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Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 29 • Setembro de 2007 Pág. 24 Jornal da UFRJ http://www.jornal.ufrj.br Lúcio Costa Págs. 12 a 14 Págs. 12 a 15 A Universidade ... Fugindo da escola Págs. 10 e 11 Págs. 22 e 23 Além do vestibular Págs. 16 e 17 O debate acerca da democratização do acesso ao Ensino Superior está em pauta desde 2003, com a introdução do sistema de cotas. De lá para cá, em meio à polêmica, novas ações afirmativas são pensadas. Hoje, quatro anos depois das primeiras experiências, a expressividade de seus resultados consolida modelos e possibilita o ingresso de camadas populares na universidade. Ingressar no Ensino Superior talvez seja um dos sonhos de grande parte dos jovens brasileiros. No entanto, parcela cada vez maior de estudantes abandona-o e não se forma. Considerada polêmica, por ser relacionada ao fracasso das instituições, a evasão é pouco discutida no meio acadêmico. Suas causas se confundem com o próprio sistema de Ensino, além, é claro, de outros fatores. A América de Gabo Cem anos de solidão completa 40 anos e segue contemporâneo graças à magia da palavra e de sua metáfora sobre a América Latina. Personalidade Pensador da identidade brasileira do passado, do presente e do futuro O momento, mais do que nunca, impulsiona o debate acerca da universidade. Diante do acirramento de divergências em face ao processo de discussão da proposta de Plano de Reestruturação e Expansão da UFRJ (PRE), o Jornal da UFRJ apresenta, com a devida licença jornalística entrevista, insólita, com três intelectuais essenciais para a compreensão dos caminhos da Educação e do Ensino Superior no Brasil: Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes. Págs. 18 e 19 É hora de mudar Discussões da proposta de Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ (PRE) incitam comunidade acadêmica a refletir sobre a necessidade de transformações na estrutura institucional. Florestan Fernandes Darcy Ribeiro Anísio Teixeira

Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ ...(PPGHC), do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, tem como proposta principal investigar esse

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Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 29 • Setembro de 2007

Pág. 24

Jornal da

UFRJhttp://www.jornal.ufrj.br

Lúcio Costa

Págs. 12 a 14

Págs. 12 a 15

A Universidade ...

Fugindo da escola

Págs. 10 e 11

Págs. 22 e 23

Além do vestibular

Págs. 16 e 17

O debate acerca da democratização do acesso ao Ensino Superior está em pauta desde 2003, com a introdução do sistema de cotas. De lá para cá, em meio à polêmica, novas ações afirmativas são pensadas. Hoje, quatro anos depois das primeiras experiências, a expressividade de seus resultados consolida modelos e possibilita o ingresso de camadas populares na universidade.

Ingressar no Ensino Superior talvez seja um dos sonhos de grande parte dos jovens brasileiros. No entanto, parcela cada vez maior de estudantes abandona-o e não se forma. Considerada polêmica, por ser relacionada ao fracasso das instituições, a evasão é pouco discutida no meio acadêmico. Suas causas se confundem com o próprio sistema de Ensino, além, é claro, de outros fatores.

A América de Gabo

C e m a n o s d e s o l i d ã o completa 40 anos e segue contemporâneo graças à magia da palavra e de sua metáfora sobre a América Latina.

Personalidade

Pensador da identidade brasileira

do passado, do presente e do futuroO momento, mais do que nunca, impulsiona o debate acerca da universidade. Diante do acirramento de divergências em face ao processo de discussão da proposta de Plano de Reestruturação e Expansão da UFRJ (PRE), o Jornal da UFRJ apresenta, com a devida licença jornalística entrevista, insólita, com três intelectuais essenciais para a compreensão dos caminhos da Educação e do Ensino Superior no Brasil: Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes.

Págs. 18 e 19

É hora de mudarDiscussões da proposta de Programa de

Reestruturação e Expansão da UFRJ (PRE) incitam comunidade acadêmica a refletir sobre a necessidade de transformações na estrutura institucional.

Florestan FernandesDarcy Ribeiro

Anísio Teixeira

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2 Setembro•2007UFRJJornal da

Reitor: Aloísio Teixeira – Vice-Reitora: Sylvia da Silveira Mello Vargas – Pró-Reitoria de Graduação – PR-1: Belkis Valdman – Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR-2: Ângela Maria Cohen Uller – Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR-3: Carlos Antônio Levi da Conceição – Pró-Reitoria de Pessoal – PR-4: Luiz Afonso Henriques Mariz – Pró-Reitoria de Extensão – PR-5: Laura Tavares Ribeiro Soares – Superintendente de Graduação SG-1: Eduardo Mach Queiroz – Superintendente de Ensino SG-2: Nei Pereira Junior – Superintendente Administrativa SG-2: Regina Dantas – Superintendente SG-3: Célia Alves Soares Loureiro – Superintendente SG-4: Roberto Antônio Gambine Moreira – Superintendente SG-5: Isabel Cristina Azevedo – Superintendência Geral de Administração e Finanças – SG-6: Milton Flores – Chefe de Gabinete: João Eduardo do Nascimento Fonseca – Forum de Ciência e Cultura: Carlos Antônio Kalil Tannus – Superintendente do FCC: Marcos Maldonado – Prefeitura Universitária: Hélio de Mattos Alves – Escritório Técnico da Universidade – ETU: Maria Ângela Dias – Sistema de Bibliotecas e Informação/SiBI: Paula Maria Abrantes Cotta de Melo – Coordenadoria de Comunicação: Francisco Conte

Expediente

Fotolito e impressão – Newstec Gráfica e Editora – 25 mil exemplares

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAção mENSAl Do SERVIço DE joRNAlISmo ImPRESSo DA CooRDENADoRIA DE ComUNICAção DA UNIVERSIDADE FEDERAl Do RIo DE jANEIRo – Av. Pedro Calmon, 550 – Prédio da Reitoria – 2º andar – Gabinete do Reitor – Cidade Universitária – Ilha do Fundão – Rio de janeiro – Rj – CEP 21941-901 – Telefone: (21) 2598 1621 – Fax: (21) 2598 1605 – [email protected] – Supervisão Editorial: joão Eduardo Fonseca – Editor Chefe/Jornalista Responsável: Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE) – Pauta: Fortunato mauro e Francisco Conte – Reportagem: Bruno Franco, Coryntho Baldez, joana jahara, Rafaela Pereira e Rodrigo Ricardo – Projeto Gráfico: josé Antônio de oliveira – Editoração Eletrônica: Anna Carolina Bayer – Editora de Arte: mácia Carnaval – Ilustração: Anna Carolina Bayer, jefferson Nepomuceno, Patrícia Perez e Pina Brandi – Estagiária de Ilustração: Daniela Follador (EBA/UFRj) – Revisão: mônica Aggio – Estagiária de Jornalismo ECO/UFRJ: mônica Reis – Fotografia: marco Fernandes – Resenhas: Francisco Conte

Instituições interessadas em receber esta publicação, entrar em contato pelo e-mail [email protected]

Faces do terror

A violência dos atos terroristas estampa a capa dos jornais quase todos os dias. Declarando guerra às potências do Ocidente, o terrorismo

atual utiliza-se de estratégias específicas e recursos da globalização para medir forças com os grandes países. No entanto, esse é

um fenômeno recente. A trajetória dos atos terroristas esconde uma história de resistência e luta pelo poder.

Mônica Reisilustração Marco Fernandes

Internacional

De 15 e 18 de outubro, a Faculdade de Arqui-tetura e Urbanismo (FAU), da UFRJ, realizará a Semana da FAU 2007: subúrbios cariocas. O evento, que é aberto à comunidade acadêmica da UFRJ e de outras universidades, tem a inten-ção de refletir acerca da importância do tema, escolhido devido a sua relevância cultural para a composição do cenário da cidade, de forma que essa possa ser pensada em sua totalidade. Assim, a discussão não será balizada apenas pelos aspectos arquitetônicos e urbanísticos mas também pelas dimensões sociais e culturais dos bairros que formam os subúrbios do município do Rio de Janeiro.

Segundo Cristovão Duarte, professor do Programa de Pós-graduação em Urbanismo e diretor adjunto de Extensão da FAU/UFRJ, o tema é fruto de pesquisa realizada no site da uni-dade, na qual estudantes e professores puderam opinar sobre o que gostariam de pesquisar, pen-sar e refletir durante o encontro, e foi escolhido por ser um assunto pouco discutido, além de ter pouca visibilidade, ao contrário do que acontece com as zonas Sul e Central da cidade.

Duarte ressalta a diferença entre a conceitu-ação tradicional de subúrbio para a adotada no Rio de Janeiro. “O conceito tradicional define áreas periféricas com relação ao núcleo urbano principal das cidades, implicando relações de subordinação e dependência. Já a conceituação utilizada na capital carioca é de que o subúrbio deva estar condicionado às linhas ferroviárias”, explica o professor.

A sub-urbe (subúrbio) é a cidade que não está consolidada. Nesse sen-tido, vem sofrendo transformações, que na opinião de Duarte, decorrem do agravamento das condições de vida, da violência causada pela desigualdade social, do trânsito de veículos, da cidade que se desen-volve minimizando as condições de habitabilidade e do processo de favelização. “Com isso o subúrbio está deixando de ser o local do en-contro e da vizinhança. As cadeiras nas calçadas fazem parte dessas

Semana FAU discute subúrbio carioca

Vanessa Sol

relações que quase não existem mais”, enfatiza o pesquisador.

Além disso, a Semana da FAU 2007, pelas reflexões propostas em sua programação, pre-tende desestigmatizar o subúrbio, que hoje é visto de maneira excludente e depreciativa. “O subúrbio faz parte da cidade e, às vezes, parece que é invisível. É a cidade partida”, destaca Duarte.

A programação comporta quatro questões principais em relação ao subúrbio: O que é? Onde fica? Como surgiu? Para onde vai? A abertura do evento contará com a aula musical roda de samba “Subúrbios Cariocas” e da ma-ratona de projetos do Centro Acadêmico dos Estudantes da FAU (Cafau). Nos demais dias os participantes contarão com as mesas-redondas O subúrbio em questão, Patrimônio cultural dos subúrbios e com as palestras Patrimônio cultural dos subúrbios, Subúrbios e periferia: a ferrovia na construção da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Na opinião de Cristovão Duarte, quando se pergunta para onde vai o subúrbio, fala-se de futuro e de um projeto que está em constru-ção. Entretanto, ele prefere opinar acerca de um projeto de subúrbio que não seja apenas para ele, mas para toda a cidade e que seja de todos. “Espero que em um futuro próximo não precisemos falar de favela, subúrbio, mas de lugares igualmente bons e habitáveis, de locais de encontro e de troca, com condições de lazer e diversão”, ressalta o professor.

foto Cláudia Brack

Prezado editor:Durante a visita a Bienal do Livro no Rio

de Janeiro, tive a grata surpresa de adquirir um exemplar do Jornal da UFRJ. Excelente publicação, com matérias muito interessantes. Meu nome é Adriano Gomes, sou gerente de produtos da TAM Viagens e também trabalho como consultor pedagógico e professor na área de planejamento em Turismo e Agenciamento de Viagens para o Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial). Depois de ter formação nessa área, resolvi fazer uma pós-graduação em Política e Relações Internacionais na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Qual não foi minha surpresa ao

Cartas

descobrir que as matérias dadas aqui em São Paulo estão nas matérias dessa edição do jornal. Fiz questão de mostrar aos professores e colegas e gostamos muito do jornal. Gostaríamos de receber, se possível, as próximas edições.

Parabéns pela qualidade e pelos artigos.Desde já agradeço,

PS: escrevo na qualidade de representante dos alunos deste Curso na instituição.

Adriano Gomes Consultor e professor

da Universidade Senac - SP

11 de setembro de 2001, 8h46 da manhã. O primeiro avião bate na torre sul do World Trade Center (WTC), considerado símbolo do poder econômico norte-americano. Em meio a especulações sobre um possível acidente aéreo, um segundo avião se choca com a torre norte. A partir daquele momento, não havia mais dú-vidas: o mundo assistia pela televisão, extasiado, em tempo real, ao maior atentado da história.

De lá para cá, o termo “terrorismo” ganhou destaque nos noticiários de todo o mundo. Em nome dele, o Afeganistão foi invadido pelos Es-tados Unidos da América à procura de Osama Bin Laden, líder da rede Al-Qaeda e apontado como autor do ataque ao WTC. Meses depois, foi a vez do Iraque ser invadido e ter seu presidente, Saddam Hussein, deposto, julgado e condenado à forca. Dentre as acusações, o possível forneci-mento de armas de destruição em massa para terroristas. Em represália, grupos de resistência à invasão das forças aliadas comandam ataques freqüentes. Dessa forma, como entender as motivações de grupos que se utilizam ações violentas contra alvos não-específicos para de-fender suas idéias?

Estudar a natureza do terrorismo, sua tra-jetória e seu papel no cenário internacional é o objetivo do Grupo de Acompanhamento e Análise do Terrorismo Internacional (Gaati), inserido no âmbito do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (Tempo) do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC), do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, tem como proposta principal investigar esse fenômeno que, nas últi-mas décadas, entrou para a agenda das Relações Internacionais.

Sintetizando os trabalhos do grupo acerca desse tema, o The World Map of Terrorist Attacks (Mapa Mundial de Ataques Terroristas), exis-tente desde 2004 (disponível em www.tempo-presente.org), reúne reflexão teórica e material empírico coletado através do acompanhamento de imprensa sobre o assunto. A partir do fato, são

inseridos no mapa dados como data, localidade, tipo de atentado e grau de letalidade.

De acordo com Daniel Chaves, estudante de graduação em História e um dos 11 pesquisa-dores da equipe do Gaati, expor a produção sob a forma de um mapa visa a fácil manipulação. “Qualquer pessoa pode se interessar pelo mapa, porque ele é um mecanismo mais flexível do que a leitura de um livro. É interativo e permite ao leitor uma visão mais geográfica de como funciona a dinâmica do terrorismo”, explica o estudante. Além disso, a constante atualização – feita a cada 48 horas - é um dos pontos fortes do mapa, que conta com dados sobre atentados terroristas realizados a partir de 1991.

A reflexão teórica é determinante na ela-boração desse projeto, especialmente no que diz respeito às discussões sobre o conceito de terrorismo. É ela quem influencia o que será sinalizado no mapa. Porém, segundo Francisco Carlos Teixeira, ele não dá conta de toda a vio-lência existente nos dias atuais. “Em determina-do momento, discutiremos se vamos continuar colocando marcadores para o Iraque ou se ele já evoluiu para uma guerra civil, não pertencendo mais ao universo do terrorismo, mas sim ao dos conflitos”, exemplifica o pesquisador. Nesse sentido, o grupo está montando um novo pro-jeto, o Mapa de Conflitos Mundiais, levando em consideração os três modelos de conflitos contemporâneos: interestatais, intraestatais e intraestatais com intervenção estrangeira.

ConceitoAinda não há uma definição clara sobre o

que é terrorismo. A dificuldade central em sua conceitualização é a possibilidade de confundí-lo com o direito à legítima defesa. Nesse sentido, de acordo com Teixeira, qualquer ato militar violento contra um Estado que não seja através de guerra legitimamente declarada poderia ser caracterizado como terrorismo. “Isso seria um problema porque os cidadãos que pegarem em armas para defender seu país contra um ocu-

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Setembro•2007 3UFRJJornal da

InternacionalInternacional

pante estrangeiro poderão ser chamados de terroristas por esse invasor”, explica o professor. Dessa forma, a apropriação desse rótulo por uma das partes envolvidas em um conflito têm por objetivo deslegitimar possíveis resistências.

O peso político derivado desse conceito também é grande e prejudica uma defini-ção mais clara sobre o que é o terrorismo. Segundo Arthur Bernardes, mestrando do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e membro da equipe do Gaati, atribuir essa classificação a um grupo implica em graves conseqüências. “Pode-se ter atitudes que não existiriam em uma si-tuação normal, como a violação dos direitos civis e da liberdade em nome da segurança nacional e da ameaça terrorista a ser comba-tida”, afirma o pesquisador.

Assim, na tentativa de determinar que ti-pos de atividades estão inseridos no conceito de terrorismo, dois grupos têm se dedicado à discussão da questão de forma sistemática. No âmbito internacional, a Comissão de Atividades contra Terrorismo, da Organi-zação das Nações Unidas (ONU), procura uma definição a ser adotada por todos os países sig-natários de suas convenções, inclusive o Brasil. Porém, um outro debate, paralelo, se desenvolve no campo nacional, no Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, principal órgão referente à segurança pública no país. Por meio da convocação de advogados, so-ciólogos, políticos e militares, o governo federal ouviu diferentes opiniões acerca do tema. No entanto, não se chegou a nenhuma conclusão e uma resposta efetiva à pergunta “o que é terro-rismo?” ainda continua muito distante.

De forma genérica, segundo avaliação de Francisco Carlos Teixeira, o terrorismo poderia ser pensado como todo o ato violento contra instituições ou pessoas em uma ordem constitu-cional. Porém, isso abriria uma precedente grave. “Nesse caso, o crime organizado seria considera-do automaticamente como terrorismo”, explica o professor. Isso poderia gerar resistências por parte do governo brasileiro, por exemplo, uma

vez que ele não reconhece nenhum grupo ter-rorista no território nacional.

Trajetória clássicaA primeira menção ao termo “terror” se deu

com a Revolução Francesa. A chamada “Era do Terror”, liderada pelo jacobino Robespierre, foi marcada pelo uso sistemático da violência contra civis na tentativa de manter o poder estabelecido e a ordem revolucionária. Esse “terrorismo de estado” seria novamente utili-zado mais tarde, com os regimes totalitários durante a Segunda Guerra Mundial, sob uma nova justificativa: “limpar” todos os que eram considerados cânceres da sociedade, principalmente de acordo com a perspectiva nazi-fascista.

A trajetória do terrorismo pode ser assi-nalada por quatro fases distintas. A primeira delas, localizada entre 1890 e 1914, é carac-terizada por seu cunho libertário, anarquista e populista. Seus grupos patrocinavam ações contra indivíduos e pequenos grupos, cujos alvos em potencial eram chefes de Estado. Seu caráter pedagógico e a busca pelo apoio da opinião pública impediam que essas ações tivessem alvos coletivos.

Uma característica peculiar desses primei-ros diz respeito à forma como se definiam. De acordo com Arthur Bernardes, se diziam aber-tamente terroristas: “eles não tinham pudor em afirmar que usavam desse expediente para matar aqueles que simbolizavam o regime considerado tirano”. Ainda segundo Bernar-des, o termo “terrorismo” ganhou conotação pejorativa a partir da Segunda Guerra Mun-

dial, com o surgimento dos movimentos de libertação nacional. “Esses movimentos,

tidos como terroristas pelas metrópoles, mas que lutavam para se estabelecer no poder, começaram a associar o terror à violência legítima. Daí surgem outros rótulos para se definirem, com terminologias militares, como exércitos de libertação e similares”, informa o pesquisador.

ovimentos de cunho predominantemente anti-colonial constituem a segunda fase do terrorismo, pós-Segunda Guerra (de 1945

a 1974). Incorporados aos processos de descolonização, os grupos de li-

bertação nacional têm grande incidência na África e na Pa-

lestina, onde a resistência à Israel permite o sur-

gimento de organiza-ções como o Fatah,

do ex-primeiro ministro da Au-toridade Palesti-na, Yasser Arafat. É também nesse

período, de aparição de formas nacionais de resistência, que surge o ETA (Pátria Basca e Liberdade, do basco Euzkadi Ta Askatasuna), grupo que luta pela independência do País Basco dos estados francês e espanhol. Além disso, as ações do IRA (Exército Republicano Irlandês, do inglês Irish Republican Army), se fortalecem nesse período. Fundado nos anos de 1920, o grupo católico tinha por objetivo a anexação da Irlanda do Norte à República da Irlanda, separando-a assim do Reino Unido.

Paralelamente ao terrorismo de cunho na-cionalista, dá-se início a terceira fase, política, que se fortalece entre 1975 e 1985. A partir da Guerra Fria, grupos terroristas definidos por seus ideais extremistas de esquerda e direita ganham notoriedade, como as Brigadas Ver-melhas, na Itália, e o Exército Vermelho, no Japão. Alguns estados, como Coréia do Norte e Líbia, começam a participar ativamente do terrorismo, oferecendo-o apoio logístico e financeiro.

O NeoterrorismoÉ nesse contexto de Guerra Fria que a

União Soviética invade o Afeganistão, em 1979. Os Estados Unidos, em conjunto com as Forças Especiais Britânicas, apoiados pela Arábia Saudita e pelos serviços secretos do Paquistão e da Jordânia, criam campos de trei-namento de muçulmanos para a luta contra os soviéticos. Desses esforços surge a Al-Qaeda, inicialmente uma entidade de intermedia-ção dos combatentes treinados nos campos afegãos – os mujjahidin – posteriormente transformando-se em inimiga dos EUA.

Nessa inversão de papéis, o fim da União Soviética, em 1991, teve peso decisivo. Des-mobilizados da luta contra os russos no Afe-ganistão, os movimentos mujjahidin entram em fase de desorganização. Ao mesmo tempo, de acordo com Francisco Carlos Teixeira, a Guerra do Golfo faz com que esses grupos enxerguem nos Estados Unidos seu principal inimigo. “Durante o conflito, ao massificar sua presença na Arábia Saudita através de bases militares, os Estados Unidos levaram para a terra santa islâmica tudo o que seria o pequeno mundo americano, o comportamento ocidental. Isso fez com que os grupos afegãos identificas-sem no Ocidente o seu principal inimigo, por macular a terra santa”, explica o professor.

O primeiro atentado contra o WTC, em 1993, marca o início dessa quarta fase do ter-rorismo. O chamado neoterrorismo – presente nos dias atuais - tem caráter internacional, fu-gindo do âmbito do Estado-Nação. Seu principal objetivo é diminuir a influência das potências ocidentais na política dos países árabes. Para tanto, o ideal seria o estabelecimento do regime califado no mundo islâmico, em substituição ao

Estado supostamente corrompido pelos interesses estrangeiros.

Organizados em pequenas células terroristas, esses grupos atacam os inimigos de forma maciça, indiscrimi-nando e potencializando o número de vítimas. Acompanhando a globa-lização, os agentes do neoterrorismo não estão submetidos à fronteiras e utilizam amplamente os recursos midiáticos que se encontram à sua disposição.

De acordo com Élson Lima, gra-duando em História pela UFRJ e pesquisador do Gaati, a importância dos meios de comunicação reside jus-tamente no fato de eles terem apelo de massa, imediato. “O terrorismo é um fenômeno que opera no espaço públi-co e seus agentes conseguem perceber o poder da mídia em explorar um fato. Os meios de comunicação permitem que o atentado seja focado imediata-mente, ao vivo”, afirma o estudante.

Foi o que ocorreu com o segundo ataque às torres gêmeas, em 11 de

setembro de 2001, nos Estados Unidos e os atentados de 11 de março de 2004, no metrô de Madrid, na Espanha. Nesse sentido, de acordo com Francisco Carlos Teixeira, a trans-missão de atentados, seqüestros e execuções leva os conflitos ao centro dos países mais poderosos, suscitando protestos e discussões. “Ao tomar uma pessoa de um país como se-qüestrado e ameaçar executá-lo, os grupos terroristas projetam a sua causa na sociedade do outro, dando visibilidade à guerra”, afirma o especialista.

A indiscriminação quanto às vítimas e os ataques de massa, sem alvos específicos, atingindo grandes multidões, também é uma característica do chamado terrorismo internacional. Para tanto, muitas vezes é utilizada a figura do homem-bomba. Típico desse período da trajetória do terrorismo. O suicida é intimamente relacionado ao peso que o fundamentalismo islâmico exerce nessa fase atual do terrorismo. Seu uso tem início com a aparição de grupos radicais xiitas, cuja percepção de vida aparece como um empecilho para a realização plena do indivíduo através do martírio, caminho ideal para chegar a Alá.

Guerra assimétrica e século XXIAs estratégias utilizadas pelos grupos ter-

roristas para anularem as disparidades em rela-ção às grandes potências que combatem estão inseridas em uma nova forma de conflito, típica do século XXI. O conceito de guerra assimétri-ca - como são chamados esses novos conflitos – engloba não apenas as formas bélicas, como o terrorismo, mas também o “hackerismo” e o uso hábil da informação.

No caso do terrorismo, o objetivo é deslocar o conflito para um plano no qual a superiori-dade do oponente não se manifeste de modo a lhe beneficiar, trazendo-o para um ambiente de instabilidade. Além disso, o fator surpresa ga-nha destaque, principalmente através de meios não-convencionais. De acordo com Francisco Carlos Teixeira, isso explica parte da política ex-terna das grandes potências: “o temor acerca da proliferação das chamadas armas de destruição massiva é evidente nesse sentido”.

Essa nova forma de conflito também per-mite uma revisão dos conceitos de armas e sol-dados. Os executores do ato terrorista podem ser desde homens-bomba a programadores de computador, que convertem todo e qualquer objeto do cotidiano em um instrumento letal. Dessa forma, o uso de tecnologias domésticas, como laptops e celulares, e de meios civis, como aviões, trens e metrôs, passam a desempenhar um papel central nessa nova forma de estratégia de guerra.

Francisco Carlos Teixeira

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4 Setembro•2007UFRJJornal da

Política

O amargo sucesso de Gramsci

Curiosamente, o pensador marxista Antonio Gramsci tem sido citado com freqüência por políticos conservadores. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, disse – literalmente e sem pudor – ter se apropriado da análise de Gramsci de que o poder se conquista com idéias para derrotar os so-cialistas, nas eleições de maio passado.

No Brasil, ninguém menos do que Renan Calheiros mencionou o comunista italia-no – morto em 1937 – no discurso que fez após livrar-se da cassação do seu mandato, na sessão do Senado Federal, em 12 de setembro. Em guerra contra a imprensa, o senador alagoano lembrou, dirigindo-se aos seus pares, que Gramsci dizia que a mídia vira partido político quando as instituições são fracas.

Esse “gramscianismo” de direita e o uso abusivo e fragmentado das idéias do filósofo foram temas recorrentes na mesa-redonda Presença de Gramsci, em homenagem aos 70 anos de sua morte, realizada em 5 de setem-bro, no lotado auditório do Centro de Filo-sofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ, na Praia Vermelha. O evento contou com exposições de Guido Liguori, professor de História do Pensamento Político Contem-porâneo da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Calábria (Itália) e vice-presidente da International Gramsci Society, de Virgínia Fontes, professora de História da

Seminário comemorativo dos 70 anos da morte do marxista italiano revela uso pragmático de suas idéias pela direita de todo o mundo.

Coryntho Baldezilustração Jefferson Nepomuceno

Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e foi coordenado por Carlos Nelson Coutinho, diretor da Editora UFRJ – que promoveu a mesa-redonda em conjunto com o CFCH. Na ocasião, Guido Liguori autografou o seu livro Roteiros para Gramsci (2007), relança-do pela Editora UFRJ.

Idéias e imagensEm sua exposição, traduzida por Carlos

Nelson Coutinho, Guido Liguori apontou a instrumentalidade do uso de Gramsci pela direita, mas admitiu que se surpreende com a clareza a respeito da luta pela hegemonia – categoria cara a Gramsci – que os conser-vadores demonstram em relação à esquerda, freqüentemente presa mais às imagens do que às idéias. Falava ele da Europa, mas parecia falar do Brasil.

Também nos Estados Unidos da Améri-ca, segundo Liguori, inúmeros pensadores parecem ter tomado de Gramsci a convic-ção da necessidade de agir na sociedade civil para difundir determinadas idéias e, depois, recolher os resultados dessa ação no plano político. Revelou que os conser-vadores estadunidenses o apontam como o marxista mais perigoso pela capacidade de influenciar os atores sociais, mas estão hoje entre os mais ardilosos aplicadores de suas análises e estratégias políticas, ideológicas e culturais.

Os centros de estudos e grupos de tra-balho da direita norte-americana seriam um modelo exemplar de como se organiza concretamente a hegemonia. “Ela não é um fenômeno espontâneo. A batalha das idéias pela criação de uma visão de mundo tem sempre atrás de si um aparelho dota-do de materialidade que desempenha um contínuo e incansável trabalho educativo e formativo”, destaca o professor italiano, citando Cadernos do Cárcere, clássica obra de Gramsci.

Depois de mostrar a face dupla de uma direita que teme Gramsci e, ao mesmo tempo, pratica a sua lição, Guido Liguori frisa que boa parte da esquerda mundial rende homenagens formais e obrigatórias ao filósofo italiano, mas o considera inútil e superado: ”muitos círculos intelectuais ditos de esquerda pensam abertamente assim na Itália”.

No Brasil, ao contrário, há por parte de alguns autores de esquerda uma linha de in-terpretação de Gramsci como um pensador político que formulou idéias ainda válidas para elaborar estratégias políticas à altura de nossos tempos, de acordo com Guido Liguori. Ele lembra que momentos impor-tantes da história do país foram analisados com base em categorias gramscianas, como hegemonia e revolução passiva, que somente na Itália tiveram igual aplicação e mesmo assim nos longínquos anos 1970.

Completamente diverso, prossegue Ligu-ori, é o cenário no mundo de língua inglesa, onde Gramsci é mais debatido em círculos de estudos culturais, embora não haja em seu pensamento nenhuma separação entre política e cultura. “Esse uso culturalista de Gramsci tende, objetivamente, a reforçar a hegemonia estadunidense”, condena o his-toriador italiano.

Chavez e GramsciMas, na América Latina, o presidente da

Venezuela, Hugo Chavez, opositor ferrenho dos EUA, também não está alheio ao pen-samento de Antonio Gramsci. Chávez tem citado, com certa assiduidade, o pensador italiano em seus discursos. Para Guido Li-guori, é preciso avaliar se a sua tentativa de mudar a sociedade civil a partir do Estado, e não o contrário, terá futuro. Na Venezuela, as forças bolivarianas revolucionárias con-quistaram a sociedade política e a burguesia continua controlando e hegemonizando as instituições da sociedade civil. A idéia de que cabe ao Estado - a sociedade política - transformar a sociedade civil, para Ligu-ori, não frutificou, por exemplo, na antiga União Soviética. “De qualquer maneira, a experiência de Chávez é interessante”, res-salva Liguori.

O professor da Universidade de Calábria defende o uso das categorias de Gramsci de maneira inovadora, não sacralizado, mas

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Setembro•2007 5UFRJJornal da

Política

Ao identificar a vitória da ideologia neoliberal, nos últimos 20 anos, o professor italiano Guido Liguori a atribuiu ao reflexo de uma mudança nas relações entre as classes ocorrida no período.

Evitando falar sobre o Brasil, cujo processo político disse não conhecer em detalhes, lembrou que a Itália foi atingida em cheio pelo ideário liberal. “Na década de 1980, Berlusconi já influía fortemente nas Itália através das televisões privadas. Com isso, interferiu no sentido de mudar o senso comum dos italianos, que sofreu uma ação hegemônica antes mesmo que Berlusconi chegasse ao governo”, explica o historiador.

Segundo Liguori, as transformações no modelo de produção capitalista também

Um problema que Gramsci não enfrentou

contribuíram para a onda conservadora que desarticulou a esquerda italiana – “neste momento ela passa por uma profunda reestruturação”. Informou que existe a possibilidade de criação de um partido único na Itália, para o qual convergiriam amplas forças de esquerda, mas há resistências por parte dos partidos comunistas. “É mais fácil reunir em um mesmo partido forças que foram antagônicas no passado, como os ex-democratas cristãos e os ex-comunistas, do que reunir num mesmo partido forças de esquerda. Freqüentemente, isso não acontece por sectarismo e dogmatismo”, analisa o professor.

Ao comentar o papel dos partidos políticos e a possibilidade de os movimentos sociais

assumirem a liderança de um projeto alternativo ao capitalismo, frisa: “um dos problemas das reflexões de Gramsci para a compreensão do mundo contemporâneo é que, na sua época, os partidos tinham importância, e mesmo nas décadas subseqüentes à sua morte, o que não ocorre mais hoje. A questão é saber se, sem o partido político, podem os movimentos sociais criar, por si mesmo, uma alternativa global ao capitalismo”, indaga Guido.

Liguori lembra que, nos anos 1919 e 1920, Gramsci foi um grande dirigente dos conselhos de fábrica, especialmente vigorosos na cidade de Turim. Segundo ele, esse movimento fracassou e facilitou a ascensão do fascismo, levando Gramsci à conclusão da necessidade de um partido político de caráter leninista. Contudo, a originalidade de Gramsci – afirma o professor italiano – é que ele jamais pensou em um partido isolado da sociedade e dos movimentos sociais. “Esse é um traço que distingue a concepção do partido em Gramsci e em Lênin”, sublinha.

Mas, baseado nas lições que disse ter aprendido de Gramsci, considera que os movimentos sociais não podem constituir, por si só, uma forma alternativa global ao capitalismo, ”sobretudo em um momento em que as forças conservadoras são tão fortes”.

No entanto, Guido Liguori recusa uma atitude dogmática em relação ao filósofo, o que levaria a repetições mecânicas de seu pensamento. “Hoje estamos diante de um problema, o do partido político, que não se colocou na época de Gramsci e, portanto, cabe a nós tentar resolvê-lo”, alerta o italiano.

teme que sejam esquecidas as “coordenadas de fundo de seu pensamento”, em particular “a luta pela hegemonia como expressão da luta de classes nas sociedades contempo-râneas”.

Quando se fala de senso comum, mas não de luta pela hegemonia, cria-se uma deformação do conjunto do pensamento gramsciano, explica ele. O mesmo ocorre quando se fala da importância da cultura sem relacioná-la à luta de classe ou do papel dos intelectuais sem qualquer referência ao partido político como intelectual coletivo. Outro exemplo é a abordagem da sociedade civil supostamente “sempre boa” oposta a um Estado supostamente “sempre mau”. Assim, não se pensa a favor de Gramsci – frisa – “mas contra seus ideais, valores, sua concepção de mundo e sua luta até a morte por uma sociedade não capitalista”.

E no Brasil?Virgínia Fontes, ao iniciar sua exposi-

ção, deixa claro que o uso pragmático do pensamento de Gramsci por parte de cír-culos patronais de direita, assim como nos EUA e na Europa, também desembarcou no Brasil há mais de 20 anos. Depois de observar que a sociedade civil é, sobretudo, um espaço no qual se constituem aparelhos privados de hegemonia, ela mostrou que uma extensa rede de entidades associativas empresariais se formou no país, ao longo do século XX.

Em paralelo, houve o crescimento de entidades associativas populares e de entidades de assessoria ao movimento popular – “assim se apresentavam as hoje famosas Organizações Não Governamen-tais (ONG)”, lembrou Fontes. Segundo ela, as características dessas últimas, como a

defesa do apoliticismo e a remuneração da militância de setores populares, resultaram em um rebaixamento da luta social ao âmbi-to corporativo de necessidades locais. Em sua análise, disse que houve a “quase eliminação” do horizonte de transformação coletiva em prol de demandas de grupos específicos, terreno no qual prosperaram as ONG, espe-cialmente a partir dos anos 1990.

Para Virgínia, importantes associações patronais criadas em fins da década de 1980, como o Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE) e o Instituto de Estudo Para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), foram estratégicas para solidificar um modelo de atuação de entidades sindi-cais e de assessoria popular que, mais tarde, passou a ser hegemônico. Para conter a combatividade de um sindicalismo nascido do confronto de classes, essas entidades passaram a defender um sindicalismo de resultados, incensando a sua principal lide-rança, Luiz Antônio Medeiros, que recebeu apoio incondicional do empresariado para organizar a Força Sindical – central sindical de oposição à Central Única dos Trabalha-dores, a CUT.

Os sindicatos que adotaram tal perspec-tiva passaram, então, por uma verdadeira reengenharia interna. Demitiram trabalha-dores, remodelam funções e passaram a lu-crar com novas formas de assistencialismo, oferecendo cursos pagos de preparação de mão-de-obra para empresas. “Eles incorpo-raram o conceito de empregabilidade e pas-saram a gerenciar clubes de investimentos e, depois, os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e dos fundos de pensão”, destaca Virgínia Fontes.

Empresariamento da sociedadeNo mesmo período, o aparecimento de

ONG se generalizou e o termo passou a ser

corriqueiro. Mas, quem falava em nome delas? Segundo a professora da UFF, a Asso-ciação das ONG (Abong), fundada em 1991, até hoje aparece como a principal porta-voz dessas entidades, embora uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-tica (IBGE) indique a existência de cerca de 250 mil entidades associativas sem fins lucrativos no país. Para Virgínia Fontes, o discurso da Abong legitimou, ao longo da década de 1990, o empresariamento das entidades e associações no Brasil. “Ela embaralhou o conjunto das lutas, fazendo uma idealização virtuosa da sociedade civil contraposta ao Estado e uma denúncia do capitalismo selvagem, apenas o selvagem, frise-se, a ser corrigido localmente”, critica a professora.

As ONG, no decorrer da década de 1990, passaram cada vez mais a exigir recursos públicos com argumentos gerenciais de que eram capazes de fazer alguns serviços melhor do que o Estado burocrático e ine-ficiente, de acordo com a pesquisadora da UFF. Note-se que a partir de 2000, a Abong de fato registrou uma modificação impor-tante no seu modelo de financiamento. As agências internacionais de cooperação, que asseguravam 76% de seus recursos em 1993, passaram a participar com 50,6%. Em compensação saltaram de 3% para 18,5% os recursos originários de órgãos governamen-tais. Assim, o que a Abong “sustentava, de fato, era o desmantelamento dos direitos so-ciais”, condena Virgínia Fontes, para quem o termo Organização Não Governamental ocultou o fenômeno do empresariamento da sociedade civil.

Segundo ela, o que cabe, agora, é reto-mar o terreno das disputas contra-hege-mônicas, enxergando as tensões de classe em um terreno em que a filantropia tem prosperado.

Carlos Nelson Coutinho

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6 Setembro•2007UFRJJornal da

Bruno Francoilustração Anna Carolina Bayer

O subdesenvolvimento latino-americano ainda sob a luz do pensamento econômico de Celso

Furtado, continua sendo tema do Curso Aberto de Pensamento Social Brasileiro, do Instituto de

Economia da UFRJ.

Em O subdesenvolvimento na América Latina, palestra que fez parte do curso promovido pelo Lema – Laboratório de Estudos Marxistas - do Instituto de Economia (IE) da UFRJ, Carlos Aguiar de Medeiros, professor do

IE, buscou compreender as causas históricas do atraso no continente à luz do pensamento do economista Celso Furtado.

De acordo com Medeiros, na América Latina o subdesenvolvimento se origina nos processos de independência de suas nações, que até então não removeram suas antigas estruturas. Essa também é a visão do economista peruano Hernando De Soto - autor de El Otro Sendero - O outro caminho - (Instituto Libertad y Democracia, 1987) – para quem, o atraso dos países latino-americanos estaria ligado às suas instituições, devido ao encastelamento de grupos economicamente dominantes no poder. “Esse é o filão de pensamento conservador encontrado, por exemplo, no Banco Mundial”, critica Medeiros.

Segundo Aguiar de Medeiros, a análise de Celso Furtado acerca do processo de desenvolvimento começa com a comparação histórica entre canaviais antilhanos e os do Nordeste brasileiro. Os caribenhos destituíram

os pequenos empreendimentos que eram auxiliados pelo governo francês, o que trouxe o seu complemento inevitável: o trabalho escravo. Assim, os baixos salários (posteriores ao predomínio da mão-de-obra escrava) – sendo piso da distribuição de renda - e as altas rendas rurais formaram a estrutura econômica das sociedades da região.

Industrialização não emancipadoraEm seguida, a industrialização se deu

pelo controle da elite sobre os congressos nacionais e demais poderes dos países da região, se apropriando das rendas geradas pelo setor primário-exportador (gêneros agrícolas tropicais ou minérios), contraposto à agricultura de subsistência e à indústria de baixa produtividade.

No entanto, o processo não se completa, pois o setor manufatureiro se mostra incapaz de incorporar o excedente. “As oligarquias não são desalojadas do poder. Há também a fraqueza do Estado, a ausência de reformas, a disparidade entre o dinamismo da demanda e o avanço da tecnologia, diferença essa que é engendrada pela inserção periférica dos países latino-americanos nas relações internacionais, freando o desenvolvimento dos mesmos”, enumera Aguiar de Medeiros.

S e g u n d o e l e , a n e c e s s i d a d e d e industrialização naquele momento histórico, seria iniludível, mas seria uma quimera achar que a indústria absorveria o emprego. “Somente a reforma agrária traria aumento concomitante de emprego e de produtividade (que era, na ocasião, muito baixa). O impasse para isso seria a fraqueza do Estado”, explica o professor.

Os avanços na produtividade – tidos como fatores capitais para uma melhor inserção no sistema econômico internacional - não mudam, necessariamente, as relações de troca, apenas abaixam os preços. “Ao contrário do que se advogava na época, a industrialização não se dá gradualmente – esclarece o economista - mas aos saltos. O que requer investimentos e coordenação do Estado”. A manutenção do status quo torna anódino o conceito de “países em desenvolvimento” quando tão poucos estão, de fato, se desenvolvendo.

A industrialização sul-americana nos moldes em que se estabeleceu, requereu elevada concentração de renda. O que foi negado pela Argentina e abraçado por Brasil e México. Conforme explica Aguiar de Medeiros, investimento em novas forças produtivas e aperfeiçoamento das já existentes são fatores endógenos ao processo de acumulação de capital, “mas a propensão da elite regional foi a de manter seus ativos (conjunto de bens e créditos que formam o patrimônio de um sujeito econômico) dolarizados, contrapondo o cosmopolitismo financeiro desses altos estratos sociais aos interesses de suas respectivas nações”.

Desenvolvimento na fala(cia) de todosNa década de 1950, estão os fundamentos

do pensamento econômico brasileiro. Equivocadamente, os marxistas europeus julgavam que o desenvolvimento econômico – ao sul do Equador - era tardio e convergiria para os mesmos problemas trabalhistas europeus da época.

A região passou os últimos 20 anos com sua relação PIB/Per capita (Produto Interno Bruto dividido pelo número de habitantes) estagnada vis-a-vis outras regiões e, não obstante, o desenvolvimento sempre esteve no cerne do discurso político brasileiro. “A tecnocracia brasileira era desenvolvimentista mesmo na ditadura e, hoje em dia, todo o mundo é furtadista (nacional desenvolvimentista)”, ironiza Medeiros.

De acordo com a economista Maria da Conceição Tavares, melhorar a distribuição de renda foi outra meta falaciosa presente no ideário das mais diferentes - e mesmo antagônicas - tendências políticas. “O pensamento conservador, por exemplo, a defendia como forma de inibir o avanço de políticas populistas o que garantiria, por sua vez, os direitos de propriedade”, desvela a professora emérita do IE/UFRJ.

Segundo ela, o excesso de empréstimos do setor financeiro ao agrário-exportador (over-landing) gerou uma matriz de formação de interesses, “a qual, em sua evolução, constituiu a verdadeira burguesia (bancos e construtoras) brasileira, não citada por Celso Furtado e Jose Carlos Mariátegui (escritor e jornalista peruano), não expropriada nem mesmo pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso”.

Para Conceição Tavares, não é fácil fazer uma agenda convergente de desenvolvimento e ter um projeto nacional, pois os interesses de “favelados, trabalhadores estatais, industriais e camponeses não são os mesmos”. No entanto, Tavares e Medeiros concordaram, rapidamente, que algumas questões como uma política tributária progressiva sobre renda e luxo; uma política tecnológica para a agricultura e resolução do conflito entre os interesses das classes dominantes e a difusão do conhecimento são pontos-chave para a criação desse projeto.

Carlos Aguiar de Medeiros,

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Setembro•2007 7UFRJJornal da

Meio Ambiente

O programa de Revitalização, Urbanização e Recuperação Ambiental dos canais do Fun-dão e Cunha, apresentado à comunidade aca-dêmica em abril passado, foi aprovado durante sessão do Conselho Universitário (Consuni) do dia 26 de julho. O projeto, desenvolvido em parceria com o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) e a Escola Politécnica, ambos da UFRJ, contou com a colaboração da Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro e com o patrocínio da Petrobras.

A deliberação ocorreu após a análise da comissão da UFRJ, que apontou, entre as cláusulas condicionantes, o planejamento detalhado, os cuidado técnicos, além do acom-panhamento e do aval de todas as etapas das obras pela universidade. A sessão foi assistida por Antônio Ferreira da Hora, subsecretário estadual de Ambiente (SEA/RJ).

Em seu parecer, Almir Valadares, relator da Comissão de Desenvolvimento do Consuni, apontou a urgente necessidade de se limpar os canais, devido à crítica situação sanitária, estética e ambiental. Entretanto não dispensou estudos de viabilidade técnica e de aplicação de novas tecnologias. As principais expectati-vas em relação ao projeto são pela restituição dos manguezais e maior circulação de água, contribuindo para a despoluição da Baía de Guanabara. Para Aloísio Teixeira, reitor da

Canais do Cunha e do Fundão

Projeto sustentável de despoluição

Após aprovação do projeto de despoluição dos canais do Cunha e do Fundão, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro prevê um prazo de 24 meses para atingir a meta e reforça a sustentabilidade como forma de assegurar que não tenham que

passar pelo mesmo processo em alguns anos.Joana Jahara

UFRJ, “o mais importante na proposta é o seu espírito públi-co. A maior contrapartida por nós recebida será a limpeza do canal”.

O processoA proposta é a retirada

da lama com a ajuda de duas dragas e colocá-la em barcos de calado baixo. Em seguida, filtrada por uma malha fina, responsável por impedir a passagem de detritos maiores. Saindo da malha, a lama será bombeada para o interior de tubos que vão contê-la e desidratá-la. Esse processo se repete até o ponto máximo de armazenamento dos tu-bos, sendo então os resíduos enterrados e impermeabili-zados. “O que pretendemos é desobstruir, desassorear e res-tabelecer a circulação de água em todo o canal do Fundão e do Cunha. Deve ser retirado algo em torno de 1 milhão e 800 mil metros cúbicos de lama. Os estudos existentes

na própria UFRJ são conta de que dessa quantidade, 500 mil metros cúbicos

estão contaminados com material pesado. O restante consiste em areia que poderá ser reaproveitada. Contudo, estamos preparados para a eventualidade desse mate-rial estar contaminado por processos orgânicos e, até mesmo, com metal pesado”, afirma Antônio da Hora, que é professor titular da Univer-sidade Federal Fluminense, especialista em Gestão de Recursos Hídricos e Obras Hidráulicas.

Márcio Almeida, profes-sor de Geotecnia da Coppe, acredita no êxito da tec-nologia, porém ressalta os riscos. “Com a remoção de sedimentos pode haver bio-disponibilização – liberação para a atmosfera – dos conta-minantes que estão agregados a eles”, avalia o especialista. Antônio da Hora explica que o lodo que sai dos canais é floculado e, logo em seguida, enviado para a malha filtrante de prolipropileno, resistente a degradação química e bio-

lógica, que faz a separação da parte sólida da líquida. “Assim, o líquido filtrado sai com uma ótima qualidade. Uma vez preenchido todo esse material desidratado, ele vai ser isolado com mantas e enterrado nas áreas da universi-dade”, explica o secretário, acrescentando que as áreas definidas foram sugeridas pela própria UFRJ por serem menos utilizadas hoje e, provavelmente, no futuro.

SustentabilidadeO projeto não

visa somente a limpeza do canal, mas também a sua manutenção. Se-gundo Antônio da Hora, todo o curso d’água que chega até os dois canais será trata-do através de uma contenção para se-parar os sólidos e a suspensão flutuante. Ele re-velou ainda que não acredita nas formas clás-sicas de tratamento em comunidades carentes. “Com a ocupação desordenada, a implantação de sistema de esgotos é difícil e muitas vezes impossível, porque não há ruas por onde possa passar a tubulação. Justamente por não ter a

formalização de ruas, calçadas, declividades etc, aquilo que se define como urbanização, dificilmente se consegue coletar mais do que 30% de material. Por isso temos que tratar o curso d’água”, explica o especialista.

Porém, para garantir sustentabilidade, Antônio da Hora afir-ma que o tratamento será feito até que a Companhia de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) con-siga implantar e co-letar todo o sistema. Além disso, segundo ele, o projeto inclui o restabelecimento da vegetação ciliar e a recuperação do man-guezal em todo o seu entorno. Vale lembrar que o projeto prevê também um centro de reciclagem na co-munidade da Maré. “Vamos instalar um

projeto de educação ambiental com reciclagem, preferencialmente trabalhando reprocessamento do material contido nessas barreiras flutuantes, entre eles as garrafas PET (Poli Tereftalato de Etila). Esse é um dos projetos de amplo interesse públi-co. Todos têm a ganhar e esse é o momento”, aponta o subsecretário.

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8 Setembro•2007UFRJJornal da

As primeiras experiências para a criação do rádio datam de 1895, quando o físico ita-liano Guglielmo Marconi, usando aparelhos rudimentares, conseguiu fazer com que alguns impulsos elétricos chegassem a mais de um quilômetro de distância. No Brasil, antes do de Marconi, o pioneirismo do padre Roberto Landell de Moura no rádio somente não foi reconhecido porque ele não fazia parte da co-munidade científica internacional, sediada na Europa e nos Estados Unidos da América.

Roquete Pinto, que é considerado o pai do radiodifusão no país, vislumbrou que essa seria, no futuro, o meio de comunicação mais utiliza-do pelas massas, difundindo a cultura popular. O que não previu foi que, além de difundir nas ondas hertzianas, o rádio iria “navegar” pelas “ondas” dos bites e bytes.

Seguindo nas ondas da Internet

Além de diminuir fronteiras, servir como instrumento de pesquisa e navegação para milhares de centenas de pessoas, hoje a Internet também serve como meio para emissora de rádios não comerciais ou livres operarem como instrumento de troca de informações técnicas, legislativas,

políticas e culturais disponíveis aos distintos setores que constituem o seu público-alvo.

Rafaela Pereirailustração Daniela Follador

Foi com esse pensamento que Rafael Zamo-rano Bezerra, historiador, mestre em Ciência Política pela UFRJ e pesquisador do Museu Histórico Nacional (MHN) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), desenvolveu sua dissertação de mes-trado, intitulada “Na onda do bite: a interlo-cução entre rádios livres e comunitárias na Internet”, para o Programa de Pós-graduação em Ciência Política (PPGCP) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ. Para ele a questão é exatamente a combinação entre a tecnologia da Internet com a tecnologia do rádio. “As emissoras não estão migrando para a Internet, mas sim usando-a como al-ternativa à programação já produzida para as ondas Hertz. Não são somente as rádios livres e comunitárias que utilizam a rede para esse

fim. Quase todas as grandes emissoras de rádio comercial possuem um site, onde divulgam sua programação, deixam disponíveis programas de áudio, realizam enquetes etc. As empresas de televisão também estão indo pelo mesmo ca-minho, tal como os grandes jornais impressos. O que procurei mostrar em minha pesquisa foi como essa combinação é utilizada na luta pela democratização do rádio no Brasil. Isso remete a outras formas de utilização da Internet, tal como as comunidades virtuais, os fóruns de discussão etc.”, explica o pesquisador.

Por ser a grande rede um fenômeno recente, qualquer análise sobre o assunto deverá levar em consideração que ela apresenta caracterís-ticas até então inéditas. E, segundo Zamorano, uma das principais inovações resulta direta-mente de algumas particularidades históricas como, por exemplo, a estratégia militar de

criar uma rede horizontal e descentralizada somada às iniciativas contraculturais em li-berar a capacidade de comunicação a todos. “Isso resultou em uma Internet na qual, po-tencialmente, qualquer pessoa pode produzir, divulgar e compartilhar informações. Ao con-trário do que ocorre com as mídias clássicas, a comunicação mediada por computadores libera o pólo emissor de mensagens aos seus usuários. O campo comunicacional não é mais unidirecional, é interativo, onde todos podem produzir, transmitir, compartilhar, receber e modificar as informações e conhecimentos”, explica Zamorano.

Assim, a rede mundial de computadores constitui local privilegiado para troca de in-formações, suporte material e denúncia da repressão que as emissoras de rádio livre e comunitária vêm sofrendo há algum tempo.

Comunicação

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Setembro•2007 9UFRJJornal da

No Brasil, são muitos os obstáculos de natureza legal e política que restringem o alcance de sua atuação e cerceiam a plena realização de seus objetivos.

Livres e comunitárias: participação popularAmbas estão baseadas na idéia do rádio

participativo, onde não há separação rígida – tal como ocorre na radiodifusão tradicional – entre produtores e ouvintes. Assim, uma rádio comunitária pode ser considerada como uma rádio livre já que ambas participam da produ-ção integrada da emissora, contribuindo na criação conjunta e na emissão de mensagens. Porém, há di-ferenças conceituais entre os dois tipos de rádios. De acordo com Rafael Zamo-rano, primeiramente, cabe destacar que o tratamento jurídico reservado a cada uma difere notavelmente, posto que a legislação so-mente regula o serviço de radiodifusão comunitária e descarta a possibilidade de existência legal das emissoras livres.

A rádio livre é caracte-rizada, segundo ele, como a forma de radiodifusão feita de maneira não comercial, geralmente em baixa potência, que visa a produção e a divulgação de uma infor-mação alternativa em relação a que é vinculada pelas grandes empresas comerciais ou órgãos públicos de comunicação.

Seu nascimento se dá na Itália, na França e na Inglaterra, e está historicamente associada à fragmentação dos movimentos sociais, cons-tituída, em sua maioria, por dissidentes dos tradicionais partidos de esquerda e sindicatos. Apesar disso, sua característica básica é a seme-lhança com os movimentos contraculturais e com as novas esquerdas, numa reação à rigidez burocrática e hierárquica das organizações tradicionais. “No Brasil, o movimento das rá-dios livres teve seu primeiro momento em São Paulo, na década de 1980, com forte influência da experiência européia. A Rádio Xilik foi uma das emissoras com maior repercussão. Tinha como modelo de inspiração a Rádio Alice, uma emissora livre francesa que se tornou referência mundial para o movimento das rádios livres”, recorda Zamorano Bezerra.

Já as rádios comunitárias, que são mantidas por associações ou fundação de moradores, têm sua lógica baseada por meio de relações de identidade e localidade. “Essa é uma diferença básica entre as emissoras comunitárias e as emissoras livres. Suas mensagens estão dire-cionadas à solução dos problemas da comuni-dade que a envolve e, usualmente, as emissoras comunitárias adotam uma programação de utilidade pública para a região coberta por sua transmissão. Historicamente, são associa-das às experiências com o rádio educativo e participativo, com conteúdos e programação elaborados pela própria comunidade ou pelos chamados agentes comunitários. Tais experiên-cias foram bastante comuns na América Latina durante as décadas de 1960 e 1970 e tiveram como principais empreendedores membros da Igreja Católica e associações sindicais”, aponta Zamorano.

Para Suzy dos Santos, professora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ e especialista em Novas Tecnologias e Mídias Convergentes, é considerável o poder que essas rádios têm. “Elas podem oferecer acesso às informações, cultura e entretenimento diferentes daquelas meramente destinados ao lucro, garantindo a pluralidade de vozes e conteúdos. Em regiões de pouco poder aquisitivo ou pouco desen-volvimento urbano, por exemplo, essas rádios comumente se transformam em único veículo

de acesso à informação pela comunidade”, analisa a professora.

Legislação vigenteHoje, grande parte dos problemas enfren-

tados pelas rádios comunitárias e livres tem origem no arcabouço jurídico da radiodifusão brasileira, que tende a favorecer os interesses de grupos de poder ligados à indústria da comunicação. Nesse contexto, a grande rede de computadores surge como instrumento disponível para rádios livres e comunitárias jus-

tamente quando seus usuários são silencia-dos mediante apreen-são dos equipamentos de transmissão ou de sua indisponibilidade pelo fechamento de investidas policiais.

Suzy dos Santos acredita que o prin-cipal problema está na ausência de uma formulação de polí-tica pública unificada e convergente para o setor que considere o acesso diversificado e plural à informação e à cultura como direito

fundamental para a garantia da cidadania no país.

Rafael Zamorano explica que, com relação as comunitárias, um dos principais problemas que enfrentam decorre da coexistência de diferentes normas no ordenamento jurídico brasileiro: o Código Brasileiro de Teleco-municações (CBT), de 1962; a Lei Geral das Telecomunicações (LGT), de 1997; e a Lei de Radiodifusão Comunitária (Radcom), de 1998. “Outros obstáculos são estruturais e políticos

e decorrentes da forma como a concessão de canais de radiodifusão se implantou no Brasil e permaneceu praticamente inalterada durante todo o século XX”, esclarece o pesquisador.

Segundo ele, tais leis geram inúmeras discussões em torno de sua legitimidade para fiscalizar e reprimir as emissoras de baixa po-tência. A polêmica reside no conflito entre a liberdade irrestrita de expressão garantida pela constituição e os dispositivos de punição con-templados no CBT, que teve sua versão original acrescida de decretos durante a ditadura mili-tar. “Emblemático é o decreto que determina a prisão, com um ou dois anos, a quem operar emissora de rádio sem a prévia autorização Federal. Na Lei Geral das Telecomunicações, a detenção prevista é de 2 a 4 anos”, compara Zamorano.

Assim, os mal-entendidos jurídicos e as interpretações divergentes sobre o texto de leis ocorrem quando essas se contradizem. O resultado, de acordo com a experiência relatada pelo historiador Zamorano é que, em algumas ocasiões, os órgãos de fiscalização — a Anatel e a Polícia Federal — utilizam, como suporte legal de suas operações, o Artigo 183 da LGT e, em outras circunstancias, adotam o Artigo 70 do CBT.

“Alguns juízes consideram ainda a incons-titucionalidade da aplicação da LGT, com base na distinção legal entre as telecomunicações da radiodifusão, o que limitaria o campo da LGT aos assuntos relativos à telefonia, excluindo-se os serviços de radiodifusão sonora e trans-missão de sons e imagens, que permanecem regidos pelo CBT. Os críticos enfatizam que a repressão às emissoras de baixa potência é in-constitucional, na medida em que a Constituição Federal assegura a liberdade de expressão a toda atividade artística, científica e de comunicação, livre de censura ou de licença”, explica Zamorano Bezerra. Além dessas - acrescenta o pesquisador

- pelo Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, o exercício de liberdade de pensamento e expressão não pode estar sujeito à censura prévia, mas sim a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente regu-lamentadas em Lei.

Ainda assim, há no Brasil, atualmente, mais de 10 mil pessoas sendo processadas por radio-difusão ilegal. Porém, existem mais de oito mil pedidos de concessão parados no Ministério das Comunicações, sendo que alguns deles estão em tramitação há mais de quatro anos. “Por outro lado, o Ministério, de 1998 até 2004, concedeu autorização para 2.200 rádios comu-nitárias, número muito inferior à demanda por esse tipo de serviço. Tais dados revelam que o problema não é apenas legal, mas também político e administrativo”, afirma Zamorano.

Mas será que na Internet esses problemas diminuem? Segundo Rafael Zamorano, a questão é entender como a rede pode ajudar a resolver, ou pelo menos combater, os problemas pelos quais essas emissoras passam. A grande questão é a luta pelo acesso democrático às on-das radiofônicas. ”Nesse sentido a Internet tem se mostrado uma importante ferramenta. O sim-ples fato de a informação acerca dos problemas vividos pelas rádios livres e comunitárias estar disponível na rede já é um avanço significativo. Apesar de ser ainda inacessível à maior parte da população brasileira, devido ao alto custo de um computador e do acesso por banda larga ou pela conexão discada, a web é um meio de co-municação mais barato que as mídias clássicas. Afinal, é mais fácil produzir um site, discutir e propor ações em uma comunidade virtual, do que elaborar um jornal, um programa de tevê ou rádio. Isso torna a Internet adequada às necessidades comunicacionais de segmentos sociais silenciados por questões políticas ou sociais, tal como os representantes de rádios livres e comunitárias”, analisa o pesquisador.

Comunicação

Rafael Zamorano

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10 Setembro•2007UFRJJornal da

Mônica Reisilustração Anna Carolina Bayer

O debate em torno da democratização do acesso

ao Ensino Superior está em pauta desde 2003, quando

começou a ser aplicado o sistema de cotas. De lá para cá, em meio à

polêmica, novas ações afirmativas foram pensadas. Hoje, quatro anos

depois das primeiras experiências, a expressividade de seus resultados consolida modelos e possibilita o ingresso das camadas populares na universidade.

Cerca de nove milhões de estudantes vão terminar o Ensino Médio em escolas públicas no Brasil, mas, pelo menos dois milhões não poderão freqüentar a universi-dade. Esses números alarmantes são do Movimento dos

Sem-Universidade (MSU), grupo que defende a democratização do acesso ao Ensino Superior. O motivo vai desde a falta de recursos

para o pagamento de taxas de inscrição até os custos de permanência na universidade, ainda que seja pública. Com o objetivo de reverter esse quadro, as instituições têm, cada vez mais, adotado ações afirmativas,

como o sistema de cotas, de bônus, de cursos noturnos e de isenções aliadas ao aumento do número de pré-vestibulares comunitários. Nesse contexto, alguns modelos vêm se tornando referência na inserção das camadas po-pulares à modalidade de ensino.

A polêmica em torno do tema tem ocupado os espaços de discussão nas universidades. No âmbito legal, o Projeto de Lei 73/99 prevê a reserva de pelo menos 50% das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas. Em contrapartida, as Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) procuram, por meio de debates, encontrar um modelo de inclusão que seja mais condizente com suas características.

De acordo com Marcelo Corrêa e Castro, decano do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) e membro do Conselho de Ensino e Graduação

(CEG), da UFRJ, a flexibilização e a autonomia universitária são fundamentais na adoção de ações afirmativas. “As políticas públicas para o Ensino Superior parecem considerar que é desejável que todas as instituições se igualem e busquem um modelo único para o cumprimen-to de sua função social. No entanto, elas devem desenvolver propostas político-pedagógicas pró-prias, adequadas aos contextos em que atuam”, defende o professor da Faculdade de Educação da UFRJ.

Contudo, a controvérsia não se detém somente nas ações afirmativas que devem ser adotadas em cada universidade, mas também em suas conseqüências. Ainda segundo Marcelo Corrêa e Castro, elas encerram uma contradição. “Em nome de superar o elitismo e a exclusão, muitas ações afirmativas propõem a adoção de um sistema que prevê privilégios e vagas reser-vadas. Elas explicitam preconceitos, mas podem, involuntariamente, acirrá-los e gerar movimen-

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Setembro•2007 11UFRJJornal da

tos de discriminação”, afirma o professor. Além disso, o próprio

modelo do vestibular passou a ser dis-cutido. Para Celina Costa, diretora do Colégio

de Aplicação (CAp) da UFRJ, podem existir outras formas de se medir o conhecimento. “Não acredito que o mérito aferido no vestibular seja o único indicador possível de competência para cursar uma universidade. Mas o sistema de co-tas, assim, não seria uma nova forma de acesso, pois continua apoiado em provas de vestibular e, portanto, é tão antigo como sempre”, opina a professora.

Cotas: os exemplos da UERJ e da UnBA Universidade Estadual do Rio de Janeiro

(Uerj) foi uma das primeiras Instituições de En-sino Superior (IES) brasileira a adotar um siste-ma de cotas em seu vestibular. A iniciativa foi do então governador, Anthony Garotinho que, em 2002, estabeleceu reserva de 50% das vagas nos vestibulares das universidades estaduais – Uerj e Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), em Campos – para egressos de escolas públicas do estado. Na ocasião, o vestibular de 2003 já estava em curso e teve que ser dividido em dois exames: o Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes de Ensino Mé-dio (Sade), para a reserva de vagas, e o Vestibular Estadual, sem cotas. No ano seguinte, a Uerj pro-pôs mudanças no projeto, reservando 20% das vagas para alunos de escolas públicas, 20% para negros e 5% para deficientes físicos e minorias

étnicas. Os candidatos às cotas tinham que comprovar carência financeira.

De acordo com Elisabeth Hadad Murad, di-retora do Departamento de Seleção Acadêmica (Dsea) da Sub-reitoria de Graduação da Uerj, a falta de diálogo com a universidade por parte dos poderes Executivo e Legislativo foi a principal dificuldade na implantação do sistema. “Isso impediu que fosse produzida uma legislação que levasse em consideração a experiência de nossos profissionais em educação e nossas condições de financiamento e de infra-estrutura e neces-sidades acadêmicas”, afirma a diretora.

Ainda segundo ela, manter o estudante cotista na universidade independe do debate acerca da medida adotada para seu ingresso. “Uma vez aprovada a Lei de Cotas, não cabe à Uerj discutir o mérito de tal decisão. A uni-versidade entende que tem um compromisso com todos os seus alunos e deve lutar para garantir-lhes condições de permanência”, completa Elisabeth, que é professora da Fa-culdade de Educação daquela IFE.

Para tanto, a Uerj mantêm o Programa de Iniciação Acadêmica (Proiniciar), que tem como objetivo apoiar o estudante, viabilizando a transformação da lei em um mecanismo efe-tivo de redução das desigualdades sociais. Ele compreende a destinação de bolsas de estudos e o oferecimento de oficinas que possam suprir as demandas educacionais dos cotistas, dando base para que eles obtenham êxito nas disci-plinas específicas de seu curso. Os resultados desse programa são refletidos no desempenho dos cotistas em relação aos não-cotistas. Em 2004 – primeiro ano de implantação do atual modelo de vestibular da instituição - a média final dos cotistas foi 6,8, enquanto a de não-cotistas foi 7,2. Essa discrepância é conside-rada mínima pela da Uerj.

Esse modelo de cotas tem na Universidade de Brasília (UnB) uma aliada em nível nacio-nal. Primeira universidade federal a implantar a reserva de vagas, a UnB começou a adotar o sistema em junho de 2004, após cinco anos de discussão. Reservando 20% do total de vagas de cada curso para negros, o sistema atraiu, em sua primeira edição, 4,4 mil estudantes. Essa ação afirmativa faz parte do Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da UnB, e será aplicada por um período de

10 anos.A exemplo da

Uerj, a UnB também possui programas de bolsa de estudos e orientação acadêmica ao estudante cotista. No entanto, seu di-ferencial diz respeito ao aspecto cultural, contando com os tra-balhos do Núcleo de Estudos Afro-brasi-leiros (Neab), ligado ao Centro de Estudos Avançados Multidis-ciplinares (Ceam). Criado desde 1986, o núcleo desenvolve pesquisas voltadas para a revisão do pa-pel do negro na his-tória do Brasil. Além disso, outro ponto de apoio a esses estudan-tes é o EnegreSer (Co-letivo de Estudantes Negros na UnB). O grupo, aberto somen-te para estudantes ne-gros, reúne-se para promover eventos, debates, ou ler textos ligados à intelectuali-dade negra.

A alternativa: os casos da Unicamp, USP e UFFO sistema de cotas é somente um dos diferen-

tes tipos de ações afirmativas que as IES podem adotar no sentido da democratização do acesso. Na tentativa de aliar o mérito do vestibular à contemplação de setores da sociedade mais ex-cluídos da Educação Superior, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desenvolveu o sistema de bônus na pontuação dos exames de admissão. No seminário “As ações afirma-tivas e o desafio da democratização do acesso e da permanência no Ensino Superior”, que aconteceu nos dias 20 e 21 de agosto no Fórum de Ciência e Cultura (FCC/UFRJ), Leandro Russovski Tessler, coordenador permanente de vestibulares da Unicamp, defendeu que a lógica desse método é diferente da de cotas. “As cotas procuram combater a exclusão, pretendendo uma reparação histórica. Essa lógica é diferente da pensada pela Unicamp, que procura aliar mérito acadêmico e di-versidade, fazendo o melhor uso possível do dinheiro investido na universidade”, explica Tessler, que é profes-sor do Instituto de Física da instituição paulista.

No caso da Unicamp, o Programa de Ação Afirma-tiva e Inclusão Social (Paais) prevê que os egressos do Ensino Médio de escolas públicas recebam 30 pontos de bônus na se-gunda fase do vestibular, após o afunilamento da primeira etapa. Os negros, pardos e índios ganham 40 pontos. Na soma, isso representa apenas 5% da nota média obtida por quem passa no concurso. Mas, apesar disso, os resul-tados foram expressivos: houve um aumento de mais de 200% no número de alunos vindos da rede pública. O recorte étnico apresentou um acréscimo de 259 candidatos matriculados. O nível da universidade subiu, e os beneficiados tiveram coeficiente de rendimento (CR) maior do que os estudantes vindos do sistema comum de vestibular.

O bom resultado do modelo adotado pela Unicamp tem feito com que outras instituições adotem o sistema de bônus. Uma delas é a Uni-versidade de São Paulo (USP). A Pró-reitoria de Graduação da IFE está comemorando o crescimento expressivo de 26,7% de egressos de escolas públicas aprovados no vestibular de 2007. Dos alunos oriundos do Ensino Médio público, convocados na primeira chamada da Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), 12% não teriam conseguido ingressar na instituição caso não houvesse o Programa de Inclusão da USP (Inclusp).

No entanto, ainda no seminário sobre ações afirmativas promovido pela UFRJ, a pró-reitora de Graduação da instituição, Selma Garrido Pimenta, deixou claro que o Inclusp não é somente um sistema de bô-nus. “Ele compreende ações de apoio antes, durante e depois do ingresso, procurando ampliar o acesso do estudante de escola pública e a própria diversidade na univer-sidade, indo desde isenções e convênios até o sistema de pontuação acrescida e políticas de apoio à permanência”, afirma a professora da Faculdade de Educação da USP.

Já no Rio de Janeiro, o Conselho de Ensino e Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (UFF), aprovou a criação do bônus de 10% na nota final do vestibular para candidatos que tenham cursado todo o Ensino Médio em es-colas das redes municipal e estadual brasileiras. A medida, a ser adotada no próximo exame de admissão, tem como meta aumentar de 18 para 25% a aprovação desses estudantes na institui-ção. Além disso, a UFF também reservará 20% das vagas do curso de Pedagogia para professores de escolas públicas.

E a UFRJ?A discussão sobre a democratização do

acesso ao Ensino Superior é recente na UFRJ. O Conselho de Ensino e Graduação (CEG) tem promovido, desde 2003, debates em torno de possíveis ações afirmativas a serem adotadas pela universidade. Exemplo disso é um estudo, reali-zado com apoio da Pró-reitoria de Graduação, que, em linhas gerais, faz uma projeção dos im-pactos de uma possível reserva de vagas de 20% para alunos de escolas públicas. As conclusões apontam que tal reserva garantiria maior repre-sentatividade das camadas menos privilegiadas socialmente da população, ao mesmo tempo em que não prejudicaria o desempenho daqueles que ingressariam pelo sistema.

No entanto, a postura do colegiado é con-trária a adoção de cotas. Em documento aprovado ainda em 2004, o conselho compreende que o acesso ao Ensino Superior já é democratizado, uma vez que se trata de um processo claro, transparente e não-excludente. A representatividade de mino-rias e de estudantes vindos de escolas públicas é entendida como resultado de mecanismos e fatores estruturais que incidem na trajetória escolar e não do processo seletivo propriamente dito. O conselho reconhece a existência de condições desi-guais de escolarização no Brasil

e que isso é determinante no acesso à universi-dade. No entanto, argumenta que elas não se originam no exame de ingresso da instituição.

Nesse sentido, seriam necessárias uma série de medidas para a melhoria dos ensinos Fun-damental e Médio, a fim de dar oportunidades iguais para todos os candidatos. De acordo com Marcelo Corrêa e Castro, mais importante do que a reserva de vagas é a adoção de ações de base na educação como um todo. “Há a neces-sidade de ações reestruturantes, que instaurem de fato uma nova lógica para o pleno acesso aos direitos dos cidadãos, e não de medidas provi-sórias e/ou compensatórias que, muitas vezes, mascaram causas e efeitos dos problemas sociais, desviando recursos e esforços para ações que em pouco alteram o panorama da desigualdade”, explica o decano do CFCH.

Dessa forma, o CEG defende a ampliação da democratização do acesso ao Ensino Superior através de medidas como a abertura de cursos noturnos, concessão de bolsas de estudo, aumento do número de vagas e a interiorização dos cursos de graduação da UFRJ no estado do Rio de Janeiro.

Algumas providências efetivas já vem sendo adotadas no âmbito da Pró-reitoria de Extensão (PR-5), a exemplo dos programas de pré-vesti-bular comunitário, mantidos em colaboração com associações de moradores, que contam com cerca de 700 alunos, atendendo as comunidades no entorno da Ilha do Fundão, do bairro do Caju e do município de Nova Iguaçu, facilitan-do o ingresso de estudantes de baixa renda na universidade.

Os pré-vestibulares comunitários são extre-mamente importantes como ação afirmativa, de acordo com Marcelo Corrêa e Castro. Para ele, além de um espaço de acesso ao conhecimento, esses cursos são também lugares de reflexão. “Os pré-vestibulares comunitários podem vir a ser não apenas um mecanismo de socorro pedagógico imediato, mas, sobretudo, espaços de onde se organize, pela reflexão acerca dos problemas sociais e de seu enfrentamento, a de-mocratização da Educação Básica de qualidade”, afirma o professor.

No entanto, segundo Celina Costa, do Cap/UFRJ, eles não podem ser superestimados. “Esses cursos democratizam o acesso a um tipo de ensino valorizado pelos vestibulares, mas não substituem anos de formação contínua no Ensino Básico”, ressalta a professora.

Marcelo Correa e castro

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12 Setembro•2007UFRJJornal da

Entrevista

A Universidade... Do presente, do passado e do futuro

O momento, mais do que nunca, impulsio-na o debate acerca da universidade. Diante da polêmica, do acirramento de divergências em face ao processo de discussão da proposta de Plano de Reestruturação e Expansão da UFRJ (PRE), o Jornal da UFRJ apresenta, com a de-vida “licença jornalística”, uma entrevista com três pensadores essenciais para a compreensão dos caminhos da Educação e do Ensino Supe-rior no Brasil: Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes.

As insólitas entrevistas resultam da leitura respeitosa de parte da obra desses intelectuais. Partindo de perguntas formuladas sobre o atual estágio de ebulição em que se encontra a universidade pública no país, selecionamos trechos dessas obras que contêm idéias que, cerca de 30 anos depois, impressionam por sua atualidade e podem ajudar na compreensão do atual panorama da instituição universitária.

Os textos de Anísio Teixeira em referência são do artigo Uma perspectiva da Educação Su-perior no Brasil (publicado em 1968, na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos) e dos livros Educação e o mundo moderno (Editora Nacional, 1977) e Ensino Superior: análise e interpretação de sua evolução até 1969 (Editora UFRJ, 2005).

As opiniões de Darcy Ribeiro foram recolhi-das de A universidade necessária, livro publicado pela Editora Paz e Terra em 1975. As de Florestan Fernandes, foram retiradas de Universidade Brasileira: reforma ou revolução, publicação de 1979 da Editora Alfa-Omega.

“A universidade não terá nenhuma verdade a dar, a não ser a única verdade possível que é a de buscá-la eternamente”, diz Anísio Teixeira. O filho da pequena Caetités, no sertão baiano, tem um extenso currículo de serviços prestados à Educação no Brasil. Aos 24 anos de idade foi inspetor geral de Ensino do Estado da Bahia.

Posteriormente foi Secretário de Educação do Distrito Federal (1931/1935) e do estado da Bahia (1947).

Em 1935, completou a montagem da rede de ensino do Rio (desde o ensino primário até o superior) com a criação da Universidade do Distrito Federal (UDF). Ao lado da Universidade de São Paulo (USP), inaugurada no ano seguin-te, a UDF mudou o ensino superior brasileiro. A UDF foi extinta em 1939, durante o Estado Novo.

Em 1951, assumiu o cargo de secretário-geral da atual Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior (Capes) e, no ano seguinte, o de diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), onde ficou até 1964.

Anísio foi um dos idealizadores da Univer-sidade de Brasília (UnB), fundada em 1961, entregando à Darcy Ribeiro, que considerava como seu sucessor, a condução do projeto da universidade. Em 1963, tornou-se reitor da UnB, cargo do qual foi afastado durante o golpe militar de 1964. Foi para os Estados Unidos lecionar nas universidades de Columbia e da Califórnia.

O educador também foi conselheiro de Ensino Superior da Organização das Nações Unidas (ONU).

A universidade necessária é uma das inúme-ras causas pelas quais Darcy Ribeiro sempre lutou. Em suas cruzadas, o educador defendeu a escolarização das crianças com os Centros Inte-grados de Educação Pública (Ciep), implantados no estado do Rio na década de 1980, durante o governo de Leonel Brizola. No Ensino Superior,

Darcy foi também um dos responsáveis pela criação da Universidade de Brasília (UnB), da qual foi o seu primeiro reitor, assim como projetou e implantou a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf). Darcy foi minis-tro de João Goulart, vice-governador do Rio e senador da República. O também antropólo-go, que defendia o socialismo com liberdade, afirmava que a “rica direita, desde sempre no poder, sempre soube dar, aqui ou lá fora, a melhor educação a seus filhos”. Enquanto, “aos pobres dava a caridade educativa mais barata que pudesse, indiferente à sua qualidade”. Florestan Fernandes descobriu cedo as faces perversas da elite. Quando criança, a patroa de sua mãe somente o chamava de Vicente por considerar que Florestan não era nome para filho de gente pobre. Mas o menino modesto foi em frente, estudando e trabalhando, ingres-sou na Universidade de São Paulo (USP), de onde também foi professor. Sociólogo atuante, apontava que é “mais do que patente que não sairemos do marasmo econômico e político sem transformarmos, de forma profunda e geral, o nosso sistema de ensino”. Eleito deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, participou do Congresso nacional que elaborou a Constituição de 1988. Devido ao seu engajamento político na universidade, foi perseguido e cassado pela ditadura militar. Defensor permanente da escola pública, Florestan fez da Educação um dos temas centrais de sua vida. Para ele, não poderia existir estado ou sociedade plural sem uma Educação democrática apoiados na escola pública e gratuita.

Jornal da UFRJ: O sistema educacional no Brasil ainda se ressente de uma política de longo prazo?Anísio Teixeira: Os brasileiros depois de 1930 são todos filhos da improvisação nacional, que não só liquidou a escola primária, como invadiu os arraiais do Ensino Secundário e Superior e estendeu pelo país uma rede de ginásios e universidades cuja falta de padrões e seriedade atingiria as raias do ridículo, se não vivêssemos em época tão crítica e tão trágica, que os nossos olhos, cheios de apreensão e de susto, já não têm vigor para o riso ou a sátira.

Jornal da UFRJ: As universidades são avessas a planejamentos? Anísio Teixeira: Nenhuma outra instituição parece tão natural como esta e evolui, como as coisas naturais, por leis próprias ou sem lei nenhuma. Deixa-se levar e, deste modo, se transforma sem saber bem como se está trans-formando. O mesmo se está dando conosco. As nossas escolas superiores deixam-se ir e se vão, assim mudando, aos trancos e barrancos, de repente se vêem diferentes.Jornal da UFRJ: A universidade traz uma his-tória de isolamento? Anísio Teixeira: Em sua evolução, das mais len-tas da História, a universidade, originariamente, misto de claustro e de guildas (associações) medievais, procurou mais se isolar do que par-ticipar do tumulto dos tempos. O seu espírito de segregação ainda era manifestamente acentuado nos meados do século XIX, apesar de se haver iniciado na pesquisa desde o começo desse século. A casa do intelecto partia do saber do

Rodrigo Ricardo

passado para o saber do futuro, mas conservava o objetivo da harmoniosa cultura clássica, a coroar-se com o prazer supremo de buscar o saber e nele deleitar-se em olímpica contemplação.

Jornal da UFRJ: O início da pesquisa nas univer-sidades também aprofundou o seu isolamento?Anísio Teixeira: O saber aplicado e utilitário era olhado com desdém e considerado um abastar-damento dos objetivos da instituição, que visava antes de tudo à vida do espírito. Não percamos de vista que a universidade de preparo de profissio-nais, ou mesmo de cultura geral para a formação da elite, já seria uma universidade de certo modo prática. Com a pesquisa, como foi inicialmente concebida, voltou-se à preocupação pela busca do saber pelo saber, pela torre de marfim, pelo mandarinato de eruditos e pesquisadores.

Jornal da UFRJ: O que tem sido o Ensino Supe-rior brasileiro? Anísio Teixeira: O que andamos fazendo com o nosso Ensino Superior nunca representou originalidade, mas cópia ou eco dessas idéias de universidade que, em diferentes épocas, flutuaram e dominaram os seus respectivos tempos. As esco-las superiores foram escolas profissionais isoladas, criadas separadamente para atender necessidades, de certo modo, imediatas. Com isto, somente tive-mos, no passado, limitada experiência de Ensino Superior, não representando as escolas existentes nenhum esforço integrado pelo desenvolvimento e controle da cultura nacional.

Jornal da UFRJ: A fusão de faculdades não gerou uma universidade integrada?

Anísio Teixeira: Somente no fim do primeiro quartel do século XX viemos agrupar essas escolas superiores existentes sob forma de universidade. E já na década de 1930 é que as reorganizamos como universidades de algum modo mais com-pletas. Sobreviveu ainda assim a tradição de escolas isoladas, dentro da qual expandimos o Ensino Superior até 1960, criando centenas de escolas isoladas, embora chegássemos a agrupar cerca de 50% delas em universidades.

Jornal da UFRJ: Essa fragmentação, de certo modo, espelha a própria sociedade.Anísio Teixeira: Ao homem de cultura liberal sucedeu o especialista e ao especialista, o homem de organização. Este ainda é em muito um me-cânico, procurando suprir a deficiência essencial de unidade da sociedade contemporânea com os substitutivos de relações públicas e de espírito de serviço que, mal ou bem, mantêm a aparência, não direi de harmonia, mas de mútua tolerância. A universidade reflete essa sociedade e, arrastada por ela, distanciou-se da idéia de universidade como concebia Abraham Flexner – educador estadunidense -, para quem tudo deveria funcio-nar dentro de um organismo caracterizado pela elevação e precisão de fim e unidade de espírito e propósito.

Jornal da UFRJ: O acesso à universidade brasi-leira ainda é restrito?Anísio Teixeira: A Escola de Medicina da UFRJ chegava a ter quinhentos alunos no primeiro ano. Pois bem, passou a ter cem (Nota da Redação, vestibular 2008: 192 vagas). Vejam a redução drástica. O fato pode ser observado na simples

evolução da matrícula médica a partir de 1930. Ele é importante, porque revela um dos traços da política de educação superior no Brasil, que é a restrição de matrícula. Com efeito, embora o numerus clausus de matrícula represente preocupação pelos padrões de qualidade do ensino, não se pode dizer que seja somente este o motivo de sua adoção. Pois, ao mesmo tempo em que as escolas assim fecham as suas portas, adota o país, para atender à pressão invencível da procura educacional, a solução de criar novas escolas em vez de ampliar as existentes.

Jornal da UFRJ: É preferível ampliar as atuais escolas do que criar novas? Anísio Teixeira: Não se pode admitir que seja mais fácil criar uma nova escola do que ampliar as já existentes. Se isto se faz, é porque as escolas existentes resistem à sua própria ampliação, seja para manter o prestígio de que gozam, seja por não aceitar o novo esforço necessário à sua ampliação. O fenômeno é indicativo de certo estado de complacência com a situação existente e de resistência à mudança. Logo, embora as escolas de Medicina sejam as mais sensíveis ao progresso científico da profissão médica, nem por isto elas se fazem instituições dinâmicas predispostas à mudança, mas afeiçoam-se aos padrões adquiridos e se fecham como fortale-zas dentro dos seus muros, que não são os da universidade, mas os da própria escola. Por aí, se pode sentir com a circunstância das escolas terem sido criadas como instituições isoladas de ensino profissional leva-as a conservar, ainda quando integradas na universidade, a sua leal-dade à escola e não à universidade.

Fortunato Mauro

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Setembro•2007 13UFRJJornal da

Entrevista

Jornal da UFRJ: É contraditória a opção pela criação de novas universidades em vez de ampliá-las?Anísio Teixeira: Sendo escolas superiores empreendimentos difíceis, cujo êxito requer grande experiência, imensas bibliotecas, grandes instalações materiais e alto professo-rado, o fato de se preferir criar um escola nova a ampliar outra já existente não deixa de ser paradoxal. Dir-se-ia que tratava de questão de espaço e orçamento, mas essa dificuldade também haveria para a nova escola. Antes parece que a escola nutria, a respeito de sua identidade, a idéia de que a perderia com sua ampliação e correspondente crescimento da matrícula.

Jornal da UFRJ: Entre as inú-meras demandas do Ensino Su-perior, quais necessidades ainda não foram atendidas? Anísio Teixeira: Há, sem falar na reestruturação indispensável, duas necessidades que ainda não foram adequadamente atendidas: a da mudança do conteúdo dos cursos e a dos métodos de ensino, em virtude da transformação sofrida pelo conhecimento e saber humanos e pela sociedade em pleno processo de revolução industrial e tecnológica dos nos-sos dias. Essas duas necessidades novas – a dos conteúdos e pro-gramas de Ensino e dos métodos e atitudes do professor – fize-ram do Ensino Superior uma atividade especialmente difícil, profundamente ligada aos pró-prios problemas da sociedade, às suas condições de trabalho em transformação e às novas tecnologias, e voltada para o futuro e não para o passado. O que dava tranqüilidade ao Ensino Superior era não estar comprometido com o futuro, mas com o passado. Hoje a situ-

ação é polarmente oposta: todo o saber foi transformado e está se transformando, e a necessidade de estar em dia com a cultura fez-se absorvente e, de certo modo, angustiosa. Por outro lado, a aplicação do saber à vida de tal modo se ampliou, que em todos os setores do trabalho humano a necessidade de estar continua-mente a aprender veio retirar qualquer sossego do saber estabelecido. A extrema ampliação do saber existente e a ampliação de sua aplicação à vida fizeram da profissão de ensinar a menos isolada, a menos tranqüila e a mais dinâmica das profissões. E como ensinar hoje é um eterno aprender, isto aproximou enormemente o mestre do aluno ou aprendiz, irmanando-os num labor, curiosidade e ofício comuns e idênticos.

Jornal da UFRJ: Por que há tanta resistência na universidade a tudo que possa, mesmo remo-tamente, constituir-se como fator de mudança social?Anísio Teixeira: Quando não tínhamos univer-sidade, já tínhamos o professor com suas qua-lidades e os seus defeitos. Agora, quando ainda não temos a universidade operante e eficaz nas transformações da sociedade, já temos o medo de que ela assim se faça e os movimentos, tão penosa-mente patéticos,contra sua própria fraqueza e sua própria ineficiência, tanto é verdade que mudar não é afinal difícil, não fosse o medo antecipado e irracional contra a mudança.

Jornal da UFRJ: Os estudantes também resistem a mudar?Anísio Teixeira: Embora a educação superior brasileira tenha sido estagnada, pobre, modesta, ela possuía, no sentido de prestígio social, um valor exaltadíssimo. Por isso mesmo, não se pode pedir à mocidade, que busca essa educação ainda tradicional, que seja ela a renovadora de seus métodos e de seu conteúdo. Não pode mover a essa mocidade motivação diversa da que serviu aos que antes a buscavam. Entre as resistências à mudança necessária e indispensável, não está apenas a sociedade brasileira, de si mesma, na-turalmente letárgica, podendo sofrer a mudança, mas raramente a promovendo; não estão apenas os professores ameaçados de perder seus hábitos longamente aceitos; estão os próprios estudantes a tudo isso refletir.

Jornal da UFRJ: A democracia propicia o debate mais aprofundado para o desenvolvimento da educação?Anísio Teixeira: Nossa luta pela democracia parece-me profundamente expressiva. No Brasil, não falta informação democrática, não falta quem exponha a democracia com a maior clareza. Por que, então, não funciona essa democracia? Porque uma coisa é termos idéias na cabeça; outra coisa são essas idéias se refletirem em nossas cabeças. É absolutamente necessário a educação, quando transformarmos as nossas instituições culturais em instituições realmente embebidas no solo

brasileiro, na terra brasileira, na forma de pensar brasileira, no modo de pensar brasileiro.

Jornal da UFRJ: Qual é o peso dos investi-mentos financeiros para o desenvolvimento da educação?Anísio Teixeira: É preciso criar-se a consciência de que o ensino, como a agricultura, a indústria, o comércio, é atividade que tem seus custos im-placáveis e irredutíveis e só cresce se progredirem os recursos que lhe forem aplicados em dia e hora certa, e não festa que se faz de qualquer modo com ou sem dinheiro, por dedicação, amor ou entusiasmo.

Jornal da UFRJ: A inércia da sociedade brasilei-ra e de suas universidades pode ser vencida? Anísio Teixeira: O Brasil, contudo, não é exata-mente uma colônia de bem pensantes. É muito mais uma charada, um enigma, um desafio, um feixe gigantesco de problemas a clamar por solu-ção, uma nação a lutar pelo seu desenvolvimento, e não algo de quieto e pacífico, como as sociedades pré-revolucionárias dos fins do século dezoito. A despeito do que se pense formalmente, muito outro é o curso de sua marcha. A universidade se está agitando, os estudantes fazem-se inconfor-mistas, muitos professores estão ameaçados a se deixar sensibilizar pelos novos tempos e a idéia da universidade de pesquisa e descoberta, da univer-sidade voltada mais para o futuro do que para o passado está visivelmente ganhando forças.

Jornal da UFRJ: Em tempos de reestruturação e expansão, o que deve constituir a missão da universidade pública brasileira?Anísio Teixeira: Ela deve ser profundamente nacional, mas intimamente ligada à grande fra-ternidade internacional do conhecimento e do saber. Contudo, a universidade brasileira tem que ser a grande formuladora e transmissora da cul-tura brasileira. Esta cultura brasileira, concebida como modo geral de vida de toda a sociedade, é algo que está em processo, que se vem elaboran-do e que a universidade irá procurar descobrir, formular, definir, tornar consciente e, deste modo, nela integrar todo o povo brasileiro.

Coryntho Baldez

Jornal da UFRJ: Em sua trajetória, que papel teve a universidade na América Latina?Darcy Ribeiro: Até agora, na América Lati-na, as universidades atuaram especialmente como agentes da manutenção da ordem instituída ou, no máximo, da modernização reflexa de suas sociedades, colaboraram, pois, na tarefa de converter seus povos em consumidores, mais ou menos sofistica-dos, de produtos da civilização industrial. Na qualidade de instituições repetidores e difusoras de um saber já elaborado em outras partes, nossas universidades não contribuíram para integrar suas nações à civilização industrial, como sociedades autônomas, porém para torná-las mais eficazes como entidades dependentes. Com base nessa realidade de legados e fardos, deve-se repensar a universidade latino-americana e prefigurar a forma que terá que assumir amanhã.

Jornal da UFRJ: Qual foi o efeito da implantação tardia da universidade no Brasil?Darcy Ribeiro: Observando-se o conjunto da América, verifica-se que na área de co-lonização espanhola, a universidade surgiu cedo, na zona de influência inglesa seu ad-vento deu-se mais tardiamente e na região portuguesa somente apareceu em décadas

Trechos extraídos do livro A universidade necessária (Ed. Paz e Terra, 1975)

muito recentes. O Brasil apenas contou, no período colonial, com um arremedo de uni-versidade na Bahia, onde eram ministrados cursos propedêuticos para o sacerdócio e os estudos de Direito e Medicina, a serem com-pletados em Portugal. A América Espanhola e a zona inglesa do continente dispuseram, por isto, de quadros intelectuais muito mais amplos e qualificados do que o Brasil para orientar a organização nacional e para reo-rientar o Ensino Superior.

Jornal da UFRJ: A crise da universidade é estrutural?Darcy Ribeiro: A crise é estrutural porque os problemas que apresentam a universidade já não podem ser resolvidos no quadro institu-cional vigente, exigindo reformas profundas que a capacitem a ampliar suas matrículas, conforme as aspirações de Educação Superior da população e, ao mesmo tempo, a elevar seus níveis de ensino e investigação. Como as estruturas vigentes não são cristalizações de modelos ideais, livremente escolhidos, mas resíduos históricos de esforços seculares para criar universidades em condições adversas, nelas se fixaram múltiplos interesses a atuar como obstáculos à sua transformação.

Jornal da UFRJ: A questão da universaliza-ção do acesso à universidade continua sendo um grave problema no Brasil. Por quê?

Darcy Ribeiro: Quando a Repú-blica foi procla-mada (1889) ha-via apenas cinco faculdades, duas de Direito (São Paulo e Recife), duas de Medicina (Bahia e Rio) e uma Politécnica nessa última cida-de. As matrículas desses estabeleci-mentos somavam 2.300 estudantes. O progresso foi muito lento nas décadas seguin-tes, e ainda em 1940 em todo o Brasil havia ape-nas 21.235 estu-dantes de nível superior e recém tinham sido aglu-tinadas algumas facu ldades em seis universidades em processo de estruturação. Em 1950, em com-

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Entrevista

pensação, o Brasil já contava com cerca de 600 cursos e 15 universidades, embora a matrícula global somasse apenas 37.548 estudantes. Ainda hoje, o Brasil se ressente da mesquinhez do colonialismo portu-guês. Seus efeitos são visíveis no fato de continuar sendo a nação latino-americana com menor proporção de população entre e 19 e 22 anos matriculada em escolas de nível superior.

Jornal da UFRJ: Em relação ao modelo acadêmico, qual o nosso legado? Darcy Ribeiro: O modelo inspirador das universidades latino-americanas, de hoje, foi o padrão francês da universidade na-poleônica - na realidade, não uma univer-sidade, mas um conglomerado de escolas autárquicas. É ilusão, entretanto, pensar que o modelo napoleônico foi adotado em sua totalidade, pois sucedeu, precisamente, o contrário. O que caracterizava o sistema educacional da França imperial era, exata-mente, seu conteúdo político de instituição centralizadora, de órgão monopolizador de educação geral, destinado a desfeudalizar e unificar, culturalmente, a França, fazendo do arquipélago de províncias uma nação culturalmente integrada na civilização industrial emergente. Isso não foi herdado pelas universidades latino-americanas. Elas somente receberam a postura universitária fomentadora de escolas autárquicas, o profissionalismo, a erradicação da teolo-gia e a introdução do culto positivista nas novas instituições jurídicas reguladoras do regime capitalista e seus corpos de au-tojustificação.

Jornal da UFRJ: E em que isso resultou? Darcy Ribeiro: A estrutura copiada serviu para orientar a modernização reflexa pela criação de novas escolas autárquicas, para organizá-las internamente e, mais tarde, para aglutiná-las em universidades. Daí provém a estrutura dessas universidades compostas como federações e escolas de

caráter profissionalista, não apenas autár-quicas por sua independência em relação à universidade, como, também, estagnadas por seu isolamento e, inclusive, pela hosti-lidade de umas para com as outras.

Jornal da UFRJ: A estrutura universitária fragmentada advém daí? Darcy Ribeiro: Nessa estrutura universitá-ria, os órgãos com vitalidade própria e tra-dição acadêmica secular são as faculdades ou escolas. A universidade, em si, é uma abstração institucional apenas concreti-zada nos atos reitorais solenes de abertura e encerramento de cur-sos e nas reuniões de congregação. Nelas, os representantes das faculdades disputam parcelas do orçamento, debatem problemas de regulamentação ins-titucional, sempre na obsessão da unidade docente que integram e quase nunca voltados para a própria univer-sidade.

Jornal da UFRJ: A nova universidade deve dar conta da transdisciplinaridade. Quais os maiores obstáculos para que se estabeleça essa nova relação com o conhecimento?Darcy Ribeiro: A rigidez dos curricula, sempre montados para proporcionar for-mação profissional única, sem possibilidade de prover preparação em campos conexos, exceto através da criação de novas unidades escolares, e o isolamento entre as escolas de cada universidade, por falta de mecanismos integradores, também atuantes entre ela e a sociedade.

Jornal da UFRJ: Qual deve ser o compro-misso da universidade com o desenvolvi-

mento social?Darcy Ribeiro: Às nações subdesenvolvidas cumpre enfrentar a tarefa completamente diversa de criar uma universidade capaz de atuar como motor do desenvolvimento. Primeiramente, então, deve-se verificar se é possível inverter aquela seqüência. Quer dizer, criar uma estrutura universitária que não seja o reflexo do desenvolvimento al-cançado pela sociedade, porém seja, ela pró-pria, um agente de aceleração do processo global da nação. Teoricamente, esta é uma tarefa realizável, pois as instituições sociais

não apenas contri-buem para manter as estruturas em que se inserem, como podem concorrer, também, em certas circuns-tâncias, para a altera-ção dessas estruturas, exercendo uma ação renovadora.

Jo r n a l d a U F R J : Como aplicar, efeti-vamente, o princípio da autonomia uni-versitária?Darc y R ib eiro: A reivindicação de go-vernar-se livremente,

também representa aspiração permanente da universidade, sempre negada pela con-tradição irredutível entre a sua vontade de ser livre e sua dependência do poder estatal financiador. Essa luta sempre foi travada na América Latina, com a cons-ciência de que, não obstante as dificulda-des implícitas, a dependência do Estado, como órgão que custeia, é preferível a suas alternativas: sujeição à igreja ou aos mecenas.

Jornal da UFRJ: A universidade deve dar que tipo de apoio aos outros níveis de en-sino?

Darcy Ribeiro: A universidade, como cúpula do sistema educacional, mantém interdependências e tem deveres específi-cos com os órgãos de ensino de todos os níveis, somente desempenháveis adequa-damente ao assumir a responsabilidade de formar o magistério de nível médio e uma ampla variedade de especialistas em problemas educacionais do ensino primá-rio e médio. Para isto, deve contar de com uma Faculdade de Educação dotada de centros de experimentação educacional, planejados como modelos multiplicáveis de escolas e com núcleos de elaboração de materiais didáticos e de experimentações de novos procedimentos destinados a melhorar os métodos e níveis do ensino primário e médio.Jornal da UFRJ: Por que se impõe um novo modelo de universidade?Darcy Ribeiro: Um modelo estrutural novo impõe-se como necessidade im-postergável, precisamente, por nossas universidades serem incapazes de crescer e aperfeiçoarem-se nas condições atuais, a partir das estruturas vigentes ou dos mo-delos cristalizados em outras áreas, com os recursos disponíveis. E, sobretudo, porque tais estruturas servem antes à perpetuação do status quo do que à sua mudança.

Jornal da UFRJ: Como, na prática, im-plantar esta renovada universidade? Darcy Ribeiro: Falamos de um modelo teórico ou de uma universidade de uto-pia, que devem ser encarados e criticados como tais. Sua função é a de uma tábua de valores que permita avaliar criticamente a universidade real; sua validade prática é a de um corpo de metas ou fins possi-bilitadores da apreciação de cada projeto concreto de transformação da estrutura universitária, a fim de verificar se ele permitirá passar do estado atual a uma nova forma mais eficaz ou se fortalecerá a estrutura presente, dando-lhe maior eficácia.

Jornal da UFRJ: Qual a necessidade de um plano de reestruturação universitária. É tempo de repensar a instituição?Florestan Fernandes: É preciso que saibamos, com plena convicção, o que pretendemos e como avaliar as funções sociais construtivas da universidade. Se não para sermos ouvidos e exercermos influência, pelo menos para defendermos com responsabilidade e coragem as posições que já assumimos e que precisam ser mantidas. Cada nação e cada povo possuem a universidade que merecem. Acabaremos muito mal, nesse terreno, se não soubermos o que queremos e, principalmente, se não soubermos lutar pelo que queremos. O ideal de construir a universidade passou a associar-se, definida e crescentemente, ao ideal correlato de envolver o universitário nos dilemas econômicos e políticos de sua comunidade. Se quisermos conceder uma oportunidade histórica à juventude brasileira, precisamos descobrir recursos novos, que aumentem a qualidade de sua consciência da situação, o amadurecimento de suas técnicas políticas e o aperfeiçoamento de seus alvos sociais. Tudo isto leva numa mesma direção: um ensino universitário autêntico e que prenda de modo ativo, consciente e responsável o jovem ao fluxo de reconstrução social no ambiente.

Trechos extraídos do livro Universidade Brasileira: reforma ou revolução (Ed. Alfa-Omega, 1979)

Bruno Franco

Jornal da UFRJ: O modelo atual de universidade atinge os fins aos quais se propõe?Florestan Fernandes: A nossa escola superior converteu-se, no que poderia se chamar, com muita propriedade, de “escola-problema”. Nas Ciências Sociais, aplica-se essa noção a instituições que organizadas para certos fins e dar determinado rendimento, não fazem uma coisa nem outra, deixando de preencher satisfatoriamente as funções psicossociais ou socioculturais que justificam sua existência. Ela se converteu em uma escola especializada. Uma miniatura da sociedade global: uma escola altamente hierarquizada, rígida e exclusivista, que transformava o saber em símbolo de distância social, a atividade educacional em fonte de poder e os professores em agentes pessoais do controle gerontocrático das gerações novas. A escola superior nunca chegou a contar com os recursos materiais e humanos adequados, porque ela era vista à luz do uso que a sociedade fazia de seus graduados e dela própria. Em conseqüência, os efeitos negativos da especialização, isolamento e incapacidade de autocrescimento agravavam-se seriamente, tornando-se a escola superior uma instituição condenada ao estiolamento e à apatia relativa. Quando a deterioração

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das instituições atinge as proporções indicadas, a patologia adquire o significado de normalidade.

Jornal da UFRJ: Como a universidade br a s i l e i r a re s o l ve r i a e s s e c ar át e r problemático?Florestan Fernandes: Elas precisam deixar de ser escolas-problema e universidades-problema. Para que isto ocorra, elas terão de passar por uma complexa evolução, que destrua o antigo padrão de escola superior tradicional e crie, simultaneamente, o novo padrão de universidade integrada e multifuncional. Precisamos ter a coragem de romper completamente com a ordem educacional vigente. Devemos ter a audácia de lançar as bases de uma política educacional adequada às condições da sociedade brasileira e aos desígnios de autonomia nacional e de desenvolvimento econômico, sociocultural e político. Cumpre fixar os caminhos da nossa revolução educacional. Já perdemos muito tempo com soluções paliativas e com remendos engenhosos, mas inúteis e ridículos. Herdamos da colonização portuguesa, da sociedade senhorial e escravista, e da oligarquia da Primeira República, níveis ínfimos de aspiração educacional, a propensão a bloquear a democratização do ensino e a concepção de que o ensino superior constitui um privilégio das elites das classes possuidoras. Agora temos de escolher entre duas orientações. Ou continuamos a defender o mesmo farisaísmo que nos conduziu a essa escabrosa situação educacional ou rompemos contra esse farisaísmo, revolucionando o nosso sistema escolar, usando o ensino, e em especial o ensino médio e o superior como um meio de ruptura da inércia cultural. A escola é uma produção do homem. Ela pode ser explorada de várias maneiras. A questão que se coloca diante de nós consiste em saber se pretendemos utilizá-la para instituir no Brasil um novo tipo de civilização.

Jornal da UFRJ: É adequado falar em reforma universitária?Florestan Fernandes: O termo reforma universitár ia tem sido empregado, convencionalmente, por estudantes, professores e leigos, para designar as medidas quantitativas e qualitativas a serem tomadas para adaptar o sistema de ensino superior às atuais exigências da situação histórico-social brasileira. Todavia, o volume das exigências quantitativas e o alcance das mudanças que precisariam ser introduzidas para atender às exigências qualitativas indicam que estamos diante de um processo de revolução educacional.

Jornal da UFRJ: A tão falada fragmentação da universidade é uma quimera ou uma realidade?Florestan Fernandes: A universidade brasileira assumiu o caráter de uma conglomeração de escolas superiores. Tornou-se patente que a conglomeração de escolas superiores é um fato de desorganização, de desperdício e de atrofiamento da expansão do ensino. O padrão institucional da escola superior não é só rígido. Ele promove a subutilização crônica dos recursos educacionais mobilizáveis institucionalmente e é cego às exigências educacionais de uma sociedade em integração nacional e em mudança. Falamos em reforma universitária quando deveríamos falar em organização da universidade.

Jornal da UFRJ: Projetos do governo federal pouco abarcam a pós-graduação e a Pesquisa. Há sentido nessa dissociação entre Ensino e investigação científica, pilares da

universidade pública de qualidade, ao lado da Extensão?Florestan Fernandes: Os dois setores possuem importância própria e nenhuma razão recomendaria a expansão unilateral de um ou de outro. Ao contrário, uma sociedade cônscia de seu destino nacional tem o maior interesse no crescimento concomitante e interdependente de ambos. O Brasil possui tanto interesse em expandir o ensino moderno, de bases cientificas e pragmáticas. À pesquisa fundamental e às suas descobertas é que se associam os dividendos mais compensadores e decisivos do salto cultural, que pode levar uma nação ao controle relativo do seu destino histórico.

Jornal da UFRJ: A expansão e qualificação do Ensino Superior do país depende da sua assunção como prioridade pelo governo no rateio dos parcos e mal-geridos recursos públicos?Florestan Fernandes: A questão não é tanto de montante de recursos mobilizáveis, mas do critério de rateio social desses recursos. Organizada econômica, social e politicamente para crescer numa situação de dependência, a sociedade capitalista dependente reluta e omite-se diante de aplicações de recursos escassos que não são reproduzidos de forma imediatista. Para que esse circulo vicioso não se converta numa fatalidade, forçando a perpetuação indefinida de ajustamentos educacionais de cunho irracional, destrutivo e perigoso, precisamos subverter os critérios vigentes de rateio social dos recursos destinados a fins que não são vitais para a nação como um todo. Os critérios de rateio social permitem atender esses serviços nos limites que as classes possuidoras aceitam ou entendem como conveniente. Como o Estado concorre com a grande massa dos recursos, poder-se-ia afirmar que a coletividade priva-se de considerável massa de recursos em benefício das classes possuidoras e obtém, em troca, um estado de permanente desequilíbrio interno e a eternização do subdesenvolvimento. A instituição é uma sociedade em miniatura. Possui uma estrutura, pessoal e cultura próprios; e conta com padrões organizacionais específicos, que regulam sua capacidade de atender aos fins e às necessidades sociais que dão sentido à sua existência, continuidade e transformação. Tais ritmos não são, porém, autodeterminados e autosuficientes. O meio societário cria a estrutura de meios e fins, que relaciona, historicamente, a instituição com as necessidades sociais por ela atendidas, e que calibra, funcionalmente, o quanto ela poderá render ou crescer, dadas certas condições materiais e morais de existência social.

Jornal da UFRJ: Como se deu a construção da escola superior, embrião da universidade, no Brasil?Florestan Fernandes: Sob a pressão da transferência da Corte, da reorganização do poder político e da adaptação do Brasil aos requisitos dessa “metropolização” forçada, o que se desencadeava era um processo intensivo de modernização controlada em larga escala. O que se montou foi uma escola superior despojada de funções culturais criadoras, estritamente orientada para servir de elo entre modernização e progresso cultural no exterior. Sob esse prisma, o eixo de atividade construtiva gravitava em torno de uma polarização cultural dependente. Ao concorrer para organizar e intensificar a transplantação cultural sistemática, a escola superior contribuía para diminuir a distância histórica existente entre Portugal, a Europa e o Brasil. Todavia divorciava o próprio enriquecimento paulatino dos conteúdos do ensino superior do pensamento inventivo interno e da modernização cultural independente. Os modelos institucionais

portugueses não puderam ser transplantados em bloco e absorvidos em toda a sua plenitude. Nem como parte da política seguida pela Coroa portuguesa, nem como efeito dos processos histórico-sociais espontâneos chegou a concretizar-se qualquer tentativa de transferir para o Brasil o autêntico padrão metropolitano de universidade. No conjunto, pois, a mudança da Corte não pressupunha nem conduzia a uma transferência de ritmos históricos, sociais e culturais. A estrutura econômica e social da sociedade colonial brasileira impunha seus próprios ritmos aos padrões culturais transplantados, tolhendo o impacto da modernização e orientando seus efeitos mais profundos – os da natureza institucional – na direção da consolidação e aperfeiçoamento da ordem social existente, baseada na estratificação interétnica e na dominação patrimonialista dos estamentos senhoriais.

Jornal da UFRJ: Era viável a aplicação do modelo português?Florestan Fernandes: Embora fosse demasiado complexa para a sociedade brasileira, a universidade portuguesa estava em considerável atraso no cenário europeu. Esse processo de senilização institucional precoce tinha, portanto, dupla origem. Em parte, ele procedia do atraso cultural relativo dos modelos institucionais portugueses. Em parte, ele provinha do condicionamento sociocultural do ambiente, e das necessidades educacionais que ele alimentava ao nível do ensino superior. A sociedade brasileira empobreceu aqueles modelos, converteu a sobra residual no padrão brasileiro de escola superior e submeteu esta última a uma utilização sistematicamente precária. A sociedade não valorizou o ensino superior como e enquanto tal; porém, o que entendia ser o seu produto final, nas

realizações pessoais. Daí o fato do diploma e do grau de doutor acabarem atuando como fatores dinâmicos de inércia cultural.

Jornal da UFRJ: Seria um anacronismo a gratuidade do ensino superior público ou uma conquista a ser defendida?Florestan Fernandes: Através da gratuidade do ensino superior surgiram estímulos e suportes para expandir o sistema oficial de ensino superior, ou seja, de instituir-se o controle nacional de serviços educacionais e culturais de importância vital para a nação. As fórmulas privatistas dos centros hegemônicos deram bom rendimento nesses centros por causa da capacidade de crescimento autosustentado de sua economia, de sua ciência, de sua tecnologia, de sua educação etc. A gratuidade no ensino deve ser defendida sem subterfúgios. Não se deve ignorar que ela não só produziu e continuará a produzir conseqüências úteis como constitui, por si mesma, um valor que deveríamos estimar e defender.

Jornal da UFRJ: Cabe afirmar que o Estado tem protagonismo imprescindível e decisivo na revolução universitária?Florestan Fernandes: A contribuição da intervenção estatal não é suficiente para anular os focos de estagnação ou de atraso cultural relativos. Porém se ela não se manifestasse, a distância cultural entre os dois tipos de nações assumiria o caráter de um fosso intransponível. A modernização das universidades dificilmente poderá processar-se fora e acima da intervenção direta e maciça do Estado. Os custos e a complexidade das inovações envolvidas são excessivos para a iniciativa privada existente no setor.

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Jornal da UFRJ: Qual a necessidade de um pla-no de reestruturação universitária. É tempo de repensar a instituição?Florestan Fernandes: É preciso que saibamos, com plena convicção, o que pretendemos e como avaliar as fun-ções sociais construtivas da universi-dade. Se não para sermos ouvidos e exercermos influ-ência, pelo menos para defendermos com responsabilidade e coragem as posições que já assumimos e que precisam ser mantidas. Cada nação e cada povo possuem a uni-versidade que me-recem. Acabare-mos muito mal, nesse terreno, se não soubermos o que queremos e, principalmente, se não soubermos lutar pelo que queremos. O ideal de construir a universidade passou a associar-se, de-finida e crescente-mente, ao ideal cor-relato de envolver o universitário nos dilemas econômicos e políticos de sua comunidade. Se quisermos con-ceder uma opor-tunidade histórica à juventude bra-sileira, precisamos descobrir recursos novos, que aumen-tem a qualidade de sua consciência da situação, o ama-durecimento de suas técnicas po-líticas e o aperfeiço-amento de seus alvos sociais. Tudo isto leva numa mesma direção: um ensino universitário autêntico e que prenda de modo ativo, consciente e responsável o jovem ao fluxo de reconstrução

Universidade

Fugindo da Escola

Ingressar na universidade pode ser o sonho da grande parte dos jovens brasileiros. No entanto, uma parcela cada vez maior dos estudantes abandona o curso e não se forma. Considerada polêmica por ser geralmente relacionada ao fracasso das instituições de ensino, a

evasão é pouco discutida no ambiente acadêmico e suas causas se confundem com o próprio sistema

universitário, além, é claro, de outros fatores sociais.

Joana Jaharailustração Anna Carolina Bayer

Tabu. É dessa forma que a eva-são universitária ainda é tratada nas

Instituições de Ensino Superior (IES). Suas causas têm sido pesquisadas no

âmbito das próprias universidades, mas essas ainda não incorporaram a trajetória

de seus alunos como uma prática de ava-liação interna. Não há divulgação de dados

sobre estudantes que abandonam a univer-sidade, fato explicado, em parte, pelos altos índices que, normalmente, são associados à ineficiência das instituições. No entanto, a conotação negativa que ronda o tema es-conde a falta de debate e, conseqüentemente, impedem a adoção de medidas eficazes para a permanência dos estudantes.

Os esforços para a compreensão do tema são relativamente recentes e pouco

sistemáticos no Brasil. A questão começou a ser incorporada na agenda das políticas públicas somente em 1994, após a instituição do Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (Paiub). A iniciativa teve por objetivo o aperfeiçoamento contí-nuo do desempenho acadêmico e a presta-ção de contas da universidade à sociedade, caracterizando-se como uma ferramenta de

planejamento, gestão e desenvolvimento da Educação Superior.

No entanto, foi somente a partir do “Semi-nário sobre a evasão nas universidades brasi-leiras”, organizado pela Secretaria de Ensino Superior (SESu) do Ministério da Educação, em fevereiro de 1995, que o tema começou a ser estudado mais profundamente. Como re-sultado, a criação de uma comissão composta por representantes das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) e do Ministério da Educação. Suas pesquisas, reunidas em um relatório intitulado “Diplomação, retenção e evasão nos cursos de graduação em Insti-tuições de Ensino Superior Públicas” (1997), foram as primeiras que consideraram a evasão universitária em âmbito nacional, analisando não apenas as taxas de abandono, mas também as de diplomação e as de retenção dos alunos nas instituições.

A falta de ferramentas práticas capazes de avaliar o desempenho das universidades, porém, levou o governo federal a criar, em 2004, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), que apresenta, entre suas propostas, a análise da atuação dos estudantes e cursos de graduação por

meio do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade). No entanto, de acordo com Sabrina Moehlecke, professora e pesquisadora do Grupo de Estudos dos Sistemas Educacionais (Gesed) da Faculdade de Educação (FE/UFRJ), isso não tem sido suficiente para diminuir o problema da evasão. “Ainda são poucas as informações disponíveis sobre essa questão em âmbito nacional. Para entender esse fenômeno, precisa-se superar o receio que há em debater esse assunto e evitar as simplificações excessivas que por vezes são feitas na divulgação dessas informações”, afirma a professora.

CausasÉ possível identificar três tipos de evasão: a

de curso, a de uma instituição, em particular, e a do Ensino Superior, como um todo. Cada um deles tem causas específicas. De acordo com Sabrina Moehlecke, no caso da evasão por curso, o principal fator é a escolha prematura da carreira a ser seguida. “Os estudantes nem sempre têm uma idéia muito clara de cada curso superior e de seus programas oferecidos, dificultando uma escolha mais segura”, explica a pesquisadora, apoiada por Belkis Valdman,

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pró-reitora de Graduação (PR-1) da UFRJ. Para ela, “as lacunas de formação no Ensino Médio favorecem o desconhecimento das dificuldades acadêmicas, principalmente em áreas como Matemática, Física e Química”.

Tais dificuldades nessas áreas de conheci-mento são justificadas pelas taxas de conclusão em carreiras de Ciências Exatas e Engenharias. No caso da UFRJ, somente 50% dos alunos que ingressam nesses cursos se formam ou colam grau. Esse percentual é baixo se comparado com o das áreas de Ciências da Saúde, Jurí-dicas, Econômicas e Sociais, além dos cursos de Letras e Artes, cuja taxa de conclusão varia entre 80 a 90%. Mesmo assim, os índices de Ciências Exatas e Engenharias da UFRJ são muito próximos aos de outras IES do país e do mundo.

No que diz respeito à instituição em parti-cular, a organização do currículo – geralmente fragmentado e especializado, sem visão de conjunto - e a pouca oferta de cursos notur-nos nas universidades federais acabam por afastar os estudantes que precisam trabalhar para se sustentar. Além disso, segundo Belkis Valdman, a dificuldade de adaptação social também conta. “O novo ambiente da universi-dade é mais competitivo e segregador se compa-rado com o do Ensino Médio. No caso da UFRJ, apesar de ter melhora-do muito nos últimos anos, há ainda condições não muito favoráveis, principalmente quanto aos espaços propícios ao estudo e a integração em trabalhos em grupo”, afirma a pró-reitora, que é professora da Escola de Química (EQ) da UFRJ.

A evasão do Ensino Superior como um todo, no entanto, é consi-derada a mais grave. De acordo com o último Censo da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/Ministério da Educa-ção), a taxa de evasão anual média é de 22% no Brasil, um número bastante alto levando-se em consideração os quase 75% da população jovem ainda fora dos cursos superiores.

Nesse sentido, a exclusão é algo estrutural, relacionado à sociedade de consumo, segundo avaliação de Ruth Helena Pinto Cohen, pro-fessora do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia (IP) da UFRJ e coordenadora do Projeto de Pesquisa e Intervenção sobre o Fracasso Escolar (Aleph), ligado ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (Nipiac/IP).

O exercício do diálogo entre professores e alunos e o maior tempo de preparação exigido pela academia vêm perdendo espaço para o imediatismo que domina o mercado de trabalho. “O jovem da sociedade atual tem pressa em ganhar dinheiro. O saber não é mais o objetivo, usufruir de bens é o que predomina”, afirma Ruth Cohen. Ainda de acordo com ela, isso muda a forma como os jovens vêem a carreira que pretendem seguir. “O percurso acadêmico é escolhido entre as profissões que prometem lucro financeiro e não mais se constituem em um ideal”, comple-ta a pesquisadora. Para quem, nesse percurso,

o fato de o diploma universitário não ser mais garantia de emprego no mercado de trabalho colabora com o abandono do curso superior. O aumento da competitividade confere uma nova função ao diploma. O que antes era con-siderado essencial para aferir conhecimentos exigidos no exercício de determinada função agora é visto, freqüentemente, como mais um mecanismo de seleção de candidatos.

PerfilMas qual é o perfil do aluno que tem a

oportunidade de concluir um curso uni-versitário e não se forma? Estudos na área identificam o estudante oriundo de estratos sociais inferiores, inserido no mercado de trabalho, egresso de escolas públicas e com experiência pregressa no Ensino Superior como a principal vítima da evasão. Dois terços dos abandonos ocorrem ainda no primeiro ano do curso.

Esse retrato do aluno evadido é relativa-mente novo. De acordo com Sabrina Mo-ehlecke, ele é resultado da inadequação das instituições quanto à ampliação das condições não somente de acesso, mas também de per-manência. “Tem ingressado nas universidades

um novo tipo de estudante, oriundo de escola pública, a primeira geração a alcan-çar esse nível de ensino e sem condições de se dedicar exclusivamente aos estu-dos. Esse é um dado muito positivo e que faz parte do processo de democratização do Ensino Superior no país”, explica a professora.

Um outro perfil também é bastante presente entre os que abandonam: o do estu-dante já inserido no mercado de trabalho que busca a uni-

versidade para a complementação dos estudos, sem ter o diploma como meta principal. Essa situação, relacionada às novas exigências do mercado de trabalho e à necessidade constante de aperfeiçoamento, seria responsável por 20% do total de evasão, segundo estudo - Acesso e Permanência no Ensino Superior - conduzido por Sabrina Moehlecke.

Contudo, a formação familiar atual exerce papel preponderante no abandono da univer-sidade. De acordo com Ruth Cohen, o fato de os jovens adiarem o exercício de atividades mais independentes, postergando sua saída da casa dos pais, contribui para a evasão. “É o medo natural de enfrentar o mundo, alimenta-do pela culpa dos pais, frente ao pouco tempo dedicado aos filhos em virtude do mercado de trabalho”, afirma a professora, que também é psicanalista.

Conseqüências e possíveis soluçõesDo ponto de vista da universidade, a

evasão traz sérias conseqüências. Para Belkis Valdman, o problema vai além da falta de efi-ciência na formação dos futuros profissionais. “É um desperdício de recursos e esforços, que se torna grave se lembrarmos que apenas um percentual muito baixo de jovens em nossa sociedade tem o luxo do acesso ao Ensino Superior”, afirma a pró-reitora. No que diz respeito à perspectiva social, Ruth Cohen complementa afirmando que “a conseqüên-cia mais grave é a falta de cabeças pensantes,

de tempo para criar e achar soluções mais humanas para os problemas do dia-a-dia”.

Nesse sentido, novas pro-postas têm surgido nos últimos meses na UFRJ, a fim de con-tornar o problema. Discussões da Comissão do Plano de De-senvolvimento e Expansão, cria-da pelo Conselho Universitário (Consuni), em conjunto com as unidades acadêmicas, têm procu-rado propiciar maior adaptação dos estudantes de graduação, aumen-tando assim as taxas de conclusão de curso. Dentre as medidas, estão incluídas a melhoria nas condições de infra-estrutura, a oferta de dis-ciplinas especiais de recuperação e nivelamento, o aumento do número de cursos noturnos e a introdução de novas metodologias e atividades curriculares de laboratório.

A interação e os relacionamen-tos na universidade também mere-cem destaque no combate à evasão. De acordo com Sabrina Moehlecke, o sentimento de pertencimento e o apoio dos colegas têm sido obser-vados como fator importante para a permanência do estudante no Ensino Superior. “Os alunos que concluem o curso, ou que ainda permanecem na universidade, estabelecem laços de amizade com muito mais freqüência do que os evadidos, que, em geral, limitam seus contatos em questões relativas às disciplinas”, explica a pesquisadora. Já no campo da relação docente-discente, as co-ordenações de Apoio Acadêmico (COAA), na UFRJ, procuram acompanhar, orientar e integrar professores e alunos, promoven-do um maior aproveitamento das atividades promovidas pela universidade.

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18 Setembro•2007UFRJJornal da

Universidade

É hora de mudarDiscussões do Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ (PRE) estimulam comunidade

acadêmica a refletir sobre a necessidade de transformações na estrutura institucional.Aline Durães, do Olhar Virtual

Durante o mês de setembro, a Admi-nistração Central da UFRJ participou de reuniões de todos os conselhos de Centro e promoveu audiências públicas com a comu-nidade acadêmica para discutir a proposta de Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ (PRE). Se aprovada pelo Conselho Universitário (Consuni), a proposta será enviada ao Ministério da Educação e obterá recursos oriundos do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, instituído pelo go-verno federal, em abril deste ano, por meio do decreto nº 6.096.

Essa última versão da proposta do PRE/UFRJ, apresentada pela Reitoria, para discussão na comunidade e para análise e decisão pelo Consuni, incorpora em grande parte as sugestões e reparos propostos du-rante os debates que vêm sendo realizados em toda a universidade e é composto de três módulos.

O primeiro, de execução imediata, prevê ações relativas à ampliação de vagas em cur-sos existentes, nas modalidades presencial diurno e presencial noturno, e referentes à criação de novos cursos, na sede e fora da sede.

O segundo e o terceiro módulos – que terão oito meses para que sejam discutidas e elaboradas diretrizes, metas e ações de implantação - referem-se, respectivamente, à integração acadêmica e à construção das bases da universalização da educação supe-rior. O reitor Aloísio Teixeira destaca que a primeira subparte do anteprojeto, apesar de prever a abertura de 3.400 vagas nos cursos de graduação, não é o suficiente para im-primir mudanças significativas na estrutura elitista e fragmentada da UFRJ. De acordo com ele, as subpartes 2 e 3 do anteprojeto, por sugerirem iniciativas inovadoras, visam efetivamente a construir um novo modelo de universidade, mais democrático e aberto à sociedade.

No decorrer das audiências públicas, a Reitoria esclareceu que o anexo II constante

da publicação que divulgou o anteprojeto do PRE apenas relacionava idéias recolhidas na fase de elaboração do texto e que não será objeto de deliberação do Consuni. Aloísio destaca que o anexo, que enumerava exemplos de intervenções estruturais que poderiam ser realizadas nos campi da Ilha da Cidade Universitária e da Praia Verme-lha, suscitou polêmica e, em certa medida, prejudicou a discussão.

Necessidade da mudança A principal marca do PRE/UFRJ é a

ousadia. Isso porque o programa pretende atender, simultaneamente, às demandas ge-radas pelo conhecimento contemporâneo, cada vez mais integrado, e às exigências so-ciais de universalização do acesso ao Ensino Superior. No Brasil, apenas cerca de 2% dos jovens, entre 18 e 24 anos, freqüenta uni-versidades públicas. Esse número é inferior ao de países menos desenvol-vidos como o Equador e o Panamá, nos quais 30% da juventude está na universidade; na Argentina, no Uruguai e no Chile, mais do que isso.

As metas do Progra-ma de Reestruturação contemplam ações de f lexibilização curri-cular, que, ao promo-ver um trânsito maior dos estudantes entre as unidades, possibi-litará uma formação mais completa. Além disso, o projeto prevê a ampliação no número de vagas que, somada às novas modalidades de Ensino, atenderá também aos setores menos privilegiados

socialmente da população.Para a Reitoria, o cerne da

discussão proposta pelo PRE/UFRJ é o questionamento acerca da concepção de uni-versidade. “Hoje, existe uma idéia quase hegemônica de que a universidade deve ser elitista, bacharelesca, frag-mentada e profissionalizante. Esse modelo de universidade foi criado para servir às eli-tes e não para dar conta dos problemas do país. A gente está diante de uma oportu-nidade única de mudar essa concepção. E tem que ser agora. Se deixarmos forças conservadoras nos paralisar, perderemos a chance de transformar a instituição, de construir um novo modelo acadêmico reclamado pela contemporaneidade e de avançar na direção da con-quista de nossa reivindicação

histórica de universalização do acesso”, avalia Aloísio Teixeira.

VerbasAs universidades com PRE aprovados

pelo Ministério da Educação receberão, anualmente, um acréscimo de 20% sobre o orçamento de custeio e pessoal. Segundo cálculos realizados pela Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento da UFRJ (PR-3), isso significará um investimento superior a R$ 2 bilhões nas Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes).

Já em 2008, a UFRJ contará com R$ 16 milhões a mais para as despesas de custeio (que incluem gastos com pessoal, serviços e material), totalizando um orçamento de R$ 108 milhões. As verbas, cujo aumento anual está condicionado ao cumprimento das diretrizes traçadas no PRE, atingirão,

em 2012, o montante de R$ 180 milhões.Esses recursos viabilizarão a contratação

de 700 docentes, 800 técnicos-administrati-vos de nível médio e 800 de nível superior. Os gastos com pessoal chegarão na univer-sidade a R$ 66,5 milhões. As verbas restan-tes, cerca de 110 milhões, serão empregadas em outros custeios (OCC).

As Ifes serão contempladas também com R$ 500 milhões anuais destinados às despe-sas de capital (relacionadas à obtenção de máquinas e equipamentos, à realização de obras e à aquisição de imóveis, por exem-plo). No caso específico da UFRJ, até 2012, a universidade terá R$ 110 milhões para investir em sua ampliação. “Apesar de serem insuficientes, não podemos negar que esses são recursos expressivos, principalmente se considerarmos que, até alguns anos, não tínhamos um centavo para investimento”, lembra o reitor da UFRJ.

CríticasA forma de financiamento estabelecida

no Reuni tem provocado críticas. Setores da universidade acreditam que o governo federal fere o princípio da autonomia uni-versitária, na medida em que condiciona a alocação de recursos ao cumprimento das metas pré-estabelecidas no decreto.

Esses segmentos defendem ainda que o montante previsto pelo Reuni não será capaz de financiar a expansão de vagas. De acordo com os críticos do Reuni e do PRE/UFRJ, ocorrerá uma diminuição de investi-mento de custeio por aluno, o que resultará, em última instância, na queda da qualidade do ensino na universidade.

As críticas não se resumem à questão de verbas. Para os estudantes ligados à Coor-denação Nacional de Luta dos Estudantes (Conlute) e ao Movimento Correnteza, que condenam o PRE/UFRJ, já que entendem que ele constitui a adesão da UFRJ ao Reu-ni, o decreto governamental subentende a implantação do sistema de aprovação auto-

Levi/ PR3

PRE ECO

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Setembro•2007 19UFRJJornal da

Universidade

mática nas universidades, quando propõe a elevação gradual da taxa de conclusão dos cursos de graduação para 90%.

Esses estudantes entendem ainda que a carreira docente será precarizada. Segundo eles, o sistema de professor-equivalente facilitará a substituição progressiva do quadro docente efetivo por professores substitutos. “O Reuni é parte da política econômica do governo Lula, que pretende manter o Brasil no modelo agrário-expor-tador. Essa política atende aos interesses do Banco Mundial, que, já na década de 1990, determinou que os países subdesenvolvidos não devem produzir conhecimento, mas apenas assimilá-lo. O governo não quer de fato democratizar o ensino; ele quer fazer estatística e vai transformar a universidade em um ‘escolão’”, critica Natália Russo, es-tudante do 6º período do curso de Direito da UFRJ.

Nem todos os estudantes compartilham da opinião de Natália. Muitos deles compa-recem às reuniões promovidas pela Reitoria para manifestar apoio aos objetivos do PRE/UFRJ. Os vinculados principalmente à União Nacional dos Estudantes (UNE), aos Centros Acadêmicos de vários cursos e ao Diretório Central dos Estudantes Mário Prata (DCE/UFRJ), confiam que o Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ se constitui em um passo decisivo no caminho para a transformação da institui-ção universitária brasileira.

Eles discordam da visão de que o Reuni constitui uma afronta à autonomia universitária e defendem a liberdade de a universidade elaborar projetos próprios, e destacam as possibilidades suscitadas pelo PRE/UFRJ no sentido de a comunidade acadêmica pensar novas modalidades de ensino que não se encerrem na graduação convencional.

Durante as discussões, esse setor do movimento estudantil da UFRJ alertou a comunidade universitária para os malefí-cios do sectarismo que tem caracterizado o discurso de alguns setores antagônicos ao Reuni. Segundo eles, a postura radical-mente contrária adotada pelos estudantes da Conlute impede a realização de um debate crítico acerca de cada uma das di-retrizes definidas no PRE/UFRJ. “É muito ruim ver alguns estudantes se colocarem simplesmente contra ou a favor do Reuni e do PRE/UFRJ. Parte deles, inclusive, condena o Reuni apenas por ele ter sido idealizado pelo governo federal. Indepen-dentemente das nossas opiniões pessoais sobre o governo, precisamos perceber que esse programa promoverá avanços para a UFRJ”, sublinha Sérgio Duarte, aluno do Instituto de Psicologia (IP) e ex-integrante do DCE - Mário Prata.

Reordenação espacial e resistênciasUm dos pontos mais polêmicos do an-

teprojeto da UFRJ é a proposta de sua reorganização espa-cial. O PRE/UFRJ sugere concentrar na Cidade Uni-versitária todos os cursos de graduação, o que implicaria a transferência das unidades de ensino localizadas no campus da Praia Vermelha e no Centro da cidade do Rio de Janeiro.

A concentração de cursos con-siste em um projeto de inte-gração acadêmica. Aloísio Teixeira salienta que o combate à fragmentação universitária passa por uma aproximação física dos cursos de graduação e por uma reformulação

curricular que permita ao estudante cursar disciplinas de livre escolha nas unidades que mais lhe interesse. Outra justificativa é a falta de estrutura adequada nos prédios atuais de algumas unidades, como o da Faculdade de Direito (FD) e o do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), para comportar a ampliação de vagas prevista no PRE/UFRJ.

A construção dos novos prédios da Cidade Universitária terá pior referência uma concepção integrada de universidade, segundo Aloísio, que explica que não haverá edifício próprio para cada instituto, mas sim pavilhões de uso comum, com salas de aula, bibliotecas, laboratórios, salas de professores e áreas para convívio.

Algumas unidades, porém, resistem à iniciativa. A Escola de Comunicação (ECO) e a Escola de Música (EM), por exemplo, argumentam que o contato com o corredor cultural do entorno das escolas complemen-ta a formação dos estudantes.

A Faculdade de Administração e Ci-ências Contábeis (FACC) divulgou uma pesquisa na qual os discentes manifestam sua preferência permanecer na Praia Ver-melha. Dentre os argumentos utilizados pelos alunos, estão o da proximidade físi-ca do campus com empresas e shoppings. Além disso, os estudantes salientam que, por questões de segurança, seus pais não os deixariam participar das aulas ministradas na Cidade Universitária.

Para Carlos Vainer, representante dos professores titulares no Consuni e docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), a transferência trará desenvolvimento social para a região. “Não se pode negar que a Ilha do Fundão é o centro do estado, tem conexão com todos os lugares. Se instaurarmos um pólo universi-tário aqui, poderemos mudar os laços com a cidade. Precisamos reconfigurar as relações políticas com a cidade, e o primeiro passo nessa direção pode ser o metrô”, destaca o pesquisador, fazendo referência à idéia de melhoria da rede de transportes do campus através da criação de uma linha de metrô até a Ilha do Governador.

Discussão e prazos A Reitoria pretende que o PRE/UFRJ

seja aprovado na sessão extraordinária do Consuni no dia 18 de outubro. Isso porque o Ministério da Educação dará prioridade para a análise de projetos e locação de re-cursos às Ifes que enviarem suas propostas até o dia 27 de outubro. Alguns segmentos da comunidade, no entanto, pedem o alargamento dos prazos de discussão e de aprovação do

documento.Esses setores ale-

gam que a natureza das mudanças pre-tendidas pelo pro-grama exige um pro-cesso mais vagaroso de debates entre as unidades. A realiza-ção de um plebiscito, no qual a comunida-de universitária pu-desse decidir sobre a participação da UFRJ no Reuni, e a convocação de uma Estatu inte foram algumas sugestões apontadas durante as audiências pú-blicas.

O reitor Aloísio Teixeira admite a importância da dis-cussão no âmbito universitário, mas defende a necessi-dade de fixar prazos e sistemáticas de de-bates. “Sou contra o plebiscito porque ele resume discussões importantes em um ‘sim’ ou um ‘não’. Também não sou favorável à idéia da Estatuinte, porque ela serve para fazer estatuto, o que não é o caso. Queremos sim um processo de discussão que permita a construção de um novo modelo acadêmico para a universidade. Não estamos propondo uma discussão apressada sobre as questões profundas, até porque ainda não temos res-postas para todas delas”, afirma o reitor.

Convocação para a sessão do ConsuniA Reitoria está conclamando a comuni-

dade universitária da UFRJ a participar da sessão extraordinária do Conselho Univer-sitário (Consuni), no dia 18 de outubro.

O reitor destacou que a participação dos estudantes, servidores docentes e técnicos-administrativos, bem como dos diretores de unidades, dos mem-bros dos colegiados superiores, coor-

denadores acadêmicos e dos dirigentes dos fóruns de representação discente, docente e de técnico-administrativos, permitirá “à UFRJ avançar ainda mais na sua trajetó-ria de universidade pública, gratuita e de qualidade”.

Sessão do dia 18 poderá ser vista em telões pela universidade

A sessão do Consuni será transmitida, ao vivo, pela TV Consuni (http://tv.ufrj.br/consuni/) e pela WebTV UFRJ (http://www.webtv.ufrj.br/). O evento poderá ser acompanhado também por telões espalha-dos pela universidade: prédio da Reitoria, Campus da Praia Vermelha, Centro de

Ciências da Saúde (CCS), Centro de Tecnologia (CT) e Centro de Ciên-

cias Matemáticas e da Natureza (CCMN).

Laura Tavares

Aloisio e jessie Jane

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20 Setembro•2007UFRJJornal da

Universidade

Linguagem, alteridade e metafísica

O Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) sediou o V Encontro do Grupo de Trabalho Filosofia Pós-metafísica (GTFPM), cujo tema foi Filosofia Pós-metafísica: linguagem, alteridade e diferença.

No encontro, a política foi o elo princi-pal unindo os três subtemas. André Duarte, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) abordou essa ligação pela teoria histórico-filosófica da filósofa alemã Hannah Arendt, tida pelo professor como uma histo-riadora pós-metafísica, que transita na lacuna pensante entre passado e presente.

Para Arendt, contar histórias é um ato político significativo, pois dá sentido ao passado e norteia atores políticos. O passado que importa narrar é sempre uma tomada de posição do historiador face seus interesses no presente e no futuro, assim, o tribunal da his-tória limita-se ao elogio dos vitoriosos. “A ação do historiador é intempestiva, ou seja, contra o tempo. É a capacidade de desembaraçar o jardim do já pensado”, define Duarte.

De acordo com o filósofo, em uma pers-pectiva nitzscheana, o intelectual deve esti-mular a capacidade de pensar historicamente, “sobre o que pode ser edificado como algo plano, reto, grandioso, verdadeiramente hu-mano”, posto que a meta da humanidade não residiria no fim, mas sim nos seus melhores exemplares.

Arendt recebeu críticas de anacronismo, grecofilia, desapego aos fatos por romantiza-ções, por julgar que a política deveria voltar a ser o que fora na Antigüidade. “A proposta

Bruno Francoilustração Anna Carolina Bayer

de Hannah Arendt seria iluminar com luz de velas os tempos sombrios. Um retorno à historiografia greco-romana, não como fuga ao presente ou desenraizamento do futuro”, destaca André Duarte.

Pluralidade: substrato da políticaAlteridade e diferença - explica Samir

Haddad, professor da Universidade Cândi-do Mendes (Ucam) – significam dizer que o Homem, no singular, é uma abstração metafísica, religiosa ou filosófica. “So-mos iguais devido a condições, sobretudo biológicas, iguais, mas somos diferentes, pois cada homem difere de todos que os precederam e de todos que estão por vir, e a política reside, justamente, na diferença, na pluralidade”, esclarece o professor, para quem, a pluralidade humana seria a parado-xal multiplicidade de singularidades, capaz de trazer à luz “o que há de melhor e de mais feio” nos homens.

No entanto, seguindo a teoria de Arendt, o homem não é um animal político, como crê o senso comum. Segundo Haddad, a política surge entre os homens, logo, de fora, no espaço relacional: “homens têm liberda-de e capacidade de agir conjuntamente, o que para Arendt precede toda forma constituída e institucional de política”.

Para ele, embora a democracia liberal ocidental permita a primazia do privado sobre o público, de interesses particulares sobre o bem comum - ao contrário da democracia ateniense (tão cara à Arendt) - nenhum outro modelo permitiria discursos tão díspares.

Estética da resistênciaA pluralidade discursiva e política en-

contra poderoso veículo de discussão na linguagem artística. A arte, de acordo com o filósofo francês Gilles Deleuze, seria o grau mais elevado de verdade, superior aos demais signos, integrando-os e superando a sua opacidade. Para Giorgia Amitrano, pesquisadora do Laboratório de Filosofia Contemporânea do IFCS/UFRJ, a arte tem uma dimensão política ao fazer um recorte do tempo e do espaço, denunciando o que falta ao mundo, mais do que fazendo uma simples apreensão das vicissitudes humanas. Por exemplo, seria reducionismo mostrar uma obra de arte contrária a um regime ditatorial como panfleto em vez de recons-trução, ou seja, a arte como fabricante de universos. Não apenas capaz de fabricar o real como de transgredi-lo.

Citando o escritor e filósofo franco-argelino Albert Camus - para quem o artista

aparece como reflexo de uma consciência revoltada, e para ser revoltado é preciso ser estético – Amitrano afirma que a criação per-mite ao artista imprimir seu selo ao mundo e reconhecer o outro, no qual o artista trans-cende a si mesmo. Assim, a alma impulsiona o pensamento e as faculdades humanas se tornam transcendentes.

Inevitáveis relações de poderPara Guilherme Castelo Branco, pro-

fessor do Programa de Pós-graduação em Filosofia do IFCS/UFRJ, o problema político-econômico-ético é de liberarmos nós mesmos do estado de individuação a que estamos confinados. “Desde o começo da Idade Moderna, um arsenal de saberes foi posto para produzir subjetividades. O conhecimento do pensamento das pessoas pelo poder pastoral implicou no conhe-cimento das consciências e aptidão para dirigi-las. As Ciências Humanas configu-raram-se como produtoras de indivíduos conformados às estruturas de poder”, analisa o pesquisador.

Assim, inexiste um mundo sem forças cujo contraste gere relações de poder. “Isso não significa, contudo, que toda relação de poder seja uma fatalidade insuperável. Rela-ção de poder não é má per si, mas engendra perigos. Poder e resistência são faces de uma mesma moeda. O que vale para todo modo de convivência humana é relação de poder.”, avalia Castelo Branco.

Em uma perspectiva gerada pela obra do filósofo francês Michel Foucault, o mundo é formado por relações estratégicas perpétuas, é um complexo feixe de forças vitais, onde o embate é parte constitutiva do mesmo. ”O responsável pela minoridade (dependência, subserviência) é aquele que abre mão de sua autonomia e aceita ser tutelado”, critica Castelo Branco. A resistência possível, em sua opinião, seria abrir caminho a novas práticas de pensamento e práticas políticas inovadoras. As lutas são muitas e são muitos os graus e etapas das mesmas.

A razão se opõe à racionalidade cres-cente dos mecanismos de controle social e a atitude-limite – evidencia Castelo Branco - se situa nas fronteiras, para ultrapassa-gem de limites na busca de uma libertação possível e tem sua força na superação dos indivíduos e suas relações de poder. “O que vale a pena, nesse contexto, é reinventar a si e ao mundo de acordo com os nexos da liberdade. O futuro é o resultado agonísti-co (do combate) das relações de poder do presente”, afirma o professor.

A filosofia foucaultiana deseja promover mudanças pelo exercício do pensamento. “Temos de resistir defendendo as potências da vida, o biopoder. Ninguém consegue fazer nada sem aliança e estratégia. Por isso criar-mos mecanismos vitoriosos de resistência ao poder”, defende Castelo Branco.

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Setembro•2007 21UFRJJornal da

Cultura

Rafaela Pereira e Aline Durães, do Olhar Virtual

Teórico russo, Mikhael Bakhtin pensava o texto como o resultado da articulação de várias vozes em variados tipos de discursos e ideolo-gias. Para o filósofo francês Jacques Derrida, o mesmo texto não estaria vinculado a um único significado, mas a um conjunto de significações. Segundo o também francês, Roland Barthes, semiólogo, um texto seria modificado a partir do momento em que o leitor dele se apropria com um olhar crítico, o que rompe com a idéia de um texto uno e objetivo.

Porém, com o surgimento das redes de informações digitais há, aparentemente, uma ruptura com a escrita. É o hipertexto ganhando vida, o que para alguns teóricos é a ferramenta definitiva para a construção de um novo modelo narrativo.

Português escrito ou português falado? Aparentemente essas duas formas da língua por-tuguesa possuem características próprias, onde forma e gramática são extremamente diferentes. Contudo, fala e escrita não devem ser encaradas como forma dicotômica uma vez que, com o advento da escrita digital, essa divergência entre o oral e o escrito se transforma em um encontro que pode ser produtivo.

Internet e oralidadeCom as tecnologias, o leitor se relaciona

de maneira diferente com a escrita. Quando o texto está sendo produzido em meio virtual, o autor/leitor percebe sua autonomia e sua liber-dade aumentadas, podendo ele criar palavras, abreviá-las, acrescentar ícones e o que mais sua imaginação permitir.

Sérgio Roberto Costa, lingüista e professor da Universidade do Vale do Rio Verde (Unincor), em Três Corações, Minas Gerais, recorda que com os textos digitais, nos chats, MSN e blogs, entre ou-tros, começou-se a discussão para saber se o que se escrevia poderia ser enquadrado como texto escrito ou oral. “Essa é uma via de mão dupla, com a oralidade influenciando a escrita e vice-versa. Temos que quebrar um pouco essa idéia de que texto oral não tem relação com o escrito. Porém, estamos em uma sociedade bastante grafocentri-ca e tudo que vem da oralidade é posto de lado, como se fosse inferior. Assim, vários elementos são condenados porque o modelo é a linguagem escrita. Devemos ter em mente que são gêneros textuais diferentes”, explica o professor.

Metamorfoses do textoTexto escrito ou falado. No cinema, na literatura ou na Internet. Múltiplas são as formas e

várias são as adaptações e mudanças que o texto sofre para se adaptar ao meio.

Os internautas, em especial os adolescentes, criaram um novo código discursivo, no qual o bate-papo virtual se tornou um discurso próprio da Internet. “A conversa do dia-a-dia se trans-forma em gênero secundário na Internet. E isso não é apenas para as abreviações que são feitas, mas é uma nova maneira de escrever. Um exem-plo disso é a sigla “tc” que tem seu significado diferenciado de acordo com o contexto. Outro exemplo são as exclamações e pontuação que se prolongam, as letras em caixa alta, as carinhas (emoticons ou smileys) que são dispostas junto aos textos”, enumera Sérgio Roberto, acrescen-tando que “os chats são textos escritos, não são textos orais. Essas marcas lingüísticas todas têm um papel fundamental”.

São novos gêneros que vão surgindo nos meios de comunicação e, com isso, é possível haver uma mudança de comportamento por parte dos professores que, de acordo com Sérgio Roberto, ficam com um “discurso preconceituo-so, sem entender que cada gênero tem seu estilo próprio de acordo com o lugar que circula, com quem escreve e para quem se fala”.

É preciso lembrar que a oralidade não ganha espaço apenas nos espaços virtuais. Autores de romances, novelas e contos, por exemplo, utili-zam a conversação como um gênero secundário. “Muitas vezes nos romances modernos é possível encontrar muito da oralidade, com repetições, abreviação de palavras. Exemplos bem antigos disso são Dom Quixote de la Mancha (Miguel de Cervantes) e as novelas de cavalaria da Idade Média. De certa maneira é a volta das sociedades orais”, analisa o professor.

Entre a página e a tela“Se algo pode ser escrito, ou pensado, pode

ser filmado”. Assim já pensava o norte-americano Stanley Kubrick, considerado um dos grandes ci-neastas do século XX, que já filmou várias obras literárias como O Iluminado (1980), adaptado do livro homônimo de Stephen King. A produção brasileira na área, também tem seguindo essa máxima. Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, baseado no livro de Paulo Lins, e Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho, inspirado na obra de Raduan Nassar, são dois bons exemplos, dentre tantos outros.

Como entre oralidade e escrita há uma via de mão dupla, entre literatura e cinema também

existe essa mesma estrada. Em um primeiro momento, da formação da gramática narrativa, o cinema se apropria de procedimentos da lite-ratura. Em um segundo, percebe-se o contrário. “Na literatura de língua inglesa se tem como exemplo o famoso capitulo de Ulisses, de James Joyce, onde há uma parada, que é observada de diferentes pontos de vistas, através de vários personagens, e o capítulo vai sendo desenvolvido dessa maneira”, explica Roberto Rocha, professor do Departamento de Letras Anglo-germânica da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ.

Uma outra relação entre cinema e literatura, apontada por Roberto Rocha, é no momento em que o cinema quer se firmar não apenas como indústria, mas também como arte. “Nes-se período há uma necessidade de atrair um público de classe média porque o cinema, em seu início, era uma atração de feira, com um público predominantemente de classe operária. Então, as adaptações de clássicos da literatura se tornam muito importante e as grandes salas de cinema são construídas”, explica o professor da FL/UFRJ.

De acordo com Fernando Salis, professor de Cinema da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), existem diferentes critérios para a escolha de um livro como inspiração para um roteiro. Pode-se partir de um enredo, de personagens, de um certo estilo narrativo, mas, em qualquer caso, o principal desafio será recriar, em linguagem audiovisual, a narrativa literária.

“Em geral, as principais dificuldades estão justamente em recriar a obra, visto que uma transposição me parece impossível na maior parte dos casos. O que é interessante nessa re-lação é justamente a diferença de possibilidades lingüísticas e semióticas das duas linguagens e não a redução de uma à outra. As adaptações que se desprendem dos critérios miméticos e investem em uma recriação em outra linguagem de aspectos centrais da obra de referência, têm mais chances de serem bem-sucedidas. É im-portante entender que cinema e literatura têm diferentes relações com a questão da narrativa”, explica Salis.

Para João Camillo Penna, professor do Departamento de Ciência da Literatura da FL/UFRJ, na medida em que a literatura perde espa-ço, e as pessoas lêem cada vez menos romances, o cinema se torna uma forma de apresentação de obras literárias que, ao serem adaptadas, atingem um público imensamente maior do que a versão em livro. “Com a perda de espaço da escrita diante da imagem, sentimo-nos em um impasse. Utilizar-se de adaptações cinematográficas para ensinar literatura corrobora e aprofunda essa perda de espaço, mas por outro lado, passou a ser uma maneira de re-interessar as pessoas, e até os estudantes de literatura, pela forma literária”, analisa João Camillo, especialista em Literatura Comparada.

Na Itália, na época do cinema mudo foram produzidos, por exemplo, cerca de 200 filmes baseados em obras literárias. Porém, nesse pe-ríodo, a relação era muito mais quantitativa do que qualitativa. “Na maioria dos casos as versões cinematográficas eram repudiadas pelos autores, mesmos que alguns deles estivessem envolvidos na confecção dos roteiros. E os testemunhos mostram o desprezo pela situação vulgar e to-talmente desprovida de poesia de escrever ou supervisionar as adaptações de suas obras para o cinema”, recorda Mauru Porru, professor de Línguas Estrangeiras Modernas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), especialista em litera-tura, cinema, decadentismo.

Segundo Porru, no conjunto dos intelectuais italianos que colaboraram para o cinema, Luigi Pirandello (18 de suas obras tornaram-se filmes), foi o único que produziu uma obra literária que, tratando-se dos mecanismos próprios das filmagens, manifesta em sua estrutura uma clara influência cinematográfica. “Porém, ele nunca se tornará o homem de cinema, como acontecerá com outros como Vincenzo Cerami, que até hoje concilia, com muita propriedade, as funções de autor, escritor e roteirista. Ele colabora com grandes diretores como Bertoluci e, sobretudo, com Roberto Benigni, para o qual escreveu quase todos os roteiros, dentre os quais A Vida é bela (1997)”, avalia Porru.

Sérgio Roberto Costa

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22 Setembro•2007UFRJJornal da

Cultura

Corria 1967 em meio às ditaduras e aos Beatles do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, quando a editora argentina, Sudamericana, pu-blicou os textos datilografados que recebera, no ano anterior, de um escritor da Colômbia. Mais do que um livro, a literatura recebia uma obra-prima que agora chega aos 40 anos com o vigor de suas metáforas e das utopias não vingadas no continente, que segue marcado pelas injustiças.

Cien años de soledad comoveria não apenas aos latino-americanos - povo mais identificado com os desencontros da família Buendía - como a todo ser humano que chegasse à fictícia cidade colombiana de Macondo, das páginas de Gabriel García Márquez. O epicentro desse reconheci-mento universal ao autor aconteceria, em 1982, na fria Estocolmo, Suécia. “(...) meu mestre Willian Faulkner disse: recuso-me a aceitar o fim do homem. Seria indigno para mim, estar nesse lugar que foi dele, se não estivesse totalmente certo que a colossal tragédia, que ele recusou reconhecer há 32 anos, é pela primeira vez, desde o começo da humanidade, nada mais do que uma simples possibilidade científica”, disse Gabo, assim chamado por amigos e admirado-res, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura daquele ano.

O escritor encerraria seu discurso, conclaman-do os inventores de histórias: “(...) sentimos que não é tarde para nos engajarmos na utopia oposta. Uma nova e arrebatadora utopia de vida: em que ninguém será capaz de decidir pelo outro como deve morrer; onde o amor prove que a felicidade é possível e onde as raças condenadas a 100 anos de solidão tenham, finalmente, e para sempre uma segunda oportunidade sobre a Terra”.

Os mitosDurante a abertura do II Simpósio Interna-

cional de Letras Neolatinas, organizado pelo De-partamento de Letras Neolatinas da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ e pelo seu programa de

A América de Gabo“Cem anos de solidão” completa 40 anos de publicação e segue contemporâneo

graças à magia da palavra e de sua metáfora sobre a América Latina.

Rodrigo Ricardoilustração Jefferson Nepomuceno

pós-graduação, Bella Josef, professora emérita da FL, proferiu a conferência Cem anos de solidão: a dialética entre a memória e o esquecimento, metá-fora da América Latina. A docente, que também foi homenageada por sua dedicação ao ensino da Língua Hispano-americana, observa Macondo como um grande personagem em suas etapas de ascensão, culminação e queda. “Chegam o cinema, o telefone, o trem e, finalmente, os ingleses com seus solenes advogados, transfor-mando o povoado numa colônia de exploração de bananeiras”, analisa Bella Josef, comparando a fundação de Macondo equivalente à idéia de América que forjaram os europeus, “trazendo consigo a semente de destruição”.

A criação desse cenário, e de outros episó-dios da obra, se vale de mitos cristãos, celtas e greco-latinos. Passa-se o interminável canto dos pássaros, a peste da insônia, o dilúvio e ventos proféticos. Para Bella pode-se interpretar o há-bito do coronel Aureliano Buendía, que forjava peixinhos dourados e depois os derretiam para voltá-los a produzir, como uma referência ao mito grego de Sísifo – homem condenado por Zeus a empurrar eternamente uma rocha que, ao alcançar o topo, rolava de volta para o sopé da montanha.

Entre as convidadas para a mesa-redonda García Maquez: Imaginário e realidade latino-americana, a cubana Elena Cristina Palmero González, professora da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), informa que, em sua primeira leitura de Cem anos, a visão mítica foi o que lhe impressionou. “Ainda era uma menina. Hoje, até pela profissão, valorizo mais os aspectos literários. Entretanto a atualidade do livro segue, pois a necessidade da utopia é permanente e isso não tem época”, recorda a professora.

HorizontesEm pleno século XXI, despediram-se os regi-

mes totalitários apoiados pelos Estados Unidos

da América (EUA), como atestam os relatórios da própria Agência Central de Inteligência (CIA) daquele país, substituídos por democracias representativas ainda longe da população e de suas inúmeras prioridades. Enquanto muitos governos preferem se orgulhar do superávit para pagamento de juros, segue o ideal de uma América Latina que não se constrói. “Todos os eventos são de certa forma frustrados. Primeiro com os colonizadores e agora com o desastre que somos nós em todos os sentidos. Por um lado, o livro continua absolutamente vigente e reivindica uma série de questões éticas, políticas e estéticas”, pontua Lívia Maria de Freitas Reis, professora e diretora do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Cem anos de solidão chega ao Brasil, em 1969, trazido pela Editora Sabi, com tradução de Eliane Zagury – ex-estudante de Letras da antiga Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Uni-versidade do Brasil, atual UFRJ. De lá para cá, as reedições sucederam-se, chegando a 45ª. Em uma delas, da Record, a contra-capa traz as palavras do escritor Mário Vargas Llosa, classificando a publicação como o maior acontecimento da novela espanhola depois de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes (1547/1616). A opinião do peruano, que perdeu a disputa da pre-sidência do país em 1990 para Alberto Fujimori, disseminou-se e é partilhada por muitos.

“Apesar de não gostar dessas listas dos dez mais, Cem anos está depois ou junto com Qui-xote. É um livro tão incrível que é até difícil de adjetivar o que senti na primeira leitura”, confessa Lívia Freitas, que se graduou e fez o mestrado na FL/UFRJ. “Isso aconteceu logo no início da faculdade pelas mãos da professora Bella. Nunca parei de relê-lo, até porque preciso dele para mi-nistrar aulas na pós-graduação. Mas a emoção de leitora não foi interrompida e os temas tratados continuam na pauta da agenda contemporânea: tecnologia, violência e utopias”.

Segundo Ary Pimentel, professor do De-partamento de Letras Neolatinas da FL/UFRJ, a grande solidão dos narradores latino-america-nos é tornar crível um continente simplesmente absurdo: “não há respostas, mas o livro nos em-purra para caminhar e ir à frente. No momento em que uma utopia se realiza, ela se desloca e se enxerga outra no horizonte”.

Além de não oferecer verdades, a obra se despoja de uma visão triunfalista. “Percebo uma dialética com retrocessos e avanços, espelhada inclusive na pluritemporalidade da narrativa”, aponta a Palmero González, destacando-a como o momento em que a periferia passa a se tornar centro.

Como num pêndulo, o autor brinca com o olhar europocêntrico da América Latina como o Eldorado ou o paraíso, ora ampliando essa visão e ora distorcendo-a em terra abandonada à espera do apocalipse. García Márquez também pontua, nas entrelinhas, uma crítica aos que acreditam apenas nos recursos tecnológicos para superar desigualdades. “A questão tecnológica é apresentada como uma tentativa de vencer a distância, o isolamento. Existe até o avião mas que nunca chega”, Palmero González.

Imortal solidãoA clarividência sobre o avanço da tecnologia

também é lembrada por Ary Pimentel, quando recorda as palavras emblemáticas da persona-gem Melquíades: “dentro em pouco o homem poderá ver o que acontece em qualquer lugar da Terra, sem sair de casa”. O mago cigano traz ao povoado de Macondo as últimas invenções do mundo e torna-se o cronista da trama de Gabo, por meio de seus pergaminhos em sânscrito. “Era um fugitivo de quantas pragas e catástrofes haviam flagelado o gênero humano. Sobreviveu à pelagra na Pérsia, ao escorbuto no Arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagascar, ao

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Agosto•2007 UFRJJornal da 23

Theodor LowenkronImago, 200775 páginas

Psicanálise interminável ou com fim possível?

Para ler

Psicanáli se Inter-minável ou com f im possível?, de Theodor Lowenkron, professor do Departamento de Ps iquiat r ia e Saúde Mental da Faculdade de Medicina e do Ins-tituto de Psiquiatria da

UFRJ, apresenta a primeira tese em Psicanálise aprovada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), com a qual o autor obteve a Livre Docência em Psiquiatria e que possui, como objeto de investigação, a hipótese que a análise deve ter, para fins práticos, um fim, sendo um equívoco mantê-la interminável. Nesse trabalho, construído através da narrativa clínica de um atendimento psicanalítico, o autor se propõe a investigar a necessidade do fim da análise. Remete-nos à interface possibilitada pelo método da narrativa, ou seja, do relato concreto da utilização do método psica-nalítico que permite tanto a prática da pesquisa quanto a experiência clínica.

Enquanto conhecimento oriundo da prática da pesquisa, este trabalho nos aproxima da proposta apre-sentada pelo autor em outra de suas obras, Pesquisando com o Método Psicanalítico (Casa do Psicólogo, 2004), de distinguir seu objeto de investigação contido ou no texto psicanalítico ou na prática clínica. Lowenkron justifica sua prática de pesquisa através de uma epis-temologia fundamentada na experiência psicanalítica localizada no espaço da interlocução, campo empírico da Psicanálise.

Realiza assim um movimento inovador em relação a sua produção anterior, pois nos apresenta o relato de um tratamento psicanalítico se distanciando de suas contribuições relativas à prática psicoterápica breve. É importante ressaltar o resgate da prática de divulgação extensa e intensa da narrativa clínica para a difusão do conhecimento psicanalítico.

Utilizando-se da interpretação transferencial Lowenkron nos permite acompanhar o processo de elaboração das resistências do paciente através de uma compreensão fundamentada na teoria freudiana. Entretanto, percorre também conceitos oriundos da Teoria da Relação de Objeto (Klein, Winnicott), da Teoria Lacaniana e de autores como Jones, Abraham, Stekel e Meltzer.

Inova ao convidar-nos a refletir sobre a necessidade do término do processo analítico. Diferencia a questão teórica sobre a contingência interminável da análise de sua correspondente necessidade prática de termina-ção. Interminável será o trabalho a ser realizado pelo paciente após o término do processo. Os objetivos da prática psicanalítica não estariam comprometidos com um modelo de normalidade ou completude, pois se refere a sujeitos a quem se restabelece a capacidade de (re) construção. Esta proposta, se confrontada com a tendência monista através da qual os saberes no cam-po da Saúde Mental abordam a questão do dualismo corpo-mente, ou com a promessa de reasseguramento do projeto moderno de individualização, devolve ao sujeito a responsabilidade de elaboração de suas dores nos remetendo a questão ética inerente à relação entre psicanalista e analisando. Complexifica, ao invés de reduzir o alcance da autonomia ao reutilizar a afirmação freudiana sobre “a perspectiva não ilusória” em relação aos objetivos da análise, no sentido de não se confundir potência com onipotência. Este livro contribui para a difusão do conhecimento psicanalítico através de seu exercício na prática do atendimento clínico.

Por Manola Vidal, psicóloga, psicanalista e pós-doutoranda em Psicanálise e Saúde Mental no Instituto de

Psiquiatria da UFRJ.

terremoto na Sicília e a um naufrágio no Estreito de Magalhães”, conta García Márquez.

Contudo, nem mesmo o sábio feiticeiro consegue resistir à sina de das demais personagens do livro. “São solitários, condenados a girar e às vezes enlouquecer num espaço sem limite que até eles desconhecem”, analisa Bella Josef, destacando que os espetros perambulam e até Melquíades, sobrevivente de tantas desgraças, não suporta a solidão, pois abandona a sua tumba “aterrorizado pela própria morte dentro da morte”, voltando outra vez à casa dos Buendía para conversar com alguém “na tentativa de eliminar uma solidão já imortal”.

Mesmo rodeados por essa triste característica, transmitida a cada geração da família Buendía, fio condutor por onde se ramificam personagens e situações, a vontade de superar a soli-dão também está impressa como um gen. “Eles aspiram romper o cerco. O mais comovente é essa intenção de estabelecer uma comunicação”, sublinha a Bella, que, assinalando que o papel da Literatura é não deixar “a emoção se apagar e para que Sherazade continue a contar histórias por mais de mil noites, afastando a morte e o esquecimento”.

A arte de contarO clássico árabe, As Mil e uma noites, foi o primeiro livro lido,

aos sete anos, por García Márquez. O autor aponta entre suas influências Virgínia Woolf, Franz Kafka, Ernest Hemingway e Juan Rulfo, mas buscaria nas histórias da avó a matéria-prima que precisava.

Em diversas entrevistas, Gabriel revela que a inspiração de-finitiva para escrever Cem anos ocorreu durante uma viagem de automóvel pelo México, junto com a família. Uma história que ele já engendrava há 16 anos, mas que lhe restava a dúvida de como iria contá-la. O estalo iluminado veio após um animal atravessar a estrada, avariando-lhe o veículo e obrigando-o a voltar para casa: “Eu a tinha tão madura que teria podido ditar ali mesmo a uma datilógrafa, na rodovia, o primeiro capítulo, palavra por palavra”, explica o escritor anos depois sobre aquele dia, em janeiro de 1965.

A partir daí, Gabo trancou-se durante 18 meses no escritório da casa de um colega na Cidade do México, “com grandes reser-vas de papel e de cigarros”, para redigir a sua obra mais famosa. O escritor teria pedido a sua esposa que não o perturbasse “por nenhum motivo, sobretudo, com assuntos domésticos”.

Ao imprimir uma dinâmica circular e significativa no romance, onde tudo parece regressar, García Márquez encontra sua singu-laridade. “No círculo, segundo alguns aforismos de Heráclito, o início e o fim são idênticos, mas no romance o princípio e o final são homólogos”, ensina Bella, apontando que o tempo circular, apesar de predominante, não é o único: “ele cruza e se sobrepõe a outras categorias temporais”.

Não obstante tal pluralidade, o tempo curvo traz a noção mágica e arcaica do tempo como retorno periódico dos mesmos fenômenos naturais, das mesmas alterações individuais e ritos re-ligiosos. “Os camponeses, a margem da história, não estão atentos ao quanto sucede na superfície do tempo, tanto mais que esse é concebido como desenvolvimento linear, renovação incessante, progresso irreversível”, explica Bella, lembrando que eles (os cam-poneses) conhecem outro tempo, aquele denominado de intra-história que substancialmente nada muda e tudo se repete, como as estações do ano e as alternâncias da boa e da má colheita.

Realismo maravilhosoPara Gabo, o maior problema era destruir a linha de demar-

cação que separa o que parece real daquilo que pode ser irreal, porque no mundo que tratava, não existia essa barreira. A solução foi buscar as narrativas da avó, uma mulher do povo que acredi-tava, piamente, nos episódios sobrenaturais que contava, como se eles fossem reais.

O próprio autor admite que adotou uma atitude “cara-de-pau” para neutralizar qualquer oposição entre realidade e fantasia. “Desse modo, ele encontrou o tom que procurava, valendo-se de um efeito de encantamento, onde o leitor embarca ou não nos relatos”, avalia Eduardo Coutinho, professor do Departamento de Ciência da Literatura da FL/UFRJ, durante a palestra Revisitando o realismo maravilhoso pelas sendas de Cem anos de solidão, ressaltando que a publicação de Cem anos constitui-se um marco, na medida em que projeta, para o mundo, a narrativa latino-americana. Estima-se que já foram vendidos mais de 30 milhões de exemplares da obra, traduzida para 35 idiomas. O sucesso foi imediato, e desde o seu lançamento tornou-se um best seller. Apenas, nas primeiras sema-nas, em Buenos Aires, venderam-se 15 mil livros.

Gabo deixou um rastro para outros autores, sendo responsável pelo chamado boom da literatura latino-americana nas décadas de 1960 e 1970. Entretanto, antes dele, outros escritores já praticavam o então realismo maravilhoso, conceito desenvolvido em 1925 pelo escritor cubano, Alejo Carpentier, que “designa maravilhoso ao invéz de mágico, pois entende que esse pertence a uma categoria da cultura ligada ao prestidigitador, ao ilusionista. Enquanto o maravilhoso já tinha uma visão literária, sendo mencionado como a interferência dos deuses na vida dos homens”, distingue Couti-nho, estabelecendo ainda outras diferenças de estilos, comumente confundidos.

Segundo Coutinho, o fantástico se dá quando o sobrenatural se insinua, mas não chega a interferir na história. Como exemplo, o professor destaca Las cartas de mama, do escritor Julio Cortázar. No conto, um casal, que mora em Paris, vive atormentado pelas notícias que chegam da Argentina. Nas correspondências, a mãe conta que o filho morto, ex-namorado da mulher e irmão do marido, está com saudades e quer ir visitá-los.

“Há a introdução de um elemento sobrenatural em um contexto de realidade, que causa um efeito de excitação no leitor. Só que fica na linha fronteiriça, deixando uma ambigüidade. Já no realismo maravilhoso extrapolamos essa fronteira. Em Cem anos, Remédios, a bela, levita para os céus, mas o que espanta e revolta a sua cunhada, Fernanda, é que ela levou junto todos os lençóis de linho da famí-lia”, compara Coutinho, ressaltando a ocorrência da naturalização do sobrenatural, assim como o contrário: a sobrenaturalização do natural. “É quando, através de hipérboles, García Márquez escreve que lutou em 32 guerras e foi derrotado em todas ou que teve 17 filhos com 17 mulheres”.

Os realismos, maravilhoso e fantástico, apresentam como eixo comum o questionamento à lógica racionalista. Entretanto, Gar-cía Márquez não substitui uma crítica pela outra, apenas expõe a existência de outras explicações que vão além da razão e de que sonho e realidade são pólos da existência humana. “A fundação pelos conquistadores, a chegada dos imigrantes, das autoridades eclesiásticas e policiais, enfim, o continente não podia ser moldado pela visão européia, por ter elementos distintos. Cem anos apresenta uma reação à tirania da lógica do racionalismo”, frisa Coutinho.

Visão épicaPoder-se-ia resumir os aspectos que colaboraram para o êxito

de Cem anos. Entre eles, o resgate de uma antiga técnica de contar história; o relato de uma saga familiar, micro-cosmo da América Latina, além do próprio realismo maravilhoso. Contudo Gabriel vai além, narrando o episódio da rebelião dos trabalhadores, que termi-na em matança com três mil corpos metralhados sendo carregados em um trem para serem atirados aos mar. “É aqui que ele alcança uma visão épica, alucinante, tão rara em toda a história da literatura hispano-americana. Em meio ao desastre, o último descendente dos Buendía encontra o amor, mas já é tarde. E aos amantes so-mente resta se entregar a uma posse desenfreada, enquanto todas as animálias do mundo devoram o povoado” assinala Bella Josef, reiterando que o escritor cresceu e amadureceu alimentando-se da infância, “exumando-a para voltar ao lugar onde está a semente primitiva da memória com sua carga de recordações”.

Quatro décadas depois, a magia de Cien años de soledad permanece intacta, girando a interrogação gigante que oferece uma fonte inesgotável de interpretações para os extraordinários

aspectos da vida cotidiana da América Latina. García Már-quez, que completou 80 anos, talvez tenha atingido ao

romance que idealizava. Absolutamente livre, que possa afetar não somente por seu conteúdo político e social, mas também pelo seu poder de penetração e ser “capaz de virar a realidade pelo avesso para mostrar como é do outro lado”.

Cultura

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24 Agosto•2007UFRJJornal da

Personalidade

Rodrigo Ricardoilustração Jefferson Nepomuceno

Lúcio Costa

Filho de brasileiros, nascido, em 1902, em Toulon (Fran-ça), Lúcio Marçal Ferreira Ribeiro Lima Costa chega ao Brasil, com a família, aos 14 anos. Aos 24, o jovem ar-quiteto, formado pela Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) - origem a Escola de Belas Artes (EBA) e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ -, trabalhava como desenhista em escritórios técnicos projetando casas ecléticas e, sobretudo, coloniais, para a burguesia carioca.

Segundo Gustavo Rocha-Peixoto, professor do Pro-grama de Pós-graduação em Arquitetura e diretor da FAU/UFRJ, até 1929 Lúcio Costa nunca tinha ouvido falar no ar-quiteto francês Le Corbusier (1887–1965), de quem, posteriormente (1935 e 1936), se aproxima e passa trabalhar, (associado aos jovens arquitetos Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer, sob a co-ordenação de Charles-Edouard Jeanneret e do próprio Le Corbusier), no projeto do edifício que emblematiza o início do Movimento Modernista brasileiro, o do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro. “Corbusier estava no Rio pela primeira vez e fazia escala para a Argen-tina. Lúcio Costa foi avisado de que um afamado arquiteto da França proferiria duas palestras na ENBA, mas não a assis-tiu porque o local do evento estava muito cheio”, lembra Rocha-Peixoto.

No ano seguinte, 1930, Lúcio Costa é nomeado diretor da ENBA, onde encontra nítida divisão entre acadêmicos e modernista. Reestrutura o ensino da escola, demite antigos professores e contrata ou-tros, de orientação moderna, como Warchavchik, Alexander Buddeus e Leo Putz. Gustavo Rocha-Peixoto observa que essa divisão era factual na Arquitetura, mas a separação era mais sentida na Pintura e na Escultura. Durante o período como diretor da ENBA (até 1931), é que se define o moderno Lúcio Costa. “Todo ano a Escola realizava um salão. No de 1931, o Salão Revolucionário, como ficou conhecida a 38ª Exposição Geral de Belas Artes, em razão de ter abrigado, pela primeira vez, artistas de perfil moderno e modernista, Lúcio resolve dividi-lo entre acadêmicos e modernos, o que causou estra-nheza pelo fato de ele trabalhar em um escritório acadêmico e estar vinculado ao Neocolonial. A adesão ao Modernismo foi sem querer, porque o que ele queria era ficar no meio dos grupos, mas sustentou a permanência dos modernos contra o establishment acadêmico. Houve um conflito, o que terminou com sua demissão. A partir de então, como questão de honra, se assume como moderno”, afirma o diretor da FAU. A partir de então Lúcio Costa se aproxima mais ainda do trabalho de Le Corbusier e introduz o modernismo na Arquitetura brasileira.

Lúcio Costa vive em um período de governo totalitário e nacionalista e de um modelo de Arquitetura que buscava por raízes nacionais e coloniais, “mas, Lúcio Costa já tinha começado a estudar intensamente a Arquitetura brasileira e percebeu como que essa poderia se articular, sendo, ao mesmo tempo, brasileira e moderna. Essa é a originalidade de Lúcio”, salienta Rocha-Peixoto.

O urbanista e arquiteto do projeto

piloto de Brasília, Lúcio Costa,

fez muito mais do que parece aos olhos do Brasil,

é uma figura–chave na Arquitetura

moderna do país.

Para o professor, Lúcio Costa questiona se existe algo nas raízes brasileiras que seja colonial, com validade, não como estilo, mas com valor permanente. “O neocolonial é um estilo e a Arquitetura moderna não pode ter um estilo, ela tem que ser uma máquina. Em seu discurso a máquina de morar tem peças que somente servem para o Brasil. Aqui, por exemplo, com o clima diferente do da Europa, existiam materiais de constru-ções que não se encontravam no velho continente e, naquele momento, também havia diferenças entre os treinamentos de mão-de-obra e de posição de industrialização. Nisso, Lúcio é completamente diferente de Le Corbusier e é completamente diferente dos coloniais”, discute Gustavo Peixoto.

Reforma na ENBAA reforma do ensino na ENBA, iniciada por Lúcio Costa,

propondo o alinhamento com o movimento moderno não teve continuidade após sua saída da direção da escola, retor-nando ao que era antes. “Eu acho que não nos demos conta, inteiramente, de que a grande reforma aconteceu na cabeça de Lúcio Costa, que se converteu ao moderno, embora sua formação tenha sido neocolonial”, avalia o diretor da FAU.

Já em 1937, com seu escritório de Arquitetura ocioso, posto que não se encomendavam projetos de Arquitetura moderna, Lúcio Costa é chamado para coordenar o setor de Estudos e Tombamentos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), onde ficou até 1972.

“Esse sujeito moderno coordena o setor que vai estudar e preservar a Arquitetura antiga brasileira. E foi no Parque Lage

onde ele fez o primeiro ensaio de uma Arquitetura moderna com elementos nacionais: os cobogós na fachada, que são elementos vazados de cerâmica, concebidos da Arquitetura colonial. Não pelo lado do estilo, por copiar a fórmula, mas por ser adequado ao clima. Dessa maneira, Lúcio assegura dois elementos: o da Arquitetura completamente moderna (sem estilo) e o de ter um compromisso radical com as raízes do Brasil”, explica Gustavo Rocha-Peixoto.

DestaquesProjeto pouco conhecido, mas que o diretor da FAU dá

destaque é o Museu das Missões, em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul. “Os arqueólogos acharam fundações e documentos que mostravam como era o assentamento indígena, e Lúcio Costa aproveitou velhas colunas dessas casas, as soergueu, e projetou uma caixa de vidro com um extenso telhado. Um belíssimo museu, no qual se consegue ter uma visão de conjunto”, avisa Rocha-Peixoto.

Brasília, seu projeto mais ousado e ilustre, não recebeu sua visita no dia de sua inauguração, em 21 de abril de 1960. Lúcio Costa enviou um bilhete: “Não vou lá por duas razões: primeiro porque desejo deixar o crédito total pela expressão arquitetônica e pela construção propriamente dita a Niemayer e Pinheiro (Israel Pinheiro) e, segundo, porque minha mulher Leleta teria adorado estar lá, e pre-firo dividir com ela o impedimento”. Leleta morreu em um acidente automobilístico, em 1954. Lúcio Costa falece em 1998, aos 96 anos.