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NOVOS ESTUDOS 87 ❙❙ JULHO 2010 61 DEMOCRACIA E IDENTIDADES POLÍTICO-PARTIDÁRIAS Em artigo publicado em 2008, Alessandro Pizzorno discute pro- blemas relacionados à representação política, retomando temas a que se dedica há muito 1 . Ressaltando o fato de que, nas condições atuais de operação da democracia, os eleitores são cada vez mais destituídos de influência real sobre as políticas públicas, restrita amplamente a gru- pos de pressão, Pizzorno examina o papel de lideranças, movimentos ou partidos em termos do contraste entre os bens de curto prazo e os de longo prazo que os cidadãos podem esperar do processo político. Esse papel é descrito em termos de “oferta de esperança”: em vez de um governo representativo capaz de colocar seus eleitores em condições de avaliar as vantagens ou as desvantagens de uma ou outra política pública, teríamos sistemas de partidos e unidades coletivas de tipo variado (étnicas, religiosas) em que a autoridade da classe política RESUMO O artigo analisa o processo de institucionalização partidária no Brasil pós-redemocratização. A formação do Partido dos Trabalhadores, e seu repetido enfrentamento eleitoral com o PSDB, aponta para um processo em andamento mas ainda incompleto: a criação, em torno dos dois partidos, de identificações político-partidárias estáveis que podem eventualmente redundar num sistema partidário simplificado e consolidado, com, entre outras coisas, a neutralização do êxito até aqui obtido pela postura excessivamente clientelista e pragmática que orienta o fragmentário enraizamento regional do PMDB. PALAVRAS-CHAVE: Identidades político-partidárias; desigualdade; Partido dos Trabalhadores; Partido da Social-Democracia Brasileira. ABSTRACT The article discusses the process of institutionalization of political parties in Brazil in the post-redemocratization period. The advent of the Worker’s Party (PT), and its electoral disputes with the Brazilian Social Democracy Party (PSDB) point to an ongoing yet unaccomplished process: the emer- gence, in the orbit of both parties, of stable political-partidary identifications that could lead to a simplified and conso- lidated party system and the neutralization of the success of the excessively clientelistic and pragmatic orientation that characterizes Brazilian Democratic Movement Party’s (PMDB) feeble regional roots. KEYWORDS: Political-partidary identities; inequality; Worker’s Party; Brazilian Social Democracy Party. IDENTIDADE POLÍTICA, DESIGUALDADE E PARTIDOS BRASILEIROS [1] Pizzorno, A. “Su democrazia e sfera pubblica immaginaria”. Sociolo- gica, 2008, nº 3, pp. 1-22. Fábio Wanderley Reis

F.W.Reis

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Identidade política, desigualdadee partidos brasileiros

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NOVOS ESTUDOS87 JULHO 2010 61DEMOCRACIA E IDENTIDADES POLTICO-PARTIDRIAS Em artigo publicado em 2008, Alessandro Pizzorno discute pro-blemas relacionados representao poltica, retomando temas a que se dedica h muito1. Ressaltando o fato de que, nas condies atuais de operao da democracia, os eleitores so cada vez mais destitudos de inuncia real sobre as polticas pblicas, restrita amplamente a gru-pos de presso, Pizzorno examina o papel de lideranas, movimentos ou partidos em termos do contraste entre os bens de curto prazo e os de longo prazo que os cidados podem esperar do processo poltico. Esse papel descrito em termos de oferta de esperana: em vez de um governo representativo capaz de colocar seus eleitores em condies de avaliar as vantagens ou as desvantagens de uma ou outra poltica pblica, teramos sistemas de partidos e unidades coletivas de tipo variado (tnicas, religiosas) em que a autoridade da classe poltica RESUMOOartigoanalisaoprocessodeinstitucionalizaopartidria no Brasil ps-redemocratizao. A formao do Partido dos Trabalhadores, e seu repetido enfrentamento eleitoral com oPSDB,apontaparaumprocessoemandamentomasaindaincompleto:acriao,emtornodosdoispartidos,de identificaes poltico-partidrias estveis que podem eventualmente redundar num sistema partidrio simplificado e consolidado, com, entre outras coisas, a neutralizao do xito at aqui obtido pela postura excessivamente clientelista e pragmtica que orienta o fragmentrio enraizamento regional do PMDB.PALAVRAS-CHAVE:Identidadespoltico-partidrias;desigualdade; Partido dos Trabalhadores; Partido da Social-Democracia Brasileira.ABSTRACTThearticlediscussestheprocessofinstitutionalizationof political parties in Brazil in the post-redemocratization period. The advent of the Workers Party (PT), and its electoral disputes with the Brazilian Social Democracy Party (PSDB) point to an ongoing yet unaccomplished process: the emer-gence, in the orbit of both parties, of stable political-partidary identifications that could lead to a simplified and conso-lidated party system and the neutralization of the success of the excessively clientelistic and pragmatic orientation that characterizes Brazilian Democratic Movement Partys (PMDB) feeble regional roots.KEYWORDS:Political-partidaryidentities;inequality;WorkersParty;Brazilian Social Democracy Party.IDENTIDADE POLTICA, DESIGUALDADE E PARTIDOS BRASILEIROS[1]Pizzorno,A.Sudemocraziae sfera pubblica immaginaria. Sociolo-gica, 2008, n 3, pp. 1-22.Fbio Wanderley Reis62 IDENTIDADE POLTICA, DESIGUALDADE E PARTIDOS BRASILEIROS Fbio Wanderley Reisestaria fundada na combinao da esperana que oferece quanto a ns de longo prazo em larga medida, segundo Pizzorno, imaginrios: ns nacionais, de classe, da humanidade, dos povos do mundo com a capacidade de transformar essa esperana em consenso para as po-lticas de curto prazo. a relao entre a classe poltica e a populao, arma Pizzorno, que o Estado deve empenhar-se em tornar virtuosa; e somente a presena de doutrinas em que se expressem ns de lon-go prazo divergentes (o aspecto de divergncia salientado) pode dar sentido a uma participao na vida poltica que no seja meramente prossional ou clientelstica, caractersticas estas associadas bus-ca de objetivos privados pela classe poltica e idia de uma sociedade de caroneiros ou aproveitadores.Essa perspectiva se associa, no exame de problemas da democracia e da poltica em geral, com a nfase na identidade. Avesso a recentes concepes da democracia de economistas que tendem a equiparar a dinmica democrtica do mercado, Pizzorno salienta as questes de identidade como as que seriam distintivas da poltica. Mas as so-ciedades que Pizzorno tem mais diretamente diante dos olhos so sobretudo sociedades de caractersticas social-democrticas, fruto da armao de identidades referidas em ampla medida a interesses ma-teriais e questo social, e os ns imaginrios de longo prazo a que Pizzorno se refere incluem com destaque os relativos a classes sociais.A abordagem de Pizzorno coloca em foco alguns dos temas que tm sido recorrentemente tomados a propsito dos partidos e de seu desenvolvimento. De um lado, temos o tradicional recurso idia de ideologia e caracterstica menos ou mais ideolgica dos partidos, elaboradaclassicamentenadistinodeMauriceDuvergerentre partidos de quadros e partidos de massas, estes ltimos corres-pondendo em particular aos partidos socialistas de origem extraparla-mentar baseados na militncia contnua de membros liados. Vistos por Duverger como os partidos do futuro, os partidos de massas ide-olgicos fornecem a referncia latente de um modelo geral de poltica ideolgica que segue prevalecendo amplamente, no Brasil como em outros pases, e no qual se supe que partidos e eleitores se distribuam com clareza ao longo de um eixo esquerda-direita. Em contraposio, revises j no to recentes tm apontado a tendncia, que resultaria fatalmente do mero envolvimento no jogo eleitoral e do imperativo de diluir a mensagem para conquistar maiorias, de que os partidos se transformem em partidos pega-tudo (catch-all parties), modi-cando de maneira mais ou menos acelerada suas relaes tanto com as bases quanto com o prprio Estado (eventualmente dando origem ao que alguns chamaram partidos-cartel, em que o acesso s benesses do Estado acaba compartilhado em algum grau entre os diversos partidos). De todo modo, tal evoluo acabaria por ensejar a 03_Fabio Reis_87_60a75.indd 62 06/08/10 18:2863 NOVOS ESTUDOS87 JULHO 2010prevalncia de um pragmatismo am aos partidos de quadros, que se faria acompanhar, em termos de psicologia poltica, de um clima de cultura cvica em que a adeso generalizada aos valores comuns da coletividade abrangente (nacional) e a identicao com ela permiti-riam que arrefecessem os antagonismos polticos e, em conseqncia, o estmulo ao envolvimento com a poltica.A esse respeito, o interesse da perspectiva trazida por Pizzorno consiste em que, em vez de identicaes divergentes ou antagnicas se contraporem a composies pragmticas, recupera-se a complexi-dade sempre presente no jogo poltico de interesses que se agregam e hostilizam. Por imaginrios que sejam os ns de longo prazo propostos, eles so efetivos em produzir identicao e identidades poltico-partidrias. E mesmo se estas se mostram instrumentais para a produo de consensos pragmticos quanto ao curto prazo, respal-dando composies protagonizadas pelos partidos, o componente de antagonismo contido na identicao partidria e na mobilizao em torno de ns ambiciosos tambm condio para que a relao entre a classe poltica e a populao possa adquirir o carter virtuoso men-cionado, em vez de acabar substituda por um aguado civismo nega-tivamente marcado por prossionalismo e clientelismo polticos.Por outro lado, a nfase em questes de identidade, tomada do ponto de vista da experincia das sociedades social-democrticas e de problemas de estraticao social, permite destacar algo especial. Genericamente, identidade tem a ver com relaes de igualdade e diferena, que dizem respeito diversidade de etnias, culturas e na-cionalidades, em sentido amplo, assim como tem a ver com o caso especco de relaes hierrquicas entre classes sociais ou catego-rias sociais estraticadas de qualquer tipo que correspondem antes a relaes de igualdade e desigualdade. Em outras palavras, a re-lao igual-desigual um caso particular da relao igual-diferente. Contudo, so as relaes de igualdade e desigualdade, ou de poder social desigual, que se revelam crucialmente relevantes do ponto de vista do tema geral da democracia, e as diferenas tnicas ou cultu-rais s interessam, deste ponto de vista, na medida em que tendem a associar-se com domnio e subordinao.DIFERENAS, DESIGUALDADES E INSTITUCIONALIZAO POLTICA NO BRASIL A implantao e o desenvolvimento do Estado nacional moder-no envolveu com freqncia problemas de assimilao, em que se tratava justamente de dar soluo ao problema da identidade na-cional, com a neutralizao da importncia de eventuais diferenas tnicas ou culturais, criando-se assim o substrato sociopsicolgico apropriado armao da aparelhagem burocrtica do Estado sobre 03_Fabio Reis_87_60a75.indd 63 06/08/10 18:2864 IDENTIDADE POLTICA, DESIGUALDADE E PARTIDOS BRASILEIROS Fbio Wanderley Reis[2]Cambridge/NovaYork,Cam-bridge University Press, 1995.as coletividades nacionais envolvidas. Na verdade, na Europa (e no s l) tais problemas seguem bem vivos at hoje: com a derrocada do comunismo, a fragmentao ocorrida na Europa oriental reeditou e intensicou, s vezes de forma trgica, o processo de balcanizao, enquanto os prprios avanos integradores da Unio Europia (e da globalizao, mais amplamente) favoreceram, em vrios pases da Eu-ropa ocidental, movimentos de autonomia regional que envolviam ou envolvem diferenas tnico-lingsticas e especicidades culturais, ou nacionalidades menos ou mais reais.Mas a questo social, assentada na diferena como desigualda-de, que marca a dinmica da implantao e do desenvolvimento da democracia. Essa proposio verdadeira mesmo se recua-mos do mundo moderno para a Antiguidade clssica. A experincia da democracia ateniense teve seu trao distintivo, e o duradouro foco de conito que terminou por compromet-la, na gura do cidado-campons, na qual Ellen Meiksins Wood (nos ensaios de Democracy against capitalism2) sintetiza a idia de que os produtores ou traba-lhadores manuais (camponeses, sapateiros, ferreiros) podiam ser governantes, podiam ser cidados e como cidados participar do governo da comunidade idia esta que, como elabora Wood, veio a ser o grande cavalo de batalha nas discusses sobre a democracia ateniense nas obras dos pensadores clssicos da prpria Atenas, que em geral se opunham fortemente a ela. no mundo capitalista do ps-Renascimento, contudo, que a questo social adquire relevncia denitiva. A armao liberal da igualdade perante a lei e dos direitos civis radicaliza-se na reivindi-cao dos direitos poltico-eleitorais, que se desdobra na busca da igualdade de maior alcance, da redistribuio e dos direitos sociais. Em vrios pases, essa busca, apesar de trazer a questo social para o cerne das disputas eleitorais, conformou as experincias social-de-mocrticas em que arrefeceu o radicalismo socialista dos casos mais exemplares de partidos ideolgicos de massas.Mas as vicissitudes das lutas sociais tm tambm um resultado de feies distintas, que vem a ser de grande importncia para a dinmica poltica e partidria no Brasil: a confrontao em nvel planetrio entre capitalismo e socialismo na Guerra Fria, que marcou longamente a segunda metade do sculo XX. Um aspecto saliente do quadro assim criado o de que os enfrentamentos domsticos que ocorrem em cada pas, especialmente na periferia do sistema mundial, se aguam ao se transformarem em episdios do enfrentamento internacional entre os dois campos. No Brasil, isso tem o efeito de intensicar algo que vinha de longe: o protagonismo poltico dos militares (o pretorianismo, na expresso de alguns) como parte crucial da debilidade do enqua-dramento institucional do jogo poltico. A implantao, em 1964, da 03_Fabio Reis_87_60a75.indd 64 06/08/10 18:2865 NOVOS ESTUDOS87 JULHO 2010[3]Finley, M. I. Ancient slavery and modernideology.NovaYork:Viking Press, 1980.[4]Tenhoevocadoarespeitoum editorial dO Estado de So Paulo de 1 de janeiro de 1901, republicado pelo jornal em 31 de dezembro de 1999, a propsito da virada do sculo XX para oXXI,ecujointeresseconsistena candura com que transparecem o eu-rocentrismo e o racismo da elite bra-sileira do imediato ps-escravismo. A imagem do Brasil que o editorial dei-xa entrever a de um pas europeu que acontecia ter recorrido s convenin-cias da mo-de-obra escrava africa-na e agora a via transformada num problema.ditadura militar que viria a durar 21 anos o coroamento desse proces-so. Ela acontece num momento em que a grande desigualdade herdada de nossa longa experincia escravista se combina tumultuadamente com a transformao econmico-social, o crescimento das cidades e das massas populares urbanas e a enorme expanso do eleitorado.Os elementos de transformao e novidade nesse quadro tm, na-turalmente, grande importncia na explicao das turbulncias que culminam em 1964. Mas o entendimento mais adequado da complexa atualidade poltica brasileira e das decincias institucionais que per-manecem, mesmo superada a ditadura, exige que se ressalte o papel cumprido pelo que h de viscoso e resiliente no legado de nossa his-tria mais remota.O ponto crucial so os efeitos da multissecular experincia escra-vista recm mencionada, da qual, naturalmente, todos temos conheci-mento, mas de cujo impacto profundo freqentemente no tomamos conscincia adequada. Ela singulariza o Brasil de modo especial: no s nos inclumos entre os poucos casos, em toda a histria, de socieda-des propriamente escravagistas (que Finley3 caracteriza pelo recurso em grande escala ao trabalho escravo tanto no campo como nas cida-des e que, na listagem de Ellen M. Wood, so a Atenas clssica, a Itlia romana, as ilhas das ndias Ocidentais, o sul dos Estados Unidos e o Brasil), mas somos tambm o nico pas moderno de dimenses sig-nicativas a contar com um legado escravista macio nos Estados Unidos, anal, a escravido perdeu a guerra.A conseqncia, que se pode resumir na singular e persistente de-sigualdade brasileira, que as carncias materiais em que a longa es-cravido se traduz para grande parcela dos estratos populares do pas tm contrapartida decisiva no plano da psicologia coletiva e de suas projees polticas. Um aspecto merece destaque: na sociedade de cas-tas que a escravido construiu (demarcadas, ademais, por traos fsi-cos de alta visibilidade), a populao de origem africana no chegava sequer, durante muito tempo, a ser percebida como fazendo realmente parte do povo brasileiro4, o que certamente a explicao ltima de nossos investimentos insucientes em educao e da precariedade do sistema educacional brasileiro at hoje (educar essa gente?). Essa decincia um correlato importante do quadro psicolgico produ-zido, em que o longo jogo poltico oligrquico e seus mecanismos clientelsticos combinavam a perspectiva aristocratizante da elite com a passividade e o conformismo prprios, na sociedade de castas, das camadas menos favorecidas. Aos olhos destas, a desigualdade tende a aparecer como parte da ordem natural das coisas e a no ser vivida como problema efetivo: no se manifesta subjetivamente de forma a dar lugar ao sentimento de injustia e conseqente disposio armati-va e reivindicante.03_Fabio Reis_87_60a75.indd 65 06/08/10 18:2866 IDENTIDADE POLTICA, DESIGUALDADE E PARTIDOS BRASILEIROS Fbio Wanderley ReisNaturalmente, as transformaes estrutural-ecolgicas e comu-nicacionais das dcadas recentes no poderiam deixar de impactar tambm o plano da psicologia coletiva, gerando mecanismos de com-parao e frustrao h muito estudados pela sociologia como fonte do sentimento de injustia e fator de instabilidade e dando razo, em termos psicolgicos e no apenas objetivos, observao de Fer-nando Henrique Cardoso, quando presidente da Repblica, de que o Brasil no seria mais um pas subdesenvolvido, e sim um pas in-justo. Mas, apesar da incorporao eleitoral que acaba por mostrar-se inelutvel nas condies do difuso apoio convencional democracia na atualidade mundial, as decincias de todo tipo perpetuadas pelo resistente fosso social brasileiro condicionam de modo relevante os efeitos do processo geral na esfera poltica e partidria.Assim, parte importante da insatisfao popular, em vez de encon-trar canalizao poltico-institucional apropriada, pode servir sim-plesmente de combustvel na intensicao acentuada da violncia e da criminalidade comum. Mesmo nas suas manifestaes poltico-partidrias, contudo, evidente que o idealizado modelo de poltica ideolgica dicilmente poderia ser visto como ajustando-se, em par-ticular, aos mecanismos populistas que h muito operam no processo poltico do pas.PMDB, PSDB E PT De todo modo, as decincias de nosso substrato social desigual se traduzem tambm em claras decincias no processo de construo partidria, quando apreciado do ponto de vista do modelo de poltica ideolgica. certo, no deixamos de encontrar a percepo, por parte do establishment, de ameaas prprias da poltica ideolgica a surgirem no plano da dinmica partidria, como ocorreu, num quadro de ra-dicalizao que se intensicava, com o crescimento gradual do apoio eleitoral ao PTB de Getlio Vargas durante o perodo de 1945 a 1964. A ditadura militar de 1964 tratou de agir contra as ameaas percebidas, especialmente com a dissoluo dos partidos daquele perodo e sua substituio pelo bipartidarismo imposto de Arena e MDB. A inicia-tiva, contudo, revelou-se um erro de clculo. Sua conseqncia foi que a simplicao das opes eleitorais se ajustasse bem aos simplismos da viso poltica das parcelas populares majoritrias do eleitorado ca-racterstica do populismo e, ao contrrio do esperado pelos men-tores do regime militar, favorecesse o partido de oposio, o MDB, a partir do momento em que as vicissitudes do regime lhe permitiram transmitir, em 1974, uma mensagem armativa de feio popular.As manobras seguintes do regime, como se sabe, ensejaram novas mudanas do quadro partidrio, em que se esfacelou o singular recur-03_Fabio Reis_87_60a75.indd 66 06/08/10 18:2867 NOVOS ESTUDOS87 JULHO 2010so eleitoral que o MDB chegou a representar. Tais mudanas atingiram seu pice j bem mais tarde, em 1988, quando se dividiu o PMDB, herdeiro direto do MDB, com a criao do PSDB. Mas o quadro geral alterado permitiu o que foi, sem dvida, a grande novidade na histria partidria brasileira, o aparecimento do PT. A novidade consistiu na combinao indita que o partido conseguiu realizar de dois traos: de um lado, como conseqncia da gradual armao da forte liderana sindical de Lula e do poder catalisador que veio a ter junto a outros se-tores comprometidos com idias progressistas, nos movimentos so-ciais e na Igreja, o partido veio a representar singular promessa de atu-ao orientada por princpios ticos e ideolgicos (em particular certo compromisso redistributivo), capaz de conjugar militncia aguerrida com disciplina partidria; de outro lado, o simbolismo popular difuso ligado gura de Lula trazia um elemento propcio insero bem-sucedida no jogo eleitoral, com seu inevitvel componente populista nas condies gerais do Brasil.As modicaes dramticas no cenrio internacional acarretadas pela derrocada mundial do socialismo tornaram possvel que a atrao pessoal exercida por Lula e a militncia aguerrida do PT viessem a en-sejar um experimento impensvel no quadro anterior de Guerra Fria: a chegada presidncia da Repblica, em 2002, do lder operrio de um partido de esquerda, de programa socializante e retrica radical.No obstante os temores inicialmente suscitados no establishment, que cercaram a eleio daquele ano da ameaa de crise catastrca, esse evento acabou por representar uma oportunidade singular de apren-dizado geral e um teste decisivo para a democracia brasileira, permi-tindo seu acesso a um novo patamar institucional. Parte importante do aprendizado realizado foi o de moderao e equilbrio por parte de Lula e do PT, substituindo as propostas socialistas originais por polticas sociais de orientao social-democrtica conjugadas com a continuidade de polticas econmico-nanceiras austeras. As origens ideolgicas do PT levaram, esquerda, no s a cobranas baseadas na viso equivocada de que, com a moderao ocorrida, no teramos tido um teste autntico de nossa democracia (que dependeria, nessa tica, da aposta obviamente precria de que a democracia viesse a ser o en-quadramento institucional de um governo propriamente revolucio-nrio e sobrevivesse a ele...); tais origens esto tambm claramente subjacentes arrogncia ideolgica que se transvestiu no tosco rea-lismo da compra de apoio parlamentar desvendado na grande crise de 2005, na qual a prpria imagem de apego a princpios e compromisso tico do partido se viu comprometida.As diculdades da resultantes colocaram em xeque o processo indito de construo institucional na faixa partidria que a mescla petista parecia envolver. Seguiu-se o afastamento, em grau importan-03_Fabio Reis_87_60a75.indd 67 06/08/10 18:2868 IDENTIDADE POLTICA, DESIGUALDADE E PARTIDOS BRASILEIROS Fbio Wanderley Reiste, entre o partido como tal, submetido a cises e defeces, e a lideran-a pessoal de Lula, que, tendo tido certamente seu pior momento na crise de 2005, terminou por reeleger-se com grande votao para um segundo mandato e por alcanar altssimos nveis de popularidade na esteira dos xitos da poltica social e econmica. Tais xitos culminam mesmo na sbita elevao do status do pas na cena mundial, impul-sionada pela dinmica econmica propcia j de h algum tempo, mas sem dvida incorporando a imagem de Lula como fator coadjuvante.DEMOCRACIA E REDISTRIBUIO: BRASIL E AMRICA LATINADois aspectos podem ser destacados como especialmente signi-cativos nessa situao. O primeiro o mencionado fortalecimento institucional da democracia brasileira. Dicilmente se poderia exage-rar, mesmo pondo de lado os xitos indicados, a importncia de uma presidncia PT/Lula que chega ao m do segundo mandato num qua-dro de normalidade institucional. Naturalmente, dado o nosso longo pretorianismo e o protagonismo h muito exercido pelas foras arma-das, a questo decisiva aqui a da domesticao institucional dos militares e de at que ponto ela se ter cumprido cabalmente. Acaba-mos de ter, com a retomada da discusso em torno da Lei de Anistia de 1979 a propsito do III Programa Nacional de Direitos Humanos e o empenho do governo em aplacar a insatisfao exibida por chefes mi-litares, clara indicao de que o assunto no se encontra inteiramente resolvido. Contudo, mesmo se o trato com os militares persiste como algo delicado para o governo em circunstncias em que a memria dos pesados custos da longa ditadura de 1964 ainda est bem viva, nada parece justicar a idia de que tenhamos uma crise militar efetiva, ou temores anlogos aos que marcavam com freqncia o perodo preto-riano de nossa histria recente: no h como cogitar a srio de golpe militar, e a denitiva insero democrtica das foras armadas no qua-dro poltico-institucional brasileiro, com a superao do complexo de sublevao que elas compartilhavam com outros setores de nossas elites, parece no ser seno questo de tempo.Seja como for, temos aqui algo que subsiste como relevante nos embates da atual cena poltica brasileira, dizendo respeito a como lidar com a memria da ditadura e, em particular, com o tema da anistia e dos esforos de certos setores para obter a reviso judicial da lei corres-pondente e, assim, possibilitar a punio dos envolvidos nos crimes da represso, especialmente a tortura. A questo principal que o pro-blema encerra o equilbrio a ser alcanado entre o apego a um realis-mo necessrio superao dos conitos que produziram a ditadura e se aguaram com ela, de um lado, e, de outro, o empenho normativo de fazer justia. Como elaborado por alguns, especialmente Paulo Bros-03_Fabio Reis_87_60a75.indd 68 06/08/10 18:2869 NOVOS ESTUDOS87 JULHO 2010sard em artigo de jornal que circulou no incio de 2010 na internet (Anistia irreversvel), o objetivo da anistia, em vez de fazer justia, foi o de pacicar o pas, criando condies propcias implantao e eventual consolidao da democracia. Essa perspectiva convergente com anlises de cientistas sociais sobre o processo de transio de-mocracia na Amrica Latina e em outras partes, que recomendavam o reconhecimento realista das assimetrias de poder e destacavam, em especial, a necessidade de acomodar os interesses da corporao mili-tar como forma de tornar a transio efetivamente possvel.No debate corrente sobre a Lei de Anistia, porm, esse nimo rea-lista tem sido substitudo, nos setores de opinio de esquerda, pelo problemtico apelo contraposio entre crime poltico e crime comum, em que a idia de crime poltico acaba por legitimar as aes daqueles que, por terem na cabea certa idia que presumem permi-tir organizar melhor o Estado e a sociedade, se sentem autorizados a recorrer violncia. Apesar da tendncia da imprensa a tratar s vezes as vtimas da ditadura como opositores do regime que pegaram em armas, claro que a ditadura, com seus crimes inequvocos e hedion-dos, se confrontou tambm com uma cultura de violncia que havia tempos vinha se difundindo, marcada pela romntica aceitao da violncia em nome de objetivos polticos supostamente nobres (uma ltima violncia para por m violncia sistmica...), sob a inun-cia de idias marxistas ou por motivos de inspirao at diretamente religiosa. Mas pode-se ver tambm o realismo a operar em surdina, por assim dizer, mesmo na posio ansiosa por fazer justia. Pois a disposio de caa aos torturadores que subsiste faz vista grossa para o fato de que eles eram, anal, pau mandado dos chefes maiores do regime ditatorial, que no se procurou levar ao banco dos rus. O que acaba convergindo com a hipocrisia contida na famosa manifestao em que Pedro Aleixo, opondo-se ao Ato Institucional n 5 mas evi-tando enfrentar-se com os chefes militares, declarava que o motivo de preocupao eram as arbitrariedades que viriam no do presidente da Repblica, mas do guarda da esquina.Como quer que seja, no obstante as reservas que talvez se justi-quem quanto timidez da justia brasileira sob a ditadura, cabe ver com bons olhos, em perspectiva mais ampla sobre a dinmica poltica do pas, as decises do Judicirio que tm preservado a simetria paci-cadora da Lei de Anistia ainda que cumpra reconhecer, sem dvida, que os fatos do sombrio perodo ditatorial de nossa histria recente devem ser desvendados e trazidos ao conhecimento de todos.Quanto ao segundo aspecto signicativo acima anunciado com respeito ao panorama poltico atual, ele se refere nova forma adqui-rida pela presena da questo social no processo poltico-eleitoral do Brasil. Naturalmente, a questo social se faz presente h tempos, 03_Fabio Reis_87_60a75.indd 69 06/08/10 18:2870 IDENTIDADE POLTICA, DESIGUALDADE E PARTIDOS BRASILEIROS Fbio Wanderley Reisdesde que o fosso social herdado da escravido comeou a combinar-se com a mudana social, a concentrao da populao nas cidades e o grande crescimento do eleitorado. Durante muito tempo, porm, o resultado dessas mudanas em termos poltico-eleitorais foi a forma clssica de populismo, caracterizada, como nas anlises de Torcuato di Tella, pelo apelo ao povo por parte de lideranas de elite e conten-do claro componente fraudulento, que se integrava como contraponto no quadro geral de instituies frgeis e pretorianismo.Agora, talvez possvel continuar a falar de populismo, ou ver o caso de Lula como parte de uma nova onda populista na Amrica Latina, que alguns identicam em casos como o dos Kirchner, na Ar-gentina, e os de Hugo Chvez (Venezuela), Evo Morales (Bolvia) e Rafael Correa (Equador). Mas problemtico separar aquilo que jus-tique a carga negativa da idia de populismo, de um lado, e, de outro, a simples operao da democracia num contexto de desigualdade e de massas material e educacionalmente carentes. O que temos visto, no Brasil e em pases como Bolvia, Venezuela e Equador, marcados estes ltimos por turbulncias recentes, tende a corroborar algo que a sociologia poltica vem salientando de novo com fora: se a demo-cracia chega a operar de modo a incorporar as maiorias populacionais, ela se torna fatalmente redistributiva. Os dados mostram redistribui-o efetiva nos pases em questo, o Brasil includo (e surpreenden-temente, como tm revelado as pesquisas do Latinobarmetro, com apoio crescente democracia nos trs pases vizinhos, no obstante as turbulncias). Em nosso caso, de todo modo, o lulismo, combinan-do simbolismo popular e empenho redistributivo, resultou em algo indito nas disputas presidenciais, tendendo a caracterizar o processo eleitoral de maneira mais geral: a intensa correlao, que transpareceu com nitidez especial na eleio de 2006, entre o apoio eleitoral a um candidato ou outro e a posio socioeconmica dos eleitores com as projees regionais dessa correlao. No casual, naturalmente, que o tema da poltica social se tenha imposto de forma saliente na campanha daquele ano, e prometa continuar a ser um tema de decisiva relevncia nas disputas futuras.UM NICO CENTRO SOCIAL-DEMOCRATA?As coisas so incertas, porm, quanto ao aspecto da eventual insti-tucionalizao partidria. A alternativa realisticamente concebvel ao modelo idealizado de poltica ideolgica que tem predominado en-tre ns a de um sistema partidrio em que a percepo desinformada e difusa dos interesses em jogo permita, mesmo se inuenciada por fatores personalistas e esprios do ponto de vista daquele modelo, a identicao estvel com alguns partidos, podendo assim servir de 03_Fabio Reis_87_60a75.indd 70 06/08/10 18:2871 NOVOS ESTUDOS87 JULHO 2010suporte a polticas orientadas por perspectiva de longo prazo. Pes-quisas sobre identicao partidria no Brasil tm mostrado que ela no ocorre seno numa minoria do eleitorado (cerca de 35% dele em 2002), incluindo proporo aprecivel da minoria sosticada e politi-camente atenta. Isso pode ser comparado, por exemplo, com nmeros relativos aos Estados Unidos: informaes do portal Rasmussen Re-ports de meados de 2009 mostravam que 36,8% dos adultos estadu-nidenses se consideravam democratas e 33,3% se diziam republicanos; sem embargo das oscilaes nas propores de identicados com um partido ou outro ou de independentes, o total de identicados gira h anos, naquele pas, em torno dos 70%.Por outra parte, pesquisas sistemticas revelam com abundncia os matizes envolvidos nas relaes entre as identicaes partid-rias, de um lado, e os debates programticos ou as posies a serem adotadas em circunstncias diversas, de outro. J o caso clssico dos partidos socialistas originalmente revolucionrios instrutivo, pois a soluo representada pelo partido para o problema da identidade pessoal de seus membros acaba por preponderar sobre os objetivos instrumentais da ideologia revolucionria e por dar a esta ltima uma feio ritualstica que permite a convivncia pragmtica com o ca-pitalismo. Mas pesquisas experimentais recentes nos Estados Unidos mostram, na verdade, o componente propriamente irracional das identicaes partidrias. Elas revelam, por exemplo, que as pessoas identicadas com um dos dois grandes partidos tendero a perceber suas prprias posies sobre um assunto como sendo expressas pelo candidato de seu partido mesmo quando ele se ope a ela sem am-bigidades e o candidato do outro partido tem posies inequivoca-mente mais prximas; ou que as simpatias ou antipatias ditadas pela identicao partidria fazem que os efeitos de informao delibera-damente falsa sobre guras ligadas a um partido ou outro persistam, na avaliao das pessoas, mesmo depois de desvendada com toda a clareza sua falsidade.Mas velhos dados de pesquisas brasileiras referidos ao confronto entre MDB e Arena durante o regime autoritrio de 1964 so tam-bm de interesse, mostrando com nitidez, na simplicidade articial do bipartidarismo imposto, os limites de consideraes programticas relativas a questes diversas, e dando at a aparncia de banalidade s constataes permitidas. Assim, nos casos em que as pessoas, de maior ou menor informao, declaravam identicar-se com um parti-do ou outro, a congruncia ou a incongruncia percebida por elas entre as suas posies pessoais e as dos partidos sobre os temas suposta-mente quentes do momento era quase inteiramente irrelevante no condicionamento de sua deciso de voto. Quer atribussem Arena, por exemplo, posio contrria ou a favor de eleies populares diretas 03_Fabio Reis_87_60a75.indd 71 06/08/10 18:2872 IDENTIDADE POLTICA, DESIGUALDADE E PARTIDOS BRASILEIROS Fbio Wanderley Reispara os cargos polticos, quer tal posio correspondesse ou no que declaravam ser a sua prpria, quer simplesmente desconhecessem a posio do partido a respeito, os eleitores estudados concentravam maciamente seus votos no partido de sua preferncia, fosse MDB ou Arena e s entre os que no declaravam identicao com algum dos partidos que temas diversos produziam disperso no voto.Tudo isso deixa ver a fora da identicao partidria, que conforma vigorosamente ao ponto da irracionalidade as disposies polti-cas em contextos diferenciados. Mas o que sugerem os dados brasilei-ros citados talvez especial. Se nos outros casos se pode falar de longa efervescncia ideolgica em torno de partidos socialistas ou da atual guerra cultural nos Estados Unidos, de que os partidos tm sido ato-res destacados, no caso de Arena e MDB trata-se de mero artifcio ins-titucional recm-inventado por uma ditadura. E a sugesto de que fcil, de certo modo, produzir a identicao partidria e seus efeitos: basta que o sistema partidrio se superponha adequadamente (como providenciaram inadvertidamente os ditadores) ao fosso social do pas e simplicidade com que surge na conscincia popular.A grande pergunta a respeito da eventual consolidao de nosso sistema partidrio a de se e quando vir a produzir-se a identicao partidria estvel na massa dos eleitores menos envolvidos politica-mente (os cerca de 65% no identicados que indicavam as pesquisas de 2002), independentemente do carter menos ou mais sosticado ou ideolgico dessa identicao. Condio crucial para isso seria a estabilidade da oferta partidria, que tem sido impedida nas trope-lias de nossa histria poltica.Em termos da perspectiva proposta por Pizzorno, esboada no in-cio deste artigo, o caso brasileiro envolve especicidades signicati-vas. Questes de igual-diferente relativas ao enfrentamento de etnias e culturas jamais tiveram presena relevante na vida poltica do pas. No obstante a importncia das caractersticas raciais como fator de estraticao social, diferenas raciais como tal, parte os equvocos de certo movimento negro brasileiro, no so necessariamente o funda-mento de diferenas culturais e tnicas. De toda forma, as identidades politicamente relevantes so claramente, em nosso caso, as relativas a questes de igual-desigual. E, no jogo entre os fatores mobilizadores e desmobilizadores do legado escravista e de sua superao na dinmica socioeconmica, a indagao se viremos a ter o jogo poltico demo-crtico marcado pela convivncia sadia que Pizzorno aponta entre, de um lado, a divergncia, como estmulo necessrio participao e poltica virtuosa que v alm do prossionalismo poltico negativo, do clientelismo e da mera busca do ganho privado, e, de outro lado, a possibilidade de construo pragmtica de consenso nas sucessivas esquinas da conjuntura em que sempre vivemos.03_Fabio Reis_87_60a75.indd 72 06/08/10 18:2873 NOVOS ESTUDOS87 JULHO 2010 de se esperar que a estabilidade institucional bsica que aparen-temente alcanamos, com a superao da feio mais abertamente pretoriana do processo poltico (mesmo se a superao real do fosso social continua a exigir larga perspectiva de tempo), venha a permitir o avano quanto institucionalizao partidria nos termos modestos sugeridos quanto natureza das identicaes partidrias. O ltimo par de dcadas pareceu corroborar a expectativa: o que a experincia do PT teve de singular se conjugou com o repetido enfrentamento eleito-ral com o PSDB, de forma a sugerir que se viessem a criar em torno dos dois partidos as identicaes estveis que eventualmente redundas-sem num sistema partidrio simplicado e consolidado, com, entre outras coisas, a neutralizao do xito at aqui obtido pela postura excessivamente clientelista e pragmtica que orienta o fragmentrio enraizamento regional do PMDB. Mas, se a crise petista ensejou que o PT acabasse, em ampla medida, cedendo o passo ao lulismo, ela resul-tou tambm, ironicamente, em crise do PSDB: sucessivas derrotas em eleies para a presidncia, certo vezo oligrquico da dinmica interna que transforma a escolha de candidatos presidenciais em ameaa co-eso partidria, falha em encontrar o discurso alternativo a um lulismo inado por avassalador apoio popular, o que impele o candidato pes-sedebista a presidente na eleio de 2010, Jos Serra, a pouco menos do que se declarar ele prprio lulista... E o xito no enquadramento partidrio de nossa democracia parece requerer que venhamos a ter novidades signicativas em relao ao cenrio atual.H nesse cenrio, contudo, aspectos que podem talvez ser aprecia-dos de maneira mais positiva. Um deles, que tem sido salientado na imprensa, o de que o PSDB, apesar da diculdade de opor-se com e-ccia ao lulismo, mantm a perspectiva de continuar a controlar gover-nos estaduais importantes, e mesmo a hiptese de derrota do partido na disputa presidencial de 2010 no tem por que ser lida como redun-dando em desastre irremedivel para ele. Por outro lado, no obstante os srios percalos da experincia do PT como partido peculiar entre ns e as reservas que o personalismo da liderana de Lula possa jus-ticar, a fora mesma adquirida pelo lulismo, em sua conexo com a penetrao do processo poltico-eleitoral pela questo social, pode ser avaliada como ajudando a trazer uma feio social-democrtica arena em que devero desdobrar-se os principais enfrentamentos poltico-partidrios no pas. A ampla unio de foras progressistas no MDB durante a ditadura e a fora eleitoral da resultante para o par-tido sugerem a possibilidade terica de uma espcie de grande MDB social-democrtico. Se esse caminho se mostrou pouco vivel, e se sur-ge mesmo como indesejvel na perspectiva de uma dose saudvel de divergncia, com certeza positivo que, sucedendo-se instabilidade associada com extremismos e com a confrontao de posies radica-03_Fabio Reis_87_60a75.indd 73 06/08/10 18:2874 IDENTIDADE POLTICA, DESIGUALDADE E PARTIDOS BRASILEIROS Fbio Wanderley Reislizadas, venha talvez a ser possvel encontrar as condies da estabi-lidade institucional, como nas experincias especialmente europias do ps-Segunda Guerra Mundial, num espao de disputas denido em termos social-democrticos. Ele se ajusta no s proposta que deu o prprio nome ao Partido da Social-Democracia Brasileira, mas tambm posio para a qual o duro aprendizado do PT eleitoralmen-te vitorioso e no exerccio do governo o fez reuir.REFORMA POLTICAA questo geral das perspectivas de estabilidade poltico-institu-cional leva ao tema da reforma poltica, que se associa, em seu carter recorrente, ao da corrupo em suas faces variadas. Sucintamente, cabe destacar duas proposies a respeito.A primeira refere-se ao papel das normas e a sua dupla feio, quer como componentes culturais de um contexto viscoso e resiliente (o que tenho chamado o institucional como contexto), quer como ob-jetos passveis de manipulao deliberada no nvel da aparelhagem institucional-legal (o institucional como objeto). Em vez da postura edicante que conta com uma espcie de apropriada converso cole-tiva, no podemos esperar ser ecazes em prazos relevantes seno na ao dirigida ao institucional como objeto ou seja, na elaborao e na implementao rigorosa de leis que alterem as expectativas dos atores e lhes afetem o clculo. A aposta a de que assim possamos eventualmente ver cumprir-se o preceito sociolgico segundo o qual ex-pectativas que se reiteram e corroboram acabam por transformar-se em prescries ou normas, com a eventual mudana em direo pro-pcia da cultura mesma e do contexto que representa. Naturalmente, as chances de que os fatos corroborem as expectativas propcias au-mentam com a divergncia de que fala Pizzorno e com a convivncia vigilante de identidades partidrias em confronto. Do ponto de vista especco da reforma poltica, de todo modo, penso que, contra o con-vite passividade que encontramos em certos analistas, cabe extrair do realismo da aposta no condicionamento do clculo dos agentes e de suas expectativas o nimo de experimentar com dispositivos legais como os relativos a delidade partidria, clusulas de barreira, regras sobre coligaes, adequada combinao de princpios majoritrios e proporcionais, listas partidrias fechadas ou exveis...A segunda proposio vincula a perspectiva empenhada na reforma a certo diagnstico da natureza da crise tica que estaramos vivendo no momento, com a intensa corrupo poltica. Esse diagnstico v a intensicao da corrupo como conseqncia da democratizao do pas: cento e trinta milhes de eleitores num Brasil desigual signicam peso poltico decisivo para os menos iguais e, supe-se, correspon-03_Fabio Reis_87_60a75.indd 74 06/08/10 18:2875 NOVOS ESTUDOS87 JULHO 2010dente deteriorao intelectual e tica na qualidade da representao poltica. Mas, parte as muitas fantasias sobre a qualidade intelectual e tica de nossa velha representao oligrquica, clara a distoro en-volvida em omitir, a propsito dos nossos problemas tico-polticos de hoje, a longa tradio de estado cartorial, clientelismo e quejandos que vicejava como parte da poltica oligrquica (e cujos mecanismos subsistem e moldam de muitas formas o presente) e destacar, ao re-vs, a democratizao que solapa essa poltica justamente ao criar potenciais focos divergentes de identicao e mobilizao que gra-dualmente se atualizam. O elitismo do diagnstico desatento aos pesados traos estruturais negativos do nosso ponto de partida e aos difceis constrangimentos que este segue impondo ao jogo poltico como conduto inevitvel de possveis avanos.Umltimoponto.Avaliaesrecentesdaconjunturapoltica brasileira tm salientado a feio de Estado-amlgama que carac-terizaria o governo Lula, no qual um Estado ativo trata de envolver as foras variadas da sociedade civil e supostamente lhes compromete a autonomia. Mas, nas condies do nosso fosso social e de precrias tradies institucionais, patente o risco de que o jogo que se decidis-se no nvel da sociedade civil como tal redundasse, como sempre, em transpor sem mais para o plano das polticas do Estado as assimetrias profundas que a caracterizam. Em outras palavras, no h como esca-par de dose importante de paternalismo como trao distintivo do Es-tado democrtico, que no ser aquele forado a limitar-se a responder capacidade diferencial de presso de interesses de poder desigual. Ora, como os xitos da social-democracia neocorporativa demons-traram apesar das vacilaes produzidas pela onda recente de fun-damentalismo de mercado, j agora em retirada diante de crises cada vez maiores , esse trao se liga com a necessria acomodao dos interesses diversos pela ao do Estado, ou mesmo, em alguma me-dida, no mbito do prprio Estado. Note-se que, no caso brasileiro, a desigualdade se reete, parte a tese da perda de qualidade da repre-sentao, na extrao social dos membros do prprio Legislativo, no obstante sua escolha por meio de eleies assim como se reete, em surdina mas de modo bem claro, no funcionamento de um Judicirio composto por membros doutos, que supostamente decidiro impar-cial e isentamente com base na lei. Cumpre talvez procurar assegurar que nosso processo eleitoral traga mais nitidamente a caracterstica de amlgama socialmente integrador ao Legislativo, que possa assim agir com ecincia de forma a neutralizar certo ativismo frequente-mente torto do Judicirio a que nos vimos habituando.Fbio Wanderley Reis cientista poltico e professor emrito da Universidade Federal de Minas Gerais.Rece bido para publi caoem 8 de junho de 2010.NOVOS ESTUDOSCEBRAP87, julho 2010pp.61-7503_Fabio Reis_87_60a75.indd 75 06/08/10 18:28