e reconhecidos para entatildeo tornarem-se um

TODOS somente Um TODOS social humano ldquo[] defendo que o direito agrave

igualdade social soacute seraacute garantido com o reconhecimento e a legitimaccedilatildeo de TODAS

as diferenccedilasrdquo (WERNECK 2012 p 29)

A psicoacuteloga e professora Virgiacutenia Kastrup em seu artigo ldquoCegos e videntes se

encontram no museu da dicotomia agrave partilha do sensiacutevelrdquo (p3) reafirma a

importacircncia das diferenccedilas para a construccedilatildeo de uma sociedade mais inclusiva

Eacute preciso atentar para o fato que o mundo comum natildeo eacute feito de igualdades e identidades [] Para o mundo ser comum no sentido amplo e inclusivo ele deve comportar a heterogeneidade Natildeo apenas toleraacute-la mas honrar-se com as muacuteltiplas diferenccedilas que nele habitam (KASTRUP p3)

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O Brasil apresenta segundo uacuteltimo censo do Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatiacutestica (IBGE) de 2010 cerca de 456 milhotildees de pessoas com deficiecircncia

239 da populaccedilatildeo que declara ter algum tipo de deficiecircncia Destas a deficiecircncia

visual aparece em maior nuacutemero (188) -- tendo a regiatildeo Sul do paiacutes com maior

abrangecircncia de casos -- seguida pela deficiecircncia fiacutesica (7) e depois auditiva (51)

e intelectual (14) segundo publicaccedilatildeo do Jornal Estadatildeo de 290620122

Com nuacutemeros tatildeo significativos natildeo se pode pensar que a inclusatildeo de

pessoas com deficiecircncia seja um assunto remoto ou longiacutenquo que a sociedade natildeo

esteja ciente e integrada a tal fato Mas o que acontece no campo da praacutetica eacute bem

diverso da teoria

Muito do que se pode constatar eacute que a falta de inclusatildeo da pessoa com

deficiecircncia se reafirma a partir de barreiras atitudinais fundamentadas em uma

cultura histoacuterico-social que construiu um estereoacutetipo de separaccedilatildeo entre pessoas

saudaacuteveis e pessoas ldquodoentesrdquo com problemas leia-se deficiecircncia Quebrar

tais barreiras se torna muito mais difiacutecil do que solucionar barreiras fiacutesicas palpaacuteveis

e concretas

Sob o vieacutes filosoacutefico-social

O homem em sua busca incessante por descobrir-se por encontrar seu lugar

no mundo anseia por elementos que o faccedilam sentir-se ldquovivordquo uacutetil sujeito ativo de

sua histoacuteria Os viacutenculos sociais natildeo fazem parte apenas da necessidade cataacutertica

do ser humano da sua busca por encontrar-se por pertencer a um lugar mas satildeo

tambeacutem laccedilos culturalmente construiacutedos O Homem quer e precisa se sentir parte

integrante da sociedade que o cerca Pessoas agrupam-se em torno de

pensamentos objetivos eou ideais em comum Encontrar semelhantes eacute a

certificaccedilatildeo de sua identidade eacute o natildeo se estar soacute Eacute protegerem-se em seus nichos

sociais de um mundo tantas vezes opressor desigual e competitivo

Diante de uma realidade calcada em valores descartaacuteveis natildeo eacute de se

admirar que atos de solidariedade sejam cada vez mais raros Sendo assim os

sup1 Fonte Agecircncia Brasil de 21082015 via site wwwebccombr

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viacutenculos humanos natildeo se constituem em laccedilos radicados em accedilotildees para o outro

mas sim em benefiacutecio proacuteprio O socioacutelogo Zygmunt Bauman sabiamente destaca

Os viacutenculos humanos satildeo confortavelmente frouxos mas por isso mesmo terrivelmente precaacuterios e eacute tatildeo difiacutecil praticar a solidariedade quanto compreender seus benefiacutecios e mais ainda suas virtudes morais (BAUMAN 2007 P30)

Para tanto ao se pensar em inclusatildeo se faz tambeacutem necessaacuterio aleacutem do

social e histoacuterico voltar o olhar para o intriacutenseco filosoacutefico O que leva as pessoas a

natildeo quererem enxergar o outro em suas especificidades e diversidades Alfredo

Bosi em seu livro Fenomenologia do Olhar nos apresenta este fenocircmeno e como

ele se manifesta ldquo[] o ato de olhar significa um dirigir a mente para um ato de

intencionalidade Eacute ter sua intenccedilatildeo voltada para o objeto de interesserdquo (BOSI

1988 p65) O olhar de cada um possui diferenccedilas e estas estatildeo ligadas agraves suas

vivecircncias o que se consegue captar e lhe eacute significativo O olhar para Bosi como

forma de expressatildeo que reconhece e percebe o outro em sua plenitude

Em um estudo mais intimista da fenomenologia da percepccedilatildeo atraveacutes dos

pensamentos do filoacutesofo e fenomenoacutelogo francecircs Maurice Merleau-Ponty (1908 -

1961) podemos constatar que haacute uma universalidade do sentir e sobre ela que

repousa nossa identificaccedilatildeo a constituiccedilatildeo do eu a generalizaccedilatildeo do corpo e a

percepccedilatildeo do outro onde para Ponty (1994 p 260) ldquotodo o saber se instala no

horizonte da percepccedilatildeordquo e reafirma que ldquose a percepccedilatildeo interpreta ela soacute o faz a

partir do mundo de forma sensiacutevelrdquo Pensar natildeo eacute somente razatildeo mas um refletir

sobre o mundo sensiacutevel A fenomenologia eacute uma atitude de reflexatildeo do fenocircmeno

que se mostra para noacutes na relaccedilatildeo que estabelecemos com os outros no mundo

Os fenocircmenos constituem o mundo como noacutes o experimentamos segundo nossas

experiecircncias e pensamentos Toda nossa relaccedilatildeo com o mundo natildeo teria razatildeo se

natildeo comeccedilasse pela percepccedilatildeo ou seja pelos sentidos Noacutes eacute que buscamos o

sentido daquilo que se mostra

No momento em que se deixa de perceber de olhar o outro e de fato

enxergaacute-lo em suas diferenccedilas e igualdades estes deixam de serem vistos como

possiacuteveis sujeitos de suas histoacuterias Sua autonomia eacute podada por assistencialismos

ou segregaccedilatildeo social A humanizaccedilatildeo dilui-se com a mesma intensidade com que o

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individualismo se enraiacuteza O Homem corre contra o tempo As relaccedilotildees passam a

adquirir um caraacuteter efecircmero e superficial e tudo se torna banal Natildeo basta mais

pertencer a uma sociedade eacute preciso ser o melhor aquele que corre na frente

ldquoCom mais frequecircncia ainda a exclusatildeo tende hoje a ser uma rua de matildeo uacutenicardquo

(BAUMAM 2007 p 75) Vivemos em ldquotempos liacutequidosrdquo

O cerceamento seja fiacutesico intelectual ou cultural se daacute de tal forma que o

indiviacuteduo perde sua autonomia transformando-se mecanicamente em apenas um

produto do meio O teatro surge neste contexto como um desses caminhos

possiacuteveis de serem trilhados como desmistificador de conceitos preestabelecidos

Quem faz essa pergunta ldquoqual eacute a sua utilidaderdquo deve estar atento a si mesmo a essa atitude que leva a negar o valor das aacutervores que natildeo datildeo frutos A aacutervore que natildeo daacute fruto ndash proverbialmente inuacutetil ndash se converte em algo essencial nas cidades sem oxigecircnio (BARBA 1991 p 145)

Quando o teatro entra em cena

Haacute uma diferenccedila fundamental entre a ciecircncia e a arte [] A ciecircncia atua diretamente sobre a realidade modificando-a Pelo contraacuterio a arte modifica os modificadores da sociedade transforma os transformadores (BOAL 1983)

A arte e sua estreita relaccedilatildeo com o homem e a sociedade a qual este

pertence torna-se um importante instrumento de discussatildeo e transformaccedilatildeo social

que natildeo pode ser esquecido nem perdido no emaranhado de modismos que

tendem a surgir Ao pensarmos a arte como elemento transformador capaz de

estabelecer diferentes relaccedilotildees de contextos e olhares somos remetidos agraves

possiacuteveis conexotildees e diaacutelogos que surgem a partir de sua experimentaccedilatildeo Sendo

assim o espectador deixa sua posiccedilatildeo de receptor passivo para ir ao encontro de

relaccedilotildees interativas que lhe permitam conceber seu proacuteprio conhecimento em

relaccedilatildeo agrave arte agrave obra ao espetaacuteculo

Amanda Tojal (2014 p15) a partir da anaacutelise dos processos de comunicaccedilatildeo

museoloacutegica que comeccedilam a se afirmar na sociedade contemporacircnea chama a

atenccedilatildeo para a forma de participaccedilatildeo do sujeito receptor ndash ldquo[] de uma condiccedilatildeo

anteriormente mais passiva como simples assimilador de uma mensagem ndash para

uma condiccedilatildeo mais dialoacutegica isto eacute a de um participante mais ativo no processo de

apreensatildeo e de ressignificaccedilatildeo do objeto cultural []rdquo

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Um equipamento cultural independentemente do segmento ndash museu galeria

teatro biblioteca ndash deve a priori comunicar Estabelecer essa via de comunicaccedilatildeo de

forma efetiva diante do heterogecircneo e oportunizar a qualquer pessoa o acesso e o

contato com a arte e suas manifestaccedilotildees A acessibilidade passa ou deveria passar

mais fortemente para aleacutem da acessibilidade fiacutesica e concreta gerando uma

reflexatildeo sobre como acessibilizar a comunicaccedilatildeo e a interaccedilatildeo A pessoa com

deficiecircncia deve ter atendido seu desejo de se sentir parte integrante do todo de

entender e reconhecer seu direito de pertencimento de ser ouvido de olhar para o

mundo de sentir se relacionar e acima de tudo de ter autonomia e liberdade

A acessibilidade natildeo eacute um favor que estaacute sendo feito eacute um direito de toda

pessoa com deficiecircncia Eacute garantir o direito maior e universal de toda e qualquer

pessoa de ir e vir de sua liberdade Conforme o Glossaacuterio de Acessibilidade

fornecido pelo Curso de Extensatildeo em EAD Acessibilidade em Ambientes Culturais

da UFRGS ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul o termo Acessibilidade

designa

Condiccedilatildeo para utilizaccedilatildeo com seguranccedila e autonomia total ou assistida dos espaccedilos mobiliaacuterios e equipamentos urbanos das edificaccedilotildees dos serviccedilos de transporte e dos dispositivos sistemas e meios de comunicaccedilatildeo e informaccedilatildeo por pessoa com deficiecircncia ou mobilidade reduzida

Sendo assim a acessibilidade cultural discussatildeo geral deste artigo eacute uma

das condiccedilotildees baacutesicas para que pessoas com algum tipo de deficiecircncia possam ter

acesso aos instrumentos e mecanismos de cultura usufruindo de suas

manifestaccedilotildees artiacutesticas

O teatro ensina contesta mostra sugere questiona natildeo se acomoda diante

do passivo do irremediaacutevel E como ainda pessoas ficam fora de suas salas

Como ainda muitas pessoas com deficiecircncia natildeo podem natildeo tecircm como assistir

usufruir de uma peccedila de teatro ir a um teatro consumir cultura viva Porque satildeo

diferentes O que deveria ser comum normal se torna o a mais o plus o

diferencial Ver espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis eacute com dia e hora marcada

A arte teatral por si soacute jaacute apresenta uma gama de problemaacuteticas a serem

transpostas Natildeo eacute faacutecil fazer teatro como natildeo eacute faacutecil fazer cultura no Brasil Grupos

normalmente possuem orccedilamentos e recursos reduzidos para montagem de seus

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trabalhos a formaccedilatildeo de plateia eacute uma luta constante a valorizaccedilatildeo e entendimento

da profissionalizaccedilatildeo do artista tem sido uma conquista em pequenas doses Diante

desse quadro parece surgir quase como um ldquoincocircmodordquo a questatildeo da acessibilidade

cultural no meio teatral Proporcionar espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis quando natildeo haacute

nem Casas de Teatro acessiacuteveis Quando as instacircncias governamentais acreditam

que os menores orccedilamentos e cortes devem comeccedilar pelas manifestaccedilotildees

artiacutesticas Com uma arbitrariedade latente tais questionamentos corroboram para a

divergecircncia selada entre praacutetica e teoria No entanto assim como nos lembra

Claudia Werneck em seu livro Ningueacutem mais vai ser bonzinho na sociedade

inclusiva ldquosomos cidadatildeos responsaacuteveis pela qualidade de vida do nosso

semelhante por mais diferente que ele seja ou nos pareccedila serrdquo

Tornar espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis natildeo eacute uma tarefa faacutecil e comumente

realizada Eacute necessaacuterio um entendimento conhecimento de causa recursos e

profissionais disponiacuteveis para que natildeo se caia na vala comum do ldquofazer por fazerrdquo

Quando se estaacute interferindo tatildeo diretamente na vida de outras pessoas todo o

cuidado eacute pouco e um estudo detalhado de todas as possibilidades viaacuteveis faz a

diferenccedila no resultado final

Atualmente alguns recursos satildeo vistos como fundamentais para serem

aplicados quando a proposta eacute acessibilizar um espetaacuteculo teatral Audiodescriccedilatildeo

Libras (Liacutengua Brasileira de Sinais) Estenotipia (legenda em tempo real) Braile QR

Code (coacutedigo bidimensional) Caixa alta texto simples e contraste Reconhecimento

de palco Rampas de acesso

O Teatro Acessiacutevel passa pela aplicabilidade dessas tecnologias mas

principalmente e fundamentalmente pela quebra das barreiras atitudinais frente agrave

percepccedilatildeo destas questotildees A ldquoEscola de Genterdquo Organizaccedilatildeo Natildeo Governamental

fundada em 2002 por Claacuteudia Werneck no Rio de Janeiro trabalha haacute bastante

tempo o tema da inclusatildeo e tem no teatro na representaccedilatildeo teatral um grande

propagador de luta e difusor dos direitos da pessoa com deficiecircncia no Brasil Tem

como objetivo transformar poliacuteticas puacuteblicas em poliacuteticas inclusivas para que

pessoas com e sem deficiecircncia exerccedilam seus direitos humanos desde a infacircncia

Em 2003 O Grupo Teatro Acessiacutevel ldquoOs Inclusos e os Sisosrdquo da ldquoEscola de

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Genterdquo foi criado como meio de mobilizaccedilatildeo pela diversidade inclusatildeo e

acessibilidade Em 2011 a ldquoEscola de Genterdquo idealizou a campanha ldquoTeatro

Acessiacutevel Arte Prazer e Direitosrdquo e produziu o primeiro espetaacuteculo infantojuvenil

com total acessibilidade no paiacutes o musical rock Um Amigo Diferente que se

tornou o siacutembolo da Campanha Teatro Acessiacutevel Arte Prazer e Direitos

Em 2013 entrou em vigor o Projeto de Lei 61292013 de autoria dos

deputados federais Jean Wyllys Jandira Feghali Mara Gabrilli e Rosinha Adefal

que institui o dia 19 de setembro como o ldquoDia Nacional do Teatro Acessiacutevelrdquo Para os

autores do Projeto ldquoa data ajudaraacute a divulgar a cultura por meio de atividades

cecircnicas que utilizem praacuteticas de acessibilidade fiacutesica e comunicativa a pessoas com

deficiecircnciardquo3

Accedilotildees concretas sendo pensadas e realizadas para o desenvolvimento de

poliacuteticas puacuteblicas que estejam ao encontro de praacuteticas acessiacuteveis no contexto teatral

e cultural

Leis e poliacuteticas puacuteblicas

Por muito tempo as pessoas com deficiecircncia foram vistas como um problema

familiar social e cliacutenico Consideradas ldquoaberraccedilotildeesrdquo de puniccedilotildees divinas ou doentes

incapazes essas pessoas tecircm lutado por seus direitos e conquistas de cidadania

principalmente por ocuparem seu lugar de sujeitos ativos na sociedade a que

pertencem

Por ainda muito se pensar ser um problema familiar e natildeo social a sociedade

vem deixando de dar o suporte necessaacuterio agraves pessoas com deficiecircncia quando o

que se tem eacute uma ldquodiacutevida humana e socialrdquo para com as mesmas

Simplesmente fechar os olhos e fingir natildeo estar vendo tapar os ouvidos e se

isentar de qualquer responsabilidade natildeo resolve o problema Ter acesso aos

instrumentos culturais agrave cultura eacute um direito universal e constitucional de todo e

qualquer cidadatildeo ldquoA Constituiccedilatildeo Brasileira eacute inclusiva [] natildeo eacute integradora

porque natildeo admite que apenas em determinadas condiccedilotildees o exerciacutecio dos direitos

3 Disponiacutevel em ltwwwcamaralegbrgt Acesso em 03 de julho de 2014

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humanos seja observado exercido exigidordquo (WERNECK 2012 P 62) Conforme

afirmaccedilatildeo do Artigo 215 da Constituiccedilatildeo Federal de 1988

Art 215 O Estado garantiraacute a todos o pleno exerciacutecio dos direitos culturais e acesso agraves fontes da cultura nacional e apoiaraacute e incentivaraacute a valorizaccedilatildeo

e a difusatildeo das manifestaccedilotildees culturais

A inclusatildeo da pessoa com deficiecircncia e mais especificamente o tema da

Acessibilidade Cultural tem conquistado seu espaccedilo diante do poder puacuteblico e

poliacutetico Leis de direitos satildeo aprovadas discussotildees traccediladas e reivindicaccedilotildees

formuladas A Lei Brasileira de Inclusatildeo da Pessoa com Deficiecircncia Lei 131462015

foi uma das grandes conquistas na luta pela inclusatildeo onde especifica em seu

capiacutetulo IX e artigo 42 que

A pessoa com deficiecircncia tem direito agrave cultura ao esporte ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas sendo-lhe garantido o acesso I - a bens culturais em formato acessiacutevel II - a programas de televisatildeo cinema teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessiacutevel

Sendo assim na legislaccedilatildeo mais recente que temos de defesa dos direitos da

pessoa com deficiecircncia em nosso paiacutes haacute a garantia por parte destes ao acesso

agraves atividades culturais entre elas o teatro Lei esta que origina o Estatuto da

Pessoa com Deficiecircncia ldquoum dos mais importantes instrumentos de emancipaccedilatildeo

civil e social dessa parcela da sociedaderdquo segundo o Senador Paulo Paim (autor da

Lei) que entrou em vigor no dia 02 de janeiro de 2016 O Estatuto da Pessoa com

Deficiecircncia traz regras e orientaccedilotildees para que os direitos dessa parcela da

populaccedilatildeo sejam garantidos e estabelece puniccedilotildees para atitudes discriminatoacuterias ldquoO

documento consolida as leis existentes e avanccedila nos princiacutepios da Cidadaniardquo

reitera Paim

Em seu Capiacutetulo IX ndash Do Direito agrave Cultura ao Esporte ao Turismo e ao Lazer

Art 43 prevecirc ldquoO poder puacuteblico deve promover a participaccedilatildeo da pessoa com

deficiecircncia em atividades artiacutesticas intelectuais culturais esportivas e recreativas

com vistas ao seu protagonismordquo

Outro importante marco legislatoacuterio no referente agrave acessibilidade cultural eacute o

Plano Nacional de Cultura (PNC) ldquoinstituiacutedo pela Lei 12343 de 02 de dezembro de

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2010 tem por finalidade o planejamento e implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de

longo prazo (ateacute 2020) voltadas agrave proteccedilatildeo e promoccedilatildeo da diversidade cultural

brasileirardquo (Ministeacuterio da Cultura)

Em especial a Meta 29 do Ministeacuterio da Cultura que se refere agrave

acessibilidade de espaccedilos e instrumentos culturais afirmando que

100 de bibliotecas puacuteblicas museus cinemas teatros arquivos puacuteblicos e centros culturais devem atender aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolver accedilotildees de promoccedilatildeo da fruiccedilatildeo cultural por parte das pessoas com deficiecircncia

Seguindo a linha de referenciais norteadores no tema da acessibilidade

temos como leitura obrigatoacuteria a publicaccedilatildeo do livro Nada sobre noacutes sem Noacutes

relatoacuterio final da Oficina Nacional de Indicaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Culturais para

Inclusatildeo de Pessoas com Deficiecircncia que se realizou na cidade do Rio de Janeiro

no periacuteodo de 16 a 18 de outubro de 2008 numa parceria da Secretaria da

Identidade e da Diversidade Cultural do Ministeacuterio da Cultura (SIDMinC) com a

Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Ministeacuterio da Sauacutede e com apoio da Caixa

Econocircmica Federal (CEF) Esta Oficina foi destinada a artistas gestores puacuteblicos

pesquisadores e agentes culturais da sociedade civil representativos do campo da

produccedilatildeo cultural das pessoas com deficiecircncia Conforme consta na introduccedilatildeo

desta publicaccedilatildeo o objetivo dessa oficina foi

Indicar diretrizes e accedilotildees no sentido de contribuir para a construccedilatildeo de poliacuteticas culturais de patrimocircnio difusatildeo fomento e acessibilidade para pessoas com deficiecircncia A oficina foi constituiacuteda a partir de um processo participativo e por isso adotamos o lema lsquoNada sobre Noacutes sem Noacutesrsquo

Por fim um dos documentos mais significativos de orientaccedilatildeo para poliacuteticas

puacuteblicas direcionadas agraves pessoas com deficiecircncia eacute a Convenccedilatildeo dos Direitos das

Pessoas com Deficiecircncia da ONU de 2008 em que o Brasil eacute um dos paiacuteses

signataacuterios ou seja aceitou estar juridicamente vinculado agrave obrigaccedilatildeo de tratar as

pessoas com deficiecircncia como sujeitos de direito com direitos bem definidos tal

como qualquer outra pessoa A Convenccedilatildeo eacute um Tratado Internacional de Direitos

Humanos aprovado na Assembleia Geral da ONU em 13 de dezembro de 2006 e

assinado pelo Brasil em 30 de marccedilo de 2007 Entrou em vigor em 03 de maio de

2008 apoacutes ter sido ratificado por 20 (vinte) paiacuteses membros das Naccedilotildees Unidas Eacute

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um instrumento que reafirma os princiacutepios universais (dignidade integralidade

igualdade acessibilidade e natildeo discriminaccedilatildeo) a todos os cidadatildeos em particular agraves

pessoas com deficiecircncia Tem como objetivo promover proteger e assegurar o

exerciacutecio pleno de todos os direitos humanos e fundamentais por parte de todas as

pessoas com deficiecircncia e promover o respeito pela sua dignidade

Metodologia A partir de uma pesquisa praacutetica teoacuterica 06 (seis) grupos de teatro do

municiacutepio de Porto Alegre no estado do Rio Grande do Sul foram entrevistados

respondendo um questionaacuterio com perguntas objetivas e abertas e instigados a

dialogar sobre a pauta da acessibilidade cultural no meio teatral Para uma base

analiacutetica e de avaliaccedilatildeo com os referidos grupos o estudo daraacute conta

primeiramente de discutir as Leis de Incentivo agrave Cultura uma federal ndash Lei Rouanet

uma estadual ndash LIC e um Fundo Municipal de Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural

do municiacutepio de Porto Alegre ndash FUMPROARTE transitando assim pelas trecircs

esferas governamentais

A Lei Federal de Incentivo agrave Cultura (Lei nordm 8313 de 23 de dezembro de

1991) eacute a lei que institui poliacuteticas puacuteblicas para a cultura nacional atraveacutes do

Programa Nacional de Apoio agrave Cultura (Pronac) O grande diferencial da Lei

Rouanet eacute o mecanismo de incentivos fiscais em deduccedilotildees do Imposto de Renda

(IR) fornecidos agraves empresas (pessoas juriacutedicas) e cidadatildeos (pessoas fiacutesicas) que

invistam em accedilotildees culturais em um percentual de 4 e 6 respectivamente

A Lei surgiu com o intuito de fomentar e estimular as empresas e cidadatildeos a

investirem em cultura aleacutem de efetivamente promover poliacutetica cultural em

acessibilidade Conforme sua Instruccedilatildeo Normativa Nordm 1 de 24 de junho de 2013

para propostas e projetos culturais define em seu Art 3ordm as medidas de

acessibilidade que devem ser observadas

XI ndash medidas de acessibilidade intervenccedilotildees que objetivem priorizar ou facilitar o livre acesso de idosos e pessoas com deficiecircncia ou mobilidade reduzida assim definidos em legislaccedilatildeo especiacutefica de modo a possibilitar-lhes o pleno exerciacutecio de seus direitos culturais por meio da disponibilizaccedilatildeo ou adaptaccedilatildeo de espaccedilos equipamentos transporte comunicaccedilatildeo e quaisquer bens ou serviccedilos agraves suas limitaccedilotildees fiacutesicas

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sensoriais ou cognitivas de forma segura de forma autocircnoma ou acompanhada []

Jaacute na Lei de Incentivo agrave Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (LIC) natildeo haacute

referecircncias ao campo da acessibilidade Em sua Instruccedilatildeo Normativa Nordm 01 de 29

de fevereiro de 2016 da Secretaria da Cultura do Estado (SEDAC) natildeo haacute qualquer

menccedilatildeo ao tema A LIC assim como o FAC ndash Fundo de Apoio agrave Cultura fazem

parte do Sistema Unificado PROacute-CULTURA do RS programa que consiste no apoio

e fomento agraves atividades culturais do estado

Poderatildeo ser beneficiados pela LIC projetos culturais nas aacutereas de artes

plaacutesticas e grafismos artes cecircnicas e carnaval de rua cinema e viacutedeo literatura

muacutesica artesanato e folclore acervo e patrimocircnio histoacuterico e cultural

Aprovada e sancionada em 19 de agosto de 1996 a Lei Nordm 10846 (LIC)

institui a deduccedilatildeo fiscal de ICMS em ateacute 75 do valor aplicado pela empresa em

projetos culturais sendo os outros 25 repassados pelo patrocinador ao FAC

instituiacutedo pela Lei Nordm 11706 de 18 de dezembro de 2001 que tem por finalidade

financiar projetos culturais em 100 do seu valor e fomentar a produccedilatildeo artiacutestico-

cultural do Rio Grande do Sul mas tambeacutem natildeo apresenta criteacuterios referentes agrave

acessibilidade de forma obrigatoacuteria em seus editais destinados agraves Artes Cecircnicas

mais especificamente agrave aacuterea do teatro

O Fundo Municipal de Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural do municiacutepio de

Porto Alegre (FUMPROARTE) que eacute gerido pela Secretaria Municipal da Cultura

deste municiacutepio foi criado como forma de apoio agrave produccedilatildeo artiacutestica local com a

finalidade de financiar projetos de bolsas de pesquisa e de produccedilatildeo artiacutestico-

cultural Criado pela Lei Nordm 7328 de 04 de outubro de 1993 o FUMPROARTE abre

normalmente dois concursos anuais que satildeo divulgados atraveacutes de editais puacuteblicos

Podem concorrer ao Edital de Projetos apresentados pessoas fiacutesicas ou juriacutedicas

que proponham accedilotildees em qualquer aacuterea cultural

Analisando seu uacuteltimo edital de 2015 eacute possiacutevel observar que no capiacutetulo 4

Inscriccedilatildeo no item 43 Retorno de Interesse Puacuteblico no subitem 434 consta que ldquoos

projetos poderatildeo contemplar ainda accedilotildees de promoccedilatildeo de acessibilidade para

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pessoas com deficiecircncia []rdquo O que evidencia a sua natildeo obrigatoriedade

(ldquopoderatildeordquo) do criteacuterio ldquoacessibilidaderdquo para avaliaccedilatildeo dos projetos

Propondo um melhor entendimento e relaccedilatildeo com os resultados obtidos na

pesquisa os grupos entrevistados seratildeo aqui brevemente contextualizados

Grupo Las Brujas Cia de Teatro e Feiticcedilos

Tempo de atuaccedilatildeo 05 anos Integrantes 07 pessoas

O grupo surge em 2011 e em 2012 criou o espetaacuteculo infantil ldquoA Menina do

Cabelo Vermelhordquo que atraveacutes de sua personagem ldquoFiloacuterdquo busca trabalhar a

diversidade e inclusatildeo Em 2013 o grupo firmou uma parceria com a OVNI

Acessibilidade Universal ndash empresa com sede em Porto AlegreRS que produz

audiodescriccedilatildeo (AD) e legendas para surdos e ensurdecidos (LSE) ndash e consolidou-

se como o primeiro trabalho de teatro infantil da Regiatildeo Sul a proporcionar recurso

de audiodescriccedilatildeo aberta (onde natildeo satildeo utilizados aparelhos individuais para a

recepccedilatildeo) em suas sessotildees Aleacutem de audiodescriccedilatildeo em 2014 o espetaacuteculo teve

sessotildees com traduccedilatildeo simultacircnea em Libras ndash Liacutengua Brasileira de Sinais -- para

pessoas com deficiecircncia auditiva e distribuiacuteram livros e aacuteudios-livro ao puacuteblico

presente

Teatro Sarcaustico

Tempo de atuaccedilatildeo 12 anos Integrantes 13 pessoas

Com uma formaccedilatildeo de 12 (doze) anos o grupo que surgiu dentro do

Departamento de Arte Dramaacutetica da UFRGS jaacute tem um longo caminho de trabalhos

e espetaacuteculos montados notoriamente reconhecidos pelo puacuteblico e criacutetica Sua linha

de trabalho estaacute embasada no corpo e suas manifestaccedilotildees improvisaccedilotildees intensas

textos e criaccedilotildees proacuteprias

Uma das coordenadoras do grupo comenta que ele esteve sempre tatildeo

preocupado em trabalhar se autossustentar por tratar-se de um grupo

independente que a questatildeo da acessibilidade lhes passou ldquobatidordquo Algo novo para

se pensar mas que nunca realizaram nenhuma accedilatildeo contemplando a temaacutetica e a

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falta de recursos e orccedilamentos por si soacute jaacute eacute um grande complicador para

acessibilizar espetaacuteculos

Apesar de natildeo trabalharem direto com a questatildeo da acessibilidade o grupo

estaacute preocupado em discutir e dialogar sobre a diversidade a exclusatildeo Um dos

seus uacuteltimos espetaacuteculos uma montagem infantil ndash ldquoFranky Frankenstein um

Divertido conto de Terror sobre Amizaderdquo - aborda a ldquodiferenccedilardquo a diversidade no

mundo atual

Rococoacute Produccedilotildees Artiacutesticas e Culturais

Tempo de atuaccedilatildeo 05 anos Integrantes 02 coordenadores + 10 colaboradores

diretos

A empresa e grupo de teatro Rococoacute surgem a partir de dois atores e

bailarinos que trabalham em uma linha de investigaccedilatildeo da cultura tradicionalista

gauacutecha pluralidades de linguagens e formaccedilatildeo de plateia atraveacutes de editais

prefeituras SESC educaccedilatildeo escolas oficinas e assessoria em projetos culturais

Seu uacuteltimo espetaacuteculo ldquoEra uma vezContos Lendas e Cantigasrdquo do Projeto

ldquoA Visita da Fantasiardquo eacute bastante narrativo o que acredita Henrique ajuda que

pessoas com deficiecircncia visual possam entendecirc-lo melhor Fazem tambeacutem

reconhecimento de palco cenaacuterio figurinos quando haacute alguma deficiecircncia visual

Mas Henrique expressa a dificuldade de conhecimento que se tem sobre

acessibilidade no meio artiacutestico de entendimento ldquoNatildeo se pensa no assunto natildeo

enxergamosrdquo Disse que chegaram a pensar somente quando o espetaacuteculo jaacute estava

circulando

Grupo Trilho de Teatro Popular

Tempo de atuaccedilatildeo 10 anos Integrantes 05 pessoas

O Grupo Trilho trabalha essencialmente na linha social e didaacutetica de Bertolt

Brecht e do clown nas oficinas e montagens de seus espetaacuteculos Satildeo um grupo

independente que participa de editais mas seus orccedilamentos partem mais da venda

de espetaacuteculos e oficinas

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Um dos coordenadores e fundadores do grupo fala de nunca terem

trabalhado a questatildeo da acessibilidade e nem pensarem em aplicaacute-la por

desconhecimento do assunto pela falta de recursos financeiros e por serem outras

as demandas tratadas pelo grupo mesmo que de minorias como preconceito

racismo sexualidade gecircnero a pauta da deficiecircncia nunca esteve presente

Apesar de natildeo trabalharem diretamente com acessibilidade Daniel frisa que o

teatro de rua muito presente nos espetaacuteculos do grupo por sua democratizaccedilatildeo eacute

em partes mais acessiacutevel

Associaccedilatildeo Cultural Depoacutesito de Teatro

Tempo de atuaccedilatildeo 20 anos Integrantes 06 pessoas

O Grupo Depoacutesito do Teatro eacute uma entidade cultural sem fins

lucrativos fundada em 1996 Durante todos seus anos de atuaccedilatildeo produziu e

montou mais de 25 espetaacuteculos profissionais reconhecidos pela criacutetica e puacuteblico

conquistando inuacutemeras indicaccedilotildees e precircmios do Trofeacuteu Accedilorianos e Tibicuera da

Prefeitura de Porto Alegre

O grupo tem como um de seus principais objetivos a ldquotroca humana a

constituiccedilatildeo de sujeitos criativos autecircnticos e profundamente sensiacuteveisrdquo relata o

diretor e fundador da Associaccedilatildeo Cultural Depoacutesito de Teatro Poreacutem afirma

tambeacutem nunca terem trabalho acessibilidade ou com recursos acessiacuteveis em seus

espetaacuteculos ou oficinas

Grupo Signatores (Teatro com Surdos)

Tempo de atuaccedilatildeo 06 anos Integrantes 14 pessoas

O Signatores eacute um grupo de teatro biliacutengue sendo a primeira liacutengua a Liacutengua

Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a segunda o Portuguecircs E os membros do grupo

satildeo pesquisadores e professores especialistas na aacuterea de Educaccedilatildeo e Artes da

Comunidade Surda

Todos os seus espetaacuteculos satildeo representados por atores surdos em LIBRAS

e acompanhados por personagens narradores aacuteudio em Portuguecircs Os espetaacuteculos

apresentados pelo grupo foram ldquoAventuras no Reino Surdordquo ldquoMemoacuteria na Ponta dos

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Dedosrdquo ldquoO ensaio de Alicerdquo e ldquoAlice no Paiacutes das Maravilhasrdquo O grupo jaacute foi

contemplado com vaacuterios Editais a niacutevel municipal e estadual e financiamento

atraveacutes da Lei Rouanet

Em entrevista com a diretora ela pontua as diretrizes de trabalho do

Signatores Este que tem se mostrado um grupo bastante atuante no Estado quando

o assunto eacute inclusatildeo social acessibilidade e diversidade ldquoA proposta do Grupo

Signatores eacute incentivar a formaccedilatildeo de docentes e pesquisadores na aacuterea teatral e

aproximar jovens e adultos surdos dos palcos investigando as possibilidades de

criaccedilatildeo artiacutestica dos surdos [] invertendo a loacutegica vigenterdquo

Resultados de dados

Com base no questionaacuterio aplicado no acompanhamento e entrevistas aos

grupos surgem os diferentes questionamentos quanto ao entendimento e

conhecimento sobre questotildees referentes agrave acessibilidade e suas legislaccedilotildees assim

como aplicabilidade dos recursos acessiacuteveis O Graacutefico 1 denota que a maioria dos

grupos entrevistados jaacute teve contato com tema sobre acessibilidade cultural

(pergunta 1) e em uma quase equivalecircncia jaacute trabalhou com pessoas com

deficiecircncia ou teve acesso a recursos acessiacuteveis (perguntas 2 e 3) Em sua maioria

jaacute participou de algum edital de Lei de Incentivo agrave cultura (pergunta 4)

GRAacuteFICO 1

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Jaacute no Graacutefico 2 evidencia-se o desconhecimento de Poliacuteticas Puacuteblicas e

Legislaccedilatildeo sobre o tema da acessibilidade cultural (perguntas 5 e 8) As perguntas 6

e 7 referem-se respectivamente agrave existecircncia de grupos de teatro que trabalham

com recursos acessiacuteveis em seus projetos e se haacute Casas de Teatro acessiacuteveis em

Porto Alegre Todos os grupos pontuaram a falta de um conhecimento maior e

percepccedilatildeo em relaccedilatildeo ao assunto pautado e natildeo se consideram ldquoacessiacuteveisrdquo de

forma plena e eficaz Evidenciou-se o interesse de todos em pensar discutir e

aprender mais sobre acessibilidade

GRAacuteFICO 2

Conclusotildees

Com base nos resultados obtidos com as pesquisas e discussotildees pode-se

avaliar que poliacuteticas puacuteblicas que garantam os direitos culturais das pessoas com

deficiecircncia devem transitar por todas as esferas governamentais e natildeo ficarem

restritas ao acircmbito burocraacutetico que muitas vezes as consolidam O diaacutelogo entre

poder puacuteblico Instituiccedilotildees e gestores culturais eacute de cunho fundamental para a

articulaccedilatildeo de propostas e medidas inclusivas que de fato consolidem-se no cenaacuterio

cultural

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O que temos visto ainda eacute uma consciecircncia social muito enraizada e que

precisa ser constantemente trabalhada em barreiras atitudinais que natildeo permitem

ampliar a visatildeo quando o que estaacute em pauta satildeo as deficiecircncias Sabemos que

atraveacutes da cultura e educaccedilatildeo caminharemos para um futuro mais promissor com

menos desigualdades sociais menos violecircncia mais possibilidades ldquoO teatro

permite a construccedilatildeo de mentes mais livres e de cidadatildeos mais esclarecidos e

ativosrdquo (VIGANOacute 2006 p 36)

O olhar sentir o outro satildeo premissas baacutesicas para o comunicar Natildeo haacute

construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais e humanas se natildeo houver o reconhecimento do outro

como parte integrante de nossas vidas

Natildeo basta um pouco de eacutetica uma pitada de cidadania toques de cumplicidade um quecirc de direitos fundamentais Sempre que discutirmos estes assuntos agraves uacuteltimas consequecircncias estaremos colaborando para resolver a principal questatildeo incluir pessoas com deficiecircncia [] no TODOS social incondicionalmente (WERNECK 2012 p 27)

Referecircncias BARBA Eugenio Aleacutem das ilhas flutuantes Campinas SP Hucitec 1991 BAUMAN Zygmunt Tempos Liacutequidos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 BOAL Augusto 200 exerciacutecios e jogos para o ator e o natildeo-ator com vontade de dizer algo atraveacutes do teatro 5ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo SA 1983 BOSSI Alfredo Fenomenologia do olhar In BOSSI A O Olhar Satildeo Paulo Companhia das Letras 1988 BRASIL Ministeacuterio da Cultura As metas do Plano Nacional de Cultura Brasiacutelia Ministeacuterio da Cultura 2012 Disponiacutevel em lt httpswwwplanaltogovbrccivil_03_ato2007-20102010leil12343htmgt Acesso em 21 de dezembro de 2016 BRASIL Constituiccedilatildeo Federal 1988 BRASIL Convenccedilatildeo dos Direitos das Pessoas com Deficiecircncia da ONU 2008 Disponiacutevel em lt httpwwwplanaltogovbrccivil_03_Ato2007-20102009DecretoD6949htmgt Acesso em 21 de dezembro de 2016

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KASTRUP Virinia Vergara Luiz Guilherme Cegos e videntes se encontram no museu da dicotomia agrave partilha do sensiacutevel Ineacutedito MERLEAU-PONTY Maurice Fenomenologia da Percepccedilatildeo Martins Fontes 1994 Oficina Nacional de Indicaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Culturais para Inclusatildeo de Pessoas com Deficiecircncia Nada sobre noacutes sem noacutes Relatoacuterio final 16 a 18 de outubro de 2008 Rio de janeiro Rj ENSPFIOCRUZ 2009 SANTOS Boaventura de Sousa Reconhecer para libertar os caminhos do cosmopolitanismo multicultural Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003 TOJAL Amanda Pinto da Fonseca Comunicaccedilatildeo museoloacutegica e accedilatildeo educativa inclusiva mudanccedila de paradigmas In CARDOSO Eduardo CUTY Jeniffer (Org) Acessibilidade em ambientes culturais relatos de experiecircncias Porto Alegre Marcavisual 2014 VIGANOacute Suzana Schmidt As regras do jogo a accedilatildeo sociocultural em teatro e o ideal democraacutetico Satildeo Paulo Hucitec 2006 WERNECK Claudia Ningueacutem mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva Rio de Janeiro Editora WVA 2009 WERNECK Claudia Quem cabe no seu todos Rio de Janeiro Editora WVA 2006

Page 5: Fundação Municipal de Artes de Montenegro · Priscila Mathias Rosa – Vice-diretora Executiva Márcia Moura Cordeiro Pessoa Dal Bello ... (UNL/SANTA FE) Ana Maria Haddad Baptista

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Fernando Lewis de Mattos da UFRGS em seu ensaio ldquoPluralia Tantum

reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircneardquo apresenta elementos histoacutericos da

esfera musical e discorre sobre caracteriacutesticas da muacutesica contemporacircnea Aponta

paralelamente aspectos do conservadorismo da muacutesica atual presentes em nosso

cotidiano Suas argumentaccedilotildees apoiam-se em extensa bibliografia da qual citamos

Buckinx e Koellreutter

ldquoProvocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa

das imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docenterdquo aborda o cinema como dispositivo

provocador de formaccedilatildeo docente que conforme o autor Lutiere Dalla Valle da

UFSM ldquoproduz formas de ver e ser vistordquo O texto estabelece relaccedilotildees entre arte e

subjetividade presentes na cinematografia e explora o conceito de edu(vo)cativo

identificado nas aprendizagens mediadas pelas visualidades Contribuem para as

reflexotildees Dias Fresquet e Hernaacutendes

Fernando Pinheiro Villar aborda a pluraridade do conceito de performances

artiacutesticas relacionadas ao desempenho no seu artigo PerfomanceS Para o autor o

significado de desempenho afirma a observaccedilatildeo analiacutetica de comportamentos

humanos podendo significar comportamentos que se repetem ou accedilotildees cotidianas

que satildeo ensaiadas ou preparadas e observadas Segundo o autor ldquouma performance

sem consciecircncia do fato de estar sendo vista como tal pode significar uma

performance cotidiana cultural ou socialrdquo

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel Pacircmela Goumlethel Dutra e Ana Maria Bueno

Accorsi no artigo Estudo sobre a participaccedilatildeo de estudantes em um Grupo

Instrumental apresenta a pesquisa realizada em uma escola Municipal de TaquariR

que teve como objetivo compreender a importacircncia da participaccedilatildeo dos alunos em

grupos instrumentais diante das diversas possiblidades da inserccedilatildeo da muacutesica a partir

da nova legislaccedilatildeo

Como promover a inclusatildeo social da pessoa com deficiecircncia no acircmbito cultural

eacute a preocupaccedilatildeo de Izabel Cristina da Silveira da FUNDARCRS expressa no artigo

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ldquoTeatro para quem A arte de teatrar para todos um estudo sobre

acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RSrdquo que fecha esta Revista O

estudo praacutetico-teoacuterico desvela discussotildees questionamentos e legislaccedilatildeo em torno do

tema na tentativa de buscar alternativas para a acessibilidade Barba Tojal e

Werneck satildeo alguns dos teoacutericos consultados

Agradecemos imensamente aos que enviaram seus artigos para compor a 32ordf

Revista da FUNDARTE Desejamos uma boa leitura e que as reflexotildees oferecidas

pelos autores contribuam para a busca de novos e inquietantes saberes

Maria Isabel Petry Kehrwald Conselho Editorial da Revista

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

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A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta

analiacutetica fundamentada em trecircs estudos de caso

Marcio Guedes Correa1

Instituto de Artes da Unesp

Resumo O repertoacuterio estudado nos cursos formais de muacutesica popular eacute em grande parte tonal de textura homofocircnica estruturado como melodia acompanhada No entanto eacute possiacutevel reconhecer estruturas polifocircnicas subordinadas agrave homofonia dos acompanhamentos instrumentais frequentemente realizados para acompanhar canccedilotildees Pode-se conjecturar que tais estruturas estejam presentes no repertoacuterio como um eco da polifonia vocal do renascimento e do barroco jaacute que muitas escolhas de acordes se datildeo ldquode ouvidordquo e natildeo necessariamente por uma opccedilatildeo teacutecnica e funcional em relaccedilatildeo agrave harmonia Portanto a harmonia informalmente chamada de funcional da muacutesica popular pode carregar em si diversas expectativas de direccedilatildeo ou resoluccedilatildeo que satildeo mais de ordem meloacutedica do que harmocircnica Este estudo espera contribuir para a revalorizaccedilatildeo do estudo de contraponto dentro das matrizes curriculares de muacutesica popular jaacute que eacute notoacuterio que tal disciplina vem sendo extinta do ambiente formal de educaccedilatildeo musical Palavras-chave ensino da muacutesica popular cifra alfanumeacuterica polifonia em muacutesica popular contraponto em muacutesica popular Abstract The repertoire studied in formal courses of popular music is largely tonal It has homophonic texture and itrsquos structured as na accompanied melody However it is possible to recognize polyphonic structures under the homophone of instrumental accompaniments often performed to accompany songs One can conjecture that such structures are present in the repertoire as an echo of the vocal polyphony of the Renaissance and the Baroque as many chord choices are given by ear and not necessarily by a technical and functional option with regard to harmony Therefore the functional harmony informally called popular music can load itself diverse expectations of management or resolution that are more melodic than harmonic order This study hopes to contribute to the upgrading of counterpoint study within the curriculum matrices of popular music as it is clear that this discipline is being extinguished of the formal setting of music education Keywords teaching of popular music alphanumeric cipher polyphony in popular music counterpoint in popular music

Primeiro estudo de caso o movimento meloacutedico do baixo impliacutecito na cifra do

choro em Um a Zero de Pixinguinha

No ensino do repertoacuterio popular eacute muito comum a utilizaccedilatildeo de partituras que

contecircm melodias cifradas Esta forma de registro musical oferece a melodia principal

(anaacuteloga ao cantus firmus) grafada em partitura o que garante uma certa precisatildeo

na compreensatildeo dessa camada mas todos os outros elementos componentes da

1 Graduado em Licenciatura em Muacutesica pela FAAM mestre em muacutesica pelo Instituto de Artes da Unesp Doutorando em muacutesica da Unesp ndash Instituto de Artes sob orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Sonia R Albano de Lima Contato correamarcioguedesgmailcom

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elaboraccedilatildeo musical ficam representados unicamente pela cifra alfanumeacuterica A cifra

confere ao interprete um grau de liberdade desejaacutevel na muacutesica popular mas essa

mesma liberdade pode ser em alguma medida prejudicial no ensino de muacutesica

popular quando se trata da compreensatildeo total do discurso a praacutetica aliada a

compreensatildeo racional do fazer musical

A cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular eacute em primeira instacircncia uma

representaccedilatildeo de simultaneidades mais especificamente dos acordes da muacutesica

tonal Mas da informaccedilatildeo harmocircnica que a cifra oferece eacute possiacutevel depreender

tambeacutem procedimentos meloacutedicos complementares agrave melodia principal ou seja do

contraponto impliacutecito e subordinado agrave estrutura homofocircnica Pode-se considerar que

o caso mais audiacutevel estaacute nas melodias empregadas no baixo Em cifras em que haacute

fartura de acordes com inversatildeo percebe-se uma clara intenccedilatildeo de movimentar o

baixo melodicamente ou seja de conferir a essa camada estrutural contornos

meloacutedicos associados ao seu papel de delinear as fundamentais das funccedilotildees

harmocircnicas No repertoacuterio relacionado ao choro o violatildeo de sete cordas desenvolve

a funccedilatildeo de baixo que aleacutem de reforccedilar a estrutura harmocircnica tonal estaacute em

contraponto constante com a melodia principal

A composiccedilatildeo ldquoUm a Zerordquo de Pixinguinha eacute um exemplo disso

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Figura 1 ldquoUm a Zerordquo (Pixinguinha) Irmatildeos Vitale 1997

O exemplo da figura 1 traz a primeira parte da composiccedilatildeo A quantidade de

inversotildees de acordes presente procura dar pistas da realizaccedilatildeo do baixo comumente

tocado no violatildeo de sete cordas Isso retira do baixo o papel monoacutetono de garantir a

fundamental de cada funccedilatildeo harmocircnica Com base nesta cifra o muacutesico popular de

modo anaacutelogo ao muacutesico barroco realiza o baixo Na figura dois encontra-se uma

sugestatildeo de realizaccedilatildeo do baixo com base nas cifras

Figura 2 Realizaccedilatildeo do baixo em ldquoUm a Zerordquo de Pixinguinha Imagem concebida e editada pelo autor

Segundo estudo de caso a polifonia tonal no acompanhamento da canccedilatildeo

ldquoQuando o carnaval chegarrdquo de Chico Buarque

O ensino de harmonia da muacutesica popular ldquomais especificamente aquela que

eacute informalmente denominada harmonia funcionalrdquo (ALMADA 2013 p 12) se

preocupa em primeiro lugar em determinar a funccedilatildeo de cada um dos acordes

encontrados no discurso musical Este tipo de ensino tem objetivos diversos

compreender estruturas harmocircnicas orientar a praacutetica da improvisaccedilatildeo meloacutedica

guiar estudos de rearmonizaccedilatildeo e substituiccedilatildeo de acordes entre outros Poreacutem em

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alguns casos acordes podem ser simultaneidades geradas por direccedilotildees meloacutedicas

distintas na conduccedilatildeo de cada voz ldquoNo estudo da harmonia tonal acordes podem

surgir a partir de combinaccedilotildees de linhas meloacutedicas relativamente independentesrdquo

(LIMA 2008 p 63) Ainda que tais procedimentos meloacutedicos possam natildeo ser

conscientes pelo muacutesico que desenvolve a funccedilatildeo de acompanhamento pode-se

conjecturar que sua percepccedilatildeo auditiva esteja imbuiacuteda de sonoridades

caracteriacutesticas da muacutesica vocal polifocircnica e isso em algum momento pode

transparecer em acompanhamentos instrumentais

No presente estudo de caso eacute possiacutevel observar procedimentos polifocircnicos

na conduccedilatildeo dos acordes da primeira parte da canccedilatildeo ldquoQuando o Carnaval Chegarrdquo

de Chico Buarque Em diversas entrevistas o compositor carioca revela que

aprendeu a tocar violatildeo sozinho tentando imitar o violatildeo de Joatildeo Gilberto e

portanto natildeo conhece harmonia e suas regras As escolhas de acordes feitas por

compositores autodidatas se datildeo quase unicamente por sonoridade Ou seja um

acorde eacute seguido por outro porque o som eacute satisfatoacuterio para os objetivos do

compositor Disso pode-se compreender que tais escolhas harmocircnicas estatildeo

carregadas de expectativas meloacutedicas ou seja cada acorde eacute ouvido como um

conjunto simultacircneo de notas potencialmente meloacutedicas como o satildeo no estudo da

harmonia tradicional Portanto este estudo pretende apontar para a possibilidade de

anaacutelise harmocircnica em que alguns acordes sejam considerados simultaneidades de

expectativas meloacutedicas e estes tecircm menor concordacircncia com a anaacutelise harmocircnica

ou funcional

O estudo da harmonia natildeo pressupotildee obrigatoriamente apenas simultaneidade () eacute importante que seja considerado o movimento meloacutedico de cada linha (voz) A inter-relaccedilatildeo entre melodia harmonia ritmo dinacircmica textura etc satildeo fatores que devem ser levados em conta na anaacutelise e na composiccedilatildeo de uma peccedila (LIMA 2008 p 117)

Eacute necessaacuterio estudar certas passagens harmocircnicas agrave luz da polifonia e

portanto do contraponto

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Figura 4 anaacutelise do contraponto presente na harmonia de ldquoQuando o Carnaval Chegarrdquo de Chico Buarque Imagem concebida e editada pelo autor

O exemplo da Figura 4 oferece uma opccedilatildeo de compreensatildeo harmocircnica

diferente da sugerida na partitura O primeiro acorde eacute visto como faacute meio diminuto

na primeira inversatildeo em vez de laacute menor com sexta maior como sugerido na cifra

original O acorde seguinte o primeiro grau eacute um sol maior com seacutetima maior

portanto sua sensiacutevel faacute fundamental do acorde anterior ainda estaacute presente

como um retardo O terceiro acorde embora estruturalmente se iguale ao acorde de

laacute bemol diminuto de seacutetima diminuta nessa proposta de anaacutelise se daacute pela

consequecircncia de quatro figuraccedilotildees meloacutedicas bordadura no baixo nota de

passagem no tenor retardo no contralto e antecipaccedilatildeo no soprano Portanto ele natildeo

tem menos funccedilatildeo harmocircnica e mais implicaccedilotildees meloacutedicas

Quando se prolonga todas as notas que satildeo rearticuladas nos acordes do

exemplo da figura 4 depara-se com um contraponto a quatro vozes

predominantemente de segunda espeacutecie

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Figura 5 conclusatildeo contrapontiacutestica da primeira parte da canccedilatildeo ldquoquando o carnaval chegarrdquo Imagem concebida e editada pelo autor

Portanto nesta proposta de anaacutelise harmocircnica natildeo eacute possiacutevel desconsiderar

o contraponto e implicaccedilotildees polifocircnicas

Terceiro estudo de caso contraponto cromaacutetico nas dissonacircncias acima da

seacutetima no acompanhamento da canccedilatildeo ldquosamba do aviatildeordquo de Tom Jobim

A harmonia da muacutesica popular poacutes bossa-nova conferiu ldquoemancipaccedilatildeo agrave

dissonacircnciardquo emprestando a expressatildeo de Schoenberg Portanto a dissonacircncia natildeo

mais direciona os acordes no sentido de suas resoluccedilotildees mas emprestam a eles

sonoridades instaacuteveis e de alguma maneira ao mesmo tempo resolutas As

dissonacircncias conferem certa impressatildeo a cada um dos acordes mas natildeo

apresentam funccedilatildeo de interligaccedilatildeo dos fenocircmenos harmocircnicos atraveacutes da resoluccedilatildeo

delas Esta interligaccedilatildeo novamente se daacute muito mais por expectativas meloacutedicas

embutidas como vozes simultacircneas formadoras dos acordes

Embora a emancipaccedilatildeo da dissonacircncia seja plenamente presente no

repertoacuterio popular poacutes bossa-nova em alguns casos natildeo se pode desconsiderar

estruturas contrapontiacutesticas presentes nestas composiccedilotildees Eacute claro que neste caso

especiacutefico as dissonacircncias natildeo satildeo resolvidas mas suas irresoluccedilotildees natildeo raro

recaem sobre construccedilotildees meloacutedicas em vozes internas dos acordes subordinadas

agrave melodia principal ao baixo e claro agrave harmonia

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

fundamentada em trecircs estudos de caso Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 7-14 juldez 2016

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Figura 6 contraponto cromaacutetico na canccedilatildeo ldquosamba do aviatildeordquo de Tom Jobim Imagem concebida e editada pelo autor

No fragmento musical da figura 6 eacute possiacutevel identificar uma melodia cromaacutetica

embutida nas dissonacircncias acima da seacutetima A partir do compasso 5 as notas doacute

doacute si e laacute satildeo respectivamente deacutecima terceira maior deacutecima terceira menor

deacutecima segunda e deacutecima primeira aumentada do acorde de mi maior com seacutetima

menor Essas dissonacircncias constroem uma melodia cromaacutetica um contraponto

cromaacutetico

Essa melodia eacute imitada a partir do compasso 7 uma seacutetima maior abaixo nas

notas reacute do do e si respectivamente deacutecima primeira justa deacutecima maior deacutecima

menor e nona maior dos acordes laacute maior com seacutetima maior e laacute menor com seacutetima

menor A melodia cromaacutetica original e sua imitaccedilatildeo uma seacutetima menor abaixo

comeccedilam e terminam em dissonacircncia

Consideraccedilotildees Finais

As propostas aqui apresentadas pretendem apontar para uma contribuiccedilatildeo

dos gecircneros de muacutesica erudita na estruturaccedilatildeo do ensino da muacutesica popular mais

especificamente buscam valorizar o estudo da disciplina contraponto Talvez as

estruturaccedilotildees dos curriacuteculos de cursos de muacutesica possam ser de certo modo

exclusivamente populares apenas na escolha do repertoacuterio a ser aprendido e ainda

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CORREA Marcio Guedes A polifonia tonal na cifra alfanumeacuterica da muacutesica popular uma proposta analiacutetica

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assim persiste a discussatildeo do que vem a ser muacutesica popular e muacutesica erudita e se

essa fronteira existe com tanta clareza No acircmbito da estruturaccedilatildeo teacutecnica e teoacuterica

a hibridez dos conhecimentos historicamente categorizados como de muacutesica erudita

e popular parece ser inevitaacutevel O estudo do contraponto parece ainda ser

indispensaacutevel para fomentar uma compreensatildeo mais ampla do saber musical em

diversos acircmbitos em diferentes gecircneros e estilos

Referecircncias

ALMADA Carlos Contraponto em muacutesica popular fundamentaccedilatildeo teoacuterica e aplicaccedilotildees Rio de Janeiro Editora UFRJ 2013

BORTZ Graziela Direccedilatildeo e Movimento em Solfejos Tonais Percepta ndash revista de cogniccedilatildeo musical Curitiba 1 (1) 95-107 novembro de 2013 CARRASQUEIRA Maria Joseacute O melhor de Pixinguinha Songbook Satildeo Paulo Irmatildeo Vitale 1997 LIMA Marisa Ramirez Rosa de Harmonia Satildeo Paulo Embraform 2008 LIMA Sonia Regina Albano de Performance e interpretaccedilatildeo musical uma praacutetica interdisciplinar Satildeo Paulo Musa Editora 2006 NOGUEIRA Marcos Fernandes Pupo Agrupamentos Sonoros Plenos na Muacutesica de Simultaneidades Acuacutesticas e Estruturais Revista Muacutesica Hodie Goiacircnia v12 nordm 2 p87-972012 Disponiacutevel em lthttpwwwmusicahodiemusbr122artigo_7pdfgt Acesso em 07 de dezembro de 2016 SCHOENBERG Arnold Exerciacutecios Preliminares em Contraponto Traduccedilatildeo de Eduardo Seincman Satildeo Paulo Via Lettera 2001

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Fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo com Paul Valeacutery espiritografias

Idalina Krause de Campos1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo Este artigo analisa as possibilidades de um fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo tendo como foco o poeta e pensador francecircs Paul Valeacutery e seus procedimentos muacuteltiplos de escrita uma escrita que opera com a leitura ― escrileitura ― e eacute considerada uma operaccedilatildeo ativa de consciecircncia que possibilita ampliar o uso das faculdades intelectivas de um espiacuterito que lecirc e escreve Propotildee atuar e operar com o meacutetodo do informe em atravessamentos imaginativos da filosofia com a literatura e a educaccedilatildeo da diferenccedila aleacutem de utilizar o conhecimento como invenccedilatildeo por meio de procedimentos tradutoacuterios que possibilitem accedilotildees criadoras em educaccedilatildeo Palavras-chave Valeacutery educaccedilatildeo escrileituras traduccedilatildeo Abstract This paper analyzes the possibilities of a translating action in education by focusing on the French poet and thinker Paul Valeacutery and his multiple writing procedures a kind of writing that operates with reading ― reading-writing ― and is considered as an active operation of awareness that favors the use of intellective faculties of a spirit that reads and writes It proposes to act and operate with the inform method in imaginative intersections between philosophy literature and education of difference besides using knowledge as invention by means of translating procedures that enable creation actions in education Keywords Valeacutery education reading-writings translation

Introduccedilatildeo

O escritor Paul Valeacutery nasceu em Segravete (1871) Comuna francesa no periacuteodo

da Guerra Franco-Prussiana A porta para o mar do Mediterracircneo eacute um porto de

encantos incomparaacuteveis de um horizonte vasto banhado pelas aacuteguas de bacias e

canais que desaacuteguam no mar O pensador eacute autor de uma obra vasta

profundamente original que possui uma intensidade uacutenica e merece ser analisada

em funccedilatildeo de seu movimento de escrita e leitura (escrileitura) pois ele pesquisou

1 Possui graduaccedilatildeo em Licenciatura e Bacharelado em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul (1986) Especializaccedilatildeo em Filosofia Cliacutenica pela Faculdade Joatildeo Bagozzi e Instituto Packter

(2008) Mestrado em Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo (PPGEDU) pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (2013) na Linha Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo Atualmente eacute Doutoranda bolsista CAPES

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo na Linha

Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo Participa como pesquisadora dos projetos Dramatizaccedilatildeo do infantil na

comeacutedia intelectual do curriacuteculo meacutetodo Valeacutery-Deleuze Escrileituras um modo de ler-escrever em meio agrave

vida e Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila Membro integrante do BOP

ndash Bando de Orientaccedilatildeo e Pesquisa da Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferenccedila e Educaccedilatildeo e do Grupo de

Pesquisa DIF ndash artistagens fabulaccedilotildees variaccedilotildees

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estudou e escreveu sobre conteuacutedos integrantes das mais diversas aacutereas do

conhecimento e que satildeo repletos de nuances e de viva poesia

Tal perspectiva oriunda de seus escritos propicia utilizar o conhecimento

como invenccedilatildeo para criar um compoacutesito de escrita e leitura e com ele produzir

meios que possibilitem accedilotildees criadoras em educaccedilatildeo o que propicia ao espiacuterito

construir a sua proacutepria realidade no campo ambiental da linguagem

Ainda em seus primeiros anos de vida o Mediterracircneo que banha a cidade

torna-se uma festa aos olhos curiosos do infante Valeacutery que considera tudo das

cores aos cheiros das formas agraves imagens de uma natureza exuberante ldquouma

verdadeira loucura de luz combinada com a loucura da aacuteguardquo (VALEacuteRY 2011 p

127) Satildeo seus primeiros passos de pensador e que trazem em germe um pensar

em estado nascente pois se deixa seduzir pela liberdade pelos estados poeacuteticos

com um olhar voltado para o mar o que eacute tambeacutem um olhar para o possiacutevel

Os olhos de Valeacutery abraccedilam o que haacute de humano e de inumano em uma

paisagem de natureza primitiva quase intocada mesclada com as atividades dos

homens que ali habitam Um grande cenaacuterio de teatro cujo personagem principal eacute

a luz que ilumina o mar Ali onde Afrodite passeia e que ao cair da tarde

crepuscular com o mar jaacute escuro deixa ver na rebentaccedilatildeo brilhos extraordinaacuterios

Onde a luz de fogo rosa insistente do sol daacute seu adeus ao dia deixando que entre

em cena a escuridatildeo da jaacute noite onde se entreveem os fantasmas que danccedilam

sobre as torres e muros de Aiguesmortes Sombras que festejam os cadaacuteveres

pesados dos atuns animais quase do tamanho de um homem trazidos pelos barcos

de pesca que adentram a costa em seu ldquoretorno da cruzadardquo (VALEacuteRY 2011 p

130)

Ao amanhecer a peccedila teatral do viviacutevel segue e a luz dos raios solares

derrama-se pelos molhes Eacute quando o pequeno Valeacutery tenciona banhar-se na

imensidatildeo cristalina do mar Poreacutem baixa os olhos e estremece diante de uma cena

singular que mistura carnificina e beleza Jazem sobre a ldquoaacutegua maravilhosamente

lisa e transparenterdquo restos de ldquoviacutesceras e entranhas de todo o bando de Netunordquo

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(VALEacuteRY 2011 p 130) Satildeo muacuteltiplas tonalidades de cores roacuteseo-puacuterpuras coral

sanguinolenta vermelhidatildeo de uma mortandade repulsivamente sinistra embalada

pelas ondas letaacutergicas

O espanto eacute inevitaacutevel e o faz esquecer o banho matinal Mas apesar do

susto que invade sua alma os olhos guardam alguma admiraccedilatildeo pelo

acontecimento fazendo vagar pensamentos relacionando o morticiacutenio repleto de

cores com imagens espectrais Misturas de tonalidades imersas na aquosidade de

um liacutempido e cristalino mar que poderiam bem servir para um fazer artiacutestico aos

homens de talento afeitos agraves curiosidades e agraves capturas de um olhar artistador

Natildeo perdura nessa imagem repentina o conteuacutedo pobre mas como pondera

Deleuze em O Esgotado (2010 p 85) vale nessa visatildeo a energia condensada ldquoa

prodigiosa energia captada prestes a explodir fazendo com que as imagens nunca

durem muito tempo [] A imagem dura o tempo furtivo de nosso prazer de nosso

olharrdquo Assim aparece a forccedila de sentimento de Valeacutery influenciado e estimulado

pelas deidades poeacuteticas do mar do ceacuteu e do sol

E o que decorre disso tudo eacute uma produccedilatildeo intelectual que foca em muacuteltiplas

temaacuteticas tendo como pano de fundo o funcionamento do intelecto atraveacutes de

accedilotildees de pensar o proacuteprio pensamento para verificar o que estes pensamentos

implicam Uma produccedilatildeo que abarca o viviacutevel e que merece ser investigada como

um meio possiacutevel para ser apropriado no acircmbito do ensino contemporacircneo em

funccedilatildeo de sua diversidade e de sua potecircncia textual

Pelo que foi possiacutevel observar em nossas pesquisas Valeacutery configura-se num

misto de poeta de pensador e de criacutetico da cultura tendo sido traduzido por

escritores e tambeacutem por poetas em vaacuterios idiomas No entanto apesar de possuir

um reconhecimento internacional pelo conjunto de suas obras produzidas eacute ainda

pouco explorado no Brasil especialmente no que tange ao uso teoacuterico e praacutetico do

seu pensamento no campo da educaccedilatildeo

Em suma como afirma Gonccedilalves (2011 p 238) Valeacutery eacute O Alquimista do

Espiacuterito ldquodevido ao seu sistema plural de linguagensrdquo em que ocorrem

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transmutaccedilotildees de montagem e desmontagem de escrita Uma verdadeira alquimia

contraacuteria agrave anestesia do gesto para que uma segunda natureza possa se apresentar

ao texto atraveacutes de um operar espiritual em constante variaccedilatildeo e que neste fazer

operativo produz uma escrita visceral e mutante cuja mateacuteria eacute a vida que se

experimenta no campo do saber como um processo aberto muacuteltiplo e desafiador

para assim buscar fazer com ele uma educaccedilatildeo disposta a disseminar as aventuras

do pensamento

Espiacuterito

Valeacutery utiliza-se da palavra francesa esprit para aludir ao Eu embora haja em

seu pensamento a distinccedilatildeo entre dois tipos de espiacuterito Moi que seria o Eu

empiacuterico (self-variance) e Moi que seria o Eu puro (Idolle de lrsquoIntelect) a ser

cultuado e buscado Este uacuteltimo conceito de Eu puro necessita ser entendido com

uma significaccedilatildeo peculiar qual seja o Eu como intelecto como inteligecircncia

Nessa perspectiva o presente artigo aborda um possiacutevel fazer tradutoacuterio em

educaccedilatildeo conjuntamente com o pensador Paul Valeacutery de modo a buscar atraveacutes

do movimento de leitura e escrita exercitar conscientemente os pensamentos que

possibilitam transitar no campo diverso do saber

O espiacuterito ndash ou Eu-empiacuterico ndash desenvolve-se conscientemente exercitando os

processos do pensar com a finalidade de conhecer Pensamento ativado via

processos de criaccedilatildeo oriundos de uma self-variance (autovariaccedilatildeo do espiacuterito)

disciplinada e rigorosa passando a verificar o que esses pensamentos implicam

procurando vecirc-los com precisatildeo e pesquisar seus labirintos sua mecacircnica psiacutequica

iacutentima e seu meacutetodo operativo

Valeacutery (2011 p179) conceitualiza as accedilotildees do pensar as invenccedilotildees

produzidas pela inteligecircncia onde o Eu-empiacuterico que se utiliza da leitura e da

escrita e consequentemente pensa define-se ldquoatraveacutes da relaccedilatildeo entre um 2010 p

85) certo lsquoespiacuteritorsquo e a linguagemrdquo Ou seja pondo em movimento um Eu-funcional

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pode-se desenvolver uma consciecircncia do processo do pensar para fins de

conhecimento expressos por intermeacutedio da linguagem

Espiacuterito este visto como um sujeito que natildeo se assujeita mas aspira agrave

criaccedilatildeo e a realiza sem divindade reguladora sem idealismo (Eu absoluto do

Idealismo Alematildeo) e distante da metafiacutesica da alma imortal (Eu substancial do

racionalismo de Descartes) Portanto o Eu puro valeacuteryano natildeo guarda uma

moralidade consistindo na invariabilidade naquilo que natildeo muda no espiacuterito O

espiacuterito eacute abordado como um signo de pura possibilidade de uma virtualidade ao

qual o Eu empiacuterico aspira e tende Eu que passa por uma ascese e encontra-se ―

purificado de paixotildees de outros iacutedolos e idolatrias ― de forma a se tornar liberto

para agir e pensar

A nossa pesquisa da escrita valeacuteryana gera e explora meios de afirmar e de

proporcionar possibilidades criadoras em educaccedilatildeo justamente porque ndash como

salienta Corazza (2010 p 2) ndash o espiacuterito humano enfrenta dificuldades para pensar

o informe de maneira que necessitamos ldquode uma Educaccedilatildeo ou pedagogia dos

sentidos associando a vivecircncia dos limites formais com a criaccedilatildeo artistadorardquo

A pesquisa trata portanto de um fazer compositivo de escrita de uma praacutetica

de ensino numa construccedilatildeo conjunta com a obra de Valeacutery que busca o valor do

pensar humano observa seu funcionamento e sua accedilatildeo fecunda de pensar Por seu

intermeacutedio construiacutemos operaccedilotildees escrileitoras tradutoacuterias (escrita-leitura e leitura

escrita) capturando as forccedilas que aproximam percepccedilatildeo e criaccedilatildeo

Pensamos que a Filosofia da Diferenccedila pode servir-se das pesquisas deste

poeta-pensador como um disparador de escrita que busca um novo modo de ver e

de pensar o pensamento no qual a linguagem a verdade a consciecircncia de si satildeo

inseparaacuteveis e inter-relacionadas Pensar que possibilita o alargamento das

fronteiras da linguagem educacional na medida em que quebra concepccedilotildees

filosoacuteficas e cientiacuteficas consideradas verdadeiras e incontestaacuteveis

Inter-relaccedilatildeo na qual o espiacuterito Estudante-Escritor- Educador (EEE) estaacute

sempre se autoproduzindo por via de uma self-variance num processo contiacutenuo de

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geraccedilatildeo de sentidos imanentes singulares e particulares os quais reivindicam

novas possibilidades de invenccedilatildeo de emissatildeo de signos que se inscrevem para

escriturar sentidos oriundos das sensaccedilotildees num empirismo de pensar constante

cujos procedimentos implicam necessariamente o campo do vivido Pesquisamos

nesse processo variante o ambiente humano por entre dramas e comeacutedias do

vivido no campo educacional ou ainda uma dracomeacutedia humana repleta de

potenciais vicissitudes que servem como disparadores para uma invenccedilatildeo

produtora de escrita texto-manifesto exposto por via da linguagem e suas

convenccedilotildees

Meacutetodo

O meacutetodo utilizado na pesquisa eacute o do informe que desenvolve um tipo de

pesquisa que possibilita enfrentar a dificuldade de pensar o informe Meacutetodo este

que se interroga e que varia durante todo o processo de sua execuccedilatildeo natildeo

possuindo um regramento estanque ou dogmaacutetico o que baniria o prazer do

inusitado

Esse meacutetodo age atraveacutes de capturas das forccedilas dos textos das imagens

das musicalidades das vozes e dos conhecimentos isto eacute de tudo que deveacutem em

vida potente e que possa ser adequado agraves praacuteticas de ensino pois conforme Valeacutery

(1997 p 59) ldquoeacute o que contenho de desconhecido a mim mesmo que me faz ser eu

mesmordquo

Na praacutetica o que observamos eacute um desejo que ronda ldquocomo uma mina a ceacuteu

abertordquo (BARTHES 2013 p12) que propicia criar uma fantasia de exploraccedilatildeo e por

intermeacutedio dela construir um ritmo proacuteprio de accedilatildeo exploratoacuteria um como para viver

junto com vida e obra de determinado pensador saboreando cotidianamente

ldquobocados de saber = pesquisardquo Assim por entre bocados de pesquisa esse meacutetodo

produz ficccedilatildeo de modo que ldquoos pesquisadores capturam forccedilas imaginaacuterias

fantasiacutesticas e intelectuais que os conduzem ao trabalho criadorrdquo (CORAZZA 2012

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p19) levando o espiacuterito a experimentar um novo fazer ou seja uma pesquisa gaia

na educaccedilatildeo contemporacircnea

Por este vieacutes tal meacutetodo busca dar adeus agraves metanarrativas de ambiccedilatildeo

universal insistente nos entremeios do territoacuterio educacional Sua ambiccedilatildeo universal

eacute hermeacutetica e portanto falha pois impede uma discussatildeo que se quer aberta e natildeo

reprodutora de conhecimento Esta abertura pode trazer ao proacuteprio curriacuteculo e agrave

didaacutetica um entoar de novas vozes capazes de compor narrativas novas fazendo

na accedilatildeo de ensinar um espaccedilo criacutetico um lugar puacuteblico para discussotildees diversas

Ou seja capturar o que ateacute entatildeo foi excluiacutedo ou natildeo contemplado nas

metanarrativas em funccedilatildeo de sua supressatildeo por natildeo pertencerem aos dogmas

ditos universais Busca-se assim o vatildeo o desvio o detalhe tendo a linguagem

como movimento isto eacute em fluxo constante no movimento de criaccedilatildeo

Desse modo aquilo que sabemos que nos pertence natildeo conta pois

procuramos o que natildeo foi ainda construiacutedo o que resta para ser adquirido

transformado e que se anuncia nos entremeios dos textos Sendo assim a literatura

a filosofia e a educaccedilatildeo entrecruzam-se visto que seus conhecimentos e saberes

satildeo investigados por via das proacuteprias escrileituras que interrogam as tramas

compositivas do intelecto

Pode-se tambeacutem afirmar que o referido meacutetodo tem apreccedilo pelo espiacuterito

crianccedila ― que jamais deveria morrer em noacutes ― pois que ele traz em si a forccedila da

curiosidade da persistecircncia da descoberta haacute neste espiacuterito pagatildeo e poeta um

infinito de possibilidades Como elucida Eduardo Galeano em entrevista chamada eacute

Tempo de viver sem medo2 ldquoeacute preciso olhar o que natildeo se olha o que merece ser

olhado tanto o micro mundo e ao mesmo tempo sermos capazes de contemplar o

universordquo E para tanto eacute preciso se ter uma visatildeo microscoacutepica e outra telescoacutepica

para assim tentar desvendar o que haacute de misterioso na existecircncia

2 Entrevista de Eduardo Galeano disponiacutevel em canal moritz Ptnet acesso em 05 de julho de

2016

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As escrileituras produzidas em uma praacutexis do informe portanto satildeo criadas

em conjunto com os meandros labiriacutenticos e espirituais dos quais nos ocupamos

escolhidos pela apaixonada necessidade de escrever Natildeo se verifica uma doutrina

mas um meacutetodo para operaccedilotildees espirituais tracircnsitos pelos macros e micros

mundos ofertados pelo existir Os espiacuteritos operam em variaccedilatildeo e lanccedilam um novo

olhar para o que ainda natildeo foi visto ou seja o que ainda ignoramos e com estes

novos elementos do que se detecta surgem vatildeos e frestas que propiciam uma

composiccedilatildeo de escrita viva

Sendo assim o meacutetodo do informe nada mais eacute do que um fazer mutante

avesso ao sedentarismo intelectual um ato fiacutesico corporal posto em movimento

atraveacutes de estudos e pesquisas abrindo possibilidades para que o espiacuterito trabalhe

e medite sobre a produccedilatildeo de uma obra ― de um espiacuterito criador ― numa atitude

interrogativa transformada em problema que questiona pelo vieacutes de Valeacutery (2011 p

200) O que a obra produz em noacutes

Todo corpo posto em atividade eacute energia despendida e tambeacutem adquirida a

todo instante um organismo em constante mutaccedilatildeo Uma forma fluente ― referida

por Duns Scot como um onde ou (ubi) ― e capaz de uma determinaccedilatildeo qualitativa

anaacuteloga ao calor adquirido pelo corpo que se aquece atraveacutes do contato e do

contaacutegio com outros corpos que os circundam E nesta metamorfose contiacutenua e

energeacutetica o espiacuterito se propotildee a buscar maior lucidez para o intelecto e conhecer a

fundo a problemaacutetica a que se propotildee num exerciacutecio que se realiza atraveacutes de um

nomadismo de pensamento ativo sempre em deslocamento que busca o novo

De fato com o espiacuterito entendido desde a perspectiva valeacuteryana atraveacutes dos

movimentos de escrileituras da pesquisa com o artifiacutecio da literatura movimentamos

uma malha intelectiva que possibilita a construccedilatildeo de espiritografias Ou seja vamos

ao mundo de um espiacuterito e com ele escrevemos a partir de um estudo de vida e de

obra ou de uma Vidarbo Trata-se do interesse ldquopor Vida (Biografia) e por Obra

(Bibliografia) Soacute que em vez de Vida e Obra tomadas em separado ou uma

derivada e mesmo causa da outra trata de Vidarbordquo (CORAZZA 2010) tomada

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conjuntamente Essas operaccedilotildees das faculdades intelectivas repletas de afecccedilotildees

permitem e compotildeem o meacutetodo do informe como um mecanismo que exige um tipo

de construccedilatildeo no qual o inesperado eacute condiccedilatildeo processual

Projetos

Essas operaccedilotildees de meacutetodo do informe tiveram suas experimentaccedilotildees e

pesquisas empiacutericas cultivadas em trecircs projetos desenvolvidos pela pesquisadora e

professora doutora Sandra Mara Corazza e seus orientandos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica

mestrado e doutorado na Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferenccedila em

Educaccedilatildeo integrante do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo (PPGEdu) da

Faculdade de Educaccedilatildeo (FACED) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS) quais sejam Dramatizaccedilatildeo do infantil na comeacutedia intelectual do curriacuteculo

meacutetodo Valeacutery-Deleuze (2010) Escrileituras um modo de ler-escrever em meio agrave

vida e Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila

(2014 ndash 2019)

O projeto atual almeja complementar correlacionar e consolidar a formaccedilatildeo

de professores-pesquisadores atraveacutes da observaccedilatildeo e anaacutelise dos resultados e

impactos das produccedilotildees oriundas das trecircs pesquisas investigando um curriacuteculo e

uma didaacutetica da diferenccedila visando criar e fortalecer a ampliaccedilatildeo e a consolidaccedilatildeo

da qualidade de uma pesquisa-docecircncia

Desde o iniacutecio o meacutetodo do informe apontava para um tipo de pesquisa

construcionista enquanto um convite para estudos e praacuteticas de escrita as quais

atraveacutes das aventuras do intelecto facultam ao espiacuterito construir a sua proacutepria

realidade no campo ambiental da linguagem pensando o informe com Valeacutery e sua

Comeacutedia Intelectual e com Deleuze e o seu Meacutetodo de Dramatizaccedilatildeo aleacutem de

recorrer tambeacutem a Roland Barthes e ao seu conceito de Biografemaacutetica (CORAZZA

e OLIVEIRA 2015)

O Projeto Escrileituras (2011-2015) apoiado pelo Programa Observatoacuterio da

Educaccedilatildeo (CAPESINEP) teve como proposiccedilatildeo um fazer-educaccedilatildeo por meio de

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Oficinas abrindo assim possibilidades de criaccedilatildeo de escrileituras em educaccedilatildeo

Oficinas que tinham em sua percepccedilatildeo criaccedilatildeo e desenvolvimento dois meios

possiacuteveis para movimentos experimentais de escrita a formaccedilatildeo que acompanhava

os bolsistas e pesquisadores participantes e cursos e accedilotildees de extensatildeo oferecidos

a professores da Educaccedilatildeo Baacutesica

Totalizando um registro de 570 oficinas desenvolvidas pelo projeto foi

desenvolvida a Oficina espiritograacutefica de co-criaccedilatildeo dialoacutegica propondo aos

participantes um exerciacutecio de pensamento valeacuteryano que explorasse a forma de

escrita ldquodiaacutelogordquo atraveacutes de textos filosoacuteficos e literaacuterios que tratavam do tema

A oficina buscava pensar de forma luacutecida condiccedilotildees de criar personagens

que pensam o proacuteprio pensamento afirmando o espiacuterito que opera e escreve com

prazer ciente ldquoque cada um eacute a medida das coisasrdquo (VALEacuteRY 2011) E atraveacutes

desta empiria de escrita proposta na oficina proporcionou um aporte teoacuterico e

praacutetico para composiccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de mestrado Alfabeto espiritograacutefico

escrileituras em educaccedilatildeo (CAMPOS 2013)

Espiritografia

Dessa accedilatildeo empiacuterica a palavra espiritografia comeccedila a tomar forccedila nas

pesquisas possibilitando ao espiacuterito escrileitor investigar outros Espiacuteritos e suas

vidarbos e com eles passar a criar procedimentos capazes de promover uma

produccedilatildeo de escrita espiritograacutefica experimental que se ocupa de erracircncias acasos

e o inusitado e que se configura em uma tese intitulada A Educaccedilatildeo da Diferenccedila

com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico (CAMPOS 2015) com proposta jaacute

qualificada em 2015 e com defesa final prevista para 2017

Deste modo o espaccedilo curricular afirmava-se de maneira transversal com a

filosofia com as artes e com as ciecircncias tomando para si a tarefa de compor um

curriacuteculo como uma construccedilatildeo aberta fazendo dos conhecimentos que se colocam

em movimento um compoacutesito multidimensional de leitura e de escrita potenciais

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Assim o Projeto Escrileituras optou por afirmar um curriacuteculo mutante

provocando com isso que sua didaacutetica tambeacutem o fosse Ou seja didaacutetica e

curriacuteculo possibilitaram atraveacutes das Oficinas a ampliaccedilatildeo da visatildeo de mundo por

via do conhecimento que serve como um disparador para a edificaccedilatildeo de outros

mundos possiacuteveis isto eacute um modo de viver e de ldquomaquinar a educaccedilatildeo com prazer

aventureiro e espiacuterito aventurosordquo (CORAZZA 2014)

Abrindo dobras na pesquisa foi possiacutevel falar e escrever sobre Autor

Infacircncia Curriacuteculo e Educador ndash unidades analiacuteticas referidas como AICE e

integrantes de procedimentos didaacuteticos Jaacute o curriacuteculo foi composto pelas seguintes

unidades analiacuteticas Espaccedilos Imagens e Signos (EIS) os quais satildeo postos em

movimento por meio de um nomadismo intelectual experimentado no proacuteprio

territoacuterio da educaccedilatildeo valendo-se dos procedimentos muacuteltiplos de escrita de Valeacutery

para um fazer tradutoacuterio em educaccedilatildeo

Atraveacutes de um Meacutetodo do Informe utilizando o conhecimento como invenccedilatildeo

que por via de transbordamentos de pesquisa esses elementos possibilitaram criar

um novo meacutetodo chamado espiritograacutefico ndash defendido na tese A Educaccedilatildeo da

Diferenccedila com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico (CAMPOS 2015) ndash pelo qual foi

possiacutevel a criaccedilatildeo de alguns tipos de espiritografias tradutoacuterias como Plagiotroacutepica

Imageacutetica Mise en Scegravene Desviante Extra-Ordinaacuteria Jogada Aula-Empiacuterica

Poeacutetica

Escrever eacute traduzir conforme afirma Valeacutery na eacutepoca em que traduzia as

Bucoacutelicas de Virgiacutelio (1944) destacado no livro de Haroldo de Campos (2013)

Transcriaccedilatildeo

Escrever o que quer que seja desde o momento em que o ato de escrever exige reflexatildeo e natildeo eacute uma inscriccedilatildeo maquinal e sem detenccedilas de uma palavra interior toda espontacircnea eacute um trabalho de traduccedilatildeo exatamente comparaacutevel agravequele que opera a transmutaccedilatildeo de um texto de uma liacutengua em outra (VALEacuteRY apud CAMPOS 2013 paacuteg61-62)

Essas forccedilas operativas da escrita (e da leitura) servem como impulso para

uma trajetoacuteria autoconsciente do espiacuterito que se aventura entre rasuras em busca

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do novo Produzindo uma escrita tradutoacuteria aberta sujeita a interaccedilotildees e oscilaccedilotildees

oriundas daquele espiacuterito que age sobre o texto criamos uma didactique da

novidade da erracircncia de AICE que pode gerar intranquilidade pois caccedila em meios

muacuteltiplos de escrita ― rigorosa e complexa ― seus desdobramentos enigmaacuteticos

perseguindo a exatidatildeo dos sentidos por entre Espaccedilos Imagens e Signos (EIS) do

Curriacuteculo

Sendo assim AICE (Didaacutetica) e EIS (Curriacuteculo) tomam para si uma poeacutetica de

pesquisa que se quer empiacuterica num processo de releitura e de reescrita do viviacutevel

no campo educacional e que acabam produzindo um diferencial curricular e didaacutetico

da diferenccedila visto que criam novas epistemes possibilitando ldquopensar uma didaacutetica e

um curriacuteculo tradutoacuteriosrdquo (CORAZZA 2014 p5)

Em seu texto A Tentaccedilatildeo de (Satildeo) Flaubert Valeacutery (2011) escreve sobre a

diaboacutelica tentaccedilatildeo humana e poeacutetica de provocar uma escrita amebiana como meio

para um jogo escritural do viviacutevel pois viver eacute a todo instante sentir falta de alguma

coisa e modificar-se para atingi-la para desse modo tender a substituir-se no

estado de sentir falta de alguma coisa Trata-se de um movimento corpoacutereo como o

feito pela ameba ou seja de transubstanciaccedilatildeo com o objeto amado pois ldquovivemos

do instaacutevel pelo instaacutevel no instaacutevel essa eacute a funccedilatildeo completa da Sensibilidade

que eacute a mola diaboacutelica da vida dos seres organizadosrdquo (VALEacuteRY 2011 p 83)

Essas perspectivas poeacuteticas sobre escrita leitura curriacuteculo e didaacutetica

possibilitam no espaccedilo da aulaoficina a emergecircncia de procedimentos

interpretativos das mateacuterias curriculares que funcionam como meio de invenccedilatildeo

recriando assim culturas e discursos atraveacutes de exerciacutecios rigorosos cocircmicos e

dramaacuteticos do pensamento Nesse sentido como um espaccedilo de ficccedilatildeo a aula eacute

planejada para que de algum modo funcione como um laboratoacuterio coletivo em que

se examina e promove-se a educaccedilatildeo do espiacuterito

Assim satildeo promovidos encontros imanentes que fornecem coordenadas

para o pensamento criacutetico que eacute experimentado num empirismo transcendental no

qual ldquoa Ideia natildeo eacute o elemento do saber mas de um lsquoaprenderrsquo infinitordquo (DELEUZE

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2006 p310) Nesse tipo de empirismo o que vale eacute o valor agregado ao espiacuterito

das forccedilas que do pensamento se apossa e que satildeo capazes de produzir novas

imagens que enunciam e novamente atualizam o pensar Com textos literaacuterios os

espiacuteritos escrileitores em movimentos de self-variance passam a acompanhar

essas danccedilas dramaacuteticas em meio agrave vida in-formada

Trata-se de um pensar vivo capaz de escriturar novos sentidos e de inscrever

signos que satildeo vitalmente transcriados pois operam para ldquoatravessar a ortodoxia

dos textosrdquo (CORAZZA 2014) e com eles criar uma escrita indomesticada criacutetica e

vivificadora Damos assim vida a uma nova praacutexis de ensino capaz de construir

espiritografias na qual o espiacuterito age por si enquanto move-se entre leituras e

escritas Espiacuterito que se interroga observa o proacuteprio fazer da escrita literaacuteria que

tem como tarefa anotar borrar fazer muacuteltiplas reflexotildees combinaccedilotildees tentativas e

falhas

Notemos que o espiacuterito ocupa trecircs lugares funcionais em seu laboratoacuterio

proacuteprio quais sejam EEE ndash o de Estudante (espiacuterito em curso tradutoacuterio de escrita)

o de Escritor (espiacuterito autor tradutor e transcriador) e o de Educador (espiacuterito em

exerciacutecio de traduccedilatildeo no exerciacutecio do magisteacuterio) Eacute esse atravessamento entre

lugares que movimenta EIS (Curriacuteculo) e AICE (Didaacutetica) os quais pela via da

traduccedilatildeo satildeo reimaginados Vislumbramos de acordo com Corazza (2013 p 219)

um fazer tradutoacuterio ldquopara aleacutem do literalismo rudimentar e da banalidade explicativardquo

que daacute nova vida ao educador-artista e cujas traduccedilotildees ldquopoderatildeo por vezes tornar-

se mais importantes que os originaisrdquo pois se configuram como uma ldquoestrateacutegia de

renovaccedilatildeo dos sistemas educacionais e culturais contemporacircneosrdquo

Experimentaccedilotildees

A partir do desenvolvimento de algumas Oficinas de Transcriaccedilatildeo durante o

Projeto Escrileituras continuamos estudando e pesquisando o pensamento de

Valeacutery na direccedilatildeo de construir tipos de espiritografias como uma praacutetica que

promove novos movimentos que tomam as unidades analiacuteticas de EIS AICE na qual

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buscamos combinar e correlacionar EIS com AICE (Espaccedilos Imagens e Signos a

Autor Infantil Curriacuteculo Educador) e nesse processo combinatoacuterio e correlacional

operacionalizar escrileituras tradutoacuterias que se articulassem com a praacutexis do ensinar

escrever orientar pesquisar colocando esses verbos em foco por meio de um fazer

espiritograacutefico Tal procedimento exploratoacuterio-experimental de pesquisa tem como

intuito criar meios para a produccedilatildeo de accedilotildees de pensamento na pesquisa

Nessa direccedilatildeo detalharemos um dos tipos de espiritografia aludida no texto

a Espiritografia Plagiotroacutepica Lembrando o que salienta o proacuteprio Valeacutery (2011 p

110) ldquoeu sei apenas o que sei fazerrdquo expomos os movimentos empiacutericos de escrita

feitos para criar essa espiritografia atraveacutes de movimentos de EIS AICE

apresentados a seguir por meio de um resumo do seu Glossaacuterio

EIS AICE

Espaccedilos - que se habitam e produzem

condiccedilotildees para novamente serem

habitados ao esvaziar-se na

constituiccedilatildeo de novas margens que a

sua vez lhes doam novas instacircncias

habitaacuteveis

Imagens - ausentes que presentificam

presenccedilas e Imagens presentes que

presentificam ausecircncias

Signos - satildeo dotados das forccedilas dos

encontros que podem exercer uma

violecircncia sobre o pensamento

violecircncia que implica na criaccedilatildeo do

pensar no proacuteprio pensamento

Autor-Tradutor - escreve lecirc interpreta aprende

compotildee apenas para desencadear devires

Infantil - como forccedila ativa e vontade de potecircncia

afirmativa

Curriacuteculo - cria a alegria afirmativa de educar

Educador - exercita se interrogar se tudo o que disse

ateacute entatildeo eacute tudo o que pode dizer se tudo o que viu

ateacute agora eacute de fato tudo o que pode ver se tudo o

que pensa eacute tudo o que pode pensar se tudo o que

sente eacute tudo o que pode sentir se tudo o que traduziu

eacute tudo que pode traduzir

O texto inspirador para a produccedilatildeo dessa espiritografia eacute o livro de Gonccedilalo

Tavares (2011) intitulado O senhor Valeacutery e a loacutegica tomado como um disparador

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como um meio potente para a produccedilatildeo de escrita Esse meio textual produz um

outro para falar e escrever sobre a Vidarbo (vida-obra) de Paul Valeacutery criando-se

assim um personagem O Monsieur Valeacutery

Esse texto eacute produzido por intermeacutedio de escrileituras que contemplam o

ainda natildeo visto ou ainda natildeo atribuiacutedo de valor para a criaccedilatildeo do personagem na

medida em que pesquisamos sobre a vida e a obra de Valeacutery de modo a escrever

sobre este personagem peculiarmente

Por via de um olhar outro que natildeo o de Tavares mas do olhar do espiacuterito

escrileitor que pesquisa vida e obra de outro espiacuterito no caso Valeacutery almejamos

compor uma espiritografia com e sobre este personagem do pensamento o que

pressupotildee ir ao mundo deste espiacuterito do qual se escreve observando como se daacute o

seu pensar Desta maneira foram produzidos quatro minicontos O Atum O

Ostinato O Sonho e Sem Destino (CAMPOS 2015) Abaixo seguem os dois

primeiros dessa seacuterie

O Atum

MONSIEUR VALEacuteRY era pequenino mas adorava nadar

Ele explicava

Sou igual a um atum soacute que em tamanho menor

Mas isto constitui para ele um problema

Mais tarde o monsieur Valeacutery pocircs-se a pensar que os pescadores podiam

confundi-lo com um atum e pescaacute-lo Sabia por suas leituras ser o Atum o mais

antigo deus criador do mundo Mediterracircneo e observou em seu livro a grande

Serpente Atum pai de Eneacuteade e Helioacutepolis E tal pensamento o animou um pouco

Dias depois saiu para passear agrave beira-mar e desenhou serpentes na areia E

pensava sobre a evoluccedilatildeo das espeacutecies e murmurava ldquose o homem estaacute situado ao

final de um longo esforccedilo geneacutetico tambeacutem seraacute preciso situar esta criatura fria sem

pata sem pelos sem plumas no iniacutecio deste mesmo esforccedilordquo E concluiu Haacute algo

de serpente no homem assim deve tambeacutem haver em mim

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Monsieur Valeacutery costumava fazer caacutelculos enquanto caminhava e riscava

atraacutes de si com uma varinha uma linha e ia medindo Caminhou caminhou de

suacutebito olhou para traacutes e viu a linha e pocircs-se a imaginar a Serpente como uma linha

viva E pensava que a linha eacute uma abstraccedilatildeo encarnada soacute enxergamos a sua parte

proacutexima manifesta Mas ele sabia que a linha seguia pelo invisiacutevel infinito de um

lado e de outro

O Ostinato

MONSIEUR VALEacuteRY cresceu assim como tambeacutem cresceu sua curiosidade

sobre as serpentes que seguia a rabiscar

Monsieur Valeacutery ainda costumava nadar poreacutem agora com maior

desenvoltura

Jogava-se ao mar e nadava de costas cachorrinho borboleta

Enquanto dava suas braccediladas e mergulhos no mar sem fim sentia-se

acompanhado

Entatildeo o monsieur Valeacutery pensava

― Seraacute Afrodite Ou seraacute Netuno

E enquanto caminhava para casa apoacutes seus nados volta e meia olhava para

traacutes observando a linha pintalgada pelos pingos que escorriam de seu corpo

Entatildeo Monsieur Valeacutery exclamava

― Que bela geometria

E logo se aborrecia

Monsieur Valeacutery era um perfeccionista e para se distrair durante o percurso

de volta para casa ia compondo versos Ostinatos que o enterneciam e lhe traziam

aromas de um pensamento Ele costumava declamaacute-los assim

Fonte minha fonte aacutegua friamente presente

Suave com os animais com os humanos clemente

Que tentados por si seguem ao fundo a morte

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Tudo te eacute sonho Irmatilde impaacutevida da Sorte3

Importa salientar que natildeo haacute um plaacutegio porque natildeo eacute coacutepia ou mera

reproduccedilatildeo textual mas de uma plagiotropia no sentido de Haroldo de Campos

(1997 p249) qual seja uma ldquoapropriaccedilatildeo seletiva natildeo histoacuterica para utilidade

imediata de um fazer poeacutetico situado na lsquoagoridadersquo o momento de ruptura em que

determinado presente (o nosso) se reinventa ao se reconhecer na eleiccedilatildeo de um

determinado passadordquo

Em outras palavras estabelecemos um diaacutelogo entre os espiacuteritos de Valeacutery

de Tavares e de um escrileitor que quer compor uma espiritografia O espiacuterito que

escreve lecirc repensa e mastiga o que chega dos textos de Tavares e de Valeacutery Essa

relaccedilatildeo estabelecida entre os espiacuteritos que leem e escrevem adquire potecircncia pelas

afecccedilotildees de forccedilas oriundas da accedilatildeo de leitura-escrita e gera novas relaccedilotildees com

os textos que satildeo entatildeo renovados e reinventados pelo meacutetodo espiritograacutefico

O EIS AICE do Curriacuteculo e da Didaacutetica com suas unidades analiacuteticas eacute posto

como bloco em movimento atraveacutes de um nomadismo intelectual que opera como

conhecimento e como invenccedilatildeo no territoacuterio da educaccedilatildeo de uma maneira

espiritograacutefica valeacuteryana Podemos descrever da seguinte maneira os movimentos

tradutoacuterios que ocorrem nessas unidades analiacuteticas de EIS AICE

EIS

Espaccedilos - satildeo criados entre e com Tavares e Valeacutery espaccedilos de escrita

novas margens que o espiacuterito escrileitor passa a habitar

Imagem - ausentes de Tavares e Valeacutery que se presentificam na agoridade

com novas imagens de pensamentos criadas que se ldquoreinventa ao se reconhecer na

eleiccedilatildeo de um determinado passadordquo (Campos 1997 p249) e que lhe serviu de

disparador como um rastro de escrita

3 Do poema Fragmentos de Narciso e outros poemas (VALEacuteRY 2013 p 61)

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Signos ndash encontro de forccedilas de um espiacuterito que escreve em Self-variance

com Valeacutery e com Tavares E desta violecircncia levantam-se problemas e com eles se

cria pois criaccedilatildeo pressupotildee pensar no proacuteprio pensamento e como eles se datildeo

entre leitura e escrita

AICE

Autor-tradutor ndash ler e escrever na educaccedilatildeo como operaccedilatildeo literaacuteria valer-se

da literatura que desencadeia movimentos de pensar interpretar aprender

compor devires tradutoacuterio

Infantil ndash do infante da crianccedila que descobre pois tem a forccedila ativa ativada

por uma vontade de potecircncia que quer afirmar-se com alegria

Curriacuteculo ndash Alegria que transborda pois se afirmam novos meios de educar

que natildeo o ldquoeu professotu escutasrdquo pois na teimosia que nos impele a educar eacute

necessaacuterio ir aleacutem da mera reproduccedilatildeo de textos

Educador ndash EEE (estudante escritor educador) trecircs papeacuteis intercambiaacuteveis

propiacutecios a interrogar-se levantar questotildees na busca de novos olhares ldquovatildeosrdquo

sobre o ainda natildeo visto que possibilita novas composiccedilotildees de escrita

Consideraccedilotildees Finais

Ao pensar sobre o processo de pesquisa exposto no presente artigo

sinalizamos a relevacircncia do pensamento de Paul Valeacutery e de sua apropriaccedilatildeo efetiva

no campo da educaccedilatildeo por considerar que os seus procedimentos de escrita

concedem ao espiacuterito que busca se educar agir com maior lucidez de pensamento

ou seja cultivar o Eu-empiacuterico que lecirc e escreve importando-se mais com o meio de

ocorrecircncia textual do que com um fim ou com uma meta

Tratamos em siacutentese de um fazer conjunto com Paul Valeacutery atraveacutes dos

seguintes aportes a) o Meacutetodo do Informe utilizado como processo experimental

para falar ler e escrever sobre a educaccedilatildeo com Valeacutery b) atraveacutes de uma Self-

variance do espiacuterito colocar-se em movimento funcional construcionista onde

autoeduca-se no entre-lugar variante de EEE c) a escrileitura conceitualizada como

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um campo aberto agrave formaccedilatildeo e ao fazer docente que mescla linguagem e

conhecimento

A vidarbo de Valeacutery engendra na didaacutetica e no curriacuteculo uma vontade de

expressatildeo unida agraves sensaccedilotildees experimentadas no viviacutevel em novos traccedilados

compositivos de escrita Para pensar e operar uma didaacutetica (AICE) e um curriacuteculo

(EIS) tradutoacuterios o estudo tambeacutem aponta que a pesquisa eacute mutante e aberta a

novas interferecircncias visto que o Meacutetodo do Informe transmuta-se no proacuteprio

percurso investigativo em um Meacutetodo Espiritograacutefico

Pelo que podemos observar acerca dos resultados e impactos das produccedilotildees

oriundas das trecircs pesquisas anteriormente citadas que pesquisam e produzem um

curriacuteculo e uma didaacutetica da diferenccedila eles vecircm proporcionando encontros

produtivos que ampliam e qualificam as pesquisas educacionais

Cabe enfatizar que no cotidiano educacional o que se traduz aleacutem de textos

eacute a proacutepria vida como potecircncia ou movimento de criaccedilatildeo almejando que a

existecircncia possa ser concebida como arte pois de acordo com Valeacutery (1977

p217) ldquoa arte natildeo eacute nada mais do que um pedagogo poreacutem mais importante ―

pois ela pode me ensinar a dispor do meu espiacuterito para aleacutem de suas aplicaccedilotildees

praacuteticasrdquo Trata-se entatildeo de um escrever vivendo espreitar a realidade e sobre ela

levantar novos problemas que promovem no espiacuterito dobras sobre si mesmo num

fazer poeacutetico-criador em elaboraccedilatildeo constante um modo de existir intensivo de arte-

vida que toma o viviacutevel como mateacuteria para assim transmutaacute-la no campo da

educaccedilatildeo contemporacircnea

Referecircncias CAMPOS Haroldo de Transcriaccedilatildeo Satildeo Paulo perspectiva 2013

_______ Haroldo de O Arco-Iacuteris Branco Rios de Janeiro Imago 1997 CAMPOS Maria Idalina Krause de Alfabeto Espiritograacutefico Escrileituras em Educaccedilatildeo Porto Alegre 2013 Projeto de dissertaccedilatildeo (Dissertaccedilatildeo em Educaccedilatildeo)

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Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2013 Disponiacutevel em lthttphdlhandlenet1018370246gt _______ Maria Idalina Krause de A Educaccedilatildeo da Diferenccedila com Paul Valeacutery Meacutetodo Espiritograacutefico Porto Alegre 2014-2017 Projeto de tese (Tese qualificada em Educaccedilatildeo) Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Faculdade de Educaccedilatildeo Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2014 CORAZZA Sandra Mara OLIVEIRA Marcos da Rocha ADOacute Maacuteximo Daniel Lamela (Orgs) Biografemaacutetica na educaccedilatildeo Vidarbos (Caderno de Notas 7) Porto Alegre UFRGS Doisa 2015 _______ Sandra Mara Ensaio sobre EIS AICE proposiccedilatildeo e estrateacutegia para pesquisar em educaccedilatildeo Porto Alegre Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo CNPq 2014 30 p (No prelo) _______ Sandra Mara O que se transcria em educaccedilatildeo Porto Alegre ndash RS UFRGS Doisa 2013 _______ Sandra Mara Introduccedilatildeo ao meacutetodo biografemaacutetico In COSTA Luciano Bedin da FONSECA Tania Mara Galli (Org) Vidas do Fora habitantes do silecircncio Porto Alegre Editora da UFRGS 2010 _______ Sandra Mara Dramatizaccedilatildeo do infantil na comeacutedia intelectual do curriacuteculo meacutetodo Valeacutery-Deleuze Projeto de Pesquisa ndash Bolsa de produtividade CNPq 2010 _______ Sandra Mara Meacutetodo Valeacutery-Deleuze um drama na comeacutedia intelectual da educaccedilatildeo Educaccedilatildeo amp Realidade Porto Alegre v 37 n 3 Dec 2012 Disponiacutevel em lthttpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S2175-62362012000300016amplng=enampnrm=isogt Acessado em 13 de Julho de 2016 _______ Sandra Mara Didaacutetica da Traduccedilatildeo transcriaccedilotildees do curriacuteculo escrileituras da Diferenccedila (2014-2019) Projeto de Pesquisa de Produtividade (CNPq) _______ Gilles Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 2006 _______ Gilles A ilha deserta e outros textos Textos e entrevistas (1953-1974) Satildeo Paulo Iluminuras 2006 (Org Luiz B L Orlandi) DELEUZE Sobre o teatro Um manifesto de menos O esgotado Rio de Janeiro Editora Zahar 2010

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TAVARES Gonccedilalo M O senhor Valeacutery e a Loacutegica 1 ed Rio de Janeiro Casa da Palavra 2011 VALEacuteRY Paul Variedades Trad Maiza Martins de Siqueira Satildeo Paulo Iluminuras 2011 _______ Paul Fragmentos de Narciso e outros poemas Trad Juacutelio Castantildeon Guimaratildees Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 2013 _______ Cahiers Paris Gallimard 1977

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GROL Ana Paula Schoninger Van BLAUTH Lurdi Gravura procedimentos alternativos em litografia

contemporacircnea Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 36-51 juldez 2016 Disponiacutevel em

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Gravura procedimentos alternativos em litografia contemporacircnea

Ana Paula Schoninger van Grol1 Universidade Feevale

Lurdi Blauth2

Universidade Feevale

Resumo O estudo aborda a inter-relaccedilatildeo da arte com distintos meios de produccedilatildeo de imagens mediando procedimentos tradicionais com processos de tecnologias digitais As experiecircncias satildeo realizadas no campo da gravura contemporacircnea com o intuito de propor outras possibilidades de criaccedilatildeo de matrizes pela utilizaccedilatildeo e o aproveitamento de materiais alternativos e o uso de produtos menos toacutexicos Consideramos que eacute importante estimular o uso destes outros meios principalmente em ateliecircs de gravura xilogravura gravura em metal litografia e serigrafia Neste momento apresentamos alguns resultados parciais no acircmbito da litografia cujas pesquisas foram desenvolvidas no ateliecirc de gravura da Universidade Feevale Palavras-chave Arte tecnologia gravura litografia Abstract The research takes into consideration the relation among the different ways of producing images associating traditional methods with digital technology processes The experiences are taken in the field of contemporary printing intenting propouse other possibilities in creating printing matrices from use and exploitation of alternative material and non-toxic products It is considered that it is important to stimulate the use of alternative means particularly in art labs such as xylography metal engraving lithography and silkscreen To the present moment will be presented some partial results related to lithograph all researches were accomplished at the art laboratory in Universidade Feevale Keywords Art technology printing lithography

Introduccedilatildeo

Os movimentos artiacutesticos no iniacutecio de seacuteculo XX transgridem as formas

tradicionais da arte como podemos observar no surrealismo futurismo e dadaiacutesmo e

nas publicaccedilotildees em manifestos que confrontam questotildees sociais e culturais A

invenccedilatildeo da fotografia intensifica a aproximaccedilatildeo entre a arte e a tecnologia liberando

os artistas da questatildeo da representaccedilatildeo tradicional de espaccedilo para realizarem novas

1 Graduada em Artes Visuais trabalha como professora de liacutengua inglesa Eacute diretora do grupo de teatro de rua DRIME e tambeacutem atua como artista plaacutestica 2 Doutora em Artes Visuais pela UFRGS (2005) e Doctorat sandwich en Art Plastique - Universiteacute Paris 1 (Pantheacuteon-Sorbonne) (2003) Artista visual pesquisadora e professora nos cursos de Artes Visuais Design Graacutefico e no PPG em Processos e Manifestaccedilotildees Culturais Universidade Feevale

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GROL Ana Paula Schoninger Van BLAUTH Lurdi Gravura procedimentos alternativos em litografia

contemporacircnea Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 36-51 juldez 2016 Disponiacutevel em

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experiecircncias Em 1910 quando Pablo Picasso e Georges Braque inserem em suas

pinturas outros materiais como fragmentos de jornais elementos da tipografia entre

outros impressos fazem uma alusatildeo direta ao cotidiano e ao progresso dos novos

meios tecnoloacutegicos da eacutepoca Tais fragmentos colados sobre a superfiacutecie da tela aleacutem

de redimensionarem a relaccedilatildeo da representaccedilatildeo do espaccedilo ilusionista da perspectiva

introduzem uma nova forma de tempo e espaccedilo Os limites tradicionais e a

representaccedilatildeo objetiva da arte comeccedilam a ser questionados sobretudo com a

utilizaccedilatildeo e a experimentaccedilatildeo de novos materiais bem como tambeacutem a expressatildeo

pessoal do artista

No acircmbito do desenvolvimento da gravura percebemos a coexistecircncia com

inovaccedilotildees teacutecnicas as quais satildeo constantemente renovadas e incorporadas aos

procedimentos tradicionais de criaccedilatildeo de imagens sobre distintas matrizes e processos

de reproduccedilatildeo sobre diferentes suportes Atualmente o conceito inicial da gravura se

transforma junto com a evoluccedilatildeo da cultura e dos novos meios tecnoloacutegicos Ela natildeo

envolve necessariamente gravaccedilatildeo isto eacute subtraircortar mateacuteria de uma superfiacutecie

como eacute feito nos meios mais tradicionais como a xilogravura e a calcografia Utiliza-se a

adiccedilatildeo de pigmentos os quais modificam a superfiacutecie de uma matriz atraveacutes de

processos quiacutemicos confronta-se tambeacutem com a gravaccedilatildeo fotograacutefica a eletrografia e

a computaccedilatildeo graacutefica buscando assim a inter-relaccedilatildeo com outras linguagens

Tais desdobramentos tencionam as suas especificidades teacutecnicas propondo

uma maior flexibilidade e autonomia em relaccedilatildeo aos seus meios convencionais de

gravaccedilatildeo e impressatildeo Contudo as linguagens tradicionais natildeo satildeo descartadas uma

vez que eacute fundamental termos conhecimento das caracteriacutesticas dos seus

procedimentos originais que continuam sendo desenvolvidos por inuacutemeros artistas Ou

seja satildeo produzidas gravuras com meios teacutecnicos da xilogravura calcografia serigrafia

e litografia e de acordo com as singularidades criativas de cada artista satildeo

incorporados desenhos pinturas colagens transferecircncia de fotografias digitais coacutepia

uacutenica em contraponto com a reproduccedilatildeo de imagens

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Neste estudo investigamos a criaccedilatildeo de imagens por meio de experimentaccedilotildees

praacuteticas com procedimentos analoacutegicos (gravura) incluindo a utilizaccedilatildeo de recursos

provenientes de tecnologias digitais (fotografia) e a transferecircncia de imagens sobre

matrizes alternativas

O enfoque das nossas experimentaccedilotildees eacute buscar materiais que possam suprir

os procedimentos tradicionais da litografia devido a dois fatores primeiro satildeo poucos

ateliecircs que possuem as pedras litograacuteficas o que impede o seu faacutecil acesso segundo

aliada aos constantes desdobramentos e potencialidades da linguagem graacutefica eacute

fundamental a experimentaccedilatildeo de outros materiais mais acessiacuteveis e menos toacutexicos

Cabe mencionar que tais experimentaccedilotildees partem de informaccedilotildees obtidas por

pesquisas apresentadas em sites da internet artigos e estudos oriundos de testagens

realizadas em outros paiacuteses No entanto percebemos que os procedimentos natildeo

resultam em apenas transcrever teacutecnicas implicam em tentar adotar materiais similares

em nosso contexto aleacutem de indicarem outras possibilidades de criaccedilatildeo artiacutestica

Os experimentos e pesquisas relatados aqui satildeo vinculados ao projeto de

pesquisa Arte e Tecnologia Interfaces Hiacutebridas da Imagem entre Mediaccedilotildees e

Remediaccedilotildees que acontece sob orientaccedilatildeo da Profordf Drordf Lurdi Blauth nos ateliecircs de arte

da Universidade Feevale O objeto de estudo investiga possibilidades hiacutebridas que

inter-relacionam meios analoacutegicos e digitais de diferentes linguagens esteacuteticas como a

gravura fotografia videoarte e tecnologias digitais

Litografia princiacutepios baacutesicos

A litografia descoberta por Alois Senefelder em 1796 comeccedilou a ser utilizada

de forma utilitaacuteria para impressatildeo de documentos roacutetulos cartazes mapas jornais

aleacutem de apresentar uma nova possibilidade expressiva para os artistas A teacutecnica da

litografia tem como princiacutepio baacutesico o fenocircmeno quiacutemico de repulsatildeo entre gordura e

aacutegua tornando-se um meio de reproduccedilatildeo de imagens Antes da invenccedilatildeo da litografia

toda a gravura pressupunha gravaccedilatildeo isto eacute a incisatildeo sobre uma superfiacutecie resultando

numa imagem que podia ser transferida pelo seu relevo Isto quer dizer que a gravura

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estava associada agrave incisatildeo agrave subtraccedilatildeo o oposto de adiccedilatildeo De acordo com George

Kornis3 (2015)

O advento da litografia no seacuteculo XIX ndash um processo fundado apenas em uma accedilatildeo quiacutemica sobre uma matriz em pedra ndash possibilitou um grau de liberdade diante da incisatildeo e ampliou a escala de reprodutibilidade da imagem graacutefica Na litografia a linguagem graacutefica aproxima-se ainda mais do desenho Essa nova teacutecnica prescinde da incisatildeo o que amplia o acesso a novos artistas que optam por incorporar tambeacutem a expressatildeo graacutefica ao seu trabalho

Importantes artistas comeccedilam a utilizar a teacutecnica como meio de expressatildeo

Goya como podemos observar na obra Touradas de 1825 (fig 1) Gustave Doreacute

Renoir Ceacutezanne Toulouse-Lautrec Bonnard entre outros realizam novas

experimentaccedilotildees introduzindo inclusive a cor nos meios litograacuteficos

Figura 1 Francisco Joseacute de Goya Touradas 1825 Fonte Disponiacutevel em httpwwwpatrimoniodehuescaesmuseo-de-huesca-francisco-de-goya-y-

lucientes-grabados-de-tauromaquia-y-lienzo-del-sr-de-veian-s-xviii

A linguagem graacutefica aliada agraves transformaccedilotildees do seacuteculo XXI continua a sua

constante atualizaccedilatildeo teacutecnica pela convergecircncia de meios digitais e de teacutecnicas

seculares da gravura configurando-se pela exploraccedilatildeo de uma diversidade de novas

proposiccedilotildees esteacuteticas Nesse aspecto igualmente eacute colocado em discussatildeo o seu

caraacuteter original relacionado com a produccedilatildeo de uma matriz uacutenica e a reproduccedilatildeo de

3 KORNIS George Gravura passado presente e futuro Publicado em 13 de maio de 2015 Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=mCmY_Oj3x64gt Acesso em 29 de julho de 2016

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estampas idecircnticas Para Nicole Malenfant (2012 p73) ldquoeacute na abertura para praacuteticas de

natureza interdisciplinar que a gravura transgrediu ainda mais o quadro de sua

especificidade para integrar a abordagem de criaccedilatildeo agrave perspectiva de uma

lsquopermeabilidade de fronteirasrsquo Em outras palavras estas novas abordagens inter-

relacionam procedimentos materialidades e conceitos ampliando inclusive o caraacuteter

mais intimista da gravura bem como as estruturas de suas praacuteticas teacutecnicas

convencionais que se desdobram no contato com as tecnologias digitais

Atualmente falamos em gravuras digitais que se distinguem das praacuteticas

tradicionais da gravura que ldquoeacute feita com base na construccedilatildeo pictoacuterica e utiliza

ferramentas proacuteprias aos softwares da imagem para elaborar uma proposta visual que

pode incluir elementos fotograacuteficos que se relacionem com outros elementos do todo da

imagemrdquo (MALENFANT 2012 p72) Embora as especificidades de cada procedimento

empregado estejam em sintonia eacute preciso levar em conta as peculiaridades e

denominaccedilotildees dos meios de reproduccedilatildeo e impressatildeo e suas diferentes granulaccedilotildees na

imagem A incorporaccedilatildeo da imagem fotograacutefica por meio de transferecircncia para outros

suportes e matrizes que permitem a sua reproduccedilatildeo se distingue da materialidade das

impressotildees manuais

Ainda de acordo com Malenfant

As pesquisas para transferir imagens fotograacuteficas ou digitais para matrizes que permitem se servir da impressatildeo artesanal tambeacutem enriqueceram essas imagens com uma materialidade diferente advindas da siacutentese de suas disciplinas implicadas Esses novos avanccedilos no plano teacutecnico permitem associar as ferramentas digitais ao processo de criaccedilatildeo da imagem e ampliam o campo da exploraccedilatildeo esteacuteticardquo (2012 p73)

Nessa perspectiva haacute uma liberdade muito maior em elaborar proposiccedilotildees

esteacuteticas que dialogam com uma diversidade de materiais e materialidades e de certa

maneira transgridem as delimitaccedilotildees para integrar novas formas de criaccedilatildeo no campo

ampliado da arte

Desse modo as investigaccedilotildees praacuteticas desta pesquisa se desdobram com a

exploraccedilatildeo de procedimentos alternativos para a gravura litograacutefica A partir do

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conhecimento de alguns princiacutepios baacutesicos da litografia procuramos trabalhar com

alguns meacutetodos que natildeo necessitam da utilizaccedilatildeo da pedra calcaacuteria cujo material eacute

escasso e limitado a poucos ateliecircs no Rio Grande do Sul

Contexto inicial

Para o desenvolvimento dos meios tradicionais da litografia eacute necessaacuterio uma

seacuterie de procedimentos que implicam no uso de diversos materiais como pedra

litograacutefica (calcaacuteria) materiais para desenho (Tousche laacutepis crayon) solvente

(removedor aacutegua-raz ou varsol) goma araacutebica breu aacutecido aceacutetico aacutecido niacutetrico entre

outros O processo eacute relativamente complexo pois depende da repulsatildeo entre gordura

e aacutegua A imagem eacute produzida sobre a superfiacutecie da pedra calcaacuteria com materiais

oleosos e depois de concluiacuteda satildeo aplicados diferentes componentes quiacutemicos que

iratildeo fixaacute-la Ou seja eacute necessaacuterio que todas as etapas sejam consideradas em sua

sequecircncia e geralmente requer o auxiacutelio de profissionais capacitados para a impressatildeo

aleacutem de outros cuidados teacutecnicos para que haja um bom resultado na obra final

Visando atender aos objetivos da pesquisa buscamos desenvolver a teacutecnica

com meacutetodos diversos realizando experimentaccedilotildees com diferentes suportes para a

produccedilatildeo de matrizes que se aproximem aos meios litograacuteficos Aleacutem disso buscamos

relacionar a pesquisa agraves tecnologias digitais seja no processo de criaccedilatildeo eou na

elaboraccedilatildeo das imagens graacuteficas

Experimentaccedilotildees praacuteticas

Inicialmente foram testados vaacuterios procedimentos e materiais tendo como

proposiccedilatildeo na medida do possiacutevel utilizar materiais menos nocivos ao ambiente

Nessas experimentaccedilotildees vaacuterios testes natildeo apresentaram os resultados esperados ou

adequados agrave proposta da investigaccedilatildeo contudo possibilitaram outras descobertas

Os estudos em ateliecirc tecircm como referecircncia o artigo ldquoLa siligrafiacutea Un proceso

alternativo en la graacutefica muacuteltiple contemporaacuteneardquo de Hortensia Miacutenguez Garciacutea e

Carles Meacutendez Llopis (2014) que sugere o uso de silicone e solvente sobre chapa

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offset Apoacutes algumas tentativas foi possiacutevel reproduzir a imagem contudo os

resultados deste experimento natildeo foram totalmente satisfatoacuterios em qualidade de

impressatildeo aleacutem do mais natildeo se enquadravam com os objetivos da pesquisa na

aplicaccedilatildeo dos materiais ndash que ainda apresentavam certa toxicidade (figura 2)

Figura 2 Ana van Grol - Detalhes do processo com litografia alternativa Fonte Arquivo pessoal

A partir destas experiecircncias realizadas em ateliecirc concluiacutemos que seratildeo

necessaacuterios mais estudos e praacuteticas para se obter melhores resultados para a

reproduccedilatildeo das imagens

Litografia natildeo toacutexica com refrigerante de cola e produtos caseiros

Nesta segunda etapa novos estudos bibliograacuteficos propiciaram outras testagens

com materiais e processos de litografia alternativa Percebemos que em muitos paiacuteses

jaacute estatildeo sendo pesquisados outros meacutetodos mais acessiacuteveis e de faacutecil manuseio

Nesse aspecto eacute interessante observar que encontramos pouco material em portuguecircs

inclusive os materiais sugeridos satildeo similares aos produzidos aqui no Brasil poreacutem

existe uma diferenccedila na qualidade dos mesmos

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Foram pesquisados em diversos viacutedeos disponiacuteveis na internet que tratam de

processos semelhantes ao de litografia alternativa Mencionamos alguns exemplos

como o ateliecirc francecircs Art Emilion4 (o qual tambeacutem produziu um manual para execuccedilatildeo

do processo) e o viacutedeo Kitchen Lithography Demo por Felicia Digiovanni5 ambos

demonstrando a teacutecnica com refrigerante de cola O processo utilizando somente

vinagre para substituir o refrigerante apresentado por ldquojjewelartrdquo tambeacutem fez parte do

experimento poreacutem natildeo apresentou os resultados esperados

De acordo com as demonstraccedilotildees do ateliecirc de arte Art Eacutemilion o procedimento

faz uso dos seguintes materiais oacuteleo de cozinha vinagre branco refrigerante de cola

papel alumiacutenio esponja litograacutefica tinta para talho doce rolo para entintagem laacutepis

para desenho litograacutefico (e outros materiais gordurosos para o mesmo fim como sabatildeo

de glicerina) papel para impressatildeo e aacutegua

O desenvolvimento da teacutecnica envolve as seguintes etapas

1 O papel alumiacutenio deve ser posto sobre uma chapa acriacutelica ou algo semelhante

para facilitar o trabalho o lado a ser usado eacute o fosco

2 Apoacutes limpar o papel alumiacutenio com aacutelcool pode-se fazer o desenho com giz

gorduroso ou sabatildeo de glicerina

3 O banho de refrigerante de cola eacute o passo seguinte mas deve-se ter a certeza

de que o desenho estaacute totalmente seco para isso Este processo toma alguns

segundos e eacute necessaacuterio assegurar-se de passar por toda a superfiacutecie

4 Depois disso deve-se lavar com aacutegua e secar levemente com papel toalha

5 O oacuteleo de canola deve ser espalhado por toda a superfiacutecie com uma gaze para

retirar o desenho do alumiacutenio

6 Eacute necessaacuterio passar a esponja de litografia sobre o desenho devendo estar

umedecida com aacutegua e ser aplicada entre as etapas de entintagem com tinta

4 EMILLION Aizier Lithography Maison ndash Kitchen lithography Disponiacutevel em lt httpwwwatelier-kitchen-printorgproducts-pagemanuelsproduitshandbook-of-kitchen-lithogt Acesso em 09 de junho de 2016 5DIGIOVANI Felicia Kitchen Lithography Demo Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=UuBUlEt6vWwgt Acesso em 09 de junho de 2016

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para talho doce ou tipograacutefica com um rolo de borracha Na primeira passada eacute

possiacutevel que a tinta se fixe a todas as partes poreacutem a esponja molhada deve

ser aplicada vaacuterias vezes assim como a tinta ateacute que ao final a tinta aderiraacute

somente na imagem (figura 3)

Figura 3 Ana van Grol - testes de litografia alternativa com coca cola do atelier Art Eacutemilion Fonte Arquivo pessoal

Nos primeiros resultados apenas era possiacutevel reconhecer vestiacutegios das

imagens e teacutecnica entretanto ao repetir o processo algumas vezes e analisar os

procedimentos realizados era notaacutevel a melhora das impressotildees (figura 4)

Figura 4 Ana van Grol ndash detalhe da impressatildeo com maior fidelidade entre o desenho inicial e sua impressatildeo final

Fonte Arquivo pessoal

Eacute curioso salientar um aspecto em que diferem nossos estudos dos

experimentos realizados nos viacutedeos observados enquanto que em nossas praacuteticas a

tinta eacute fixada no plano de fundo da imagem nos viacutedeos ela adere nos desenhos sendo

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assim o sistema que repele a tinta acontece invertido e por esse motivo continuamos

as testagens para obter resultados mais proacuteximos aos dos viacutedeos

Nestas experimentaccedilotildees os resultados foram satisfatoacuterios tecnicamente poreacutem

ainda natildeo foram consideradas questotildees esteacuteticas e conceituais enquanto linguagem

artiacutestica Na etapa seguinte buscamos aliar a transferecircncia de imagens para a criaccedilatildeo

de matrizes com papel alumiacutenio utilizando outros procedimentos e materiais

A transferecircncia de imagem sobre matriz de alumiacutenio

A articulaccedilatildeo da gravura tem seus antecedentes histoacutericos que remetem aos

primoacuterdios da fotografia relacionados agrave gravaccedilatildeo de sombra luz e impressatildeo O uso de

recursos tecnoloacutegicos pela facilidade de acesso propicia a ampla reproduccedilatildeo de

imagens assim como a fotografia digital contribui para a renovaccedilatildeo e a interaccedilatildeo com

outras linguagens artiacutesticas No entanto diante das inuacutemeras possibilidades de

reproduzir coacutepias por tecnologias digitais a questatildeo da reproduccedilatildeo atraveacutes da gravura

jaacute natildeo eacute tatildeo relevante Com o avanccedilo dessas tecnologias digitais abrem-se novos

caminhos para a gravura Maria do Carmo Veneroso6 coloca que

Eacute pois a qualidade graacutefica e a possibilidade do uso da imagem fotograacutefica entre outras coisas que vai caracterizar a praacutetica dos gravadores atualmente A reprodutibilidade deixa portanto de ser um valor em si jaacute que com o desenvolvimento da induacutestria graacutefica muitas outras formas de impressatildeo mais raacutepidas e mais eficientes se impotildeem deixando que a gravura se realize plenamente em meio e tangenciando outras linguagens plaacutesticas Essa mudanccedila de paradigma faz com que a gravura se desenvolva como linguagem lanccedilando matildeo dos recursos teacutecnicos disponiacuteveis (2007 p1512)

A autonomia das linguagens graacuteficas propicia que sejam articulados distintos

meios e procedimentos borrando as fronteiras e delimitaccedilotildees teacutecnicas para originar

outras praacuteticas e confrontos esteacuteticos O caminho da gravura artiacutestica comeccedila a se

modificar significativamente quando a tecnologia e os meios de reproduccedilatildeo fotograacutefica

6 Blog Litografia 2010 ndash CAPECAUSP Disponiacutevel em lthttpcap-lito-2010blogspotcombr201003litografias-de-artistas-cezannehtmlgt Acesso em 09 de junho de 2016

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satildeo incluiacutedos aos procedimentos tradicionais ldquoRobert Rauschenberg por exemplo

desafiou os meios convencionais da gravura introduzindo elementos jaacute impressos

atraveacutes da transferecircncia de imagens Tambeacutem ampliou as escalas fiacutesicas misturando

diversas teacutecnicas graacuteficas que satildeo impressas sobre tela para substituir o papelrdquo

(BLAUTH 2011 p27) (Figura 5)

Figura 5 Robert Rauschenberg Shades 1964 Seis litografias impressas sobre acriacutelico 15 x 1438 x 11 58 p Ediccedilatildeo 24

Fonte MOMA Disponiacutevel em httpswwwmomaorgcollectionworks14718

Neste estudo apresentamos resultados parciais de procedimentos e meacutetodos

com o intuito de transferir a fotografia digital para criaccedilatildeo de matrizes com papel

alumiacutenio Inicialmente satildeo realizadas algumas testagens com outros tipos de matrizes

(acetato lata de refrigerante) e meios de transferecircncia (tela de serigrafia calor e

salicilato de metila)

Um dos materiais testados foi o acetato com imagem impressa em toner preto

aacutegua e esponja para molhar o acetato antes de entintar tinta para talho doce rolo de

borracha papel proacuteprio para a impressatildeo e prensa

Fazendo uso das impressotildees a laser e conhecendo suas propriedades o acetato

foi entintado e impresso Apoacutes alguns testes o resultado foi satisfatoacuterio (figura 6)

poreacutem natildeo com total controle sobre as impressotildees Encontramos neste meacutetodo a

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possibilidade de unir a tecnologia com a reproduccedilatildeo de imagem aos materiais

alternativos na produccedilatildeo de gravura

Figura 6 Ana van Grol Processo e resultado acetato impresso a laser gravura direta com tinta para talho doce

Fonte Arquivo pessoal

Em outra experiecircncia eacute feita a transferecircncia de impressatildeo a laser com calor e

pressatildeo e a tinta para talho doce acaba por fazer a interaccedilatildeo necessaacuteria utilizando-se

do meacutetodo de limpar a placa com oacuteleo antes de entintaacute-la A tinta de talho doce eacute

aplicada com rolo de borracha vaacuterias vezes e entre os intervalos de cada entintagem eacute

necessaacuterio limpar a tinta com esponja litograacutefica embebida em aacutegua (figura 7)

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Figura 7 Ana van Grol Processo e resultado de trabalho com transferecircncia de coacutepia a laser e

impressatildeo direta com tinta para talho doce Fonte Arquivo pessoal

Outro procedimento de transferecircncia de imagem impressa a laser eacute o produto

denominado de salicilato de metila associado ao processo de impressatildeo com a prensa

Com este material obtemos resultados mais satisfatoacuterios quando a imagem eacute impressa

sobre papel couchet ressaltando um certo contraste na imagem Neste caso (figura 8)

apoacutes a transferecircncia satildeo realizadas grafias aleatoacuterias com laacutepis litograacutefico gorduroso e

depois satildeo empregados os procedimentos de fixaccedilatildeo da imagem sobre o alumiacutenio uso

de polvilho melado ou mel imersatildeo em refrigerante cola oacuteleo de cozinha (para retirar a

imagem) esponja embebida em aacutegua e tinta para impressatildeo (para talho doce) Nesse

processo a imagem transferida natildeo desaparece apenas o desenho feito com material

gorduroso

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Figura 8 Lurdi Blauth Teste de transferecircncia de imagem com salicilato de metila Fonte Arquivo pessoal

A serigrafia tambeacutem serve de aporte ao desejo de transferir uma imagem e

reproduzi-la em impressotildees Em si o processo de serigrafia consiste em sensibilizar a

tela de nylon com uma imagem que poderaacute ser reproduzida sobre outras superfiacutecies

com uso de tinta proacutepria No caso da litografia alternativa utilizamos o sabatildeo de

glicerina como ldquotintardquo ou seja na funccedilatildeo de base protetora para o banho de

refrigerante Para isso foi necessaacuterio criar uma pasta (na textura de tinta) para

reproduzir a imagem da tela para o papel alumiacutenio Mais tarde com a mistura de sabatildeo

jaacute seca foram aplicadas as etapas posteriores o resultado pode ser observado na

impressatildeo (figura 9)

Figura 9 Ana van Grol - impressatildeo com uso de serigrafia como forma de transferecircncia de imagem

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Fonte Arquivo pessoal

A impressatildeo apresentou resultados bem satisfatoacuterios quanto agrave qualidade de

imagem contudo outras misturas semelhantes agrave de sabatildeo de glicerina neutro devem

ser testadas e podem apresentar melhor aderecircncia eou resistecircncia ao banho de

refrigerante

Algumas consideraccedilotildees

Diante da pluralidade de meios e possibilidades artiacutesticas testadas procuramos

utilizar materiais alternativos e produtos atoacutexicos buscando aproveitar materiais

disponiacuteveis na tentativa de abrir outros meios de reproduccedilatildeo de imagens O caminho

continua em aberto e o que nos motiva eacute a nossa convicccedilatildeo na continuidade da

exploraccedilatildeo de novas perspectivas para o campo da arte e em especial agrave litografia

testada com diferentes procedimentos Entendemos que diversos fatores interferem

devido agraves caracteriacutesticas e qualidade dos materiais empregados os quais muitas

vezes apresentam resultados inesperados

As experimentaccedilotildees realizadas ateacute o momento nos indicam a continuidade da

pesquisa buscando meios variados para o campo da gravura que possam ser

socializados principalmente nos ateliecircs que ainda utilizam materiais prejudiciais Dessa

forma pretendemos tambeacutem contribuir com a conscientizaccedilatildeo dos cuidados

relacionados agrave sauacutede dos artistas e do meio ambiente Em nossas conclusotildees parciais

percebemos que as possibilidades satildeo inuacutemeras para a criaccedilatildeo e reproduccedilatildeo de

imagens com materiais ldquocaseirosrdquo e com o seguimento de nossas investigaccedilotildees e

testagens temos a convicccedilatildeo de que podemos estimular a adesatildeo e a interaccedilatildeo com

outros artistas e assim obtermos melhores resultados

Portanto o campo das linguagens graacuteficas e os seus meios de reproduccedilatildeo direta

ou indireta da imagem tem suas qualidades intriacutensecas em cada processo contudo se

natildeo suscitarem transformaccedilotildees tornam-se vazias e desnecessaacuterias Podemos dizer

que natildeo importam os meios empregados pois os ldquoproblemasrdquo artiacutesticos devem ser

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confrontados com novos questionamentos esteacuteticos seja pelo uso do computador na

imagem digital na fotografia ou mesmo os meios considerados tradicionais como

gravura a pintura a escultura podendo ter (ou natildeo) qualidade contemporacircnea

Referecircncias BLAUTH Lurdi Marcas Passagens e Condensaccedilotildees ndash investigaccedilotildees de um processo de gravura contemporacircnea Porto Alegre Editora da UFRGS 2011 GARCIacuteA Hortensia Miacutenguez e LLOPIS Carles Meacutendez La siligrafiacutea Un proceso alternativo en la graacutefica muacuteltiple contemporacircnea In Revista El Artista n 11 Pamplona Colombia Universidad Distrital Francisco Joseacute de Caldas 2014 MALENFANT Nicole A gravura entre a identidade disciplinar e suas manifestaccedilotildees em um quadro interdisciplinar In Revista Porto Arte v 1 n1 (jun 1990) Porto Alegre Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Artes Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Visuais 1990 VENEROSO Maria do Carmo Gravura e Fotografia - Um estudo das possibilidades da gravura como uma linguagem artiacutestica autocircnoma na contemporaneidade e sua associaccedilatildeo com a fotografia In 16deg Encontro Nacional da Associaccedilatildeo Nacional de Pesquisadores de Artes Plaacutesticas Dinacircmicas Epistemoloacutegicas em Artes Visuais ndash 24 a 28 de setembro de 2007 ndash Florianoacutepolis SC

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MATTOS Fernando Lewis de Pluralia Tantum Reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea Revista da Fundarte

Montenegro ano 16 n 32 p 52-94 juldez 2016 Disponiacutevel em

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Pluralia Tantum reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea

Fernando Lewis de Mattos1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

1 Consideraccedilotildees preliminares sobre o conservadorismo em muacutesica Antes de iniciar esta explanaccedilatildeo sobre algumas caracteriacutesticas da muacutesica

contemporacircnea gostaria de apontar aspectos do conservadorismo existente na

muacutesica atual

Mesmo atraveacutes de um vislumbre raacutepido sobre a Histoacuteria da Muacutesica percebe-

se que em todas as eacutepocas houve aqueles artistas que se esforccedilaram para expandir

a sensibilidade de seu tempo e aqueles (artistas teoacutericos criacuteticos pensadores e

parte do puacuteblico) que natildeo foram capazes de compreender o significado das

transformaccedilotildees ou natildeo estavam dispostos a abrir matildeo de seus valores

aparentemente bem fundamentados para escutar com a devida atenccedilatildeo as

realizaccedilotildees de seus contemporacircneos

Nem mesmo grandes pensadores estiveram livres de juiacutezos preconcebidos

ou natildeo foram capazes de apreciar a abrangecircncia de certas inovaccedilotildees no campo

artiacutestico de sua eacutepoca Platatildeo por exemplo revoltou-se contra a nova muacutesica de

seu tempo com seus trecircs gecircneros (diatocircnico cromaacutetico e enarmocircnico) e a

ampliaccedilatildeo vertiginosa das possibilidades de expressatildeo considerada perigosa pelo

filoacutesofo por romper com os fundamentos numeacutericos e com as normas pitagoacutericas da

muacutesica tradicional Rousseau e Diderot percebiam em Rameau somente o muacutesico

da corte chegando a ridicularizar suas oacuteperas por haver um grande contingente de

1 Possui Graduaccedilatildeo em Muacutesica - Habilitaccedilatildeo Violatildeo (1988) Mestrado em Muacutesica - Ecircnfase Educaccedilatildeo Musical

(1997) e Doutorado em Muacutesica - ecircnfase em Composiccedilatildeo (2005) pela Universidade Federal do Rio Grande do

Sul Atualmente eacute Professor Associado do Departamento de Muacutesica no Instituto de Artes da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul onde atua nas disciplinas Anaacutelise Musical Harmonia Esteacutetica da Muacutesica no

curso de Muacutesica e as disciplinas Praacuteticas Artiacutesticas e Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria da Muacutesica no curso de Histoacuteria da

Arte Soacutecio-fundador da Arena - Associaccedilatildeo Cultural Socioambiental onde ministra cursos regularmente

Instrumentista (cordas dedilhadas) dedicado agrave pesquisa e interpretaccedilatildeo de muacutesica antiga europeia (alauacutedes e

guitarras) muacutesica tradicional brasileira (viola caipira e guitarra romacircntica) e muacutesica contemporacircnea (violatildeo e

decacorde) compositor com obras para diferentes formaccedilotildees vocais e instrumentais muacutesica incidental para

teatro viacutedeo e cinema e produccedilatildeo de material sonoro para exposiccedilotildees Dedica-se tambeacutem agrave pesquisa e

interpretaccedilatildeo de muacutesica brasileira moderna e contemporacircnea

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instrumentos de percussatildeo tratando-as como natildeo sendo muacutesica mas somente um

amontoado de sons que produziam um barulho infernal Para Diderot Rameau era

[] aquele muacutesico ceacutelebre que nos livrou do canto chatildeo de Lully o qual recitamos haacute mais de cem anos que escreveu tantas visotildees ininteligiacuteveis e verdades apocaliacutepticas sobre a teoria da muacutesica sobre as quais nem ele nem ningueacutem jamais entendeu nada2 e de quem temos um certo nuacutemero de oacuteperas onde haacute harmonias fragmentos de cantos ideias desconexas ruiacutedos estrondosos voos triunfos lances gloacuterias murmuacuterios vitoacuterias de perder o focirclego aacuterias de danccedila que duraratildeo eternamente e que depois de ter enterrado o Florentino seraacute enterrado pelos virtuoses italianos (DIDEROT 1983 p 47-48)

Nietzsche que assim como Platatildeo e Rousseau tambeacutem era muacutesico viu no

Parsifal de Wagner apenas a capitulaccedilatildeo aos valores de uma arte germacircnica

redentora e consolatoacuteria que abdicava do ideal da muacutesica como retorno agrave inocecircncia

da arte atraveacutes do espiacuterito dionisiacuteaco Se houve este aspecto conservador na muacutesica

de Wagner havia muito mais pois foi a partir de suas inovaccedilotildees que compositores

como Mahler Debussy e Schoenberg conduziram suas proacuteprias experiecircncias

Mesmo que nem sempre tenha sido por razotildees especificamente musicais3 as

sucessivas reaccedilotildees agraves novas sonoridades levam a crer que a abertura para praacuteticas

musicais inusuais pode ser algo difiacutecil de ser alcanccedilado

No meio musical atual podem-se distinguir duas espeacutecies de

conservadorismo o conservadorismo preacute-moderno e o conservadorismo modernista

O conservadorismo preacute-moderno eacute aquele mais generalizado e hegemocircnico

predominante entre os programadores culturais administradores de teatro diretores

artiacutesticos de orquestras e afins Essa espeacutecie de conservadorismo se opotildee a toda e

qualquer criaccedilatildeo musical natildeo coincidente com os procedimentos e valores da

muacutesica do Periacuteodo Tonal situado entre as produccedilotildees de Johann Sebastian Bach

(1685-1750) e Johannes Brahms (1833-1897) Para aqueles que defendem ainda

hoje esses valores a muacutesica tonal eacute tida como sendo lsquouniversalrsquo mesmo que seja o

2 Jean-Philippe Rameau (1683-1764) foi um dos maiores muacutesicos e teoacutericos de sua eacutepoca foi o primeiro a sistematizar mais de duzentos anos de praacutetica musical em seu Tratado de Harmonia (1722) que eacute ainda hoje considerado como um dos escritos mais importantes sobre o assunto 3 Platatildeo estava preocupado com a educaccedilatildeo dos jovens os enciclopedistas viam em Rameau um representante do Ancien Reacutegime e Nietzsche sentiu-se traiacutedo por Wagner em seu ideal de superar o predomiacutenio do espiacuterito apoliacuteneo no campo musical

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fruto do trabalho de muacutesicos de uma regiatildeo restrita do planeta que corresponde a

aproximadamente trecircs paiacuteses da Europa Ocidental (Itaacutelia Franccedila e principalmente

Alemanha) e produzida em um curto periacuteodo de tempo entre os seacuteculos XVIII e

XIX

Um bom exemplo desse tipo de conservadorismo estaacute naquela afirmaccedilatildeo

comum em certos meios musicais onde prevalecem valores convencionais ldquonatildeo

toco muacutesica contemporacircnea porque as pessoas natildeo tecircm como saber se estou

tocando as notas certas ou erradas e quando escuto uma muacutesica dessas natildeo sei se

o muacutesico estaacute tocando bem ou natildeo Por isso considero essa muacutesica como sendo

de menor importacircnciardquo Nota-se aqui um pensamento tautoloacutegico centrado apenas

na proacutepria experiecircncia pessoal e sem qualquer interesse pela produccedilatildeo que estaacute agrave

sua volta Tautoloacutegico no sentido em que o sujeito natildeo tem como avaliar aquela

interpretaccedilatildeo porque natildeo conhece a muacutesica e natildeo conhece aquela muacutesica porque

natildeo se permite avaliar a interpretaccedilatildeo O raciociacutenio artificioso estaacute em que como o

indiviacuteduo natildeo conhece a muacutesica natildeo se esforccedila para escutar sua interpretaccedilatildeo

portanto natildeo pode julgaacute-la e se natildeo eacute possiacutevel emitir juiacutezo a muacutesica natildeo tem valor ndash

como se fosse necessaacuterio conhecer a muacutesica para saber se algueacutem a estaacute

interpretando adequadamente como se a capacidade de anaacutelise natildeo estivesse no

conhecimento que o sujeito tem do objeto analisado Trata-se de uma atitude

autocentrada porque esses muacutesicos

[] soacute conhecem a arte que consomem e soacute consomem a que reconhecem portanto sua consciecircncia eacute leve e parcial Como sustentar o pacto se eacute tatildeo menos sofrido dormir com a consciecircncia leve sem a pretensatildeo de uma arte feita tambeacutem para arte sem a sombra do domiacutenio gigantesco Talvez arte feita somente para o mundo para o plano da distraccedilatildeo substacircncia que dissolve instantaneamente o artista Arte distraiacuteda quase arte quase atenccedilatildeo quase conteuacutedo insuficiecircncia (BERNARDES 1998 p 7)

Quem crecirc que julga a arte a partir dessa espeacutecie de raciociacutenio apenas se

limita a reconhecer aquilo que jaacute conhece ou seja nesse ponto natildeo haacute

conhecimento apenas reconhecimento Ouvem-se tambeacutem alguns muacutesicos que se

negam a tocar novos repertoacuterios argumentando que natildeo se dedicam a estudar a

muacutesica atual porque ela natildeo acrescenta muito agrave teacutecnica do seu instrumento Esse

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ponto de vista parece ainda mais esvaziado pois fica confinado nos limites da

teacutecnica onde natildeo se alcanccedila jamais a condiccedilatildeo de arte

O conservadorismo moderno eacute atualmente defendido por aqueles que foram

os protagonistas de grandes transformaccedilotildees teacutecnicas e esteacuteticas da muacutesica de

meados do seacuteculo XX (do poacutes-guerra agrave deacutecada de 1970) e seus disciacutepulos esses

muacutesicos opotildeem-se a qualquer mudanccedila de direcionamento que natildeo corresponda agraves

novidades introduzidas pelas vanguardas tardias e confundem novos processos

narrativos e novos significados musicais com a arte de um passado ao qual sempre

se opuseram Natildeo tecircm a capacidade de compreender que as novas geraccedilotildees

percebem o mundo de outra maneira tecircm outros anseios e consequentemente

outras necessidades Portanto produzem outra arte O musicoacutelogo Paul Bekker

afirmava que os muacutesicos de sua eacutepoca natildeo escreviam da mesma maneira que os

grandes gecircnios do passado ldquopelo simples fato de serem pessoas diferentesrdquo

(BEKKER 1928 p 217) Parece que os protagonistas das vanguardas (a quem

Bekker estava se referindo) natildeo se deram conta de que o tempo continua a passar e

que os mais jovens que vieram depois deles tambeacutem tecircm outras necessidades ndash o

que obviamente leva agrave criaccedilatildeo de outra muacutesica diferente da sua

Haacute tambeacutem aqueles que pretendem que a arte se limite agrave aplicaccedilatildeo de novos

processos tecnoloacutegicos esquecendo que a arte eacute antes de tudo expansatildeo da

sensibilidade e do pensamento e que a teacutecnica natildeo eacute condiccedilatildeo para a arte A

tecnologia pode ser mais um recurso para a realizaccedilatildeo artiacutestica natildeo seu fim

Quando a muacutesica eacute valorizada somente pelos procedimentos tecnoloacutegicos

empregados na sua produccedilatildeo tambeacutem fica confinada nos limites da teacutecnica e natildeo

alcanccedila sua condiccedilatildeo esteacutetica O emprego de recursos tecnoloacutegicos vem a partir de

necessidades mais amplas do que a simples aplicaccedilatildeo de teacutecnicas recentes Se o

emprego de novas tecnologias fosse criteacuterio para a avaliaccedilatildeo da arte as primeiras

experiecircncias com muacutesica eletrocircnica seriam atualmente obsoletas (e seria no

miacutenimo enganoso considerar ultrapassadas as peccedilas eletrocircnicas de Schaeffer

Henry ou Stockhausen dos anos rsquo50) Por sua vez a novidade tecnoloacutegica natildeo

implica necessariamente na produccedilatildeo de arte nova

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Como o tempo eacute inexoraacutevel os indiviacuteduos humanos de hoje satildeo outros do

que em outros tempos as sociedades satildeo outras haacute outras maneiras de perceber o

mundo e refletir sobre ele tambeacutem o resultado da produccedilatildeo desses indiviacuteduos eacute

necessariamente outro Natildeo tem como ser diferente Isso indica que toda espeacutecie de

conservadorismo estaacute fadada ao fracasso o movimento se manifesta em todos os

aspectos e em todos os lugares Natildeo tem como negar a transformaccedilatildeo ela

simplesmente estaacute aiacute Haacute que aceitaacute-la ou trabalhar com ela para a criaccedilatildeo de

processos que possam conduzir a novos significados e novos meios de fazer e

perceber muacutesica Isso natildeo eacute dito de um ponto de vista apenas teacutecnico ou

pragmaacutetico mas acima de tudo conceitual pois a muacutesica como diria Platatildeo

alcanccedila seu mais alto niacutevel quando ultrapassa as pretensotildees praacuteticas mais

imediatistas e eacute nesse sentido que Soacutecrates no diaacutelogo Feacutedon compara o ato de

criar muacutesica ao haacutebito de filosofar

Negar que o tempo se prolonga incessantemente e perdura sem interrupccedilatildeo

levando consigo toda a sorte de transformaccedilotildees em todos os aspectos da realidade

significa dar as costas ao devir em seu fluxo ininterrupto de ir e vir em muacuteltiplas

direccedilotildees O que eacute uacutetil intrigante e considerado como atual para determinado grupo

humano pode natildeo o ser para outros grupos e eacute necessaacuterio aceitar isso para

compreender algo da diversidade da produccedilatildeo artiacutestica hodierna Eacute necessaacuterio sair

do proacuteprio centro para apreender algo da realidade circundante

2 Caracteriacutesticas da muacutesica atual

Haacute vaacuterias maneiras de distribuir as diferentes correntes de composiccedilatildeo da

muacutesica contemporacircnea Podem-se diferenciar as tendecircncias atuais de acordo com

procedimentos teacutecnicos como muacutesica serial muacutesica neotonal muacutesica minimalista

muacutesica eletrocircnica e outras conforme a ecircnfase em um ou outro elemento da

composiccedilatildeo como por exemplo os muacutesicos que valorizam o timbre as tendecircncias

em que o mais importante eacute o ritmo os movimentos de retorno agrave melodia agrave

harmonia ou ao contraponto aquelas linhas em que o importante estaacute no tipo de

escrita musical como a muacutesica com escrita precisa a escrita em forma de roteiro a

muacutesica aleatoacuteria e a improvisaccedilatildeo espontacircnea (que prescinde da escrita) poderiam

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tambeacutem ser consideradas as relaccedilotildees da muacutesica com outras aacutereas em que se

levariam em consideraccedilatildeo subdivisotildees como o teatro musical as instalaccedilotildees

sonoras ou as tendecircncias de multimiacutedia aleacutem de muacutesica para danccedila e a muacutesica

para cinema entre outras o ambiente musical atual poderia ainda ser dividido

entre os grupos derivados das vanguardas como a muacutesica atonal a muacutesica serial a

muacutesica estocaacutestica e a muacutesica espectral

Haveria ainda outras tantas possibilidades de demarcaccedilatildeo das tendecircncias

da muacutesica contemporacircnea Optou-se poreacutem neste ensaio por uma organizaccedilatildeo

mais ou menos extriacutenseca agrave proacutepria muacutesica e que poderia se adequar a outras

manifestaccedilotildees culturais atuais O que importa no esboccedilo a seguir satildeo os valores

que movem os muacutesicos em direccedilotildees que se entrecruzam em algumas de suas

caracteriacutesticas em alguns muacutesicos ou grupos de compositores Com base nas

referecircncias tomadas a partir de tradiccedilotildees imediatas ou remotas isto eacute nas tradiccedilotildees

do modernismo ou em tradiccedilotildees anteriores que tecircm sido resgatadas nos uacuteltimos

anos podem ser demarcadas trecircs linhas gerais na esteacutetica musical

contemporacircnea4

1 Continuidade da Modernidade

2 Retorno agrave Tradiccedilatildeo e

3 Superaccedilatildeo do Modernismo

A intenccedilatildeo com essa divisatildeo natildeo eacute enquadrar toda e qualquer manifestaccedilatildeo

musical contemporacircnea em alguma dessas trecircs tendecircncias gerais mas ao

contraacuterio procurar entender essas manifestaccedilotildees no sentido dos valores que podem

estar impliacutecitos ou expliacutecitos latentes ou manifestos conscientes ou inconscientes

nas diferentes produccedilotildees da muacutesica atual

Antes de iniciar a elaboraccedilatildeo sobre cada uma dessas tendecircncias eacute

necessaacuterio esclarecer algo da terminologia que seraacute empregada ao longo deste

ensaio

4 A organizaccedilatildeo adotada aqui leva em consideraccedilatildeo alguns princiacutepios elaborados por Ramaut-Chevassus (1998) o que natildeo significa poreacutem que se permanece no escopo de suas proposiccedilotildees

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Em primeiro lugar quando se fala de lsquomuacutesica contemporacircnearsquo neste texto se

estaacute abordando uma parcela da totalidade da muacutesica produzida atualmente que eacute a

assim chamada lsquomuacutesica eruditarsquo aquela produzida por muacutesicos que se dedicam ao

estudo da Teoria Musical agrave Histoacuteria da Muacutesica e agrave colocaccedilatildeo e soluccedilatildeo de

problemas teacutecnicos esteacuteticos ou relativos aos vaacuterios niacuteveis de significaccedilatildeo que

podem estar engendrados no fazer musical Isso significa que este ensaio se dedica

agravequelas manifestaccedilotildees musicais em que o foco principal estaacute na reflexatildeo sobre

problemas relativos agrave muacutesica como arte portadora de significados e suas

implicaccedilotildees culturais e natildeo se apresentam apenas como reaccedilatildeo imediata ao meio

circundante5

Uma diferenciaccedilatildeo importante para as discussotildees que se seguem diz

respeito aos termos lsquoModernidadersquo e lsquoModernismorsquo

No contexto deste ensaio entende-se por Modernidade o grande periacuteodo

histoacuterico da cultura ocidental que sobreveio apoacutes a quebra da hegemonia da Igreja

Catoacutelica Romana em meados do seacuteculo XV isto eacute a partir do Renascimento Este eacute

um periacuteodo marcado por transformaccedilotildees em todos os campos e atividades

humanas que influenciaram profundamente o fazer musical em todos os seus

aspectos No acircmbito da sistematizaccedilatildeo da muacutesica europeia o antigo Sistema Modal

medieval com sua diversidade de modos foi cedendo lugar agraves novas organizaccedilotildees

com base na dualidade de modos do Sistema Tonal Os princiacutepios do contraponto

vatildeo-se tornando menos importantes ateacute que em meados do seacuteculo XVIII a

harmonia passa a ser o principal meacutetodo de organizaccedilatildeo musical Nessa eacutepoca a

Teoria dos Afetos jaacute estava plenamente elaborada para sua aplicabilidade na muacutesica

de cena na oacutepera e no oratoacuterio

Na segunda metade do seacuteculo XVIII o Sistema Tonal estaacute completamente

organizado com possibilidade de modulaccedilatildeo para todas as tonalidades e o emprego

de cromatismo em qualquer segmento independente da escala de base atraveacutes do

temperamento igual Nos seacuteculos XVIII e XIX as diversas teorias de explicaccedilatildeo da

5 Isso natildeo significa qualquer preferecircncia do ponto de vista valorativo por esta ou aquela manifestaccedilatildeo musical mas apenas que as consideraccedilotildees sobre a muacutesica contemporacircnea apresentadas neste ensaio satildeo relativas agrave parcela da muacutesica atual comumente denominada lsquomuacutesica eruditarsquo

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realidade satildeo aproveitadas pelos muacutesicos com a intenccedilatildeo de compreender e

justificar suas escolhas Essa reflexatildeo sobre a proacutepria produccedilatildeo leva os

compositores agrave procura de originalidade na busca da lsquofantasia criadorarsquo e de novos

significados emocionais que se desenvolvem no Romantismo e desembocam nas

vaacuterias correntes modernistas do seacuteculo XX

O Modernismo equivale a todos aqueles movimentos de ruptura com a

tradiccedilatildeo6 oitocentista que se desenvolveram ao longo da primeira metade do seacuteculo

XX tendo seu marco inicial geralmente fixado no Impressionismo francecircs das

uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX No campo musical esse Modernismo eacute marcado

pela negaccedilatildeo do Sistema Tonal Negaccedilatildeo essa que se manifestou em vaacuterias

direccedilotildees pois se na muacutesica de Debussy e Ravel que estatildeo entre os primeiros a

romper com a tonalidade tradicional foram incorporados processos percebidos na

escuta de muacutesica do Extremo Oriente em especial a orquestra de gamelatildeo balinesa

Stravinsky e Bartoacutek entre outros aproveitaram elementos folcloacutericos do Leste

Europeu e juntamente com Milhaud desenvolveram a politonalidade em que vaacuterias

escalas satildeo sobrepostas com a intenccedilatildeo de obscurecer a funcionalidade tonal7

Se os compositores latinos e eslavos (como diria Schoenberg) buscavam a

superaccedilatildeo do Tonalismo oitocentista atraveacutes da incorporaccedilatildeo de processos e

materiais sonoros aproveitados de culturas extraeuropeias no meio musical

germacircnico e mais especificamente no acircmbito da Segunda Escola de Viena sob a

lideranccedila de Arnold Schoenberg (1874-1951) os jovens muacutesicos estavam

conduzindo as possibilidades cromaacuteticas ao extremo atraveacutes do Atonalismo desde

os primeiros anos do seacuteculo XX e do Dodecafonismo a partir da deacutecada de 1920

Esta muacutesica mais densa psicologicamente e considerada como sendo mais

6 Note-se que a noccedilatildeo de lsquoruptura com a tradiccedilatildeorsquo atraveacutes da lsquonova artersquo (Philippe de Vitry 1322) com a criaccedilatildeo de lsquonovas muacutesicasrsquo (Giulio Caccini 1601) com a concepccedilatildeo de um lsquoestilo modernorsquo que aporta em uma lsquosegunda praacuteticarsquo (Monteverdi 1605) natildeo eacute caracteriacutestica apenas do Modernismo mas da Modernidade como um todo 7 Eacute interessante notar que Darius Milhaud (1892-1974) considerado como um dos primeiros a empregar teacutecnicas politonais nas duas suiacutetes para piano intituladas Saudades do Brasil (com o tiacutetulo original em portuguecircs) de 1920 e 1921 certamente aproveitou esse recurso a partir da sua experiecircncia com o compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920) com quem conviveu no Rio de Janeiro na eacutepoca em que este foi diretor da Escola Nacional de Muacutesica Nepomuceno jaacute havia escrito em 1902 suas Variations sur un thegraveme original Op 29 (com o tiacutetulo em francecircs) onde empregou explicitamente sobreposiccedilatildeo de tonalidades inclusive com diferentes armaduras de clave

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complexa e de difiacutecil assimilaccedilatildeo foi o ponto de partida para grande parte das

experiecircncias das vanguardas tardias (1950-1970) em que se elaboraram e

aprofundaram inuacutemeras teacutecnicas e processos de organizaccedilatildeo musical com base em

seacuteries de alturas seacuteries de duraccedilotildees seacuteries de timbres etc chegando ao que se

chamou de Serialismo Integral no qual todos os paracircmetros da composiccedilatildeo seriam

serializados Ateacute mesmo Stravinsky principal antiacutepoda de Schoenberg chegou a

praticar teacutecnicas seriais Entre os principais compositores dessa geraccedilatildeo que

comeccedilou a aparecer apoacutes a Segunda Guerra nos festivais de muacutesica nova de

Darmstadt estatildeo Pierre Boulez (1925) Luciano Berio (1925-2003) e Karlheinz

Stockhausen (1928)

No final da deacutecada de 1950 houve entre os compositores que participavam

dos movimentos de vanguarda diversas reaccedilotildees agrave extrema racionalizaccedilatildeo dos

processos de composiccedilatildeo empregados pelos serialistas do grupo de Darmstadt As

mais difundidas foram as diferentes espeacutecies de muacutesica aleatoacuteria certamente

influenciadas por John Cage (1912-1992) Tambeacutem entre os compositores mais

jovens se desenvolveram novas praacuteticas com base nas relaccedilotildees mais rudimentares

entre os sons ou a partir da organizaccedilatildeo espectral da seacuterie harmocircnica Muacutesicos do

Leste Europeu como o polonecircs Krzysztof Penderecki (1933) ou o huacutengaro Gyorgy

Ligeti (1923) seguiram caminhos completamente independentes com relaccedilatildeo agrave

corrente dominante da Europa Ocidental Tambeacutem nos Estados Unidos houve

reaccedilatildeo agraves praacuteticas dos serialistas atraveacutes do Minimalismo de compositores como

Terry Riley (1935) Steve Reich (1936) e Philip Glass (1937) Pode-se considerar o

Minimalismo puro como o uacuteltimo dos movimentos modernistas no sentido de buscar

a ruptura com a tradiccedilatildeo ou com as praacuteticas das geraccedilotildees anteriores

O que caracteriza esses movimentos modernos apesar de sua diversidade eacute

a busca de hegemonia de cada um deles Por essa razatildeo o Modernismo se

caracteriza pelo lsquomanifestorsquo em que satildeo apresentados os valores da nova arte e se

explicitam em que sentido essa arte eacute nova de que maneira ela se diferencia das

outras e como pode ultrapassaacute-las Assim cada novo trabalho produzido pelo artista

moderno tem o caraacuteter de um programa com a exposiccedilatildeo de suas intenccedilotildees e

projetos em que satildeo apresentados os novos recursos descobertos por ele e seus

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colegas Haacute dessa maneira a crenccedila em uma progressividade determinada da

cultura em que se percebe a Histoacuteria de forma diacrocircnica como um processo

evolutivo contiacutenuo em que cada nova geraccedilatildeo deve acrescentar algo agraves conquistas

das geraccedilotildees anteriores para estar agrave sua altura e se diferenciar delas

Como o que pode ser quantificado na arte satildeo os materiais empregados e as

teacutecnicas com que esses materiais satildeo manipulados desenvolveram-se em grande

parte valores tecnicistas predominantes entre os movimentos de vanguarda em que

o importante seria a descoberta ou a criaccedilatildeo de novas teacutecnicas e o emprego de

novos recursos acuacutesticos Nesse sentido a lsquoexpressatildeo de conteuacutedosrsquo foi relegada a

um segundo plano quando natildeo passou a ser tomada como um resiacuteduo indesejaacutevel

de valores do Romantismo oitocentista Esse preceito pode ser exemplificado com a

conhecida afirmaccedilatildeo de Stravinsky ldquoinspiraccedilatildeo arte artista satildeo termos no miacutenimo

obscuros que nos impedem de ver claramente um campo onde tudo eacute equiliacutebrio

caacutelculo onde o que se passa eacute o sopro do espiacuterito especulativordquo

(STRAVINSKY 1986 p 54)

Cada grupo ou movimento artiacutestico buscava desenvolver seu proacuteprio sistema

de organizaccedilatildeo sonora seus proacuteprios meacutetodos de elaboraccedilatildeo musical e se

esforccedilava por descobrir novos materiais e recursos acuacutesticos que o posicionassem agrave

frente de seus concorrentes Havia por exemplo grande rivalidade entre a Escola

de Viena e os muacutesicos atuantes em Paris Schoenberg chegou a afirmar em seu

ensaio Muacutesica Nacional de 1931 que ldquoningueacutem ainda se deu conta que minha

muacutesica nascida em solo germacircnico livre de influecircncias estrangeiras eacute o exemplo

vivo de uma arte efetivamente capaz de se opor agraves esperanccedilas latinas e eslavas de

hegemonia porque se trata de uma arte essencialmente derivada das tradiccedilotildees da

muacutesica germacircnicardquo (SCHOENBERG 1975 p 173)

A noccedilatildeo da rivalidade entre franceses e germacircnicos no periacuteodo entre

guerras pode ser apreendida com a citaccedilatildeo do texto mais influente no meio musical

francecircs da deacutecada de 1920 O Galo e o Arlequim escrito por Jean Cocteau em

1918

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Schoenberg eacute um mestre todos os nossos muacutesicos e Stravinsky lhe devem algo mas Schoenberg eacute sobretudo um muacutesico de quadro negro Soacutecrates dizia lsquoQuem eacute este homem que come patildeo como se fosse a boa carne e a boa carne como se fosse patildeorsquo Resposta o melocircmano alematildeo (COCTEAU 1995 p 433-434)

Essas citaccedilotildees podem dar alguma noccedilatildeo do que eram os confrontos entre os

grupos modernistas na primeira metade do seacuteculo XX Os principais representantes

desses debates podem ser facilmente agrupados entre os partidaacuterios do

Neoclassicismo franco-russo que tinham em Stravinsky e no Grupo dos Seis seus

expoentes mais destacados e o Expressionismo germacircnico do qual os participantes

da Segunda Escola de Viena eram os principais portadores de conceitos e valores

Naturalmente houve grande nuacutemero de muacutesicos independentes poreacutem estes

geralmente se localizavam fora da Europa Ocidental Entre eles podem-se citar Bela

Bartoacutek (1881-1945) na Hungria Charles Ives (1874-1954) nos Estados Unidos

Carlos Chaacutevez (1899-1978) no Meacutexico Heitor Villa-Lobos (1887-1959) no Brasil e

Alberto Ginastera (1916-1983) na Argentina

21 Continuidade da Modernidade

As tendecircncias da muacutesica contemporacircnea em que a principal caracteriacutestica se

pode encontrar na busca de afirmaccedilatildeo dos pressupostos da Modernidade isto eacute em

que o artista percebe o fluxo histoacuterico de maneira contiacutenua e procura acrescentar

algo de original a ele satildeo aquelas que se desenvolveram a partir das vanguardas

tardias das deacutecadas de 1950 e 1960

Esses compositores que se alinham aos valores da poacutes-vanguarda podem

ser identificados entre aqueles que empregam processos derivados da muacutesica

atonal e serial que organizam suas estruturas sonoras com base em referecircncias

matemaacuteticas (com o emprego de algoritmos ou com base em estruturas

estocaacutesticas entre outras) e que desenvolveram suas investigaccedilotildees a partir da

muacutesica espectral do dececircnio de 1970 Haacute tambeacutem aqueles muacutesicos que se

dedicam agrave pesquisa na aacuterea de muacutesica e tecnologia a partir das experiecircncias da

muacutesica concreta da muacutesica eletrocircnica e eletroacuacutestica e podem ser alinhados no

escopo das tendecircncias de poacutes-vanguarda da muacutesica contemporacircnea O compositor

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Michel Chion (1947) tem empregado a expressatildeo lsquomuacutesica acusmaacuteticarsquo para designar

certos experimentos que se desdobraram a partir da muacutesica concreta

Com o intuito de ultrapassar cada fase histoacuterica com base em descobertas

originais esses compositores tecircm em geral como sua principal referecircncia a

superaccedilatildeo dos sistemas totalizantes que definiram os caminhos da Modernidade

Isso significa que mesmo aqueles que se dedicam agrave organizaccedilatildeo do material

acuacutestico com base em estruturas sistemaacuteticas natildeo se definem por uma via uacutenica de

estruturaccedilatildeo sonora ou seja natildeo seguem um princiacutepio sistecircmico uacutenico mas se

abrem para outras possibilidades conforme os elementos musicais se apresentam agrave

sua percepccedilatildeo pois muitos desses muacutesicos estatildeo abertos agrave casualidade mesmo

quando organizam seu trabalho a partir de processos racionais intriacutensecos ou com

base em caacutelculos predeterminados Nesse sentido a poacutes-vanguarda se diferencia

das vanguardas do poacutes-guerra para as quais qualquer intromissatildeo da percepccedilatildeo

imediata no processo compositivo significava ceder espaccedilo agrave subjetividade e

consequentemente aos valores liacutericos do Romantismo oitocentista

Muitos compositores atuais assumem uma atitude renovada com relaccedilatildeo ao

material sonoro pois mesmo aqueles que mais se esforccedilam em manter criteacuterios

quantitativos com preferecircncia por estruturas abstratas distanciadas das

experiecircncias cotidianas demonstram interesse pela pluralidade que qualquer

estrutura sonora traz em si Entendem com isso que os criteacuterios de valoraccedilatildeo de

qualquer produccedilatildeo dependem dos contextos especiacuteficos em que ocorrem e que natildeo

se podem definir antecipadamente quais os caminhos por que deve seguir

determinado conteuacutedo musical Esse entendimento conduz a outro terreno de

ordem mais esteacutetica do que teacutecnica que eacute a abertura para manifestaccedilotildees culturais

diferenciadas Enquanto um muacutesico de vanguarda da geraccedilatildeo de Boulez por

exemplo somente encontra valor em realizaccedilotildees que se assemelham agraves suas ou se

encontram no mesmo campo de atuaccedilatildeo um muacutesico de geraccedilatildeo posterior tem a

capacidade de reconhecer valor em algo que ele proacuteprio natildeo faria porque percebe

que satildeo impulsos criteacuterios e o gosto pessoal que estatildeo em causa entende que os

valores satildeo relativos ao contexto em que ocorrem e fora desse contexto podem

perder seu significado

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Haacute outros muacutesicos que seguem a tendecircncia de se mover no acircmbito dos

valores modernos poreacutem se diferenciam daqueles comentados acima por

desdenharem da lsquohierarquia de gostosrsquo do meio musical isto eacute fazem a leitura das

muacutesicas atuais sem hierarquizar os diversos tipos de manifestaccedilatildeo cultural Esses

muacutesicos percebem como sendo equivalentes do ponto de vista valorativo as

abordagens loacutegicas ou abstratas em comparaccedilatildeo agravequelas centradas na absorccedilatildeo do

mundo cotidiano eles procuram estreitar os elos que ligam as diferentes formas de

manifestaccedilatildeo musical atuais Entre as teacutecnicas de estruturaccedilatildeo musical mais usuais

nesta linha de atuaccedilatildeo do campo musical estatildeo a apropriaccedilatildeo a citaccedilatildeo a alusatildeo e

a colagem

Com base no princiacutepio da apropriaccedilatildeo de elementos oriundos de qualquer

muacutesica para a conformaccedilatildeo de uma nova estrutura sonora os materiais podem ser

apropriados de seu contexto original sob diferentes aspectos O compositor russo

Alfred Schnittke (1934-1998) um dos fundadores dessa tendecircncia de assimilaccedilatildeo de

diversos tipos de manifestaccedilatildeo cultural diferencia citaccedilatildeo e alusatildeo da seguinte

maneira a citaccedilatildeo consiste na apropriaccedilatildeo direta de um fragmento musical para a

composiccedilatildeo de uma nova muacutesica isto eacute se cita literalmente uma linha meloacutedica

uma sequecircncia riacutetmica ou um encadeamento harmocircnico de modo a tornaacute-lo

reconheciacutevel ao passo que a alusatildeo consiste em somente sugerir a lsquomaneirarsquo de

outro muacutesico ou escola atraveacutes de um fragmento musical escrito pelo proacuteprio

compositor ldquoO princiacutepio de alusatildeo se manifesta por evocaccedilotildees sutis e natildeo por

anuacutencios expliacutecitos proacuteximos de citaccedilotildees sem realmente o serem Esse princiacutepio se

opotildee agrave classificaccedilatildeordquo (SCHNITTKE 1998 p 29) Assim faz-se alusatildeo sem citar

literalmente o modelo original

A teacutecnica da colagem que surgiu na pintura cubista e foi amplamente

utilizada pelos escritores surrealistas pelos dadaiacutestas e pelos muacutesicos franceses do

Grupo dos Seis eacute uma das principais teacutecnicas de elaboraccedilatildeo musical empregadas a

partir da apropriaccedilatildeo de materiais heterogecircneos esparsos ao longo de determinada

obra A colagem consiste na justaposiccedilatildeo ou na sobreposiccedilatildeo de elementos com

origens distintas e produz um resultado almejado por vaacuterios muacutesicos nos uacuteltimos

anos que eacute a produccedilatildeo de texturas sonoras heterofocircnicas nas quais se tem a niacutetida

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sensaccedilatildeo de estar escutando diversas muacutesicas simultaneamente Eacute interessante

notar que essa teacutecnica jaacute era empregada por Charles Ives desde o iniacutecio do seacuteculo

XX Sua Unanswered Question (1906) jaacute opunha trecircs ideias musicais distintas sem

que se produzisse qualquer tipo de interaccedilatildeo entre elas

Esses procedimentos e teacutecnicas de apropriaccedilatildeo citaccedilatildeo alusatildeo e colagem

podem ser agrupados em um conceito geral denominado por Schnittke de

lsquopoliestiliacutesticarsquo Para este compositor

[] apesar de todas as dificuldades e todos os perigos que encerram a poliestiliacutestica seus benefiacutecios indiscutiacuteveis jaacute satildeo evidentes Estes residem no alargamento da expressatildeo musical em uma maior facilidade para integrar os estilos lsquonobresrsquo e os estilos lsquocomunsrsquo os estilos lsquobanaisrsquo e os estilos lsquorefinadosrsquo ou em uma palavra em um universo alargado e em uma democratizaccedilatildeo de estilos A realidade musical pode ser objetivada de forma documental pois natildeo aparece unicamente como o reflexo do indiviacuteduo mas tambeacutem atraveacutes das citaccedilotildees [] Na realidade seria difiacutecil encontrar outra teacutecnica musical que fosse tatildeo bem adaptada quanto a poliestiliacutestica agrave expressatildeo da ideacuteia filosoacutefica de continuidade (SCHNITTKE 1989 p 134)

Com essas reflexotildees Schnittke aponta para a pluralidade como criteacuterio de

valoraccedilatildeo da arte e elimina a busca de hegemonia de uma tendecircncia sobre as

outras como sendo um princiacutepio esteacutetico vaacutelido Nota-se inclusive a ironia de

Schnittke com relaccedilatildeo aos conceitos tradicionais de lsquoestilos nobresrsquo ou lsquoestilos

banaisrsquo Essa espeacutecie de hierarquizaccedilatildeo vem de longa data pois jaacute na eacutepoca de

Mozart se diferenciavam o lsquoestilo elevadorsquo de caraacuteter afirmativo e enfaacutetico digno de

representar a nobreza e os sentimentos nobres o lsquoestilo meacutediorsquo mais ingecircnuo e

leve sobre o qual se dizia que ldquodeve agradar ao ouvinte sem excitaacute-lo ou levaacute-lo agrave

reflexatildeordquo e o lsquoestilo baixorsquo considerado ruacutestico e simples poderia aparecer na forma

de danccedilas populares e era proacuteprio para a representaccedilatildeo de camponeses e das

classes sociais inferiores (cf RATNER 1980 p 9) O que Schnittke estaacute fazendo eacute

uma criacutetica agraves categorizaccedilotildees riacutegidas dos estilos musicais com base em

preconceitos sociais No uacuteltimo movimento de sua Sonata para Violino e Orquestra

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de Cacircmara Op 508 (1968) um longo segmento eacute elaborado com base na citaccedilatildeo de

trechos de Vivaldi combinados com a melodia da canccedilatildeo La Cucaracha9

O resultado dessas teacutecnicas de apropriaccedilatildeo e colagem eacute uma espeacutecie de

hibridismo estiliacutestico em que eacute abolido o preceito da unidade de estilo conforme foi

preconizado pelo teoacuterico tcheco Eduard Hanslick em meados do seacuteculo XIX e se

manteve como valor intocaacutevel ateacute a deacutecada de 1970 Hanslick chegou ao ponto de

afirmar que se deveria ldquodizer lsquotal compositor tem estilorsquo com o mesmo sentido que

quando se diz de algueacutem lsquoele tem caraacuteterrsquordquo (HANSLICK 1989 p 96) Naturalmente

essa definiccedilatildeo quase moralizante do conceito de estilo natildeo se sustenta atualmente

ateacute porque apoacutes o decliacutenio dos metadiscursos e dos grandes sistemas de

explicaccedilatildeo da realidade natildeo se justifica a aplicaccedilatildeo de um criteacuterio uacutenico de caraacuteter

universal para a avaliaccedilatildeo da produccedilatildeo cultural Cada nova peccedila musical cada

nova criaccedilatildeo no campo da arte traz em si a chave para a sua compreensatildeo e com

isso carrega tambeacutem os criteacuterios para sua avaliaccedilatildeo Eacute faacutecil demonstrar o equiacutevoco

de um criacutetico de muacutesica quando ao escutar uma peccedila atonal reclama da falta de

um centro tonal definido no qual possa apoiar sua audiccedilatildeo poder-se-ia responder a

outro criacutetico que considerasse aborrecida a estrutura da arte minimalista da mesma

forma que John Walker ldquoo aborrecimento eacute presumivelmente apenas uma emoccedilatildeo

tatildeo legiacutetima para a arte como qualquer outrardquo (WALKER 1977 p 27) Parece ser

igualmente simples perceber que procurar unidade de estilo na obra de um

compositor que como Schnittke professa a diversidade estiliacutestica estaacute fora de

cogitaccedilatildeo

Em um sentido geral nessa linha da produccedilatildeo contemporacircnea em que os

valores esteacuteticos seguem com base na continuidade das caracteriacutesticas inerentes da

Modernidade permanece importando em primeiro plano o processo criativo O que

significa que o resultado segue sendo uma arte centrada no fazer fundamentada na

poiacuteēsis acima de qualquer outro criteacuterio valorativo Isso significa que seus

fundamentos permanecem focalizados no indiviacuteduo criador que se coloca

8 Esta peccedila eacute uma transcriccedilatildeo da Sonata nordm 1 Op 30 (1963) para violino e piano 9 Eacute interessante notar que o proacuteprio Mozart jaacute fazia colagens com alusotildees ao estilo elevado e ao estilo baixo em suas oacuteperas Don Giovanni e Bodas de Fiacutegaro que causaram polecircmica em algumas cidades europeias devido ao seu conteuacutedo que subvertia os valores sociais da eacutepoca

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livremente como um inventor de novas sonoridades novas combinaccedilotildees acuacutesticas

novas teacutecnicas novos materiais e novos processos de elaboraccedilatildeo musical

22 Retorno agrave Tradiccedilatildeo

Ao contraacuterio da acepccedilatildeo anterior os muacutesicos que se colocam de maneira

favoraacutevel com relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo tecircm sua fundamentaccedilatildeo na criacutetica ao Historicismo

Assim questionam a crenccedila de que as transformaccedilotildees histoacutericas satildeo o resultado de

princiacutepios universais tatildeo objetivos quanto as leis da Fiacutesica ou das Ciecircncias Naturais

e que eacute necessaacuterio descobrir quais satildeo esses princiacutepios para operar sobre eles10 Os

muacutesicos que se alinham agraves tendecircncias de retorno agrave tradiccedilatildeo fazem criacutetica a essa

concepccedilatildeo unidirecional da Histoacuteria e creem na possibilidade de sobreposiccedilatildeo das

diversas produccedilotildees musicais do passado e do presente o que significa que esses

muacutesicos estatildeo dispostos a retomar experiecircncias anteriores de qualquer eacutepoca ou

lugar ou evocar essas experiecircncias a partir de novos pontos de vista com o intuito

de atualizaacute-las em um momento especiacutefico da contemporaneidade

(Com relaccedilatildeo a essa discussatildeo os muacutesicos que se aplicam agrave continuidade da

Modernidade operam em grande parte com aquele princiacutepio historicista poreacutem jaacute

compreendido em contextos especiacuteficos e natildeo mais universais Nesta acepccedilatildeo da

muacutesica contemporacircnea ainda se tem a Histoacuteria como a dimensatildeo mais abrangente

para a explicaccedilatildeo da realidade e das transformaccedilotildees sociais e culturais A diferenccedila

com relaccedilatildeo agraves explicaccedilotildees modernas estaacute em que a dimensatildeo histoacuterica eacute

compreendida a partir de um ou outro ponto de vista isto eacute busca-se contextualizar

e relativizar os princiacutepios histoacutericos mesmo que esses princiacutepios ainda sejam

considerados como a melhor via de explicaccedilatildeo das transformaccedilotildees sociais poliacuteticas

econocircmicas ou culturais)

Entendido dessa maneira percebe-se que com relaccedilatildeo agrave ldquoideia filosoacutefica de

continuidaderdquo (para retomar agrave expressatildeo de Schnittke citada anteriormente)

aqueles muacutesicos que se colocam na posiccedilatildeo de lsquoretorno agrave tradiccedilatildeorsquo assumem uma

10 No acircmbito especiacutefico da muacutesica isso significaria a existecircncia de um direcionamento uniacutevoco dos fatos musicais atraveacutes da Histoacuteria e que a tarefa do muacutesico seria encontrar os princiacutepios que regem esse fluir contiacutenuo para criar a partir deles e transcendecirc-los

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postura necessariamente antagocircnica a qualquer espeacutecie de Historicismo mesmo

contextual ou relativo Com isso tem-se uma antinomia existente entre os dois

pontos de vista pois se para aqueles que pretendem dar continuidade aos valores

da Modernidade a tradiccedilatildeo deve ser investigada para ser ultrapassada no sentido

de que o artista deve dar continuidade agraves transformaccedilotildees histoacutericas para estar agrave

altura de seu tempo para aqueles que defendem o retorno ao passado a tradiccedilatildeo

deve ser compreendida para servir de suporte agrave criaccedilatildeo da nova muacutesica que natildeo

tem necessariamente que ultrapassaacute-la mas operar com ela

A atitude mais saliente na acepccedilatildeo da muacutesica atual de lsquoretorno agrave tradiccedilatildeorsquo eacute

a busca de valores e elementos estiliacutesticos do passado com o sentido de aproveitaacute-

los em estruturas musicais homogecircneas Essa caracteriacutestica distingue esse grupo

de valores de retorno ao passado dos outros dois grupos (lsquocontinuidade da

Modernidadersquo e lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo) para os quais as possibilidades de

aproveitamento de elementos diacutespares se daacute atraveacutes da fragmentaccedilatildeo e da colagem

heterofocircnica Com isso tem-se outro aspecto diferencial na relaccedilatildeo entre as

acepccedilotildees da muacutesica atual pois se por um lado aqueles que pretendem ultrapassar

a tradiccedilatildeo operam sobre um princiacutepio de continuidade histoacuterica que deve ser

reconhecido e ampliado por outro lado esses mesmos muacutesicos propotildeem a

descontinuidade e a fragmentaccedilatildeo da estrutura musical per se quando se trata de

cada peccedila de muacutesica em particular pois compreendem que estruturas sonoras

contiacutenuas jaacute estariam ultrapassadas por fazerem recuar agraves caracteriacutesticas mais

proeminentes da muacutesica tonal ou seja agraves praacuteticas musicais do seacuteculo XVIII e XIX

cujas possibilidades de discursividade e narratividade jaacute estariam esgotadas

Ao contraacuterio os muacutesicos que professam o retorno agrave tradiccedilatildeo por serem

criacuteticos com relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo diacrocircnica da Histoacuteria geralmente argumentam

em favor da retomada de estruturas musicais contiacutenuas por entenderem que os

processos de fragmentaccedilatildeo operados pelas vanguardas jaacute foram exauridos ao

extremo e portanto esvaziados Assim ao defenderem concepccedilotildees sincrocircnicas dos

fatos histoacutericos segundo as quais se pode ter uma percepccedilatildeo de ldquotudo ao mesmo

tempo agorardquo se sentem agrave vontade para sobrepor os meacutetodos de elaboraccedilatildeo

musical do Classicismo ou do Romantismo aos seus anseios de iacutendole

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eminentemente contemporacircnea Tem-se assim outra constataccedilatildeo que

complementa aquela do paraacutegrafo anterior os muacutesicos que se alinham aos

princiacutepios de retorno agrave tradiccedilatildeo propotildeem uma leitura sincrocircnica e portanto

descontiacutenua da Histoacuteria poreacutem a estrutura musical resultante da elaboraccedilatildeo de cada

peccedila particular se torna contiacutenua pelo resgate de processos discursivos e narrativos

em suas composiccedilotildees

Essas praacuteticas de retorno ao passado muitas vezes satildeo professadas sem a

definiccedilatildeo de eacutepoca ou regiatildeo especiacutefica mas se abrem agrave possibilidade de passar

por diferentes pontos geograacuteficos mais ou menos remotos e por diferentes periacuteodos

da Histoacuteria sem que isso signifique a perda da coesatildeo estiliacutestica (a identidade

estiliacutestica se torna novamente importante apesar de natildeo ser mais um princiacutepio

esteacutetico inflexiacutevel) De qualquer forma mesmo com uma concepccedilatildeo sincrocircnica da

Histoacuteria eacute comum que muitos desses muacutesicos se fixem em algum ponto do tempo

ou do espaccedilo para a criaccedilatildeo de uma peccedila ou de um conjunto de obras Outra

caracteriacutestica bastante comum entre os muacutesicos que se esforccedilam em retomar

aspectos da tradiccedilatildeo eacute o fato de centrarem seus esforccedilos na investigaccedilatildeo da muacutesica

europeia Isso natildeo significa que natildeo existem estudos sobre a muacutesica de outras

culturas sendo que os processos musicais extraeuropeus mais estudados satildeo o

sistema de ragas da muacutesica indiana e a estrutura riacutetmica aditiva da muacutesica africana

e oriental Um bom exemplo nesse sentido eacute a temporada que Steve Reich passou

em Gana em 1970 periacuteodo em que estudou sob a orientaccedilatildeo de um percussionista

jeje no Instituto de Estudos Africanos experiecircncia que lhe permitiu acrescentar

processos riacutetmicos aditivos e subtrativos agrave sua muacutesica ampliando as possibilidades

das suas primeiras experiecircncias minimalistas

Devido agrave inclinaccedilatildeo para aproveitar caracteriacutesticas da muacutesica do passado

vaacuterios muacutesicos tecircm sido criticados como portadores de uma postura conservadora

Michel Faure um criacutetico severo do Neoclassicismo francecircs do entre guerras por

consideraacute-lo um estilo ldquosocialmente concordataacuteriordquo e de ldquoafirmaccedilatildeo nacionalistardquo

considera ser essa atitude de retorno ao passado existente na muacutesica

contemporacircnea uma espeacutecie de reediccedilatildeo do Neoclassicismo histoacuterico Para o autor

ldquoos neoclaacutessicos natildeo satildeo jamais considerados como reacionaacuterios ndash assim como os

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poacutes-modernos natildeo aceitam a pecha de passadistas [] Os empreacutestimos que eles

fazem frequentemente lsquodescontextualizamrsquo os fragmentos aos quais fazem

referecircnciardquo (FAURE 1998 p 78) Bem ressurge aqui o mesmo problema da criacutetica

mal direcionada jaacute mencionado anteriormente Se a intenccedilatildeo desses muacutesicos eacute

recuperar processos tradicionais se buscam criar uma espeacutecie de representaccedilatildeo da

multiplicidade cultural da contemporaneidade atraveacutes da apropriaccedilatildeo do legado

histoacuterico nada mais adequado do que a descontextualizaccedilatildeo dos materiais

empregados de sua lsquohistoricidadersquo original e sua adequaccedilatildeo agrave nova situaccedilatildeo em que

esses elementos se encontram Percebe-se na criacutetica de Faure preceitos de

continuidade e pureza histoacuterica que natildeo se adeacutequam aos neoclaacutessicos nem aos poacutes-

modernos pois ambos subvertem os coacutedigos que servem de premissa agrave sua criacutetica

Um dos arautos da nova muacutesica Boudewijn Buckinx apresenta um exemplo

muito comum de retomada da tradiccedilatildeo ao afirmar que o compositor atual ldquonatildeo

escreve tatildeo-somente um concerto grosso Ele escolhe uma possibilidade ndash o

concerto grosso ndash entre diversas Portanto natildeo eacute propriamente um concerto grosso

mas uma peccedila que toma o concerto grosso por sujeitordquo (BUCKINX 1998 p 60-61)

Poder-se-ia dizer tomando de empreacutestimo as palavras de Wolfgang Rihm que se

trata de uma ldquomuacutesica sobre a muacutesicardquo ou em alguns casos de muacutesica sobre

muacutesicas Se assim for a criacutetica de Faure se esvazia pois existe uma tecircnue diferenccedila

entre permanecer em determinado estado de coisas sem se aventurar a outros e

voltar a esse estado quando se tem interesse em recorrer a ele Esta eacute a divergecircncia

existente entre o conservadorismo preacute-moderno mencionado anteriormente e a

tendecircncia contemporacircnea de retorno agrave tradiccedilatildeo (distinccedilatildeo que o conservadorismo

modernista parece natildeo ser capaz de perceber) natildeo se estaacute no passado volta-se a

ele quando se o considera adequado

Em vista disso torna-se importante entender como os processos e materiais

tradicionais satildeo reutilizados sob a perspectiva da nova muacutesica para diferenciar a

atitude de retorno agrave tradiccedilatildeo com base em um ponto de vista criacutetico da mera

permanecircncia conservadora de valores convencionais de forma subserviente e sem

nem mesmo compreender o que esses valores podem ter significado em sua

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eacutepoca11 Diferenciar aquilo que foi denominado no iniacutecio deste ensaio como

conservadorismo preacute-moderno da atitude criacutetica com relaccedilatildeo aos pontos de vista

historicistas e evolucionistas da cultura tambeacutem significa distinguir o conhecimento

extensivo da tradiccedilatildeo da simples sujeiccedilatildeo a valores passadistas Um artista que

pesquisa profundamente em sua aacuterea de atuaccedilatildeo natildeo se preocupa em primeiro

plano com a feiccedilatildeo externa dos resultados de suas investigaccedilotildees o que lhe

importam satildeo as possibilidades que suas descobertas podem trazer no plano da

criaccedilatildeo Ao contraacuterio um muacutesico que se apresenta com uma aparecircncia novidadeira

pode estar extremamente apegado agraves convenccedilotildees de determinada linha de

produccedilatildeo e mesmo que essa linha seja muito recente a falta de abertura para

outras aacutereas de investigaccedilatildeo pode mantecirc-lo submisso a convenccedilotildees jaacute assimiladas

por geraccedilotildees passadas mesmo que ele proacuteprio natildeo se aperceba disso Muitas

vezes a aparecircncia de novidade mascara uma seacuterie de valores apegados a

convenccedilotildees riacutegidas que natildeo se sustentariam sob o crivo da criacutetica

A sutil diferenccedila entre o Neotonalismo de um compositor como George

Rochberg (1918) e a imitaccedilatildeo trivial do estilo dos primeiros romacircnticos (sem ir aleacutem

dos procedimentos teacutecnicos) estaacute na atitude com relaccedilatildeo agrave lsquovivecircncia da

simultaneidadersquo Para Rochberg ldquoa esperanccedila da muacutesica contemporacircnea reside em

aprender como reconciliar todas as maneiras de opostos contradiccedilotildees paradoxos o

passado com o presente tonalidade com atonalidade Eacute por isso que em minha

muacutesica mais recente tenho tentado utilizar essas combinaccedilotildees que reafirmam os

valores primordiais da muacutesicardquo (ROCHBERG 2003 p 3) Essa noccedilatildeo da diferenccedila

entre o passado e o presente essa busca de conciliaccedilatildeo dos opostos diverge de um

ponto de vista conservador ou de uma postura epigocircnica pois o epiacutegono apenas

reproduz o passado agrave maneira deste ou daquele mestre ao passo que o artista

criador se apoia em aspectos do passado para produzir um trabalho artiacutestico que

11 Muitas vezes a simplificaccedilatildeo dos meios significa a criaccedilatildeo de algo que pode impulsionar grandes transformaccedilotildees Quando Giulio Caccini (1551-1618) defendia o uso de triacuteades maiores e menores para a elaboraccedilatildeo das nuove musiche de sua eacutepoca estava propalando uma simplificaccedilatildeo da textura musical uma homofonia mundana que se opunha agrave complexidade polifocircnica da muacutesica sacra Essa simplificaccedilatildeo trazia o germe para algumas das grandes conquistas da muacutesica europeia dos trezentos anos seguintes inclusive a criaccedilatildeo de um novo gecircnero musical a oacutepera

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traz algum frescor agrave educaccedilatildeo dos sentidos alguma maneira peculiar de descobrir

ou perceber o mundo

Com a retomada de processos de organizaccedilatildeo modal ou tonal haacute

necessariamente o retorno de melodias claramente definidas a renovaccedilatildeo das

teacutecnicas de contraponto e a ampliaccedilatildeo de estruturas harmocircnicas de caraacuteter

diatocircnico Um dos compositores mais importantes da vanguarda das deacutecadas de

1950 e 1960 Krzysztof Penderecki soube atualizar seu estilo em meados da

deacutecada de 1970 quando passou a combinar estruturas diatocircnicas ampliadas com

base na produccedilatildeo dos grandes sinfonistas da passagem do seacuteculo XIX ao seacuteculo XX

(Gustav Mahler e Richard Strauss entre outros) com os resultados de suas

pesquisas acuacutesticas do periacuteodo vanguardista A consequecircncia eacute uma muacutesica

fortemente dramaacutetica com aspectos que lembram o Romantismo tardio e elementos

da vanguarda da deacutecada de 1960 elaborados de maneira que o resultado se

apresenta como uma muacutesica inusitada que jamais poderia ter sido concebida em

outra eacutepoca ou por outro artista

O legado histoacuterico natildeo eacute mais desprezado ou entendido apenas como um

passado a ser ultrapassado mas ao contraacuterio eacute tambeacutem identificado como uma

fonte inesgotaacutevel de possibilidades teacutecnicas e expressivas que podem ser

reaproveitadas de muitas formas possiacuteveis sem que isso incorra necessariamente

em postura conservadora ou em atitude epigonal Outro compositor que tambeacutem

soube atualizar seus processos compositivos eacute o huacutengaro Gyorgy Ligeti que tem

combinado seus experimentos microtonais e estruturas micropolifocircnicas levados a

cabo nas deacutecadas de 1960 e 1970 com outros meacutetodos de organizaccedilatildeo harmocircnica

engendrados a partir das relaccedilotildees acuacutesticas baacutesicas existentes em seus

conglomerados sonoros Esses processos datildeo vazatildeo agrave existecircncia de linhas

meloacutedicas claramente definidas com caraacuteter modal vigoroso e algumas vezes

fazem alusotildees agrave muacutesica popular e folcloacuterica de sua regiatildeo

Essa atitude com relaccedilatildeo ao passado traz novos modos de entendimento das

culturas tradicionais aleacutem da acomodaccedilatildeo de valores muitas vezes tomados como

contraditoacuterios em estruturas coesas Evidenciam-se natildeo apenas as tradiccedilotildees locais

com relaccedilatildeo agrave proacutepria formaccedilatildeo do indiviacuteduo como tambeacutem outras tradiccedilotildees que se

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buscam atraveacutes de meios natildeo-convencionais Compreende-se que natildeo eacute necessaacuterio

viver as experiecircncias de determinada sociedade para absorver parte de seus valores

ou de sua produccedilatildeo cultural ateacute porque os habitantes das grandes cidades estatildeo

expostos cotidianamente a tantos estiacutemulos advindos de origens distintas que se

criam identidades multiculturais mesmo quando natildeo se tem conhecimento intriacutenseco

de suas propriedades Qualquer cidadatildeo meacutedio atual tem noccedilotildees fundamentais

sobre os haacutebitos de vaacuterios povos originaacuterios de localidades onde nunca esteve A

tecnologia permite ao artista contemporacircneo ter acesso agrave produccedilatildeo de seus pares

de qualquer outra regiatildeo do planeta quase simultaneamente agrave sua criaccedilatildeo e

divulgaccedilatildeo Tambeacutem eacute possiacutevel conhecer aspectos de culturas remotas no tempo

atraveacutes de pesquisas arqueoloacutegicas e sua divulgaccedilatildeo em grande escala nos meios

de comunicaccedilatildeo Isso permite sermos contemporacircneos de outras eacutepocas e

conterracircneos dos povos de outros lugares

23 Superaccedilatildeo do Modernismo

As linhas de atuaccedilatildeo que se opotildeem agrave mentalidade das vanguardas tardias o

fazem por razotildees diversas daquelas que motivam as tendecircncias de retorno agrave

tradiccedilatildeo pois este retorno ao passado geralmente significa um passado visto pela

oacutetica da Modernidade (em geral satildeo leituras atualizadas das tradiccedilotildees do Ocidente

isto eacute das praacuteticas musicais do Renascimento ao Romantismo) Nesse sentido

especiacutefico haacute pontos em comum entre as duas acepccedilotildees abordadas anteriormente

(lsquocontinuidade da Modernidadersquo e lsquoretorno agrave Tradiccedilatildeorsquo) pois seja por dar

continuidade agraves praacuteticas da era moderna atraveacutes de sua ampliaccedilatildeo seja por

resgatar essas praacuteticas com base em novos meios de elaboraccedilatildeo musical a

Modernidade permanece como sendo forte ponto de referecircncia em ambos os casos

Diferentemente aqueles que se colocam com uma postura de lsquosuperaccedilatildeo do

Modernismorsquo geralmente focam seus interesses na ruptura com as tradiccedilotildees

modernistas mais recentes e natildeo na Modernidade como um todo

Aleacutem disso natildeo satildeo apenas as culturas tradicionais que interessam a esta

terceira linhagem mas tambeacutem outros aspectos da cultura contemporacircnea inclusive

a cultura pop e os meios de comunicaccedilatildeo de massa Esses muacutesicos acreditam

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estarem produzindo uma fissura na Modernidade ao se abrirem para toda e qualquer

espeacutecie de produccedilatildeo cultural sem hierarquizaacute-las12 Acreditam portanto que

estamos no iniacutecio de uma nova eacutepoca e natildeo em um periacuteodo de continuidade da

Modernidade ou de retomada dos valores de sua tradiccedilatildeo13

Podem-se esboccedilar algumas imagens geomeacutetricas para representar essas trecircs

formas de pensamento para a primeira acepccedilatildeo da muacutesica contemporacircnea que

professa a lsquocontinuidade da Modernidadersquo o tempo teria a imagem de uma linha reta

que se movimenta em determinado sentido (mesmo que alguns desses artistas

faccedilam criacutetica agrave mentalidade linear a linha parece bem representar o ponto de vista

evolucionista da cultura) para a segunda acepccedilatildeo aquela em que se pratica o

lsquoretorno agrave Tradiccedilatildeorsquo poder-se-ia formular a imagem do tempo em forma circular pois

o ciacuterculo eacute uma figura em que natildeo haacute sentido predeterminado pois se pode iniciar

ou terminar em qualquer ponto da circunferecircncia e se movimentar em sentido

horaacuterio ou anti-horaacuterio para a terceira acepccedilatildeo que propotildee a lsquosuperaccedilatildeo do

Modernismorsquo a imagem de uma esfera parece ser a mais adequada pois natildeo se

estaacute focando o tempo em apenas uma dimensatildeo mas abre-se o leque para toda e

qualquer manifestaccedilatildeo perceptiacutevel atualmente no tempo e no espaccedilo Com isso

tem-se a possibilidade de produzir movimentos de qualquer ponto para qualquer

outro ponto seguindo em qualquer sentido ou direccedilatildeo (para baixopara cima para a

esquerdapara a direita para traacutespara frente) ndash por isso a imagem tridimensional14

12 Note-se que neste aspecto haacute pontos de interseccedilatildeo entre certas tendecircncias de lsquocontinuidade da Modernidadersquo e aquelas que professam a lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo pois o princiacutepio da poliestiliacutestica defendido por Schnittke e outros tambeacutem rompe com a hierarquizaccedilatildeo dos estilos O que diferencia ambos os grupos eacute o enfoque com que cada qual se apropria das diferentes formas de manifestaccedilatildeo cultural 13 Tambeacutem nesse sentido haacute interseccedilatildeo entre as duas acepccedilotildees pois se as tendecircncias de lsquocontinuidade da Modernidadersquo professam a ruptura com a tradiccedilatildeo musical oitocentista as tendecircncias de lsquosuperaccedilatildeo do Modernismorsquo professam outra ruptura com as tradiccedilotildees novecentistas Em ambos os casos haacute valores centrados no princiacutepio da ruptura mesmo que na primeira acepccedilatildeo esta ruptura faccedila parte de um processo contiacutenuo de superaccedilatildeo da tradiccedilatildeo e no segundo caso seja entendida como uma fissura nesse processo 14 Este recurso de traccedilar analogias entre a estrutura das mentalidades e figuras geomeacutetricas jaacute foi delineado por Koellreutter (cf KOELLREUTTER 1987 p 29-32) compositor que confeccionou a partitura de sua peccedila Acronon em formato de esfera para representar sua concepccedilatildeo da mentalidade contemporacircnea Para Koellreutter poreacutem essas analogias aparecem com sentido diverso daquele apresentado aqui

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Para aqueles que se posicionam pela superaccedilatildeo do Modernismo as

vanguardas satildeo tidas como sendo formalistas ao extremo por se apoiarem

especificamente em criteacuterios teacutecnicos e formais para efetuarem seus julgamentos

Para entender o alcance dessa criacutetica eacute necessaacuterio adentrar um pouco em

algumas acepccedilotildees do termo lsquoformalismorsquo

Em seu Vocabulaacuterio de Esteacutetica Souriau informa que

[] eacute formalista aquele que daacute grande importacircncia agrave forma ou agraves formas poreacutem o termo forma pode ser tomado em diversos sentidos pode-se dar importacircncia a algo por razotildees de ordens bastante diferentes e enfim o termo formalismo foi frequentemente utilizado de maneira polecircmica mas em conflitos que natildeo eram sempre os mesmos de sorte que a palavra formalismo tem diversos sentidos que natildeo coincidem e cuja confusatildeo pode conduzir a erros graves (SOURIAU 1999 p 758)

Podem-se estabelecer a partir das classificaccedilotildees de Souriau trecircs sentidos

principais aplicados ao formalismo esteacutetico e empregados na criacutetica agraves tendecircncias

vanguardistas O primeiro sentido coincide com a censura a Hanslick criacutetico musical

de orientaccedilatildeo kantiana para quem a beleza esteacutetica seria inerente agrave existecircncia de

uma forma equilibrada e bem proporcionada o segundo sentido tem a ver com a

oposiccedilatildeo entre forma e conteuacutedo e se dirige principalmente agraves tendecircncias

modernistas de caraacuteter anticonteudista para as quais a estrutura eacute mais importante

do que o conteuacutedo representado ndash o que significa que para os criacuteticos atuais do

Modernismo o conteuacutedo ganha nova forccedila no terceiro sentido o termo lsquoformalistarsquo eacute

empregado para censurar as tendecircncias vanguardistas por centrarem suas

investigaccedilotildees em estruturas musicais abstratas criadas aprioristicamente sem levar

em consideraccedilatildeo a observaccedilatildeo do meio social ou cultural o que muitas vezes eacute

entendido como desprezo pela realidade

Em geral essas criacuteticas ao lsquoformalismorsquo das vanguardas surgem como

reaccedilotildees ao posicionamento antagocircnico dos muacutesicos de vanguarda das deacutecadas de

1950 e 1960 com relaccedilatildeo agrave muacutesica com sentido narrativo que necessariamente

traz o conteuacutedo ao primeiro plano e por conseguinte desvia a percepccedilatildeo dos

recursos teacutecnicos dos materiais sonoros e dos processos acuacutesticos envolvidos na

apreciaccedilatildeo musical Essa criacutetica modernista ao conteuacutedo vinha embutida em uma

criacutetica geral ao Romantismo e agrave muacutesica descritiva representada no seacuteculo XIX pelo

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lsquopoema sinfocircnicorsquo e pelas lsquopeccedilas caracteriacutesticasrsquo Ainda hoje em certos meios

musicais eacute comum a restriccedilatildeo agrave muacutesica descritiva em geral

Os muacutesicos vinculados agravequela via que pretende a superaccedilatildeo do Modernismo

ndash que agraves vezes chamam pejorativamente os movimentos de poacutes-vanguarda de

lsquoultramodernosrsquo ou lsquohipermodernosrsquo entendendo-os como o fruto de uma atitude

conservadora (cf BUCKINX 1998 p 22) ndash consideram que o lsquoformalismorsquo

vanguardista afastou o puacuteblico das salas de concerto e buscam novos processos de

comunicabilidade atraveacutes da investigaccedilatildeo mais ou menos sistemaacutetica de processos

narrativos e pela incorporaccedilatildeo da significaccedilatildeo musical direta

Eacute interessante notar a afericcedilatildeo de valor aos termos mencionados acima

lsquoUltramodernismorsquo e lsquoHipermodernismorsquo se essas expressotildees satildeo consideradas

negativamente pelos muacutesicos que professam a superaccedilatildeo do Modernismo satildeo

entendidas com sentido favoraacutevel pelos partidaacuterios da poacutes-vanguarda que

empregam essa terminologia para demonstrar que consideram determinada parcela

da produccedilatildeo atual como sendo extremamente significativa pois se apoiam nos

valores vanguardistas e os ultrapassam

Tem-se tambeacutem outra diferenccedila terminoloacutegica operada por alguns autores

que se faz apenas mudando a ordem dos termos lsquonova muacutesicarsquo e lsquomuacutesica novarsquo

Esta expressatildeo que foi amplamente empregada ao longo das deacutecadas de 1950 e

1960 estaacute ligada agraves tendecircncias vanguardistas e poacutes-vanguardistas No Brasil

houve inclusive um movimento de vanguarda autodenominado lsquoGrupo Muacutesica

Novarsquo que lanccedilou seu manifesto em 1963 com base nos princiacutepios do

Construtivismo e do Concretismo e terminou por influenciar o movimento

tropicalista na muacutesica popular O termo lsquonova muacutesicarsquo surgiu na deacutecada de 1990 na

Europa como contraposiccedilatildeo ao conceito de lsquomuacutesica novarsquo trata-se de muacutesicos que

absorvem diversas influecircncias e atuam em vaacuterias direccedilotildees natildeo pressupondo

qualquer identidade teoacuterica ou estiliacutestica entre si

Mesmo se eles satildeo muito diferentes e se tecircm personalidades e escrituras proacuteprias todos esses compositores se afastaram voluntariamente da corrente atonal da muacutesica contemporacircnea Eles sofreram diferentes influecircncias indo de muacutesicas natildeo-ocidentais ao jazz ao rock agrave muacutesica de variedades internacional passando pelo disco pelo funk ateacute a muacutesica techno e inclusive pelas generalidades de programas televisivos O que eles

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tecircm em comum eacute o fato de escutar o mundo sonoro que os envolve e que eacute o fundo musical de todos noacutes Eles tambeacutem tecircm uma filiaccedilatildeo direta a Stravinsky Eacute por isso que se pode separar a muacutesica lsquoeruditarsquo de hoje em duas grandes correntes A corrente lsquotonalrsquo consonante por opccedilatildeo pulsante e meloacutedica se situando em uma linha mais expressiva geralmente chamada de lsquoNova Muacutesicarsquo A corrente lsquoatonalrsquo caracterizada pela utilizaccedilatildeo quase sistemaacutetica de saltos de registro de assimetria riacutetmica e de dissonacircncias chamada tambeacutem de lsquomuacutesica contemporacircnearsquo (LELONG 1996 p 11)

Um dos movimentos de superaccedilatildeo do Modernismo que se pode colocar

como precursor dessa noccedilatildeo de lsquonova muacutesicarsquo eacute a lsquoNova Simplicidadersquo que teve

seu iniacutecio na deacutecada de 1970 com um grupo de compositores alematildees encabeccedilados

por Walter Zimmermann (1949) e Wolfgang Rihm (1952) Esses muacutesicos defendiam

a liberdade de escrita e a dissoluccedilatildeo do peso da Histoacuteria ndash que na sua opiniatildeo

engessava as praacuteticas vanguardistas ndash e preconizavam a absorccedilatildeo de experiecircncias

subjetivas de toda e qualquer natureza (vivecircncias impulsos emoccedilotildees preferecircncias

etc) que pudessem conduzir agrave produccedilatildeo de novos processos narrativos e agrave

depuraccedilatildeo dos meios empregados para a criaccedilatildeo musical Com essas intenccedilotildees

movimentaram-se na direccedilatildeo de estruturas mais elementares com gestos musicais

breves e texturas transparentes Entretanto os praticantes da Nova Simplicidade

natildeo se desviaram de configuraccedilotildees atonais apenas acrescentaram elementos de

caraacuteter tonal e deram vazatildeo a uma certa expressividade liacuterica em sua produccedilatildeo

Rihm em entrevista a Noreen e Cody comenta suas experiecircncias dos anos rsquo70 e

rsquo80

Eu sou um compositor intuitivo Mesmo se natildeo o fosse somente poderia escrever a minha proacutepria muacutesica Natildeo se pode criar arte com tabus Naturalmente somente quebrando tabus tambeacutem natildeo se faz arte Em ambos os casos o que surge satildeo objetos que [apenas] se parecem com arte [] De volta agraves triacuteades eu natildeo era de nenhuma maneira o uacutenico a empregaacute-las Talvez em minha muacutesica elas chocassem de forma mais provocativa provavelmente porque natildeo serviam ao propoacutesito de garantir lsquobelezarsquo mas eram empregadas no mesmo niacutevel que (quase) qualquer outra manifestaccedilatildeo sonora governadas por fluxos expressivos que natildeo poderiam ser inteiramente analisados de modo racional Isso era equivalente agrave alta traiccedilatildeo aos olhos dos modernistas (RIHM 2006 p 2)

Compositores que parecem seguir nessa mesma direccedilatildeo poreacutem com

interesses distintos satildeo os franceses Pascal Dusapin (1955) que trabalha com

misturas de elementos tonais e atonais carregados de forte lirismo e Reacutegis Campo

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(1968) cuja peccedila Commedia (1995) de escritura amplamente stravinskyana estaacute

organizada agrave base de muacuteltiplas linhas contrapontiacutesticas que se movimentam em

torno de uma melodia que se estende por quase quinze minutos

Outros grupos que tecircm sido bastante difundidos nos uacuteltimos anos satildeo

aqueles derivados do Minimalismo e que portanto empregam teacutecnicas de

organizaccedilatildeo repetitiva com base em um miacutenimo de elementos formadores de

processos sonoros Esses elementos baacutesicos ndash constituiacutedos de poucas notas

estrutura harmocircnica simples e riacutetmica perioacutedica ndash geralmente satildeo elaborados de

forma extremamente gradativa com a intenccedilatildeo de dar tempo agrave escuta Com isso

pretende-se dar ecircnfase aos processos perceptivos acima de qualquer princiacutepio

compositivo

O Minimalismo ortodoxo aquele dos anos 60 estava centrado em estruturas

ininterruptas fixas regulares e contiacutenuas no tempo Steve Reich partiu para suas

realizaccedilotildees mais peculiares da eacutepoca da experiecircncia de ouvir a mesma gravaccedilatildeo

reproduzida em dois aparelhos diferentes com rotaccedilotildees distintas o que gerou uma

defasagem gradual de tempo entre uma reproduccedilatildeo e outra O compositor declarou

[] enquanto eu ouvia esse processo gradual de mudanccedila de fase comecei a imaginar que esta seria uma forma extraordinaacuteria de estruturaccedilatildeo musical Esse processo afetou-me como um meio de alcanccedilar determinado nuacutemero de relaccedilotildees entre duas identidades sem nenhuma transiccedilatildeo Era um processo musical sem emenda ininterrupto (REICH apud SCHWARZ 1996 p 61)

Eacute interessante notar como esses princiacutepios de Reich e seus colegas

minimalistas da deacutecada de 1960 satildeo bastante lsquoformalistasrsquo para os muacutesicos mais

jovens e nesse sentido se assemelham aos valores vanguardistas da mesma

eacutepoca pois as preocupaccedilotildees com o processo com a estrutura ou com as teacutecnicas

de composiccedilatildeo estatildeo acima de qualquer outro aspecto envolvido na atividade

compositiva Por essa razatildeo essa fase do Minimalismo pode ser considerada como

sendo a uacuteltima manifestaccedilatildeo modernista pois mesmo que os processos de escuta

jaacute estivessem em evidecircncia o interesse principal estaacute na construccedilatildeo de estruturas

musicais abstratas Ao comparar a mentalidade de Reich da deacutecada de 1960 com

alguns comentaacuterios de John Adams (1947) um dos compositores mais destacados

da corrente atual a que alguns chamam de Poacutes-Minimalismo percebe-se que o

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ponto de vista deste estaacute descentrado do fazer e mais voltado para a absorccedilatildeo do

meio sonoro circundante

Eu sempre fui profundamente influenciado pelo rock pelo jazz e pela muacutesica pop Creio que eacute uma parte importante da experiecircncia de um norte-americano e penso que eacute a linha de demarcaccedilatildeo entre a velha geraccedilatildeo de compositores eruditos aqueles que nasceram antes da guerra e minha geraccedilatildeo ou a dos meus alunos Eacute por isso que natildeo tento me afastar dessa muacutesica nem tapar os ouvidos para ela Entretanto ao ler John Cage a gente nota que ele natildeo era sensiacutevel a essa muacutesica e ateacute mesmo a execrava Por minha parte eu gosto e ela influenciou bastante a minha proacutepria muacutesica (ADAMS 1996 p 20)

Ao contraacuterio do purismo muitas vezes pretendido pelos muacutesicos das deacutecadas

de 1950 e 1960 (que geralmente buscavam um estilo original sem admitir

ascendecircncias externas expliacutecitas pois essas influecircncias15 eram transformadas ateacute o

ponto em que se tornavam imperceptiacuteveis ou eram incorporadas em estruturas que

natildeo poderiam ser remetidas a outras realidades que a da proacutepria muacutesica em

questatildeo) vaacuterios compositores atuais estatildeo buscando a assimilaccedilatildeo expliacutecita de

diferentes fontes desde a muacutesica claacutessica europeia e a muacutesica tradicional de outras

culturas ateacute as diferentes manifestaccedilotildees populares e dos meios de comunicaccedilatildeo de

massa Adams eacute preciso a esse respeito

O que distingue minha muacutesica das outras eacute o fato de que ela eacute tatildeo lsquomiscigenadarsquo Se eu comparo minha muacutesica com a de Morton Feldman que eacute tatildeo pura a minha eacute uma espeacutecie de lsquogrande lixeirarsquo ali se encontra de tudo como em um grande lsquoensopadorsquo [] Cresci ao longo de um periacuteodo em que se podia escutar de tudo pois tudo estava registrado e isso vai continuar no proacuteximo milecircnio Eu costumo surfar na Internet todo o tempo e posso andar por tudo (ADAMS 1996 p 21)

Natildeo apenas Adams e os poacutes-minimalistas (que se diferenciam do

Minimalismo histoacuterico pela assimilaccedilatildeo expliacutecita de elementos exoacutegenos) como

tambeacutem outros muacutesicos das novas geraccedilotildees aproveitam influecircncias atraveacutes da

incorporaccedilatildeo de estilemas16 apropriados de diferentes tradiccedilotildees o que tambeacutem pode

15 O termo lsquoinfluecircnciarsquo foi tomado durante algum tempo como sendo depreciativo por indicar a ascendecircncia de determinado artista ou escola sobre outros Atualmente para os compositores das novas geraccedilotildees a ideia de ascendecircncia parece natildeo gerar constrangimento sendo inclusive um valor a ser aproveitado 16 lsquoEstilemarsquo eacute um termo apropriado da linguiacutestica empregado para designar traccedilos estiliacutesticos caracteriacutesticos de determinada obra escritor ou escola literaacuteria o que em muacutesica pode ser indicado

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incluir teacutecnicas de vanguarda Com isso esta muacutesica se torna mais corpoacuterea estaacute

vinculada agrave realidade circundante ou em outras palavras se faz mais mundana

Isso tambeacutem se deve agrave introduccedilatildeo de elementos de linguagens musicais

vernaculares consideradas como sendo parte da lsquofalarsquo cotidiana seja a muacutesica

autoacutectone ou a muacutesica tocada nos meios de comunicaccedilatildeo e que se torna com o

passar do tempo tatildeo absorvida pelas mentalidades que passa a ser entendida como

lsquolinguagem comumrsquo

Os chilenos Eduardo Caacuteceres (1954) e Aliosha Solovera (1963) tecircm

incorporado elementos de tradiccedilotildees locais em suas criaccedilotildees de caraacuteter

experimental Caacuteceres em sua peccedila Canciones ceremoniales para aprendiz de

machi para grupo vocal feminino aproveita textos em liacutengua mapudungum para

combinar diferentes ritmos apropriados dos iacutendios mapuches Na peccedila Ressonandes

(2002) para dez flautas cujo tiacutetulo alude agrave lsquoressonacircncia dos Andesrsquo Solovera busca

ldquoestabelecer um viacutenculo com a muacutesica das culturas preacute-colombianasrdquo atraveacutes da

experimentaccedilatildeo de sonoridades incomuns no instrumento Para o compositor ldquoa

flauta transversa se desliga de sua raiz cultural e eacute assumida em sua condiccedilatildeo mais

elementar como instrumento de soprordquo Eacute interessante notar nesse sentido o

paralelismo entre Ressonandes e a peccedila Nola (1994) para vaacuterias flautas e orquestra

de cordas do tajiquistanecircs Benjamin Yusupov (1962) que se refere agrave sua muacutesica da

seguinte maneira ldquoesta peccedila eacute uma busca de efeitos sonoros gerados pelas flautas

como se fossem instrumentos de cordas A combinaccedilatildeo com a muacutesica eacutetnica estaacute

associada a um certo esteticismo da muacutesica orientalrdquo Ambos aproveitam valores de

suas tradiccedilotildees locais para experimentar sonoridades inusuais em conjuntos de

flautas Solovera busca restituir o som elementar do sopro Yusupov tem o intuito de

fazer um instrumento de sopro soar como corda Apesar da similaridade conceptual

o resultado sonoro eacute bastante distinto

Em uma direccedilatildeo similar e com base em vivecircncias pessoais o colombiano

Angel Alfonso Rivera (1983) escreveu Quya-Killa (2013) para voz flauta percussatildeo

por padrotildees escalares contornos meloacutedicos figuraccedilotildees riacutetmicas encadeamentos harmocircnicos combinaccedilotildees instrumentais ou algum outro aspecto de qualquer natureza que identifique lsquoestilosrsquo ou lsquomaneirasrsquo

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(dois tom-tons maracas temple blocks prato suspenso) e piano A peccedila foi escrita a

partir da participaccedilatildeo em rituais e celebraccedilotildees indiacutegenas na Boliacutevia e no Peru dos

quais se destacam Pachamama (Ritual da Matildee Terra) Inti Raymi (Festa do Sol) e

Quya Raymi (Festa da Lua e da Fertilidade) A peccedila que eacute o resultado de

lembranccedilas afetivas desses rituais isto eacute os traccedilos que permanecem na memoacuteria

de forma pulsante e transformam a percepccedilatildeo do mundo estaacute organizada em trecircs

seccedilotildees derivadas das fases ritualpisticas Preparaccedilatildeo Oraccedilatildeo e Celebraccedilatildeo

Para o compositor

[] a muacutesica de culturas tribais gira em torno de um mundo proacuteprio com sonoridades que derivam do contorno da natureza dos animais e do proacuteprio homem As manifestaccedilotildees foneacuteticas os gestos e a miacutemica satildeo meios de comunicaccedilatildeo e neste contexto a muacutesica e a danccedila manifestam estreita relaccedilatildeo com os rituais e cerimocircnias [] Por se tratar de algo maacutegico e que possui caracteriacutesticas que podem ser aproveitadas na composiccedilatildeo considero que a imagem do ritual tem forte funccedilatildeo orientadora e organizacional sendo uma imagem que fundamenta e orienta os elementos do percurso criativo (RIVERA p 39-40)

Natildeo eacute necessaacuterio que o muacutesico esteja estreitamente vinculado a esta ou

agravequela tradiccedilatildeo para se sentir compelido a empregaacute-la em alguma obra O

compositor inglecircs Thomas Adegraves (1971) escreveu sua America a prophecy (1999)

para meio-soprano coro opcional e orquestra sinfocircnica para um projeto chamado

lsquoMensagens para o Milecircniorsquo promovido pela Orquestra Filarmocircnica de Nova Iorque

Interessante nesta peccedila eacute o fato de que o uacutenico texto em inglecircs eacute a traduccedilatildeo de um

fragmento da profecia maia que prenuncia o fim dos tempos os outros trechos

cantados na peccedila de Adegraves foram aproveitados de textos hispano-americanos Com

isso o compositor pretendia criar um mapa da Ameacuterica localizado ao Sul dos

Estados Unidos com o intuito de mostrar aos norte-americanos que eles natildeo foram

os primeiros americanos (escrito maia) como tambeacutem natildeo satildeo os uacutenicos

(fragmentos latino-americanos) Interessado pelas culturas preacute-colombianas e pelo

sincretismo cultural da Ameacuterica Latina atual o compositor disse em entrevista a

Tom Service que essa sua noccedilatildeo da Ameacuterica ldquocomeccedilou quando tive uma enorme

vista da piracircmide de Belize Havia aacutervores em todas as direccedilotildees Entretanto havia

estas pequenas saliecircncias que tambeacutem eram verdes e eram as antigas piracircmides

maiasrdquo (ADEgraveS apud FOX 2006 p 1) Outra representaccedilatildeo da Ameacuterica ocorreu-lhe a

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partir de um mapa surrealista publicado na revista belga Parietein em 1929 Essas

imagens aliadas aos textos escolhidos se tornaram o ponto de partida para a

estruturaccedilatildeo de America a prophecy

Outro exemplo agora no sentido da assimilaccedilatildeo dos meios de comunicaccedilatildeo

de massa em uma muacutesica de caraacuteter experimental eacute a peccedila de Michael Daugherty

(1954) intitulada Elvis Everywhere (1993) em que satildeo combinados cantores um

quarteto de cordas processos de manipulaccedilatildeo eletrocircnica dos sons e a voz de Elvis

Presley que funciona como uma espeacutecie de material unificador de todas as

sonoridades que acontecem ao longo da muacutesica

Natildeo posso escrever a miacutenima nota se natildeo tenho antes uma ideia Eacute geralmente um elemento visual um iacutedolo americano como Elvis um flamingo de plaacutestico cor-de-rosa ou ainda Jackie Kennedy que me evocam os sons [] Antes de compor Elvis Everywhere para o Quarteto Kronos assisti ao Congresso Internacional de Imitadores de Elvis onde ouvi cantar mais de duzentos Elvis Somente posso escrever muacutesica quando estou proacuteximo dela Seria difiacutecil transcrever musicalmente a poesia de Safo por exemplo Por outro lado assisti a todos os episoacutedios de Star Trek17 (DAUGHERTY 1996 p 105)

O que interessa para muitos artistas contemporacircneos eacute essa ruptura dos

limites daquilo que era tradicionalmente considerado como sendo lsquobom gostorsquo e lsquomau

gostorsquo lsquoarte e lsquoinduacutestria do entretenimentorsquo enfim todas as formas de dicotomia que

caracterizaram as correntes modernistas A intenccedilatildeo de superar essas dualidades

com uma atitude inclusiva em que as diferentes formas de manifestaccedilatildeo cultural

tecircm seu lugar na cultura contemporacircnea natildeo significa necessariamente aquela

postura ciacutenica do blaseacute que caracterizou o final do seacuteculo XX nas deacutecadas de 1980

e 1990 Ao contraacuterio estar aberto aos diferentes pontos de vista tambeacutem pode

significar assumir uma postura de caraacuteter pessoal poreacutem com o entendimento de

que esta eacute mais uma entre tantas possibilidades de conhecer a realidade e de se

relacionar com o mundo

Na busca de autonomia um grupo de compositores nova-iorquinos

encabeccedilados por Michael Gordon (1956) David Lang (1957) e Julia Wolfe (1958)

17 Essas consideraccedilotildees seriam impossiacuteveis se vindas de um compositor como Pierre Boulez por exemplo que consideraria essa assimilaccedilatildeo de elementos da cultura de massa como vulgarizaccedilatildeo da criaccedilatildeo musical

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criou o festival Bang on a Can e formou um grupo de cacircmara para divulgar sua

muacutesica e a de outros compositores de sua geraccedilatildeo18 Wolfe conta a origem do

festival em entrevista a Lelong

Noacutes queriacuteamos abalar as estruturas em Nova Iorque e ter um pretexto para tomarmos cafeacute da manhatilde juntos todos os dias Bang on a Can quase comeccedilou como uma brincadeira Noacutes chamamos assim ao primeiro festival porque pensamos que natildeo haveria outros mas terminou sendo um rastro de poacutelvora Muitas e muitas pessoas vieram no primeiro ano entre eles John Cage e Steve Reich Noacutes trabalhamos duramente para ampliar nosso puacuteblico para aleacutem do ciacuterculo dos amantes da Nova Muacutesica Fizemos nossa divulgaccedilatildeo bastante numerosa entre o puacuteblico de baleacute de teatro e de cinema Mesmo que o festival tenha se desenvolvido ainda se manteacutem a serviccedilo dos compositores com ideias novas com espiacuterito aventureiro O puacuteblico vem numeroso e entusiasmado a apresentaccedilatildeo eacute formidaacutevel descontraiacuteda o que tem o efeito de natildeo espantar a audiecircncia (WOLFE 1996 p 369-370)

O festival que existe desde 1987 se tornou um evento anual que conta com

um conjunto de cacircmara formado por solistas virtuoses o grupo Bang on a Can All-

Stars uma orquestra a Spit Orchestra gravaccedilotildees que satildeo lanccediladas em CD e

transmissotildees radiofocircnicas O grupo Bang on a Can All-Stars tem uma constituiccedilatildeo

heterogecircnea tanto do ponto de vista dos instrumentos que fazem parte do grupo

quanto da linha de atuaccedilatildeo de seus muacutesicos Formado por instrumentos como

piano saxofone clarinete violoncelo guitarra eleacutetrica baixo eleacutetrico e percussatildeo19 o

grupo se caracteriza pela mistura de sonoridades de muacutesica erudita muacutesica pop e

jazz A formaccedilatildeo e a praacutetica dos muacutesicos ndash que tocam em orquestras sinfocircnicas

tradicionais participam de shows ou concertos gravam discos de muacutesica pop e

tocam em bandas de jazz ndash possibilita trabalhar com repertoacuterios diversificados

Assim o grupo se propotildee a divulgar diferentes tipos de manifestaccedilatildeo musical da

contemporaneidade o que o difere de outros grupos ndash como por exemplo lsquoSteve

Reich and Musiciansrsquo lsquoMichael Nyman Bandrsquo ou lsquoPhilip Glass Ensemblersquo ndash que tecircm

em seu repertoacuterio somente a produccedilatildeo do proacuteprio compositor que daacute nome ao grupo

ou daqueles que estatildeo diretamente associados a ele

18 Essa praacutetica de criar o proacuteprio grupo musical jaacute havia sido praticada por muacutesicos como Steve Reich Philip Glass Louis Andriessen (1939) e Michael Nyman (1944) entre outros 19 Os muacutesicos do Bang on a Can All-Stars satildeo atualmente Vicky Chow teclados Ken Thomson sopros Ashley Bathgate violoncelo Mark Stewart guitarra eleacutetrica Robert Black contrabaixos David Cossin percussatildeo

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Percebe-se nessa postura comum a muitos muacutesicos atuais a busca pela

diferenccedila se tornando mais importante do que a pretensatildeo de identidade estiliacutestica

Esse aspecto resulta em outra caracteriacutestica difundida entre os compositores

contemporacircneos que se dedicam agrave investigaccedilatildeo de novos meacutetodos narrativos

Muitos compositores atuais tecircm formaccedilatildeo acadecircmica em aacutereas como linguiacutestica

letras comunicaccedilatildeo ou filosofia campos do conhecimento considerados como

sendo profiacutecuos para a criaccedilatildeo musical Vaacuterios compositores atuam como

professores universitaacuterios nessas aacutereas e desenvolvem seu trabalho criativo com

base nesse conhecimento mais do que em teacutecnicas tradicionais de composiccedilatildeo

Conhecem essas teacutecnicas mas preferem deixaacute-las em segundo plano no processo

criativo ndash o que difere de certas linhas vanguardistas das deacutecadas de 1950 e 1960

em que a invenccedilatildeo de novos processos de estruturaccedilatildeo e meacutetodos compositivos

estavam em primeiro plano

O compositor brasileiro Eduardo Seincman (1958) escreveu uma seacuterie

intitulada A Danccedila dos Duplos20 em que cada uma das cinco peccedilas que compotildeem o

ciclo destinada a uma formaccedilatildeo instrumental diferente foi concebida a partir de uma

experiecircncia extramusical A Danccedila de Dorian21 para piano a quatro matildeos foi escrita

a partir da leitura do romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde Esta peccedila

conteacutem diversos elementos que caracterizam a investigaccedilatildeo de novos processos

narrativos Excertos do texto de Wilde foram apostos agrave partitura para orientar os

muacutesicos sobre qual segmento do romance corresponde a cada uma das passagens

musicais O compositor chama a atenccedilatildeo no entanto para o fato de que natildeo se

trata de muacutesica programaacutetica pois sua intenccedilatildeo natildeo eacute produzir uma descriccedilatildeo

musical ipsis litteris da narrativa de Wilde mas criar uma narrativa paralela

estritamente musical e que natildeo se vincula diretamente agrave sequecircncia de episoacutedios do

20 A Danccedila dos Duplos eacute formada pelas seguintes peccedilas A Danccedila Misteriosa (1986 ldquopara um anjo que nasceraacuterdquo) para piano solo A Danccedila Luacutegubre (1987) para flauta contralto marimba e piano A Danccedila de Dorian (1988 ldquobaseada no romance O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilderdquo) para piano a quatro matildeos A Danccedila do Dibuk (1988 ldquobaseada na peccedila de teatro O Dibuk de Sch An-Skirdquo) para marimba vibrafone e glockenspiel A Uacuteltima Danccedila (1989 ldquoinspirada na leitura de O Cisne de Leonardo da Vincirdquo) para flauta contralto e dois vibrafones 21 Esta que foi a muacutesica tocada na Abertura do Simpoacutesio Agora Arte e Pensamento no dia 24 de outubro de 2006 pelas pianistas Carolina Avellar e Elaine Foltran

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romance Neste sentido tornam-se importantes as citaccedilotildees das obras musicais

apresentadas no texto nas cenas em que Dorian Gray toca piano ou assiste a um

concerto

Cria-se uma nova narratividade musical atraveacutes de uma sinestesia muacuteltipla

na audiccedilatildeo da obra A estrutura musical se desdobra como uma sequecircncia de

imagens (visuais taacuteteis auditivas e mesmo olfativas) que satildeo justapostas umas agraves

outras agraves vezes por meio de transiccedilotildees gradativas agraves vezes por meio de

interrupccedilotildees abruptas como cortes cinematograacuteficos Conforme a muacutesica se

aproxima do final vai-se tornando mais tensa e agitada criando a atmosfera para o

desfecho extraordinaacuterio (Dorian Gray natildeo envelhece porque eacute a figura pintada em

seu retrato que se torna mais velha) atraveacutes da precipitaccedilatildeo de uma cena na outra

com o propoacutesito de alterar o rumo dos acontecimentos de modo inesperado

Percebe-se nesse sentido uma espeacutecie de anaacutelogo musical daquilo a que

Aristoacuteteles chamaria de resoluccedilatildeo cataacutertica atraveacutes da lsquoperipeacuteteiarsquo (peripeacutecia) isto eacute

a incorporaccedilatildeo de encadeamentos imprevistos no decorrer da accedilatildeo com o sentido

de produzir alteraccedilotildees suacutebitas dos estados de humor Entre os tipos de narrativa

destacados por Aristoacuteteles (narrativa episoacutedica narrativa simples e narrativa

complexa) o filoacutesofo dava preferecircncia agrave narrativa complexa que produz expectativa

por meio do acuacutemulo de accedilotildees e pelo emprego de princiacutepios como a

verossimilhanccedila dessas accedilotildees a necessidade dos acontecimentos no curso da

histoacuteria o reconhecimento (descoberta) de uma situaccedilatildeo vivida poreacutem natildeo

compreendida anteriormente e o imprevisto produzido por novas situaccedilotildees

Peripeacutecia eacute uma viravolta das accedilotildees em sentido contraacuterio [] segundo a verossimilhanccedila ou necessidade [] O reconhecimento como a palavra mesma indica eacute a mudanccedila do desconhecimento ao conhecimento ou agrave amizade ou ao oacutedio das pessoas marcadas para a ventura ou desdita O mais belo reconhecimento eacute o que se daacute ao mesmo tempo em que uma peripeacutecia como aconteceu no Eacutedipo [] Nesse passo se verificam duas partes da faacutebula a peripeacutecia e o reconhecimento mas haacute uma terceira o pateacutetico [] O pateacutetico consiste numa accedilatildeo que produz destruiccedilatildeo ou sofrimento como mortes em cena dores cruciantes ferimentos e ocorrecircncias desse gecircnero (ARISTOacuteTELES 1997 p 30-31)

Naturalmente Aristoacuteteles natildeo exigia a concomitacircncia de todas essas linhas

narrativas para a produccedilatildeo de estados cataacuterticos que na trageacutedia antiga vinham

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geralmente associados agrave muacutesica Quando se escuta A Danccedila de Dorian de

Seincman poreacutem a impressatildeo que se tem eacute que todos esses processos se

acumulam nos trechos finais da peccedila produzindo vaacuterias camadas de expressatildeo que

extrapolam a significaccedilatildeo especificamente musical na direccedilatildeo de uma espeacutecie de

experiecircncia esteacutetica multissensorial geralmente possibilitada pela combinaccedilatildeo de

diferentes linguagens artiacutesticas (poesia teatro muacutesica artes visuais etc) Alguns

processos narrativos ou semacircnticos empregados se assemelham a formulaccedilotildees de

compositores romacircnticos como Robert Schumann (1810-1856) poreacutem a totalidade

do resultado seria algo impensaacutevel antes da concepccedilatildeo da muacutesica de Seincman

Outro compositor que se interessa pela criaccedilatildeo de sensaccedilotildees sinesteacutesicas eacute o

uzbequistanecircs Dimitri Yanov-Yanovski (1963) Segundo depoimento do compositor

sua muacutesica estaacute centrada na intenccedilatildeo de criar diferentes processos de estruturaccedilatildeo

do tempo musical atraveacutes da oposiccedilatildeo de duraccedilotildees heterogecircneas apresentadas

simultaneamente Esses meacutetodos produzem dois resultados distintos que se

complementam o efeito psicoloacutegico de contraccedilatildeo e distensatildeo do tempo e o

processo linguiacutestico de polifonia narrativa que eacute obtida pelo entrecruzamento de

muacuteltiplos significados (que podem ser musicais textuais dramaacuteticos ou plaacutesticos) A

investigaccedilatildeo de novos princiacutepios de comunicabilidade e a valorizaccedilatildeo do processo

musical por meio de meacutetodos repetitivos colocam Yanovski entre os compositores

atuais cujos trabalhos apresentam processos multidirecionais que resultam em

novas formas de produccedilatildeo e recepccedilatildeo musicais Tambeacutem nesse sentido vaacuterios

muacutesicos atuais se diferenciam das geraccedilotildees anteriores pois valorizam o ato de

recepccedilatildeo como sendo tatildeo ou mais importante do que as teacutecnicas de composiccedilatildeo

visto que entendem que estas devem estar a serviccedilo daqueles ndash o que conduz a

uma arte centrada nos processos esteacutesicos e nas possibilidades de interaccedilatildeo

comunicativa entre o compositor o inteacuterprete e o puacuteblico22

22 A avaliaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o compositor e o inteacuterprete eacute outro aspecto extremamente relevante nas discussotildees sobre a muacutesica contemporacircnea Nas tendecircncias vanguardistas em geral o compositor muitas vezes busca escrever uma ldquomuacutesica contra o instrumentordquo o que gera grandes dificuldades de execuccedilatildeo Brian Ferneyhough (1943) um dos mais importantes compositores da poacutes-vanguarda e partiacutecipe da Nova Complexidade (note-se o antagonismo com relaccedilatildeo agrave lsquoNova Simplicidadersquo) costuma dizer com intenccedilatildeo motivadora e polecircmica que escreve mais notas do que o muacutesico consegue tocar para que ele tenha que escolher entre as notas escritas e interferir no

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3 Traccedilos Gerais

Percebe-se com as reflexotildees apresentadas acima sobre aspectos da muacutesica

atual (e sempre lembrando que este ensaio aborda uma parcela da totalidade da

produccedilatildeo contemporacircnea) que vivemos em um periacuteodo em que haacute muacutesicos e

musicoacutelogos23 dedicados agrave investigaccedilatildeo de toda e qualquer produccedilatildeo musical seja

ela proacutexima ou distante geograficamente seja recente ou remota no tempo

Pesquisadores atuais dedicam-se inclusive agrave descoberta de processos e materiais

que natildeo satildeo condizentes com seu gosto pessoal pois o que importa eacute que toda e

qualquer parcela da produccedilatildeo humana estaacute aiacute para ser conhecida

independentemente agradar ou natildeo ao estudioso24

Assim quebram-se hierarquias seculares em que se considerava

determinada parcela da produccedilatildeo de alguma eacutepoca superior agraves outras ou se

entendia que determinada regiatildeo do planeta produz algo de maior importacircncia

cultural ou histoacuterica do que outras Essas posiccedilotildees etnocecircntricas ainda hoje

defendidas por alguns como o criacutetico literaacuterio Harold Bloom por exemplo satildeo

questionadas por natildeo serem condizentes com as infinitas possibilidades atuais de

acesso agrave informaccedilatildeo pois satildeo restritivas do ponto de vista do gosto no sentido em

que elevam opiniotildees meramente pessoais de seus autores agrave categoria de valor

universal

A postura abrangente de pensadores contemporacircneos como Michel Meyer

vem de encontro agravequeles pontos de vista exclusivistas em que se confunde lsquoopiniatildeorsquo

com lsquoconhecimentorsquo Para Meyer

[] cada um tem o direito de ser diferente de realizar sua diferenccedila contanto que a igualdade de direitos da [outra] pessoa seja respeitada

processo de criaccedilatildeo da obra de forma que cada nova interpretaccedilatildeo soaraacute diferente das demais Ferneyhough parece buscar resultados semelhantes aos de John Cage poreacutem pelo caminho inverso Essa discussatildeo poreacutem extrapola os limites deste ensaio 23 Vale esclarecer que se entende por musicoacutelogo aqui todo aquele profissional que se dedica agrave pesquisa em muacutesica seja atraveacutes da musicologia histoacuterica musicologia sistemaacutetica ou etnomusicologia da anaacutelise musical psicologia da muacutesica criacutetica musical ou da esteacutetica musical entre outras Sendo assim musicologia eacute entendida como sendo a aacuterea que engloba todos os campos teoacutericos do saber musical 24 Um bom exemplo neste sentido eacute a incansaacutevel pesquisa sobre o Neoclassicismo francecircs realizada

por Michel Faure musicoacutelogo que se posiciona antagonicamente com relaccedilatildeo agravequela tendecircncia esteacutetico-musical

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Inversamente a universalidade eacute imperativa mas natildeo pode secirc-lo em detrimento das diferenccedilas que constituiacutemos e que nos faz ser [aquilo que somos] Cada um tem o direito agrave sua histoacuteria e o dever de cada um eacute respeitar esse direito nos outros A universalidade sem diferenccedila eacute tatildeo totalitaacuteria quanto a diferenccedila sem universalidade (MEYER 2000 p 148)

Tem-se assim uma nova postura criacutetica (que tambeacutem pode ser denominada

metacriacutetica) a qual propotildee que ao exercitar a criacutetica se inicie fazendo criacutetica aos

proacuteprios valores pessoais e inclusive agraves possibilidades de exerciacutecio da criacutetica no

domiacutenio de determinados contextos Isso aplicado ao campo da muacutesica que eacute uma

arte e natildeo uma ciecircncia exata leva agrave abertura de novas perspectivas e ao

entendimento de que os pontos de vista dos outros tecircm tanto direito agrave existecircncia

quanto os nossos Isso natildeo significa igualdade de criteacuterios mas igualdade de direito

pois pode haver diferenccedilas na qualidade dos valores sendo que alguns princiacutepios

podem estar mais fundamentados do que outros O que faz levar em consideraccedilatildeo

que em qualquer sistema de valores os criteacuterios apropriados para sua avaliaccedilatildeo

estatildeo no exame de sua estrutura loacutegica interna entrecruzada com sua adequaccedilatildeo agrave

realidade Entretanto nem mesmo a argumentaccedilatildeo mais sistematizada e bem

fundamentada eacute garantia de excelecircncia em se tratando de arte pois esta eacute uma

aacuterea onde os criteacuterios satildeo qualitativos e portanto natildeo podem ser quantizados ndash e jaacute

houve quem (como Max Bense) se esforccedilou em mensurar matematicamente a arte

poreacutem em nenhum caso se alcanccedilou um resultado considerado minimamente

satisfatoacuterio junto agrave comunidade artiacutestica

Quando o muacutesico se torna mais receptivo agraves diferentes opiniotildees que circulam

no campo da esteacutetica musical percebe tambeacutem que diferentes processos musicais

podem ser combinados em uma uacutenica peccedila de muacutesica natildeo importando onde ou

quando esses processos se originaram Essas fontes podem ser justapostas uma

apoacutes a outra na sequecircncia de eventos sonoros assim como podem ser sobrepostas

em um uacutenico momento do tempo musical Isso depende de vaacuterios fatores muitos

deles ligados aos anseios do proacuteprio artista Tambeacutem se abrem novas possibilidades

de significaccedilatildeo atraveacutes da muacutesica que natildeo permanece restrita a valores

exclusivamente teacutecnicos ou formais Por outro lado a teacutecnica e a forma sempre

poderatildeo ser incorporadas em situaccedilotildees musicais de iacutendole mais ampla do que a

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mera oposiccedilatildeo dicotocircmica entre lsquomodernorsquo e lsquopoacutes-modernorsquo lsquomuacutesica novarsquo e lsquonova

muacutesicarsquo ou entre lsquopreferecircncia pela forma e pela teacutecnicarsquo e lsquopreferecircncia pelo conteuacutedo

e pelas estruturas narrativasrsquo Para o compositor italiano Luca Lombardi (1945)

ldquouma filosofia da nova muacutesica escrita hoje natildeo poderia dividir de maneira

maniqueiacutesta o mundo em [] progressistas e reacionaacuterios mas deveria dar conta da

multipolaridade da situaccedilatildeo atual A realidade ndash e natildeo somente a realidade musical ndash

eacute complexa contraditoacuteria e consequentemente ndash para exprimir em termos positivos ndash

ricardquo (Lombardi apud MICHEL 1998 p 104)

A tradiccedilatildeo natildeo eacute mais entendida como sistema fechado em que determinada

interpretaccedilatildeo se torna lsquoa explicaccedilatildeorsquo dos fatos mas tambeacutem satildeo valorizadas as

reaccedilotildees pessoais particularizadas e mesmo idiossincraacuteticas Tambeacutem se torna

problemaacutetico asseverar algo sobre lsquoa tradiccedilatildeorsquo sendo que se reconhece a

simultaneidade de inuacutemeras lsquotradiccedilotildeesrsquo algumas complementares entre si outras

antagocircnicas mas todas com igual direito agrave existecircncia A identidade passa pela

diferenccedila entre um e outro e essa diferenccedila passa pela universalidade dos valores

que podem reconhecer a diferenccedila de um no outro assim como a identidade de

cada um somente pode ser reconhecida quando se tem conhecimento da

universalidade relativa (ou contextual) de cada uma das partes constituintes do todo

identitaacuterio25 A valorizaccedilatildeo da diferenccedila pode conduzir agrave aceitaccedilatildeo da multiplicidade

das praacuteticas musicais seus materiais acuacutesticos suas teacutecnicas seus processos de

elaboraccedilatildeo seus significados intriacutensecos e extriacutensecos suas praacuteticas e seus

valores pois ldquoo conteuacutedo eacute em suma a teoria que daacute significado agrave muacutesicardquo

(BUCKINX 1998 p 91)

Como resultado tecircm-se alcanccedilado novas funcionalidades no campo musical

isto eacute descobrem-se novas possibilidades de uso ou aplicaccedilatildeo da muacutesica que

correspondem agraves necessidades das novas geraccedilotildees A diversidade de funccedilotildees

musicais que se disseminaram desde a Antiguidade foi-se tornando cada vez mais

restrita nos uacuteltimos anos do seacuteculo XX periacuteodo em que alguns dividiam as funccedilotildees

em apenas lsquomuacutesica de concertorsquo e lsquomuacutesica de entretenimentorsquo reforccedilando outra

25 Pluralia tantum mesmo o singular eacute plural

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dicotomia com caraacuteter de preconceito social Nos uacuteltimos anos outras funccedilotildees tecircm

sido observadas como a funccedilatildeo de aglutinaccedilatildeo social comum nas tribos indiacutegenas

que necessitavam da uniatildeo grupal para garantir a sobrevivecircncia Quando se pratica

muacutesica como interferecircncia urbana se traz um grande contingente de pessoas para

uma praccedila puacuteblica e se as oferece experiecircncias que se diferenciam do lugar-comum

estaacute-se recuperando aquela praacutetica de aglutinaccedilatildeo social

Quando o compositor estoniano Arvo Paumlrt (1935) busca sonoridades

medievais e orientais em combinaccedilatildeo com as siacutenteses operadas pelo Minimalismo

para expressar seus valores miacutesticos de caraacuteter ecumecircnico em uma peccedila como

Summa (1977) estaacute retomando a funccedilatildeo congregacional da muacutesica anteriormente

mantida somente no acircmbito dos templos religiosos A muacutesica de Paumlrt eacute tocada tanto

em rituais religiosos como em salas de concerto e em manifestaccedilotildees puacuteblicas ao ar

livre

Outra funccedilatildeo que estaacute sendo redescoberta por muacutesicos eruditos

contemporacircneos eacute a muacutesica de diversatildeo Cabe uma distinccedilatildeo importante entre os

termos lsquodivertirrsquo e lsquodistrairrsquo Divertir na acepccedilatildeo empregada aqui significa lsquoseparar-

se ser diferente divergirrsquo Assim a funccedilatildeo de divertir pode ser compreendida em

um sentido metacriacutetico como divergecircncia em relaccedilatildeo ao estado de coisas

dominante Distrair significa lsquorasgar vender a retalhorsquo tambeacutem pode ser entendido

como lsquodesviar ardilosamente a atenccedilatildeo do adversaacuterio para fazecirc-lo cometer errosrsquo e

nesse sentido o termo pode se adequar agravequelas experiecircncias que conduzem ao

alheamento da proacutepria condiccedilatildeo da condiccedilatildeo do outro e da realidade circundante

Depreendido desse modo surge outra noccedilatildeo do conceito de lsquomuacutesica de diversatildeorsquo

que pode ser tomada como uma nova funcionalidade da muacutesica que se apotildee ao

estado de distraccedilatildeo

Exemplo recente nesse sentido eacute a Revoluccedilatildeo Laranja na Ucracircnia em

2005 em que a populaccedilatildeo das grandes cidades foi agraves ruas vestindo laranja a cor

da oposiccedilatildeo para protestar contra as fraudes eleitorais que mantinham o primeiro-

ministro Viktor Yanukovich no poder Vaacuterios grupos musicais tocando jazz muacutesica

pop muacutesica folcloacuterica ou muacutesica claacutessica se revezavam para manter a praccedila de Kiev

repleta de muacutesica vinte e quatro horas por dia No Brasil atual em novembro de

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2016 um grupo de estudantes permaneceu danccedilando em frente agrave universidade em

Curitiba por um dia inteiro em protesto agrave PEC 24155 Como estavam em uma zona

residencial para natildeo fazer barulho em respeito aos moradores cada um deles

portava seus proacuteprios fones de ouvido e danccedilavam embalados pelas muacutesicas que

lhes agradavam Vaacuterias muacutesicas ao mesmo tempo Cada um na sua Seu slogan

ldquo20 horas em movimento contra 20 anos de congelamentordquo

Post-Scriptum Presumir que os compositores das novas geraccedilotildees

permaneccedilam escrevendo muacutesica da mesma maneira que os muacutesicos de geraccedilotildees

anteriores seria o mesmo que esperar que estes continuassem fazendo muacutesica

como seus antepassados Se forem tomados intervalos de aproximadamente meio

seacuteculo pode-se considerar que pretender que Thomas Adegraves (1971) continue a

escrever muacutesica como Pierre Boulez (1925) seria o mesmo que supor que Boulez

continuaria a pensar muacutesica da mesma forma que Arnold Schoenberg (1874-1951)

que Schoenberg ter-se-ia mantido na mesma linha de investigaccedilatildeo que Anton

Bruckner (1824-1896) que Bruckner natildeo poderia ter concebido muacutesica diferente de

Ludwig van Beethoven (1770-1827) que teria seguido na linha de Niccolograve Piccinini

(1728-1800) o qual permaneceria pensando como Antonio Vivaldi (1678-1741)

Segundo esse raciociacutenio Adegraves apenas escreveria autecircnticos concertos barrocos (o

que eacute uma hipoacutetese no miacutenimo intrigante)

O quadro abaixo sintetiza as principais caracteriacutesticas da muacutesica

contemporacircnea de acordo com as acepccedilotildees discutidas neste ensaio

ACEPCcedilOtildeES REFERENCIAIS ATITUDES PROCEDIMENTOS VALORES RESULTADOS 1 Continuidade da Modernidade

1 Liquidaccedilatildeo dos Sistemas Totalizantes (Modal Tonal Serial)

1 Experimentalismo (expansatildeo das possibilidades teacutecnicas compositivas e instrumentais)

1 Poacutes-Vanguarda 2 Espectralismo 3 Nova Complexidade

1 Arte Especulativa 2 Diversidade Contextual (cada momento no tempo dirige-se a vaacuterios pontos do espaccedilo)

1 Criaccedilatildeo de estruturas inovadoras 2 Espacializaccedilatildeo do tempo 3 Arte poeacutetico-centrada (importa a criaccedilatildeo)

2 Retorno agrave Tradiccedilatildeo

2 Criacutetica ao Historicismo e ao Determinismo

2 Retorno ao passado (alguma eacutepoca em algum

4 Tendecircncias restauradoras (reutilizaccedilatildeo de

3 Apropriaccedilatildeo do Legado

4 Permanecircncia do passado em um presente

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MATTOS Fernando Lewis de Pluralia Tantum Reflexotildees sobre a muacutesica contemporacircnea Revista da Fundarte

Montenegro ano 16 n 32 p 52-94 juldez 2016 Disponiacutevel em

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Histoacuterico lugar) processos tradicionais Neomodalismo Neotonalismo etc) 5 Retorno agrave melodia ao contraponto e agrave harmonia

Histoacuterico transformado 5 Evidecircncia de procedimentos eou estilemas oriundos de tradiccedilotildees culturais variadas

3 Superaccedilatildeo do Modernismo

3 Questionamento das vanguardas do Estruturalismo e das tendecircncias formalistas (importam todos os aspectos da produccedilatildeo e recepccedilatildeo artiacutesticas e natildeo apenas seu niacutevel imanente)

3 Novos processos de comunicabilidade

6 Meacutetodos repetitivos (Poacutes-Minimalismo) 7 Nova Simplicidade 8 Apropriaccedilatildeo de Linguagens (folclore popular urbana pop etc)

4Valorizaccedilatildeo do Processo 5 Pluralidade e identidade pulverizada (quebra de conceitos como a unidade estiliacutestica e a distinccedilatildeo de gecircneros)

6 Nova Narratividade 7 Hibridismo Estiliacutestico 8 Arte esteacutesico-centrada (importa a recepccedilatildeo)

4 Traccedilos Gerais

4 Investigaccedilatildeo de toda e qualquer produccedilatildeo musical independente de eacutepoca ou lugar

4 Metacriacutetica como criacutetica ao Criticismo convencional

9 Poliestiliacutestica (citaccedilatildeo alusatildeo colagem) 10 Multiculturalismo (justaposiccedilatildeo e sobreposiccedilatildeo de processos musicais oriundos de diferentes fontes)

6 Valorizaccedilatildeo da Diferenccedila (importam reaccedilotildees peculiares a aspectos especiacuteficos da tradiccedilatildeo e natildeo a lsquoTradiccedilatildeorsquo como lsquoSistemarsquo)

9 Multidirecionalidade na produccedilatildeo e na recepccedilatildeo musicais 10 Novas funcionalidades do fazer musical

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VALLE Lutiere Dalla Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das imagens

fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente Revista da Fundarte Montenegro ano 16 n 32 p 95-108 juldez 2016

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Provocaccedilotildees (des)continuidades desfechos potecircncia edu(vo)cativa das

imagens fiacutelmicas na formaccedilatildeo docente

Lutiere Dalla Valle1

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

Resumo O objetivo neste texto eacute abordar o cinema enquanto dispositivodisparador para a formaccedilatildeo docente compreendendo-o como artefato produzido pela cultura que produz formas de ver e ser visto Neste iacutenterim subsidiado por experiecircncias de aprendizagem no contexto da formaccedilatildeo docente respaldado pela abordagem narrativa e perspectiva da cultura visual busca-se estabelecer relaccedilotildees entre arte e subjetividade no que tange agraves construccedilotildees sociais histoacutericasculturais e ideoloacutegicas presentes nas visualidades veiculadas pela cinematografia Para tanto explora-se o conceito edu(vo)cativo atribuiacutedo ao cinema que compreende os aspectos educativo evocativo e cativo que envolvem a aprendizagem mediada pelas visualidades Palavras-chave Potecircncia Edu(vo)cativa cinema formaccedilatildeo docente Abstract The objective of this text is to approach the film as device for teacher training understanding it as an artifact produced by the culture that produces ways of seeing and being seen In the interim subsidized by learning experiences in the context of teacher training supported by the narrative approach and perspective of visual culture we seek to establish relationships between art and subjectivity in relation to social historical cultural and ideological constructions present in visualities conveyed by cinematography So it explores the concept edu(vo)cational attributed to the film comprising the educational evocative and captive aspects involving learning mediated visualities Key-words Edu(vo)cational power movies images teacher training

1 Doutor em Artes Visuais e Educaccedilatildeo (Universidad de BarcelonaES 2012) Mestre em Educacioacuten y Artes Visuales un Enfoque Construccionista (Universitat de Barcelona EspanhaUB 2009) Mestre em Educaccedilatildeo pela Universidade Federal de Santa Maria (CEPPGEUFSM2008) Linha de Pesquisa Educaccedilatildeo e Artes Possui Especializaccedilatildeo em Arte e Visualidade pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) Licenciatura Plena em Desenho e Plaacutestica (Universidade Federal de Santa Maria2003) Bacharelado em Desenho e Plaacutestica (Universidade Federal de Santa Maria2002) Atualmente atua como Coordenador do Curso de Artes Visuais - Licenciatura e Bacharelado DAVCALUFSM professor adjunto no Departamento de Artes Visuais CALUFSM tambeacutem no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes VisuaisPPGART - Linha de Pesquisa Arte e Cultura e nos Cursos de Graduaccedilatildeo Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais Co-orienta no Doutorado em Educaccedilatildeo Linha de Educaccedilatildeo e Artes do CEUFSM Investiga as relaccedilotildees entre Artes Visuais e Cultura Visual relacionado agrave formaccedilatildeo de artistas e professores de artes visuais Tem experiecircncia na aacuterea de artes visuais com ecircnfase em entornos educativos LiacutederCoordenador dos seguintes Grupos de Pesquisa e Extensatildeo Grupo de Estudos e Pesquisas Artes Visuais e IMediaccedilotildees (AVICALUFSM) Nuacutecleo Educativo Claacuteudio Carriconde (NECCA CALUFSM) Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte e Medicina (GEPAMCALUFSM) Grupo de Estudos Cinema e Educaccedilatildeo (GECED) Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Contemporacircnea e Educaccedilatildeo da Cultura Visual Pegadogias Culturais na alfabetizaccedilatildeo infantil Rota das Esculturas e Pintura Mural no Campus (DAVUFSM) Membro pesquisador do GEPAEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Educaccedilatildeo e Cultura UFSM Linhas de Interesse e Investigaccedilatildeo Formaccedilatildeo de Professores Estudos da Cultura Visual Estudos sobre Cinema e Educaccedilatildeo Formaccedilatildeo de Artistas Agentes Culturais e Processos de Mediaccedilatildeo em Espaccedilos Expositivos Formais e Natildeo-Formais Contato lutieredallavallenetbr

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Introduccedilatildeo

Os seres humanos natildeo terminam em sua proacutepria pele satildeo expressatildeo da cultura Considerar o mundo como um fluxo indiferente da informaccedilatildeo que eacute processada pelos indiviacuteduos cada um atuando agrave sua maneira supotildee perder

de vista como se formam os indiviacuteduos e como funcionam Ou para citar novamente Geertz lsquonatildeo existe uma natureza humana independente da

culturarsquo (BRUNER 1991 28)

Diaacutelogos entre cinema e educaccedilatildeo tecircm sido recorrentes em nossos contextos

educativos O uso do cinema como um ponto de partida para desenvolver projetos

educativos - sobretudo nos uacuteltimos dez anos no contexto nacional - tem assinalado

variadas experimentaccedilotildees publicaccedilotildees a partir de agrupamentos de textos

produzidos em grupos de pesquisa ensaios atravessamentos diversos em que o

cinema constitui-se fio condutor eou mote reflexivo para desencadear escritas

narrativas dissertaccedilotildees e teses de doutorado em Educaccedilatildeo e aacutereas afins Talvez

resultado do vasto processo de contaminaccedilatildeo eou proliferaccedilatildeo de imagens oriundas

das mais diversas fontes que suscitam possibilidades educativas e favorecem

experiecircncias de aprendizagens significativas mediadas por pedagogias culturais

articulando desta maneira tentativas curiosas em abordar a cinematografia a partir

de acircngulos e enquadramentos diversos em que satildeo apresentadas distintas formas

de ver e ser visto pelas visualidades

Haacute experimentaccedilotildees que apostam em praacuteticas educativas embasadas pela

criacutetica pela produccedilatildeo criativa e emancipatoacuteria transitando entre campos que

articulam conceitos e contextos plurais de produccedilatildeo de significados Por outro lado

eacute recorrente tambeacutem a tentativa de pedagogizar o cinema seguindo um receituaacuterio

de como fazer como ver e o que ver nos filmes

Diante destas consideraccedilotildees adianto que neste texto proponho pensar e

articular o cinema de modo relacional afetivo muacuteltiplo em devir algo que natildeo estaacute

pronto onde existem infinitas probabilidades de aproximaccedilatildeo e diaacutelogo

configurando-se tambeacutem como dispositivo edu(vo)cativo ponto de partida um

comeccedilo isento da intenccedilatildeo de prescrever um meacutetodo a ser implementado

Igualmente refletir sobre o que podemos aprender coma partir das imagens

produzidas pelo cinema e como as experiecircncias de aprender podem ser

potencializadas a partir dos filmes isto eacute investigar como o cinema pode configurar-

se edu(vo)cativo na formaccedilatildeo docente

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A Potecircncia Edu(vo)cativa das imagens fiacutelmicas

Toda voz individual como nos mostra Bajtin estaacute abstraiacuteda de um diaacutelogo

(BRUNER 1991 14)

Edu(vo)cativo origina-se da junccedilatildeo de trecircs palavras educativo evocativo

cativo2 eacute desta forma que nos aproximamos do cinema na busca por propor uma

justaposiccedilatildeo com a imagem fiacutelmica em que sejam articuladas as relaccedilotildees de

aprendizagem potencializadas a partir de sua visualizaccedilatildeo Igualmente tendo em

vista que as imagens em movimento carregam particularidades especiacuteficas de sua

natureza visualafetiva a ideia eacute pensar que o cinema natildeo poderia ser conjecturado

dentro de uma uacutenica estrutura linguiacutestica agrave qual nos vinculamos em nossos

contextos culturais geograacuteficos e temporais pois amplia os campos da percepccedilatildeo

abrindo-se mais para a experimentaccedilatildeo subjetiva do que a uma compreensatildeo

formal de significaccedilatildeo previamente apreendida Da mesma forma discursivamente

constitui-se potecircncia simboacutelica recheada de elementos oriundos de imaginaacuterios

coletivos nos quais ancoramos nossas percepccedilotildees mais iacutentimas assim como os

imaginaacuterios produzidos pelas culturas

Neste contexto entendemos o cinema como artefato educativo pois nos

ensina modos de ver e sermos vistos de ser e estar envolvendo tudo o que

potencializa visotildees de mundo de construccedilatildeo e legitimaccedilatildeo de concepccedilotildees de

mundo eacute tambeacutem evocativo pois diz respeito agraves percepccedilotildees que envolvem a

memoacuteria agravequilo que permanece como referencial anterior e que em relaccedilatildeo com as

novas conexotildees pode reconfigurar-se estabelecer novasoutras conexotildees

2 O Conceito Edu(vo)cativo vem sendo pensado no Grupo de Estudos e Pesquisas Cinema e Educaccedilatildeo (GECEDCNPq) O GECED configura-se a partir do cinema como mobilizador de aprendizagens em variados acircmbitos e contextos educativos formais e natildeo formais de ensino onde cada membro propotildee um enfoque particular em relaccedilatildeo ao cinema e um enfoque de pesquisa Desta forma haacute pesquisas que relacionam diferentes abordagens tais como cinema e gecircnero cinema e subjetividade cinema e infacircncia cinema e educaccedilatildeo cinema e formaccedilatildeo docente O marco teoacuterico-metodoloacutegico respalda-se pela perspectiva educativa da cultura visual e pedagogias culturais amparado por autores como Fernando Hernaacutendez Nicholas Mirzoef David Darts Raimundo Martins Irene Tourinho acerca dos Modos de Endereccedilamento com a obra de Elizabeth Ellsworth acerca do cinema e educaccedilatildeo Adriana Fresquet dentre outros No que diz respeito agraves construccedilotildees sociaisculturais e ideoloacutegicas bem como satildeo produzidos os significados Jerome Bruner e Kenneth Gergen consistem nas principais referecircncias

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produzindo outras vias traz agrave tona movimenta do interno para o externo emerge

faz surgir E por fim o termo cativo busca estabelecer relaccedilotildees com aquilo que

seduz que aprisiona que deteacutem atenccedilatildeo que afeta que domina um filme natildeo

apenas mobiliza mas evoca potencializa educa constroacutei legitima instrui

Pensando o cinema a partir da conjunccedilatildeo leacutexica proposta agrave luz da

perspectiva educativa dos estudos da cultura visual podemos dizer que este

mobiliza formas de compreensatildeo que talvez natildeo sejam possiacuteveis de outra ordem

Os atravessamentos que o cinema estabelece com espectadores envolve

conhecimento da linguagem mobilizaccedilatildeo de conceitos e imagens previamente

apreendidas configurando-se no plano sensorial sonoro visual da accedilatildeo que

materializa-se em seu tempo de visualizaccedilatildeo a partir de um entre e sucessivos

momentos Nas palavras de Adriana Fresquet

[] de fato o cinema nos oferece uma janela pela qual podemos nos assomar ao mundo para ver o que estaacute laacute fora distante no espaccedilo ou no tempo para ver o que natildeo conseguimos ver com nossos proacuteprios olhos de modo direto Ao mesmo tempo essa janela vira espelho e nos permite fazer longas viagens para o interior tatildeo ou mais distante de nosso conhecimento imediato e possiacutevel (2013 p 19)

Para Fresquet ldquoa tela de cinema (ou do visor da cacircmera) se instaura como

uma nova forma de membrana para permear um outro modo de comunicaccedilatildeo com o

outrordquo (2013 p 19) Ou seja os sistemas de representaccedilatildeo criados e veiculados

pelas produccedilotildees cinematograacuteficas ativam e potencializam imaginaacuterios ao dar forma

agravequilo que antes de se tornar visualmente comumcotidiano era apenas mundo das

ideias A partir do cinema o imaginaacuterio visual ganhou forma ritmo movimento e voz

As visualidades adquiriram o status de imagempensamento tendo em vista que

articulam em noacutes uma multiplicidade de relaccedilotildees construccedilotildees definiccedilotildees e

conceitos que soacute satildeo possiacuteveis atraveacutes daquilo que os olhos captam e formulam

mentalmente

Quando vemos uma imagem objeto ou artefato recorremos agraves informaccedilotildees gerais eou ao conhecimento especiacutefico que possuiacutemos Recorremos a haacutebitos valores referecircncias e contexto para dar sentidosignificado ao que vemos Cada indiviacuteduo utiliza suas informaccedilotildees conhecimento haacutebitos e referecircncias para estruturar e dar sentido agraves coisas que visualiza valorizando-as diferentemente negociando seus significados de acordo com o contexto sua trajetoacuteria cultural e seus interesses (MARTINS TOURINHO 2011 p 54-55)

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No contexto educativo torna-se edu(vo)cativo uma vez que haacute uma

multiplicidade de caminhos de natureza relacional os quais mobilizamos durante um

processo interpretativo ndash seja ele no campo da arte ou da educaccedilatildeo da ciecircncia ou

da sociologia Portanto aprender com a partir do cinema implica abandonar a ideia

de um uacutenico caminho a ser seguido de forma riacutegida pois sugere estabelecer

relaccedilotildees Diante de infinitas possibilidades de abordagem ndash principalmente tendo em

vista a presenccedila constante de representaccedilotildees visuais oriundas de diversas fontes ndash

o desafio de fugir das concepccedilotildees estereotipadas de uso do cinema em sala de aula

propunha reinventaacute-las atraveacutes de praacuteticas investigativas experimentais movediccedilas

questionadoras comeccedilando pelo exerciacutecio de reconhecer a potencialidade

narrativaevocativa dos filmes O que pode um filme Como abordaacute-lo enquanto

potecircncia agrave aprendizagem

Neste iacutenterim noccedilotildees de identidade e subjetividade examinadas (re)vistas

compreendidas e articuladas a partir da perspectiva educativa da cultura visual nos

oferecem pistas e tambeacutem evidecircncias para interrogarmos a sua construccedilatildeo e

tambeacutem os estereoacutetipos que contribuem para definir condutas delinear posiccedilotildees

hieraacuterquicas e legitimar papeacuteis sociais sobretudo no que tange agrave construccedilatildeo da

docecircncia O olhar produzido pela cinematografia hollywoodiana ndash de maior difusatildeo

em nossa cultura ndash que se constitui forte veiacuteculo de construccedilatildeo e produccedilatildeo de

identidades (natildeo apenas as identidades docentes) revisitado pode desencadear

processos de questionamento e reelaboraccedilatildeo pois como argumenta Fernando

Hernaacutendez

Os estudos da Cultura Visual nos permitem a aproximaccedilatildeo com essas novas realidades a partir de uma perspectiva de reconstruccedilatildeo das proacuteprias referecircncias culturais e das maneiras de as crianccedilas jovens famiacutelias e educadores olharem (-se) e serem olhados Reconstruccedilatildeo natildeo somente de caraacuteter histoacuterico mas a partir do momento presente mediante o trabalho de campo ou a anaacutelise e a criaccedilatildeo de textos e imagens Reconstruccedilatildeo que daacute ecircnfase agrave funccedilatildeo mediadora das subjetividades e das relaccedilotildees agraves formas de representaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo de novos saberes acerca destas realidades (HERNAacuteNDEZ 2007 37)

Tomando como ponto de partida o argumento do autor em favor da

perspectiva educativa da cultura visual as produccedilotildees fiacutelmicas nos conferem uacutenicas

ou infinitas visotildees de mundo de ser de estar e atuar nas mais variadas situaccedilotildees

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cotidianas Natildeo apenas aprendemos a olhar e compreender as narrativas visuais

desde a infacircncia mas tambeacutem nossas formas de ver passam a ser articuladas a

partir do lugar que ocupamos ndash social cultural histoacuterico Natildeo apenas visualizamos

uma narrativa decodificando a sequecircncia de imagens mas reconstruiacutemos e

recontamos internamente a partir daquilo que compreendemos da visualidade

daquilo que apreendemos Portanto enquanto dispositivo do olhar o cinema pode

contribuir para desvelar imagens assim como pensar sobre quequais lugares

ocupam dentro dos imaginaacuterios coletivos e quais satildeo as possibilidades de

transgredi-los em favor de articulaccedilotildees mais subjetivas autorais e inclusivas

Problematizar o cinema (no sentido de pensar o que evocaprovocamobiliza)

sugere praacuteticas de desnaturalizaccedilatildeo do olhar e especial atenccedilatildeo agraves contingecircncias

que delineiam nossas relaccedilotildees com o mundo nossas experiecircncias cotidianas Em

decorrecircncia podemos nutrir-nos de estrateacutegias criacuteticas para questionar padrotildees

desmontar estruturas hegemocircnicas discursos riacutegidos e propor fissuras brechas em

que nossa subjetividade seja potencializada Partindo da concepccedilatildeo de que noccedilotildees

de verdade e realidade igualmente correspondem a construccedilotildees sociais culturais e

histoacutericas podemos permitir-nos distanciarmo-nos desprendermo-nos de

concepccedilotildees alicerccediladas em padrotildees e posicionamentos fechados e inflexiacuteveis Esse

distanciamento nos permite repensar o que eacute normativo a fim de examinar de onde

surgiu e como a essa normatividade natildeo corresponde uma uacutenica verdade mas uma

referecircncia datada localizada e impregnada de ideologias

Examinar a docecircncia agrave luz do que dizem suas representaccedilotildees no cinema

colocam frente a frente as distintas versotildees que nos satildeo oferecidas enquanto papeacuteis

sociais eacute recorrente a figura docente caricaturada atraveacutes de modelos messiacircnicos

assistencialistas e transformadores dispostos a abrir matildeo de suas expectativas de

vida para solucionar os mais variados problemas de seus alunos Poucas satildeo as

narrativas que evidenciam uma docecircncia fragilizada hostil e afetiva ou ainda como

profissatildeo3

3 No livro Pedagogias Culturais organizado por Raimundo Martins e Irene Tourinho (Editora da UFSM 2014)

discuto esta questatildeo no texto ldquoAprendendo a ser docente atraveacutes de filmes possiacuteveis tracircnsitos entre cinema e educaccedilatildeordquo (p 141-164) Neste faccedilo referecircncia a uma seacuterie de tiacutetulos de filmes que tecircm como tema

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O cinema como ponto de partida na formaccedilatildeo docente

Tomar a perspectiva educativa da cultura visual como ancoradouro nos

favorece interrogar as elaboraccedilotildees discursivas que envolvem a construccedilatildeo do olhar

e tambeacutem os estereoacutetipos que contribuem para definir condutas delinear posiccedilotildees

hieraacuterquicas e legitimar papeacuteis sociais Sobretudo o olhar produzido pela

cinematografia hollywoodiana ndash de maior difusatildeo em nossa cultura ndash que se constitui

forte veiacuteculo de construccedilatildeo e produccedilatildeo de identidades

Acredita-se que cada espectador aporte sua proacutepria experiecircncia histoacuteria e

identidade agrave compreensatildeo de um texto fiacutelmico Contudo eacute possiacutevel que as

narrativas visuais privilegiem certas posiccedilotildees - mesmo que haja certa autonomia

para colocar interpretaccedilotildees personalizadas - pois estas interpretaccedilotildees se

encontraratildeo afetadas pelos limites impostos pelo enquadramento pela delimitaccedilatildeo

de algueacutem sobre o que tornar visiacutevel e o que deixar fora

As interpelaccedilotildees entre narrativas visuais textos discursivos e processos

cognitivos satildeo aspectos importantes que merecem ser discutidos sob a luz da

ideologia presente nos roteiros uma vez que problematizaacute-los pode configurar-se

como ferramenta pedagoacutegica para pensar a complexidade das concepccedilotildees que

elaboramos a partir do que visualizamos

Quando as imagens fiacutelmicas se convertem em aparatos de propulsatildeo para

desencadear aspectos problematizadores no campo social a respeito de questotildees

de gecircnero credo liberdade respeito cidadania e educaccedilatildeo as narrativas fiacutelmicas

funcionam como dispositivos possibilitando que os estudantes exercitem a

experiecircncia da indagaccedilatildeo

Ao examinar as relaccedilotildees dos sujeitos envolvidos com experiecircncias de

visualizaccedilatildeo de filmes durante o desenvolvimento de disciplinas na universidade no

curso de Licenciatura em Artes Visuais - seus diaacutelogos interpretaccedilotildees e

reconstruccedilotildees - percebeu-se que a negociaccedilatildeo eacute fundamental para desenvolver e

estimular a construccedilatildeo do conhecimento a partir de uma abordagem educativa

poliacutetica criacutetica que potencialize o caraacuteter subjetivo e colaborativo comentre os

professores com maior difusatildeo em contextos educativos formais tencionando a partir de algumas experiecircncias durante a formaccedilatildeo inicial e continuada de professores

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sujeitos Diante da experiecircncia de aprender coma partir do cinema estamos lidando

com imprevisibilidades incongruecircncias insatisfaccedilatildeo e a constante possibilidade de

revermos nossas concepccedilotildees e demais processos constitutivos O ambiente

educativo pode configurar-se como lugar de tensionamentos de imagens que

afetam e reverberam conexotildees inventivas que articulam distintos saberes

A partir das consideraccedilotildees elaboradas juntamente com os sujeitos em

formaccedilatildeo podemos pensar o cinema como dispositivo que produz e faz circular

modos de ver ser relacionar e pensar os diversos coacutedigos culturais com os quais

dialogamos diariamente Contribui tambeacutem para refletirmos sobre a construccedilatildeo de

imaginaacuterios e do mesmo modo para advertir-nos sugerir eou alertar-nos frente agraves

incertezas que configuram nossos dilemas existenciais que encontram sua potecircncia

nas relaccedilotildees que estabelecemos diariamente

Neste iacutenterim as produccedilotildees cinematograacuteficas -- enquanto artefatos

produzidos pelas distintas culturas inseridos e veiculados por determinados

discursos e ideaacuterios de acordo com as contingecircncias vigentes de seu tempo --

possibilitam noccedilotildees de realidade pois refletem questotildees sociais que permeiam seu

tempo Sob este aspecto Raimundo Martins argumenta

A ilusatildeo de realidade de que se valem as obras fotograacuteficas e sobretudo as cinematograacuteficas brinca com a percepccedilatildeo da plateacuteia Assim raramente eacute levado em consideraccedilatildeo o fato de que em uacuteltima instacircncia toda imagem constitui um conjunto de pontos de vista que decorrem de certos modos de interpretaccedilatildeo da realidade recortes que enfatizam determinadas informaccedilotildees em detrimento de outras o que vemos ao contemplar as imagens teacutecnicas natildeo eacute o mundo mas determinados conceitos relativos ao mundo a despeito da automaticidade da impressatildeo do mundo sobre a superfiacutecie da imagem (MARTINS 2007 115-116)

Ao mobilizar o campo da afetividade por meio da narrativa que nos eacute contada

bem como a proximidade com os personagens envolvidos haacute quase sempre uma

conexatildeo imediata (em maior ou menor grau) o que coloca os espectadores em

situaccedilatildeo de igualdade de relaccedilatildeo iacutentima Inscrevemos nossas proacuteprias relaccedilotildees com

a vida plasmada na tela e estabelecemos algumas relaccedilotildees ao reviver nossas

proacuteprias experiecircncias ou ainda projetarmos sonhos desejos medos aventuras

imaginaacuterias

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Neste vieacutes afetivo haacute ilimitadas interlocuccedilotildees com o cinema o que talvez

configure nossa questatildeo principal Como pensarpropor o cinema edu(vo)cativo no

contexto da formaccedilatildeo docente E aleacutem desta Qual a relevacircncia desta articulaccedilatildeo

durante a formaccedilatildeo docente

De modo geral como jaacute foi mencionado experiecircncias de aprender com o

cinema na escola privilegiam a vontade do professorprofessora em dar continuidade

a um determinado conteuacutedo e o filme parece ser uma opccedilatildeo ilustrativa de

determinado fenocircmeno eou fato a ser apreendido Natildeo que esta abordagem natildeo

seja relevante ao contraacuterio pode ser um bom argumento O problema eacute quando

restringe-se apenas agrave ilustraccedilatildeo natildeo abrindo espaccedilos ao que reverbera a

visualizaccedilatildeo de um filme Ou ainda quando natildeo se problematizam as visotildees de

realidade representadas na tela ndash no que diz respeito aos enquadramentos

discursos e demais significados que satildeo relacionados muitas vezes de maneira

impliacutecita

Nessa direccedilatildeo a educaccedilatildeo da cultura visual eacute aberta a novas e diversas formas de conhecimentos promove o entendimento de meios de opressatildeo dissimulada rejeita a cultura do Positivismo aceita a ideia de que os fatos e os valores satildeo indivisiacuteveis e sobretudo admite que o conhecimento eacute socialmente construiacutedo e relacionado intrinsecamente ao poder (DIAS 2011 62)

Talvez o questionamento pontuado por Belidson Dias adquira maior potecircncia

ao trazer para a discussatildeo a recente lei que torna obrigatoacuteria a exibiccedilatildeo de pelo

menos duas horas de filmes produzidos nacionalmente nas escolas de Educaccedilatildeo

Baacutesica Aiacute reside uma de nossas grandes preocupaccedilotildees

Que filmes Que formas de exibiccedilatildeo Que engajamento dos professores e da comunidade Que formas de acesso agraves obras Como regulamentar a Lei Haacute filmes com tecnologias assistivas que permitam sua aces- sibilidade a professores e estudantes cegos e surdos Como engajar outros atores ndash Ancine Secretaria do Audiovisual secretarias de educaccedilatildeo MEC Quem custearaacute as accedilotildees E sobretudo o que esperar dessa relaccedilatildeo do cinema com a educaccedilatildeo (FRESQUET MIGLIORIN 2015 4)

Aleacutem disso quais aacutereas Quais docentes Que preparaccedilatildeo preacutevia O que

precisa saberconhecer o docente que iraacute abordar o cinema enquanto dispositivo

Haacute que ensinar coacutedigos da linguagem E no que tange agrave visualidade o que propor

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Seria da competecircncia da aacuterea das artes visuais Propor pensar sobre os elementos

esteacuteticos Etc

Neste cenaacuterio abrem-se muitos debates em torno desta obrigatoriedade por

um lado esta regulamentaccedilatildeo faz com que o cinema deixe de participar apenas

como complemento ilustraccedilatildeo como decorativorecreativo tornando-se objeto

principal ponto de partida agrave reflexatildeo em torno dos coacutedigos culturais que o formulam

legitimam e distribuem noccedilotildees de realidade Por outro proposiccedilotildees prescritivas

destituiacutedas de negociaccedilatildeo coletiva -- que desconsidera o cinema enquanto obra

aberta -- podem desencadear versotildees estereotipadas que devido agrave obrigatoriedade

venham a ser desenvolvidas por profissionais despreparados dispostos a cumprir

tarefas apenas

Ao discutir a lei Adriana Fresquet e Cezar Migliorin sugerem alguns princiacutepios

que poderiam ser levados em consideraccedilatildeo diante das aproximaccedilotildees com a

educaccedilatildeo Para os autores ao tomar a lei como ponto de partida deveriacuteamos ter em

mente estas dez consideraccedilotildees

1 Democratizar o acesso 2 Acesso diversidade e capilaridade de decisotildees 3 Valorizar as accedilotildees existentes e locais 4 O cinema deve ser arriscado 5 Cinema eacute conhecimento e invenccedilatildeo de mundo 6 A escola natildeo forma consumidores 7 Tensatildeo na estrutura das escolas 8 Por que cinema brasileiro 9 Promover a criaccedilatildeo com imagens 10 A experiecircncia com o cinema (FRESQUET MIGLIORIN 2015 6-17)

Diante destes aspectos expostos talvez fosse interessante retomarmos o

conceito de ldquodesaprenderreaprenderrdquo proposto por Adriana Fresquet (2007) no livro

ldquoImagens do Desaprender uma experiecircncia de aprender com o cinemardquo em que

narra a seguinte relaccedilatildeo

Desaprender eacute algo mais que aprender coisas opostas sobre um mesmo tema assunto valor questatildeo da vida Desaprender pode ateacute indicar erradamente a ideacuteia de esquecer o aprendido Poreacutem o seu significado e intenccedilatildeo eacute exatamente o contraacuterio Tal eacute a forccedila da irreversibilidade da aprendizagem que desaprender significa fundamentalmente lsquolembrarrsquo as coisas aprendidas que querem ser desaprendidas Desaprender eacute aprender a natildeo querecirc-las mais para si a natildeo outorgar mais o estatuto de verdade de sentido ou de interesse Verdade aprendida com outros desde sempre adquire valor de inquestionaacutevel Desaprender eacute animar-se a questionar tais verdades Desaprender eacute tambeacutem fazer o esforccedilo de conscientizar todo o vivido na contramatildeo evocando o impacto histoacuterico e emocional que teve aquela aprendizagem que hoje deseja ser modificada (FRESQUET 2007 49)

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Portanto as muacuteltiplas relaccedilotildees promovidas pelas narrativas fiacutelmicas nos

fazem pensar em diversas maneiras de abordar a visualidade comeccedilando pelo

acircmbito da sensibilidade da emoccedilatildeo do afeto ateacute avanccedilarmos pelo terreno da

pedagogia onde nos encontramos com a relaccedilatildeo ensinaraprender Partimos do

princiacutepio de que o cinema se inscreve em uma temporalidade compreensiacutevel a

praticamente todos os puacuteblicos ao representar as diversas etapas do

desenvolvimento humano as descobertas infantis a adolescecircncia e a juventude a

maturidade e a velhice nas suas mais variadas manifestaccedilotildees e a utilizarmos como

ponto de partida para comeccedilar nossa viagem Durante o percurso eacute possiacutevel

visualizar terrenos feacuterteis e tambeacutem arenosos lugares remotos de nossa memoacuteria e

outros recocircncavos repletos de figuras miacuteticas fantasmagorias e possibilidades

Estes dispositivos desestabilizam e mobilizam outras aprendizagens

promovem crises que geram avanccedilos instigam a pensar alternativas Satildeo forccedilas

que produzem o deslocamento e a descoberta de outras dimensotildees de outras

linhas de pensamento Incitam tambeacutem a adotar uma postura criacutetica impulsionada

pelo desejo de criar espaccedilos e alternativas para aprender sobre o mundo a partir do

diaacutelogo com o outro a reconhecer-se pelas diferenccedilas a pensar o ambiente de

formaccedilatildeo inicial e continuada da docecircncia como exerciacutecio do olhar criacutetico e

mobilizador

Sobre o cinema e suas provocaccedilotildees um desfecho provisoacuterio

Referecircncia na moda no comportamento na muacutesica e nos mais variados

acircmbitos das experiecircncias humanas o cinema configura-se como fenocircmeno cultural

de grande impacto na configuraccedilatildeo de imaginaacuterios desde a infacircncia Desde muito

cedo somos introduzidos agrave loacutegica narrativa sequencial que apresenta muitas

realidades Eacute recorrente em nossa contemporaneidade nos depararmos com

personagens criados pelo cinema em acessoacuterios utensiacutelios domeacutesticos adereccedilos

materiais pedagoacutegicos brinquedos etc propagando uma legiatildeo de muitos heroacuteis (e

rariacutessimas heroiacutenas) que inevitavelmente invadem a escola reproduzindo-se nas

canccedilotildees brincadeiras corporeidades comportamentos Diante destes contextos

Como a docecircncia articula estas experiecircncias visuais enquanto mote inicial a ser

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esmiuccedilado Que relaccedilotildees com as imagens fiacutelmicas osas docentes tecircm

apreendidas Como satildeo seus enfrentamentos relaccedilotildees com o cinema

Talvez seja relevante pensarmos alternativas nas quais estudos sobre cinema

e educaccedilatildeo possam estar presentes durante a formaccedilatildeo inicial e continuada da

docecircncia para propor relaccedilotildees de aprendizagem a partir da imprevisibilidade seu

papel e sua utilizaccedilatildeo dentro dos ambientes de aprendizagem tendo como premissa

natildeo cairmos na tentativa de pedagogizaacute-lo ou tornaacute-lo mais um instrumento fechado

ou previsiacutevel mas de tomaacute-lo como obra aberta ndash a partir da concepccedilatildeo do rizoma ndash

para tomar vias distintas Bricolar propor conexotildees com outras narrativas abordaacute-lo

sem tentar traduzir o que eacute essencialmente percepccedilatildeo visualsensorialemocional e

que obviamente requer outro tipo de relaccedilatildeo outros coacutedigos outras loacutegicas

Para finalizar estaacute escrita retomo os vocaacutebulos que a iniciam provocaccedilotildees

descontinuidades desfechos com o intuito de sinalizar como poderiam operar no

campo educativo ndash ao menos como pretendo que sejam pensados aqui

O cinema enquanto provocador que desafia incita o questionamento retira

da calmaria e lanccedila na tempestade desacomoda instiga o pensamento retira do

lugar comum causa desconforto Neste contexto por significados que possam ser

revistosrevisados reconceituados Imaginaacuterios produzidos pela cinematografia

dominante (em nossos contextos) possam ser repensados ou em alguns casos

como argumenta Adriana Fresquet desaprendidos e reaprendidos a partir de outras

loacutegicasrelaccedilotildees

(Des)continuidade tem duplo sentido no cinema a ideia de movimento se daacute

pela sequecircncia contiacutenua de imagens trabalha-se com a continuidade de um roteiro

Uma descontinuidade seria uma ruptura da continuidade da linearidade Poderia ir

na contramatildeo a contrapelo Caracteriza-se como uma interrupccedilatildeo A continuidade

no cinema busca uma coerecircncia loacutegica que envolve sonoridade e fluxo visual na

sucessatildeo de imagens o que pode envolver cortes durante uma montagem pois

cabe ao continuiacutesta manter a conexatildeo desejada pelo roteiro entre as cenas

concedendo entendimento agrave narrativa que estaacute sendo contada Juntamente com o

diretor ou diretora de um filme colabora com todas as demais especificidades

teacutecnicas que participam da histoacuteria a ser contada dos enquadramentos aos

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cenaacuterios objetos de cena etc Entatildeo O que seria umuma (Des)Continuiacutesta em

educaccedilatildeo

Talvez aqueleaquela que ocupa-se da provocaccedilatildeo que incita o jogo que

lanccedila convites que desafia Sabemos que a escola nos moldes atuais natildeo

configura-se uacutenica fonte de saberes mas espaccedilo de diaacutelogo de negociaccedilatildeo

formulaccedilatildeo

Desfecho do ponto de vista literaacuterio diz respeito agrave finalizaccedilatildeo ao desenlace

de uma tramanarrativa Pode ser entendido tambeacutem como local de chegada depois

de alguns trechos percorridos Neste texto desfecho pode ser concebido tambeacutem

como siacutentese do processo desenvolvido poreacutem aberto ainda no ato de acontecer

Entendo desfechos como provisoacuterios embora pareccedila relevante percebermos

processos de soluccedilotildees de problemas pontos que podem ser destacados ao teacutermino

de uma jornada de uma investida uma aposta Acredito que desfechos satildeo

importantes pois impelem a retomar a jornada examinar o percurso movimentar-se

em temporalidades diversas para compreender como se articula o momento

presente Transformando-o em verbo desfecho - desfechar - poderia ser des-fechar

tornaacute-lo em aberto apesar de haver jaacute percorrido uma trajetoacuteria examina-se o

recorrido poreacutem servindo como propulsor a dar segmento a tomar novas

experiecircncias seguir aprendendo des-fechando processos educativos

Referecircncias

BRUNER Jerome Actos de significado maacutes allaacute de la revolucioacuten cognitiva Madrid Alianza Editorial 1991 DIAS Belidson O imundo da cultura visual Brasiacutelia Editora da poacutes-graduaccedilatildeo em arte da Universidade de Brasiacutelia 2011 ELLSWORTH Elizabeth Posiciones en la ensentildeanza diferencia pedagogiacutea y el poder de la direccionalidad Madrid Akal 2005 FRESQUET Adriana Cinema e educaccedilatildeo reflexotildees e experiecircncias com professores e estudantes de educaccedilatildeo baacutesica dentro e ldquoforardquo da escola Belo Horizonte Autecircntica 2013

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FRESQUET Adriana Imagens do desaprender uma experiecircncia de aprender com o cinema Rio de Janeiro UFRJ 2007 FRESQUET Adriana MIGLIORIN Cezar Da obrigatoriedade do cinema na escola notas para uma reflexatildeo sobre a lei 1300614 In FRESQUET Adriana (Org) Cinema e Educaccedilatildeo a lei 13006 Reflexotildees perspectivas e propostas Belo Horizonte Universo Produccedilatildeo 2015 HERNAacuteNDEZ Fernando Catadores da Cultura Visual uma proposta para uma nova narrativa educacional Porto Alegre Mediaccedilatildeo 2007 MARTINS Alice Faacutetima Imagens do cinema cultura contemporacircnea e o ensino de artes visuais In OLIVEIRA M O de (Ed) Arte educaccedilatildeo e cultura Santa Maria Ed da UFSM 111-130 2007 MARTINS Raimundo TOURINHO Irene (Org) Circunstacircncias e ingerecircncias da cultura visual In MARTINS R y TOURINHO I (Eds) Educaccedilatildeo da cultura visual conceitos e contextos Santa Maria Ed da UFSM (paacuteg 51-68) 2011

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PerformanceS1

Fernando Pinheiro Villar 2 Universidade de Brasiacutelia - UnB

Aproximando-se do primeiro ano apoacutes 11 de setembro continuamos sem saber

o que sabemos e o que natildeo sabemos sobre a destruiccedilatildeo dos preacutedios do World Trade

Center em Nova York O que podemos ter certeza eacute que antes da queda das torres

gecircmeas jaacute viviacuteamos crises aceleradas empor nossa supermodernidade crise de

certezas crise social crise de conceitos crise de significados Realidades que se

transformam continuamente demandam novos conceitos e revisatildeo constante de

conceitos existentes para negociar com as novas praacuteticas artiacutesticas teorias famiacutelias

trabalho sexualidades etnias ensino e meacutetodos

Performance eacute apontada como um conceito chave em estudos culturais

contemporacircneos Este artigo aborda performances artiacutesticas Enfatizo o lsquoartiacutesticasrsquo

como necessaacuterio recorte e por minha experiecircncia praacutetica Mas este recorte natildeo evita a

interferecircncia de outros significados nem indica um terreno mais tranquilo para

taxonomias

No meio de uma semana de debates sobre lsquoperformancersquo na Universidade de

Brasiacutelia em maio de 2002 um estudante disse que parecia lsquohaver uma certa

glamourizaccedilatildeo da duacutevida ou da dificuldade de definir performancersquo3 Mais preocupante eacute

a banalizaccedilatildeo da duacutevida em torno da amplitude do conceito gecircnero artiacutestico objeto de

estudo eou metodologia de criacutetica e pesquisa que performance pode significar Este

1 Publicado em CARREIRA Andreacute VILLAR Fernando Pinheiro GRAMMONT Guiomar de RAVETTI Graciela e ROJO Sara (orgs) Mediaccedilotildees performaacuteticas latino-americanas (Belo Horizonte FALEUFMG 2003) p 71 - p80 2 Autor encenador e diretor Professor da graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo do Departamento de Artes Cecircnicas do Instituto de Artes da Universidade de Brasiacutelia Graduado na UnB em Artes Plaacutesticas poacutes-graduado em Direccedilatildeo no Drama Studio London e PhD no Queen Mary CollegeUniversity of London Fundador dos grupos Vidas Erradas (83-89) TUCAN (92-08) e CHIA LIIAA (2007) tem trabalhado com diversos grupos artistas e instituiccedilotildees de ensino do Brasil e Europa Professor visitante na University of Manchester e na UNICAMP com vaacuterios artigos publicados e alguns livros organizados sobre teatro performance e hibridismos artiacutesticos contemporacircneos 3 Seminaacuterio preparatoacuterio para o evento performaacutetico artiacutestico Gecircnesis de performances (28 29072002) organizados pelo ex-aluno de Artes Cecircnicas e funcionaacuterio da UnB Magno de Assis

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artigo natildeo elimina duacutevidas sobre performance mas busca discordar de ambas

banalizaccedilatildeo e glamourizaccedilatildeo destas duacutevidas

O tiacutetulo lsquoperformanceSrsquo inicia esta empreitada afirmando a pluralidade do

conceito performance Assumir-se a multiplicidade de significados atrelados ao

significante lsquoperformancersquo eacute condiccedilatildeo inicial para seu entendimento Sabemos que

lsquoperformancersquo tem orientado inspirado eou desobstruiacutedo teorias e praacuteticas de

sociologia antropologia linguiacutestica psicologia filosofia neurologia artes cecircnicas artes

plaacutesticas muacutesica e danccedila entre outros campos de conhecimento Essa amplitude

conceitual pode provocar um desconforto com a abrangecircncia desconcertante e

escorregadia de performance como conceito como objeto de estudo como gecircnero

artiacutestico ou como metodologia de criacutetica e pesquisa

Um dos principais significados aliados ao significante performance eacute o de

desempenho O significado de desempenho afirma a observaccedilatildeo analiacutetica de

comportamentos humanos produtos eletrocircnicos e mecacircnicos ou de atores xampus

transeuntes oacuteleos atletas sapatos de corrida animais fios condutores ou de minerais

Na observaccedilatildeo do desempenho humano performance pode tambeacutem significar

comportamentos que se repetem Ou accedilotildees cotidianas que satildeo ensaiadas ou

preparadas - e observadas Assim sendo uma performance sem consciecircncia do fato de

estar sendo vista como tal pode significar uma performance cotidiana cultural ou social

Para Richard Schechner ldquotudo no comportamento humano indica que performamos

nossa existecircncia especialmente nossa existecircncia socialrdquo (1982 14) Steven Connor

considera que ldquose tornou difiacutecil estarmos seguros onde que uma accedilatildeo termina e uma

performance comeccedilardquo (108) Schechner e Connor datildeo uma ideia do possiacutevel alcance de

performance Este alcance detona diferentes linhas de pesquisa e teorias sobre

performance em campos distintos Pelo recorte optado por esta comunicaccedilatildeo estou me

atendo mais agraves performances artiacutesticas exibiccedilotildees ou accedilotildees declaradas publicamente

como tais accedilotildees conscientes mesmo que liminais construiacutedas e organizadas por

agentes que as mostraratildeo como opccedilatildeo profissional ou amadora entrada franca

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cobrando um ingresso ou distribuindo convite em espaccedilos ao ar livre semi-abertos ou

cobertos

A performance artiacutestica se caracteriza(va) muito pela fuga de qualquer

possibilidade de categorizaccedilatildeo Esta evasatildeo de escaninhos esteacuteticos caracteriza(ria)

aquilo que artistas objetivam(vam) natildeo ser caracterizado Com a heranccedila forte das

Vanguardas Histoacutericas das uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX e das trecircs primeiras

deacutecadas do seacuteculo XX vanguardas do periacuteodo poacutes-Segunda Guerra Mundial

continua(ra)m indo contra restriccedilotildees das possibilidades expressivas das artes e

rechaccedilando definiccedilotildees que se pretendiam definitivas

As Vanguardas Histoacutericas satildeo compostas pelo Simbolismo Expressionismo

Futurismo Construtivismo Dada Surrealismo Bauhaus ou Adolphe Appia Gordon

Craig Isadora Duncan Vsevolod Meyerhold Vladimir Mayakovsky Marcel Duchamp

Antonin Artaud entre tantos outros Darwin Nietzsche Marx Wagner Freud Einstein

Edison nos lembram que a virada do seacuteculo XIX para o XX tambeacutem testemunha uma

crise de conceitos e certezas consideraacutevel Aliados agrave revoluccedilatildeo no pensamento humano

provocada por estes pensadores artistas e cientistas o motor a lacircmpada eleacutetrica

locomotivas teleacutegrafos e o cinema transformam comportamentos e sociedades Ainda

com ecos do idealismo do Romantismo em buscar o intercacircmbio entre diferentes artes

artistas de vaacuterias correntes e tendecircncias deixam um legado de accedilotildees textos e

manifestos que transitam e querem transitar aleacutem das fronteiras convencionais de cada

linguagem Durante todo o seacuteculo XX o impacto das duas guerras mundiais no mesmo

seacuteculo foi refletido diretamente numa arte que promovia a primazia da accedilatildeo

testemunhada de interferecircncia puacuteblica como paliativo passageiro para a impotecircncia do

ser humano diante da destruiccedilatildeo inoacutecua Artistas das Vanguardas Histoacutericas da

primeira e segunda metades do seacuteculo XX questionam entatildeo de forma radical a

convencionalidade de suas linguagens e de seus puacuteblicos no bojo de intensas

transformaccedilotildees econocircmicas sociais e poliacuteticas As fronteiras entre arte e vida se

misturam

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Na entatildeo nova ediccedilatildeo do Oxford Dictionary em 1971 lsquoperformance artrsquo eacute incluiacuteda

no verbete lsquoperformancersquo como uma suposta arte de accedilotildees realizada por artistas

plaacutesticos para plateias presentes Depois da Segunda Guerra Mundial outros termos e

conceitos jaacute tentam acompanhar uma intensa atividade de artistas em torno do eixo

tempo-espaccedilo com testemunhas Estas atividades manipulam nexos com accedilatildeo corporal

e a presenccedila do autor realizando seu processo sua obra ou sua obra em processo para

espectadores visitantes puacuteblico ou testemunhas Uma das tentativas de conceituaccedilatildeo

para estas obras foi lsquointermiacutediarsquo [(intermedia ou interlinguagem)] cunhado em 1967

por Dick Higgins do Fluxus (Higgins 1978) Um ano depois Richard Kostelanetz

defendeu o termo lsquoteatro dos meios misturadosrsquo (Kostelanetz 1970) Mas eacute

lsquoperformance artrsquo nos paiacuteses anglo-saxocircnicos e lsquoperformancersquo em paiacuteses de liacutengua

latina que consegue abarcar uma praacutetica artiacutestica interdisciplinar Sem desconhecer a

heranccedila das Vanguardas Histoacutericas performance art ou performance conteria action

paintings John Cage arte conceitual minimalismo espacialismo Happenings action

art arte corporal aktionism vienense arte feminista art povera parangoleacutes de Oiticica

bichos de Ligia Clark teatro instrumental environments viacutedeo arte colaboraccedilotildees

decollage assemblage arte cineacutetica o neo-dada do Gutai endurance art Flaacutevio

Impeacuterio Artur Barrio ou Laurie Anderson entre tantos outros grupos e artistas

Em 1981 Douglas Davis jaacute propotildee o termo lsquopost-performancismrsquo para defender

uma arte aleacutem do teatro performance ou artes plaacutesticas Em 1992 Josette Feraacutel coloca

performance como o nascimento de um gecircnero com a morte de sua funccedilatildeo anaacuterquica

anti-categorizaccedilotildees Em 1999 Paul Schimmel anuncia a morte de performance art por

volta de 1979 No entanto as referecircncias cruzadas e trocas entre gecircneros hiacutebridos e

mo(vi)mentos foram se acelerando durante as deacutecadas de 1980 e 1990

simultaneamente dificultando e promovendo novos termos e roacutetulos Autores como

Gregory Battcock (1984) RoseLee Goldberg (1984) ou Herbert Blau (1992)

reconhecem que lsquoperformancersquo seria o termo para a contiacutenua expansatildeo do terreno

ampliado que performance art conquistou Utilizando um artigo anterior performance no

final do seacuteculo XX

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[] parece ser um conceito guarda-chuva que abriga uma livre pluralidade de expressotildees cecircnicas socircnicas e visuais Atraveacutes de performance inuacutemeros estudos de diferentes artes revelam um comportamento cuidadoso para evitar novas definiccedilotildees que natildeo respeitem as diferenccedilas e o caraacuteter anaacuterquico das artes em desordenar e escapar de novas categorizaccedilotildees Performance inclui entre outros campos de estudo rituais festas populares comportamento cotidiano linguumliacutestica ciecircncias sociais cultura psicologia [performing self criacutetica em performance] o evento teatral a encenaccedilatildeo de peccedilas drama ou dramaturgia escrita dramaturgia de imagens e outras produccedilotildees multi pluri anti ou interdiscliplinares em frente de plateacuteias em diversos tipos de espaccedilo cecircnico aleacutem do teatro O termo e conceito performance vai contra uma visatildeo logocecircntrica e exclusiva de teatro como lsquoa representaccedilatildeo de dramas eurocecircntricosrsquo (Schechner 1992 9) Para os estudos de teatro a metodologia e sistema de criticismo proposto por performance resgata o irrepetiacutevel efecircmero transitoacuterio momento de exposiccedilatildeo da linguagem cecircnica com a presenccedila de atores e espectadores privilegia-se a performance como um dos principais focos de significados do teatro (Villar de Queiroz 1999 249)

Para os estudos e praacutetica de teatro o texto performaacutetico ou o performance text eacute

um derivado do significante performance fundamental Batendo de frente com a visatildeo

antagocircnica quando exclusivista de teatro como domiacutenio da literatura dramaacutetica o texto

performaacutetico seria o texto da encenaccedilatildeo em curso a mise-en-scegravene fluindo ante e entre

os sentidos dos presentes la puesta en escena acontecendo uma rede intertextual

Ainda haacute uma defasagem da jovem academia de teatro em reconhecer o texto

performaacutetico artiacutestico na linguagem cecircnica Isso pode dever-se em parte agrave

supervalorizaccedilatildeo persistente e descontextualizada historicamente da visatildeo aristoteacutelica

de teatro em Poeacutetica Mais forte razatildeo eacute a impossibilidade do registro da performance

uacutenica irrepetiacutevel efecircmera transitoacuteria Essa impossibilidade caracteriza um choque

frontal com abordagens materialistas de cultura que tem em textos de peccedilas

documentos partituras quadros esculturas monumentos e edifiacutecios suas evidecircncias

para descrever o comportamento humano O viacutedeo o DVD e novas tecnologias alteram

um pouco a impossibilidade de registros do evento aacuteudio-cineacutetico-temporal e visual que

uma performance teatral coreograacutefica musical ou artiacutestica pode ser Novas tecnologias

natildeo podem entretanto cortar a impossibilidade de reproduccedilatildeo de um evento

caracterizado pela junccedilatildeo de pessoas durante sua vida uacutenica que morre para renascer

diferente no proacuteximo dia Como Dyonisus

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A maioria do teatro convencional claacutessico familiar eou teatratildeo e muito do teatro

de pesquisa de artistas com visibilidade internacional e respaldo criacutetico estaria

caracterizado pela representaccedilatildeo de um laacute-entatildeo Este laacute-entatildeo eacute reproduzido em um

palco ou espaccedilo eleito com atores ou atrizes vivendo personagens escritos por um

autor ou autora seguindo marcaccedilotildees de um diretor ou diretora Performance

privilegiaria o aqui-agora do durante da apresentaccedilatildeo seja onde for de uma accedilatildeo

desenrolada e apresentada por seu autor-ator-diretor-encenador-produtor o

performador tenta ser o proacuteprio meio esteacutetico ndash ele ou ela se colocam como linguagem

processo e obra Mas esta diferenciaccedilatildeo pode natildeo resistir ao fato de que o uso atual

quase omnipresente do termo performance abala certezas linguiacutesticas e esteacuteticas

anglo-saxocircnicas e latinas Na liacutengua inglesa por exemplo performance sempre foi

associada agrave apresentaccedilatildeo representaccedilatildeo ou exposiccedilatildeo cecircnica ou musical em frente a

uma plateia e [agrave] interpretaccedilatildeo de artistas Em 1990 o Diccionario Actual de la Lengua

Espantildeola apresenta performance como entre outros significados lsquorepresentacioacuten de

cine y teatrorsquo e lsquoactuacioacuten de un artistarsquo (1219) Estudantes no Brasil me convidam para

assistir a suas performances mesmo que sejam representaccedilotildees naturalistas de

personagens de Calderoacuten de la Barca Shakespeare ou Nelson Rodrigues dirigidos por

um diretor ou uma professora

As aacuteguas de performance e de teatro se confundem e confundem Em 1987 o

diretor e acadecircmico Michael Kirby lembrava que ldquotodo teatro eacute performance mas nem

toda performance eacute teatrordquo (xi) Em 1992 Herbert Blau reconhece sua saudade ldquode um

tempo em que se algueacutem falasse de performance estaria falando de teatrordquo (2) Em

1996 Elin Diamond recorda que ldquose performance eacute o reverso do teatro convencional

teatro tambeacutem eacute o reverso de performancerdquo (4) Em 1997 a artista e professora da New

York University Deb Magolin por exemplo celebra que ldquoperformance eacute um teatro de

inclusatildeo Qualquer um pode fazerrdquo (69) Para vaacuterios criacuteticos acadecircmicos e artistas no

mundo performance seria o teatro poacutes-moderno ou teatro contemporacircneo de

vanguarda

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Ainda persiste uma tendecircncia que considera performance art e performance

como variaccedilotildees da arte teatral Esta tendecircncia convive com uma perspectiva oposta

que exclui teatro da histoacuteria de performance e de performance art Ambas

perspectivas parecem reafirmar concepccedilotildees binaacuterias que natildeo reconhecem um campo

artiacutestico ampliado interdisciplinar aleacutem das disciplinas que se juntaram chocaram-se

ou digladiaram-se ateacute o nascimento de uma outra disciplina linguagem ou objeto que

se independe das matrizes anteriores e continua um caminho proacuteprio Disciplinas

liacutenguas paiacuteses e pessoas satildeo universos em construccedilatildeo e negociaccedilatildeo com seus meios

ambientes A dialeacutetica cultural promove novas disciplinas liacutenguas territoacuterios e

fronteiras mudanccedilas e se o mundo performa o teatro continuaraacute sendo um siacutetio de

performances sobre performances do mundo

Em 1980 Timothy J Wiles lanccedilava o termo lsquoteatro performancersquo para descrever

uma diversidade cecircnica revelada por uma dramaturgia e estilos de interpretaccedilatildeo

distintos do realismo naturalista ou do teatro eacutepico Essa diversidade tambeacutem era

revelada por inovaccedilotildees formais que segundo Wiles haviam criado ldquouma situaccedilatildeo

desconfortaacutevel para todos os historiadores de esteacuteticardquo (112) Com lsquoperformance teatrorsquo

a primazia dada ao texto performaacutetico questiona encapsulamentos da linguagem cecircnica

em limites da literatura dramaacutetica e questiona tambeacutem hierarquias fixas de criaccedilatildeo

direccedilatildeo e autoria Teatro performance transita por diferentes linguagens artiacutesticas

resultando em outra Teatro performance assume um espaccedilo intermediaacuterio

interdisciplinar entre performance art e teatro

Nuances interdisciplinares nas artes e ciecircncias ou obras interdisciplinares

artiacutesticas natildeo podem ser mais ignoradas em sua notoacuteria presenccedila em nossa

contemporaneidade Praacuteticas artisticamente interdisciplinares tecircm uma histoacuteria que

remonta [a] seacuteculos antes de Cristo na praacutetica oriental e ocidental se focarmos o

manual para artiacutesticos cecircnicos indiano Natya-Sastra ou os festivais gregos Artistas

renascentistas italianos e a oacutepera barroca apresentam impulsos interdisciplinares

claros Estes impulsos se aceleram de forma radical nas sucessivas transformaccedilotildees

esteacuteticas promovidas pelas vanguardas do seacuteculo XX Poacutes 1968 e poacutes performance art

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tanto o omnipresente conceito metodologia de pesquisa e criacutetica de performance

quanto as performances artiacutesticas desenvolvidas nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo

XX reforccedilam a necessidade de abordar-se interdisciplinaridade entre as artes

Esta breviacutessima perspectiva histoacuterica objetiva apontar uma presenccedila e uma

necessidade de estudos de um fenocircmeno interdisciplinar entre as artes Entretanto

assim como performance interdisciplinaridade tambeacutem pode ter uso indevido ou

diletante dentro dos muacuteltiplos acircngulos e mundos simultacircneos e paradoxais da

supermodernidade Tambeacutem como performance lsquointerdisciplinaridadersquo tem desafiado

certezas epistemoloacutegicas

Na uacuteltima deacutecada podemos encontrar novas propostas em torno de

disciplinaridades Judith Butler (1990) e Baz Englers (1996) propotildeem a discussatildeo de

lsquopoacutes-disciplinaridadesrsquo Dwight Conquergood e Joseph Roach definem performance

para Marvin Carlson como uma lsquoanti-disciplinarsquo (189) Fechando a deacutecada Roy Ascott

usa o termo lsquoumiacutediarsquo (moistmedia) para descrever um lsquointerespaccedilo entre o mundo seco

da virtualidade e o mundo molhado da naturezarsquo (9)

Transdisciplinaridade poacutes-disciplinaridades anti-disciplinas e umiacutedias atestam

todas processos interdisciplinares Como interdisciplinas artiacutesticas poacutes-disciplinas anti-

disciplinas e umiacutedias satildeo lsquointermiacutediasrsquo satildeo resultantes de disciplinas que dialogaram ou

digladiaram-se atraveacutes de encontro troca negociaccedilotildees eou choque gerando uma

nova disciplina Assim sendo meu entendimento de interdisciplinaridade natildeo confere

com o simples juntar de disciplinas diferentes ou muito menos com o improdutivo de

realidades pseudo interdisciplinares que natildeo se tocam nem se trocam Investigo

interdisciplinaridade artiacutestica para estudar ensinar e praticar negociaccedilotildees e

intercacircmbios entre diferentes linguagens ou disciplinas artiacutesticas que resultaram em

novos campos de accedilatildeo em outros territoacuterios de mutaccedilatildeo artiacutestica e de possibilidades

expressivas Interdisciplinas artiacutesticas seriam entatildeo outras disciplinas ou intermiacutedias

tais como as jaacute citadas performance art e teatro performance danccedila teatro butoh

muacutesica teatro arte computacional teatro acuacutestico teatro digital instalaccedilatildeo roboacutetica

criacutetica em performance ou viacutedeo poesia

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Terroristas oficiais e disfarccedilados continuam a defender fronteiras imutaacuteveis e a

dividir pessoas quando soacute existe uma raccedila a humana Enquanto a natureza se delicia

com a diversidade interesses econocircmicos impotildeem modelos hegemocircnicos injustos e

uniformizantes que querem evitar a particularidade a convivecircncia ou a diferenccedila Os

mercados globalizados nos orgasmos muacuteltiplos do capitalismo selvagem conquistam

novas trilhas para o livre fluir de capitais mas natildeo de pessoas

A paz o livre exerciacutecio de sexualidades igualdade novas fronteiras e o

assentamento de pessoas em condiccedilotildees mais justas satildeo evitados no Brasil e no mundo

por problemas pessoais mal resolvidos interesses escusos e paranoias

governamentais Como lembrou Lucia Sander em palestra-performance em Maceioacute

neste ano Einstein dizia que ldquoeacute mais faacutecil dividir um aacutetomo que destruir um

preconceitordquo E Susan Sontag afirmou anos depois que a histoacuteria do preconceito eacute tatildeo

antiga quanto a histoacuteria das questotildees pessoais mal resolvidas As artes incluindo

performance e outras interdisciplinas artiacutesticas vazam esses escudos anti-

transformaccedilotildees e tentam exemplificar outras possibilidades de outros mundos

simultacircneos e distintos que se trocam e produzem outros mundos inclusivos e

questionadores de absolutismos restringentes A batalha continua sintomaacutetica

enigmaacutetica e performaacutetica

Referecircncias ASCOTT Roy lsquoArte emergente interativa tecnoeacutetica e uacutemidarsquo Trad Cleacuteria Maria Costa Anais do 1 Encontro Internacional de Arte e Tecnologia Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1999 p19 - p29 BARTHES Roland Image-Music-Text Trad Stephen Heath Nova York Hill and Wang 1977 BATTCOCK Gregory e NICKAS Robert eds The Art of Performance Nova York E P Duncan amp Co 1984 BLAU Herbert lsquoThe Prospect Before Usrsquo Discourse 142 1992 p 1- p 25

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BUTLER Judith Gender Trouble Londres e Nova York Routledge 1990 CAMPBELL Patrick ed Analysing Performance A Critical Reader Manchester e Nova York Manchester University Press 1996 CARLSON Marvin Performance A Critical Introduction Londres e Nova York Routledge 1996 CONNOR Steven lsquoPostmodern Performancersquo In Campbell 1996 p 107- p 24 DAVIS Douglas lsquoPost-Performancismrsquo Artforum 202 (1981) pp 31-9 DIAMOND Elin ed Performance amp Cultural Politics (Londres e Nova York Routledge 1996) ENGLER Balz lsquoPostdisciplinarityrsquo In Faria Neide (ed) Language and Literature Today Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1996 p 852-9 FAZENDA Ivani Catarina Arantes Interdisciplinaridade um projeto em parceria Satildeo Paulo Loyola 1991 FEacuteRAL Josette lsquoWhat is Left from Performance Art Autopsy of a Function Birth of a Genrersquo Discourse 142 1992 pp 142-62 GOLDERG RoseLee lsquoPerformance The Golden Yearsrsquo in Battcock e Nickas (1984) pp 71-94 HIGGINS Dick A Dialectics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978) JAPIASSU Hilton Interdisciplinaridade e patologia do saber (Rio de Janeiro Imago 1976) KIRBY Michael A Formalist Theatre Philadelphia University of Pennsylvania Press 1987 KOSTELANETZ Richard The Theatre of Mixed Means An Introduction to Happenings Kinetic Environments and Other Mixed-Media Performances (Londres Pitman 1970) MAGOLIN Deb lsquoA Perfect Theatre for One Teaching ldquoPerformance Compositionrdquorsquo TDR 412 (1997) pp 68-81

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ORTHOFF Geraldo Tradiccedilatildeo e inovaccedilatildeo especializaccedilatildeo e interdisciplinaridade no ensino das artes (Brasiacutelia Editora D 1994) SCHECHNER Richard The End of Humanism (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982) ________ A New Paradigm for the Theatre in the AcademyTDR Vol 364 (1992) pp 7-10 SCHIMMEL Paul ed Out of Actions between Performance and the Object 1949-1979 (Londres e Nova York Thames and Hudson 1998) VILLAR de Queiroz Fernando Antonio Pinheiro lsquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi of La Fura dels Bausrsquo Romance Quarterly 464 (1999) pp 248-54 ______________ lsquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rsquo tese de PHD defendida e aprovada em 08 de janeiro de 2001 Senate House University of London (2001) WILES Timothy J The Theatre Event (Chicago The University of Chicago Press 1980)

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Estudo sobre a participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental

Pacircmela Goumlethel Dutra1 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Cristina Rolim Wolffenbuumlttel2

Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Ana Maria Bueno Accorsi3 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS

Resumo O artigo apresenta a pesquisa com um grupo instrumental em uma escola puacuteblica municipal em TaquariRS Partiu dos questionamentos Qual o significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental Quais as expectativas dos estudantes que participam desses grupos Qual a influecircncia da muacutesica para estes participantes Quais as expectativas de estudantes familiares e comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre o envolvimento dos familiares dos estudantes O objetivo foi compreender a importacircncia da participaccedilatildeo em um grupo instrumental escolar Constatou-se a importacircncia da participaccedilatildeo no grupo instrumental apontado por todos investigados Entende-se que esta pesquisa contribua para a construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para a educaccedilatildeo musical nas escolas bem como para a implementaccedilatildeo da legislaccedilatildeo que dispotildee sobre a inserccedilatildeo da muacutesica no Brasil Palavras-chave Educaccedilatildeo musical grupos instrumentais muacutesica na Educaccedilatildeo Baacutesica

1 Estudante do curso de Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Musical na Universidade Estadual pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Licenciada em Pedagogia pelo Centro Universitaacuterio Leonardo da Vinci Cursando o 9ordm semestre de licenciatura em Muacutesica pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Participou do grupo de pesquisa na Uergs intitulado Educaccedilatildeo Musical diferentes tempos e espaccedilos com linhas de pesquisas sobre processos de ensino e aprendizado em muacutesica e poliacuteticas em Educaccedilatildeo Musical Professora de muacutesica do municiacutepio de Taquari- RS desde 2013 no qual atua em atividades de Educaccedilatildeo Musical no curriacuteculo do ensino baacutesico nos anos iniciais e finais do ensino fundamental e em atividades escolares no extracurricular com aulas de instrumentos e na formaccedilatildeo de grupos instrumentais bandas marciais e coro infanto-juvenil 2 Doutora e Mestre em Educaccedilatildeo Musical pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Especialista em Informaacutetica na Educaccedilatildeo Ecircnfase em Instrumentaccedilatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul Licenciada em Muacutesica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Coordena o curso de Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Musical na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Unidade de Montenegro Eacute coordenadora da Aacuterea Muacutesica do Programa de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia em Montenegro da CAPESUERGS Coordena a Comissatildeo de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo da Uergs-Montenegro orientando bolsistas de iniciaccedilatildeo cientiacutefica em muacutesica e artes da FAPERGS CNPq e UERGS Eacute coordenadora dos grupos de pesquisa registrados no CNPq Arte criaccedilatildeo interdisciplinaridade e educaccedilatildeo e Educaccedilatildeo Musical diferentes tempos e espaccedilos Coordena o Programa de Extensatildeo Universitaacuteria do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo pela Uergs Eacute Diretora Cientiacutefica da Coleccedilatildeo Educaccedilatildeo Musical da Editora Prismas de Curitiba Faz parte da Comissatildeo Gauacutecha de Folclore e da Fundaccedilatildeo Santos Herrmann Eacute integrante da Academia Montenegrina de Letras ocupando a Cadeira nordm5 Faz parte da Associaccedilatildeo Montenegrina de Escritores 3 Possui graduaccedilatildeo em Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (1976) mestrado em Linguumliacutestica e Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (1999) e doutorado em Linguumliacutestica e Letras pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (2005) Atualmente eacute professor adjunto da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e Consultora Terapecircutica em Dependecircncia Quiacutemica Coordena o Curso de Licenciatura em Letras Portuguecircs e Literaturas de Liacutengua Portuguesa e o Curso de Especializaccedilatildeo Teoria e Praacutetica da Formaccedilatildeo do Leitor

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Abstract The article presents the research with an instrumental group at a municipal public school in TaquariRS The research started from the questions What is the meaning of student participation in an instrumental group What are the expectations of the students participating in these groups What is the influence of music on these participants What are the expectations of students families and the school community in relation to the group How does the involvement of the students family members occur The objective was to understand the importance of participation in a school instrumental group It was verified the importance of the participation in the instrumental group indicated by all investigated It is understood that this research contributes to the construction of public policies for music education in schools as well as for the implementation of the legislation that regulates the insertion of music in Brazil Keywords Musical education instrumental musical groups music in Basic Education

Introduccedilatildeo

As diversas possibilidades de inserccedilatildeo da muacutesica na escola conquistaram

legitimidade com a Lei nordm 11769 de 18 de agosto de 2008 Mais recentemente em

3 de maio de 2016 foi publicada a Lei nordm 13278 que incluiu artes visuais danccedila

muacutesica e teatro nos curriacuteculos dos diversos niacuteveis da Educaccedilatildeo Baacutesica A nova

legislaccedilatildeo altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional nordm 9394 de

1996 (LDB 93941996) estabelecendo um prazo de cinco anos para que os

sistemas de ensino promovam a formaccedilatildeo de professores para implantar esses

componentes curriculares nas escolas A partir dessas leis tem-se a obrigatoriedade

da inclusatildeo da muacutesica no curriacuteculo das escolas Neste sentido pode-se pensar na

diversidade dos modos de a muacutesica se configurar na escola inclusive como

atividade extracurricular Nesse sentido Wolffenbuumlttel (2014) aponta

Muitas vezes as escolas optam pelo desenvolvimento de determinadas atividades - dentre essas as musicais - em outras dimensotildees que natildeo as tradicionais relacionadas com tempos e espaccedilos curriculares Surgem assim as atividades extracurriculares como alternativas para o ensino

escolar (WOLFFENBUumlTTEL 2014 p 56)

Percebe-se portanto que as atividades musicais extracurriculares

possibilitam a inserccedilatildeo da muacutesica se assim for a opccedilatildeo da escola Poreacutem natildeo

inviabilizam a implementaccedilatildeo da muacutesica no ensino regular da mesma instituiccedilatildeo

podendo a escola oferecer tanto atividades musicais no ensino regular quanto

extracurricular

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Sobre as funccedilotildees sociais envolvidas nas praacuteticas instrumentais de grupos

musicais Bozzetto (2012) aponta a importacircncia da participaccedilatildeo de crianccedilas e jovens

em projetos que envolvam atividades musicais Em sua anaacutelise a autora afirma

A importacircncia de que projetos que satildeo erguidos com a funccedilatildeo de inserccedilatildeo social atraveacutes da muacutesica mantenham viva e coerente essa afirmativa cientes de que dar a oportunidade a uma crianccedila e jovem notadamente de camadas de baixa renda eacute abrir um mundo de possibilidades que com o tempo de convivecircncia podem se tornar uma referecircncia de mundo social para toda uma vida (BOZZETTO 2012 p 266)

Bozzetto (2012) finaliza essa discussatildeo refletindo sobre a necessidade de os

projetos sociais entenderem seu papel de inclusatildeo social destacando que a tarefa

do educador musical eacute a de ldquocontribuir para uma educaccedilatildeo musical mais justa e

humana e da importacircncia de sua inserccedilatildeo em projetos que reconheccedilam a praacutetica

musical como oportunidade de inclusatildeo socialrdquo (p 266)

Joly e Joly (2011) investigaram as praacuteticas sociais e os processos educativos

que acontecem em ambiente de orquestra No sentido das praacuteticas sociais as

autoras refletem sobre as ldquorelaccedilotildees que se estabelecem entre pessoas pessoas e

comunidade na qual se inserem pessoas e grupos grupos entre si grupos e

sociedade mais amplardquo (p 80)

De acordo com Bastiatildeo (2012) nosso paiacutes eacute multicultural possuindo vaacuterias

culturas diferentes e cada regiatildeo possui uma manifestaccedilatildeo folcloacuterica musical

proacutepria Nesse sentido o educador musical poderaacute atraveacutes da praacutetica de conjunto

trabalhar esse contexto ldquodadas a riqueza e a diversidade da muacutesica popular

brasileira ndash observam-se a valorizaccedilatildeo e a inserccedilatildeo das muacutesicas e manifestaccedilotildees da

cultura oral nos contextos acadecircmico e regular de ensinordquo (p 60)

Entende-se que atividades que envolvem grupos instrumentais nos quais a

praacutetica de conjunto estaacute inserida no seu cotidiano contemplam o que os Paracircmetros

Curriculares Nacionais (PCNs) tratam sobre os objetivos de expressatildeo e

comunicaccedilatildeo em muacutesica tais como

Improvisaccedilatildeo composiccedilatildeo e interpretaccedilatildeo com instrumentos musicais tais como flauta percussatildeo etc eou vozes (observando tessitura e questatildeo de muda vocal) fazendo uso de teacutecnicas instrumental e vocal baacutesicas participando de conjuntos instrumentais eou vocais desenvolvendo autoconfianccedila senso criacutetico e atitude de cooperaccedilatildeo (BRASIL 1998 p 83)

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Ainda no que tange aos PCNs satildeo relacionados objetivos de interpretaccedilatildeo

acompanhamento recriaccedilatildeo e realizaccedilatildeo de arranjos

Arranjos de muacutesica do meio sociocultural e do patrimocircnio musical construiacutedo pela humanidade nos diferentes espaccedilos geograacuteficos eacutepocas povos culturas e etnias tocando eou cantando individualmente eou em grupo (banda canto coral e outros) construindo relaccedilotildees de respeito e diaacutelogo (BRASIL 1998 p 83)

Considerando-se a potencialidade da muacutesica na escola bem como a

existecircncia de atividades extracurriculares caracterizadas como organizaccedilotildees de

grupos instrumentais em diversas escolas alguns questionamentos surgiram Qual o

significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental Quais as

expectativas dos estudantes que participam destes grupos Qual a influecircncia da

muacutesica para esses participantes Quais as expectativas de estudantes familiares e

comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre o envolvimento dos

familiares dos estudantes Esta pesquisa portanto objetivou compreender a

importacircncia de fazer parte de um grupo instrumental escolar

O Grupo Instrumental Investigado

A investigaccedilatildeo sobre a importacircncia da participaccedilatildeo em um grupo instrumental

escolar originou-se a partir da inserccedilatildeo de uma das autoras deste artigo como

professora de muacutesica em uma escola puacuteblica municipal em TaquariRS O foco da

pesquisa deu-se a partir dessa atuaccedilatildeo considerando-se as atividades no

contraturno escolar

Os ensaios do grupo ocorrem uma vez por semana no uacuteltimo periacuteodo do

turno da tarde apoacutes as aulas coletivas de instrumentos de sopro Contando com

catorze estudantes de 10 a 18 anos de idade a atividade oportuniza a

experimentaccedilatildeo e o manuseio de diversos instrumentos musicais permitindo muitos

aprendizados importantes para o desenvolvimento musical dos estudantes

Atraveacutes da aquisiccedilatildeo de variados instrumentos musicais o grupo tem tido a

possibilidade de fazer apresentaccedilotildees em variadas configuraccedilotildees grupais incluindo

o formato de banda marcial possibilitando aos estudantes experimentar e manusear

uma diversidade musical

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Esta praacutetica extrapola os tempos e espaccedilos escolares agregando pessoas da

comunidade bem como egressos que continuam participando das atividades

musicais O grupo instrumental faz apresentaccedilotildees locais incluindo o comeacutercio local

as instituiccedilotildees beneficentes aleacutem das demais regiotildees do municiacutepio e de fora dele

Metodologia

A proposta metodoloacutegica desta investigaccedilatildeo incluiu a abordagem qualitativa o

meacutetodo estudo de caso e entrevistas e observaccedilotildees como teacutecnicas para a coleta dos

dados A anaacutelise dos dados consistiu na anaacutelise de conteuacutedo

A Abordagem Qualitativa

Para a pesquisa foi utilizada a abordagem qualitativa Martins (2004) explica

que a ldquometodologia qualitativa mais do que qualquer outra levanta questotildees eacuteticas

principalmente devido agrave proximidade entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 295)

Aleacutem disso eacute a partir de cada dado coletado conforme suas caracteriacutesticas que se

faz uma interaccedilatildeo entre os conteuacutedos atraveacutes dessa interaccedilatildeo a pesquisa traz suas

impressotildees e percepccedilotildees

A razatildeo para a escolha da abordagem qualitativa para realizaccedilatildeo deste

trabalho relacionou-se ao fato de a mesma possibilitar a reflexatildeo sobre a

participaccedilatildeo dos estudantes em um grupo instrumental no contexto escolar e na

sociedade em que estatildeo inseridos

O Estudo de Caso

O estudo de caso caracteriza-se por atender a determinado objetivo atraveacutes

da investigaccedilatildeo de um caso especiacutefico Eacute muito utilizado quando se pretende

compreender explorar ou descrever acontecimentos e contextos complexos nos

quais estatildeo simultaneamente envolvidos diversos fatores Para Yin (2001) o estudo

de caso ldquocontribui de forma inigualaacutevel para a compreensatildeo que temos dos

fenocircmenos individuais organizacionais sociais e poliacuteticosrdquo (p 21)

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As Entrevistas Semiestruturadas

As entrevistas semiestruturadas permitiram aprofundar as questotildees

especiacuteficas desta pesquisa A entrevista semiestruturada eacute uma ldquoseacuterie de perguntas

abertas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o entrevistador

pode acrescentar perguntas de esclarecimentordquo (LAVILLE DIONE p 188) Todas

as entrevistas foram realizadas na escola na qual existe o grupo instrumental em

horaacuterios previamente combinados

Ao todo foram feitas cinco entrevistas sendo as mesmas realizadas com dois

estudantes integrantes do grupo instrumental com a matildee de um dos estudantes

com a diretora da escola e com uma professora Como acontece nas entrevistas do

tipo semiestruturada seguiu-se um roteiro mas com a possibilidade de serem

acrescidas outras perguntas conforme necessaacuterio

Considerando-se a escolha dos entrevistados foram seguidos alguns

criteacuterios Selecionou-se um estudante (denominado Estudante J) que participa do

grupo desde o iniacutecio das atividades Neste caso suas informaccedilotildees poderiam

fornecer uma visatildeo geral sobre a importacircncia de participar do grupo haacute mais tempo

O outro estudante (denominado Estudante W) foi escolhido por ter ingressado

recentemente no grupo instrumental e poderia fornecer outra visatildeo a respeito desta

participaccedilatildeo Deste modo aleacutem de ambos os estudantes terem concordado com a

participaccedilatildeo na pesquisa e de terem tempo disponiacutevel para serem entrevistados

eles poderiam contribuir com as informaccedilotildees sobre sua participaccedilatildeo mas tendo

tempos de participaccedilatildeo diferentes no grupo Foi entrevistada tambeacutem a matildee do

Estudante J que participa desde o iniacutecio das atividades do grupo instrumental A

professora que participou da pesquisa foi selecionada por ser docente na escola em

que o grupo instrumental tem suas atividades aleacutem de ter lecionado para os

estudantes investigados Adicionalmente esclarece-se que a professora concordou

em fornecer a entrevista e teve tempo para a mesma Por fim a diretora foi

entrevistada por ter importantes contribuiccedilotildees para a pesquisa considerando-se sua

visatildeo como gestora da escola

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A Anaacutelise dos Dados

Para a realizaccedilatildeo da anaacutelise dos dados coletados nesta investigaccedilatildeo utilizou-

se a anaacutelise de conteuacutedo a partir da proposta de Moraes (1999) Para Moraes

(1999) a anaacutelise de conteuacutedo ldquoconstitui uma metodologia de pesquisa usada para

descrever e interpretar o conteuacutedo de toda classe de documentos e textosrdquo (p 2) A

anaacutelise de conteuacutedo viabilizou a anaacutelise dos dados transcritos tendo contato com

diversos textos corroborando a conclusatildeo da anaacutelise sobre o assunto da pesquisa

atingindo assim os objetivos

Para a realizaccedilatildeo desta anaacutelise alguns procedimentos foram necessaacuterios

como as etapas que Moraes (1999) propotildee tais como a ldquopreparaccedilatildeo das

informaccedilotildeesrdquo a qual foi feita por meio de entrevistas semiestruturadas Deve-se

salientar que as entrevistas foram gravadas no gravador de aacuteudio do celular Apoacutes a

realizaccedilatildeo das entrevistas as mesmas foram integralmente transcritas Efetuadas as

transcriccedilotildees das cinco entrevistas todas passaram pelo processo de revisatildeo e

textualizaccedilatildeo a fim de ajustar possiacuteveis inconsistecircncias de dados ou mesmo

correccedilotildees ortograacuteficas e gramaticais necessaacuterias

Para Moraes (1999) este procedimento eacute importante para iniciar o processo

de codificaccedilatildeo dos materiais estabelecendo um coacutedigo que possibilite identificar

rapidamente cada elemento da amostra de depoimentos ou documentos a serem

analisados

Todo este processo resultou na constituiccedilatildeo de um caderno denominado

Caderno de Entrevistas 2015 (C E 2015) contendo as entrevistas dos estudantes

J e W da matildee do Estudante J da professora e da diretora da escola

Posteriormente este Caderno de Entrevistas 2015 passou por uma leitura

minuciosa considerando-se o processo de ldquounitarizaccedilatildeordquo proposto por Moraes

(1999) servindo de base para as etapas subsequentes quais sejam a

categorizaccedilatildeo e a anaacutelise dos dados Aleacutem do Caderno de Entrevistas tambeacutem foi

constituiacutedo outro caderno denominado Caderno de Categorizaccedilatildeo 2015 (C C

2015) A categorizaccedilatildeo consiste em um procedimento de ldquoagrupar dados

considerando a parte comum existente entre eles Classifica-se por semelhanccedila ou

analogia segundo criteacuterios previamente estabelecidos ou definidos no processordquo

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(MORAES 1999 p 6) Neste caderno os dados coletados foram separados por

categorias sendo que posteriormente depois de rigorosa anaacutelise das categorias

criadas compuseram os Resultados e a Anaacutelise dos Dados juntamente com a

realizaccedilatildeo da anaacutelise fundamentada no referencial teoacuterico desta pesquisa Salienta-

se que estas atividades foram precedidas de uma cuidadosa e ampla leitura do texto

final

Aleacutem dos cadernos mencionados foi constituiacutedo um Caderno de Fotografias

2015 (C F 2015) no qual se encontram as imagens dos eventos dos quais o grupo

instrumental participou servindo como complemento para a anaacutelise dos dados

Desse modo considerando-se o material coletado e organizado resultaram

as seguintes categorias de anaacutelise Os Entrevistados A Importacircncia da Participaccedilatildeo

dos Estudantes nas Atividades do Grupo Instrumental Influecircncias de Participar em

um Grupo Instrumental para a vida dos Estudantes Participantes e Familiares

Envolvidos Expectativas em Relaccedilatildeo agraves Atividades Instrumentais Estas categorias

foram analisadas a partir de um referencial teoacuterico da educaccedilatildeo musical o qual eacute

apresentado a seguir

Referencial Teoacuterico

O referencial teoacuterico selecionado para a anaacutelise dos dados desta investigaccedilatildeo

sobre a importacircncia da participaccedilatildeo de estudantes em um grupo instrumental

escolar foi constituiacutedo por conceitos de educaccedilatildeo musical e do desenvolvimento

musical de crianccedilas e adolescentes

A Educaccedilatildeo Musical

Kraemer (2000) trata da questatildeo epistemoloacutegica da educaccedilatildeo musical dentre

outros assuntos pertinentes ao tema Define como pedagogia da muacutesica o campo da

educaccedilatildeo musical explicando que a pedagogia da muacutesica ldquodivide seu objeto com as

disciplinas chamadas ciecircncias humanas filosofia antropologia sociologia ciecircncias

poliacuteticas histoacuteriardquo Para Kraemer (2000) ldquoeacute dada a relaccedilatildeo com a musicologia

(assim como com a praacutetica da muacutesica e a vida musical)rdquo (p 52) A psicologia da

muacutesica ldquoinvestiga o comportamento musical e as vivecircncias musicaisrdquo (p 55) e a

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sociologia da muacutesica ldquoas condiccedilotildees sociais e os efeitos da muacutesica assim como

relaccedilotildees sociais que estejam relacionadas agrave muacutesicardquo (p 57)

A partir desses fatores trazidos pelo autor eacute possiacutevel constatar o quanto eacute

vasto o campo da educaccedilatildeo musical agregando a muacutesica a vaacuterias aacutereas do

conhecimento e podendo ser trabalhada dentro dessas linguagens Assim cada

aspecto tem importantes contribuiccedilotildees para o conhecimento musical num todo

Assim como a pedagogia acrescenta em sua didaacutetica e se complementa com

as outras aacutereas do conhecimento para ter mais ecircxito no ensino-aprendizagem e na

relaccedilatildeo estudante-professor podemos fazer o mesmo com a muacutesica agregando

essas aacutereas no fazer didaacutetico-musical Satildeo aacutereas que se complementam em

diversas situaccedilotildees Desse modo a muacutesica tem um papel integrador e

transdisciplinar assim como o papel da pedagogia que considera ldquoa vida humana

sob aspectos da educaccedilatildeo formaccedilatildeo instruccedilatildeo e didaacuteticardquo (KRAEMER 2000 p

60)

Eacute necessaacuterio que na muacutesica assim como na pedagogia existam esses

olhares num contexto amplo da educaccedilatildeo observando todos os aspectos relevantes

no desenvolvimento integral do estudante independente de como a disciplina estaacute

inserida na escola seja de forma curricular ou extracurricular Eacute importante que os

professores de muacutesica considerem a educaccedilatildeo musical como um todo objetivando a

formaccedilatildeo do cidadatildeo Natildeo se desconsidera a teacutecnica da execuccedilatildeo musical

igualmente importante Todavia outros conceitos que fazem parte da educaccedilatildeo

musical satildeo igualmente necessaacuterios

Englobando aspectos socioloacutegicos nos quais eacute observado o comportamento

de uma determinada sociedade e a forma com que se organizam no tempo livre e

trabalho Kraemer (2000) relaciona a muacutesica agrave sociologia explicando

A sociologia da muacutesica examina as condiccedilotildees sociais e os efeitos da muacutesica assim como relaccedilotildees sociais que estejam relacionadas com a muacutesica Ela considera o manuseio com a muacutesica como um processo social e analisa o comportamento do homem relacionado com a muacutesica em direccedilatildeo agraves influecircncias sociais instituiccedilotildees e grupos (KRAEMER 2000 p 57)

Para Swanwick (2003) eacute fundamental unir atividades de execuccedilatildeo

apreciaccedilatildeo e criaccedilatildeo para que os estudantes se desenvolvam artisticamente O foco

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reside especialmente no que acontece quando a pessoa se relaciona com muacutesica

no fazer musical

Swanwick (2003) propotildee trecircs atividades principais na muacutesica compor ouvir

muacutesica e tocaacute-la Ele reuacutene estas atividades em sua proposta conhecida no Brasil

como TECLA constituiacuteda pelo estudo da histoacuteria da muacutesica (literatura) e pela

aquisiccedilatildeo de habilidades (em inglecircs skill aquisition) denominado de teacutecnica Tem-

se assim T de teacutecnica E de execuccedilatildeo C de composiccedilatildeo L de literatura e A de

apreciaccedilatildeo E atraveacutes de sua proposta o autor aborda diversos fatores que

envolvem esse contexto Conceitos a se considerar em qualquer lugar em que o

educador musical possa estar atuando assim como os de Kraemer (2000) seja em

sala de aula anos iniciais e finais ou em um coro um grupo instrumental ou banda

escolar ou marcial com crianccedilas jovens ou adultos Onde haacute pessoas que de

alguma forma estatildeo se relacionando com muacutesica essas concepccedilotildees podem ser

utilizadas

O Desenvolvimento Musical de Crianccedilas e Adolescentes

O estudante ao se identificar com o que estaacute sendo proposto nas atividades

de ensino e aprendizagem no caso de atividades instrumentais em que o estudante

eacute considerado como um propositor e natildeo apenas plateia sentir-se-aacute responsaacutevel

pelas atividades e pelo sucesso das mesmas O estudante se sente valorizado o

que aumenta sua autoestima colabora para seu desenvolvimento pessoal no

sentido intelectual resultando familiarizaccedilatildeo e encantamento com o fazer musical

Nesse sentido Swanwick (2003) discorre sobre a importacircncia de ldquoconsiderar

o discurso musical dos alunosrdquo A partir daiacute o discurso ldquoconversaccedilatildeo musical natildeo

pode ser nunca um monoacutelogo Cada estudante traz consigo um domiacutenio de

compreensatildeo musical quando chega a nossas instituiccedilotildees educacionaisrdquo

(SWANWICK 2003 p 66)

Considerando a muacutesica como discurso ldquoprocederemos baseados na ideia de

que ela pode fazer uma diferenccedila na maneira como vivemos e como podemos

refletir sobre nossa vidardquo (SWANWICK 2003 p 78) Despertar no estudante o

encantamento com o fazer musical oportunizando a compreensatildeo dos aspectos

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musicais Swanwick (2003) explica que as ldquoteacutecnicas e manuseio de materiais

sonoros satildeo importantes mas sabemos que eles natildeo satildeo a soma total da

compreensatildeo musicalrdquo (p 67) Mesmo em grupos musicais que tecircm por base as

atividades instrumentais de aprendizagem de instrumento e praacutetica de conjunto

existem diversas possibilidades para alcanccedilar os objetivos musicais propostos

sensibilizando para a aprendizagem musical

Conforme Wolffenbuumlttel (2014) as atividades extracurriculares servem como

ldquoperspectiva de ampliaccedilatildeo das possibilidades das escolas Estudos realizados em

diferentes paiacuteses sugerem que as atividades extracurriculares satildeo capazes de

contribuir para o desenvolvimento dos alunosrdquo (p 56)

Em relaccedilatildeo agraves possibilidades musicais para desenvolver a compreensatildeo

musical Swanwick (2003) aponta a importacircncia de os estudantes terem ldquoa

oportunidade de produzir e responder agrave muacutesica em todas as camadas do discurso

musical qualquer que seja a atividaderdquo (SWANWICK 2003 p 97) As atividades

musicais em grupos instrumentais contemplam o que os PCNs sugerem para as

atividades musicais no que se refere agrave ldquoCriaccedilatildeo a partir do aprendizado de

instrumentos do canto de materiais sonoros diversos e da utilizaccedilatildeo do corpo como

instrumento procurando o domiacutenio de conteuacutedos da linguagem musicalrdquo (BRASIL

1998 p 83)

Resultados e Anaacutelise dos Dados

A partir da anaacutelise dos dados resultaram quatro categorias Os Entrevistados

A Importacircncia da Participaccedilatildeo dos Estudantes nas Atividades do Grupo

Instrumental Influecircncias de Participar em um Grupo Instrumental para a vida dos

Estudantes Participantes e Familiares Envolvidos Expectativas em Relaccedilatildeo agraves

Atividades Instrumentais

Os Entrevistados

Foram entrevistadas cinco pessoas dois estudantes a matildee de um dos

estudantes uma professora e a diretora da escola

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Um dos estudantes do grupo instrumental o Estudante J participa das

atividades musicais extracurriculares desde abril de 2013 ele iniciou com aulas de

flauta doce e apoacutes a criaccedilatildeo do grupo instrumental teve a oportunidade de

experimentar e manusear outros instrumentos musicais iniciando seus estudos no

saxofone alto o qual toca no grupo ateacute os dias de hoje Seu pai e seu avocirc tambeacutem

tocam instrumentos musicais sendo que desde crianccedila o Estudante J disse

conviver com essas audiccedilotildees tendo aprendido muacutesica e em especial as noccedilotildees de

ritmo atraveacutes do ensinamento de seus familiares (C E 2015 p 11) O Estudante J

salientou que gosta muito de escutar muacutesica sertaneja muacutesica gauacutecha e vaacuterios

outros gecircneros musicais (C E 2015 p 12)

O Estudante W que tem 18 anos de idade participa das atividades do grupo

instrumental desde junho de 2014 tendo comeccedilado a tocar o instrumento musical

metalofone apoacutes a flauta doce este estudante iniciou seus estudos no saxofone alto

desde o iniacutecio de 2015 O Estudante W continuou no grupo instrumental mesmo

apoacutes sua saiacuteda da escola devido ao teacutermino de seus estudos no Ensino

Fundamental Este estudante explicou que nunca foi reprovado mas devido a

problemas familiares parou de estudar por um determinado tempo Diferentemente

do Estudante J o Estudante W natildeo tem familiares com conhecimentos musicais

sendo o primeiro a ter contato com a muacutesica na escola (C E 2015 p 7) O

Estudante W explicou que costuma escutar muacutesica em casa todos os dias

raramente assiste agrave televisatildeo e gosta muito de ouvir muacutesica sertaneja (C E 2015

p 9) Ele relatou que quase todo o dia pratica estudos no saxofone alto ou tem

contato com o instrumento mesmo que seja somente para fazer os procedimentos

de limpeza (C E 2015 p 8)

Eacute possiacutevel apoacutes caracterizar os estudantes organizar e categorizar suas

falas apontar aspectos relativos aos seus gostos e preferecircncias musicais Nesse

sentido Swanwick (2003) postula a necessidade dessa praacutetica de ldquoconsiderar o

discurso musical dos alunosrdquo (p 66) pois estes ao se apresentarem trazem suas

identidades musicais E nesse sentido considerar o discurso musical nos ensaios

do grupo instrumental foi um dos importantes procedimentos realizados

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Em relaccedilatildeo agrave famiacutelia foi entrevistada a matildee do Estudante J o qual eacute

participante do grupo instrumental desde 2013 tambeacutem entrevistado nessa

pesquisa

Representando os professores de sala de aula dos estudantes participantes

do grupo instrumental foi entrevistada a professora do componente curricular de

matemaacutetica Ela leciona para as turmas do 5ordm ao 9ordm ano fazendo parte do processo

de ensino e aprendizagem de estudantes de diferentes faixas etaacuterias que satildeo

participantes do grupo

Por fim da equipe diretiva da escola foi entrevistada a diretora a qual ocupa

este cargo de gestatildeo desde abril de 2014 Anteriormente era vice-diretora da

escola

A Importacircncia da Participaccedilatildeo de Estudantes nas Atividades do Grupo Instrumental

A partir da realizaccedilatildeo desta pesquisa constatou-se a importacircncia que o grupo

instrumental tem na vida de todos os envolvidos com este tipo de trabalho Quer

sejam os estudantes que participam do grupo quer sejam as famiacutelias ndash nesta

pesquisa caracterizadas pela entrevista com uma matildee ndash quer sejam os professores

que trabalham com esses estudantes que estatildeo participando do grupo e com

certeza a equipe diretiva caracterizada pela diretora todos percebem esta

importacircncia Cada um do seu modo demonstrou a intensidade da importacircncia desta

participaccedilatildeo

Os estudantes percebem que ao participarem do grupo instrumental aleacutem de

gostarem eles constatam diversos aprendizados tanto musicais quanto

extramusicais A este respeito o Estudante W relatou ldquoPercebo que para mim

ajudou bastante e eu acho que as pessoas gostam do que a gente faz bem dizer

assimrdquo (C E 2015 p 7)

Em outro momento da entrevista o Estudante W explicou sobre sua

socializaccedilatildeo no grupo e em relaccedilatildeo ao rendimento escolar De acordo com seu

depoimento ldquoAcho bom fiz vaacuterias amizades tambeacutem e gosto das apresentaccedilotildees

Sinto-me bem agrave vontade E melhorei meu rendimento bastante e a aprendizagemrdquo

(C E 2015 p 7)

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Quanto agrave oportunidade que lhe foi dada em relaccedilatildeo agrave muacutesica de participar do

grupo musical o Estudante W salientou este aspecto explicando ldquoSempre gostei de

muacutesica e nunca tinha tido a oportunidade de entrar e acabei gostando muitordquo (C E

2015 p 7)

O Estudante J outro entrevistado nesta pesquisa a respeito de seu apreccedilo

pelas aulas de instrumento explicou ldquoEu gosto muito das aulas eacute bom estar aqui

[na escola] estudando muacutesica e aprendendo outros instrumentos novos isso eacute bem

legalrdquo (C E 2015 p 11)

A matildee do Estudante J explicou sobre como percebe a participaccedilatildeo de seu

filho bem como sobre o que esta participaccedilatildeo resulta na famiacutelia modificando-a

inclusive

Ele gosta muito chega a hora de vir natildeo interessa se estaacute chovendo ou se natildeo estaacute ele [seu filho] se arruma e vem [agrave escola] de qualquer jeito Ele gosta muito isso foi uma coisa que vocecircs [da escola] fizeram que foi oacutetimo neacute [] Porque ele fica faceiro chega na hora ele guarda aquele instrumento com muito carinho muito bem guardado Ele gosta muito mesmo (C E 2015 p 3)

A professora dos estudantes que participam do grupo instrumental tambeacutem

observou o reflexo desta participaccedilatildeo no seu trabalho pedagoacutegico no cotidiano da

escola Para a professora ldquoAquele comprometimento que eles tecircm com o horaacuterio da

muacutesica de aprender e tudo mais causa neles um compromisso com o resto das

disciplinas em sala de aula tambeacutemrdquo (C E 2015 p 16) A diretora da escola

tambeacutem contribuiu com a anaacutelise fornecendo importantes dados sobre a participaccedilatildeo

dos estudantes da escola no grupo instrumental De acordo com a diretora

A participaccedilatildeo dos estudantes no grupo para mim eacute acima de tudo muita emoccedilatildeo porque eu sempre acreditei no projeto tentei da melhor maneira possiacutevel focar e conseguir mecanismos para que ele pudesse existir E eu vejo que estar no grupo eacute um grande investimento para essas crianccedilas e adolescentes na construccedilatildeo integral da sua personalidade da sua maneira de pensar e de ver o mundo (C E 2015 p 14)

A diretora ainda acrescentou um comentaacuterio sobre a repercussatildeo do grupo

instrumental na comunidade ressaltando a importacircncia desse fator ao explicar

O grupo instrumental traz a questatildeo da comunidade pois natildeo ficou apenas na escola Ele foi para a comunidade local no bairro ele foi para o centro da cidade as pessoas conhecem o grupo as pessoas convidam para participar de eventos Entatildeo eu acho que para a professora de muacutesica eacute

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profissionalismo para mim eacute emoccedilatildeo e para eles eu acho que eacute um trabalho de autoestima de grande valor porque satildeo crianccedilas de uma localidade rural que nunca se imaginaria de seguir um caminho de estrada de chatildeo com um saxofone (C E 2015 p 15)

As atividades musicais existentes no grupo instrumental da escola repercutem

junto agrave comunidade escolar no seu entorno demais regiotildees do municiacutepio e fora

dele E essa repercussatildeo eacute devida ao incentivo por parte da escola aos estudos

musicais dos estudantes do grupo instrumental e aos demais estudantes da escola e

de fora da escola Isso ocorre no caso do Estudante W que jaacute concluiu seus

estudos mas permanece na escola o que incentiva os demais estudantes a

optarem pela muacutesica como profissatildeo

Observou-se uma concordacircncia entre os entrevistados quando enfatizaram a

extrema importacircncia de os estudantes participarem do grupo instrumental (C E

2015) principalmente no que diz respeito agraves funccedilotildees da muacutesica Esta anaacutelise remete

a Kraemer (2000) considerando-se as funccedilotildees da muacutesica Do mesmo modo os

aspectos socioloacutegicos e psicoloacutegicos apresentaram-se relevantes para esta anaacutelise

O relacionamento entre as pessoas desenvolvido atraveacutes das atividades musicais

no grupo instrumental apresentou-se fortemente Kraemer (2000) ao analisar as

relaccedilotildees entre as pessoas e a importacircncia que a muacutesica pode ter em suas vidas

explica que a pedagogia da muacutesica ocupa-se com ldquoas relaccedilotildees entre a(s) pessoa(s)

e a(s) muacutesica(s) sob os aspectos de apropriaccedilatildeo e de transmissatildeordquo (KRAEMER

2000 p 51) Isto foi encontrado nesse grupo bem como nas falas dos

entrevistados

Nesse sentido a partir das entrevistas realizadas que oportunizaram analisar

e correlacionar os conteuacutedos das falas ao referencial teoacuterico principalmente neste

caso como aponta Kraemer (2000) observa-se a importacircncia da muacutesica para as

pessoas bem como a potecircncia de estar em um grupo instrumental em espaccedilos

escolares

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Influecircncias de Participar de um Grupo Instrumental para a Vida dos Estudantes

Participantes e Familiares Envolvidos

Atraveacutes das entrevistas com os estudantes J e W observou-se a influecircncia

que a muacutesica exerce em suas vidas desde a entrada no grupo instrumental Neste

sentido o Estudante W explicou ldquoMinha famiacutelia apoia bastante eles gostam Em

casa eles pedem para tocar agraves vezes A voacute adora e apoia bastante sempre me

perguntando se eu tirei muacutesica nova alguma coisardquo (C E 2015 p 8)

Aleacutem disso ao comentar sobre o impacto em sua vida o Estudante W

explicou ldquoMelhorou bastante minha vida musical e familiar com isso eu me sinto

muito melhorrdquo (C E 2015 p 9) O Estudante W foi convidado a entrar no grupo

instrumental poreacutem natildeo tinha grandes expectativas musicais E foi se envolvendo

com o fazer musical despertando o interesse de aprender diversos instrumentos

musicais O Estudante W levou esse encantamento para seus familiares seus

ensaios musicais promovem satisfaccedilatildeo em sua famiacutelia promovendo uniatildeo e

interaccedilatildeo dos mesmos durante esse processo

O Estudante J externou em sua fala que ao entrar no grupo ocorreram

muitas mudanccedilas em seu modo de ser Em seu depoimento ele destacou

mudanccedilas quanto ao comprometimento e agrave pontualidade Ele observa que consegue

cumprir o que eacute solicitado pela professora estaacute estudando mais Assim ldquome ajudou

bastante ateacute na aula normal estou mais comportado fazendo todos os trabalhos

melhorrdquo (C E 2015 p 12)

Em relaccedilatildeo agrave famiacutelia a matildee do Estudante J enfatizou a grande socializaccedilatildeo e

o clima de harmonia que a famiacutelia experienciou por meio do contato de seu filho com

o instrumento musical em casa (C E 2015)

Observa-se nos depoimentos a funccedilatildeo da muacutesica no campo socioloacutegico que

vai ao encontro do que Kraemer (2000) acredita jaacute que ldquoconsidera o manuseio com

a muacutesica como um processo socialrdquo e analisa o ldquocomportamento do homem

relacionado com a muacutesica em direccedilatildeo agraves influecircncias sociais institucionais e gruposrdquo

(p 57) Eacute possiacutevel atraveacutes dos dados coletados observar a influecircncia social e

comportamental que a muacutesica exerce entre os agentes envolvidos seja no acircmbito

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familiar ou no processo de desenvolvimento intelectual dos estudantes participantes

do grupo

Nas falas da escola caracterizadas pela entrevista com a diretora e com a

professora foi possiacutevel verificar que ambas tambeacutem trataram da influecircncia que

resulta da participaccedilatildeo no grupo instrumental A professora explicou suas

observaccedilotildees quanto aos estudantes participantes do grupo instrumental feitas na

sua aula Ela leciona haacute muitos anos na escola e por isso tem um grande

conhecimento dos estudantes os tem acompanhado antes mesmo de ingressarem

no grupo instrumental Ao conhecer os estudantes ela pode analisar mais

amplamente De acordo com a professora

A gente nota uma diferenccedila bastante elevada neles Que eles se concentram mais em sala de aula e isso ajuda para o futuro deles e isso eacute muito bom Pois a gente sabe que tudo na vida precisa de concentraccedilatildeo precisa de carinho para fazer as coisas precisa de dedicaccedilatildeo E isso eu vejo enquanto eles aprendem muacutesica Eacute claro que isso reflete em sala de aula tambeacutem (C E 2015 p 17)

Foi possiacutevel constatar ao analisar a entrevista da professora no que se

relaciona agrave psicologia da muacutesica o que Kraemer (2000) explica sobre as

ldquosemelhanccedilas e diferenccedilas observaacuteveis de comportamento e da vivecircncia musicalrdquo (p

55) Assim pode-se analisar as funccedilotildees da educaccedilatildeo musical que envolvem ldquotarefas

da pedagogia da muacutesica [que] devem ser definidas juntamente com a aquisiccedilatildeo de

conhecimento compreender e interpretar descrever e esclarecer conscientizar e

transformarrdquo (KRAEMER 2000 p 66)

Os dados obtidos nas entrevistas no que diz respeito agrave participaccedilatildeo dos

estudantes no grupo instrumental tambeacutem remetem agrave importacircncia da oferta de

atividades no turno inverso escolar Nesse sentido Wolffenbuumlttel (2014) explica que

as atividades extracurriculares tecircm uma perspectiva de ampliaccedilatildeo das possibilidades

das escolas Segundo a autora as ldquoatividades extracurriculares satildeo capazes de

contribuir para o desenvolvimento dos alunosrdquo (p 56)

Expectativas em Relaccedilatildeo agraves Atividades Instrumentais

Ao longo das entrevistas os estudantes participantes do grupo instrumental

externaram suas expectativas musicais em relaccedilatildeo a esta participaccedilatildeo O Estudante

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W foi aleacutem acrescentando sua expectativa profissional De acordo com seu

depoimento ldquoEu pretendo evoluir de repente fazer uma faculdade de muacutesica que

me interessa bastante esse caminhordquo (C E 2015 p 8)

O Estudante J em sua entrevista afirmou sobre as expectativas em relaccedilatildeo agrave

participaccedilatildeo no grupo pretendendo aperfeiccediloar-se para uma melhor representaccedilatildeo

de sua escola De acordo com ele esta participaccedilatildeo se daacute no sentido de ldquofazer o

que tem que fazer natildeo deixar de ensaiar em casa e fazer o melhor Espero que

cada vez melhore para representar melhor a escola e aprender tambeacutemrdquo (C E

2015 p 12) Em suas expectativas profissionais apontou a vontade de seguir

profissionalmente na muacutesica Para ele ldquoAh se surgir alguma oportunidade eu quero

fazer uma faculdade de muacutesica neacute Quero me formarrdquo (C E 2015 p 12) Nesta

fala externada pelo Estudante J observa-se o que os PCNs sugerem em relaccedilatildeo a

um dos objetivos gerais para a muacutesica na escola qual seja adquirir ldquoconhecimento

sobre profissotildees e profissionais da aacuterea musical considerando diferentes aacutereas de

atuaccedilatildeo e caracteriacutesticas do trabalhordquo (BRASIL 1998 p 82)

A participaccedilatildeo dos estudantes no grupo instrumental eacute de suma importacircncia

o que se evidenciou em suas falas em relaccedilatildeo agraves expectativas profissionais

remetendo agraves funccedilotildees da muacutesica e da educaccedilatildeo musical nos acircmbitos psicoloacutegico e

social estando em sintonia com as anaacutelises de Kraemer (2000) apresentadas

anteriormente

Observou-se que todos os entrevistados tecircm expectativas musicais

estudantes que inclusive mencionaram pretender seguir nas atividades musicais

como profissatildeo demonstrando encantamento com o fazer musical e indicando

pretensotildees profissionais A diretora por sua vez mencionou em sua fala esperar

que o grupo instrumental cada vez se estruture mais para assim atender mais

estudantes Ela se preocupa portanto em atender agraves demandas escolares e da

comunidade

Salienta-se que todo esse envolvimento teve como ponto de partida uma

atividade extracurricular (WOLFFENBUumlTTEL 2014) E o bom desempenho do grupo

eacute advindo de vaacuterios esforccedilos sendo que a muacutesica e seu ensino atraveacutes da

educaccedilatildeo musical estaacute desempenhando suas funccedilotildees na vida dos estudantes e dos

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familiares (KRAEMER 2000) Observou-se tambeacutem a valorizaccedilatildeo dos estudantes

participantes como sujeitos propositores no trabalho pedagoacutegico-musical

(SWANWICK 2003) resultando no encantamento do fazer musical colaborando

para o desenvolvimento integral dos sujeitos envolvidos considerando-se as

atividades musicais do grupo instrumental

Consideraccedilotildees Finais

Apoacutes a realizaccedilatildeo desta pesquisa foi possiacutevel responder aos

questionamentos apresentados na introduccedilatildeo deste artigo e que nortearam esta

investigaccedilatildeo quais sejam Qual o significado da participaccedilatildeo dos estudantes em um

grupo instrumental Quais as expectativas dos estudantes que participam destes

grupos Qual a influecircncia da muacutesica para estes participantes Quais as expectativas

de estudantes familiares e comunidade escolar em relaccedilatildeo ao grupo Como ocorre

o envolvimento dos familiares dos estudantes

Quanto ao significado da participaccedilatildeo dos estudantes no grupo instrumental

observou-se que a mesma reflete diversos aspectos positivos nas vidas de todos os

envolvidos o que segundo os estudantes do grupo instrumental possui vaacuterios

significados e representaccedilotildees em seus cotidianos Para eles significa ter melhoria

no comportamento na socializaccedilatildeo no processo de ensino e aprendizagem no

comprometimento na pontualidade na concentraccedilatildeo e no conviacutevio familiar

Agregam o significado de ldquofelicidaderdquo na convivecircncia que o grupo instrumental

proporciona e ainda destacam a importacircncia de representar a escola e a

abrangecircncia desta participaccedilatildeo junto agrave comunidade Todos os entrevistados

relacionaram significados com a importacircncia de o grupo existir na escola

apontando-o como desencadeador desses diversos contextos significativos para

eles

As expectativas dos participantes deste grupo foram tambeacutem

questionamentos desta pesquisa Constatou-se que os estudantes possuem

expectativas profissionais em relaccedilatildeo agrave muacutesica quando acrescentaram o interesse

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em continuar seus estudos musicais para culminar com o ingresso em um curso

superior em muacutesica

Outro questionamento foi a influecircncia da muacutesica para os participantes deste

grupo De acordo com os dados coletados e analisados observa-se que o grupo

instrumental influencia de forma positiva suas vidas visto que foram observadas

mudanccedilas positivas pela matildee pela professora e pela diretora aleacutem dos estudantes

principalmente nas suas condutas e atuaccedilotildees no acircmbito familiar e escolar

resultando em melhorias nas relaccedilotildees sociais e no ensino e aprendizagem

As expectativas dos estudantes familiares e comunidade escolar quanto ao

grupo instrumental foi um dos questionamentos que oportunizou inuacutemeros

aprendizados no que diz respeito agrave pesquisa Observou-se que todos os

entrevistados esperam que o grupo se estruture cada vez mais para que os

benefiacutecios de participar de um grupo instrumental sejam ampliados para mais

estudantes ressaltando expectativas em relaccedilatildeo agrave evoluccedilatildeo como instrumentistas

para continuar contribuindo na qualidade e no crescimento do grupo

Por fim o envolvimento dos familiares dos participantes deste grupo foi um

questionamento que se apresentou de forma bastante marcante nesta pesquisa De

acordo com as entrevistas pocircde-se compreender o envolvimento significativo da

famiacutelia no processo de desenvolvimento musical do estudante identificou-se que a

famiacutelia participa da rotina de estudos e que proporciona momentos de integraccedilatildeo

nos ensaios de repertoacuterio dos estudantes com os demais familiares Isso

desencadeia reflexotildees sobre a importacircncia de seu filho ter contato com um

instrumento musical e de conviver em um grupo instrumental motivando-o para a

permanecircncia no mesmo

Alguns fatos surpreenderam no decorrer desta pesquisa como momentos de

emoccedilatildeo na entrevista com a diretora na fala fervorosa da matildee do Estudante J em

relaccedilatildeo agrave rotina de ensaios musicais do filho e a integraccedilatildeo familiar que promove As

entrevistadas ao responderem aos questionamentos da entrevista emocionaram-se

muito demonstrando a forte relaccedilatildeo advinda da existecircncia do grupo instrumental na

escola

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Deve-se salientar tambeacutem que a pesquisa possibilitou a reflexatildeo sobre os

fazeres pedagoacutegico-musicais da professora de muacutesica atuante na escola a qual

coordena o grupo instrumental investigado Foi possiacutevel neste processo

investigativo constatar a dimensatildeo e a importacircncia desse trabalho na vida dos

estudantes identificando atraveacutes dos depoimentos analisados a responsabilidade

que os profissionais da aacuterea da educaccedilatildeo musical tecircm Eacute importante portanto que

sempre se esteja atento agraves atitudes procedimentos e metodologias utilizados pois

somos importantes neste processo para aleacutem do encantamento do fazer musical

para uma aprendizagem que contribua com a formaccedilatildeo de um ser humano integral

Ao longo da pesquisa outros dados relevantes foram coletados apontando

futuras investigaccedilotildees Desse modo resultaram novos questionamentos como O

que levou outros estudantes a desistirem de participar do grupo instrumental ao

longo de sua trajetoacuteria Qual a importacircncia de os estudantes que participam de um

grupo instrumental terem a oportunidade de manusear diversos instrumentos

musicais

Ao finalizar a investigaccedilatildeo prospecta-se que a mesma possa contribuir para a

construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para a educaccedilatildeo musical no contexto escolar

Entende-se tambeacutem que este trabalho possa contribuir com a implementaccedilatildeo da

legislaccedilatildeo que dispotildee sobre a inserccedilatildeo da muacutesica nas escolas brasileiras e assim

somar de maneira significativa na vida dos estudantes participantes como no caso

do grupo instrumental pesquisado

Referecircncias BASTIAtildeO Zuraida Abud Praacutetica de conjunto instrumental na educaccedilatildeo baacutesica Muacutesica na Educaccedilatildeo Baacutesica Londrina v4 n4 p 58-69 novembro de 2012

BOZZETTO Adriana Projetos educativos de famiacutelias e formaccedilatildeo musical de crianccedilas e jovens em uma orquestra Porto Alegre 2012 295 f Tese (Doutorado) ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2012 BRASIL Secretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Paracircmetros curriculares nacionais arte Secretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Brasiacutelia DF 1998116 p

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BRASIL Lei nordm 11769 de 16 de agosto de 2008 Altera a Lei ndeg 9394 de 20 dezembro de 1990 para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino de muacutesica na educaccedilatildeo baacutesica Brasiacutelia 2008 Disponiacutevel em lthttpwwwplanaltogovbrccivil_03LEISL9394htmgt Acesso em 15 set 2015 JOLY Maria Carolina Leme JOLY Ilza Zenker Leme Praacuteticas musicais coletivas um olhar para a convivecircncia em uma orquestra comunitaacuteria Revista da ABEM Londrina v19 n26 p 79-91 jul Dez 2011 KRAEMER Rudolf Dimensotildees e funccedilotildees do conhecimento pedagoacutegico musical Em Pauta Porto Alegre v11 n 1617 p 50-73 abrnov 2000 LAVILLE Christian DIONNE Jean A construccedilatildeo do Saber manual de metodologia da pesquisa em ciecircncias humanas Porto Alegre Artmed 1999 MARTINS Heloiacutesa Helena Tde Souza Metodologia qualitativa de pesquisa Educaccedilatildeo e Pesquisa Satildeo Paulo V 30 n2 p 289-300 maioago 2004 Disponiacutevel em lt httpwwwscielobrpdfepv30n2v30n2a07pdfgt Acesso em 25 ago 2015 MORAES Roque Anaacutelise de conteuacutedo Revista Educaccedilatildeo Porto Alegre v 22 n 37 p 7-32 1999 SWANWICK Keith Ensinando muacutesica musicalmente Satildeo Paulo Moderna 2003 VENTURA Magda Maria O estudo de caso como modalidade de pesquisa Revista da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro v 20 n 5 p 383-386 setout 2007 Disponiacutevel em lthttpsociedadescardiolbrsocerjrevista2007_05a2007_v20_n05_art10pdfgt Acesso em 15 ago 2015 WOLFFENBUumlTTEL Cristina Rolim A inserccedilatildeo da muacutesica nos projetos poliacutetico-pedagoacutegicos da educaccedilatildeo baacutesica 1ordf ed Curitiba Editora Prismas 2014 YIN Robert K Estudo de caso planejamento e meacutetodos 2ordf ed Porto Alegre Bookman 2001

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TEATRO PARA QUEM A ARTE DE TEATRAR PARA TODOS Um estudo

sobre acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais no RS

Izabel Cristina da Silveira1

Fundaccedilatildeo de Arte e Cultura de Gravataiacute - FUNDARC

Resumo Este trabalho busca investigar analisar e viabilizar diaacutelogos reflexotildees e percepccedilotildees em torno do tema da acessibilidade cultural sob a oacuteptica do contexto teatral no estado do Rio Grande do Sul com um recorte pontual no municiacutepio de Porto Alegre capital do estado a fim de promover a inclusatildeo social da pessoa com deficiecircncia no acircmbito cultural Para tanto servem como suporte para anaacutelise registros pesquisa e observaccedilotildees de seis grupos de teatro do municiacutepio supracitado e suas relaccedilotildees com o assunto em pauta aleacutem de discussotildees das noccedilotildees de deficiecircncia acessibilidade e Legislaccedilatildeo vigente Palavras-chave Acessibilidade teatro inclusatildeo Abstract This work aims to investigate analyze and facilitate dialogues reflections and insights on the theme of cultural accessibility from the perspective of the theatrical context in the state of Rio Grande do Sul with a point cut in the city of Porto Alegre the state capital to promote social inclusion of persons with disabilities in the cultural sphere To serve both as support for analysis records research and observations six theater groups of the aforementioned municipality and its relations with the subject at hand in addition to discussing the shortcomings notions of accessibility and current legislation Keywords Accessibility theater inclusion

Introduccedilatildeo

[] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferenccedila nos inferioriza e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza Daiacute a necessidade de uma igualdade que reconheccedila as diferenccedilas e de uma diferenccedila que natildeo produza alimente ou reproduza as desigualdades (Boaventura de Souza Santos 2003 p56)

A pauta da acessibilidade nos meios de comunicaccedilatildeo e equipamentos

culturais tem se configurado como um importante tema de discussatildeo e luta entre

grupos e sociedade em decorrecircncia dos direitos da pessoa com deficiecircncia Os

esforccedilos neste sentido visam natildeo apenas proporcionar o acesso a produtos

culturais a uma parcela da populaccedilatildeo que se encontra excluiacuteda como tambeacutem

estabelecer um novo patamar de igualdade baseado na valorizaccedilatildeo da diversidade

1 Coordenadora do Departamento de Artes Cecircnicas da Fundarc em Gravataiacute Diretora e professora de teatro na

Cia Teatral Tem Gente no Palco Poacutes Graduada em Acessibilidade Cultural pela UFRJ Graduada em

Licenciatura em Teatro pela UFRGS

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Ao longo dos anos essas reivindicaccedilotildees tecircm provocado diversas mudanccedilas

no comportamento social que passa a identificar a pessoa com deficiecircncia como um

sujeito pertencente agrave sociedade que possui representatividade cidadatilde e econocircmica

Esse reconhecimento gera a necessidade de mudanccedilas e adaptaccedilotildees tambeacutem nas

manifestaccedilotildees culturais e artiacutesticas

Sendo assim o presente artigo busca trazer agrave tona tais questionamentos e

fomentar a discussatildeo do assunto problematizando e dialogando a fim de colaborar

efetivamente para a pauta da acessibilidade para todos e buscar alternativas

possiacuteveis para acessibilizar espetaacuteculos teatrais em suas apresentaccedilotildees

Para tanto realizou-se estudo praacutetico-teoacuterico junto a grupos teatrais do estado

do Rio Grande do Sul atuantes na capital Porto Alegre Optou-se por um recorte

pontual no maior centro urbano e cultural do estado com cenaacuterio teatral fortemente

constituiacutedo e onde se localiza o Curso de Graduaccedilatildeo em Teatro em uma das mais

conceituadas Universidades do Brasil ndash a Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS)

Levando-se em conta o grande nuacutemero de grupos teatrais existentes em

Porto Alegre e a impossibilidade de uma pesquisa que abranja todas as demandas

a metodologia deste trabalho teve como base uma amostragem de dados com

pesquisa e acompanhamento de 06 (seis) grupos teatrais profissionais com

empresa constituiacuteda e atuaccedilatildeo no mercado artiacutestico haacute mais de 05 (cinco) anos A

escolha se deu por conhecimento dos grupos e do trabalho que desenvolvem

levando-se em conta tambeacutem a disponibilidade dos mesmos e o contato que

possuem ou natildeo com o tema Para tanto foram selecionados entre os 06 (seis)

grupos pesquisados 02 (dois) que jaacute desenvolvem ou desenvolveram trabalhos em

acessibilidade cultural e outros 04 (quatro) que natildeo tecircm contato direto

A pesquisa caracteriza-se por seu caraacuteter qualitativo e quantitativo visando

compreender e interpretar este grupo determinado comportamento opiniotildees e

expectativas destes indiviacuteduos criando uma base de conhecimentos para depois

quantificaacute-los a partir de entrevista estruturada Este trabalho natildeo tem como intuito

apontar procedimentos certos ou errados mas levantar a problematizaratildeo da

acessibilidade no meio teatral tanto fiacutesico quanto de concepccedilatildeo instigando a

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comunidade artiacutestica e demais a refletir e perceber a necessidade de uma cultura

acessiacutevel a todos propondo ideias e atitudes que de fato promovam a inclusatildeo

social

Com um vieacutes de poliacutetica cultural o estudo levanta dados referentes agraves

poliacuteticas puacuteblicas que estatildeo sendo desenvolvidas no acircmbito da acessibilidade

cultural tendo como base a Lei Federal de Incentivo agrave Cultura (Lei Rouanet) a Lei

de Incentivo agrave Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (LIC) e o Fundo Municipal de

Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural do municiacutepio de Porto Alegre (Fumproarte)

procurando transitar pelas trecircs instacircncias governamentais de fomento agrave cultura no

Brasil

Para melhor fundamentaccedilatildeo alguns referenciais teoacutericos satildeo utilizados e

discutidos ao longo deste trabalho como embasamento para discussotildees acerca da

deficiecircncia e seu processo de inclusatildeo do teatro sob vieacutes acessiacutevel e da legislaccedilatildeo

vigente referente ao tema Em um segundo momento satildeo pontuados assuntos

referentes agrave acessibilidade cultural em espetaacuteculos teatrais tendo como objeto de

estudo os grupos de teatro referidos a partir de entrevistas e aplicaccedilatildeo de

questionaacuterio com perguntas objetivas e abertas sobre a temaacutetica com amostra

teacutecnica dos resultados e anaacutelise discursiva sobre os dados coletados

Entre seus objetivos especiacuteficos alguns jaacute mencionados no corpo deste texto

que serviram de norteadores para o desenvolvimento deste trabalho estatildeo traccedilar

um panoramadiagnoacutestico da inclusatildeo social e cultural da pessoa com deficiecircncia a

partir do enfoque do teatro e seus espetaacuteculos qualificar accedilotildees desenvolvidas ao

encontro das demandas de acessibilidade discutir poliacuteticas puacuteblicas e culturais a

partir da interface com mecanismos de incentivo agrave cultura como Leis e Editais

analisar as dificuldades encontradas pelos grupos pesquisados no processo de

inclusatildeo relacionar o teatro e seu caraacuteter contestador e democraacutetico com a luta por

direitos das pessoas com deficiecircncia ampliar o diaacutelogo e reconhecimento da

importacircncia da igualdade baseada na valorizaccedilatildeo da diversidade

Todos esses objetivos e questionamentos vecircm ao encontro do propoacutesito

maior desta pesquisa que se fundamenta em viabilizar a discussatildeo reflexatildeo e

percepccedilatildeo em torno da acessibilidade cultural dentro do contexto teatral no estado

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do Rio Grande do Sul promovendo assim a inclusatildeo social da pessoa com

deficiecircncia

Contextualizaccedilatildeo histoacuterica social e legal

O teatro surge antes mesmo da Greacutecia Antiga Acredita-se que jaacute na Preacute-

Histoacuteria o Homem para se comunicar representavaencenava suas accedilotildees

principalmente as caccediladas para seus familiares e amigos Era uma maneira luacutedica e

de faacutecil compreensatildeo de contar e preservar sua histoacuteria Natildeo se tinha ainda o

espetaacuteculo teatral que de fato tem sua origem na Civilizaccedilatildeo Grega mas as

primeiras manifestaccedilotildees artiacutesticas comeccedilam a surgir e mais importante que isso o

ato de se comunicar

O espetaacuteculo teatral precisa ser entendido sentido internalizado para

somente entatildeo desempenhar seu papel significador de instrumento social e cultural

Para tanto o seu ato de comunicar deve ser abrangente natildeo seletivo ou excludente

Como arte democraacutetica que eacute deve ou deveria ser para todos

Todos Como Claudia Werneck ndash jornalista escritora e militante em inclusatildeo

social ndash intitula em um dos seus livros ldquoQuem cabe no seu todosrdquo E ao usar a

palavra TODOS a autora convida o leitor a acompanhar suas certezas e anguacutestias

sobre as diretrizes e encaminhamentos da inclusatildeo no Brasil Claudia questiona

instiga potildee agrave prova o que se costuma entender e chamar de Todos A sociedade eacute

constituiacuteda por diferentes Todos totalmente distintos entre si que segundo

Werneck precisam ser ampliados e reconhecidos para entatildeo tornarem-se um

TODOS somente Um TODOS social humano ldquo[] defendo que o direito agrave

igualdade social soacute seraacute garantido com o reconhecimento e a legitimaccedilatildeo de TODAS

as diferenccedilasrdquo (WERNECK 2012 p 29)

A psicoacuteloga e professora Virgiacutenia Kastrup em seu artigo ldquoCegos e videntes se

encontram no museu da dicotomia agrave partilha do sensiacutevelrdquo (p3) reafirma a

importacircncia das diferenccedilas para a construccedilatildeo de uma sociedade mais inclusiva

Eacute preciso atentar para o fato que o mundo comum natildeo eacute feito de igualdades e identidades [] Para o mundo ser comum no sentido amplo e inclusivo ele deve comportar a heterogeneidade Natildeo apenas toleraacute-la mas honrar-se com as muacuteltiplas diferenccedilas que nele habitam (KASTRUP p3)

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O Brasil apresenta segundo uacuteltimo censo do Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatiacutestica (IBGE) de 2010 cerca de 456 milhotildees de pessoas com deficiecircncia

239 da populaccedilatildeo que declara ter algum tipo de deficiecircncia Destas a deficiecircncia

visual aparece em maior nuacutemero (188) -- tendo a regiatildeo Sul do paiacutes com maior

abrangecircncia de casos -- seguida pela deficiecircncia fiacutesica (7) e depois auditiva (51)

e intelectual (14) segundo publicaccedilatildeo do Jornal Estadatildeo de 290620122

Com nuacutemeros tatildeo significativos natildeo se pode pensar que a inclusatildeo de

pessoas com deficiecircncia seja um assunto remoto ou longiacutenquo que a sociedade natildeo

esteja ciente e integrada a tal fato Mas o que acontece no campo da praacutetica eacute bem

diverso da teoria

Muito do que se pode constatar eacute que a falta de inclusatildeo da pessoa com

deficiecircncia se reafirma a partir de barreiras atitudinais fundamentadas em uma

cultura histoacuterico-social que construiu um estereoacutetipo de separaccedilatildeo entre pessoas

saudaacuteveis e pessoas ldquodoentesrdquo com problemas leia-se deficiecircncia Quebrar

tais barreiras se torna muito mais difiacutecil do que solucionar barreiras fiacutesicas palpaacuteveis

e concretas

Sob o vieacutes filosoacutefico-social

O homem em sua busca incessante por descobrir-se por encontrar seu lugar

no mundo anseia por elementos que o faccedilam sentir-se ldquovivordquo uacutetil sujeito ativo de

sua histoacuteria Os viacutenculos sociais natildeo fazem parte apenas da necessidade cataacutertica

do ser humano da sua busca por encontrar-se por pertencer a um lugar mas satildeo

tambeacutem laccedilos culturalmente construiacutedos O Homem quer e precisa se sentir parte

integrante da sociedade que o cerca Pessoas agrupam-se em torno de

pensamentos objetivos eou ideais em comum Encontrar semelhantes eacute a

certificaccedilatildeo de sua identidade eacute o natildeo se estar soacute Eacute protegerem-se em seus nichos

sociais de um mundo tantas vezes opressor desigual e competitivo

Diante de uma realidade calcada em valores descartaacuteveis natildeo eacute de se

admirar que atos de solidariedade sejam cada vez mais raros Sendo assim os

sup1 Fonte Agecircncia Brasil de 21082015 via site wwwebccombr

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viacutenculos humanos natildeo se constituem em laccedilos radicados em accedilotildees para o outro

mas sim em benefiacutecio proacuteprio O socioacutelogo Zygmunt Bauman sabiamente destaca

Os viacutenculos humanos satildeo confortavelmente frouxos mas por isso mesmo terrivelmente precaacuterios e eacute tatildeo difiacutecil praticar a solidariedade quanto compreender seus benefiacutecios e mais ainda suas virtudes morais (BAUMAN 2007 P30)

Para tanto ao se pensar em inclusatildeo se faz tambeacutem necessaacuterio aleacutem do

social e histoacuterico voltar o olhar para o intriacutenseco filosoacutefico O que leva as pessoas a

natildeo quererem enxergar o outro em suas especificidades e diversidades Alfredo

Bosi em seu livro Fenomenologia do Olhar nos apresenta este fenocircmeno e como

ele se manifesta ldquo[] o ato de olhar significa um dirigir a mente para um ato de

intencionalidade Eacute ter sua intenccedilatildeo voltada para o objeto de interesserdquo (BOSI

1988 p65) O olhar de cada um possui diferenccedilas e estas estatildeo ligadas agraves suas

vivecircncias o que se consegue captar e lhe eacute significativo O olhar para Bosi como

forma de expressatildeo que reconhece e percebe o outro em sua plenitude

Em um estudo mais intimista da fenomenologia da percepccedilatildeo atraveacutes dos

pensamentos do filoacutesofo e fenomenoacutelogo francecircs Maurice Merleau-Ponty (1908 -

1961) podemos constatar que haacute uma universalidade do sentir e sobre ela que

repousa nossa identificaccedilatildeo a constituiccedilatildeo do eu a generalizaccedilatildeo do corpo e a

percepccedilatildeo do outro onde para Ponty (1994 p 260) ldquotodo o saber se instala no

horizonte da percepccedilatildeordquo e reafirma que ldquose a percepccedilatildeo interpreta ela soacute o faz a

partir do mundo de forma sensiacutevelrdquo Pensar natildeo eacute somente razatildeo mas um refletir

sobre o mundo sensiacutevel A fenomenologia eacute uma atitude de reflexatildeo do fenocircmeno

que se mostra para noacutes na relaccedilatildeo que estabelecemos com os outros no mundo

Os fenocircmenos constituem o mundo como noacutes o experimentamos segundo nossas

experiecircncias e pensamentos Toda nossa relaccedilatildeo com o mundo natildeo teria razatildeo se

natildeo comeccedilasse pela percepccedilatildeo ou seja pelos sentidos Noacutes eacute que buscamos o

sentido daquilo que se mostra

No momento em que se deixa de perceber de olhar o outro e de fato

enxergaacute-lo em suas diferenccedilas e igualdades estes deixam de serem vistos como

possiacuteveis sujeitos de suas histoacuterias Sua autonomia eacute podada por assistencialismos

ou segregaccedilatildeo social A humanizaccedilatildeo dilui-se com a mesma intensidade com que o

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individualismo se enraiacuteza O Homem corre contra o tempo As relaccedilotildees passam a

adquirir um caraacuteter efecircmero e superficial e tudo se torna banal Natildeo basta mais

pertencer a uma sociedade eacute preciso ser o melhor aquele que corre na frente

ldquoCom mais frequecircncia ainda a exclusatildeo tende hoje a ser uma rua de matildeo uacutenicardquo

(BAUMAM 2007 p 75) Vivemos em ldquotempos liacutequidosrdquo

O cerceamento seja fiacutesico intelectual ou cultural se daacute de tal forma que o

indiviacuteduo perde sua autonomia transformando-se mecanicamente em apenas um

produto do meio O teatro surge neste contexto como um desses caminhos

possiacuteveis de serem trilhados como desmistificador de conceitos preestabelecidos

Quem faz essa pergunta ldquoqual eacute a sua utilidaderdquo deve estar atento a si mesmo a essa atitude que leva a negar o valor das aacutervores que natildeo datildeo frutos A aacutervore que natildeo daacute fruto ndash proverbialmente inuacutetil ndash se converte em algo essencial nas cidades sem oxigecircnio (BARBA 1991 p 145)

Quando o teatro entra em cena

Haacute uma diferenccedila fundamental entre a ciecircncia e a arte [] A ciecircncia atua diretamente sobre a realidade modificando-a Pelo contraacuterio a arte modifica os modificadores da sociedade transforma os transformadores (BOAL 1983)

A arte e sua estreita relaccedilatildeo com o homem e a sociedade a qual este

pertence torna-se um importante instrumento de discussatildeo e transformaccedilatildeo social

que natildeo pode ser esquecido nem perdido no emaranhado de modismos que

tendem a surgir Ao pensarmos a arte como elemento transformador capaz de

estabelecer diferentes relaccedilotildees de contextos e olhares somos remetidos agraves

possiacuteveis conexotildees e diaacutelogos que surgem a partir de sua experimentaccedilatildeo Sendo

assim o espectador deixa sua posiccedilatildeo de receptor passivo para ir ao encontro de

relaccedilotildees interativas que lhe permitam conceber seu proacuteprio conhecimento em

relaccedilatildeo agrave arte agrave obra ao espetaacuteculo

Amanda Tojal (2014 p15) a partir da anaacutelise dos processos de comunicaccedilatildeo

museoloacutegica que comeccedilam a se afirmar na sociedade contemporacircnea chama a

atenccedilatildeo para a forma de participaccedilatildeo do sujeito receptor ndash ldquo[] de uma condiccedilatildeo

anteriormente mais passiva como simples assimilador de uma mensagem ndash para

uma condiccedilatildeo mais dialoacutegica isto eacute a de um participante mais ativo no processo de

apreensatildeo e de ressignificaccedilatildeo do objeto cultural []rdquo

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Um equipamento cultural independentemente do segmento ndash museu galeria

teatro biblioteca ndash deve a priori comunicar Estabelecer essa via de comunicaccedilatildeo de

forma efetiva diante do heterogecircneo e oportunizar a qualquer pessoa o acesso e o

contato com a arte e suas manifestaccedilotildees A acessibilidade passa ou deveria passar

mais fortemente para aleacutem da acessibilidade fiacutesica e concreta gerando uma

reflexatildeo sobre como acessibilizar a comunicaccedilatildeo e a interaccedilatildeo A pessoa com

deficiecircncia deve ter atendido seu desejo de se sentir parte integrante do todo de

entender e reconhecer seu direito de pertencimento de ser ouvido de olhar para o

mundo de sentir se relacionar e acima de tudo de ter autonomia e liberdade

A acessibilidade natildeo eacute um favor que estaacute sendo feito eacute um direito de toda

pessoa com deficiecircncia Eacute garantir o direito maior e universal de toda e qualquer

pessoa de ir e vir de sua liberdade Conforme o Glossaacuterio de Acessibilidade

fornecido pelo Curso de Extensatildeo em EAD Acessibilidade em Ambientes Culturais

da UFRGS ndash Universidade Federal do Rio Grande do Sul o termo Acessibilidade

designa

Condiccedilatildeo para utilizaccedilatildeo com seguranccedila e autonomia total ou assistida dos espaccedilos mobiliaacuterios e equipamentos urbanos das edificaccedilotildees dos serviccedilos de transporte e dos dispositivos sistemas e meios de comunicaccedilatildeo e informaccedilatildeo por pessoa com deficiecircncia ou mobilidade reduzida

Sendo assim a acessibilidade cultural discussatildeo geral deste artigo eacute uma

das condiccedilotildees baacutesicas para que pessoas com algum tipo de deficiecircncia possam ter

acesso aos instrumentos e mecanismos de cultura usufruindo de suas

manifestaccedilotildees artiacutesticas

O teatro ensina contesta mostra sugere questiona natildeo se acomoda diante

do passivo do irremediaacutevel E como ainda pessoas ficam fora de suas salas

Como ainda muitas pessoas com deficiecircncia natildeo podem natildeo tecircm como assistir

usufruir de uma peccedila de teatro ir a um teatro consumir cultura viva Porque satildeo

diferentes O que deveria ser comum normal se torna o a mais o plus o

diferencial Ver espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis eacute com dia e hora marcada

A arte teatral por si soacute jaacute apresenta uma gama de problemaacuteticas a serem

transpostas Natildeo eacute faacutecil fazer teatro como natildeo eacute faacutecil fazer cultura no Brasil Grupos

normalmente possuem orccedilamentos e recursos reduzidos para montagem de seus

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trabalhos a formaccedilatildeo de plateia eacute uma luta constante a valorizaccedilatildeo e entendimento

da profissionalizaccedilatildeo do artista tem sido uma conquista em pequenas doses Diante

desse quadro parece surgir quase como um ldquoincocircmodordquo a questatildeo da acessibilidade

cultural no meio teatral Proporcionar espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis quando natildeo haacute

nem Casas de Teatro acessiacuteveis Quando as instacircncias governamentais acreditam

que os menores orccedilamentos e cortes devem comeccedilar pelas manifestaccedilotildees

artiacutesticas Com uma arbitrariedade latente tais questionamentos corroboram para a

divergecircncia selada entre praacutetica e teoria No entanto assim como nos lembra

Claudia Werneck em seu livro Ningueacutem mais vai ser bonzinho na sociedade

inclusiva ldquosomos cidadatildeos responsaacuteveis pela qualidade de vida do nosso

semelhante por mais diferente que ele seja ou nos pareccedila serrdquo

Tornar espetaacuteculos teatrais acessiacuteveis natildeo eacute uma tarefa faacutecil e comumente

realizada Eacute necessaacuterio um entendimento conhecimento de causa recursos e

profissionais disponiacuteveis para que natildeo se caia na vala comum do ldquofazer por fazerrdquo

Quando se estaacute interferindo tatildeo diretamente na vida de outras pessoas todo o

cuidado eacute pouco e um estudo detalhado de todas as possibilidades viaacuteveis faz a

diferenccedila no resultado final

Atualmente alguns recursos satildeo vistos como fundamentais para serem

aplicados quando a proposta eacute acessibilizar um espetaacuteculo teatral Audiodescriccedilatildeo

Libras (Liacutengua Brasileira de Sinais) Estenotipia (legenda em tempo real) Braile QR

Code (coacutedigo bidimensional) Caixa alta texto simples e contraste Reconhecimento

de palco Rampas de acesso

O Teatro Acessiacutevel passa pela aplicabilidade dessas tecnologias mas

principalmente e fundamentalmente pela quebra das barreiras atitudinais frente agrave

percepccedilatildeo destas questotildees A ldquoEscola de Genterdquo Organizaccedilatildeo Natildeo Governamental

fundada em 2002 por Claacuteudia Werneck no Rio de Janeiro trabalha haacute bastante

tempo o tema da inclusatildeo e tem no teatro na representaccedilatildeo teatral um grande

propagador de luta e difusor dos direitos da pessoa com deficiecircncia no Brasil Tem

como objetivo transformar poliacuteticas puacuteblicas em poliacuteticas inclusivas para que

pessoas com e sem deficiecircncia exerccedilam seus direitos humanos desde a infacircncia

Em 2003 O Grupo Teatro Acessiacutevel ldquoOs Inclusos e os Sisosrdquo da ldquoEscola de

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Genterdquo foi criado como meio de mobilizaccedilatildeo pela diversidade inclusatildeo e

acessibilidade Em 2011 a ldquoEscola de Genterdquo idealizou a campanha ldquoTeatro

Acessiacutevel Arte Prazer e Direitosrdquo e produziu o primeiro espetaacuteculo infantojuvenil

com total acessibilidade no paiacutes o musical rock Um Amigo Diferente que se

tornou o siacutembolo da Campanha Teatro Acessiacutevel Arte Prazer e Direitos

Em 2013 entrou em vigor o Projeto de Lei 61292013 de autoria dos

deputados federais Jean Wyllys Jandira Feghali Mara Gabrilli e Rosinha Adefal

que institui o dia 19 de setembro como o ldquoDia Nacional do Teatro Acessiacutevelrdquo Para os

autores do Projeto ldquoa data ajudaraacute a divulgar a cultura por meio de atividades

cecircnicas que utilizem praacuteticas de acessibilidade fiacutesica e comunicativa a pessoas com

deficiecircnciardquo3

Accedilotildees concretas sendo pensadas e realizadas para o desenvolvimento de

poliacuteticas puacuteblicas que estejam ao encontro de praacuteticas acessiacuteveis no contexto teatral

e cultural

Leis e poliacuteticas puacuteblicas

Por muito tempo as pessoas com deficiecircncia foram vistas como um problema

familiar social e cliacutenico Consideradas ldquoaberraccedilotildeesrdquo de puniccedilotildees divinas ou doentes

incapazes essas pessoas tecircm lutado por seus direitos e conquistas de cidadania

principalmente por ocuparem seu lugar de sujeitos ativos na sociedade a que

pertencem

Por ainda muito se pensar ser um problema familiar e natildeo social a sociedade

vem deixando de dar o suporte necessaacuterio agraves pessoas com deficiecircncia quando o

que se tem eacute uma ldquodiacutevida humana e socialrdquo para com as mesmas

Simplesmente fechar os olhos e fingir natildeo estar vendo tapar os ouvidos e se

isentar de qualquer responsabilidade natildeo resolve o problema Ter acesso aos

instrumentos culturais agrave cultura eacute um direito universal e constitucional de todo e

qualquer cidadatildeo ldquoA Constituiccedilatildeo Brasileira eacute inclusiva [] natildeo eacute integradora

porque natildeo admite que apenas em determinadas condiccedilotildees o exerciacutecio dos direitos

3 Disponiacutevel em ltwwwcamaralegbrgt Acesso em 03 de julho de 2014

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humanos seja observado exercido exigidordquo (WERNECK 2012 P 62) Conforme

afirmaccedilatildeo do Artigo 215 da Constituiccedilatildeo Federal de 1988

Art 215 O Estado garantiraacute a todos o pleno exerciacutecio dos direitos culturais e acesso agraves fontes da cultura nacional e apoiaraacute e incentivaraacute a valorizaccedilatildeo

e a difusatildeo das manifestaccedilotildees culturais

A inclusatildeo da pessoa com deficiecircncia e mais especificamente o tema da

Acessibilidade Cultural tem conquistado seu espaccedilo diante do poder puacuteblico e

poliacutetico Leis de direitos satildeo aprovadas discussotildees traccediladas e reivindicaccedilotildees

formuladas A Lei Brasileira de Inclusatildeo da Pessoa com Deficiecircncia Lei 131462015

foi uma das grandes conquistas na luta pela inclusatildeo onde especifica em seu

capiacutetulo IX e artigo 42 que

A pessoa com deficiecircncia tem direito agrave cultura ao esporte ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas sendo-lhe garantido o acesso I - a bens culturais em formato acessiacutevel II - a programas de televisatildeo cinema teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessiacutevel

Sendo assim na legislaccedilatildeo mais recente que temos de defesa dos direitos da

pessoa com deficiecircncia em nosso paiacutes haacute a garantia por parte destes ao acesso

agraves atividades culturais entre elas o teatro Lei esta que origina o Estatuto da

Pessoa com Deficiecircncia ldquoum dos mais importantes instrumentos de emancipaccedilatildeo

civil e social dessa parcela da sociedaderdquo segundo o Senador Paulo Paim (autor da

Lei) que entrou em vigor no dia 02 de janeiro de 2016 O Estatuto da Pessoa com

Deficiecircncia traz regras e orientaccedilotildees para que os direitos dessa parcela da

populaccedilatildeo sejam garantidos e estabelece puniccedilotildees para atitudes discriminatoacuterias ldquoO

documento consolida as leis existentes e avanccedila nos princiacutepios da Cidadaniardquo

reitera Paim

Em seu Capiacutetulo IX ndash Do Direito agrave Cultura ao Esporte ao Turismo e ao Lazer

Art 43 prevecirc ldquoO poder puacuteblico deve promover a participaccedilatildeo da pessoa com

deficiecircncia em atividades artiacutesticas intelectuais culturais esportivas e recreativas

com vistas ao seu protagonismordquo

Outro importante marco legislatoacuterio no referente agrave acessibilidade cultural eacute o

Plano Nacional de Cultura (PNC) ldquoinstituiacutedo pela Lei 12343 de 02 de dezembro de

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2010 tem por finalidade o planejamento e implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de

longo prazo (ateacute 2020) voltadas agrave proteccedilatildeo e promoccedilatildeo da diversidade cultural

brasileirardquo (Ministeacuterio da Cultura)

Em especial a Meta 29 do Ministeacuterio da Cultura que se refere agrave

acessibilidade de espaccedilos e instrumentos culturais afirmando que

100 de bibliotecas puacuteblicas museus cinemas teatros arquivos puacuteblicos e centros culturais devem atender aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolver accedilotildees de promoccedilatildeo da fruiccedilatildeo cultural por parte das pessoas com deficiecircncia

Seguindo a linha de referenciais norteadores no tema da acessibilidade

temos como leitura obrigatoacuteria a publicaccedilatildeo do livro Nada sobre noacutes sem Noacutes

relatoacuterio final da Oficina Nacional de Indicaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Culturais para

Inclusatildeo de Pessoas com Deficiecircncia que se realizou na cidade do Rio de Janeiro

no periacuteodo de 16 a 18 de outubro de 2008 numa parceria da Secretaria da

Identidade e da Diversidade Cultural do Ministeacuterio da Cultura (SIDMinC) com a

Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Ministeacuterio da Sauacutede e com apoio da Caixa

Econocircmica Federal (CEF) Esta Oficina foi destinada a artistas gestores puacuteblicos

pesquisadores e agentes culturais da sociedade civil representativos do campo da

produccedilatildeo cultural das pessoas com deficiecircncia Conforme consta na introduccedilatildeo

desta publicaccedilatildeo o objetivo dessa oficina foi

Indicar diretrizes e accedilotildees no sentido de contribuir para a construccedilatildeo de poliacuteticas culturais de patrimocircnio difusatildeo fomento e acessibilidade para pessoas com deficiecircncia A oficina foi constituiacuteda a partir de um processo participativo e por isso adotamos o lema lsquoNada sobre Noacutes sem Noacutesrsquo

Por fim um dos documentos mais significativos de orientaccedilatildeo para poliacuteticas

puacuteblicas direcionadas agraves pessoas com deficiecircncia eacute a Convenccedilatildeo dos Direitos das

Pessoas com Deficiecircncia da ONU de 2008 em que o Brasil eacute um dos paiacuteses

signataacuterios ou seja aceitou estar juridicamente vinculado agrave obrigaccedilatildeo de tratar as

pessoas com deficiecircncia como sujeitos de direito com direitos bem definidos tal

como qualquer outra pessoa A Convenccedilatildeo eacute um Tratado Internacional de Direitos

Humanos aprovado na Assembleia Geral da ONU em 13 de dezembro de 2006 e

assinado pelo Brasil em 30 de marccedilo de 2007 Entrou em vigor em 03 de maio de

2008 apoacutes ter sido ratificado por 20 (vinte) paiacuteses membros das Naccedilotildees Unidas Eacute

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um instrumento que reafirma os princiacutepios universais (dignidade integralidade

igualdade acessibilidade e natildeo discriminaccedilatildeo) a todos os cidadatildeos em particular agraves

pessoas com deficiecircncia Tem como objetivo promover proteger e assegurar o

exerciacutecio pleno de todos os direitos humanos e fundamentais por parte de todas as

pessoas com deficiecircncia e promover o respeito pela sua dignidade

Metodologia A partir de uma pesquisa praacutetica teoacuterica 06 (seis) grupos de teatro do

municiacutepio de Porto Alegre no estado do Rio Grande do Sul foram entrevistados

respondendo um questionaacuterio com perguntas objetivas e abertas e instigados a

dialogar sobre a pauta da acessibilidade cultural no meio teatral Para uma base

analiacutetica e de avaliaccedilatildeo com os referidos grupos o estudo daraacute conta

primeiramente de discutir as Leis de Incentivo agrave Cultura uma federal ndash Lei Rouanet

uma estadual ndash LIC e um Fundo Municipal de Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural

do municiacutepio de Porto Alegre ndash FUMPROARTE transitando assim pelas trecircs

esferas governamentais

A Lei Federal de Incentivo agrave Cultura (Lei nordm 8313 de 23 de dezembro de

1991) eacute a lei que institui poliacuteticas puacuteblicas para a cultura nacional atraveacutes do

Programa Nacional de Apoio agrave Cultura (Pronac) O grande diferencial da Lei

Rouanet eacute o mecanismo de incentivos fiscais em deduccedilotildees do Imposto de Renda

(IR) fornecidos agraves empresas (pessoas juriacutedicas) e cidadatildeos (pessoas fiacutesicas) que

invistam em accedilotildees culturais em um percentual de 4 e 6 respectivamente

A Lei surgiu com o intuito de fomentar e estimular as empresas e cidadatildeos a

investirem em cultura aleacutem de efetivamente promover poliacutetica cultural em

acessibilidade Conforme sua Instruccedilatildeo Normativa Nordm 1 de 24 de junho de 2013

para propostas e projetos culturais define em seu Art 3ordm as medidas de

acessibilidade que devem ser observadas

XI ndash medidas de acessibilidade intervenccedilotildees que objetivem priorizar ou facilitar o livre acesso de idosos e pessoas com deficiecircncia ou mobilidade reduzida assim definidos em legislaccedilatildeo especiacutefica de modo a possibilitar-lhes o pleno exerciacutecio de seus direitos culturais por meio da disponibilizaccedilatildeo ou adaptaccedilatildeo de espaccedilos equipamentos transporte comunicaccedilatildeo e quaisquer bens ou serviccedilos agraves suas limitaccedilotildees fiacutesicas

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sensoriais ou cognitivas de forma segura de forma autocircnoma ou acompanhada []

Jaacute na Lei de Incentivo agrave Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (LIC) natildeo haacute

referecircncias ao campo da acessibilidade Em sua Instruccedilatildeo Normativa Nordm 01 de 29

de fevereiro de 2016 da Secretaria da Cultura do Estado (SEDAC) natildeo haacute qualquer

menccedilatildeo ao tema A LIC assim como o FAC ndash Fundo de Apoio agrave Cultura fazem

parte do Sistema Unificado PROacute-CULTURA do RS programa que consiste no apoio

e fomento agraves atividades culturais do estado

Poderatildeo ser beneficiados pela LIC projetos culturais nas aacutereas de artes

plaacutesticas e grafismos artes cecircnicas e carnaval de rua cinema e viacutedeo literatura

muacutesica artesanato e folclore acervo e patrimocircnio histoacuterico e cultural

Aprovada e sancionada em 19 de agosto de 1996 a Lei Nordm 10846 (LIC)

institui a deduccedilatildeo fiscal de ICMS em ateacute 75 do valor aplicado pela empresa em

projetos culturais sendo os outros 25 repassados pelo patrocinador ao FAC

instituiacutedo pela Lei Nordm 11706 de 18 de dezembro de 2001 que tem por finalidade

financiar projetos culturais em 100 do seu valor e fomentar a produccedilatildeo artiacutestico-

cultural do Rio Grande do Sul mas tambeacutem natildeo apresenta criteacuterios referentes agrave

acessibilidade de forma obrigatoacuteria em seus editais destinados agraves Artes Cecircnicas

mais especificamente agrave aacuterea do teatro

O Fundo Municipal de Apoio agrave Produccedilatildeo Artiacutestica e Cultural do municiacutepio de

Porto Alegre (FUMPROARTE) que eacute gerido pela Secretaria Municipal da Cultura

deste municiacutepio foi criado como forma de apoio agrave produccedilatildeo artiacutestica local com a

finalidade de financiar projetos de bolsas de pesquisa e de produccedilatildeo artiacutestico-

cultural Criado pela Lei Nordm 7328 de 04 de outubro de 1993 o FUMPROARTE abre

normalmente dois concursos anuais que satildeo divulgados atraveacutes de editais puacuteblicos

Podem concorrer ao Edital de Projetos apresentados pessoas fiacutesicas ou juriacutedicas

que proponham accedilotildees em qualquer aacuterea cultural

Analisando seu uacuteltimo edital de 2015 eacute possiacutevel observar que no capiacutetulo 4

Inscriccedilatildeo no item 43 Retorno de Interesse Puacuteblico no subitem 434 consta que ldquoos

projetos poderatildeo contemplar ainda accedilotildees de promoccedilatildeo de acessibilidade para

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pessoas com deficiecircncia []rdquo O que evidencia a sua natildeo obrigatoriedade

(ldquopoderatildeordquo) do criteacuterio ldquoacessibilidaderdquo para avaliaccedilatildeo dos projetos

Propondo um melhor entendimento e relaccedilatildeo com os resultados obtidos na

pesquisa os grupos entrevistados seratildeo aqui brevemente contextualizados

Grupo Las Brujas Cia de Teatro e Feiticcedilos

Tempo de atuaccedilatildeo 05 anos Integrantes 07 pessoas

O grupo surge em 2011 e em 2012 criou o espetaacuteculo infantil ldquoA Menina do

Cabelo Vermelhordquo que atraveacutes de sua personagem ldquoFiloacuterdquo busca trabalhar a

diversidade e inclusatildeo Em 2013 o grupo firmou uma parceria com a OVNI

Acessibilidade Universal ndash empresa com sede em Porto AlegreRS que produz

audiodescriccedilatildeo (AD) e legendas para surdos e ensurdecidos (LSE) ndash e consolidou-

se como o primeiro trabalho de teatro infantil da Regiatildeo Sul a proporcionar recurso

de audiodescriccedilatildeo aberta (onde natildeo satildeo utilizados aparelhos individuais para a

recepccedilatildeo) em suas sessotildees Aleacutem de audiodescriccedilatildeo em 2014 o espetaacuteculo teve

sessotildees com traduccedilatildeo simultacircnea em Libras ndash Liacutengua Brasileira de Sinais -- para

pessoas com deficiecircncia auditiva e distribuiacuteram livros e aacuteudios-livro ao puacuteblico

presente

Teatro Sarcaustico

Tempo de atuaccedilatildeo 12 anos Integrantes 13 pessoas

Com uma formaccedilatildeo de 12 (doze) anos o grupo que surgiu dentro do

Departamento de Arte Dramaacutetica da UFRGS jaacute tem um longo caminho de trabalhos

e espetaacuteculos montados notoriamente reconhecidos pelo puacuteblico e criacutetica Sua linha

de trabalho estaacute embasada no corpo e suas manifestaccedilotildees improvisaccedilotildees intensas

textos e criaccedilotildees proacuteprias

Uma das coordenadoras do grupo comenta que ele esteve sempre tatildeo

preocupado em trabalhar se autossustentar por tratar-se de um grupo

independente que a questatildeo da acessibilidade lhes passou ldquobatidordquo Algo novo para

se pensar mas que nunca realizaram nenhuma accedilatildeo contemplando a temaacutetica e a

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falta de recursos e orccedilamentos por si soacute jaacute eacute um grande complicador para

acessibilizar espetaacuteculos

Apesar de natildeo trabalharem direto com a questatildeo da acessibilidade o grupo

estaacute preocupado em discutir e dialogar sobre a diversidade a exclusatildeo Um dos

seus uacuteltimos espetaacuteculos uma montagem infantil ndash ldquoFranky Frankenstein um

Divertido conto de Terror sobre Amizaderdquo - aborda a ldquodiferenccedilardquo a diversidade no

mundo atual

Rococoacute Produccedilotildees Artiacutesticas e Culturais

Tempo de atuaccedilatildeo 05 anos Integrantes 02 coordenadores + 10 colaboradores

diretos

A empresa e grupo de teatro Rococoacute surgem a partir de dois atores e

bailarinos que trabalham em uma linha de investigaccedilatildeo da cultura tradicionalista

gauacutecha pluralidades de linguagens e formaccedilatildeo de plateia atraveacutes de editais

prefeituras SESC educaccedilatildeo escolas oficinas e assessoria em projetos culturais

Seu uacuteltimo espetaacuteculo ldquoEra uma vezContos Lendas e Cantigasrdquo do Projeto

ldquoA Visita da Fantasiardquo eacute bastante narrativo o que acredita Henrique ajuda que

pessoas com deficiecircncia visual possam entendecirc-lo melhor Fazem tambeacutem

reconhecimento de palco cenaacuterio figurinos quando haacute alguma deficiecircncia visual

Mas Henrique expressa a dificuldade de conhecimento que se tem sobre

acessibilidade no meio artiacutestico de entendimento ldquoNatildeo se pensa no assunto natildeo

enxergamosrdquo Disse que chegaram a pensar somente quando o espetaacuteculo jaacute estava

circulando

Grupo Trilho de Teatro Popular

Tempo de atuaccedilatildeo 10 anos Integrantes 05 pessoas

O Grupo Trilho trabalha essencialmente na linha social e didaacutetica de Bertolt

Brecht e do clown nas oficinas e montagens de seus espetaacuteculos Satildeo um grupo

independente que participa de editais mas seus orccedilamentos partem mais da venda

de espetaacuteculos e oficinas

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Um dos coordenadores e fundadores do grupo fala de nunca terem

trabalhado a questatildeo da acessibilidade e nem pensarem em aplicaacute-la por

desconhecimento do assunto pela falta de recursos financeiros e por serem outras

as demandas tratadas pelo grupo mesmo que de minorias como preconceito

racismo sexualidade gecircnero a pauta da deficiecircncia nunca esteve presente

Apesar de natildeo trabalharem diretamente com acessibilidade Daniel frisa que o

teatro de rua muito presente nos espetaacuteculos do grupo por sua democratizaccedilatildeo eacute

em partes mais acessiacutevel

Associaccedilatildeo Cultural Depoacutesito de Teatro

Tempo de atuaccedilatildeo 20 anos Integrantes 06 pessoas

O Grupo Depoacutesito do Teatro eacute uma entidade cultural sem fins

lucrativos fundada em 1996 Durante todos seus anos de atuaccedilatildeo produziu e

montou mais de 25 espetaacuteculos profissionais reconhecidos pela criacutetica e puacuteblico

conquistando inuacutemeras indicaccedilotildees e precircmios do Trofeacuteu Accedilorianos e Tibicuera da

Prefeitura de Porto Alegre

O grupo tem como um de seus principais objetivos a ldquotroca humana a

constituiccedilatildeo de sujeitos criativos autecircnticos e profundamente sensiacuteveisrdquo relata o

diretor e fundador da Associaccedilatildeo Cultural Depoacutesito de Teatro Poreacutem afirma

tambeacutem nunca terem trabalho acessibilidade ou com recursos acessiacuteveis em seus

espetaacuteculos ou oficinas

Grupo Signatores (Teatro com Surdos)

Tempo de atuaccedilatildeo 06 anos Integrantes 14 pessoas

O Signatores eacute um grupo de teatro biliacutengue sendo a primeira liacutengua a Liacutengua

Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a segunda o Portuguecircs E os membros do grupo

satildeo pesquisadores e professores especialistas na aacuterea de Educaccedilatildeo e Artes da

Comunidade Surda

Todos os seus espetaacuteculos satildeo representados por atores surdos em LIBRAS

e acompanhados por personagens narradores aacuteudio em Portuguecircs Os espetaacuteculos

apresentados pelo grupo foram ldquoAventuras no Reino Surdordquo ldquoMemoacuteria na Ponta dos

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Dedosrdquo ldquoO ensaio de Alicerdquo e ldquoAlice no Paiacutes das Maravilhasrdquo O grupo jaacute foi

contemplado com vaacuterios Editais a niacutevel municipal e estadual e financiamento

atraveacutes da Lei Rouanet

Em entrevista com a diretora ela pontua as diretrizes de trabalho do

Signatores Este que tem se mostrado um grupo bastante atuante no Estado quando

o assunto eacute inclusatildeo social acessibilidade e diversidade ldquoA proposta do Grupo

Signatores eacute incentivar a formaccedilatildeo de docentes e pesquisadores na aacuterea teatral e

aproximar jovens e adultos surdos dos palcos investigando as possibilidades de

criaccedilatildeo artiacutestica dos surdos [] invertendo a loacutegica vigenterdquo

Resultados de dados

Com base no questionaacuterio aplicado no acompanhamento e entrevistas aos

grupos surgem os diferentes questionamentos quanto ao entendimento e

conhecimento sobre questotildees referentes agrave acessibilidade e suas legislaccedilotildees assim

como aplicabilidade dos recursos acessiacuteveis O Graacutefico 1 denota que a maioria dos

grupos entrevistados jaacute teve contato com tema sobre acessibilidade cultural

(pergunta 1) e em uma quase equivalecircncia jaacute trabalhou com pessoas com

deficiecircncia ou teve acesso a recursos acessiacuteveis (perguntas 2 e 3) Em sua maioria

jaacute participou de algum edital de Lei de Incentivo agrave cultura (pergunta 4)

GRAacuteFICO 1

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Jaacute no Graacutefico 2 evidencia-se o desconhecimento de Poliacuteticas Puacuteblicas e

Legislaccedilatildeo sobre o tema da acessibilidade cultural (perguntas 5 e 8) As perguntas 6

e 7 referem-se respectivamente agrave existecircncia de grupos de teatro que trabalham

com recursos acessiacuteveis em seus projetos e se haacute Casas de Teatro acessiacuteveis em

Porto Alegre Todos os grupos pontuaram a falta de um conhecimento maior e

percepccedilatildeo em relaccedilatildeo ao assunto pautado e natildeo se consideram ldquoacessiacuteveisrdquo de

forma plena e eficaz Evidenciou-se o interesse de todos em pensar discutir e

aprender mais sobre acessibilidade

GRAacuteFICO 2

Conclusotildees

Com base nos resultados obtidos com as pesquisas e discussotildees pode-se

avaliar que poliacuteticas puacuteblicas que garantam os direitos culturais das pessoas com

deficiecircncia devem transitar por todas as esferas governamentais e natildeo ficarem

restritas ao acircmbito burocraacutetico que muitas vezes as consolidam O diaacutelogo entre

poder puacuteblico Instituiccedilotildees e gestores culturais eacute de cunho fundamental para a

articulaccedilatildeo de propostas e medidas inclusivas que de fato consolidem-se no cenaacuterio

cultural

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O que temos visto ainda eacute uma consciecircncia social muito enraizada e que

precisa ser constantemente trabalhada em barreiras atitudinais que natildeo permitem

ampliar a visatildeo quando o que estaacute em pauta satildeo as deficiecircncias Sabemos que

atraveacutes da cultura e educaccedilatildeo caminharemos para um futuro mais promissor com

menos desigualdades sociais menos violecircncia mais possibilidades ldquoO teatro

permite a construccedilatildeo de mentes mais livres e de cidadatildeos mais esclarecidos e

ativosrdquo (VIGANOacute 2006 p 36)

O olhar sentir o outro satildeo premissas baacutesicas para o comunicar Natildeo haacute

construccedilatildeo de relaccedilotildees sociais e humanas se natildeo houver o reconhecimento do outro

como parte integrante de nossas vidas

Natildeo basta um pouco de eacutetica uma pitada de cidadania toques de cumplicidade um quecirc de direitos fundamentais Sempre que discutirmos estes assuntos agraves uacuteltimas consequecircncias estaremos colaborando para resolver a principal questatildeo incluir pessoas com deficiecircncia [] no TODOS social incondicionalmente (WERNECK 2012 p 27)

Referecircncias BARBA Eugenio Aleacutem das ilhas flutuantes Campinas SP Hucitec 1991 BAUMAN Zygmunt Tempos Liacutequidos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 BOAL Augusto 200 exerciacutecios e jogos para o ator e o natildeo-ator com vontade de dizer algo atraveacutes do teatro 5ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo SA 1983 BOSSI Alfredo Fenomenologia do olhar In BOSSI A O Olhar Satildeo Paulo Companhia das Letras 1988 BRASIL Ministeacuterio da Cultura As metas do Plano Nacional de Cultura Brasiacutelia Ministeacuterio da Cultura 2012 Disponiacutevel em lt httpswwwplanaltogovbrccivil_03_ato2007-20102010leil12343htmgt Acesso em 21 de dezembro de 2016 BRASIL Constituiccedilatildeo Federal 1988 BRASIL Convenccedilatildeo dos Direitos das Pessoas com Deficiecircncia da ONU 2008 Disponiacutevel em lt httpwwwplanaltogovbrccivil_03_Ato2007-20102009DecretoD6949htmgt Acesso em 21 de dezembro de 2016

162 | P aacute g i n a

SILVEIRA Izabel Cristina da Teatro para quem A arte de teatrar para todos Revista da Fundarte

Montenegro ano 16 n 32 p 142-162 juldez 2016 Disponiacutevel em

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KASTRUP Virinia Vergara Luiz Guilherme Cegos e videntes se encontram no museu da dicotomia agrave partilha do sensiacutevel Ineacutedito MERLEAU-PONTY Maurice Fenomenologia da Percepccedilatildeo Martins Fontes 1994 Oficina Nacional de Indicaccedilatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Culturais para Inclusatildeo de Pessoas com Deficiecircncia Nada sobre noacutes sem noacutes Relatoacuterio final 16 a 18 de outubro de 2008 Rio de janeiro Rj ENSPFIOCRUZ 2009 SANTOS Boaventura de Sousa Reconhecer para libertar os caminhos do cosmopolitanismo multicultural Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003 TOJAL Amanda Pinto da Fonseca Comunicaccedilatildeo museoloacutegica e accedilatildeo educativa inclusiva mudanccedila de paradigmas In CARDOSO Eduardo CUTY Jeniffer (Org) Acessibilidade em ambientes culturais relatos de experiecircncias Porto Alegre Marcavisual 2014 VIGANOacute Suzana Schmidt As regras do jogo a accedilatildeo sociocultural em teatro e o ideal democraacutetico Satildeo Paulo Hucitec 2006 WERNECK Claudia Ningueacutem mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva Rio de Janeiro Editora WVA 2009 WERNECK Claudia Quem cabe no seu todos Rio de Janeiro Editora WVA 2006

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