Futuro Climatico Da Amazonia

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Estudo realizado pelo impe sobre impactos ambientais provocados pelo desmatamento.

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  • O FuturoClimtico daAmaznia Relatrio de Avaliao Cientfica

    Antonio Donato Nobre

    ARAArticulacin Regional

    Amaznica

  • O FuturoClimtico daAmaznia Relatrio de Avaliao Cientfica

    Antonio Donato Nobre, PhD*Pesquisador no CCST** MCTi/INPEPesquisador do MCTi/INPA

    Realizao:Articulacin Regional Amaznica (ARA)

    Suporte Institucional:Centro de Cincia do Sistema TerrestreInstituto Nacional de Pesquisas EspaciaisInstituto Nacional de Pesquisas da Amaznia

    Parceria Estratgica:Avina e Avina AmericasFundo ValeFundao Skoll

    Suporte:Instituto SocioambientalProjetos Rios VoadoresWWF

    * Antonio Donato Nobre (currculo Lattes) estuda o sistema terrestre com interesse interdisciplinar e atuao na popularizao da cincia. pesquisador snior do Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia desde 1985 e atua desde 2003 no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

    ** O Centro de Cincia do Sistema Terrestre do INPE um novo departamento do INPE para pesquisa multi e interdisciplinar sobre a Terra e seu funcionamento.

  • Sumrio Executivo

    Este relatrio de avaliao do futuro climtico da Ama-znia consiste de uma reviso e sntese da literatura cientfica, articulada com anlises interpretativas das questes mais importantes relacionadas ao assunto.

    Sem perder o foco na cincia, trata dos temas com lin-guagem acessvel e aspirao holstica, isto , busca ligar fontes e muitas anlises de especialistas em uma imagem coerente do ecossistema Amaznico.

    Suas linhas mestras so o potencial climtico da gran-de floresta fator critico para todas sociedades huma-nas , sua destruio com o desmatamento e o fogo e o que precisa ser feito para frear o trem desgovernado em que se transformaram os efeitos da ocupao hu-mana sobre o clima em reas de floresta.

    O tema vasto. Por isso preciso trat-lo em certa se-quncia cronolgica.

    1 O texto comea pelo pano de fundo do fator cha-ve na histria geolgica: o tapete tecnolgico1 da biodiversidade amaznica, que levou dezenas de milhes de anos para formar sua capacidade fun-cional. Os processos da vida que operam na flores-ta contm complexidade quase incompreensvel, com um nmero astronmico de seres funcionan-do como engrenagens articuladas em uma feno-menal mquina de regulao ambiental.

    2 A seguir, o texto passa descrio das capaci-dades da Amaznia no seu estado intocado: o oceano-verde2 da floresta e sua relao com o oceano gasoso da atmosfera, com o qual troca ga-ses, gua e energia, e com o oceano azul dos mares, fonte primria e repositrio final da gua que irriga os continentes. Desde Humboldt3 at hoje, a cin-cia revelou importantes segredos acerca do poder da grande floresta sobre os elementos que fazem o clima. Aqui exploramos cinco descobertas impor-tantes para a ecohidrologia Amaznica.

    Cinco segredos desvendados

    O primeiro segredo que a floresta mantm mido o ar em movimento, o que leva chuvas para reas continente adentro, distantes dos oceanos. Isso se d pela capacidade inata das rvores de transferir grandes volumes de gua do solo para a atmosfera atravs da transpirao.

    O segundo segredo a formao de chuvas abun-dantes em ar limpo. As rvores emitem substncias volteis precursoras de sementes de condensao do vapor dgua, cuja eficincia na nucleao de nuvens resulta em chuvas fartas e benignas.

    O terceiro segredo a sobrevivncia da flores-ta Amaznica a cataclismos climticos e sua

    1

    1 Por falta de melhor termo, o uso metafrico do conceito da tecnologia quer indicar uma dimenso natural (no humana) da incrvel complexidade e sofisticao existente nos sistemas vivos, que opera automa-ticamente em nanoescala (bilionsimos de metro), de modo a criar e manter a habitabilidade e conforto ambiental. Nas palavras de Arthur C. Clark qualquer tecnologia suficientemente avanada indistinguvel da magia. A tecnologia da natureza inconcebivelmente avanada.2 Essa expresso metafrica oceano-verde descreve as caractersticas ocenicas desta extenso continental coberta por densas florestas. A importncia deste conceito novo e incomum reside na sua sugesto de uma superfcie florestal, estendida abaixo da atmosfera, cuja caractersticas de vastido, humidade e trocas pelos ventos se assemelham s dos oceanos reais. 3 Alexander von Humboldt, influente cientista-naturalista alemo que explorou as Amricas na virada do sculo 18 para o sculo 19, considerado o pai de cincias como geografia, fsica, meteorologia e ecologia.

    O Futuro Climtico da Amaznia Sumrio Executivo

  • formidvel competncia em sustentar um ciclo hi-drolgico benfico, mesmo em condies externas desfavorveis. Segundo a nova teoria da bomba bitica, a transpirao abundante das rvores, casa-da com uma condensao fortssima na formao das nuvens e chuvas condensao essa maior que aquela nos oceanos contguos , leva a um rebai-xamento da presso atmosfrica sobre a floresta, que suga o ar mido sobre o oceano para dentro do continente, mantendo as chuvas em quaisquer circunstncias.

    O quarto segredo indica a razo de a poro me-ridional da Amrica do Sul, a leste dos Andes, no ser desrtica, como reas na mesma latitude, a oes-te dos Andes e em outros continentes. A floresta amaznica no somente mantm o ar mido para si mesma, mas exporta rios areos de vapor que, transportam a gua para as chuvas fartas que irri-gam regies distantes no vero hemisfrico.

    O quinto segredo desvendado o motivo pelo qual a regio amaznica e oceanos prximos no fomen-tam a ocorrncia de fenmenos atmosfricos como furaces e outros eventos climticos extremos. A atenuao da violncia atmosfrica tem explica-o no efeito dosador, distribuidor e dissipador da energia nos ventos, exercido pelo rugoso dossel florestal, e da acelerao lateral de larga escala dos ventos na baixa atmosfera, promovida pela bomba bitica, o que impede a organizao de furaces e similares. A condensao espacialmente uniforme

    sobre o dossel florestal impede concentrao de energia dos ventos em vrtices destrutivos, en-quanto o esgotamento de humidade atmosfrica pela remoo lateral de cima do oceano, priva as tempestades do seu alimento energtico (vapor de gua) nas regies ocenicas adjacentes a grandes florestas.

    Todos esses efeitos em conjunto fazem da majes-tosa floresta Amaznica a melhor e mais valiosa parceira de todas as atividades humanas que re-querem chuva na medida certa, um clima ameno e proteo de eventos extremos.

    3 O relatrio continua com a descrio dos efeitos do desmatamento e do fogo sobre o clima: a devasta-o da floresta oceano-verde gera um clima drama-ticamente inspito. Modelos climticos antecipa-ram, h mais de 20 anos, variados efeitos danosos do desmatamento sobre o clima, j confirmados por observaes. Entre eles esto a reduo drs-tica da transpirao, a modificao na dinmica de nuvens e chuvas e o prolongamento da estao seca. Outros efeitos no previstos, como o dano por fumaa e fuligem dinmica de chuvas, mesmo so-bre reas de floresta no perturbada, tambm es-to sendo observados.

    O dano do desmatamento, assim como os danos do fogo, da fumaa e da fuligem, ao clima, so candentemente evidentes nas observaes cienti-ficas de campo. As anlises baseadas em modelos

    atualizados e em nova teoria fsica projetam um futuro ainda pior. Emerge como fator principal a afetar o clima a grave extenso acumulada do des-matamento amaznico, at 2013 no Brasil em qua-se 763.000 km2 (rea equivalente a 184 milhes de campos de futebol ou trs estados de So Paulo). Tal superfcie precisa ainda ser somada frao de impacto da extenso acumulada da menos falada e menos estudada degradao florestal (estimada em mais de 1,2 milho de km2).

    4 O relatrio prossegue relacionando os dois itens anteriores, floresta oceano-verde e desmatamento, no contexto temporal mais estendido: o equilbrio vegetao-clima, que balana na beira do abis-mo. Modelos climticos ligados interativamente a modelos de vegetao exploram quais so as ex-tenses de tipos de vegetao e as condies cli-mticas capazes de gerar estveis equilbrios vege-tao-clima.

    Para a Amaznia, esses modelos projetam a possi-bilidade de dois pontos possveis e alternativos de equilbrio: um que favorece a floresta (mido, atual para a bacia amaznica e histrico) e outro que fa-vorece a savana (mais seco, atual para o Cerrado, futuro para a bacia amaznica).

    O ponto preocupante desses exerccios de modela-gem a indicao de que aproximadamente 40% de remoo da floresta oceano-verde poder defla-grar a transio de larga escala para o equilbrio da

    2O Futuro Climtico da Amaznia Sumrio Executivo

  • savana, liquidando, com o tempo, at as florestas que no tenham sido desmatadas. O desmatamen-to por corte raso atual beira os 20% da cobertura original na Amaznia brasileira, e a degradao florestal, estima-se, j teria perturbado a floresta remanescente em variados graus, afetando adicio-nalmente mais de 20% da cobertura original.

    5 A seo final do relatrio recomenda um plano de mitigao baseado na reverso radical tanto dos danos passados quanto a das expectativas de da-nos futuros: um esforo de guerra. As florestas da Amaznia so essenciais para a manuteno do cli-ma, e com ele a segurana das geraes futuras. Fe-lizmente, os avanos nas cincias fazem desta guer-ra um desafio que pode ser bem sucedido.

    Apesar da dificuldade em separar precisamente os efeitos de fundo das mudanas climticas glo-bais daquelas locais e regionais, no resta a menor dvida de que os impactos do desmatamento, da degradao florestal e dos efeitos associados j afetam o clima prximo e distante da Amaznia. J afetam em alto grau hoje em dia e prometem afetar ainda mais seriamente no futuro, a ponto de que a nica opo responsvel que se coloca agir vigo-rosamente no combate s causas.

    Como primeira ao, impe-se a universalizao e facilitao de acesso s descobertas cientficas, que podem reduzir a presso da principal causa do des-matamento: a ignorncia.

    Em segundo lugar, preciso estancar a sangria da floresta, ou seja, zerar o desmatamento, a degra-dao florestal e o fogo j, com todos e quaisquer recursos e meios ticos possveis, no interesse da vida. Ao mesmo tempo, em vista do diagnstico de que desmatamento e degradao acumulados constituem-se no mais grave fator de dano ao cli-ma, torna-se necessrio e inevitvel desenvolver um amplo esforo para replantar e restaurar a flo-resta destruda.

    Tal esforo precisa ter perspectiva de mdio e longo prazos para culminar com a regenerao da floresta oceano-verde original. Diante disso, as elites gover-nantes podem, devem e precisam tomar a dianteira na orquestrao da grande mobilizao de pessoas, recursos e estratgias que possibilitem recuperar o tempo perdido.

    Na concluso, ao apontar para a urgncia de aes de proteo e restauro da grande floresta, acena com oportunidades reais na viabilidade de trilhar-mos um novo caminho, onde a floresta protegida e recomposta seja a principal aliada das atividades humanas, dentro e fora da Amaznia.

    3O Futuro Climtico da Amaznia Sumrio Executivo

  • Agradecimentos

    Agradecimentos a todos que contriburam para o aporte de informao qualificada a este relatrio, em especial para

    Enas Salati, no histrico dos estudos isotpicos; Martin Hodnett, Jos Marengo e Celso Randow, nos nmeros da eva-

    potranspirao; Digenes Alves e Dalton Valeriano, nos nmeros do desmatamento; Jos Marengo, pelos alertas fo-

    cados e muito teis; Anita Drumond, pelos clculos sobre evaporao no oceano; Antonio Manzi, que levantou ques-

    tes sobre a circulao planetria; Victor Gorshkov e Anastassia Makarieva que deram respostas a essas questes e

    pelas correes cruciais sobre a fsica atmosfrica; Claudio Maretti, por ajudar a colocar as questes de preservao

    em perspectiva; Elisangela Broedel pela reviso crtica dos nmeros do desmatamento e da destruio de rvores;

    Yosio Shimabukuro e Scott Saleska pelas informaes relativas a rea da Amaznia e densidade de arvores; Gilvan

    Sampaio pelas correes no texto sobre modelos de equilbrio vegetao-clima; Meirat Andreae e Steven Wofsy pelas

    referencias e orientaes sobre qumica atmosfrica; German Poveda pelas referencias e conselhos referente s gelei-

    ras dos Andes; Suprabha Sechan por levantar as dificuldades relativas a tecnologia; s excelentes crticas e sugestes

    feitas pelos comentadores e pelo pblico na 3 reunio Pan-Amaznica da ARA, em Lima; s questes e reaes do

    pblico no debate feito pela Nossa So Paulo e pelo Instituto Ethos sobre a crise da gua na regio metropolitana de

    So Paulo; Srgio Guimares, Mrcio Santilli, Paulo Nobre, Tasso Azevedo, Adriana Cuartas, Lou Gold, Foster Brown,

    Claudio Maretti, Victor Gorshkov, Anastassia Makarieva, Stephan Schwartzman e Robert Harriss pelas excelentes e

    inspiradoras revises; Marcos Losekann e a Gerard e Margi Moss pelas perguntas instigantes, que levaram a mais

    aperfeioamentos no texto; Marcelo Leite pela sbria reviso profissional e de alta qualidade, essencial no ajuste e

    melhoria do texto; Jaime Gesisky e Moema Ungarelli pelo cuidado e rigor na reviso final; Felipe Horst pela bela dia-

    gramao; Margi Moss pela reviso estelar de estilo e fluencia; Articulacin Regional Amaznica pela encomenda

    do estudo e Secretaria Executiva da ARA, em especial ao Srgio Guimares e Claudio Oliveira pelo suporte e estmu-

    los constantes. Agradecimentos especiais ao CCST do INPE e ao INPA, pelo apoio institucional; a Avina, Fundo Vale e

    Skoll Foundation, pela parceria valiosa; ao ISA, Projeto Rios Voadores e WWF, pelo suporte.

  • Sumrio

    Introduo A tecnologia da floresta insubstituvel 9

    1) As florestas geram o clima amigo: cinco segredos revelados 11 1.1) Reciclagem de umidade: geisers da floresta 11

    1.2) Nucleao das nuvens: o p de pirlimpimpim no oceano verde 14

    1.3) Bomba bitica de umidade: doar gua para receber chuva 15

    1.4) Rios areos: gua fresca pelas artrias suspensas 17

    1.5) Dossel rugoso: freio de arrumao nos ventos 19

    2) O desmatamento leva ao clima inspito: sem rvores, no d para tapar o sol 20 2.1) Desmatamento virtual: simulando a aniquilao das rvores 20

    2.2) Desmatamento real: olhos de guia no espao 22

    3) Amaznia e o calcanhar de Aquiles: o heri invencvel tomba 25 3.1) Ponto de no retorno: o passo em falso no abismo 25

    3.2) Savanizao e desertificao: dano extensivo ou dano impensvel? 26

    4) O futuro climtico da Amaznia: j chegou 28 4.1) Reciprocidade climtica: o desmatamento acumulado cobra sua fatura 29

    4.2) Ordem de urgncia: antes tarde do que nunca 30

    5) Florestas de oportunidades: cinco passos para recuperar o clima 32 5.1) Popularizar a cincia da floresta: saber poder 32

    5.2) Zerar o desmatamento: para anteontem 32

    5.3) Acabar com o fogo, a fumaa e a fuligem: chamem os bombeiros! 33

    5.4) Recuperar o passivo do desmatamento: a fnix ressurge das cinzas 33

    5.5) Governantes e sociedade precisam despertar: choque de realidade 34

    Concluso 36

    Eplogo: o prlogo de uma nova era 37

    Referncias 38

  • O Futuro Climtico da Amaznia 9Relatrio de Avaliao Cientfica

    Com isso, num primeiro momento o planeta se esfria, o que faz as plantas crescerem menos, consumindo menos CO2. No momento seguinte, a acumulao de CO2 leva ao aquecimento do planeta, e assim suces-sivamente, num ciclo oscilante de regulao5. Desta forma, as plantas funcionam como um termostato, que responde s flutuaes de temperatura atravs do ajuste da concentrao do principal gs-estufa na atmosfera, depois do vapor dgua. Mas esta regula-o da temperatura via consumo mediado do CO2 apenas um entre muitos mecanismos da vida que re-sultam na regulao favorvel do ambiente.

    Como se ver neste trabalho, as florestas tropicais so muito mais que uma aglomerao de rvores, reposi-trio passivo de biodiversidade ou simples estoque de carbono. Sua tecnologia viva e dinmica de interao com o ambiente lhes confere poder sobre os elemen-tos, uma capacidade inata e resiliente de condiciona-mento climtico. Assim, as florestas condicionam o cli-ma que lhes favorea, e com isso geram estabilidade e conforto, cujo abrigo d suporte ao florescimento de sociedades humanas.

    A Amrica do Sul um continente privilegiado pela extensiva presena de florestas megabiodiversas. No por acaso, esse continente teve, e ainda tem, um dos climas mais favorveis em comparao com qualquer outro. Contudo, ao longo de 500 anos, a maior par-te da vegetao nativa fora da bacia amaznica foi

    IntroduoA tecnologia da floresta insubstituvel

    Numa definio solta, a floresta tropical um tapete multicolorido, estruturado e vivo, extremamente rico. Uma colnia extravagante de organismos que saram do oceano h 400 milhes de anos e vieram para a ter-ra. Dentro das folhas ainda existem condies seme-lhantes s da primordial vida marinha. Funciona assim como um mar suspenso, que contm uma mirade de clulas vivas, muito elaborado e adaptado. Evoluda nos ltimos 50 milhes de anos, a floresta amaznica o maior parque tecnolgico que a Terra j conheceu, porque cada organismo seu, entre trilhes, uma ma-ravilha de miniaturizao e automao. Em tempera-tura ambiente, usando mecanismos bioqumicos de complexidade quase inacessvel, a vida processa to-mos e molculas, determinando e regulando fluxos de substncias e de energia.

    As florestas condicionam o clima que lhes favorea, e com isso geram estabilidade e conforto, sob cujo abrigo flo-rescem sociedades humanas.

    O conforto climtico que apreciamos na Terra, desco-nhecido em outros corpos siderais, pode ser atribudo, em grande medida alm

    de muitas outras competncias , colnia de seres vivos que tm a capacidade de fazer fotossntese. O gs carbnico (CO2) funciona como alimento para a planta, matria-prima transformada pelo instrumental bioqumico com o uso de luz e gua, em madeira, fo-lhas, frutos, razes4. De forma encadeada, quando as plantas consomem CO2, a concentrao desse gs na atmosfera diminui.

    4 Animaes em biologia molecular: http://www.johnkyrk.com/index.pt.html5 Biotic Regulation of the Environment: http://www.bioticregulation.ru/

  • O Futuro Climtico da Amaznia 10Relatrio de Avaliao Cientfica

    aniquilada, como a Mata Atlntica, que perdeu mais de 90% da sua cobertura original. O efeito desse des-matamento histrico no clima, embora perceptvel, foi menos notado do que seria de se esperar, e a razo foi a costa quente (e mida) da floresta amaznica, que manteve o continente razoavelmente protegido de extremos com um clima ameno. Mas, nos ltimos 40 anos, a ltima grande floresta, a cabeceira das guas atmosfricas da maior parte do continente, esteve sob o ataque implacvel do desmatamento. Coincidente-mente, aumentaram as perdas com desastres naturais ligados a anomalias climticas, tanto por excessos (de chuva, calor e ventos), quanto por falta (secas)6.

    As regies andinas, e mesmo da costa do Pacfico, que dependem das geleiras para seu abastecimento de gua, podero em futuro prximo ver-se ameaadas, pois o derretimento acelerado pelo aquecimento cli-mtico j est em andamento, e tambm porque qua-se toda a precipitao nas altas montanhas, que su-prem as geleiras ano a ano, tem sua matria-prima no vapor procedente da floresta amaznica7. A leste dos Andes, a escala da dependncia no ciclo hidrolgico amaznico incomensuravelmente maior.

    As regies de savana na parte meridional, onde h hoje um dos maiores cintures de produo de gros e ou-tros bens agrcolas, tambm recebe da floresta amaz-nica vapor formador de chuvas reguladas e benignas, o principal insumo da agricultura. No fosse tambm

    a lngua de vapor que, no vero hemisfrico, pulsa da Amaznia para longe, levando chuvas essenciais8 e ou-tras influencias benficas, muito provavelmente teriam clima inspito as regies Sudeste e Sul do Brasil (onde hoje se encontra sua maior infraestrutura produtiva na-cional) e outras reas, como o Pantanal e o Chaco, as regies agrcolas na Bolvia, Paraguai e Argentina.

    Este trabalho mostrar primeiro o que sabemos sobre como a floresta amaznica funciona e mantm sua ca-pacidade de existir e persistir por eras geolgicas. De-pois exibir o efeito sobre o clima que a destruio do sistema natural j est gerando e as previses sobre o que ainda pode gerar. Por fim, explorar as ameaas ao equilbrio climtico que as alteraes em curso po-dem disparar, analisando sob alguns ngulos os riscos climticos espreita.

    6 (Marengo et al., 2013) Recent Extremes of Drought and Flooding in Amazonia: Vulnerabilities and Human Adaptation (Marengo et al., 2011) Extreme climatic events in the Amazon basin.7 (Rabatel et al., 2012) Review article of the current state of glaciers in the tropical Andes: a multi-century perspective on glacier evolution and climate change.8 (Willmot & Webber, 1998) South American Climate Data http://climate.geog.udel.edu/~climate/

  • O Futuro Climtico da Amaznia 11Relatrio de Avaliao Cientfica

    Buscando esclarecer mistrios, o trabalho dos cientis-tas no difere muito da investigao de um detetive. Exploram pistas, analisam evidncias, desenvolvem teorias, constroem modelos. Nas dedues eletrizan-tes de Sherlock Holmes, os casos mais intrincados cul-minavam com solues elementares. A realidade do mundo natural mostra-se rica e complexa, repleta de mistrios e segredos. Mas o mtodo cientifico, tem-perado pelo fascnio e humanizado pela curiosidade infantil, abre portais de acesso compreenso dos fe-nmenos mais misteriosos que nos afetam.

    Tais fenmenos, ao serem clarificados e elevados sua expresso mais simples, democratizam o conhecimen-to da cincia, ensejando o desenvolvimento de uma nova e estimulante conscincia compartilhada sobre o mundo que habitamos. Existem ainda muitos segre-dos sobre o funcionamento das florestas bem guarda-dos na natureza. Olhemos aqui para apenas cinco de-les, revelados nas ltimas dcadas, segredos que so cruciais para o entendimento das funes das florestas no condicionamento do clima.

    No af de modelar com o uso de computadores os fluxos colossais de massa e energia para simular o clima, os me-teorologistas inicialmente prestaram pouca ateno na cobertura de vegetao. Essa abordagem mudou radi-calmente. Por um nmero grande e crescente de evidn-cias, hoje se sabe do papel vital exercido pela vegetao em muitos processos do clima. E praticamente todos os

    1) As florestas geram o clima amigo: cinco segredos revelados

    modelos do clima, assim como os mais complexos modelos do sistema terrestre, passaram a incluir representaes elabora-das da vegetao. As descober-

    tas cientficas sobre o papel determinante das florestas nos ciclos local, regional e planetrio de gua, energia, carbono e outros valem para todas as florestas naturais do globo. Mas aqui vamos focalizar mais as florestas tro-picais da Amrica do Sul, especialmente a Amaznia.

    Todos os estudos de modelagem climtica consideram a bacia amaznica inteira. Mas, por haver mais dados disponveis, na Amaznia brasileira9 que se realizou a maioria dos outros trabalhos cientficos, como o moni-toramento do desmatamento. No obstante, dada a im-portncia da bacia amaznica como um todo, a chama-da Pan-Amaznia, e tambm porque a atmosfera e os rios no se importam com limites polticos, no futuro as observaes, mapeamentos e anlises precisaro rom-per as fronteiras nacionais, a exemplo do que j fazem projetos como a RAISG com levantamento extensivo e integrado das presses humanas sobre a Amaznia10.

    1.1) Reciclagem de umidade: geisers da floresta

    Trezentos anos aps a invaso europeia nas Amricas11, a aura de Jardim do den nas selvas tropicais j decaa de seu apelo romntico, possivelmente pela tromba-da dos cobiosos conquistadores espanhis com o

    9 Definida dentro do que, durante a ditadura brasileira (1964-1985), foi definida por decreto como Amaznia Legal.10 RAISG Red Amaznica de Informacin Socioambietal Georreferenciada; Amaznia sob presso.11 (Gambini, 2000) Espelho ndio: a formao da alma brasileira.

    Por um nmero grande e crescente de evidncias, sabe-se hoje do papel vital exercido pela vegetao em muitos processos do clima.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 12Relatrio de Avaliao Cientfica

    inferno verde, aquele labirinto infindvel, montono e perigoso que passou a inspirar mais medo e desespero do que fascinao. O sculo 19, com seus naturalistas cientficos, v reacender a fascinao, mas agora tingi-da por um apelo racional. Alexander von Humboldt, o aclamado e influente cientista-naturalista alemo que explorou as Amricas na virada do sculo 18 para 19, considerado o pai de cincias como geografia fsica, meteorologia e ecologia. Ele empregou o termo hileia [do grego, floresta selvagem] para a Amaznia e, com a riqueza e encantamento das suas descries minu-ciosas, inspirou geraes de naturalistas, Darwin entre eles. De Humboldt vm as primeiras sugestes da liga-o entre a floresta, a umidade do ar e o clima.

    Porm, no incio do sculo 20, o polmata, autor pro-lfico e militar Euclides da Cunha rompe o encanta-mento do naturalismo cientfico com suas descries desapontadas da hileia. Seu discpulo Alberto Rangel, que, como o mestre, tambm se sensibilizara com a misria dos seringueiros e as agruras da vida na selva,

    ressuscita na obra Inferno Verde a perspectiva de dana-o dos invasores espanhis e desmonta de vez a ima-gem de paraso verde. O voluntarismo verbal contra o habitat selvagem, lastreado pela admitida ignorncia desses autores quanto ao valor intrnseco da floresta, em compasso com a falncia do fausto da borracha, muito provavelmente deixou sua herana de valores a influenciar coraes e mentes.

    Quanto do subsequente mpeto para a ocupao da Amaznia, com a radical supresso da mata, no teve razes a? Euclides da Cunha, prefaciando o livro do dis-cpulo, nega valor para a abordagem holstica de Hum-boldt (a epistemologia da cincia amaznica floresce-r se se preocupar menos em revelar a hileia por inteiro sic) e antecipa a demanda reducionista que viria12.

    A reciclagem de umidade da chuva pela evaporao da flores-ta mantm o ar mido por mais de 3 mil km continente adentro.

    Tardios foram os estudos que finalmente comea-ram a revelar os segredos da grande floresta. Bus-

    cando testar clculos preliminares de balano hdrico para a Amaznia13 que indicavam reciclagem impor-tante da gua, Enas Salati liderou nos anos 1970 estu-dos observacionais de chuva e evaporao que de-monstraram inequivocamente como, atravs da reciclagem de umidade, a floresta mantm o ar mido por mais de 3.000 km continente adentro14.

    Mas ainda faltavam muitas outras explicaes sobre onde, quanto, como, por que e com que implicaes. Adotando sem saber a sugesto reducionista de Eucli-des da Cunha, nas trs dcadas seguintes aos estudos de Salati, mais de duas dzias de grandes projetos de investigao15, congregando centenas de cientistas e usando muitos laboratrios, instrumentos sofistica-dos, torres, avies, barcos, satlites, supercomputado-res e o que mais h de ferramenta cientfica, produzi-ram milhares de artigos, dezenas de livros e bancos de dados alentados, a maioria informao de difcil inter-pretao isolada.

    Diz-se que o cientista de hoje aquele que estuda cada vez mais sobre cada vez menos, at que conhece tudo sobre o nada. Como irnico que, 200 anos depois, a forma mais produtiva de extrair sentido da enormi-dade dessas pesquisas pontuais seja justamente reto-mar a abordagem holstica de Humboldt, articulando a riqueza de dados soltos e construindo uma narrativa integrada e funcional a respeito da concentrao fe-nomenal de vida e seu poder sobre os elementos nas florestas da Amaznia.

    Vejamos como podemos captar aspectos espetacu-lares do funcionamento da floresta acompanhando a narrativa do percurso da gua da atmosfera, pela inti-midade das plantas e de volta para a atmosfera.

    Transpirao: plantas no usam desodorante

    As plantas suam. A gua, ao evaporar, resfria a folha e o ambiente. Mas a transpirao nas plantas muito mais importante que isso. A transpirao promove a suco pelas razes e o fluxo ao longo do tronco, at as folhas, da gua do solo, que carrega consigo nutrientes; permite que a folha abra seus microportais para a atmosfera (estmatos), por onde sai o vapor, mas tambm por onde entra o adubo gasoso mais essencial, o CO2. E os odores produzidos pelas plantas, os gases orgnicos que desempenham muitos papis no funcionamento da atmosfera e das chuvas, saem junto com a gua transpirada. Portanto, sem transpirar a planta deixaria de regular seu prprio bem-estar, cessaria de controlar o ambiente e acabaria morrendo por falta de nutrientes, dentre eles o CO2, e excesso de temperatura.

    12 Rafael Leandro assim reflete a expresso de Euclides da Cunha naquele prefcio: a enormidade da floresta s pode ser medida, se repartida somente num futuro tardio, se conhecer os segredos da Natureza [...] A definio dos ltimos aspectos da Amaznia ser o fecho de toda a Histria Natural... (Leandro, 2009) Inferno Verde: Representao Literria da Amaznia na Obra de Alberto Rangel.

    13 (Molion 1975) A climatonomic study of the energy and moisture fluxes of the Amazonas basin with considerations of deforestation effects; (Villa Nova et al. 1976) Estimativa de evapotranspirao na Bacia Amaznica; (Marques et al. 1977) Precipitable water and water vapor flux between Belem and Manaus.

    14 (Salati et al, 1979) Recycling of Water in the Amazon Basin: An Isotopic Study.15 Projetos de pesquisa na Amaznia: ARME, NASA-GTE ABLE, ABRACOS, TRACE-A, RBLE, CAMREX, INPA-Max Planck, INPA-ORSTOM, PDBFF, PELD, LBA, LBA-EUSTACH, LBA-CARBONSINK, LBA-CLAIRE, LBA-ECO,

    LBA-Barca, LBA-DMIP, GEWEX, ISLSCP, GEOMA, PPBio, Rainfor, AmazonFlux, AMAZE, Amazon Pire, Amazalert, AMAZONICA, Changing Amaznia, ATTO, ACRIDICON-CHUVA, GreenOceanAmazon etc. Apenas no mbito do grande projeto LBA, foram desenvolvidos 217 subprojetos de pesquisa em 16 anos de operao.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 13Relatrio de Avaliao Cientfica

    Depois que as nuvens precipitam seu precioso lquido sobre a floresta, grande parte da gua se esgueira por entre o dossel e infiltra-se pelo permevel solo flores-tal, onde armazenada no pacote poroso do solo, ou mais abaixo, em aquferos gigantescos, verdadeiros oceanos subterrneos de gua doce.

    A gua do solo comea seu retorno para a atmosfe-ra absorvida por profundos e sofisticados sugadores, as razes; depois sobe desafiando a fora da gravidade por 40 a 60 m, ou mais, em elaboradas tubulaes no xilema dos troncos. Sua ltima etapa passa pelas es-truturas laminares evaporadoras das folhas, versteis painis solares qumicos capazes de absorver a ener-gia do sol e aproveitar a carcia dos ventos para trans-pirar e transferir copiosos volumes de gua vaporosa para a atmosfera, completando assim o retorno do ci-clo vertical iniciado com a chuva.

    Uma rvore grande pode bombear do solo e transpirar mais de mil litros de gua num nico dia.

    Uma rvore grande pode bombear do solo e transpi-rar mais de mil litros de

    gua num nico dia16. A Amaznia sustenta centenas de bilhes de rvores em suas florestas. Vinte bilhes de to-neladas de gua por dia so transpiradas por todas as rvores na bacia amaznica17. Em seu conjunto, as rvo-res, essas benevolentes e silenciosas estruturas verdes vivas da natureza, similares a geisers, jorram para o ar um rio vertical de vapor mais importante que o Amazonas18.

    Geiser de vapor: maior que o rio Amazonas

    Buscando quantificar de modo simples a transpirao massiva da flores-ta sugerida pelos estudos de Salati e outros, fizemos, juntamente com Adriana Cuartas, em 2007, um clculo revelador. Usando os dados de evaporao coletados nas torres de fluxo do projeto LBA (3,6 mm ao dia, ou 3,6 litros por m2, em mdia), estimamos a quantidade total diria de gua fluindo do solo para a atmosfera atravs das rvores. Cobrindo 5,5 milhes de km2, o clculo para a floresta na bacia amaznica resultou no fantstico nmero de 20 bilhes de toneladas de gua transpirada ao dia (ou 20 trilhes de litros). Mais de 22 bilhes se considerarmos todas as florestas da poro equatorial da Amrica do Sul, e 25 bilhes ou mais se considerarmos as florestas que existiam no seu estado pristino em 150017. Para comparao: o volume despejado no oceano Atlntico pelo rio Amazonas pouco mais de 17 bilhes de toneladas ao dia18.

    Como em um edifcio com muitos pisos, um me-tro quadrado de cho na

    Amaznia pode ter sobre si at 10 m2 de intrincada su-perfcie foliar distribuda em diferentes nveis no dossel. Nisso reside a explicao para o fato de uma superfcie terrestre florestada poder evaporar tanto quanto ou at mais gua que a superfcie lquida de um oceano ou um lago, na qual 1 m2 de superfcie evaporadora coincide com apenas o mesmo 1 m2 da superfcie geomtrica.

    Corroborando esses fatos fantsticos, um estudo pu-blicado recentemente no peridico cientfico Nature18 fez avanar o ciclo de descobertas sobre a importn-cia extraordinria da vegetao global no processo de transferncia de gua para a atmosfera: quase 90%

    16 rea da copa com raio de 10 m, 324,2 m2 x 3,6 litros/m2 = 1131,1 litros transpirados em um dia.17 rea recente com floresta na bacia hidrogrfica do rio Amazonas, - 5,5 x 1012 m2 x 3,6 litros/m2 = 19,8 x 1012 litros (~20 x 109 toneladas); rea com floresta em toda Amaznia (sensu latssimo Eva et al, 2005, A proposal for

    defining the geographical Boundaries of Amaznia), incluindo florestas midas, secas e inundadas = 6.280.468 km2, ou 6, 280.468 x 1012 m2 x 3,6 litros/m2 = 22,609.6848 x 1012 litros (22,61 x 109 toneladas);e projetada para a rea histrica coberta com floresta (rea com floresta em 2004 mais desmatamento corte raso at 2004, Alves 2007) = 6.943.468 km2, - ou 6,943468 x 1012 m2 x 3,6 litros/m2 = 25 x 1012 litros (25 x 109 toneladas).

    18 vazo do rio Amazonas na foz de 2 x 105 m3/segundo x 86400 segundos = 17,28 x 109 m3/dia.19 (Jasechko et al., 2013) Terrestrial water fluxes dominated by transpiration.

    20 bilhes de toneladas de gua por dia so transpiradas por todas as rvores na bacia amaznica.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 14Relatrio de Avaliao Cientfica

    parte do oceano azul ten-de aridez, com pouqus-simas chuvas, enquanto

    no oceano verde as chuvas eram torrenciais e constan-tes. Tanto que, antes do avano do desmatamento, di-zia-se haver ali apenas duas estaes, a mida e a mais mida. Agora surgiu uma estao seca pronunciada, e a durao da estao mida diminui progressivamente22.

    Nuvens so aglomerados de pequenas gotculas em suspenso no ar. Gotas visveis se condensam a partir do vapor, que invisvel, pelo efeito da baixa tempera-tura. Mas somente temperatura no inicia o processo de condensao. preciso haver tambm uma super-fcie slida ou lquida que funcione como semente para que se inicie a deposio das molculas de va-por. Essas sementes, ou ncleos de condensao, so em geral aerossis atmosfricos: partculas de poeira, gros de plen ou de sal, fuligem e muitos outros.

    Mas na atmosfera sobre a floresta oceano-verde os aeros-sis so encontrados em baixas concentraes, como no azul. Se a limpeza do ar pode ser creditada por um lado ao efeito de tapete verde mido da floresta segurando a poeira embaixo, e por outro lavagem do ar pelas chu-vas constantes, como explicar a formao de chuvas to abundantes sem as sementes usuais para nucleao?

    Estudando as trocas de gs carbnico atravs de torres de fluxo, cientistas brasileiros do INPA e da USP, e eu-ropeus da Holanda, Alemanha e Itlia colaboraram no

    de toda a gua que chega atmosfera oriunda dos con-tinentes chegou l atravs da transpirao das plantas,

    e somente pouco mais de 10% como simples evapo-rao sem mediao das plantas. Como essa transfe-rncia por transpirao se d com grande absoro de calor na superfcie, as antes insuspeitas plantas inter-ferem e muito com a chuva, os ventos e o clima.

    Todo esse movimento de gua custa energia. Olhemos para um paralelo prximo. Para gerar a eletricidade de que tanto se necessita, fala-se muito em aproveitar a energia das guas na Amaznia. Ora, a energia hidru-lica de queda nos rios somente existe porque a gua foi elevada e transportada pela atmosfera para suas altas cabeceiras. A transpirao das rvores, como elo vital no ciclo das guas, absorve a energia solar no bombeamento da gua do solo e na sua transpirao. Assim, as rvores funcionam como estaes elevat-rias, alando e lanando as guas nas altitudes da at-mosfera, guas que mais adiante retornaro ao solo como chuva, transferindo parte da energia solar em-butida no vapor energia potencial da gua que en-che os reservatrios das hidreltricas.

    1.2) Nucleao das nuvens: o p de pirlimpimpim no oceano verde

    Retornar volumes colossais de vapor de gua para a at-mosfera somente a primeira parte da receita para ter

    Potncia climtica da floresta

    Quanta energia do Sol consumida para evaporar 20 trilhes de litros de gua ao dia? Para dar uma noo da grandeza de energia envolvida na transpirao amaznica, basta fazer uma comparao com as hidreltri-cas. Evaporar um grama de gua lquida consome 2.3 kilojoules de ener-gia solar. Para converter isso em energia hidrulica/eltrica, imagine uma chaleira gigante que comporte esse volume dgua, daquelas que se liga na tomada eltrica. Quanta eletricidade seria necessria para ferver e eva-porar toda essa gua? A usina de Itaipu, com 14 mil megawatts de potn-cia, precisaria gerar eletricidade em sua capacidade mxima por 145 anos para que a chaleira evaporasse a gua equivalente quela transpirada em apenas um dia amaznico. Ou, para rivalizar com as rvores amaznicas e fazer o trabalho em um dia, seria preciso somar a eletricidade de 50 mil usinas hidreltricas como Itaipu (ou 200 mil como Belo Monte). Esta comparao deixa claro que, diante da potncia climtica da floresta, as maiores estruturas humanas se mostram microscpicas.

    e manter chuvas copiosas e benignas. Em 1999, um dos primeiros estudos utilizando avies e observaes do satlite TRMM20 feitos no projeto LBA constatou que, na Amaznia, o ar na baixa atmosfera (troposfera) to lim-po de poeira quanto o ar sobre o oceano, onde as fontes de poeira so muito reduzidas, e que as nuvens tpicas na Amaznia se pareciam muito com as nuvens martimas. Essa inusitada semelhana inspirou aqueles pesquisa-dores a batizar a Amaznia de oceano verde21. Esse ter-mo descreve as caractersticas ocenicas desta extenso continental coberta por densas florestas. A importncia deste conceito novo e incomum reside na sua sugesto de uma superfcie florestal, estendida abaixo da atmos-fera, cuja caractersticas de vastido, humidade e trocas pelos ventos se assemelham s dos oceanos reais.

    Mas havia na semelhana um mistrio, pois a maior

    Na transpirao as plantas transferem para a atmosfera 90% de toda a gua eva-porada nos continentes.

    20 http://trmm.gsfc.nasa.gov/21 (Williams et al., 2002) Contrasting convective regimes over the Amazon: Implications for cloud electrification.22 (Marengo 2011) The drought of 2010 in the context of historical droughts in the Amazon region.

    Oceano verde: a atmosfera ama-znica possui o ar limpo como a atmosfera do oceano azul.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 15Relatrio de Avaliao Cientfica

    ar, a chuva no os lava. S quando oxidam-se e precipi-tam-se como aerossis formando as chuvas, que so lavados. Mas sempre h mais BVOCs esperando para formar mais p de pirlimpimpim para a prxima chuva.

    Alm da promoo de chuvas volumosas e gentis, outros mecanismos bioqumicos anlogos aos que produzem os aromas, atuam como vassourinhas qu-micas da atmosfera. Nas condies amaznicas, po-luentes perigosos (como o oznio) so removidos do ar. Nos anos 1980, nos primeiros estudos de qumica da atmosfera empregando avies instrumentados, constatou-se que o ar na baixa atmosfera amaznica continha menos oznio (portanto era mais saudvel) que o ar das regies mais remotas da Terra (como a Antrtida). Nas dcadas subsequentes outros projetos de investigao indicaram o efeito das rvores na lim-peza do ar25. Desses e de outros estudos em desenvol-vimento pode-se sugerir que as plantas amaznicas usam algum tipo de vitamina C, como um antioxidan-te, capaz de remover do ar gases danosos para a vida.

    1.3) Bomba bitica de umidade: doar gua para receber chuva

    Por volta de 2005, no pico da mais poderosa seca a atingir a Amaznia at aquele momento, atuamos na integra-o dos primeiros seis anos de dados do projeto LBA26. Depois de analisar em vrios estudos as evidncias das

    projeto LBA para investigar tambm as trocas de outros gases produzidos pelas plantas contendo carbono para verificar se constituam parte importante dessas trocas. Esses outros gases so os aromas da floresta, tambm chamados de compostos orgnicos volteis biogni-cos (BVOCs23). Como um vidro de perfume aberto per-de seu lquido por evaporao e o gs-perfume difun-de-se pelo ambiente, uma variedade de substncias orgnicas evapora nas folhas e ganha a atmosfera.

    Quando no ar mido e com a luz do Sol, os aromas das plantas formam uma poeira finssima com afinidade pela gua. So os ncleos de condensao das nuvens.

    Em termos de massa, as quantidades de carbono perdidas para a atmosfera por esses gases orgnicos so pequenas. Contudo, um grupo liderado por Meinrat

    Andreae, do Instituto Max Planck, que estuda a qumica dos gases na atmosfera, investigou o que acontecia com esses aromas quando misturados ao ar amaznico e desvendou o mistrio da nucleao das nuvens24. Os BVOCs (como isopreno, terpenos etc.), numa atmosfera mida e na presena da radiao solar, oxidam-se e pre-cipitam-se, formando uma poeira finssima com afinida-de pela gua (higroscpica), gerando eficientes ncleos de condensao das nuvens. Poeticamente falando, esse o p de pirlimpimpim que surge magicamente no ar, carregado de vapor, e provoca as chuvas a cntaros das nuvens baixas, os regadores do Jardim do den. En-quanto os BVOCs esto na forma de gs, dissolvidos no

    23 Do ingls Biogenic Volatile Organic Carbon; so compostos biognicos porque so sintetizados pelos organismos vivos, como os odores das plantas. Existem outros compostos orgnicos volteis no biogni-cos, chamados simplesmente de VOCs, como o solvente de uma tinta, por exemplo.

    24 (Pschl et al., 2010) Rainforest aerosols as biogenic nuclei of clouds and precipitation in the Amazon, (Clayes et al., 2004) Formation of secondary organic aerosols through photooxidation of isoprene. Release: Astonishing Discovery over the Amazonian Rain Forest.

    25 Por exemplo (Rummel et al., 2007) Seasonal variation of ozone deposition to a tropical rain forest in southwest Amazonia.26 (Nobre, 2005) Is the Amazon Forest a Sitting Duck for Climate Change? Models Need yet to Capture the Complex Mutual Conditioning between Vegetation and Rainfall.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 16Relatrio de Avaliao Cientfica

    observaes e os resultados de modelos, ponderei so-bre a pergunta em voga poca: com o aquecimento global, ir a floresta mida na Amaznia secar e morrer?

    Ao longo de milhares27, ou provavelmente milhes de anos28, a floresta tropical da Amrica do Sul evoluiu sua biota luxuriante sem sinais de ter sido desligada por even-tos climticos extremos, como aridez ou congelamento. No mesmo espao de tempo, no entanto, improvvel que o impacto do clima externo ao continente tenha permanecido benigno, especialmente considerando as interferncias csmicas e sua conhecida relao com mudanas climticas profundas em escala planetria29.

    Em face da adversidade climtica externa, como este magnfico bioma conseguiu resistir extino? Hoje h linhas suficientes de evidncias de que a biosfera no s pode resistir, mas, na verdade, pode alterar, modular e at regular seu prprio ambiente30.

    As florestas tropicais da Am-rica do Sul esto entre os mais densos, diversos e complexos biomas terrestres no planeta. Do mecanismo de chuvas no oceano verde pode-se ima-ginar como essas florestas

    Amaznia, corao do mundo

    Como podemos entender a circulao da gua pela paisagem? A gua irriga e drena os solos de forma anloga ao sangue, que irriga e drena os tecidos do corpo. Se os familiares rios so anlogos s veias, que dre-nam a gua usada e a retornam para a origem no oceano, onde ficam as artrias do sistema natural? So os rios areos, que trazem a gua fresca, renovada na evaporao do oceano. Para completar o sistema circulatrio faltava somente o corao, a bomba que impulsiona os fluxos nas artrias areas. A teoria da bomba bitica veio explicar que a potncia que propele os ventos canalizados nos rios areos deve ser atribuda grande floresta, que funciona, ento, como corao do ciclo hidrolgico.

    poderiam regular o clima. Controlar a precipitao signi-fica tambm controlar a conveco, o que, por sua vez, significa interferir com uma poderosa correia transporta-dora de massa e energia: a circulao de Hadley31. Atra-vs da regulao de chuvas, a biologia poderia definir o ritmo dos ventos alsios do Atlntico, arrastando a neces-sria umidade do oceano para o interior do continente.

    Na mesma poca, Victor Gorshkov e Anastassia Maka-rieva, aprofundando sua teoria sobre a regulao bi-tica do ambiente32, examinavam os mecanismos que ligam a transpirao das plantas com efeitos fsicos na atmosfera. Das surpreendentes descobertas desta anlise, eles desenvolveram a teoria da bomba bitica de umidade33, revelando fisicamente como processos de transpirao e condensao mediados e manipula-dos pelas rvores mudam a presso e dinmica atmos-fricas, resultando em maior suprimento de umidade do oceano para o interior de continentes florestados.

    Makarieva e colaboradores descobriram que a conden-sao do vapor dgua na atmosfera gera uma reduo localizada de presso e produz potencia dinmica que acelera os ventos ao longo do resultante gradiente de presso 34. O ponto crucial da teoria que contrastes na evaporao da superfcie casada com a determinante condensao nas nuvens muito mais que contrastes

    na temperatura de superfcie, determinam a direo e a intensidade dos ventos trazedores de chuva.

    Assim, uma regio florestada, que evapora tanta ou mais gua que uma superfcie ocenica contgua e que ter muito mais condensao na produo de chu-vas , ir sugar do mar para a terra as correntezas de ar carregadas de umidade, onde ascendero, o que trar chuvas para a rea florestada. Ao contrrio, se a floresta for removida, o continente ter muito menos evapora-o do que o oceano contguo com a consequente reduo na condensao , o que determinar uma re-verso nos fluxos de umidade, que iro da terra para o mar 35, criando um deserto onde antes havia floresta.

    Entre as previses baseadas na teoria da bomba bi-tica feitas por Makarieva e Gorshkov, estava a de que as secas nas florestas nativas seriam contrapostas por transpirao vigorosa das rvores. Ora, essa previso contrariava o senso comum, pois qualquer pessoa sabe que basta deixar um vaso com plantas sem re-gar por alguns dias, para que as plantas murchem e

    27 (Baker et al., 2001) The history of South American tropical precipitation for the past 25,000 years.28 (Hooghiemstra et al., 2002) Evolution of forests in the northern Andes and Amazonian lowlands during the Tertiary and Quaternary.29 (Berger and Yin, 2012) Astronomical Theory and Orbital Forcing.30 (Foley and Costa, 2003) Green surprise? How terrestrial ecosystems could affect earths climate; (Gorshkov et al., 2004) Revising the fundamentals of ecological knowledge: the biotaenvironment interaction;

    (Pielke and Avissar, 1998) Interactions between the atmosphere and terrestrial ecosystems: influence on weather and climate.31 (Poveda and Mesa, 1997) Feedbacks between hydrological processes in tropical South America and large-scale ocean-atmospheric phenomena.32 (Gorshkov et al., 2000) Biotic Regulation of the Environment: Key Issues of Global Change.33 (Makarieva and Gorshkov, 2007) Biotic pump of atmospheric moisture as driver of the hydrological cycle on land.34 (Makarieva et al., 2013) Where do winds come from?35 J considerando e descontando os efeitos da circulao planetria associada a movimentos e aceleraes inerciais.

    Uma regio florestada, onde ocorre muito mais conden-sao em nuvens do que em superfcie ocenica contgua, ir sugar para a terra os ven-tos do mar que, carregados de umidade, traro chuvas para a rea florestada.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 17Relatrio de Avaliao Cientfica

    continuar a importar gua pela atmosfera contra-pondo a seca e garantir a continuidade da floresta. A teoria da bomba bitica vem ganhando aceitao37 e j tem comprovao observacional38.

    1.4) Rios areos: gua fresca pelas artrias suspensas

    Um mapa-mndi revela interessantes arranjos e sime-trias na distribuio de florestas e desertos ao redor do globo, com trs cintures chamando a ateno: um de florestas ao redor da linha do Equador e outros dois de desertos, ao redor dos trpicos de Cncer e Capri-crnio. Tal geografia de paisagens contrastantes tem explicao conhecida, a circulao de Hadley39.

    Pela influncia da circulao de Hadley, a parte centro-meridional da Amrica do Sul tenderia aridez.

    H maior incidncia solar na zona equatorial e, portanto, ocorre ali, devido a efeitos fsi-cos, uma maior ascenso de ar,

    que se resfria e faz chover, favorecendo florestas. O ar que subiu e perdeu umidade precisa ir para algum lugar, des-locando-se em altitude nos dois hemisfrios na direo dos subtrpicos. Esse ar seco, quando desce e se aquece, remove umidade da superfcie, favorecendo desertos.

    Mas existem excees, e a parte centro-meridional da Amrica do Sul uma delas. Pela influncia da circula-o de Hadley, essa regio tenderia aridez. Basta ver o deserto de Atacama, no outro lado dos Andes, ou os

    at morram. Contrariava tambm o conhecimento de ecofisiologistas, segundo o qual quando para de cho-ver e a gua no solo diminui, as plantas fecham logo seus estmatos e deixam de transpirar para econo-mizar gua. Ao mesmo tempo, essa previso fornece uma pista para um antigo enigma ecofisiolgico: por-que a fotossntese evoluiu para ser esbanjadora de vapor dgua. Surpreendentemente, entretanto, Scott Saleska e colaboradores publicaram na revista cientfi-ca Science36 observaes que corroboravam a correo da previso terica de Makarieva e Gorshkov.

    Durante o pico da seca de 2005, as partes mais atingidas da Amaznia foram as que mais verdejaram, isto , na zona onde choveu menos (conforme registro do satlite TRMM) brotaram mais folhas novas nas copas das rvores (conforme foi visto pelo sensor MODIS no satlite Terra).

    As concluses desse estudo a partir de imagens de satlite j contavam com apoio de medies em terra das torres de fluxo do projeto LBA, que haviam consta-tado o fato de no ocorrer uma reduo de transpira-o das rvores nas pocas secas. Em outras palavras, parece que quando a seca chega, as rvores com ra-zes profundas (e acesso a grande quantidade de gua subterrnea) executam um programa para manter ou aumentar a transpirao. Assim, com o fluxo de vapor da transpirao na superfcie e a correspondente condensao nas nuvens mantm-se a suco do ar mido sobre os oceanos prximos, o que significa

    36 (Saleska et al., 2007) Amazon forests green-up during 2005 drought.37 Por exemplo: (Sheil and Murdiyarso, 2009) How Forests Attract Rain: An Examination of a New Hypothesis.38 (Poveda et al., 2014) Seasonal precipitation patterns along pathways of South American low-level jets and aerial rivers.39 Clula de Hadley

  • O Futuro Climtico da Amaznia 18Relatrio de Avaliao Cientfica

    circulao que liga os ventos alsios carregados de umidade do Atlntico equatorial com os ventos sobre a grande floresta at os Andes, e da sazonal-mente para a parte meridional

    da Amrica do Sul, foi descrita por Jos Marengo e cola-boradores43. Embora eles tenham chamado esse trans-porte de jatos de baixos nveis, o conceito muito similar ao dos rios atmosfricos. Segundo sua explicao, fun-ciona na Amrica do Sul um sistema de mones seme-lhante ao da sia, e, devido ao efeito da floresta (geisers da floresta) e tambm da cordilheira dos Andes (uma barreira de 6 km de altura), o persistente ar mido ama-znico faz a curva no Acre e, durante o vero, leva quan-tidades generosas de vapor dgua para o quadriltero afortunado, contrariando sua tendncia para a aridez.

    Recentemente Josefina Arraut44 e colaboradores fi-zeram uma reviso climatolgica dos rios areos da Amrica do Sul, estimando o transporte de vapor as-sociado e introduzindo um novo conceito, lagos a-reos, ou seja, regio de remanso atmosfrico com um estoque de vapor precipitvel.

    Com o conceito de rios areos estabelecido e tornan-do-se popular, Dominick Spracklen45 e colaboradores desenvolveram uma nova abordagem ao correlacionar a superfcie coberta por vegetao exposio de uma

    Salati e colaboradores, comparando as assinaturas qu-micas40 entre o fluxo de entrada de vapor ocenico no grande anfiteatro amaznico com as correspondentes assinaturas da gua de escoamento que retorna ao oceano pelo rio Amazonas, perceberam que parte sig-nificativa da gua que entrava como vapor no canal areo no retornava pelo canal terrestre41.

    Da concluram que a Amaznia devia estar exportan-do esse vapor para outras regies do continente e irri-gando outras bacias hidrogrficas que no a do Ama-zonas. Anlises preliminares feitas poca nas guas de chuva coletadas na cidade do Rio de Janeiro de-tectaram sinais de que parte dela vinha do interior do continente, no do oceano contguo. E, mais especifi-camente, que havia passado pela Amaznia. Esse gru-po foi o primeiro a sugerir que chuvas na Amrica do Sul fora da Amaznia poderiam ser alimentadas pelo transporte continental de vapor.

    O conceito de rios atmosfricos foi introduzido em 1992 por Reginald Newell e Nicholas Newell42 para descre-ver fluxos filamentares na baixa atmosfera capazes de transportar grandes quantidades de gua como vapor, tipicamente em volumes superiores ao transportado pelo rio Amazonas (que tem vazo de 200 milhes de litros por segundo ou 17 bilhes de toneladas ao dia).

    Quase trs dcadas depois dos achados de Salati, a

    Rios Voadores: contando uma bela histria

    Em 2006, contemplando a floresta amaznica do alto de uma torre de estudo do projeto LBA, trocamos com o aviador Gerard Moss as primei-ras ideias que levaram ao projeto de aventura, pesquisa, divulgao e educao ambiental Rios Voadores42. Com financiamento da Petrobras e a participao de Enas Salati, o pioneiro dos estudos sobre reciclagem de umidade na Amaznia, alm de outros cientistas de renome, Moss perseguiu por anos os rios de vapor com seu avio monomotor, coletan-do numerosas amostras para estudo e capturando a ateno ldica das pessoas na aventura que criou. Fez tambm um trabalho extraordinrio de educao ambiental nas escolas e pela Web, postando frequente-mente em redes sociais as trajetrias dos rios voadores e mostrando como estes levam gua para as pessoas. O resultado mais valioso desse projeto foi sua capacidade de tocar o lado emocional das pessoas atravs do estmulo ldico, da aventura, da cincia engajada, conectan-do-as ao sentimento de estima pelo ambiente, pela gua e pela floresta.

    desertos de Nambia e Kalahari, na frica, e o deserto da Austrlia. Todos alinhados latitudinalmente com a afortunada rea verde, responsvel por 70% do PIB do continente, no quadriltero delimitado por Cuiab, ao Norte, So Paulo, a Leste, Buenos Aires, ao Sul, e a cor-dilheira dos Andes, a Oeste.

    As escolas ensinam que a gua evapora do mar, vai para os continentes, cai como chuva, coletada nos rios de superfcie e retorna ao mar. Ao fazer a ligao entre evaporao da gua no mar com seu trnsito em terra, esse conceito simplrio do ciclo hidrolgico no est errado, mas no explica quase nada. Por exemplo, por que existem desertos ou por que o vapor martimo adentra os continentes de forma heterognea.

    Rios areos ligam os ventos alsios carregados de umida-de do Atlntico equatorial com os ventos sobre a grande floresta, at os Andes, e da sazonalmente para a parte meridional da Amrica do Sul.

    40 Definidas pelo uso de traadores que portam assinaturas isotpicas. Diz-se que so istopos dois ou mais tomos com o mesmo numero de prtons mas com massas diferentes. Uma analogia boa pensar em gmeos com caractersticas idnticas, exceto peso. Assinatura isotpica a relao numrica entre a imensa multido de gmeos atmicos em um material ou substancia. A gua pode conter variada combinao de gmeos de oxignio (16O e 18O) e hidrognio (1H, 2H), gerando molculas de gua com pesos distintos. A proporo destes gmeos atmicos que ocorre na gua do mar, por exemplo, se altera com a evaporao (flutuam primeiro os mais leves) e tambm com a chuva (precipitam primeiro os mais pesados). Assim, ao analisar a assinatura isotpica de uma amostra de gua ou vapor, pode-se saber de onde ela veio, se do oceano ou da floresta.

    41 (Salati et al., 1979) Recycling of Water in the Amazon Basin : An Isotopic Study; (Matsui et al., 1976) Isotopic hydrology in the Amazonia, 2, Relative discharges of the Negro and Solimes rivers through 18O concentrations.42 (Newell and Newell, 1992) Tropospheric Rivers? - A Pilot Study.43 (Marengo et al., 2004) Climatology of the low-level jet east of the Andes as derived from the NCEP-NCAR reanalysis: Characteristics and temporal variability.44 (Arraut et al., 2012) Aerial Rivers and Lakes: Looking at Large-Scale Moisture Transport and Its Relation to Amazonia and to Subtropical Rainfall in South America.45 (Spracklen et al., 2012) Observations of increased tropical rainfall preceded by air passage over forests.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 19Relatrio de Avaliao Cientfica

    Eventos extremos: a vida buscando equilbrio

    Com o aquecimento global, ocorre maior acmulo de energia na at-mosfera, o que aumenta a probabilidade de ocorrncias de fenmenos climticos mais intensos. A natureza desta tendncia foi prevista h dcadas pelos meteorologistas. Mas a maior intensidade e frequncia dessas ocorrncias est sendo observada dcadas antes do previsto. Algum fator na complexidade do clima deve explicar a acelerao dos efeitos. O registro geolgico mostra que climas extremos j ocorreram na histria da Terra, muito antes da humanidade surgir. Mas, ao contrrio do que seria de se esperar depois dos cataclismos, todas as evidncias apontam sempre para uma resiliente recuperao estabilizadora, ate-nuando os extremos. Sistemas puramente geofsicos no teriam essa capacidade. Somente a vida e seus processos de auto-regulao ofere-cem explicao satisfatria para a histria climtica da Terra.49

    parcela de ar num rio areo (medida pelo ndice cumu-lativo de rea foliar ao longo da trajetria) com chuva a jusante na trajetria daquela mesma parcela. Ou seja, um rio areo conecta regies doadoras de umidade com outras receptoras de umidade. Da a importncia crucial das florestas a montante: constatou-se que a Amaznia de fato a cabeceira dos mananciais areos da maior parte das chuvas na Amrica do Sul.

    1.5) Dossel rugoso: freio de arrumao nos ventos

    Makarieva e Gorshkov46 introduziram uma nova definio fsica para furaces, ciclones ou tornados: ... so imploses (exploses em reverso) que se passam em cmera lenta, decorrentes do desaparecimento volumtrico de vapor dgua na atmosfera por condensao47. Paulo Nobre

    apresentou-lhes, ento, um problema: A questo que se coloca... entender por que os furaces no se desenvol-vem sobre as florestas tropicais, como na Amaznia, onde o fornecimento de vapor de gua pela floresta e sua ex-tino, na forma de chuva tropical, to abundante. 48

    Respondendo, Makarieva e Gorshkov demonstraram teoricamente como uma grande rea terrestre co-berta por floresta no per-

    mite a formao de furaces e outros padres climticos anmalos, incluindo secas e enchentes. Em sua explica-o, a frico turbulenta local com o dossel da floresta -que transpira ativamente, o que resulta em chuvas uni-formes sobre grandes reas-, e a trao do vento pela bomba bitica em distncias maiores diminui muito a chance de organizao de tormentas como tornados ou furaces. As trajetrias registradas dos furaces compro-vam o ambiente ameno nas regies cobertas por flores-tas extensas e reas ocenicas prximas50. Ou seja, alm de todos os outros servios da floresta ao clima, ela ainda oferece um seguro contra destrutivos eventos atmosf-ricos, atenuando a concentrao de energia nos ventos.

    Outras funes clssicas das florestas na regulao do ciclo hidrolgico em terra so bem conhecidas, como o favorecimento da recarga de aquferos e a atenua-o de enchentes51, entre muitas outras.

    Entre os servios que a floresta presta ao clima, est um segu-ro contra eventos atmosfricos destrutivos, atenuando a concen-trao da energia nos ventos.

    46 (Makarieva et al., 2008) On the validity of representing hurricanes as Carnot heat engine.47 De acordo com os autores: The driving force of all hurricane processes is a rapid release, as in compressed spring, of potential energy previously accumulated in the form of saturated water vapor in the atmospheric column

    during a prolonged period of water vapor evaporation under the action of the absorbed solar radiation. (Makarieva et al., 2014) Condensational power of air circulation in the presence of a horizontal temperature gradient.48 (Nobre P., 2009a) Peer Review Question Interactive comment on On the validity of representing hurricanes as Carnot heat engine.49 (Gorshkov et al., 2000) Biotic Regulation of the Environment.50 Storm Track, mapa registrando todas as trajetrias observadas de furaces, mostrando que a regies equatoriais das florestas e suas imediaes ocenicas so livres destes fenmenos.51 http://www.ipef.br/hidrologia/mataciliar.asp

  • O Futuro Climtico da Amaznia 20Relatrio de Avaliao Cientfica

    2) O desmatamento leva ao clima inspito

    Em vista dos efeitos extensivos e elaborados das flo-restas sobre o clima demonstrados pela cincia, que resultados esperar da sua devastao? Para avaliar os impactos do desmatamento no clima vem sendo fei-to um nmero crescente de experimentos de campo e modelagem, estudos observacionais e, mais recente-mente, anlises tericas. Quais as consequncias pro-jetadas do desmatamento e quais as j observadas?

    2.1) Desmatamento virtual: simulando a aniquilao das rvores

    Uma das maiores virtudes dos modelos climticos est em sua capacidade de simular cenrios distantes do momento presente. Esse tipo de exerccio no pre-ditivo no sentido fsico, mas onde a teoria fsica ainda no estiver disponvel o melhor conhecimento e a nica ferramenta para analisar sistemas complexos e fazer extrapolaes bem fundamentadas.

    Tais exerccios de simulao so valiosos para situaes especficas, como explorar riscos climticos associados ao desmatamento. No ambiente virtual, como num si-mulador de voo, possvel avaliar repetidamente ce-nrios de desastres, esmiuando os fatores atuantes, as condies iniciais e as consequncias potenciais de manobras arriscadas.

    Em 1991, Carlos Nobre liderou um dos mais citados

    estudos para simular o impacto no clima do desma-tamento total da floresta amaznica52. Usando um modelo geral de circulao da atmosfera (GCM53) com um mdulo acoplado de representao da vegetao (SiB54), os autores concluram que, quando as florestas eram substitudas por pasto degradado no modelo, verificava-se um aumento significativo na temperatura mdia de superfcie (cerca de 2,5C) e uma diminuio da evapotranspirao anual (reduo de 30%), da pre-cipitao (reduo de 25%) e do escoamento superfi-cial (reduo de 20%). Na simulao ocorria tambm um aumento da durao da estao seca na metade sul da bacia amaznica.

    Nas duas dcadas seguintes, outros estudos avana-ram no detalhamento e generalizao dessas conclu-ses. Deborah Lawrence e Karen Vandecar fizeram recentemente uma reviso da literatura55 sobre os impactos do desmatamento tropical no clima e con-cluram que vrios GCMs concordam em que o des-matamento em escala regional leva a um clima mais quente e seco sobre a rea desmatada. Os modelos que simulam o desmatamento completo da Amaz-nia preveem um clima com aquecimento na faixa de 0,1-3,8C (mdia de 1,9C) e reduo de chuvas na fai-xa de 140-640 mm ao ano (mdia de 324 milmetros/ano, ou 10-15% de reduo).

    Mas o desmatamento pode ter implicaes muito mais

    52 (Nobre C. et al., 1991) Amazonian Deforestation and Regional Climate Change.53 Definio de GCM por Lawrence e Vandecar (2014): ... so modelos computacionais tridimensionais globais do sistema climtico que operam em larga escala... Os modelos mais recentes incluem representaes

    da atmosfera, oceanos e da superfcie da Terra [...] e incorporam o ciclo hidrolgico e uma representao explcita [...] da vegetao e seus efeitos sobre os fluxos de energia e de gua, incluindo as transferncias radiativas e turbulentas e os controles fsicos e biolgicos da evapotranspirao.

    54 (Sellers et al., 1986) Simple Biosphere Model.55 (Lawrence and Vandecar, 2014) The impact of tropical deforestation on climate and links to agricultural productivity, no publicado.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 21Relatrio de Avaliao Cientfica

    modelos parecem tender a subestimar as consequn-cias negativas nos cenrios simulados. Os resultados de projees mais recentes incluindo os oceanos agra-vam o quadro e aumentam o alerta.

    A eliminao da floresta prin-cipal agente da condensao continental equivale a desligar o interruptor de uma bomba de umidade atmosfrica.

    Mas preciso tambm con-siderar a teoria da bomba bitica e sua previso de re-duo de chuvas. Diferente-mente dos modelos num-

    ricos convencionais, uma teoria fsica constri entendimento baseada exclusivamente em leis funda-mentais da natureza. Se a teoria estiver correta, torna possvel prever quantitativamente efeitos fsicos apenas com a anlise dos cenrios e de sua lgica funcional.

    Makarieva e Gorshkov preveem que o desmatamento completo da Amaznia reduziria a precipitao, primor-dialmente como resultado da dissipao do efeito da baixa presso (suco) associado condensao, que conectada a uma reduo da evaporao de superf-cie. Como a teoria da bomba bitica tambm credita a disponibilidade de vapor para a precipitao na Ama-znia como resultado dessa capacidade de transpirar, a eliminao total do principal agente da transpirao levaria cessao completa do bombeamento bitico.

    Esta teoria sugere que, desligado o interruptor da bom-ba que puxa o ar mido para o continente, o fluxo de umidade deve mudar de direo quando a condensao passar a ser relativamente maior sobre o oceano (mais

    srias. Em 1997, German Poveda e Oscar Mesa56 propuse-ram o papel de ponte hidrometeorolgica para a floresta amaznica ao conectar os dois grandes oceanos prxi-mos, isto , sugerindo efeitos climticos cruzados entre os oceanos via atmosfera, mediados pela floresta.

    Explorando com modelagem em direo similar, mais recentemente Paulo Nobre57 e colaboradores estuda-ram o impacto do desmatamento na chuva amazni-ca, tendo como referncia a incluso ou a excluso das respostas dos grandes oceanos aos cenrios de des-matamento58. Comparando simulaes feitas em um GCM atmosfrico usual com um GCM acoplado a outro modelo que simula as condies internas dos oceanos (salinidade, correntes etc.), esses autores encontraram uma reduo consideravelmente maior na precipita-o quando o GCM acoplado com o oceano foi rodado para um cenrio de desmatamento total da Amaznia: 42% de reduo da chuva contabilizando os mecanis-mos internos dos oceanos, contra 26% de reduo da chuva sem considera-los. Os oceanos sempre estive-ram presentes, e a incluso das suas respostas internas d mais realismo s simulaes.

    J existem comprovaes de muito do que foi proje-tado pelos modelos como consequncia do desma-tamento, especialmente a ampliao da estao seca. Porm, esses experimentos virtuais indicavam um prolongamento da estao seca aps destruio de 100% da floresta, o que j se observa com o corte raso de pouco menos de 19 % da floresta. Ou seja, esses 56 (Poveda and Mesa, 1997) Feedbacks between hydrological processes in tropical South America and large-scale ocean-atmospheric phenomena.57 (Nobre P. et al., 2009b) Amazon Deforestation and Climate Change in a Coupled Model Simulation.58 Que utiliza apenas a srie histrica observada das temperaturas da superfcie dos oceanos.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 22Relatrio de Avaliao Cientfica

    E apontaram que essa re-duo de chuvas poder ser bem maior do que o indicado pelo grupo de Spracklen63. Para a poro

    mais desmatada da Amaznia, j se constata progres-sivo retardo no inicio da estao mida, o que gera significativo impacto no setor agrcola.

    Assim, a discusso sobre desmatamento passa longe de dvidas sobre seus evidentes efeitos diretos e indi-retos na reduo das chuvas e recai sobre a extenso da rea desmatada. No perodo 2011/2012, foram ape-nas 4.571 km2 desmatados na Amaznia brasileira. Se comparado com taxas de desmatamento em anos de pico, como 2004 (27.772 km2), esse valor parece mo-desto. O Brasil merece reconhecimento por haver lo-grado essa reduo. A velocidade e a eficcia atingidas na reduo recomendam essa estratgia para zerar e reverter o desmatamento no Brasil e no mundo.

    A despeito da notcia encorajadora, essa taxa, que pa-rece to pequena, seria suficiente para desmatar rea equivalente a toda a Costa Rica em meros dez anos. Alm disso, redues nas taxas anuais atenuam a per-cepo momentnea de perda e mascaram o desmata-mento acumulado na Amaznia, que muito grave.

    No que diz respeito ao clima, importa, sobretudo, a rea total devastada e sua distribuio espacial. Compilando

    localizado da chuva com o desmatamento, estudos mais abrangentes, simulaes com modelos climticos e mesmo anlises tericas esclareceram o carter local e transitrio desse efeito, que depende basicamente da existncia de matas circundantes rea desmatada e da extenso dessas matas. O aumento de chuva converte-se em reduo to logo as florestas remanescentes fi-quem mais distantes que um certo limiar de rea aberta. Da em diante haver reduo das chuvas.

    Dados de satlites para chuva e presena de floresta mostra-ram reduo da precipitao a jusante dos ventos que passam sobre reas desmatadas.

    O estudo de Spracklen e colaboradores62 com da-dos de satlites para chu-va e presena de floresta constatou que, com o des-

    matamento, ocorre a reduo da precipitao a jusante dos ventos. Em 60% das reas tropicais, o ar que passa sobre densas florestas produz pelo menos duas vezes mais chuva que o ar que passa sobre reas desmatadas. Apesar de ainda no terem considerado o mecanismo e os efeitos da teoria da bomba bitica, esses autores de-monstraram com evidncias fortes que o impacto ne-gativo do desmatamento no clima no somente local, mas pode afetar regies prximas e distantes.

    Aplicando os conceitos da bomba bitica, Makarieva e colaboradores colocaram os achados de Spracklen em perspectiva, explicando quantitativamente quais os fatores fsicos responsveis pela reduo nas chuvas a jusante dos ventos decorrentes do desmatamento.

    fraca que a bitica, a bomba ocenica de condensao est sempre ligada), o que levaria a aridez em terra59.

    Os modelos climticos usados para simular o desma-tamento ainda no embutiram essa nova teoria fsica, portanto no projetam esse efeito, que poderia signi-ficar at 100% de reduo nas chuvas.

    2.2) Desmatamento real: olhos de guia no espao

    O desmatamento real imenso e seus efeitos sobre o clima so bem documentados. Estudos em torres micrometeorolgicas mostram que a substituio de floresta por pastagem leva, como previsto pelos mo-delos, a um aumento da temperatura de superfcie e uma reduo da evapotranspirao60. Observaes de satlite mostram que, durante a estao seca, como previsto pela teoria da bomba bitica, a evapotranspi-rao das florestas continua a ocorrer ou at aumenta, mas no nas reas desmatadas61.

    Observaes mostram que, duran-te a estao seca, como previsto pela teoria da bomba bitica, a evapotranspirao das florestas continua a ocorrer ou at aumenta, mas no nas reas desmatadas.

    Dados similares tambm indicam que a transpira-o da floresta bem maior do que aquela pres-crita pelos modelos, o que explica em parte a subesti-

    mativa dos modelos de larga escala, no caso da reduo de precipitao com o desmatamento. Embora alguns estudos observacionais tenham revelado um aumento

    Para a poro mais desmata-da da Amaznia, j se constata progressivo retardo no inicio da estao mida, o que gera signifi-cativo impacto no setor agrcola.

    59 J considerando e descontando os efeitos da circulao planetria associada a movimentos e aceleraes inerciais.60 Por exemplo (Gash et al., 1996) Amazonian Deforestation and Climate; (von Randow et al., 2004) Comparative measurements and seasonal variations in energy and carbon exchange over forest and pasture in southwest Amazonia.61 (Huete et al., 2006) Amazon rainforests green-up with sunlight in dry season; (Saleska et al. 2007) Amazon forests green-up during 2005 drought.62 (Spracklen et al., 2012) Observations of increased tropical rainfall preceded by air passage over forests.63 (Makarieva et al., 2013) Why does air passage over forest yield more rain? Examining the coupling between rainfall, pressure and atmospheric moisture content.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 23Relatrio de Avaliao Cientfica

    Desmatamento acumulado: 762.979 km2

    Esse valor maior que a soma das reas de trs estados de So Paulo, ou que as reas somadas de duas Alemanhas ou de dois Japes. Uma unidade de rea mais prxima do brasileiro, o campo de futebol (4.136 m2), d uma noo da magnitude da devastao: 184 milhes de unidades65 quase um campo de futebol desmatado na Amaznia para cada brasileiro. Colocado na perspectiva temporal, teriam sido, em mdia, 12.635 campos desmatados por dia; 526 campos por hora; 8,8 campos ou 36.291 m2 por minuto; 605 m2 por segundo, ininterruptamente, nos ltimos 40 anos. Para caber na compreenso o gigantismo destes nmeros preciso estender a imaginao para alm destas analogias. Um trator ficcional, operando uma lmina frontal com 3 m de largura, precisaria acelerar quase velocidade de um avio a jato (726 km/h) para desmatar a rea raspada na Amaznia no ritmo registrado do espao, em imagens. Como um trator desmata mui-to mais lentamente (0,24 - 0,36 ha/h66, ou ~0,8 km/h se essa rea estives-se contida em uma faixa com 3 m de largura), com a mesma lmina de 3 m, seriam necessrios mais de 900 tratores simultaneamente derrubando a floresta, lado a lado, formando uma frente destrutiva com quase 3 km de largura. Uma comparao ainda mais impressionante uma estrada de desmatamento, com 2 km de largura, que daria para cobrir a distncia da Terra at a Lua (380 mil km).

    estudos pioneiros com dados de satlite, Digenes Al-ves64 contabilizou at 2004 um desmatamento total de 663 mil km2. Agregando-se os nmeros mais recentes do projeto PRODES do INPE, o desmatamento acumula-do total at 2013 chega a 762.979 km2.

    Pelo vis do dano ao clima, o que se tem na Amaznia um passivo gigantesco de destruio do oceano ver-de. No h, portanto, qualquer motivo para comemo-rar as taxas relativamente mais baixas de corte raso dos ltimos anos, mesmo porque, depois da aprovao do novo Cdigo Florestal (2011), com sua ampla anistia a desmatadores, j se observa uma ntida tendncia de aumento das taxas anuais.

    Na contabilidade do INPE, o corte raso brasileiro (sem considerar os dos demais pases da bacia amaznica) chegou em 2012 a 18,85% da rea original de floresta67. Mas a destruio no uniforme, pois ocorre grande concentrao de corte raso no chamado Arco do Fogo ou Arco do Desmatamento68. Se a vastido raspada j gravssima para o clima, a situao torna-se ainda pior ao se considerar o oceano verde ferido.

    A explorao madeireira e o desmatamento gradual pro-duzem extensas reas de florestas degradadas que rara-mente entram na contabilidade oficial da destruio, mas que, a depreender das informaes e estimativas dispo-nveis, podem ter impacto significativo sobre o clima.

    Dalton Valeriano liderou um estudo pioneiro sobre degradao69 que encontrou no Estado do Mato Gros-so, no perodo de 2007 a 2010, somente 7.856 km2 com corte raso, mas outros 32.926 km2 de florestas degradadas. Somando corte raso com degradao, sobrou pouco do propriamente chamado Estado de Mato Grosso.

    No mesmo perodo, o INPE mapeou 64.205 km2 de flo-resta degradada versus 39.026 km2 de corte raso para a Amaznia brasileira. Usando a proporo entre estas

    64 (Alves 2007) Science and technology and sustainable development in Brazilian Amazon.65 rea desmatada, 762.979 km2 / 0,004136 km2 = 184.472.679 de campos de futebol.66 (Viana, 2012) Mquinas e Mtodos de Desmatamento.67 http://www.dpi.inpe.br/prodesdigital/prodes.php Lista (uma tabela) e Consolida (somatrios para a unidade de rea considerada).68 Porcentagem de rea desmatada at 2012: TO 75%, MA 72%, RO 41%, MT 40%, PA 22% e AC 13%.69 http://www.obt.inpe.br/prodes/Relatorio_Prodes2008.pdf

  • O Futuro Climtico da Amaznia 24Relatrio de Avaliao Cientfica

    reas, pode-se extrapolar a rea de floresta degradada para toda a Amaznia brasileira. Na estimativa, at 2013 a rea total degradada pode ter alcanado 1.255.100 km2. Somando com a rea mensurada de corte raso, o impacto cumulativo no bioma pela ocupao humana pode ter atingido 2.018.079 km2.

    Dentre mais de 200 pases no mundo, somente 13 tm rea maior que essa. Nesta contabilidade a degrada-o de florestas na Amaznia brasileira pode haver chegado a 29,44% da rea original70 que, somada ao desmatamento corte-raso, sugere que at 47,34% da floresta tenha sido impactada diretamente por ativi-dade humana desestabilizadora do clima. Para a Pan-Amaznia, esse impacto agregado da Amaznia bra-sileira, contabilizando desmatamento e estimando degradao, representa de 26,68% a 29,03%71 sobre a rea original de floresta.

    Mas a rea de impacto no sentido ecolgico pode ser ainda maior, porque florestas contguas a reas de de-gradao ou corte raso sofrem direta e indiretamente os efeitos das mudanas ambientais vizinhas (biogeo-fsicas e biogeoqumicas)72.

    No processo de degradao, a destruio do dossel, frequentemente superior a 60% da cobertura73, muda as caractersticas estruturais, ecolgicas e fisiolgicas da floresta, comprometendo suas capacidades am-bientais.

    70 Clculo utilizando a mensurao de Esprito-Santo et al., (2014) para a floresta remanescente na Amaznia brasileira [3.500.000 km2], acrescida da rea acumulada do desmatamento [762.979 km2], chegando a 4.262.979 km2 de florestas originais na Amaznia brasileira.

    71 Impacto usando rea total de floresta original estimada pela cobertura atual (florestas remanescentes + desmatamento acumulado) baseado respectivamente em Esprito-Santo et al. (2014) com 7.562.979 km2 e em Eva et al. (2005) com 6.943.468 km2.

    72 (Laurance & Williamson, 2001) Positive Feedbacks among Forest Fragmentation, Drought, and Climate Change in the Amazon.73 (Valeriano et al., 2008) Monitoramento da Cobertura Florestal da Amaznia por Satlites. Sistemas PRODES, DETER, DEGRAD e QUEIMADAS 2007-2008.74 University of Maryland Global Forest Cover.

    Figura 1 Desmatamento acumulado de 2000 at 2010 (vermelho forte) e anterior (vermelho mais fraco) na Amrica do Sul74.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 25Relatrio de Avaliao Cientfica

    das invenes do Antropoceno75, a nova era em que a humanidade tornou-se uma fora geolgica capaz de mudar a face do planeta.

    3.1) Ponto de no retorno: passo em falso no abismo

    Se imaginarmos a metfora de um veculo (a grande floresta) trafegando em estrada esburacada (clima), cujos pneus flexveis absorvem e amortecem os im-pactos dos buracos (resilincia ecoclimtica), qual se-ria a profundidade do buraco climtico necessria para estourar o pneumtico da Amaznia oceano-verde?

    A floresta oceano-verde intacta tem muitos recursos para absorver os impactos de secas, regenerando-se completamente ao longo dos anos.

    Em 2005, houve o impac-to da estiagem mais seve-ra em um sculo. Cinco anos depois, o impacto da

    seca de 2010 foi bem maior e mais extensivo76. Em 2010, emergiram pela primeira vez, nas rochas no fundo do rio Negro, pinturas rupestres feitas quando o nvel dos mares estava mais de 100 m abaixo do atual, durante a era glacial de milhares de anos atrs. As explicaes fsi-cas para esses dois megaeventos so ainda inconclusi-vas, mas numerosas observaes, em terra e do espa-o77, no deixam dvidas sobre os danos e prejuzos registrados na floresta78, indicando que o pneumtico amaznico j apresenta sinais de fadiga, ou pelo me-nos cicatrizes significativas dos impactos sofridos.

    3) Amaznia e o calcanhar de Aquiles: o heri invencvel tomba

    A floresta sobreviveu por mais de 50 milhes de anos a vulcanismos, glaciaes, meteoros, deriva do continen-te. Mas em menos de 50 anos, encontra-se ameaada pela ao de humanos. Existe um paralelo entre a len-da grega do calcanhar de Aquiles e a importncia da grande floresta amaznica para o clima da Terra. Como o heri grego, a Amaznia essa assembleia astron-mica de extraordinrios seres vivos deve possuir al-gum tipo de capacidade que a tornou uma guerreira invulnervel, por dezenas de milhes de anos, resistin-do aos cataclismos geofsicos que assolaram o planeta.

    Os achados quanto ao poder sobre os elementos da grande floresta, do condicionamento atmosfrico ume-decedor, passando pela nucleao de nuvens, bomba bitica, revela e sugere mecanismos elaborados de in-vulnerabilidade. Onde estaria ento o ponto fraco?

    Resposta: na degradao e no desmatamento.

    Como a grande floresta presta um rol determinante de servios para a estabilidade do clima local, regional e global, sua ruptura fsica significa levar a grande guer-reira derrota nesses papis, a exemplo da ruptura do calcanhar de Aquiles, que o fez perder a guerra. A fle-cha do inimigo a motosserra, o corrento, o fogo, a fumaa, a fuligem e outros fatores de origem humana que surgiram do uso errado, descontrolado e terrvel

    75 http://www.anthropocene.info/en/anthropocene76 (Marengo et al., 2011) The drought of 2010 in the context of historical droughts in the Amazon region.77 Por exemplo: (Brando et al., 2014) Abrupt increases in Amazonian tree mortality due to drought-fire interactions; (Saatchi et al., 2013) Persistent effects of a severe drought on Amazonian forest canopy; (Fu et

    al., 2013) Increased dry-season length over southern Amazonia in recent decades and its implication for future climate projection; (Marengo et al., 2013) Recent Extremes of Drought and Flooding in Amazonia: Vulnerabilities and Human Adaptation; (Phillips et al., 2009) Drought Sensitivity of the Amazon Rainforest; (Cox et al., 2008) Increasing risk of Amazonian drought due to decreasing aerosol pollution; (Hutyra et al., 2005) Climatic variability and vegetation vulnerability in Amaznia.

    78 (Nepstad et al. 1999) Large-scale impoverishment of Amazonian forests by logging and fire; Por exemplo: extensiva mortalidade de rvores, o que muda significativamente a estrutura da vegetao e aborta o mecanismo normal de regenerao em clareiras.

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    comum -, o material orgnico no cho da floresta acaba secando alm do limite em que se torna infla-mvel. O fogo entra na mata, queima razes superfi-ciais e mata rvores grandes82. Todos esses efeitos do desmatamento potencializam-se. Assim, rapidamen-te os inimigos humanos vo golpeando o calcanhar da guerreira. Quando ela tombar de vez? Vrios es-tudos sugerem a resposta: quando ultrapassar o pon-to de no retorno83.

    O ponto de no retorno o incio de uma reao em cadeia, como uma fileira de domins em p. Tomban-do o primeiro, tombaro todos os demais. O sistema vivo na floresta, brutalmente desequilibrado, saltar para outro estado de equilbrio.

    3.2) Savanizao e desertificao: dano extensivo ou dano impensvel?

    Com o ressecamento, o fogo e a alterao da floresta, a sa-vana passaria a ser favorecida pelo novo equilbrio climtico, em detrimento da floresta.

    Equilbrio estvel um es-tado parecido com o de uma bola dentro de uma bacia, que em condies normais sempre volta

    para a parte mais funda do recipiente. Com oscila-es crescentes da bacia, a bola se movimenta cada vez mais perto das bordas. Quando o vigor do movi-mento da bacia impulsiona a bola para alm da bor-da, esta salta para fora e deixa a bacia do primeiro equilbrio para trs.

    Em condies estveis de oceano verde, a floresta tem amplo repertrio de respostas ecofisiolgicas para ab-sorver os impactos de secas como essas79, regeneran-do-se completamente ao longo dos anos. Mas o que se v em reas extensas, principalmente ao longo do Arco do Desmatamento, uma falncia mltipla de rgos nos fragmentados remanescentes florestais e at em reas mais contnuas80.

    Vrios fatores deletrios combinam seus efeitos, de modo que secas resultantes de presso externa fazem estrago maior do que o usual, reduzindo a capacida-de de regenerao da floresta. O primeiro e principal desses fatores o prprio desmatamento. Sem flores-ta, desaparecem todos os seus servios para o clima, o que, por sua vez, afeta a parte de mata que restou. Re-mover florestas quebra a bomba bitica de umidade, debilitando a capacidade de importar ar mido e chu-vas para a regio. No processo de remoo com quei-ma, a fumaa e a fuligem causam pane no mecanismo de nucleao de nuvens, criando nuvens poludas e dissipativas que no produzem chuvas81.

    O desmatamento quebra o meca-nismo das chuvas. Sem chuvas, a floresta torna-se inflamvel. O fogo entra pela mata, queima razes su-perficiais e mata rvores grandes.

    A floresta oceano-verde muito hmida para queimar, mesmo durante a poca seca. No entan-to, quando nenhuma

    chuva cai na estao seca - algo que no costumava acontecer, mas agora est se tornando cada vez mais 79 (Phillips et al., 2010) Drought-mortality relationships for tropical forests.80 (Laurance & Williamson, 2001) Positive Feedbacks among Forest Fragmentation, Drought, and Climate Change in the Amazon81 (Andreae et al., 2004) Smoking rain clouds over the Amazon.82 (Nepstad et al., 2004) Amazon drought and its implications for forest flammability and tree growth: a basin-wide analysis.83 Por exemplo: (Nobre and Borma, 2009) Tipping points for the Amazon forest.

  • O Futuro Climtico da Amaznia 27Relatrio de Avaliao Cientfica

    Em 2003, Marcos Oyama e Carlos Nobre lanaram a hi-ptese da savanizao da Amaznia em seu estudo de modelagem usando um GCM e um modelo de equil-brio de vegetao84. Como o clima interage com a ve-getao, ao mudar-se um, o outro tende a mudar em re-troalimentao positiva (desestabilizadora) ou negativa (estabilizadora), at que surja um novo equilbrio.

    Clima e vegetao na Amaznia oceano-verde esto em equilbrio estvel e resiliente na condio mida. Com o desmatamento, o clima muda gradualmente e se instabiliza at ultrapassar um ponto de no retorno (borda da bacia mida). O sistema pode ento saltar para outro equilbrio (muito mais seco).

    Segundo esse estudo, haveria dois estados possveis de equilbrio para a vegetao na Amaznia. Um cor-respondendo distribuio atual de vegetao, onde a floresta tropical cobre a maior parte da bacia, e outro com a floresta tropical no Leste da Amaznia sendo substituda por savana. Com o ressecamento progres-sivo, a entrada de fogo e a modificao em larga esca-la da floresta, a savana passaria a ser favorecida pelo novo equilbrio climtico, em detrimento da floresta. No segundo estado de equilbrio, mesmo reas rema-nescentes de florestas no desmatadas desaparece-riam como tal, virando savanas.

    Esta hiptese indica que somente proteger a floresta que sobrar no impedir seu desaparecimento sub-sequente por fora da mudana climtica no novo

    equilbrio. Tal perspectiva coloca sob nova luz a pol-tica de preocupar-se em preservar intactas apenas as designadas reas de conservao.

    Essas extrapolaes em geral consideram cenrios de reduo relativamente modesta de chuva, sempre presumindo que a direo dos ventos no mudar muito sem a floresta. Nesse cenrio, os ventos alsios carregando umidade do oceano continuariam a entrar pelo continente, e apenas certas trocas verticais sobre a Amaznia se alterariam.

    Mas a teoria da bomba bitica, que explica como a potencia dos ventos est relacionada condensao, prev que a reduo significativa da evaporao/con-densao em terra deve levar a profunda reduo da convergncia do ar sobre o continente associada a uma reduo radical no saldo do transporte de umidade ou mesmo a sua possvel reverso. Poderamos comparar essa relao terra-mar com um cabo de guerra: o lado onde ocorrer maior condensao atmosfrica, ganha-r a disputa, puxando humidade para si. Assim, com a floresta, os ventos trazem humidade do mar para a terra; sem floresta, o ar atmosfrico poderia cessar de convergir sobre o continente, o que significaria elimi-nar at 100% das chuvas. Zero de