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UFRJ INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA A construção da imagem do uso da força em intervenções humanitárias no pós Guerra Fria: um estudo comparativo da segunda e da terceira geração de intervenções Isabela Gláucia de Souza Costa Baptista 2009

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UFRJ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA

A construção da imagem do uso da força em intervenções humanitárias no pós Guerra Fria: um estudo comparativo da

segunda e da terceira geração de intervenções

Isabela Gláucia de Souza Costa Baptista

2009

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UFRJ

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PPGHC - PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM

HISTÓRIA COMPARADA

Isabela Gláucia de Souza Costa Baptista

A construção da imagem do uso da força em intervenções humanitárias no pós Guerra Fria: um estudo comparativo da segunda e da terceira geração de

intervenções

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Comparada.

Orientadora: Professora Dra. Sabrina Evangelista Medeiros

Rio de Janeiro, RJ junho de 2009

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FICHA CATALOGRÁFICA

Baptista, Isabela Gláucia de Souza Costa. A construção da imagem do uso da força em intervenções humanitárias no pós Guerra Fria: um estudo comparativo da segunda e da terceira geração de intervenções / Isabela Gláucia de Souza Costa Baptista. Rio de Janeiro, 2009. 131.f. Orientadora: Dra. Sabrina Evangelista Medeiros Dissertação (Mestrado em História Comparada)– Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais 1. Uso da força 2. Intervenção humanitária. 3. ONU 4. Estados Unidos - Teses. I. Medeiros, Sabrina Evangelista (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. III. Título.

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Isabela Gláucia de Souza Costa Baptista A construção da imagem do uso da força em intervenções humanitárias no pós Guerra Fria: um estudo comparativo da segunda e da terceira geração de intervenções Rio de Janeiro, 29 de junho de 2009

__________________________________ Sabrina Evangelista Medeiros (Dra.) - Orientadora

Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________________ Francisco Carlos Teixeira da Silva (Dr.) Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________________ Kai Michael Kenkel (Dr.)

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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Dedico este trabalho a minha avó querida, D.Belinha, que não está mais entre nós, mas dedicou muito de seu tempo e esperança na

minha educação e em tornar a minha vida mais feliz.

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“O Senhor é a minha força e o meu cântico; ele me foi por salvação; este é o meu Deus; portanto, eu o louvarei; ele é o Deus de meu pai; por isso, o exaltarei.” ( Êxodo 15:2)

“A minha alma disse ao Senhor: Tu és o meu Senhor; não tenho outro bem além de ti.” (Salmos 16:2)

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AGRADECIMENTOS

A Deus que me deu forças para fazer este trabalho e que me incentiva todo dia a ser um pouco melhor do que eu sou ou fazer um pouco mais do que eu consigo fazer. Apesar de simples, este trabalho é um exemplo disto. A minha mãe linda, Daisy, que não mediu esforços em me ajudar, com atenção e muito amor em seus lanchinhos e preocupações. Não poderia restringir os meus agradecimentos a este espaço. A minha madrinha, Bel, que, inacreditavelmente, deposita grande confiança em mim e me faz prosseguir em momentos de nenhuma esperança. A minha orientadora maravilhosa, Sabrina, que dedicou muito de seu tempo em me escutar e que me deu uma ajuda fundamental com suas colocações esclarecedoras. A todos os professores do PPGHC que contribuíram para este trabalho com aulas incríveis sobre história, teoria ou metodologia. Às funcionárias da secretaria do PPGHC, Márcia e Leniza, que ajudaram em todos os aspectos burocráticos e me lembraram a tempo das obrigações que eu tinha para cumprir. Aos colegas de mestrado e do Laboratório TEMPO, todas as suas observações e colocações foram de grande valia para este projeto e para os próximos. A todos os meus amigos que foram compreensivos o suficiente para não reclamar da minha casa muito bagunçada, com livros e artigos por toda a parte e que entenderam quando eu preferia ficar escrevendo minha dissertação ao invés de sair com eles.

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RESUMO

BAPTISTA, Isabela Gláucia de Souza Costa. A construção da imagem do uso da força em intervenções humanitárias no pós Guerra Fria: um estudo comparativo da segunda e da terceira geração de intervenções. Rio e Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. Este trabalho analisa, à luz dos estudos contemporâneos e por meio do método comparativo,

como foram construídas as estruturas que determinam as características e os limites do uso da

força em intervenções humanitárias. As missões comandadas pela Organização das Nações

Unidas têm princípios estabelecidos que devem ser seguidos dentro do desenvolvimento de uma

missão. Um destes princípios é o do não uso da força que deve estar determinado no mandato

dado pelo Conselho de Segurança, no qual as linhas gerais da missão de paz são descritas. Assim,

utilizamos os documentos da ONU e dos Estados Unidos que se preocupam com os

procedimentos utilizados em intervenções e que permitem que entendamos as transformações

conceituais por que passou a imagem do uso da força. Da mesma forma, tentamos identificar

algumas idéias que influenciam a formulação das diretrizes da ONU e identificar a política

externa americana que determina a forma e a participação dos Estados Unidos em missões de

paz. Preocupamo-nos em analisar como o uso da força e idéias que o regulamentam vêm se

legitimando dentro das práticas discursivas sobre as intervenções humanitárias.

Palavras – Chave: Uso da força; Intervenção humanitária; ONU; Estados Unidos

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ABSTRACT BAPTISTA, Isabela Gláucia de Souza Costa. A construção da imagem do uso da força em intervenções humanitárias no pós Guerra Fria: um estudo comparativo da segunda e da terceira geração de intervenções. Rio e Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. This work analyses in light of contemporaneous studies and by way of the comparative method,

how structures were built that determine the use of force characteristics and limits in

humanitarian interventions. The missions, commanded by the United Nations, have established

principles, which must be followed in the mission development. One of those principles is the

non-use of force, which should be determined in the mandate, given by the Security Council, in

which the general lines for the peace mission are described. In this way, we used documents from

the United Nations and the United States, which described the procedures used in the

interventions and which allowed us to understand the conceptional transformation of the use of

force image. In the same way, we tried to identify some ideas, which influenced the formulation

of the United Nations directives and to identify the American Foreign Policy that determine the

manner and the participation of the United Nations in peace missions. We made an effort to

analyze the use of force and the ideas, which regulate it and are being justified inside the

discursive practices of the humanitarian interventions.

Key words: Use of Force; Humanitarian Intervention; United Nations; United States

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SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS................................................................... 12 INTRODUÇÃO: A TENSÃO ENTRE O CONCEITO DE SOBERANIA E O DE INTERVENÇÃO......................................................................................................................... 14 1 CAPÍTULO 1: ASPECTOS DO CONTEXTO INTERNACIONAL DO MUNDO PÓS-

GUERRA FRIA...................................................................................................... 22

1.1 Contexto sócio – político......................................................................................... 22

1.1.1 Novas ameaças.......................................................................................... 25

1.1.2 Novas guerras.............................................................................................. 28

1.1.3 Novos Teatros de guerras........................................................................... 32 1.1.4 Marcos para a formulação do pensamento sobre intervenção humanitária........................................................................................................... 34

1.2 As várias formas de entender a intervenção humanitária......................................... 38

1.3 Situando o Problema: as Gerações de Intervenções................................................... 52

2 CAPÍTULO 2: A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA DIANTE DA SOBERANIA COMO AUTORIDADE................................................................................................... 55

2.1 Soberania como autoridade..................................................................................... 55

2.2 A questão do Uso da Força....................................................................................... 57

2.2.1 O uso da força em operações de paz......................................................... 592.3 Documentos da ONU: Uma Agenda para a Paz e Suplemento para Uma Agenda para a

Paz.................................................................................................................... 62

2.4 Política externa americana- doutrina Clinton......................................................... 64

2.5 Documentos americanos: PDD 25 e FM 100-23...................................................... 672.6 Considerações sobre as diferenças de abordagem entre os documentos da ONU e dos

EUA ..................................................................................................................... 73

2.7 Kossovo e os questionamentos de Kofi Annan........................................................ 75

3 CAPÍTULO 3: A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA DIANTE DA SOBERANIA COMORESPONSABILIDADE........................................................................................... 80

3.1 A Emergência da soberania do indivíduo................................................................. 80

3.1.1 Segurança Humana........................................................................................ 80

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3.1.2 Soberania como responsabilidade................................................................. 90

3.1.3 The 2005 World Summit............................................................................... 91

3.2 Documentos da ONU: Capstone Doctrine e Un mundo Más Seguro................... 91

3.3 A política externa americana pós 11 de setembro..................................................... 101

3.4 Documento americano: FM 3-07.................................................................................. 1043.5 Considerações sobre as diferenças de abordagem entre os documentos da ONU e dos

EUA ................................................................................................................... 113

CONCLUSÃO .................................................................................................................. 115

BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................. 121

ANEXO............................................................................................................................ 130

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados

AGNU Assembléia Geral da ONU

ALCA Área de Livre Comércio das Américas

AMIS African Mission in Sudan

CS Conselho de Segurança da ONU

DDR Desarmamento, Desmobilização e Reintegração

EUA Estados Unidos da América

FM Field Manual / Manual de Campo

FMI Fundo Monetário Internacional

ICISS International Commission on Intervention and State Sovereignty

ISAF International Security Assistance Force

NAFTA Tratado Norte-Americano de Livre Comércio

NSS National Security Strategy

OEA Organização dos Estados Americanos

OMC Organização Mundial do Comércio

ONU Organização das Nações Unidas

OSCE Organização para Segurança e Cooperação na Europa

PCC Police Contributing Country / País que contribui politicamente

PDD Presidential Decision Directive

PE Peace Enforcement / Operações de Imposição da Paz

PKO Peacekeeping Operations / Operações de Manutenção da Paz

PO Peace Operations / Operações de Paz

R2P Responsabilidade de Proteger

RMA Revolution in Military Affairs

ROE Rules of Engagement / Regras de Engajamento

S/crs Office of the Coordinator for Reconstruction and Stabilization

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SPLA Sudan People´s Liberation Army

TCC Troop Contributing Country / País que contribui com tropas

TIAR Tratado Interamericano de Assistência Recíproca

UA União Africana

UNAMI United Nations Assistance Mission for Iraq

UNISOM United Nations Operations in Somalia

UNITAF United Task Force

URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

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INTRODUÇÃO

A TENSÃO ENTRE O CONCEITO DE SOBERANIA E O DE INTERVENÇÃO

Em Vestfália os fundamentos do sistema internacional foram lançados. O embasamento

das relações entre os Estados e da ordem internacional é a soberania tanto em sua dimensão

interna quanto na externa. Contudo, o conceito de soberania é muito sensível e complicado de

definir posto que tem muitos meandros em sua noção geral.

As primeiras doutrinas de constituição internacional viam a soberania como uma

característica inquestionável. Na dimensão interna seria constituída de três elementos: população,

território e governo. Deste modo, os Estados seriam “comunidades políticas independentes, cada

uma das quais possui um governo e afirma a sua soberania com relação a uma parte da superfície

terrestre e a um segmento da população humana1”.

O primeiro elemento é formação da sociedade civil anterior à formação do Estado. A

união destes dá forma e constituição à comunidade política. Assim, o pacto social da sociedade

civil origina a união da população ao Estado. Cada pessoa é cidadã, pode desfrutar de seus

direitos políticos e ter deveres vinculados a esta condição.

No plano externo, o Estado é o que possibilita a existência internacional das pessoas. A

população só existe por intermédio do Estado e a nacionalidade é o que vincula um ao outro. Esta

vinculação permite às pessoas desfrutarem da proteção internacional do Estado2.

O Território é onde a autoridade estatal é exercida. Pela competência exclusiva do Estado

sob determinado espaço ela pode recusar qualquer ingerência externa, assim como determinar as

condições para entrar e para sair de seu território.

A autoridade política livremente organizada decorre de dois princípios: o direito à auto-

determinação e o dever de não-ingerência. O primeiro é a livre escolha por cada pessoa de seu

regime político: a comunidade internacional não pode questionar a legitimidade deste poder, nem

suas determinações. O princípio de não-ingerência supõe que um Estado não interfira em

negócios domésticos de outro Estado. Esta regra os protege contra qualquer poder discricionário.

Soberania é também um princípio estrutural do sistema internacional, regulando as

relações entre Estados e entre outros atores internacionais. Foi de tal modo constituída, que a

1 BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica: Um estudo da ordem mundial. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: ed. UNB. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002, p. 13 2 Cf. ROCHE, Jean-Jacques. Relations Internationales. Paris: L.G.D.J, 1999.

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sociedade internacional se formou através da concepção de Estados livres e iguais. Esta formação

adquiriu certos princípios como a soberania territorial, igualdade entre Estados e não-intervenção

no âmbito doméstico de seus pares, princípios reafirmados na Carta da ONU.

Soberania tem dois significados: o primeiro é o controle sobre um determinado espaço e o

segundo é a autoridade que permite deter este controle. Os Estados, mesmo os falidos ou em

colapso, são a autoridade final em seus territórios. Não há nenhuma autoridade acima deles e,

portanto, internacionalmente, não existe um governo superior aos vários Estados-soberanos.

Classicamente, a soberania é vista internamente como o direito de fazer e regular a lei e

externamente como a independência em relação aos outros países, sem a existência de uma

autoridade maior que o Estado soberano. Estes princípios externos se relacionam com os

elementos formadores internos.

Assim, a soberania é, necessariamente, o poder de internamente decidir o que é político e

submeter os seus desvios à coerção, não admitindo qualquer interferência de outra autoridade.

Esta é chamada por Janice E. Thomson de autoridade meta-política3. Não admitindo qualquer

interferência de outra autoridade.

Tal autoridade só pode ser mantida se for respeitada pelos outros Estados ou outros atores

internacionais. Se estes não admitirem o direito do Estado de exercer sua capacidade soberana

não haverá como mantê-la. Então, o que faz da soberania uma instituição internacional é o fato de

os Estados se autorrestringirem a não invadir o outro, ou seja, respeitarem a soberania do outro

Estado4.

Soberania é uma instituição de direitos e deveres domésticos e internacionais que exige

que um Estado respeite o outro e assim se fortaleçam mutuamente como os portadores de

autoridade legítima na política mundial5. A autoridade metapolítica e autorrestrição são

características complementares do mesmo conceito de soberania. Philpott diz que “polity´s

practice of its authority on the inside requires the recognition of this authority from outside6”.

3 Meta-political authority. Autoridade meta política (Tradução do Autor - T.A.). Cf. THOMSON, Janice E. State Sovereignty in International Relations: Bridging the Gap Between Theory and Empirical Research. International Studies Quartely, vol 39, nº 2, pp. 213-233, June 1995. 4 Self-restrain among states. Auto – restrição entre os Estados (T.A.). Cf. LÖWENHEIM, Oded. PALTIEL, Jeremy. Defining Sovereignty. In: 45TH Annual meeting of the International Studies Assciation, 19 março 2004, Montreal, Canada. Anais Eletrônicos... Montreal: Le Centre Sheraton, 2004. Disponível em: http://www.isanet.org/paperarchive/. Acessado em: 02 de junho de 2007. 5 Cf. LÖWENHEIM, Oded. PALTIEL, Jeremy. Op. Cit. 6 PHILPOTT, Daniel. Revolutions in Sovereignty: How Ideas Shaped Modern International Relations. Princeton: Princeton University Press, 2001, p.13. Apud LÖWENHEIM, Oded. PALTIEL, Op. Cit.

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Um Estado não reconhecerá o outro se este outro não o reconhecer e respeitar a sua

soberania. O Estado não reconhecido tampouco se absterá de intervir no que o não reconhece e

não o reconhecerá como Estado soberano. Soberania é o reconhecimento de que não existe

nenhuma autoridade política superior a si mesmo e a constatação de que os outros têm o mesmo

direito de não serem de nenhuma forma constrangidos internacionalmente. Indo além deste

reconhecimento, temos que os Estados se recusam a violar a autoridade soberana de outro sobre o

seu território quando a oportunidade de fazê-lo aparece.

Löwenheim e Paltiel concluem dos estudos de Bull a idéia de que existe uma terceira

dimensão no conceito de soberania que seria a hierarquia:

“A contribuição das grandes potências à ordem internacional deriva de um simples fato

que é a desigualdade de poder entre os Estados que participam do sistema internacional7”.

As grandes potências têm direitos e deveres diferentes do resto dos países.

... as grandes potências têm certos direitos e obrigações especiais, concebidos por seus povos e por sua liderança, que são reconhecidos pelos outros Estados. Assim, por exemplo, as grandes potências afirmam o direito de exercer um papel na determinação dos temas que afetam a paz e a segurança do sistema internacional como um todo; um direito que é reconhecido pelos outros Estados. Elas aceitam o ônus, também reconhecido, de modificar as suas políticas à luz das obrigações que lhe competem de manejar o sistema internacional. Os Estados que chegam à situação de potência militar de primeira grandeza, como a França napoleônica e a Alemanha nazista, mas que não obtêm este reconhecimento de seus direitos e obrigações especiais, por parte dos seu próprios líderes e dos outros Estados, não são apropriadamente chamados de grandes potências. Em outras palavras, o conceito de “grande potência” pressupõe e implica a noção de uma sociedade internacional, que é oposta ao conceito de sistema internacional: um conjunto de comunidades políticas independentes vinculadas por regras e instituições comuns, assim como pelos seus contatos e formas de interação. A fonte desses direitos e deveres especiais das grandes potências não é o fato de ocuparem um lugar permanente no Conselho da Liga das Nações, ou no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas consiste no reconhecimento geral de tais direitos e obrigações.8

Dentro da sociedade internacional cada um tem seu papel e as grandes potências devem

usar seu poder e influência para manter a ordem internacional. Bull escreveu durante a Guerra

Fria. Desta forma, ele compreendeu a restrição que uma potência exercia sobre a outra e sobre

elas mesmas porque se uma crise entre elas surgisse poderia mudar todo o balanço de poder do

mundo. Concluiu, então, que as grandes potências controlam as crises, limitando as guerras entre

7 BULL, Hedley. Op. Cit., p.235. 8 BULL, Hedley. Op. Cit., p. 231-232.

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elas para o bem do mundo. As crises entre os países menores também são cerceadas por elas,

mantendo as suas áreas de influência sob controle.

Esta atuação mundial só é aceita por causa da sua decisão das grandes potências de

respeitar a soberania dos outros países, mesmo os menores e fora de suas áreas de influência. Tais

países, da mesma forma, mantêm o compromisso com o respeito à autoridade soberana na sua

face doméstica em relação aos outros países. Assim, se eles intervierem em outro país terão que

demonstrar como esta ação está de acordo com as normas e a manutenção da ordem

internacional9.

Do princípio de soberania advém o princípio de não-intervenção e toda a discussão de o

quanto e até que ponto este princípio deve ser respeitado diante de violações dos direitos

humanos. De acordo com esta discussão é que vai se determinar a legitimidade da intervenção.

Este princípio determina que ficam excluídas quaisquer formas de interferência, seja ela militar,

política ou econômica nos assuntos internos do Estado.

Dá-se que não pode haver intervenção de nenhuma forma já que não é só o

reconhecimento da soberania que está implícito no princípio, mas também a recusa de Estados

violarem o território e a autoridade de outro Estado. Até os Estados em caos social e político são

considerados soberanos e, portanto, a única autoridade sobre a sua jurisdição.

Hoje em dia, a não-intervenção tem algumas exceções como quando a natureza do regime

é condenável, como o Apartheid (casos de institucionalização da escravidão ou da discriminação

racial), e em casos de genocídios e migrações em massa.

A intervenção não está de acordo com o entendimento de que exista uma única autoridade

dentro do território. Desta maneira, pois o poder interventor seria um outro poder ou o que

tomaria o lugar do poder constituído e a autoridade metapolítica passaria também à outra

instituição. Assim, a autorrestrição entre os Estados seria abandonada em favor da interferência,

mesmo que justificada por valores humanitários.

A regra proibindo a intervenção é desejável. Entretanto, quando desrespeitos aos direitos

humanos acontecem, a questão que surge é: podem existir exceções a esta regra? O direito

internacional pode admitir certas exceções ou podemos pensar que o princípio de não-

intervenção, em alguns casos, pode ser sobreposto?

9 Cf. LÖWENHEIM, Oded. PALTIEL, Jeremy. Op. Cit.

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Adotaremos a percepção de Suganami10 sobre a intervenção humanitária de que existem

imperativos morais que sobrepõem os princípios jurídicos internacionais. Contudo, cada caso

deve ser estudado, respeitando a singularidade de cada país e seu poder soberano sobre um

território. As possíveis intervenções determinadas por violações graves dos direitos humanos

devem ter o acordo da comunidade internacional, ser determinadas por sérios princípios de

atuação e, assim, não desfarão a configuração da ordem internacional.

Perceberemos, mesmo assim, percebemos que há uma tensão entre a legitimação da

intervenção e o princípio de soberania. A prática cada vez mais freqüente de intervenções sob

várias formas e tamanhos e o lugar no qual elas ocorrem requerem uma constante redefinição do

conceito de soberania e de sua relação com o princípio de não-intervenção. Exploramos um

importante aspecto desta tensão: o uso da força em intervenções humanitárias.

A questão que se coloca, então, é sobre que princípios, regras e procedimentos se legitima a ação da comunidade internacional ao violar a soberania de um Estado, não só para remediar uma crise humanitária, mas também para impor as condições sob as quais sua reconstrução deve ser empreendida11.

Estudaremos então como o uso da força sofreu transformações entre a segunda e a terceira

gerações de intervenções. Este uso tem dois âmbitos de análise: o político, no qual existe uma

tensão entre a autoridade do Estado nacional de usar a força e a legitimação de uma força

interventora externa e o normativo, no qual existem regras para determinar como o contingente

militar das missões de paz deve usar a força na prática.

Analisaremos dois momentos comparativamente, buscando ver suas proximidades e

distanciamentos quanto ao emprego da força. Entendê-lo-emos separadamente, mas também

iremos ver as inter-relações entre eles. Assim, poderemos ver quais as afinidades e quais as

rupturas entre os dois momentos. Para desempenhar este estudo nos utilizaremos do método da

história comparativa descrito por Kocka12.

Deste modo, como este autor, acreditamos que este método nos ajudará a identificar

nossas questões a respeito da participação do uso da força na intervenção e como isto vem

10 Cf. SUGANAMI, Hidemi. Sovereignty, intervention and the English School. In: 4TH PAN-EUROPEAN INTERNATIONAL RELATIONS CONFERENCE, 8-10 setembro 2001, Canterbury. Anais Eletrônicos… Canterbury: University of Kent, 2001. Disponível em: http://www.leeds.ac.uk/polis/englishschool/ papers.htm. Acessado em: 02 de junho de 2007. 11 NOGUEIRA, João Pontes. A guerra do Kossovo e a desintegração da Iugoslávia: Notas sobre a (re)construção do Estado no fim do milênio. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.15 nº 44, Oct. 2000, p. 4. 12 Cf. KOCKA, J. Comparison and beyond. History and Theory, nº. 42, p. 39-44, feb. 2003.

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mudando ao longo do tempo, principalmente no pós Guerra Fria. Com a comparação estaremos

sensíveis às especificidades dos elementos presentes nos documentos que analisamos e

poderemos saber o que mudou ou o que permaneceu, buscando identificar as relações destes

movimentos com os elementos extratextuais. Por meio da comparação podemos identificar

questões que antes não surgiriam. Entendemos que a história só existe em relação às perguntas

que fazemos ao nosso objeto13. Assim, poderemos perceber o que mudou e o continuou e tentar

entender os porquês dentro do contexto histórico que ora transcorre.

O nosso material de análise é produzido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e

pelos Estados Unidos. Os documentos da ONU são essenciais para a análise porque esta é a

Organização que desempenha o papel de coordenadora das intervenções humanitárias. É também

a única Instituição que pode autorizar uma quebra legítima do princípio de não- intervenção.

A ONU não possui um exército, são os Estados membros que fornecem contingentes

militares para que as missões de paz sejam feitas. Como são os militares que, normalmente,

fazem uso da força dentro da operação de paz, precisávamos entender como as forças são

organizadas e treinadas para esta função.

Não podemos cobrir em uma dissertação todos os países que cedem contingentes para as

intervenções humanitárias, por isto escolhemos um: os Estados Unidos da América. A escolha de

deu por eles terem um largo histórico de participação em missões da ONU, tanto na segunda

quanto na terceira gerações, principalmente, em intervenções que marcaram as mudanças sobre o

uso da força e como ela era encarada tanto pela ONU como pelos países membros. Também foi

importante para nossa escolha a sua posição de predominância no mundo, por serem uma das

grandes potências de Bull, e porque desempenharam algumas intervenções unilaterais com

justificativas humanitárias, fazendo com que este seja um aspecto a ser estudado também em

intervenções realizadas pela ONU. Como a nossa questão é sobre a regulamentação da prática do

uso da força, nos pareceu apropriado o fato de os EUA terem manuais de campo que tratam sobre

como deve ser o procedimento em ações militares e de o departamento do exército americano

disponibilizar para o público estes documentos.

O foco deste estudo é o âmbito normativo, contudo, buscamos entender como alterações

políticas e doutrinárias influenciaram a mudança dos procedimentos nas intervenções

humanitárias e, particularmente, no uso da força em intervenções.

13 Cf. VEYNE, P. O inventário das diferenças. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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Para isto, usamos os documentos que regulamentam a intervenção e os que lançam as

diretrizes e bases para a formulação de todos os manuais e guias que irão determinar como a

intervenção deve acontecer.

A Presidential Decision Directive- 25 (PDD-25), a Agenda para a Paz, o Suplemento para

Uma Agenda para a Paz e as Estratégias de Segurança Nacionais são documentos políticos que

analisam a situação das intervenções humanitárias e lançam as idéias que devem delinear as

ações neste campo. O Relatório Brahimi e Um Mundo Mais Seguro são relatórios de comissões

independentes chamadas pela ONU para propor melhorias e novos conceitos que podem ou não

ser utilizados, mas determinam a necessidade de mudança e atualização. O Peace Operations

(Field Manual 100-23) e o Stability Operations and Support Operations (Field Manual 3 – 07)

são manuais de campo que determinam como os militares americanos devem proceder em

missões de paz e são escritos de acordo com as idéias lançadas nos documentos políticos. O

United Nations Peacekeeping Operations – Principles and Guidelines, também chamado de

Capstone Doctrine, é um manual que tenta regulamentar as ações que já estavam sendo vividas

na prática pelos participantes de intervenções humanitárias, mas que precisavam de uma

legitimação.

Assim, começaremos analisando no primeiro capítulo as mudanças no mundo pós Guerra

Fria e focaremos nas novas guerras que são os tipos mais comuns nesta época e no cenário em

que acontecem as operações de paz. Depois, explicaremos quais eventos se tornaram marcos para

as várias mudanças na forma de pensar as intervenções humanitárias. Colocaremos as diferentes

doutrinas que se ocupam em pensar como deve ser a intervenção e que têm maior ou menor

destaque de acordo com o documento, o momento e a instituição que estudaremos. Por fim,

situaremos o nosso problema em gerações de intervenções que nos ajudarão a datar e

particularizar certas características de cada fase das intervenções humanitárias.

A seguir, tentaremos perceber como se dá a legitimação do uso da força nos documentos

americanos e da ONU na segunda geração de intervenções e como os conceitos de soberania,

entendida como autoridade, e de segurança internacional influenciam esta visão.

Por fim, analisaremos quais mudanças ocorreram na regulamentação do uso da força e

como os conceitos de segurança humana e soberania, entendida como responsabilidade de

proteger seus cidadãos, influenciaram esta mudança.

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Concluiremos, comparando os dois momentos e percebendo quais foram as mudanças na

legitimação do uso da força entre a segunda e a terceira geração de intervenções.

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CAPÍTULO 1 ASPECTOS DO CONTEXTO INTERNACIONAL DO MUNDO PÓS -GUERRA FRIA

1.1 Contexto sócio-político

A crise soviética e a consequente fragmentação da União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas (URSS), a queda do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha se tornaram

marcos do fim da Guerra Fria. Marcos de que o mundo como conhecíamos estava mudando e de

que novas formas de entendê-lo precisavam ser observadas.

Logo de início, a nova configuração não era clara, as tendências iam aclarando o caminho.

Ciro Flamarion Cardoso apresenta no artigo No limiar do século XXI1 o encurtamento do tempo e

do espaço como mudanças que delineariam o mundo ao final da Guerra Fria. Os eventos

pareciam estar acontecendo mais rapidamente, a transformação acontecia de forma acelerada e

tínhamos acesso a ela de modo quase instantâneo por meio da mídia. O que mudava era a

percepção da passagem do tempo. Para o indivíduo, imerso em seu tempo, interpretar o que

estava acontecendo era muito complicado posto que esta noção estava se tornando mais elástica e

os acontecimentos atuais chegando mais cedo a seu conhecimento. Da mesma forma, poder-se-ia

esquecer rapidamente o que aconteceu em um passado muito próximo por um novo evento que

mobilizasse mais as mentes.

O espaço também se encurtava com o desenvolvimento de transportes mais rápidos,

melhor tecnologia da informação e da comunicação. O acesso a estas inovações também se

ampliava. A distância entre os problemas do Norte e do Sul diminuía, a medida que a

maleabilidade das fronteiras fazia com que o que acontecia nos países menos avançados

influenciasse os mais avançados como, por exemplo, crises econômicas que se espalhavam pelo

mundo. Ao mesmo tempo que, de acordo com outros aspectos, esta distância aumentava para

formar abismos entre as economias dos países mais desenvolvidos e dos menos avançados. Além

disso, formava espaços imensos no que se refere à separação entre o acesso que ricos e pobres

tinham às inovações e ao consumo de bens.

1 Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion. No limiar do Século XXI. In: REIS FILHO. Daniel Aarão Reis Filho; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste (org). O Século XX. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. vol. 3, pp. 249-275.

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Pecequilo2 destaca o movimento que permite a manutenção de um arcabouço democrático

e liberal criado no pós II Guerra e o aumento da atuação de instituições e organizações

multilaterais. Também permite a tendência a transnacionalização e globalização, bem como a

introdução de novos temas como a democracia e o meio ambiente.

Contudo, mais importante do que as tendências, é a compreensão da pluralidade de

concepções, de formas de organizar o mundo, os vários movimentos de continuidade e mudança

no pós Guerra Fria. A própria palavra pluralismo pode ser um definidor deste mundo que pode

abrigar diversas formas de atuação, tanto através de Estados nacionais quanto de organizações

internacionais que se constituem em profusão internacionalmente. Estes atores podem atuar em

diversos temas, tanto domésticos quanto de ordem internacional, âmbitos estes que se confundem

e se influenciam mutuamente. As idéias podem ser diversas, tendo algumas, como diretos

humanos e gênero, encontrado lugar ideal para ganhar destaque. A diversidade de culturas, de

métodos, de lugares de análise deve ser respeitada e não poderia ser diferente em um mundo tão

ambíguo em que um só conceito não pode ser definidor desta sociedade.

Isto tudo fez com que a ordem internacional se tornasse uma sobreposição de ordens em

que a ordem doméstica, o sistema de segurança coletiva, o sistema de Estados e uma série de

ordens possíveis formassem um sistema mundial muito mais amplo em que há espaço para uma

atuação muito maior dos indivíduos através da sociedade civil e de vários meios de articulação.

Estas tendências dão algumas indicações da formatação da ordem internacional. O mundo

pode ser multipolar, no qual vários países se tornaram grandes potências hegemônicas ainda que

seja com a predominância de uma delas: os Estados Unidos3. Ou ainda, como Adam Roberts,

podemos acreditar que entender o mundo por divisões em pólos seja impossível em um mundo

com idéias tão divergentes sobre a ordem internacional4. Este é um espectro em que percebemos

diversas idéias desafiantes da antes dominante idéia européia de conformação do mundo, fazendo

com que mais uma vez percebamos que os Estados menos avançados encontraram meios de agir

politicamente e fazer valer sua voz e suas demandas. Há sim um reconhecimento internacional de

2 Cf. PECEQUILO, Cristina Soreanu. A Política Externa dos Estados Unidos: continuidade ou mudança?. Porto Alegre: editora UFRGS, 2003, p.13. 3 Cf. RAMONET, Ignácio. Guerras do Século XXI: novos temores e novas ameaças. Petrópolis: Vozes, 2003. 4 Cf. ROBERTS, Adam. International Relations after the Cold War. International Affairs, v. 84, Issue 2, pp. 335-350, March 2008.

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que existem várias visões de mundo sob diversas perspectivas, tanto econômicas, quanto

culturais, regionais ou ideológicas5.

O mundo é também regionalizado, no sentido de os países primam por se organizar

cooperativamente por temas ou regiões em fóruns de encontro com o objetivo de atuar

politicamente ou economicamente juntos. Ao mesmo tempo, é globalizado, ou seja, as distâncias

se reduziram frente ao avanço da revolução técnico-científica que trouxe melhorias para diversas

áreas, como transportes e comunicação.

A configuração geopolítica também sofreu fortes alterações. Termos como Estado, poder,

soberania, independência, democracia e fronteira6 mudaram conceitualmente e na prática. Novos

agentes internacionais transformaram a forma de agir internacionalmente e os veículos que

possibilitavam esta ação. O indivíduo pôde negociar, debater e lutar por seus objetivos em

centros de autoridade política e econômica como companhias e organizações internacionais. A

sociedade civil global emergiu por meio de uma grande interdependência entre os Estados, do

surgimento de um sistema de governança global e de grupos e redes que estão envolvidos em um

debate público transnacional7.

Neste aspecto, na forma de agir no âmbito internacional, há uma tendência em direção a

um maior compromisso com as leis, valores, normas, fronteiras e regras diplomáticas, em que se

destacam o respeito aos direitos humanos, a autodeterminação e a democracia. E, como Roberts

chama-nos a atenção, um compromisso em respeitar os desacordos em relação a estes temas que

ainda são sensíveis. A aceitação de instituições comuns que regulam tais assuntos e às quais foi

dada jurisdição para solucionar conflitos e disputas facilita o acordo nestes assuntos8.

Roberts, além de nos assinalar tantas mudanças na ordem internacional, consegue

perceber um desejo de que esta ordem seja mantida. Caso existam ameaças a ela, os seus

membros tendem a agir de forma legitima dentro dos pré-requisitos de seus sistemas para manter

ou retornar a esta ordem9.

Estas mudanças trouxeram uma maior complexidade para o processo histórico, fazendo da

história do presente um campo de vários movimentos agindo conjuntamente para desenhar a

forma dos eventos estudados.

5 Cf. Ibid. 6 Cf. RAMONET, Ignácio. Op. Cit. 7 Cf. KALDOR, Mary. The idea of global civil society. International Affairs, v. 79, Issue 3, pp. 583-593, 2003. 8 Cf. ROBERTS, Adam. Op. Cit. 9 Cf. Ibid.

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Por isso, vamos estreitar o pensamento sobre as mudanças no pós Guerra Fria para focar

em um aspecto. Buscaremos situar o tema das intervenções humanitárias neste período,

entendendo como elas foram influenciadas por estas tendências emergentes e o que mudou na

forma de pensar sobre as ingerências estrangeiras. Deter-nos-emos nas novas ameaças que

ampliam o pensamento sobre o que é segurança coletiva e quais são os desafios que ela enfrenta

neste período. Logo após, delinearemos quais conflitos armados têm mais destaque e mais

acontecem no cenário internacional, entendendo que as intervenções humanitárias agem com o

fim de cessar estas hostilidades e buscaremos entender em que países as intervenções são mais

propensas a ocorrer. Depois vamos sublinhar alguns países que, ao recepcionarem missões da

ONU e de outras organizações internacionais, se tornaram marcos na forma de proceder no que

tange à organização ou legitimação da quebra do princípio de soberania estatal. Por fim,

exporemos as mudanças nas linhas de pensamento sobre este tema e situaremos o nosso problema

neste quadro geral.

1.1.1 Novas Ameaças

Quando as palavras segurança coletiva apareceram na Carta da ONU em 1945 o termo se

relacionava a uma aliança entre Estados com sentido de defesa militar10. A idéia era a de que o

compromisso entre eles evitasse a agressão de um Estado contra o outro. O sistema funciona

aliado a arranjos para facilitar a resolução de conflitos, seja através de bons ofícios, mediação,

conciliação, arbitragem ou adjudicação. Hoje em dia, segurança coletiva é um termo que engloba

muitos outros desafios impostos ao mundo desde então e que precisaram ser reunidos em um todo

para atender às novas demandas do contexto atual.

Para os autores do relatório da ONU, Un mundo más Seguro11, o Estado continua sendo,

em termos de segurança coletiva, o protagonista na luta contra todas as ameaças, mas admitem a

necessidade de enfrentar estes desafios de forma conjunta com os outros Estados, novas

instituições coletivas e organizações internacionais. O Estado é o principal ator e o que deve ser

fortalecido, pois ele é necessário para que haja a manutenção da dignidade, justiça, valor e 10 Cf. GRUPO DE ALTO NIVEL SOBRE LAS AMENAZAS, LOS DESAFÍOS Y EL CAMBÍO. Un Mundo Más Seguro: la responsabilidad que compartimos. New York: Grupo de Alto Nível sobre las amenazas, los desafio y el cambío, 2004. 11 Cf. Ibid.

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segurança do cidadão. O foco não está mais só nele, mas agora a segurança do indivíduo é o

objetivo das medidas de segurança coletiva.

Um problema a ser superado é não só atuar de forma conjunta, mas também identificar os

novos desafios que se apresentam no mundo atual. Para isso, precisamos entender que o termo

segurança coletiva é um processo em transformação que precisa englobar os novos desafios,

correntes teóricas, estratégias de ação e atores internacionais do mundo a que se relaciona.

El argumento a favor de um sistema de seguridad colectiva se basa em tres pilares básicos. Las amenazas actuales no respetan las fronteras nacionales, están relacionadas entre sí, y deben encararse tanto en los planos mundial y regional como en el plan nacional. Ningún Estado, por más poderoso que sea, puede hacerse invulnerable, por sí solo, a las amenazas actuales. Y no se puede suponer que todo Estado podrá o querrá siempre cumplir su deber de proteger a su propia población y no causar daño a sus vecinos12.

As novas ameaças são transnacionais, atravessam fronteiras e afetam um Estado, uma

região ou o mundo por completo, portanto precisa haver uma cooperação internacional para que

estas ameaças sejam vencidas. Por serem inter-relacionadas, as ameaças podem se multiplicar,

como uma guerra que ao tornar as áreas instáveis para a circulação de pessoas e mercadorias,

desestrutura os fluxos de comércio e turismo de uma região, fazendo as atividades econômicas

declinarem e levando muitas pessoas a uma situação de pobreza. Outra ameaça é o aumento da

produção de armas nucleares que pode permitir, pela maleabilidade das fronteiras, que um

terrorista tenha acesso a elas e use-as indiscriminadamente.

As ameaças precisam ser combatidas de forma conjunta, pois isto fortalece o sistema de

segurança coletiva, tanto através de troca de informações científicas quanto por meio de alianças

de proteção militar. As ameaças atravessam as fronteiras sem ao menos serem percebidas, como

as doenças, que podem ser levadas por uma pessoa recém contagiada em viagem internacional,

ou como o crime transnacional, que leva pessoas e dinheiro de um país para outro e só podem ser

recuperados através da cooperação com o país de destino. Por mais forte que um Estado seja

precisa de outros para enfrentarem juntos as ameaças .

12 Ibid. p.11. O argumento a favor de um sistema de segurança coletiva se baseia em três pilares básicos. As ameaças atuais não respeitam as fronteiras nacionais, estão relacionadas entre si, e devem ser encaradas tanto nos planos mundial e regional como no plano nacional. Nenhum Estado, por mais poderoso que seja, pode se tornar invulnerável, por si só, às ameaças atuais. E não se pode supor que todo Estado poderá ou quererá sempre cumprir com seu dever de proteger a sua própria população e não causar danos aos seus vizinhos. (T.A.)

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Além disso, é preciso admitir que os Estados falham em sua obrigação de proteger seus

cidadãos internamente, assim como, às vezes, falham em participar do sistema de segurança

coletiva, fazendo com que seja necessário que o próprio sistema internacional tenha mecanismos

que possam ser acionados quando estas lacunas aparecerem.

Para que o sistema de segurança coletiva seja construído e fortalecido, os organizadores

do relatório determinam quais novas ameaças afetam o sistema internacional. Tais organizadores

estabelecem as ameaças econômicas e sociais, os conflitos entre Estados, os conflitos internos, as

armas nucleares, radiológicas, químicas e biológicas, o terrorismo e o crime organizado

transnacional, bem como os novos desafios a serem enfrentados.

As ameaças econômicas e sociais podem ser, por exemplo, a pobreza, as enfermidades

infecciosas e a degradação ambiental. Hoje em dia, problemas como falta de acesso à água

potável e ao saneamento básico, característicos de regiões pobres, aparecem como grandes

incentivadores da disseminação de doenças. Muitas pessoas, principalmente crianças, morrem de

má nutrição e de fome. A degradação favorece o desequilíbrio do meio ambiente, a mudança

climática, a maior dispersão das doenças contagiosas e abala as atividades econômicas que

dependem diretamente da extração de produtos.

O número de conflitos interestatais ao redor do mundo sofreu um declínio com o fim da

Guerra Fria. Contudo, não podemos esquecer dos confrontos entre Israel e Palestina e da região

da Cachemira que mesmo com o passar do tempo permanecem sem solução.

Os conflitos internos se apresentam em maior escala e em países, em sua maioria,

completamente desestruturados com uma gama imensa de problemas que vão além das causas

óbvias dos conflitos. São normalmente regiões pobres com conflitos étnicos, pobreza extrema,

histórico de enfermidades contagiosas que não conseguem ser combatidas - economias voltadas

para a manutenção das guerras.

O crime organizado transnacional atua livremente nestas regiões, oferecendo armas,

drogas e um fluxo de dinheiro capaz de manter estas guerras e, às vezes, movimentando capitais

superiores ao PIB de alguns países13. Ele também atua no resto do mundo, envolvendo uma rede

complexa de pessoas e instituições, o que torna difícil a eliminação destes contatos que, uma vez

encontrados se reestruturam em outra parte do mundo, e, conseqüentemente, tornam difícil a

eliminação do crime.

13 Cf. GRUPO DE ALTO NIVEL SOBRE LAS AMENAZAS, LOS DESAFÍOS Y EL CAMBÍO. Op. Cit.

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O conflito EUA e União Soviética durante a Guerra Fria começou a disseminar o

conhecimento sobre armas capazes de causar uma destruição considerável ao mundo. As armas

químicas, biológicas, nucleares e radiológicas ainda são um desafio e requerem uma importante

cooperação dos Estados que detêm esta tecnologia em direção à eliminação e à não utilização

destas armas.

O 11 de setembro permitiu que o terrorismo abrisse espaço para uma nova forma de

enfrentamento ou que, pelo menos, esta forma ganhasse um destaque por sua capacidade de

destruição. O terrorismo possibilitou que grupos pequenos causassem um mal imenso a Estados

estabelecidos e que estes ataques fossem extremamente divulgados na mídia por todo o mundo, o

que causou uma sensação de instabilidade e medo.

O desafio é entender como combater estas ameaças e, principalmente, como preveni-las

para que não se tornem iminentes.

1.1.2 Novas Guerras

Para nosso estudo, cabe realçar o papel dos conflitos como ameaça ao sistema de

segurança. De que tipo são, onde ocorrem, quem participa, como são as negociações; estas são as

questões que devemos estudar para que possamos compreender qual é a situação em que as

intervenções humanitárias são autorizadas a agir.

Kaldor esquematiza o aumento da diversidade das forças armadas no período pós Guerra

Fria. Identifica quatro modalidades de organização das forças militares: o novo militarismo

americano, o novo militarismo moderno, as novas guerras e as operações de manutenção da

paz14.

Com o novo militarismo americano, os estrategistas perceberam um novo papel para os

Estados Unidos no fim da Guerra Fria. Em 1989, o gasto mundial com armamentos despencou

para a metade, o gasto americano também, apesar de cair bem menos. Após 1998, as despesas

começaram a aumentar outra vez e passou-se a investir mais em tecnologia militar15.

14 KALDOR, Mary. Beyond Militarism, Arms Race and Arms Control. Social Science Research Council. Disponível em: www. http://www.ssrc.org/sept11/essays/kaldor.htm Acessado em: 26 de junho de 2007. 15 Cf. Ibid.

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A Revolução em Assuntos Militares (Revolution in Military Affairs- RMA) é a tecnologia

da informação aplicada a assuntos militares. É uma conjunção de reunião, análise e transmissão

de informações e sistema de armamentos. A RMA começou a se desenvolver na década de 70 nas

Guerras do Vietnam e Oriente Médio.

Kaldor aponta para o cada vez menor número de mortos em guerra (casuality-free-war)

decorrente do desenvolvimento de armas mais precisas e do menor número de confrontos.

Contudo, percebe que apesar da destruição ser direcionada a outros alvos diferentes dos civis,

como a infra-estrutura, ela pode ocasionar uma série de mortes indiretas por falta de atendimento

correto em hospitais, destruição da estrutura de saneamento básico etc. Ao final, a redução do

número de mortes se dá realmente entre os militares americanos que retornam ao seu país após as

batalhas, diminuindo a influência que a morte de seus soldados teria na opinião pública. As vidas

americanas se tornam mais valiosas do que as outras16.

A autora ainda percebe que os Estados Unidos não devem ser caracterizados como

imperialistas, mas sim como o último Estado-nação pois seu comportamento é direcionado por

sua opinião pública doméstica ou por assuntos de ordem interna. Por esta posição vemos que

Kaldor entende o conceito de Estado-nação de forma rígida, sem admitir as reformas por que ele

passou no fim do século XX e início do século XXI. Da mesma forma, se entendermos o

imperialismo17 como a necessidade de constantemente reforçar o próprio poderio e entendermos

também os Estados Unidos como potência dominante, então entenderemos que certas atitudes

como invadir o Afeganistão e invadir o Iraque estão permeadas da necessidade de reforçar a sua

segurança e manter a sua posição no mundo.

O tipo seguinte seria o novo militarismo moderno, uma evolução do militarismo clássico,

só que em Estados com economias em transição para um sistema de mercado aberto e que ainda

mantêm um setor estatal forte.

Eles se caracterizam por serem Estados determinados pelas pressões da globalização e por

utilizarem ideologias extremadas como o chauvinismo russo ou hindu. Adotam guerras no

modelo moderno ou como contrainsurgências para alcançar objetivos políticos.

As tão debatidas novas guerras se configuram como redes armadas tanto de atores não

estatais quanto de atores estatais, que podem ser chamadas de “forças armadas privatizadas ou

16 Cf. Ibid. 17 PISTONE, Sérgio. Imperialismo. In: BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999. CD-ROM.

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informais18”. Elas incluem senhores da guerra que comandam áreas particulares e que projetam

seu comando além fronteiras com venda de diamantes, drogas e produtos diversos que sustentam

a guerra, redes terroristas que possuem células espalhadas pelo mundo, grupos paramilitares

organizados em volta de um líder, unidades regulares de militares e de serviços de segurança,

mercenários e companhias militares privadas19.

Ao invés das guerras serem somente entre atores estatais, a característica marcante é a

presença de novos atores não – estatais. Weiss indica três categorias de grupos não estatais

atuantes nas novas guerras. Existem beligerantes como milícias locais, grupos paramilitares,

antigos membros do exército ou os grupos de senhores da guerra. Há também os grupos em que

os interesses econômicos são envolvidos por violência como a máfia, gangues e negociantes

ilegais que podem tentar prolongar os conflitos para os seus interesses serem atendidos. O último

grupo é híbrido, misturando agendas econômicas e militares como os mercenários e companhias

privadas militares20.

Diferentemente do militarismo americano há um número acentuado de mortes e uma

prevalência de mortes entre civis. Não só isto, nos últimos anos, este número vem crescendo. A

população e os funcionários de agências humanitárias são os que mais sofrem com a violência

das novas guerras.

Estas guerras caracterizam-se pela internacionalidade e por seus efeitos cruzarem

fronteiras, por reunirem atores globais como mercenários, Estados vizinhos e organizações

humanitárias, por, normalmente, se concentrarem em áreas nas quais os Estados nacionais

modernos não estão totalmente estabelecidos e nas quais o público e o privado, o interno e o

externo se confundem.

As ideologias compreendidas nestas novas guerras são politicamente constituídas e têm o

propósito de mobilizar politicamente a população, a etnia ou o grupo religioso. Ao mobilizar as

pessoas conseguem aumentar a participação na rede ou, pelo menos, a atenção dirigida a sua

causa. Por isso, a guerra é formada de mobilização política e a intenção dela é eliminar ou

silenciar aqueles que poderiam desafiar o seu controle. Ou seja, a estratégia não é mais a batalha

18 Cf. KALDOR. Op. Cit. 19 Cf. Ibid. 20 WEISS, Thomas. G. Humanitarian Intervention. Ideas in Action. Cambridge: Polity Press, 2007.

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e a violência é dirigida diretamente aos civis, o que ocasiona os ataques terroristas, as limpezas

étnicas e os genocídios. A metodologia passa a ser a violação dos direitos humanos.

Por fim, se caracterizam por gerar um tipo de economia diferente das outras guerras.

Como a violência destrói a infra-estrutura do país, buscam-se maneiras alternativas de levantar

fundos para a guerra. Em geral, estas formas são ilegais, como a ajuda de países simpáticos à

causa, a venda de drogas, cigarros e bebidas alcoólicas, a requisição de taxas de agências

humanitárias e a exploração de imigrantes ilegais. Estes são fatores que dificultam as negociações

porque, com a guerra indiretamente financiando suas atividades, não há a vontade de finalizá-la.

Assim, percebe-se que as novas guerras são influenciadas e determinadas pela

globalização porque podemos ver que utilizam a economia informal globalizada e a disseminação

internacional das ideologias.

As operações de manutenção da paz (envolvendo peacebuilding, peacemaking e

peacekeeping) muitas vezes intervêm nestas novas guerras, principalmente no continente

Africano e no Oriente Médio.

Tais operações têm se caracterizado, após o fim da Guerra Fria, por num constante

aumento em número de soldados, objetivos, tarefas, e pelo envolvimento de demais organizações

além da ONU.

As forças de paz são formadas por coalizões transnacionais e apesar de terem um sistema

de comando multinacional, seus efetivos militares são submetidos a comandos nacionais. Além

disso, devem trabalhar em conjunto com outras organizações internacionais como as não

governamentais e agências da ONU como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os

Refugiados (ACNUR).

Hoje em dia, essas forças operam em contextos de guerras contínuas e pós-conflitos e por

isso, estão mais propensas a causar mortes. O seu objetivo principal é proteger os civis, já que são

os alvos das novas guerras. Não buscam lutar com um inimigo, mas seu trabalho é o de policiar,

protegendo civis, estabilizando a situação e não fazendo guerra.

Existem alguns países que, segundo Kaldor, ao perderem a sua autonomia no processo de

globalização adotaram uma estratégia multilateral que busca o fortalecimento de regras

internacionais. Esta categoria é formada, principalmente, pelos Estados europeus, o Canadá, a

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África do Sul e o Japão21. Seus esforços militares estão voltados, prioritariamente, para esta

modalidade de organização militar. Assim, a preocupação com a insegurança de outros Estados e

a experiência da peacekeeping estão moldando o pensamento militar nestes países.

As operações de intervenção serão nosso objeto de estudo e precisaremos entender em

que países elas, normalmente, agem.

1.1.3 Novos Teatros de guerras

O número de Estados não parou de aumentar desde o século XX, contudo as estruturas

estatais tradicionais sofreram grandes transformações.

Entidades caóticas ingovernáveis se desenvolvem, escapam a toda legalidade, mergulham em um Estado de barbárie. A força prevalece sobre o direito, e só os grupos violentos conseguem impor a sua lei, oprimindo as populações22.

Estas situações limitaram o poder de alguns Estados levando a guerras, tais como a da

Bósnia e a da Somália23. Outras causas como a xenofobia e a pobreza influenciaram a formação

de guerras civis e de Estados mais fracos e mais instáveis.

A partir dos anos 80 do século passado, a guerra interna passou a ser a forma dominante

de conflito armado no cenário mundial24.

Estas guerras ocorreram principalmente em países menos avançados assolados pelos

males da pobreza extrema e pelas divisões étnicas e políticas. Isto levou a uma maior ocorrência

de intervenções humanitárias em países da África, da Ásia, da América Central e do Leste

Europeu.

Segundo o Gráfico 1 (ver anexo) a frequência de conflitos internos vem diminuindo. O

número maior de enfrentamentos no imediato pós Guerra Fria era decorrente de uma

instabilidade causada pelas mudanças trazidas pelo fim deste período. Da mesma maneira, as

21 Cf. KALDOR, Mary. Beyond Militarism, Arms Race and Arms Control. Social Science Research Council. Disponível em: www. http://www.ssrc.org/sept11/essays/kaldor.htm Acessado em: 26 de junho de 2007. 22 RAMONET, Ignácio. Op. Cit. p. 11 23 Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 24 Cf. GRUPO DE ALTO NIVEL SOBRE LAS AMENAZAS, LOS DESAFÍOS Y EL CAMBÍO. Op. Cit.

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diversas formas de resolução de conflitos desenvolvidas no sistema da ONU permitem que,

através de negociações e mediações, alguns conflitos não sejam iniciados.

Todavia, isso não impediu a maior atuação de missões comandadas pela ONU em

conflitos internos a partir da percepção de que este era um problema da sociedade internacional25

e não, somente, do Estado em que ocorria a guerra civil.

Uma das maiores causas das guerras civis no pós Guerra Fria é a incapacidade de alguns

Estados exercitarem sua autoridade sobre o seu território e população. Como o controle sobre

territórios é uma característica da soberania, eles não são capazes de assumir suas obrigações de

Estado nacional26. O lugar da guerra não necessariamente coincide com as fronteiras estatais,

pode ser uma região ocupada por dois países com etnias rivais ou pode ser um só país com

regiões e etnias rivais.

Dessa maneira, as missões de paz da ONU passaram cada vez mais a atuar em Estados

falidos ou em colapso nos quais as causas do sofrimento humano estavam profundamente

enraizadas na estrutura da sociedade. Estas causas giravam em torno de um conjunto de

desestruturas políticas, econômicas e sociais, que levavam a guerras civis.

O impacto da globalização na soberania levou alguns estados a ocuparem uma posição

problemática e contraditória no sistema internacional. A falta de capacidade de atender as

competências estatais levou ao surgimento de graves problemas como a grande migração de

populações, tráfico de drogas, terrorismo e à disseminação incontrolada de doenças.

Um Estado pode passar por dois problemas: o seu próprio colapso e a falência estatal27.

Há uma diferença entre estes dois processos. O primeiro se refere à desagregação das instituições

e é o processo em que o poder, a estrutura, a autoridade, as leis e a ordem política se desintegram.

Ocorre em lugares do mundo em que as condições para a formação e manutenção do Estado

foram e são incertas.

Clapham percebe que existem regiões nas quais o Estado foi uma imposição recente e

externa, fazendo com que as pessoas não estivessem prontas para a obrigação de uso desta

organização, em grande parte porque não foi permitida a junção da diversidade de cada povo à 25 A sociedade internacional segundo Bull existe quando há entre um grupo de Estados interesses e normas comuns. Estas regras direcionam a relação entre eles e a cooperação em diversos temas. Cf. BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica: Um estudo da ordem mundial. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: ed. UNB. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002. 26 WEISS, Thomas. G. Op. Cit., p. 28 27 Cf. CLAPHAM, Christopher. The Challenge to the State in a Globalized World. Development and Change, v. 33, Issue 5, pp.775-795, november 2002.

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composição desta estrutura. O processo de colonização européia levou a várias regiões o

progresso dentro da fórmula da estrutura estatal ocidental, movimento no qual os habitantes da

região não foram ouvidos e, mais do que isso, no qual as pessoas foram reprimidas em seu

desenvolvimento28. Estes países foram mal preparados para enfrentar o desafio de manter suas

instituições internamente e enfrentar a competição dos outros Estados externamente.

A falência estatal diz respeito à incapacidade do Estado desempenhar funções básicas.

Clapham observa que este é um processo mais impreciso porque requer a determinação de quais

são as funções básicas de um Estado. Elas podem ser a manutenção da segurança, o respeito aos

direitos do cidadão ou o provimento do bem - estar29. Já Weiss crê que é exatamente uma falha

na autoridade central. Este termo, Estado falido, foi cunhado em 1992 para o contexto em que a

Somália se encontrava e para a situação de perplexidade em que os formuladores de política

ficaram diante da total desestrutura do país nos moldes de um Estado nacional. A Somália ainda

continua sendo um Estado falido.

Estes são os chamados quase-Estados30 porque foram formados de modo artificial como

se atendessem a todos os requisitos de soberania, o que não correspondia à verdade. Para a sua

sustentação os países hegemônicos ou as ex-metrópoles ajudaram a manter a estrutura através de

ajudas diversas. Com o fim da ordem da Guerra Fria muitas ajudas foram retiradas dos países

alinhados com as políticas das grandes potências. Houve, então, uma deterioração da qualidade

da governança que não se sustentava sem auxílio externo, refletindo a mudança no sistema global

e a incapacidade destes países manterem instituições que foram externamente criadas.

1.1.4 Marcos para a formulação do pensamento sobre intervenção humanitária

Algumas intervenções mudaram a prática das ingerências humanitárias que se adaptaram

às novas guerras, aos novos teatros operações e às novas necessidades dos peacekeepers e dos

civis. Elas foram importantes pois assinalaram uma mudança na forma de pensar a intervenção,

transformações que foram levadas para as operações subsequentes.

28 Cf. Ibid. 29 Cf. Ibid. 30 Quasi- States – termo unhado por Robert Jackson. Ver: JACKSON, Robert H. Quasi-States: Sovereignty, International Relations, and the Third World. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

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Logo após a Guerra Fria, a intervenção na Somália foi considerada um grande fracasso

por causa da extensão do seu mandato para um que requeria a utilização da força. Até então as

missões de paz estavam circunscritas ao capítulo VI da Carta da ONU sobre operações pacíficas

com sentido humanitário.

Este país se caracterizou por ser uma operação de manutenção da paz (peacekeeping),

iniciada no ano de 1992, em resposta a uma escalada da violência no processo da guerra civil

somali e em resposta a uma emergência humanitária provocada pela guerra. As Nações Unidas

enviaram um pequeno contingente de 50 observadores e 500 paquistaneses da força de segurança

(UNOSOM I) para monitorar o acordo de cessar fogo em abril de 1992.31

A operação comandada pelos EUA se chamou United Task Force (UNITAF) e teve início

em dezembro de 1992 trabalhando paralelamente à United Nations Operations in Somalia

(UNISOM I)32. Em meados de 1993, iniciou-se a UNISOM II com um novo mandato33,

declarando guerra ao general Aideed, comandante das forças rebeldes e responsável pela morte

de 24 soldados paquistaneses34. O objetivo desta missão era desarmar os beligerantes.

Entretanto, os esforços não saíram como deveriam pois com a morte televisionada e muito

noticiada de 18 soldados americanos35, o envolvimento deste país se findou e sua retirada deu-se

em poucos meses. A intervenção comandada pela ONU continuou, mas os objetivos não foram

alcançados.

Em Ruanda os tutsis e os hutus tinham um histórico de confronto permitido pelo Estado36.

No ano de 1994, a maioria hutu planejou um extermínio da minoria tutsi que levou à morte

milhares de pessoas. Depois de um tempo a população mundial ficou chocada e passou a

pressionar por uma resposta. Muitos Estados ainda não admitiam o acontecimento do genocídio.

Somente após a interferência da opinião pública, alguns Estados mudaram sua posição e o

Conselho de Segurança autorizou o envio de tropas de paz para a região. Isto aconteceu, contudo,

31 JONES, Seth G [et al.]. Securing Health: Lessons from Nation-Building Missions. [S.l.].RAND Corporation, 2006. Disponível em: http://www.rand.org/pubs/monographs/MG321/ Acessado em: 18 de maio de 2006. 32 Cf. FARRELL, Theo. Humanitarian intervention and Peace Operations. In: BAYLIS, John et alli. Strategy in the Contemporary World- an introduction to Strategic studies. Nova York: Oxford, 2002. 33 As intervenções têm mandatos, ou seja, diretrizes de atuação com objetivos claros a serem cumpridos. Cf. FARRELL, Op. Cit. 34 Cf. Ibid 35 Cf. FARRELL, Op. Cit. 36 MAYALL. James. Humanitarian Intervention and International Society: Lessons from Africa. In: Jennifer Welsh. Humanitarian Interventions and International Relations. New York: Oxford University Press, 2006

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só após o fim do genocídio e Ruanda foi marcada pela morte permitida de muitas pessoas. Foi

como, se ao não atuar, o Conselho de Segurança permitisse que estas mortes acontecessem.

Ruanda foi o reflexo de uma mudança de norma em relação às missões de paz da ONU

influenciada pela crise na Somália um pouco antes. A morte dos soldados na Somália levou a um

pessimismo em relação ao que se poderia fazer para levar a paz a um outro país e como a opinião

pública reagiria em relação a isto. Nenhum governo estava disposto a arriscar seus soldados para

salvar as vítimas de um genocídio que estava transcorrendo em outra região37. Os Estados Unidos

levaram, posteriormente, ajuda humanitária ao local, mas efetivamente um milhão de pessoas

morreu sem que a sociedade internacional fizesse alguma coisa para ajudá-los.

Na região da Bósnia- Hezegovina houve uma guerra nos anos de 1992 a 1995 finalizada

com os acordos de Dayton. Eles objetivavam por fim às agressões da guerra e manter as

fronteiras da “Bósnia, das demais ex-repúblicas e do próprio Estado sucessor da Iugoslávia,

composto pelas repúblicas da Sérvia, de Montenegro e pelas regiões de Vojvodina e Kosovo”38

intocadas. Contudo, nos anos que se seguiram e, principalmente, no ano de 1998, houve uma

escalada na repressão ao separatismo kossovar, que provocou o constante registro de mortes da

minoria albanesa na região. Como este acontecimento era muito parecido com a limpeza étnica

ocorrida durante a guerra da Bósnia, o Conselho de Segurança agiu prontamente requerendo,

através de resoluções, o fim das práticas de massacres, a retirada das forças sérvias da região e o

cessar-fogo.

Contudo, além destas resoluções, que não foram respeitadas, o Conselho de Segurança da

ONU nada fez diante das mortes que aconteciam na região. Entretanto, diante do histórico da

Guerra da Bósnia, havia indicações de que mais mortes poderiam acontecer. No final de 1998, o

Conselho da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) autorizou o uso da força contra

a Iugoslávia.

Kossovo foi a aplicação de uma nova norma para a intervenção humanitária que

legitimava o uso da força. Também foi o momento em que houve o debate sobre a necessidade da

autorização do Conselho de Segurança para que uma missão de paz fosse desenvolvida,

questionando se Estados e organizações regionais teriam o poder de usar a força para garantir a

37 WHEELER, Nicholas J. Saving Strangers. Humanitarian Intervention in International Society. New York, Oxford Univerity Press, 2002. 38 NOGUEIRA, João Pontes. A guerra do Kossovo e a desintegração da Iugoslávia: Notas sobre a (re)construção do Estado no fim do milênio. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.15 nº 44, Oct. 2000.

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preservação dos direitos humanos em uma região sem uma autorização coletiva. Houve uma

discussão no cenário internacional para saber se a “guerra humanitária”, nas palavras dos líderes

da OTAN, era justa, necessária, proporcional e efetiva39.

Após a reformulação de pensamento decorrente das discussões geradas pela intervenção

no Kossovo, o Iraque se apresenta como uma intervenção unilateral americana que passou a

contar com a participação da ONU apenas após a invasão a americana e ao fim da guerra contra o

regime de Sadam Hussein.

Os Estados Unidos invadiram o Iraque com o objetivo de encontrar armas químicas. Ao

fim, retiraram Sadam Hussein do poder e não encontraram as armas cuja existência tinha feito a

inteligência americana alertar o governo. Apenas depois de ataques aéreos em larga escala,

utilizou-se a estratégia de guerra de penetração terrestre40. Esta técnica é característica da

casuality-free-war41.

A Missão de Assistência das Nações Unidas para o Iraque (UNAMI) foi iniciada em

agosto de 2003 com os objetivos de apoiar a escolha de uma comissão eleitoral, ajudar no

desenvolvimento, reconstrução e assistência humanitária etc. Esta intervenção foi formada pelo

Estado que desempenhou a invasão armada.

Darfur foi um segundo caso depois de Ruanda de falta de atuação do Conselho de

Segurança da ONU. Darfur é uma região que antes de ser incorporada ao Sudão era um sultanato

muçulmano. Depois da incorporação continuou sendo um local pobre e negligenciado pelo

governo central. Para piorar, dois conflitos influenciaram na estabilidade da região. O primeiro

foi do vizinho Chade, que ultrapassou as fronteiras e favoreceu o Sudan People´s Liberation

Army (SPLA). Esta guerra foi uma entre uma elite de identidade árabe e islâmica e as pessoas

excluídas do processo político, principalmente as do sul e do sudeste do Sudão42.

Estes vários conflitos sobrepostos resultaram, entre os anos de 2001 e 200343, em uma

grande ofensiva do exército do governo, o que só exacerbou mais o conflito e desestruturou a

39 WHEELER, Nicholas J. Op. Cit. 40 Cf. JONES, Seth G [et al.]. Op Cit. 41 Casuality –free – war é a forma de guerra que prima pelo cada vez menor número de mortos em combate. Para mais informações ver: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Doutrina Powell. In: Francisco Carlos Teixeira da Silva. (Org.). Enciclopédia de guerras e revoluções do século XX: As grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004. 42 Cf. WALL, Alex. Darfur and the failure of the responsibility to protect. International Affairs, v.83, nº6, pp.1039-1054, 2007. 43 Cf. Ibid.

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unidade governamental. A persistência do conflito causou fome, migrações e massacres,

chamando a atenção da opinião pública internacional e da ONU.

O acordo de cessar-fogo entre o governo e a SPLA foi assinado em 200444 e possibilitou

o envio de uma intervenção sob os auspícios da União Africana (UA). A African Mission in

Sudan (AMIS) tinha um mandato que permitia o envio de monitores do cessar fogo e, depois, de

uma força que os protegesse e aos civis nas proximidades do lugar determinado da operação.

O governo do Sudão não aceitou a proposta de intervenção da ONU e somente no ano de

200745, aprovou uma missão conjunta da UA e da ONU que possibilitou uma atuação maior e

mais efetiva do que a missão de 2004 da UA. O Conselho de Segurança demorou seis anos para

aprovar uma medida efetiva e apesar da atuação da UA e das resoluções do Conselho de

Segurança requerendo um fim das hostilidades, os conflitos continuaram e a UA não teve

capacidade real de atender a todas as necessidades da região de Darfur.

Assim, a força é utilizada amplamente e ainda suscita discussões, de modo reduzido se

comparado com Kossovo, sobre a legitimidade do uso da força não consentida pelo Conselho de

Segurança tanto em casos como Darfur, em que havia o argumento da presença de genocídios,

quanto no Iraque em que o ataque foi segundo a idéia de prevenção. As perguntas de em que

casos e como a força deve ser usada ainda são atuais.

Cada momento histórico desenvolveu suas teorias legitimadoras e cada uma teve seu

momento de predomínio. Estes vários marcos que assinalamos também determinaram mudanças

na forma de pensar a intervenção e tiveram reflexo nas teorias que veremos.

1.2 As várias formas de entender a intervenção humanitária

Como faremos o estudo do uso da força através de documentos, buscaremos analisar as

palavras que têm relação com uso da força e com intervenção que serão nossos parâmetros de

análise.

44 Cf. Ibid. 45 Cf. Ibid.

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“A conceitualização de um invariante46 permite explicar os acontecimentos. Podemos

“recriar” a diversidade das modificações históricas”47

O invariante permite-nos perceber as características comuns e as que trazem diferenciação

de um fato para outro.

Invariante não quer dizer que a história seja feita de objetos invariáveis que nunca mudarão, mas apenas que poderemos colocar-nos em relação a ela dum ponto de vista que permaneça invariável como a verdade, um ponto de vista científico, que escapa às ignorâncias e às ilusões de cada época e que seja trans-histórico.48

Os invariantes sofrem modificações históricas, tanto em sua utilização, quanto em sua

conceitualização. Desta forma, poderemos, por exemplo, compreender o conceito de intervenção,

e que ela também se diferencia ao longo do tempo, fazendo com que a intervenção na Somália

não seja idêntica à intervenção no Iraque, individualizando os fatos. Os operadores de

individualização serão o tempo, o lugar, os fatores determinantes, sintetizados no nome do lugar

que ocorrem: “Somália”, “Bósnia”, “Congo”, “Iraque”.

Entretanto, para o desempenho da análise, firmamos um conceito para que possamos nos

guiar, para que possamos comparar os eventos estudados e ressaltar suas aproximações e

distanciamentos.

O invariante permite reconhecer a diversidade dos fenômenos, pois ao individualizar,

explicita e explica os acontecimentos. Nunca um acontecimento será apenas uma repetição do

outro porque acontecem em tempos diferentes.

Muitos já pensaram sobre este assunto, enfocando aspectos diferentes e se mostrando

preocupados com questões diversas. As intervenções humanitárias são analisadas por diversas

correntes que se preocupam com este tema. Usaremos a bibliografia mais atual das linhas

clássicas de debate sobre a intervenção humanitária que partilham a preocupação com o

desenvolvimento do âmbito internacional e o posicionamento de Estados, indivíduos e

organizações internacionais frente a questões que podem ser interpretadas como pertencentes ao

âmbito nacional, internacional ou global de acordo com cada concepção. Também tentaremos

priorizar os autores mais conhecidos e representativos de cada linha de pensamento.

46 Cunhado por Paul Veyne, o invariante é uma constante trans-histórica, algo que proporciona à história conceitos e instrumentos de explicação. 47 Ibid, p. 13 48 Ibid, p. 16

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Após apresentar as diversas formas de organização das forças armadas e apesar de estudar

o papel da guerra na sociedade internacional, Kaldor49 busca uma solução para a guerra ou pelo

menos para a redução e prevenção deste uso. Para ela, a resolução está no respeito ao direito

internacional e na aplicação do direito internacional humanitário (leis da guerra) e dos direitos

humanos. A autora acredita que esta seja a forma mais eficaz de prevenir a guerra, apesar de crer

que o controle de armamentos também faça parte deste método. Ela chega a propor que as

operações de peacekeeping sejam chamadas de enforcement humanitarian law50.

Na mesma Linha de Kaldor, Byman e Waxman51 pretendem entender como os Estados

Unidos, potência incontestável economicamente e militarmente, podem ter alguma dificuldade no

emprego da coerção, isto é, no uso de força ameaçadora ou no uso efetivo da força para induzir o

adversário a mudar seu comportamento52. Eles crêem que sanções, pressões políticas e meios

pacíficos de negociação têm seu lugar, contudo não se têm mostrado tão eficazes quanto

necessário. A violência é parte desta estratégia, mas não é o mais importante: é apenas a ameaça

de que esta destruição possa ir de encontro às suas pretensões que faz com que o adversário recue

em seus objetivos, ou pelo menos desista de exercê-los.

Os realistas acreditam no interesse nacional e na sua sobreposição frente aos outros

aspectos da política internacional.

“Like all operations, stability operations and suport operations are sensitive to political

considerations and support national objectives.53”

O excerto acima, de um documento americano sobre os tipos de operações empregados

nas missões de paz, nos mostra a ênfase dada aos interesses nacionais mesmo em missões de

caráter multinacional. Por isso, quando se trata de conflito, os realistas defendem a utilização do

49 Cf. KALDOR, Mary. Beyond Militarism, Arms Race and Arms Control. Social Science Research Council. Disponível em: www. http://www.ssrc.org/sept11/essays/kaldor.htm Acessado em: 26 de junho de 2007. 50 Imposição do direito humanitário (T.A.) 51 BYMAN, Daniel. WAXMAN, Matthew. Humanitarian coercion and nostate actors. In: The Dynamics of Coercion- American Foreign Policy and the Limits of Military Might. Cambridge University Press. Cambridge: 2002. 52 BYMAN, Daniel. WAXMAN, Matthew. The Dynamics of Coercion- American Foreign Policy and the Limits of Military Might. Cambridge University Press. Cambridge: 2002. p.3 53 DEPARTMENT OF THE ARMY. Stability Operations and Support Operations – Field Manual 3 – 07. Washington, DC: Department of the Army, 2003, p.1-3. Como todas as operações, as operações de estabilidade e operações de suporte são sensíveis a considerações de natureza política e apóiam os objetivos nacionais. (T.A.)

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poder militar como forma de coerção da parte contrária aos seus interesses nacionais54. Quanto à

atuação destes elementos na intervenção humanitária, eles acreditam que possa haver uma força

de estabilização, mas não uma missão de paz comandada por uma organização multilateral como

a ONU. Isto é facilmente percebido pelo nome dado às operações de paz dos Estados Unidos:

operações de estabilidade.

Os realistas não acreditam que a força de paz tenha alguma capacidade de resolver o

conflito. Há, portanto, apenas uma contenção do conflito, ou seja, uma força de coerção usada

com o objetivo de reduzir a violência.

A análise de Byman e Waxman se centra no estudo da coerção das forças armadas.

Examinam como constranger usando a força coercitiva das ameaças ao invés de usar

intensamente a força militar. A defesa foca o argumento de que a coação pode dissuadir os

adversários de seus objetivos e ajudar, por exemplo, no convencimento das milícias, das

guerrilhas, dos senhores da guerra de que existe a necessidade de prestar ajuda às pessoas que

sofrem privações com a guerra ou com as violações dos direitos humanos.

Para Krasner,55 o princípio de soberania sempre foi desafiado, poucos foram os Estados

que mantiveram a autonomia, controle e reconhecimento durante toda a sua existência. A

soberania continua ligada à autonomia e independência do Estado, refletida no princípio de não-

intervenção, ou seja, um Estado não tem o direito de intervir nos assuntos internos de outro, mas

ainda sim, o Estado mais forte consegue que o mais fraco se submeta à suas pretensões.

A soberania também é ligada, ultimamente, à idéia de controle dos fluxos internacionais,

tanto de pessoas, como de produtos, serviços e capitais pelas fronteiras nacionais. Krasner

acredita que o Estado não perde sua força ao não conseguir controlar tão eficazmente estes fluxos

pois o escopo de controle estaria mudando e se virando para outras áreas, como as políticas

fiscais.

Por fim, a soberania significa a autoridade de entrar em acordos internacionais. Desta

forma, os Estados mais fortes se tornam mais vulneráveis às mudanças que as instituições

domésticas podem sofrer com a interferência de organizações não governamentais e de outros

governos em seus negócios internos.

54 Cf. RAMSBOTHAM, Oliver. et al. Contemporary Conflict Resolution. The prevention, management and transformation of deadly conflicts. Cambridge: Polity Press, 2008. 55 KRASNER, Stephen D. Sovereignty. Foreign Policy, nº. 122, pp. 20- 29, Jan-Feb 2001.

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Krasner, acima de tudo, está preocupado com a manutenção da soberania americana e,

particularmente, está preocupado com o risco que Estados falidos representam para os EUA e

para a segurança internacional. Por isso, tenta justificar a criação do Office of the Coordinator for

Reconstruction and Stabilization (S/crs)56 que tem por objetivo estudar ações, levantar recursos

para a prevenção de conflitos e sistematizar as atividades e recursos necessários para cada fase do

conflito. Antes de tudo, o autor advoga pela prevenção de conflitos e pela não participação

americana em todos os conflitos que necessitem de intervenção já que o país não tem esta

capacidade. Krasner entende que os EUA tentam seguir o exemplo de outros países como o

Reino Unido, o Canadá, a Alemanha e a França que já fazem mudanças estruturais para antecipar

e administrar conflitos externos.

Como o artigo tem por objetivo a defesa de um departamento que visa a reconstrução e

estabilização estatal, Krasner esquematiza os estágios do pós-conflito. O primeiro seria a

estabilização gerando condições que ajudassem o desenvolvimento político, econômico e social.

O segundo seria a supressão das causas do conflito, por exemplo, corrupção, colapso do sistema

econômico ou exclusão política. O terceiro estágio seria a criação de leis e instituições

democráticas e de uma economia de mercado. Por fim, deveria ser criada uma demanda pela

atuação política para que o governo pudesse ser sustentado.

A criação deste departamento está ligada à necessidade americana de reconstruir países

em que os Estados Unidos se envolveram em conflitos, tanto como parte interventora quanto

beligerante. A criação deste departamento também reflete a vontade de implantar regimes que

sejam leais às políticas americanas. Isto está presente no terceiro estágio do processo de

estabilização esquematizado por Krasner, no qual seria priorizada a criação de instituições de

uma democracia de mercado. Isto favoreceria a relação entre esses países e os Estados Unidos e,

possivelmente, os submeteria às políticas americanas ou à sua influência.

Tanto Byman e Waxman, como Krasner e Kaldor acreditam na soberania do Estado-

nação apesar de Kaldor fazer referência a outros atores governamentais que podem atuar em uma

guerra. Para eles existe uma política de poder que determina a possibilidade de um Estado tomar

decisões e de agir internacionalmente, ações estas que têm reflexos tanto internamente quanto

externamente. Contudo, ainda sim, Kaldor credita um poder estabilizador das relações

56 KRASNER, Stephen D.; PASCUAL, Carlos. Addressing State Failure. Foreign Affairs, Washington D.C., v.84, nº 4, pp. 153-163, July/Augst. 2005.

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internacionais ao direito, enquanto que Krasner vê este poder estabilizador na difusão da

democracia e da economia de mercado como ideais americanos.

Apesar de enfocar a distribuição desigual de poder entre os Estados e a política de poder

existente entre eles, a resposta de Kaldor às guerras é uma busca pacífica de resolução de

conflitos que deveria ser regulada pelo direito internacional. Com suas conclusões, se aproxima

dos teóricos da sociedade internacional, que buscam o que há de comum entre os Estados para

que possa existir uma regulação das suas relações.

Esta outra corrente, que também se preocupa com as intervenções, dá prioridade à relação

entre os Estados e à possibilidade desta relação ser regulada por direitos, autoridade e obrigações.

Com o enfoque na lei e na moral, esses teóricos conseguem perceber que as atitudes do Estado

podem ser restringidas e direcionadas por certo padrão de conduta e normatização das relações no

campo internacional.

Os pluralistas, como são chamados, acreditam em uma sociedade internacional de Estados

em que alguns interesses são compartilhados. Existe, então, uma cooperação quando os interesses

são comuns. Apóiam as regras da sociedade internacional de Estados que estão fundamentadas

nas concepções plurais do bem. Os valores que guiam este pensamento são os de não-intervenção

e de respeito ao pluralismo cultural. Podemos perceber na formação da Organização dos Estados

Americanos (OEA) a influência destes fatores. No artigo 19 da Carta da OEA57, a não-

intervenção aparece como princípio regulador das relações internacionais no âmbito americano:

Nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir, direta ou indiretamente, seja qual for o motivo, nos assuntos internos ou externos de qualquer outro. Este princípio exclui não somente a força armada, mas também qualquer outra forma de interferência ou de tendência atentatória à personalidade do Estado e dos elementos políticos, econômicos e culturais que o constituem58.

Encontramos os valores de soberania e não–intervenção sendo defendidos no âmbito

americano e também como organizadores da ordem internacional desta região. A não-intervenção

permitiria que a ordem e o direito fossem preservados e cada comunidade se desenvolveria do seu

modo e com sua própria cultura.

57A Carta da OEA foi assinada em 1948 e foi reformada por 4 protocolos: O Protocolo de Buenos Aires de 1967, o Protocolo de Cartagena das Índias de 1985, o Protocolo de Washington de 1992 e o Protocolo de Manágua de 1993. 58 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da Organização dos Estados Americanos. Cidade do México: Conselho Permanente OEA, 1997. Disponível em: www.oas.org . Acessado em: 15 de abril de 2009.

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Contudo, para os pluralistas, a questão do respeito ao pluralismo cultural através da não-

intervenção levanta o problema deste respeito encobrir Estados que violam os direitos humanos

de seus cidadãos. Brown levanta a idéia de que o respeito a soberania esconderia diversas

irregularidades e abusos dentro de um Estado.

“Diversity entails that states have the right to mistreat their populations, then it is

difficult to see why such diversity is to be valued59.”

Assim, para que serviria a diversidade, se ela permite que os Estados tratem mal os

indivíduos? O questionamento do pluralista se refere à rigidez do princípio de soberania e se ele

não deveria admitir a intervenção estrangeira mesmo que isto desrespeitasse certos princípios e

costumes internacionais60. O exercício de reflexão permite que haja a análise dos ganhos em

tentar impedir desrespeitos sérios aos direitos humanos e das perdas em infringir um princípio

internacional.

Vincent61 é um proeminente teórico da corrente solidarista da sociedade internacional que

ocupou a cadeira Montague Burton de Relações Internacionais na London School of Economics

até 1990. Ele se empenhou em estudar os valores compartilhados pela sociedade internacional e

destacou os direitos humanos e sua relação com as intervenções humanitárias. Vincent enfrenta o

questionamento de Brown tentando enfatizar o que havia de comum entre os indivíduos de toda a

humanidade, no seu caso os direitos humanos, não como um enfraquecimento da soberania, mas

como uma posição contra a insistência de separação entre os Estados, uma busca pelo que ele cria

ser comum a todas as pessoas. O respeito aos direitos humanos adicionaria base à legitimidade

estatal.

Então, para Vincent, os Estados deveriam atender a alguns pré-requisitos mínimos antes

de terem direito ao princípio de não-intervenção e, é quando se abre uma exceção a este

princípio62. Se os Estados não respeitam os direitos básicos63dos indivíduos e sistemática e

59 BROWN. C. International Relations Theory: New Normative Approaches. Hemel Hempstead: Harvester Wheatsheaf, 1992, p. 125. Apud. WHEELER, Nicholas J. Op.Cit., p.27. A diversidade implica que os Estados têm o direito de maltratar as suas populações, então é difícil perceber a razão por que essa diversidade deve ser valorizada. (T.A.) 60 Alguns costumes e princípios presentes na Carta da ONU são: autodeterminação dos povos, a resolução pacífica de conflitos, não uso da força, igualdade entre os membros, não-intervenção. 61 Cf. VINCENT, R.J. Grotius, Human Rights, and Intervention. In: BULL, Hedley.; KINGSBURY, Benedict.; ROBERTS, Adam. Hugo Grotius and International Relations. Oxford: Claredon Press, 1992. 62 Cf. WHEELER, Nicholas J. Saving Strangers. Humanitarian Intervention in International Society. New York, Oxford Univerity Press, 2002. 63 Cf. GONZALEZ-PELAEZ, Ana.; BUZAN, Barry (2003) A viable project of solidarism? The neglected contributions of John Vincent's basic rights initiative. International Relations, v. 17, nº 3, pp. 321-339, 2003.

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maciçamente violam os direitos humanos, então não só abrir-se-ia uma exceção ao princípio de

não-intervenção, mas a sociedade internacional também teria o dever de resolver o conflito

interno ou regional e acabar com as violações aos direitos humanos. Isto levaria a sociedade

internacional de volta à Ordem.

A idéia de uma sociedade mais solidarista seria a possibilidade de chegarmos a consensos

com mais frequência e, principalmente, consenso nos casos em que o direito a uma intervenção

humanitária pudesse sobrepor o princípio de não-intervenção. Os Estados seriam constituídos

pela autodeterminação dos povos, portanto, quando não observassem os direitos básicos de seus

cidadãos, estariam sujeitos a uma interferência externa, contanto que esta suspensão do princípio

de não-intervenção se desse em casos específicos, e não como uma rotina. Vincent se mostrava

preocupado com a possibilidade deste dever ser transformado em um direito de intervir e legar

aos Estados a possibilidade de interferirem em qualquer situação.

Vincent está na base da formulação da teoria solidarista, por isto ele ainda é favorável ao

pluralismo no que diz respeito à não intervenção e à soberania, apresentando a intervenção

apenas como algo que foge à regra geral.

Entretanto, revela a preocupação de que se as regras que governam a prática das

intervenções humanitárias não forem previamente estabelecidas, as partes interventoras não

saberão o que moral e legalmente se pode fazer. Além disto, o não estabelecimento destas regras

pode gerar uma licença para qualquer tipo de intromissão nos assuntos internos de outro Estado.

Assim como Vincent, Walzer64 acredita que os Estados são comunidades

autodeterminadas e que quando os governos destes Estados deixam de representar ou contrariam

a vontade das comunidades, seja por leis injustas, seja ou por crimes contra a população, devem

ser retirados da sua posição administrativa.

Entretanto, diferentemente de Vincent não especifica quais seriam os direitos básicos

responsáveis por determinar a justiça ou a não justiça de uma guerra. Para ele, os direitos

humanos justificam uma intervenção humanitária, mas, principalmente, guiam os atos entre os

beligerantes. Existe um código moral a ser seguido, mesmo se estivermos em uma guerra.

Vincent tenta encontrar um denominador comum entre as diversas culturas da humanidade e encontra os direitos básicos, que seriam constituídos pelo direito a segurança contra a violência arbitrária e pelo direito a subsistência. Para que os outros direitos fossem desfrutados seria preciso que estes dois fossem alcançados primeiro. 64 Cf. WALZER, Michael. Just and Unjust Wars: A moral Argument with Historical Ilustrations. Nova Iorque: Basic Books, 2º edição. 1992.

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A reintegração da guerra justa à teoria contemporânea deve se basear na noção de direitos

individuais, portanto o ataque militar seria possível em alguns casos: apoio a movimentos de

libertação nacional; contraintervenção para equilibrar as forças em guerra; e quando a violação

dos direitos humanos for terrível, de modo a contrariar qualquer referência a uma comunidade,

como em casos de escravidão ou massacre 65.

Nestes casos, a questão da moralidade da guerra está permeada da visão ocidental e liberal

do autor. Por não compreender uma explicação de quais são os motivos para a justificação da

guerra, Walzer faz com que qualquer violação (segundo seus critérios do que seja violação dos

direitos humanos) justifique uma guerra. Assim, qualquer justificativa baseada na ética e na

moral deve ser considerada.66

Como pudemos entender do trabalho de Vincent, os solidaristas retiram o foco do Estado

nacional e percebem a atuação de outros agentes na política internacional. Situações de conflito

poderiam ser transformadas pela atuação do Estado nacional, instituições, organizações e pela lei

internacional.

Para a formação do conhecimento solidarista a humanidade é o elemento norteador. Isto

coloca a discussão sobre as pessoas que sofrem violações dos seus direitos humanos na agenda da

corrente teórica, levando tais teóricos a considerarem como pode haver uma ação legitima que

promova a paz e a justiça para estas pessoas.

Por isso, os solidaristas acreditam em uma operação de manutenção da paz realçada,

intensificada, aumentada com uma alta capacidade de resolução de conflitos através do âmbito

militar e civil, conferindo ao âmbito militar um destaque maior em relação à resolução de

conflitos67.

Wheeler é um dos expoentes desta teoria no que se refere às discussões sobre intervenções

humanitárias. Ele parte da concepção pluralista e tenta responder de maneira solidarista às

questões que seriam postas à eficácia das ingerências de caráter humanitário. Através de

exemplos de intervenções ocorridas durante a Guerra Fria e após o seu fim, o autor tenta entender

de que modo elas se configuraram como uma exceção legítima aos princípios da sociedade de

65 Cf. Ibid .p. 154. 66 GRIFFTHS, Martin. 50 Grandes Estrategistas das relações internacionais. Tradução de Vânia de Castro. 2ª edição. São Paulo: Contexto, 2005. 67 Cf. RAMSBOTHAM, Oliver. et al. Op. Cit.

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Estados, princípios como os da soberania, não-intervenção e não-uso da força68. Este exercício de

raciocínio se dá porque, partindo das regras pluralistas de organização da sociedade internacional,

a intervenção aparece como uma exceção a estes princípios ordenadores.

O uso da força é central para a argumentação de Wheeler, que a põe como um elemento

que faz parte de uma intervenção humanitária, seja ela unilateral, seja decorrente do consenso

entre Estados por meio do Conselho de Segurança da ONU.

As normas e regras constrangem os Estados, até os mais poderosos. Ao mesmo tempo, os

capacita a atuar no cenário internacional em um terreno mais conhecido e no qual há mais

compromissos com o respeito às regras e aos outros Estados. As regras, formalizadas ou não, mas

como um conjunto de procedimentos reconhecidos, são o que confere legitimidade à intervenção

humanitária e à utilização da força.

Neste livro, Wheeler estuda “how legitimation concerns constrain and enable state action

in relation to the use of force for humanitarian purposes”69. Então, para ele, como a legitimação

das suas ações pode agir como um constrangimento ou como uma capacitação para que um

Estado externo ao conflito decida atuar como parte interventora e quanto este Estado usará em

termos de força apara alcançar seus objetivos é ponto fundamental para a sua discussão. Assim,

como os outros autores desta corrente, Wheeler tenta entender como a Justiça fortalece os laços

entre os Estados da sociedade internacional.

O autor acredita que um Estado poderia ser constrangido a se retirar de uma intervenção

humanitária se suas justificativas não fossem realmente baseadas em uma razão legitima. Para ser

legitima deve ser humanitária e para ser humanitária deve atender a quatro critérios derivados da

teoria da Guerra Justa como na teoria de Walzer: deve existir uma causa justa que seria uma

“supreme humanitarian emergency”70; a força deve ser apenas usada como último recurso; a

intervenção deve atender a um critério de proporcionalidade e deve haver uma grande

probabilidade do uso da força alcançar um resultado humanitário positivo.

Portanto, uma intervenção humanitária unilateral não iria desequilibrar a ordem da

sociedade internacional e muito menos seria um precedente para intervenções não humanitárias

de países hegemônicos em países mais fracos. As vantagens comerciais e econômicas seriam

68 Cf. WHEELER, Op. Cit. 69 Ibid, p. 10. Como preocupações com a legitimidade constrangem e capacitam as ações estatais em relação ao uso da força com propósitos humanitários (T.A.) 70 Ibid, p.34. Suprema emergência humanitária (T.A.)

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abandonadas caso conflitassem com a defesa dos direitos humanos. Se a tentativa de resolver o

conflito atendesse aos critérios de legitimidade identificados pelo autor, a intervenção, unilateral

ou não, teria o único propósito de ajudar pessoas sofrendo em meio a situações de emergências

humanitárias extremas.

Os pluralistas se questionam quando uma intervenção deve ser consentida e se preocupam

em definir regras que determinem quais os direitos que violados permitem uma ingerência nos

assuntos internos de um país. Wheeler dá outro enfoque ao tema quando tenta legitimar estas

ações, entendendo que as causas não humanitárias serão naturalmente constrangidas a não

constituir uma intervenção. Então, a preocupação de Vincent de que um Estado mais forte

intervenha em um mais fraco para simplesmente exercer sua hegemonia não preocupa Wheeler já

que argumentos como desculpas falsas com motivações econômicas não atenderiam aos quatro

critérios derivados da Guerra Justa e, conseqüentemente, faria com que o Estado fosse

constrangido a se retirar da intervenção.

Weiss avança um pouco no tema e se preocupa mais com a possibilidade de não haver

uma intervenção necessária que seja impedida pela dinâmica da comunidade internacional71.

Defende que uma das engrenagens desta dinâmica, a soberania, deve ser posta de lado em casos

de Estados incapazes de proteger seus cidadãos. O autor foca sua atenção em intervenções nas

quais não há consentimento expresso do governo, ou seja, em que ela não seja solicitada, e

mesmo assim haja uma justificativa humanitária72. Para o autor, a justificativa humanitária

precisa ser necessariamente de ocorrência de genocídios e deslocamentos forçados em larga

escala, o que excluiria desastres ambientais ou, por exemplo, desrespeito aos direitos humanos.

Para ele, o cosmopolitismo está trazendo conceitos que ajudam a construir uma

moralidade na sociedade de Estados. Conclui que houve significativos avanços na doutrina da

intervenção humanitária no pós Guerra Fria, mas salienta que é preciso ver como elas se

desenvolvem na prática e a parte dos desígnios políticos dos Estados, discordando de Wheeler

quando ele acredita que os interesses políticos não determinam onde um Estado intervém ou não.

Para Weiss a decisão de intervir pode ter vários motivos: éticos, com o objetivo de impedir uma

71 Entendemos como Buzan e Pelaez que acham legítimo usar o termo comunidade internacional tanto para unidades locais e para aspectos da sociedade como um todo. Contudo, demonstram qual a diferença existente entre os termos comunidade e sociedade, dando a este primeiro um caráter mais identitário e ao segundo a necessidade da existir regras compartilhadas, mas não afinidades ou afeições sociais. Cf. BUZAN, Barry.; GONZALEZ-PELAEZ, Ana. “International Community” after Iraq. International Affairs, v. 81, Issue 1: pp. 31-52, 2005. 72 Cf. WEISS, Thomas. G. Op. Cit.

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crise humanitária, a presença de interesses nacionais na região e a procura de ganhos disfarçados

sob a bandeira humanitária. Contudo, na prática, não é o constrangimento de não respeitar o

direito à soberania de um país que indica o lugar onde as operações atuam, mas ainda hoje, os

desejos políticos e os recursos disponíveis dos Estados envolvidos73.

Weiss aponta as ausências de decisões em Ruanda e em Darfur como comprometedores

do poder da ONU e das vidas das pessoas que viviam ali. Entende que foram ameaças para a

ordem e para a justiça internacional e que, neste caso, o princípio da não-intervenção deveria ser

abandonado. Entretanto, muitas vezes esta decisão fica condicionada ao desejo estatal e a

interesses políticos e econômicos. Ele tem, contudo, uma posição pessimista quanto à

implementação dessas novas normas.

Por isso, termina colocando a importância de intervenções unilaterais e coalizões de

países que possam intervir quando o Conselho de Segurança não se posiciona pois para ele a

segurança dos indivíduos está acima de qualquer preocupação estatal ou internacional que impeça

sejam eles salvos. Crê que, se na prática estas novas normas não funcionarem, deve haver um

outro dispositivo na sociedade internacional que faça a segurança dos indivíduos ser preservada.

Jennifer Welsh organizou um livro chamado “Humanitarian Intervention and

International Relations” filiado às formulações dos teóricos da sociedade internacional. Os

teóricos do livro estudam a intervenção humanitária, tanto no que diz respeito à teoria quanto ao

uso deste pensamento na prática. Delimitam seu objeto de estudo a ingerências com algum grau

de consentimento, ainda que sendo apenas por uma parte de sua duração ou por algum lado

envolvido no conflito. Da mesma forma restringem seu objeto à intervenções nas quais a força é

utilizada. Por isso, definem intervenção humanitária da seguinte forma:

Coercive interference in the internal affairs of a state, involving the use of armed force, with the purposes of adressing massive human rights violations or preventing widespread human suffering74.

Diferentemente de Weiss acreditam que uma intervenção deve ser consentida. Ele estuda

intervenções em que não há consentimento. Há, contudo, uma interseção em seus estudos, o que

73 Cf. WEISS, Thomas. Op. Cit. 74 WELSH, Jennifer. Humanitarian Interventions and International Relations. New York: Oxford University Press, 2006. p. 3. Interferência coerciva nos assuntos internos do Estado, envolvendo o uso de forças armadas, com a finalidade de acabar com as violações maciças dos direitos humanos ou impedir o sofrimento humano generalizado (T.A.)

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nos faz entender que o consentimento para Weiss é visto de forma objetiva; ou há um

consentimento total ou não há consentimento. Então, para ele muitas das intervenções que não

tiveram consentimento, obtiveram-no para os autores de “Humanitarian Intervention and

International Relations”. Já para estes, o consentimento é mais amplo, podendo ser de uma parte

ou mesmo de forma tácita.

Para estes últimos é importante também o realce dado à coerção da força militar com o

objetivo de fazer parar a agressão a um grupo de pessoas ou à população de um país. Para eles há

a ênfase dada na violação dos direitos humanos, que para Weiss precisa ser melhor definida. Para

Weiss, o termo direitos humanos deve ser evitado para que os casos humanitários fiquem restritos

a genocídios e migração forçada em larga escala. Têm, na verdade, objetivos diferentes na

formulação de seus livros. Welsh e os autores dos artigos pretendem observar a teoria e a prática

da intervenção humanitária. Weiss pretende entender o que pode ser feito quando um governo

não permite a interferência externa para cessar as violações aos cidadãos de determinado país.

Ramsbotham, Woodhouse e Miall no livro “Contemporary Conflict Resolution”75

acreditam que a coletividade internacional não é homogênea, mas sim que uma comunidade

global existe através de valores cosmopolitas e de mecanismos como a governança e a justiça

internacionais, que podem fomentar e defender estes valores cosmopolitas. Assim, entendem que

as práticas e princípios da resolução de conflitos ganharam destaque na agenda internacional por

causa do desenvolvimento de uma sociedade global de Estados e de uma comunidade

internacional.

A questão dos cosmopolitas está na percepção de uma comunidade global se formando

através de valores comuns compartilhados. Os valores residiriam no entendimento da valoração

do indivíduo e da comunidade da qual ele faz parte, por isso, a preservação deste sentido de

comunidade estaria acima de valores particularistas defendidos por governos ou Estados.

Para eles, esta comunidade internacional estaria representada pela ONU, já que esta

organização conseguiu passar pela Guerra Fria e pelo fim dela, agregando mais países à sua

assembleia geral. Ela adquiriu um caráter mais internacional já que está presente nas diversas

partes do globo e mais comunitário pois pode reunir os Estados em uma permanente conferência

sobre diversos assuntos de interesse compartilhado e que se sobrepõem ao interesse nacional.

Contudo, admitem que junto aos coletivos, os interesses dos grandes países fazem desta

75 Cf. RAMSBOTHAM, Oliver. et al. Op. Cit..

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organização um fórum híbrido em que existe a possibilidade dos valores comunitários

sobrepujarem os nacionais, mas também existe uma probabilidade de os países mais fortes

imporem suas decisões.

No que tange às missões de paz, a ONU seria a única instituição política global capaz de

oferecer autoridade à aplicação dos valores internacionais e legitimidade à resolução de conflitos.

The Strategic Assesment would likely involve consultations with Member States, including the potential host government and TCC/PCCs, as well as regional and other intergovernmental organizations, and other key external partners. The Strategic Assessment allows United Nations planners and decision-makers to conduct a system-wide analysis of the situation, identify conflict resolution and peace-building priorities, and define the appropriate framework for United Nations engagement76.

A ideia de resolução de conflito está presente principalmente nos documentos da ONU em

relação ao peace building e peace making. Eles tentam fazer com que o conflito seja resolvido em

bases multinacionais e por meio da ideia da cooperação entre os Estados para alcançar a paz no

país em conflito.

Os autores acreditam em uma nova forma de resolução de conflitos armados, através de

um serviço de emergência da ONU com uma alta capacidade de solução combinada tanto no

âmbito militar quanto no civil, sem nenhuma proeminência entre eles. Esta força seria uma

unidade de reação rápida fortalecida que combinaria uma missão de paz robustecida com

especialistas civis em resolução de conflitos77.

Apesar de defenderem a intervenção humanitária, entendem o conflito como parte

importante da transformação social e entendem também que as partes envolvidas sempre terão

visões divergentes. Mas os cosmopolitas acreditam em uma transformação pacífica em que os

direitos do ser humano possam ser respeitados e, principalmente, a humanidade, como pré-

requisito para que os conflitos possam ser resolvidos de maneira pacífica e de forma a respeitar

uns aos outros.

76 UNITED NATIONS. United Nations Peacekeeping Operations – Principles and Guidelines. New York: DEPARTMENT OF PEACEKEEPING OPERATIONS. DEPARTMENT OF FIELD SUPPORT, 2008, p.48. A Avaliação Estratégica iria provavelmente envolver consultas com os Estados-Membros, incluindo o potencial governo anfitrião e TCC / PCCs (país que contribui com tropas e país que contribui politicamente), bem como outras organizações intergovernamentais e regionais, e outros dos principais parceiros externos. A avaliação estratégica permite aos planejadores das Nações Unidas e tomadores de decisão realizar um amplo sistema de análise da situação, identificar as prioridades da resolução dos conflitos e da construção da paz e definir a estrutura adequada para o envolvimento das Nações Unidas. (T.A.) 77 Cf. RAMSBOTHAM, Oliver. et al. Op. Cit.

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Por isso, mais do que uma contenção ou acomodação, eles acreditam em uma verdadeira

transformação do conflito em que seja possível conter a violência e transformar as “present deep

asymmetries and unequal relations”78. Esta transformação seria capaz de acabar com as

instituições e discursos remanescentes das causas do conflito e levar à construção de um novo

ponto de estabilização social em que a violência não só é contida, mas a paz é construída através

de projetos que reestruturam e estimulam os sistemas políticos, econômicos, sociais.

1.3 Situando o Problema: as Gerações de Intervenções

A primeira Geração de Operações de Paz aparece durante a Guerra Fria, principalmente

em guerras interestatais, com exceção das intervenções no Congo em 1960-479. São as

tradicionais peacekeeping, cujo objetivo era estabelecer regiões militarizadas e pacificadas dentro

das regiões de conflito depois dos acordos de cessar fogo. O segundo objetivo delas era patrulhar

as fronteiras. Era, prioritariamente, uma operação de observação e negociação diplomática que

tinha por meta levar as partes envolvidas no conflito a um acordo através de meios pacíficos. Era

uma forma de manter a região pacificada, enquanto outros atores empreendiam esforços na área

política para que um acordo de longa duração fosse estabelecido entre as partes.

A configuração era bem diferente da atual, com tropas, normalmente de países neutros,

apenas levemente armadas.

As operações de peacekeeping no pós Guerra Fria que atuam em guerras civis,

principalmente nos Bálcãs e na África, já estão na segunda geração de intervenções80.

Pressupõem a utilização de contingentes militares para forçar o fim das hostilidades. São

caracterizadas pela presença da ONU no campo de batalha através de seu pessoal militar ou

policial, buscando a prevenção do conflito ou fazendo a paz. Esta forma de preparar as

peacekeeping está relacionada a um período de otimismo em relação à eficácia das operações. A

rivalidade entre União Soviética e Estados Unidos, característica da Guerra Fria, chegou ao fim

apontando para um período mais tranquilo em que se acreditava que os conflitos pudessem ser

resolvidos pacificamente através de iniciativas multilaterais.

78 Cf. Ibid. p. 322 – presentes profundas relações de assimetria e desigualdade (T.A.) 79 Cf. RAMSBOTHAM, Oliver. et al. Op. Cit. 80 Cf. Ibid

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Estas iniciativas estavam baseadas na paz positiva e comprometidas com a satisfação das

necessidades humanas, com a proteção dos direitos humanos, e a promoção da eqüidade

econômica e da participação política81.

O crescimento do número de missões nos anos 1990. foi acompanhado do enfrentamento

de situações muito diferentes do que se estava acostumado o que ocasionou uma mudança na

teoria sobre intervenção. Os peacekeepers se viram, muitas vezes, sem autoridade ou armamentos

suficientes para proteger os civis e os funcionários de organizações humanitárias, principalmente

na Somália, em Ruanda e na Yugoslávia82.

A terceira geração surge no final dos anos 90. Compôe-se de operações maiores com uma

área militar e uma civil sob os auspícios da ONU, caracterizada por uma participação de

organizações não governamentais e de órgãos sociais da própria ONU. Elas recebem um mandato

sob o capítulo VII (Ação relativa a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão) da Carta das

Nações Unidas e são mais bem equipadas para poderem alcançar este mandato. São chamadas de

peace support operations ou peace operations.

Os conflitos se tornaram maiores, com capacidade de transbordar as disputas para países

próximos, fazendo a segurança ser abalada internamente e externamente tanto em nível regional

quanto internacional. As operações, além de monitorar o cessar fogo, são chamadas para facilitar

a reorganização do processo político através de diálogos e reconciliação entre as partes

envolvidas no conflito e que desejam fazer parte das decisões políticas do país. Também

trabalham em uma série de tarefas que são necessárias para a normalização das atividades do

Estado, como o desarmamento de combatentes e reintegração à vida social e ao exército nacional,

promoção dos direitos humanos e de eleições.

A resolução destes conflitos passou a fazer parte dos projetos de várias organizações

internacionais e a estrutura das operações se tornou maior e mais difícil de coordenar. As

operações de paz passaram a enfrentar novos desafios de segurança, novas guerras, novos teatros

de operações, novas formas de enfrentamento e assim, tiverem que se transformar tanto na forma

quanto na teoria que as molda.

As novas operações são multidimensionais, envolvendo três áreas. Como atuam em

conflitos ou nas instáveis áreas de pós-conflitos, precisam de um braço militar que se

81 Cf. Ibid, p.137. 82 Cf. Ibid

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responsabilize pela manutenção de um ambiente seguro, no qual as forças civis possam

desempenhar suas funções. A área de polícia civil monitora a restauração da ordem pública. A

última área seria a das organizações intergovernamentais, tanto do âmbito da ONU, quanto da

Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), como a Cruz Vermelha e

organizações regionais e não-governamentais83.

A área civil traz a possibilidade de permear as causas do conflito em diversas áreas:

econômica, diplomática, ideológica, e, através desta penetração, se tornar um importante poder de

persuasão na resolução de conflitos.

Esta última geração também está mais preparada para atuar em um momento pós-conflito

e se destina a criar um ambiente gerador de condições para uma paz duradoura e sustentável,

normalmente assegurando a implementação de projetos de cooperação para, por exemplo, recriar

a infra-estrutura de saneamento básico, de transportes ou hospitalar do país.

Através das tendências do pós Guerra Fria, da teoria e dos diversos momentos que

particularizaram as intervenções, podemos entender que as mesmas sofreram transformações.

Contudo, iremos focar em uma categoria de mudança, a das alterações na imagem do uso da

força nos discursos da ONU e dos EUA. Entendemos que houve e ainda há um debate nos fóruns

de discussão e que os resultados estão divulgados nos documentos que normatizam como as

intervenções devem se moldar na prática.

Este trabalho é um questionamento de como o princípio de não uso da força se chocou

com a realidade e como ele foi capaz de trazer as mudanças e adaptações deste choque para os

debates normativos no âmbito da ONU e das estratégias de segurança nacionais dos Estados

interventores, particularmente os Estados Unidos. Concentrar-nos-emos nas mudanças e nos

documentos produzidos entre a segunda e a terceira gerações de intervenções.

83 Cf. Ibid.

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CAPÍTULO 2

A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA DIANTE DA SOBERANIA COMO AUTORIDADE

2.1 Soberania como autoridade

Nos anos em que predominou a concepção realista de soberania, este conceito era

entendido como um axioma. A noção de soberania era, majoritariamente, compreendida como a

autoridade sobre um território. Autoridade independente e livre de qualquer poder que lhe dite

ordens, ou seja, um domínio supremo dentro de tal região.

O que lhe conferia esta autoridade era a lei. Assim, ela lhe conferiria poder de fazer a

política e dirigir a economia, ao mesmo tempo em que esta mesma autoridade seria a criadora e

executora desta lei. O Estado ganharia esta autoridade por meio do contrato social. Os cidadãos

se juntariam e fariam um pacto em que dariam poder ao governante, o qual poderia garantir a

segurança e a paz entre eles. Sem este pacto, estariam submetidos a um estado de natureza em

que os homens estariam em guerra de todos contra todos em busca da sobrevivência e subjugando

um ao outro. Nesta condição não haveriam direitos garantidos.

O contrato social é estabelecido entre os cidadãos que entregam o poder total ao soberano

em troca de uma segurança relativa e ao mesmo tempo perdem a liberdade que detinham no

estado de natureza. O poder do soberano é absoluto entre os demais.

Externamente, a soberania é vista como a independência em relação aos outros países,

sem a existência de uma autoridade maior que o Estado soberano.

Segundo Hobbes1, todo o indivíduo em Estado de natureza tem o direito de

autopreservação. Esta lei seria estendida para os Estados no ambiente internacional, no qual

predominaria a anarquia. Qualquer um tem o direito legítimo de usar a coerção para preservar

seus direitos, portanto não haveria uma forma justa de usar as capacidades letais. A discussão

sobre certo ou errado se tornaria sem sentido.

Internamente, o que garantia esta permanência do Estado seria o uso legítimo da força

conferido apenas à organização que detivesse a autoridade dentro de determinada fronteira. É

1 Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. João Paulo Monteiro e Maia Beatriz Nizza da Silva (trad.). São Paulo: Nova Cultura, 2000. Capítulo XII a XXIX.

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desta concepção então, que se pressupõe que nenhum Estado pode intervir legitimamente nos

assuntos internos de outro.

Já a concepção de Locke de soberania tem elementos de justiça porque depende do

reconhecimento dos direitos dos outros2. Os homens têm a noção de direito e o poder de julgar as

ações dos outros. Assim, os Estados têm que definir a governança doméstica em relação a

governança internacional pois os outros Estados devem reconhecê-lo como legítimo. Seria uma

comunidade internacional que partilha uma sensação de propriedade entre si.

Algumas formas de violência se tornariam justificáveis para atingir o comportamento de

um rival, mas não seria admissível para destruí-lo3. Essa forma de ver a soberania ficaria entre,

como Held4 coloca, a lei dos Estados e a leis das pessoas, tentando limitar o poder político com

preocupações como direitos humanos, regras de direito humanitário, democracia, minorias e meio

ambiente.

O direito de ingerência foi se desenvolvendo até chegar ao que Bettati5 explica como

direito material a intromissão em assuntos de competência de um outro Estado mediante a

presença física de estrangeiros em um território. A ingerência imaterial não tem a presença física,

mas possui como instrumento o olhar, a denúncia e se apresenta por meio de relatórios, inquéritos

e condenações.

Nos anos logo após a Guerra Fria, entendia-se que as ameaças à segurança vinham de

fontes externas. A segurança estatal se baseava em proteger as fronteiras, cidadãos, instituições e

valores de uma nação dos ataques externos6, entretanto, a sociedade internacional começa a

legitimar a atuação de intervenções. Elas não eram justificadas como humanitárias: entendia-se

que algumas guerras internas (mesmo existindo crises humanitárias) poderiam ameaçar a paz e a

segurança internacionais e por isso estavam sob a jurisdição do Conselho de Segurança7.

2 Cf. CHEVALLIER, Jean-Jacques. As Grandes obras políticas de Maquiavel aos nossos dias. Lydia Christina (trad.). Rio de Janeiro: Agir, 1982, pp.103 a 117. 3 LÖWENHEIM, Oded. PALTIEL, Jeremy. Defining Sovereignty. In: 45TH Annual meeting of the International Studies Assciation, 19 março 2004, Montreal, Canada. Anais Eletrônicos... Montreal: Le Centre Sheraton, 2004. Disponível em: http://www.isanet.org/paperarchive/. Acessado em: 02 de junho de 2007. 4 Cf. HELD, David. Law of States, Law of Peoples: Three Models of Sovereignty. Legal Theory, v.8, nº 2, 2002. 5 Cf. BETTATI, Mario. O Direito de Ingerência - Mutação da ordem internacional. Ana Faria (trad.). Paris: Odile Jacob. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. Este autor tem uma interessante discussão de como este direito de ingerência se desenvolveu e quais são as formas em que ele se apresenta. 6 COMISSION ON HUMAN SECURITY. Human Security Now. New York: Comission on Human Security, 2003. 7 Cf. HENKIN, Louis. Kosovo and the Law of "Humanitarian Intervention". The American Journal of International Law, v. 93, nº. 4, pp. 824-828, Oct. 1999.

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A justificativa humanitária começa a se desenvolver na assistência humanitária prestada

por organizações não governamentais a pessoas que sofriam com desastres e guerras domésticas.

A resolução 43/131 de 19888 permitiu a assistência humanitária a pessoas que precisavam ter

acesso a certas necessidades básicas e os Estados deveriam garantir o acesso destas organizações

a estas pessoas.

O desenvolvimento do que era manutenção da segurança levou a securitização9 das

questões domésticas relativas à preservação dos direitos humanos. Em 1992, na resolução 794 em

relação à intervenção na Somália, a palavra humanitária apareceu 18 vezes junto à justificativa da

segurança e paz internacionais10.

Além disso, a ONU só intervinha em uma situação de crise humanitária se houvesse o

consentimento do governo estabelecido ou se a crise ameaçasse a região em que o Estado se

encontrava estabelecido.

2.2 A questão do Uso da força

O sistema de segurança coletiva é um mecanismo de cooperação que visa à administração

do sistema internacional11. Ele é formado por meio de compromissos entre os Estados que evitem

a agressão de um contra o outro. Além do compromisso, existem instrumentos para resguardar o

seu cumprimento que são as ameaças de reação conjunta, sanções, investigação, bons ofícios,

mediação, conciliação, arbitragem e adjudicação.

Depois de duas guerras mundiais, o sistema de segurança coletiva implementado pelo

ONU introduziu limitações ao uso da força. A Organização das Nações Unidas regulava as

relações entre os países em busca de paz e cooperação.

8 Cf. WEISS, Thomas. G. Humanitarian Intervention. Ideas in Action. Cambridge: Polity Press, 2007. 9 Cf. TANNO, Grace. A Contribuição da Escola de Copenhague aos Estudos de Segurança Internacional. Contexto Internacional, vol 25, nº1 , pp. 47 a 80, jan/jun 2003. 10 Cf. HERZ, Mônica. HOFFMAN, Andréa Ribeiro. Organizações Internacionais: história e práticas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 11 Cf. Ibid.

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No preâmbulo da Carta, o objetivo da organização de “preservar as gerações vindouras do

flagelo da guerra” é assinalado. Dentro deste contexto faz total sentido o fato da Carta banir o

emprego do uso da força e criar um arcabouço institucional para fazer valer essas normas.

Todos os Membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios

pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso

da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas12.

O artigo 2, portanto, enfatiza a necessidade de não haver guerras entre Estados e bane esta

possibilidade do sistema internacional. Este é um limite rígido ao uso da força para evitar que

guerras como as vividas em 1914 e 1939 acontecessem.

Contudo, existem exceções previstas pela própria Carta a este impedimento baseadas na

compreensão de que garantir a estabilidade da ordem internacional seria a única forma legítima

de ir à guerra. A primeira seria a do artigo 51 no capítulo VII sobre “Ação Relativa a Ameaças à

Paz, Ruptura da Paz e atos de Agressão”.

Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou

coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais13.

A legítima defesa constitui uma reação a algum ato de violência contra um país,

normalmente dentro dos limites de seu território. Neste caso, o Conselho de Segurança

autorizaria uma retaliação por parte do Estado atingido, mas mesmo assim, manteria sua

responsabilidade de tomar providências para o restabelecimento da segurança e paz

internacionais.

A segunda e última exceção seriam intervenções autorizadas pelo Conselho de Segurança

segundo o capítulo VI de “Solução Pacífica de Controvérsias” ou pelo capítulo VII, em que ações

militares podem ser aprovadas. Elas não estão explicitamente previstas na Carta, mas se tornaram

um dos principais instrumentos de ação da ONU. Elas podem ser autorizadas em caso de crises

humanitárias sérias em que genocídios, expulsões em massa ou estupros sistemáticos aconteçam.

12 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. San Francisco, June 26, 1945. Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/documentos_carta.php. Acessado em: 15 de janeiro de 2009. 13 Ibid.

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Alguns defendem que estas ingerências podem ocorrer para restabelecer a democracia e têm

como precedente as intervenções americanas em Granada em 1983 e no Panamá em 198914.

Recentemente, esta compreensão tem sido cada vez menos usual, restringindo os casos de

intervenção à crises humanitárias.

O uso da força em missões de paz passou a ser aceito a partir da intervenção na Somália

em 199215, marcando o início de uma nova geração de intervenções16. Antes, no Congo em

196017, durante a Guerra Fria, a ONU tinha dado um mandato abrangente que permitia a

utilização de força; contudo, os contingentes militares foram arrastados para dentro do conflito e

a resolução das disputas foi complicada.

2.2.1 O Uso da Força em Operações de Paz

Entendemos como Domício Proença Jr. que as operações de paz sejam uma forma de

guerra de coalizão. Sabemos que elas têm objetivos diferentes da guerra e eles são assinalados

nos seus documentos políticos, contudo a sua forma e apresentação são guiadas por táticas,

políticas e estratégias de guerra.

A intervenção humanitária foi disseminada ao longo dos anos 1990. O seu conceito

estabelece uma associação entre segurança internacional e ameaça aos direitos humanos18.

Kirchner reconhece três dimensões que os direitos humanos alcançam dentro da questão

da intervenção humanitária19. A primeira seria a necessidade da paz como um pré-requisito para

usufruir os direitos humanos. Assim, todos deveriam ter o direito de viver em um ambiente de

paz e segurança.

O segundo seria a identificação de um problema recorrente no mundo: a violação massiva

dos direitos humanos e o reconhecimento disso como uma ameaça à paz e à segurança 14 BYERS, Michael. A lei da Guerra. Clóvis Marques (trad.). Rio de Janeiro: Record, 2007. 15 HERZ, Mônica. HOFFMAN, Andréa Ribeiro. Op. Cit. 16 O assunto de gerações de intervenções é tratado no capítulo 1 desta dissertação. 17 HERZ, Mônica. HOFFMAN, Andréa Ribeiro. Op. Cit. 18 Cf. Ibid. p.118 19 Cf. KIRCHNER, Stefan. The Human Rights Dimensions of International Peace and Security: Humanitarian Intervention after 9/11. Journal of Humanitarian Assistance, Massachusetts, the Feinstein International Center 2004. Disponível em: www.jha.ac/articles/a142.pdf Acessado em: 08 de maio de 2007.

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internacional. Muitas vezes são violações dentro de guerras civis ou conflitos internos de uma

forma geral.

Toda operação de paz visa à formação de uma paz duradoura. Haverá uma mudança no

equilíbrio de forças em uma região por meio do uso de uma força externa, objetivando a mudança

de posição de grupos em conflito.

A última dimensão seria a necessidade de uma resposta a este problema e a restauração de

um ambiente de paz. A resolução seria então a intervenção humanitária. Citamos Kirchner pois

percebemos que ele ressalta os três pontos que normalmente estão envolvidos na decisão e no

procedimento da intervenção humanitária.

Assim, as operações de paz são atos de força, o que faz delas políticas armadas. Primeiro

porque a sua presença em um país estrangeiro já é um ato coercitivo. A sua chegada é diferente

da de diplomatas, negociadores ou mediadores. Elas implicam em si mesmas no uso da força.

Elas estão prontas, organizadas e treinadas para combater. Portanto, a sua prontidão e as armas já

são uma forma de uso da força, o que compreende tanto o seu ato concreto quanto a possibilidade

de uso. O uso da força não é somente disparar uma arma, mas tê-la junto ao corpo já é um ato de

força. Implica coerção de uma parte à sua vontade em um contexto em que há uma sanção de

uma autoridade competente.

Este ato está sujeito a limitações tanto na guerra como em operações de paz. As Regras de

Engajamento (Rules of Engagement - ROE) servem para ditar regras ao uso da força. Elas

garantem que o emprego da força não esteja em desacordo com os documentos políticos

estabelecidos e com os objetivos pretendidos. Em operações de paz estes limites são maiores,

mas não totalmente restringidos.

Apesar disto, deve-se manter em perspectiva que mesmo a simples observação é armada e

que ela tem a capacidade de mudar o comportamento dos que ela observa ou dos que são

enfrentados. As operações de paz demonstram capacidade de compelir as partes beligerantes à

sua vontade.

A forma com que se usa a força implica em consequências políticas. Então, um tiro

simples é diferente de uma rajada. A agressividade utilizada pode determinar uma reação da

população ou a redução do consentimento da missão. O emprego da força em uma operação de

paz nunca vem acompanhado de resultados puramente táticos; também existem resultados

políticos e estratégicos resultantes desta ação.

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Há um compromisso com o consentimento e com a imparcialidade. Ao longo do tempo

são admitidos níveis diferentes de consentimento, por exemplo. Em um momento, por causa de

alguma situação ou decisão equivocada, o consenso pode aumentar ou diminuir. O uso da força

de forma errada pode mudar este nível e por isso, deve haver o esforço constante para que o

consentimento seja sempre alto. Isto é muito difícil já que o nível de consentimento é sempre

inversamente proporcional à necessidade de uso da força.

A imparcialidade significa que não existem inimigos, e que o alvo a ser enfrentado é o

conflito. Sendo o conflito o inimigo, isto fará com que os grupos que se mantenham ao lado da

opção do confronto como inimigos, mesmo que haja a possibilidade de mudarem de opinião e

passarem a aliados, neste determinado momento se façam inimigos.

Isso desloca o que é uma decisão política para as ROEs das forças no terreno, colocando para o comandante de uma patrulha, de um posto ou de uma guarnição a responsabilidade pela ponderação da oportunidade política de uma resposta, caso a caso, e sem o benefício do apoio a tomada de decisão, por exemplo, do Conselho de Segurança da ONU20.

Isto é um artifício necessário para não comprometer a imparcialidade no lugar de atuação,

mas gera alguns problemas de direcionamento para a missão.

A questão da efetividade das atividades de polícia é muito complexa porque não há uma

relação com um instrumento regulador do Estado e, tanto a população quanto os beligerantes não

estão submetidos a alguma forma de justiça da ONU. Portanto, o único modo de levar aos

envolvidos a fazer a sua vontade é através do convencimento e da coerção.

O segundo fator de dificuldade das tarefas de policiamento é que as forças de paz não

partilham necessariamente das mesmas expectativas, cultura e tradição legal da população. Isto

quer dizer que a noção do que é certo ou errado pode ter algumas diferenças que influenciem no

tratamento dos locais e no procedimento das tropas. Esta tarefa se torna um policiamento

multicultural.

As forças estão subordinadas aos termos do acordo entre a ONU e as partes beligerantes

ou entre a ONU e o Estado receptor da missão, termos que estão expressos no mandato, contudo

nesta tarefa as forças de paz são o provimento da ordem pública.

20 PROENÇA JÚNIOR, Domício. O enquadramento das Missões de Paz (PKO) nas teorias da guerra e de polícia, v. 45, nº 2, pp. 147 a 197, july/dec 2002, p. 168.

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Por fim, devemos entender que as operações de paz são guerras de coalizão, nas palavras

de Proença Jr. Isto porque expressam a vontade de vários Estados – membros com idéias não

necessariamente convergentes. Isto determina diferentes expectativas e compromissos em uma só

missão de paz e em uma só região. Também influirá no uso da força, até porque tal decisão é

conjunta com o Estado – membro que empresta os seus efetivos militares. As ROEs são

formuladas pelos comandos militares de cada país ou do país que comanda a missão.

2.3 Documentos da ONU: Uma Agenda para a Paz e Suplemento para Uma Agenda para a Paz

A utilização de medidas de resolução de conflitos tais como diplomacia preventiva e

peacemaking, peacekeeping e peacebuilding seriam, segundo o documento Uma Agenda para a

Paz21, para manter a paz e a segurança internacionais.

Como secretário geral da ONU na época, Boutros Boutros-Gali, assinou estes dois

documentos sobre o Estado geral das operações de paz e fez recomendações para que seu

desempenho melhorasse em um período pós Guerra Fria que trazia novos desafios à manutenção

da paz. Uma Agenda para Paz e Um Suplemento para Uma Agenda para a Paz são documentos

portadores do discurso22 das Nações Unidas sobre intervenção na época do pós Guerra Fria e por

isso ainda justificam estas ações por meio da manutenção da segurança e paz internacionais.

Estes documentos sob a perspectiva da ONU carregam a mensagem que a organização quer

passar às pessoas e aos países sobre como deve ser a intervenção e qual é o novo ambiente em

que ela atua.

A peacemaking utilizava medidas de confiança mútua e boa fé entre os países, o que

evitava conflitos. Esta forma de resolução de conflito é prioritariamente um meio pacífico, mas,

mesmo não tendo sido ainda usada desta maneira à época de confecção deste documento, está

previsto que a força pode ser utilizada pelo artigo 42 da Carta da ONU. Ela seria utilizada depois

21 Cf. BOUTROS-GALI, BOUTROS. An Agenda for Peace: preventive diplomacy, peacemaking and peacekeeping. (A/47/277- S/24111), 1992. Disponível em: http://www.un.org/docs/ SG/agpeace.html Acessado em: 29 de maio de 2007. 22 CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo. História e Análise de Textos. In:______. Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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que todos os meios pacíficos tivessem falhado e só poderia ser empregada para restaurar a ordem

no ambiente internacional.

Boutros Boutros-Gali recomenda a utilização de unidades de imposição da paz, as peace-

enforcement units, para quando as tarefas excederem as expectativas ou as possibilidades das

forças de paz. Elas seriam contingentes militares fornecidos pelos Estados Membros mais

fortemente armados para enfrentar ambientes mais hostis.

São estabelecidos três princípios a serem sempre utilizados em uma peacekeeping:

consenso das partes, imparcialidade e não uso da força exceto em defesa própria23.

As partes no conflito devem concordar com a intervenção de forças estrangeiras e com os

objetivos da missão. A imparcialidade significa que as forças da ONU devem se manter à parte

do conflito, ficando neutras em relação aos agressores. O último princípio quer que os

peacekeepers não façam uso da força a não ser que suas vidas corram perigo. Os contingentes

militares que não têm capacidades logísticas, de armamento e de composição para usar a força

quando o fazem sofrem com o perigo de não suportar por muito tempo as investidas dos inimigos

e de confundir os objetivos políticos e militares da operação com os objetivos de imposição em

guerras.

A peacebuilding é um conceito formulado no primeiro documento do Secretário Geral e

seria o conjunto de estruturas utilizadas para consolidar a paz e avançar um senso de confiança e

bem-estar entre as pessoas. Ela evitaria o colapso das condições de paz e impediria a recorrência

do conflito, fazendo com que a peacemaking e a peacekeeping sejam bem sucedidas.

“It means that internacional intervention must extend beyond military and humanitarian

tasks and must include the promotion of national reconciliation and the re-establishment of

effective government24.”

Este instrumento serviria para transformar as estruturas nacionais deficientes,

principalmente, por meio de práticas democráticas que levam à paz e à segurança. A ONU deve

cooperar com arranjos regionais, sejam eles de segurança e defesa mútua, de desenvolvimento

23 BOUTROS-GALI, BOUTROS. Supplement to An Agenda for Peace: Position Paper of the Secretary-General on the Occasion of the Fiftieth Anniversary of the United Nations. (A/50/60-S/1995/1), 1995. Disponível em: http://www.un.org/Docs/SG/agsupp.html. Acessado em: 27 de junho de 2007. 24 Id., 1995, p.4. Isso significa que a intervenção internacional deve se estender para além das tarefas militares e humanitárias e deve incluir a promoção da reconciliação nacional e do restabelecimento de um governo eficaz.(T.A.)

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regional ou de cooperação em temas específicos, pois eles podem dar um instrumental para

conhecer as realidades de cada local.

O segundo documento, Suplemento para Uma Agenda para a Paz, assinala algumas

mudanças por que as operações de paz vêm passando. O primeiro deles é a mudança dos

ambientes para onde elas são enviadas. Os conflitos são cada vez mais intraestatais,

diferentemente do período anterior em que a ONU agia para monitorar o cessar-fogo de guerras

interestatais. No imediato pós Guerra Fria, as forças de paz só foram enviadas depois que as

negociações alcançaram o ponto desejado e elas puderam ajudar as partes a implementarem a

solução negociada.

A outra constatação é de que apesar do uso da força ser autorizado pelo capítulo VII da

Carta das Nações Unidas, a missão continua neutra e imparcial entre as partes em conflito.

Assim, apesar de poder usar a força não há um mandato para impor o fim das hostilidades.

Boutros-Gali faz mais uma recomendação: além das peace-enforcement units, ele prevê a

criação de forças de reação rápida que deveriam ser usadas para impor a paz. Apesar do uso da

força ter que ser feito com grande cautela, ele acha preferível que a ONU tenha essa capacidade

coercitiva do que os Estados tenham que fazer ações unilaterais.

2.4 Política externa americana – doutrina Clinton

No pós Guerra Fria os Estados Unidos passam a enfrentar um mundo de configurações

diferentes das que conhecia. Eles passaram a exercer sua liderança de forma solitária sem a União

Soviética (URSS), que tinha se fragmentado. Os desafios para manter e disseminar sua liderança

por toda sociedade internacional se transformaram, fazendo com que a estratégia de inserção

nacional fosse reformulada.

Pecequilo percebe que existe um elemento de continuidade na política americana desta

época que se apresenta na manutenção das estruturas básicas da ordem política, econômica e de

segurança que foram criadas no pós Segunda Guerra Mundial. Esta estrutura fornece uma base de

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sustentação para o desenvolvimento da “administração do sistema e do relacionamento entre as

nações.”25

Esta política tem alguns objetivos claros como o fortalecimento das instituições

internacionais, já comentado como sendo as construídas nos pós-guerra, a expansão da

democracia pelo mundo, como um ideal americano e parte do american way of life e a ampliação

dos mercados para os produtos norte-americanos. A ideia do multilateralismo pauta as ações do

país.

Na National Security Strategy (NSS) de 199726 são determinadas três prioridades: a

preocupação com a segurança norte-americana e a necessidade das forças militares e do sistema

de diplomacia estarem preparados para as novas ameaças; manutenção e investimento na

economia americana; e disseminação dos valores americanos, principalmente a democracia.

Estas prioridades determinam a plataforma de atuação dos Estados Unidos e o contato

com seus parceiros. Os princípios de cooperação, direitos humanos, paz e liberdade são

colocados como reguladores deste relacionamento que está inserido dentro de uma nova ordem

mundial. Uma ordem que deveria ser construída de forma a favorecer a preservação da

hegemonia americana.

Economicamente, o multilateralismo era aplicado em várias ocasiões como a criação do

Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), da Organização Mundial do Comércio

(OMC) e o incentivo à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA)27.

Os EUA, tradicionalmente, aceitavam a participação em conflitos apenas para responder a

ataques sofridos diretamente ou com mandatos de organismos internacionais 28.

O compromisso de suas forças militares internacionalmente estava onde existissem

interesses nacionais. Apesar de Kossovo, que claramente ocorreu como uma opção pelo

unilateralismo, este processo se dava principalmente no âmbito da ONU com a aprovação do

Conselho de Segurança. Havia um intenso diálogo entre as instituições multinacionais e os

25 PECEQUILO, Cristina Soreanu. A Política Externa dos Estados Unidos: continuidade ou mudança?. Porto Alegre: editora UFRGS, 2003. p. 289 26 National Security Strategy for a New Century, White House, NSC, 1997. 27 Cf. GUIMARÃES, César. A política externa dos Estados Unidos: da primazia ao extremismo. Estudos Avançados, vol. 16, nº 46, pp. 53- 67, 2002. 28 TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Guerra Contra o Terrorismo. In: Francisco Carlos Teixeira da Silva. (Org.). Enciclopédia de guerras e revoluções do século XX: As grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004.

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Estados Unidos, a opção era pelo multilateralismo e pelo sistema que desde o fim da Segunda

Guerra Mundial permitiu a manutenção da liderança americana.

Guimarães29, apesar de tudo, ainda colocaria as ações em Kossovo como um

multilateralismo polissêmico, ou seja, de muitos significados, podendo se adaptar a situações

diversas e, assim, evitando usar a palavra unilateralismo para o governo de Clinton. Por não se

dar amparada da lei e por substituir a ONU pela OTAN, a intervenção no Kossovo se deu pelo

direito do mais forte.

Este autor entende a política americana desta época como Posen e Ross30 pelo uso de três

estratégias envolvimento seletivo, segurança cooperativa e primazia.

O envolvimento seletivo é guiado pelo equilíbrio de poder. Os EUA, pela sua posição de

liderança, se envolvem em conflitos locais para manter a paz, contudo não podem estar em todos

os lugares e por isto fomentam arranjos multilaterais como a Otan e a alianças diferenciadas por

área de atuação.

A segurança cooperativa envolve a atuação de organismos multilaterais. Ela entende que a

paz é indivisível, que deve os conflitos devem ser resolvidos por meio de ações coletivas. O

mundo é cada vez mais interdependente e os problemas em todas as áreas, inclusive militar e de

segurança, devem ser analisados de forma conjunta.

Se no passado pequenos conflitos eram resolvidos de forma diferente, sem interferência

militar externa ou eram deixados sem resolução, agora, são utilizadas várias formas de

intervenção, seja por motivos humanitários ou por causa de ameaças difusas

Desta forma, a doutrina Clinton prima também pela defesa dos direitos humanos, do meio

ambiente e pela luta contra o narcotráfico como plataforma de ação31.

Neste contexto, a ingerência toma formas diferenciadas. Às vezes, se mostra sutil, através

de pressões sobre temas como meio ambiente, caos social, direitos humanos ou através de

assessorias de gestão econômica e financeira por meio de organismos multilaterais como o Fundo

29 Cf. GUIMARÃES, César. A política externa dos Estados Unidos: da primazia ao extremismo. Estudos Avançados, vol. 16, nº 46, pp. 53- 67, 2002. 30 POSEN, Barry. ROSS, Andrew L. Competing visions for US grand strategy. International Security, vol.21, nº 3, 1996-7. Apud. GUIMARÃES, César. A política externa dos Estados Unidos: da primazia ao extremismo. Estudos Avançados, vol. 16, nº 46, pp. 53- 67, 2002. 31 A Doutrina Clinton, como uma formulação escrita de política externa, aparece em abril de 1999. Esta orientação começa a ser estabelecida no governo Bush pai, mas só surge como conjunto de diretivas estratégicas no aniversário da OTAN. Para maiores detalhes sobre esta questão ver: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. O Império e o Estado-nação Hoje: uma História Comparada. In: Darc Costa; Francisco Carlos Teixeira da Silva. (Org.). Mundo Latino e Mundialização. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2004.

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Monetário Internacional (FMI). Outras vezes, se apresenta através da forma clássica de

intervenção com a utilização de força militar e pressão política. A “combinação de força e

persuasão foi habitualmente utilizada por Bush e Clinton”.32

A opinião pública americana se mostrou mais determinada a apoiar as ações militares para

restringir agressões e promover objetivos humanitários do que para fazer mudanças políticas em

outros países33.

Por fim, a primazia é o entendimento que as grandes potências devem atuar mantendo a

ordem internacional, desafiando os competidores e protegendo os parceiros. Os EUA também

fizeram uso da sua primazia por meio de ações de soft power formando consensos para suas

ações.

2.1 Documentos americanos: PDD 25 e FM 100- 23

These challenges have compelled the international comunity to increasingly call on military forces to prevent or end conflicts. Operations such as those ocurring in Somalia (1992-1993) and Bosnia (1992-1995) made obvious the need for clear guidance in United States (US) participation for peace operations (PO). In response, the president issued Presidential Decision Directive (PDD) 2534.

Algumas operações, como a Somália e a Bósnia em que os EUA tomaram parte, geraram

uma necessidade de esquematizar os conhecimentos sobre intervenções humanitárias e propor

32 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. O Império e o Estado-nação Hoje: uma História Comparada. In: Darc Costa; Francisco Carlos Teixeira da Silva. (Org.). Mundo Latino e Mundialização. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2004. p. 129 33 Cf. OLSON, Kathryn M. Democratic Enlargement´s Value Hierachy and Rhetorical Forms: An Analysis of Clinton´s Use of a Post-Cold War Symbolic Frame to Justify Military Interventions. Presidential Studies Quarterly, v. 34, nº 2, June 2004. A opinião pública pode ter momentos de maior e menor apoio, então, mesmo sendo em uma intervenção humanitária, o apoio à operação na Somália caiu depois da morte dos soldados americanos. Para saber mais sobre esta discussão sobre uso da força e opinião pública ver: KLAREVAS, Louis J. Trends: The United States Peace Operation in Somalia. The Public Opinion Quarterly, v. 64, nº 4, pp. 523-540, Winter, 2000. 34 DEPARTMENT OF THE ARMY. Stability Operations and Support Operations – Field Manual 3 – 07. Washington, DC: Department of the Army, 2003, p. 4-1 e 4-2. Estes desafios têm obrigado a comunidade internacional a chamar cada vez mais as forças militares para prevenir ou terminar conflitos. Operações como essas que ocorreram na Somália (1992-1993) e na Bósnia (1992-1995) fez evidente a necessidade de orientações claras na participação dos Estados Unidos (EUA) em operações de paz (OP). Em resposta, o presidente emitiu a Decisão diretiva presidencial (PDD) 25. (T.A.)

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soluções para as falhas nos procedimentos. Essas determinações extratextuais35 e outras como o

fim da Guerra Fria e a idéia de segurança cooperativa presidiram a produção destes textos.

Existe um nexo entre as idéias dos documentos e esses eventos que influenciaram os

discursos americanos. O PDD-25 e o FM 100-23 são dois documentos político e procedimental,

respectivamente, que incorporam as diretrizes de política externa americana, à sua percepção de

liderança solitária no mundo e de primazia em vários campos, tais como o político, o militar e o

econômico.

Como os outros documentos desta época, o PDD-25, justifica sua atuação em conflitos

externos por estes serem relativos a ameaças a paz e a segurança internacionais.

Esses conflitos em que as operações de paz participam não ameaçam diretamente os

interesses americanos, mas o efeito cumulativo deles pode ser significante e chegar a influenciar

os Estados Unidos. Por isso, as intervenções humanitárias são instrumentos dos interesses

nacionais americanos e também exercem a função de promovê-los. Eles acreditam, entretanto,

que essas ações precisam de aperfeiçoamentos e reformas.

Eles dão um espaço importante para falar da harmonização de todos os aspectos de uma

operação de paz com os interesse nacionais americanos, inclusive para a opinião pública apoiar

esta participação. Na Somália, os EUA tiveram algumas perdas de soldados e isto fez com que a

opinião pública retirasse o seu apoio. A junção de segurança internacional e interesse nacional é

usada também como forma de gerar uma base de apoio interna.

Se a participação em uma missão interferir em outro objetivo militar, o interesse

americano será colocado acima de qualquer outro alvo, contudo existem pontos positivos nesta

participação. A presença americana pode ser útil em persuadir outros a tomar parte na ação, ou

seja, o país pode desempenhar sua liderança no mundo influenciando outros. Os EUA podem

influenciar uma missão sem carregar unilateralmente todos os custos dela. Por fim, os EUA,

como país que tem primazia, podem fornecer capacidades que outros países não podem fornecer.

Os EUA respondem à proposta de Boutros Boutros-Gali no Suplemento para Uma

Agenda para a Paz, que prevê a criação de forças de reação rápida. Os Estados Unidos não

apóiam a criação de um exército permanente da ONU e não reservam unidades específicas para a

participação em operações de paz.

35 CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo. História e Análise de Textos. In:______. Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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Em concordância com a ONU, a peacekeeping deve ser enviada apenas após um cessar-

fogo e o consenso das partes no conflito obtido. Já na peace enforcement esses requisitos não

precisam ser atendidos.

O termo operações de paz:

is a new and comprehensive term that covers a wide range of activities. Peace operations create and sustain the conditions necessary for peace to flourish. Peace operations comprise three types of activities: support to diplomacy (peacemaking, peacebuilding, and preventive diplomacy), peacekeeping, and peace enforcement. Peace operations include traditional peacekeeping as well as peace enforcement activities such as protection of humanitarian assistance, establishment of order and stability, enforcement of sanctions, guarantee and denial of movement, establishment of protected zones, and forcible separation of belligerents36.

As operações de paz trazem a novidade dos tempos pós Guerra Fria e as diversas

atividades que antes não eram usadas porque o ambiente não exigia. Determinam três tipos dentro

das operações de paz: as atividades de apoio à diplomacia que se subdivide em fazer a paz,

construção da paz e diplomacia preventiva; a manutenção da paz e a imposição da paz. Quanto às

peace enforcement, são vistas mais como atividades de imposição dentro da peacekeeping

tradicional do que ações individuais.

As ações de diplomacia preventiva podem incluir mobilizações preventivas,

demonstrações de força e níveis mais altos de prontidão. A mobilização preventiva é a presença

militar como influência, fazendo com que as partes fiquem sob pressão para considerar a

negociação. Deve haver também a capacidade de usar a força não só para demonstração,

existindo a necessidade de utilizar armas para tarefas de proteção e autodefesa. Também pode

haver previsão de utilização de uma força de coalizão regional ou estrangeiras à região para

aumentar a segurança de uma mobilização preventiva.

É possível que as tarefas de apoio à diplomacia se confundam ao longo do processo,

podendo se misturar ou agir em diferentes momentos.

36 DEPARMENT OF THE ARMY. Peace Operations – Field Manual 100-23. Washington, DC: Department of the Army, 1994, p. iv. é um novo e abrangente termo que abrange um vasto leque de atividades. operações de paz criam e mantém as condições necessárias para a paz florescer. Operações de paz incluem três tipos de atividades: apoio à diplomacia (peacemaking, peacebuilding, e diplomacia preventiva), a manutenção da paz e imposição da paz. Operações de paz tradicionais incluindo a tradicional manutenção da paz, bem como as atividades de imposição da paz tais como a proteção da assistência humanitária, criação da ordem e estabilidade, a aplicação de sanções, a garantia e a negação de circulação, o estabelecimento de zonas protegidas, e separação forçada dos beligerantes. (T.A.)

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Na peacekeeping é prevista alguma forma de trégua, mesmo que seja apenas um cessar-

fogo. As tropas de supervisão desta trégua podem insistir para que a população local cumpra com

as condições do acordo de paz. As tarefas previstas são: “patrol in sensitive areas, investigate

installations or vehicles for prohibited items, and establish movement control points37”.

As peace enforcement são “the application of military force or the threat of its use,

normally pursuant to international authorization, to compel compliance with generally accepted

resolutions or sanctions38.”

Assim, as peace enforcement, quando ações individuais e não misturadas a operações

tradicionais de peacekeeping, podem incluir ações de combate com missão designada com

clareza e o Estado final definido.

A primeira fase deve estabelecer uma presença militar significante e as subsequentes

devem tornar o ambiente favorável para que haja a transição da fase militar para a de apoio ao

desenvolvimento de autoridades civis competentes.

A principal diferença entre a peacekeeping e a peace enforcement são as formas de uso da

força.

O uso certo da força é crucial em operações de paz e diferencia suas diversas

modalidades. “When force must be used, its purpose is to protect life or compel, not to destroy

unnecessarily39”.

Por ser uma questão tão difícil em missões de paz, a força é largamente analisada e neste

ponto, concordam com as requisições da ONU, determinando que ela deve ser usada em defesa

da própria vida e ampliada para a defesa da vida de outros.

As peacekeeping devem ter o consenso das partes beligerantes, usar a força apenas em

defesa própria ou de alguma forma prescrita pelo mandato e deve ser imparcial. A peace

enforcement pode não ter o consenso de nenhuma parte ou ter apenas parcialmente, a força é

usada com o objetivo de coagir e a imparcialidade é muito mais desafiada pela natureza da

37 Ibid., p. 5. patrulhar zonas sensíveis, investigar instalações ou veículos em busca de itens proibidos, e estabelecer pontos de controlo de circulação. (T.A.) 38 Ibid., p. 6. A aplicação de uma força militar ou a ameaça de seu uso, normalmente nos termos da autorização internacional, para obrigar o cumprimento de resoluções ou sanções geralmente aceitas. (T.A.) 39 Ibid., p. v. Quando a força tiver que ser utilizada, o seu propósito é proteger a vida ou compelir, e não para destruir desnecessariamente. (T.A.)

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operação. O aumento do nível de consenso e a imparcialidade estarão sempre entre os objetivos

de qualquer um dos tipos de missões.

Os princípios básicos de uma ação de guerra também serão aplicáveis aos contingentes

militares americanos nas operações de paz. Veremos, a seguir, quais são eles.

O primeiro é o objetivo que deve estar delineado no mandato, o qual deve definir o Estado

final pretendido. O Estado final é o que a autoridade competente define como a situação

pretendida ao fim das operações, contudo, as operações de paz são um processo maior que ao fim

das ações terá ainda esforços humanitários, diplomáticos e de peace building.

O segundo é o comando da operação, a permissão para que outra autoridade que não

americana exerça esta função será analisada em cada caso. Quanto maior a participação

americana ou quanto maior a probabilidade deles exercerem uma tarefa de imposição, menor será

a probabilidade das forças americanas estarem sob o comando estrangeiro. O controle é uma

parte do comando e é dado para missões e períodos específicos. Neste caso, e a autorização do

envio de contingentes militares já foi dada por isto, deixam claro na PDD-25 que o controle

estrangeiro não pode interferir em questões de divisão de unidades, de suprimento, de disciplina e

de organização interna.

Apesar do comando ser uma das maiores preocupações de PDD-25, a unidade de

comando é tratada também na FM 100-23. Ela deverá ser mantida dentro dos contingentes

americanos. A unidade de esforço é a necessidade que o comando tem de direcionar todos os

meios para alcançar um propósito comum. Esse é um ponto complicado porque existem várias

organizações militares e não militares participando cm diversos comandos e objetivos.

Temos como terceiro princípio a segurança, que se refere à força de proteção como poder

dinâmico ou de combate contra qualquer elemento que, no conflito, seja uma ameaça às unidades

da força de paz. A segurança da força é aumentada pela percepção da legitimidade,

imparcialidade da força na região em que atua, pelo respeito mútuo construído entre as partes

envolvidas e pela credibilidade que desfruta entre a comunidade internacional e local.

O quarto princípio - a limitação no uso de armamentos, táticas e níveis de violência

caracteriza a operação de paz. O uso excessivo da força pode minar a legitimidade ganha. Esta

restrição deve estar explícita nas Regras de Engajamento (ROE) porque o uso da força pode gerar

uma escalada da violência e da tensão e, ainda, pode envolver as forças de paz em um conflito

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interminável. Por isso, o uso da força deve ser último recurso quando todos os outros meios

forem exauridos. Quando necessária, a força deve ser proporcional à ameaça.

In peace operations, every soldier must be aware that the goal is to produce conditions that are conducive to peace and not to the destruction of an enemy. The enemy is the conflict, although at times such operations assume the character of more traditional combat operations40.

A identidade entre inimigo e conflito pode causar alguns problemas de percepção de

objetivo. O objetivo é sim destruir o inimigo, sendo ele o conflito, acabar até com as mais

profundas causas que o geraram, mas as partes que causam este conflito, as partes beligerantes,

não devem ser combatidas até o aniquilamento. Os seus objetivos é que devem ser o alvo da

destruição e as partes no conflito devem ser reintegradas à vida social.

A aplicação da força de forma extrema quando necessária não é negada por este princípio.

Assim a força pode ser usada se for necessário “...to establish situational dominance, to display

US resolve and commitment, to protect US or indigenous lives and property, or to accomplish

other critical objectives41”

Em quinto lugar, temos a perseverança, que requer um compromisso com a missão,

exigindo o emprego de estratégias de longa duração conectadas com os interesses americanos.

Por fim, a legitimidade é a percepção da legalidade, moralidade e correção das ações da

operação de paz. É, primeiramente, advinda do mandato de uma autoridade competente com o

Conselho de Segurança da ONU e depois mantida pelo proceder das unidades envolvidas na

operação de paz. Este proceder deve estar de acordo com as normas internacionais e com os

princípios humanitários.

40 Ibid., p. 17 Nas Operações de paz, cada soldado deve estar ciente de que o objetivo é produzir condições para a paz e não para a destruição de um inimigo. O inimigo é o conflito, embora por vezes tais operações assumam o caráter de operações de combate mais tradicionais. 41 Ibid, p. 17. ...para estabelecer uma situação de dominância, para exibir a resolução e compromisso dos EUA, para proteger vidas e bens do local ou dos EUA, ou para realizar outros objetivos críticos

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2.6 Considerações sobre as diferenças de abordagem entre os documentos da ONU e dos EUA

Os documentos deste momento estão preocupados em atender aos novos desafios do pós

Guerra Fria de maneira eficiente, mas o fazem de formas diferentes porque têm ambientes

diferentes de produção, idéias diferentes sobre o que é intervenção e desejam agir em públicos

diferentes. Eles estão tentando lançar novas propostas e regulamentar a atuação em operações de

paz mediante o entendimento de que o ambiente é outro e, só se adequando a ele, as missões de

paz poderão atender melhor às requisições impostas pela resolução de conflitos.

O manual de campo dos EUA de 1994 incorpora a idéia da peace enforcement de forma

diferente da requerida por Boutros Boutros-Gali em Uma Agenda para a Paz. Para os Estados

Unidos não seriam unidades, mas atividades de peace enforcement. Então, o mesmo batalhão

poderia desempenhar as duas funções. Para a ONU, a atividade de imposição estaria restrita a

composição de algumas forças com esta capacidade.

O manual de campo em 1994 já tinha incorporado um uso mais amplo da força do que a

Agenda para a Paz. Provavelmente pelo uso da força ser a especialidade do exército, ele tenha

mais facilidade de incorporar inovações neste campo e utilizar a força de forma mais enfática do

que as outras organizações. O exército americano vê, por exemplo, a operação na Somália em

1992 como uma peace enforcement, ou seja, uma operação que por sua natureza já tinha

determinado um uso mais amplo da força. Já Boutros Boutros-Gali vê a Somália como uma

ampliação do mandato para a permissão de um uso maior da força que não deu certo. Os

documentos exprimem o mesmo evento de formas diferentes pois os âmbitos de cada documento

são diversos e, portanto, se referem da forma que o contexto social legitimou o evento.

A Somália marcou a opinião pública americana e por isto o manual desse país não o

coloca como um fracasso, mas as diversas reações, tanto da população quanto as reações do meio

político e militar, vistas por meio da publicação da PDD-25 e o FM 100-23, são formas de

expressar a visão de que a atuação na Somália foi ponto negativo para o que se pensava sobre

intervenção humanitária. Assim, o discurso que está contido no texto sobre este evento é

determinado pela expectativa de reconhecimento dos documentos pelo público receptor.

Os princípios de imparcialidade, consenso e uso da força estão presentes nos dois

documentos, mas são princípios determinados pela ONU. Na visão dos Estados Unidos eles são

características da missão. Apesar disto, eles devem ser buscados pela parte militar da missão e

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eles têm a visão estratégica, pouco desenvolvida, de que há uma correlação entre estas três

características. Há também o entendimento de que ao longo da missão, tais características

enfrentarão momentos de queda e de ascensão e que isto dependerá de como a missão será

conduzida.

Na Agenda para a Paz e no Suplemento para uma Agenda para a Paz, o respeito à

soberania do país é tratado e no manual de campo americano não há esta preocupação de maneira

tão aprofundada. Nos documentos da ONU reafirma-se o direito à soberania e o consenso é

sempre requerido como um respeito à autoridade constituída sobre determinado território e povo.

Estas diferenças são relativas não só à organização que os produz, mas também por causa

da natureza destes documentos. Os documentos da ONU são políticos e não se baseiam em

descrever com detalhes como deve ser o proceder da intervenção. Apenas vê os problemas e

lança propostas e desafios. O documento dos Estados Unidos que têm caráter político, o PDD-25,

está da mesma forma que os documentos da ONU, se referindo a determinados problemas

encontrados e tentando adequar os seus métodos para enfrentar estes problemas. O único

documento que tem um caráter prático é o manual de campo americano que tem o objetivo de

determinar os guias para que os procedimentos de cada operação sejam produzidos de acordo

com ele.

Quanto aos documentos americanos, temos que entender também que a PDD-25 é uma

reação às falhas na Bósnia e na Somália entre os anos de 1991 e 1995, e é lançado no início de

1994, antes da formulação do manual de campo, que é de dezembro de 1994. O manual de campo

é por si só uma reação às necessidades de adequação das missões de paz à nova configuração do

pós Guerra Fria, mas também traz à prática as determinações postas anteriormente pela PDD-25.

Este movimento era tão forte que precisou de vários documentos sobre estes mesmos assuntos

readequando-os e tornando-os mais eficientes.

A ONU, nesta época, não produziu um manual a cerca da regulamentação das práticas

sobre intervenções. Isto porque só neste momento é que há um aumento do número de

intervenções e a organização ainda está se adequando e, mais tarde, esta lacuna vai ser preenchida

pelo Relatório Brahimi, que se preocupa com as questões essencialmente procedimentais.

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2.7 Kossovo e os questionamentos de Kofi Annan

A região da antiga Iugoslávia era marcada por diversas divisões nacionais internas, que

resultavam em reticentes conflitos a respeito de manutenção da integridade do território do país

ou a respeito da separação em territórios pertencentes a cada nação. No ano de 1998,42 em

Kossovo ocorreu uma escalada da repressão ao separatismo kossovar e com esta repressão foram

acontecendo muitos massacres de civis albaneses.

Em outubro daquele mesmo ano a OTAN autorizou o uso da força contra a Iugoslávia e

exigiu que o presidente Slobodan Milosevic aceitasse os termos de um cessar - fogo43. A

Organização não teve ou requereu uma autorização explícita do Conselho de Segurança da ONU,

entendendo que alguma atitude deveria ser tomada diante dos horrores de Kossovo e a lei não

deveria ser um empecilho a isso. Para a comunidade internacional esta atitude foi ilegítima por

ser unilateral, sem autorização da ONU e por não respeitar as leis que determinam como uma

intervenção pode ser feita.

A crença comum de que o uso da força de forma legítima fora do Conselho de Segurança

se dava apenas dentro do paradigma da autodefesa em agressões interestatais começou a ser

questionada. Kofi Annan percebe que o mundo não pode ficar à parte quando grandes violações

dos direitos humanos ocorrem. Não existe a possibilidade de não tomar uma posição frente a

acontecimentos absurdos que agridem, se não fisicamente, a mentalidade e a nossa concepção de

humanidade.

On the one hand, is it legitimate for a regional organisation to use force without a UN mandate? On the other, is it permissible to let gross and sistematic violations of human rights, with grave humanitarian consequences, continue unchecked? The inability of the international community to reconcile these two compelling interests in the case of Kossovo can be viewed only as a tragedy44.

42 Cf. NOGUEIRA, João Pontes. A guerra do Kossovo e a desintegração da Iugoslávia: Notas sobre a (re)construção do Estado no fim do milênio. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.15 nº 44, Oct. 2000. 43 Cf. Ibid. 44 ANNAN, Kofi. Two Concepts of Sovereignty. Economist, September 18, 1999, p. 49. Por um lado, é legítimo que uma organização regional use a força sem um mandato das Nações Unidas? Por outro lado, é lícito deixar que violações grosseiras e sistemáticas dos direitos humanos, com sérias conseqüências humanitárias, continuem sem punição? A incapacidade da comunidade internacional de conciliar esses dois interesses obrigatórios, no caso do Kossovo, pode apenas ser visto como uma tragédia. (T.A.)

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Kossovo trouxe o problema de intervenções sem uma autorização legal clara, mas Ruanda

mostrou as terríveis consequências que a falta de ação pode causar. Já a intervenção em Timor

Leste só foi autorizada após o convite do governo indonésio.

Annan, então, tenta uma solução para que as pessoas não fiquem sem socorro e para que

as intervenções sejam baseadas em princípios legítimos e universais. Ele pede para que a

comunidade política se adapte ao sistema internacional remodelado com novos atores, novas

responsabilidades e novas possibilidades de paz e progresso.

Então, diante deste novo mundo, como a ONU responderia a estas também novas crises

humanitárias? E por que os Estados estariam dispostos a atuar em algumas áreas de conflito e em

outras não? Annan não tem respostas, mas ao levantar este questionamento, enuncia quatro

aspectos importantes para que quando esta resposta vier seja bem definida.

Em primeiro lugar, o autor diz que a intervenção não deve ser entendida apenas como o

uso da força, mas como uma ação contínua que deve incluir assistência humanitária e

reconstrução do país. A missão deve olhar o conflito como um todo e perceber que neste processo

a cessão dos conflitos armados é apenas um dos objetivos e que, mesmo este objetivo tem

diversas formas de ser tratado e o uso da força é apenas um delas. Para Annan, reconstruir o país

– tanto na parte física quanto na social – e tratar das causas mais profundas do conflito,

dificultando assim seu retorno, evitará que o país viva um longo ciclo de intermináveis guerras

civis. Essa visão de resolução de conflitos se refere à utilização de processos diplomáticos, de

manutenção da paz e de construção de um ambiente de paz para que o conflito seja analisado

como um todo e para que a própria população possa, após o fim da atuação da ONU, trabalhar

para resolver os seus próprios conflitos.

As operações não devem ser restritas a certas áreas do mundo em que os países

envolvidos tenham interesses ou afinidades. A ONU deve agir igualmente em qualquer lugar do

mundo em que ocorra crises de caráter humanitário, a propulsão da ação deve ser unicamente a

segurança e a paz internacionais junto ao socorro às vitimas de abuso graves dos direitos

humanos.

Em segundo lugar, Annan afirma que deve haver um diferente entendimento do que é

soberania. A releitura deste conceito deve levar a um entendimento de valores e objetivos comuns

que não permitam às populações dos países afligidos sofrer por causa da não permissão da quebra

da autoridade do país que muitas vezes é o culpado pelos genocídios e deslocamentos em massa.

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Para o autor, o terceiro aspecto importante é que o Conselho de Segurança deve tomar

para si a responsabilidade quando houver a real necessidade de empreender uma intervenção

forçada. Quando o conselho estiver inoperante, a resposta deve vir de uma ação regional,

sancionada por este órgão da ONU. Mesmo se não puder usar seu poder militar efetivamente, a

organização pode usar seu poder de dissuasão, não permitindo que o conselho fique sem

posicionar-se em qualquer que seja a questão. O poder do Conselho vai além do uso da força e

sua experiência em resolução de conflitos pode fornecer informação, treinamento e especialistas

para as operações desenvolvidas pelas organizações regionais.

Por último, Annan diz que o compromisso com a paz deve permanecer inabalável quando

os conflitos terminarem. Deve haver o mesmo comprometimento de recursos, sacrifícios e

habilidades no pós-conflito.

As primeiras respostas no sistema da ONU vieram com o Relatório Brahimi. Entendendo

que o sistema tinha várias falhas, o relatório, já no ano seguinte aos pedidos de Annan, fez

algumas recomendações para o avanço das operações de paz. As sugestões estão principalmente

na área operacional e organizacional em detrimento da área política.

Particularmente, os organizadores do relatório percebem que o uso da força está andando

em sentido contrário ao das necessidades encontradas. Os ambientes cada vez mais hostis e o

caráter interno da maioria dos conflitos levam a uma atuação diferenciada. Percebem que não

basta boa vontade, mas a organização deve deter uma capacidade crível de projetar sua força. As

respostas viriam por meio de operações complexas com apoio político e um rápido destacamento

com uma postura mais robusta e uma clara estratégia de construção da paz.

Segundo o Relatório, os princípios devem ser mantidos, contudo as unidades militares da

missão devem ser capazes de se defender, assim como aos outros componentes da missão e ao

mandato, sem ceder às investidas dos que os atacam.

... once deployed, United Nations pecekeepers must be able to carry out their mandates professionally and sucessfully and be capable of defending themselves, other mission components and the mission´s mandate, with robust rules of engagement, against those who renege on their commitment to a peace accord or otherwise seek to undermine it by violence45.

45 RELATÓRIO BRAHIMI. Relatório do Painel sobre Operações de Paz da ONU, 21 de agosto de 2000. Disponível em: www.un.org/peace/reports/peace-operations Acessado em: 31 de maio de 2007.p. 10. uma vez implantada, os pecekeepers das Nações Unidas devem ser capazes de exercer os seus mandatos e profissionalmente e de forma bem sucedida e devem ser capazes de se defenderem, os outros componentes da missão

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O mandato deve ter uma autorização para a operação usar a força. Os contingentes

militares devem ser melhor equipados e devem poder representar uma ameaça de dissuasão. Sem

isto, a missão terá uma presença apenas simbólica e não ameaçadora.

Por esta presença mais ameaçadora, os Estados membros que contribuem com os

contingentes militares devem estar preparados para aceitar o risco de mortes em favor do

mandato.

A imparcialidade não deve ser um tratamento igual a todas as partes no conflito, ou seja, a

missão de paz não deve ser neutra frente aos atos de agressão que os beligerantes podem exercer.

A imparcialidade “for such operations must therefore mean adherence to the principles of the

Charter and to the objectives of mandate that is rooted in those Charter principles46”. Assim,

quando as partes locais se apresentarem como agressores, os peacekeepers devem ser moralmente

compelidos a usar a força e seu uso deve ser operacionalmente justificado.

O Relatório conclui que a força não pode criar sozinha a paz, mas pode criar o espaço em

que a paz será construída.

Este relatório por se propor a trabalhar com as questões do campo operacional, não

responde às perguntas de Annan que estão no campo político, mas aponta para as mudanças

futuras em operações de paz e para uso da força de formas novas e diferentes.

Os questionamentos de Annan tentam mudar as idéias circulantes; mais do que isto, pede

que elas mudem. Para que as intervenções humanitárias fossem mais eficazes precisava que

houvesse uma mudança mais profunda que influenciasse o ideológico das sociedades em que

estas ações ocorrem e são legitimadas. Novas atitudes só seriam produzidas depois que houvesse

uma transformação do pensamento sobre o assunto e as novas regulamentações pudessem ser

aceitas pela comunidade internacional.

O Relatório Brahimi foi um primeiro passo da mudança e, mesmo que fosse um

documento que apenas identificasse os problemas e sugestionasse as soluções, mostrava que a

sociedade requeria transformações. A imagem do uso da força já havia mudado e a sua relação

e o mandato da missão, com regras robustas de engajamento, contra aqueles que renegarem o seu compromisso para com o acordo de paz ou de outra maneira procurem miná-lo pela violência. (T.A.) 46 Ibid, p. 9. para tais operações deve, portanto, significar a adesão aos princípios da Carta e aos objetivos do mandato que está enraizado nos princípios da Carta. (T.A.)

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com os outros princípios da intervenção humanitária também se tornava diferente. Estas

modificações foram postas em prática mais tarde e receberam o reconhecimento da sociedade

internacional.

O fim dos anos 1990 trouxe novas idéias que permitiram que o discurso se transformasse,

se exprimisse de formas diversas e que estas idéias contidas no discurso recebessem legitimação

na sociedade.

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CAPÍTULO 3 A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA DIANTE DA SOBERANIA COMO

RESPONSABILIDADE

3.1 A Emergência da Soberania do Indivíduo

Desde os questionamentos de Kofi Annan após a intervenção da OTAN no Kossovo,

muitos conceitos foram criados, alguns se aprofundaram nas formulações de políticas públicas,

outros se tornaram aplicáveis ao contexto atual.

A situação requeria novas formas de pensar a intervenção humanitária e as discussões

sobre o assunto proliferaram tanto na esfera acadêmica quanto na pública. As soluções

encontradas recaiam sobre a superioridade das necessidades do indivíduo acima das do Estado, o

que levava ao pensamento de que partindo do micro alcançava-se o macro, ou seja, o primeiro

passo era prover o necessário a cada indivíduo, o que geraria comunidades mais fortes e uma

sociedade internacional mais segura.

3.1.1 Segurança Humana

Segurança é um conceito em transformação como muitos dos conceitos no pós Guerra

Fria. Tradicionalmente é associada à esfera doméstica dos países, na qual o objetivo é proteger

seus cidadãos1. Ou ainda diz respeito à segurança coletiva que normativa a coexistência entre os

Estados com o objetivo de pacificá-la. Este era um conceito óbvio em uma sociedade pós II

Guerra Mundial. Contudo, uma das maiores ameaças do pós Guerra Fria, sublinhadas no primeiro

capítulo, são os conflitos internos. Estes podem ser confrontos entre etnias rivais, a falência ou o

colapso das instituições de um governo ou ainda o próprio Estado que se volta contra os seus

cidadãos. O que há de comum nestes momentos é que o país não pode oferecer proteção aos

indivíduos, o que gera insegurança e uma perspectiva de que não haverá como sair desta situação

já que o próprio Estado não está pronto para tal responsabilidade.

Existem outras ocasiões para as quais alguns Estados não estão prontos a oferecer

proteção às pessoas, como durante epidemias de doenças em países que não detêm o 1 Cf. WEISS, Thomas. G. Humanitarian Intervention. Ideas in Action. Cambridge: Poliy Press, 2007.

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conhecimento da cura, em países muito pobres em que a pobreza extrema causa fome, miséria,

falta de acesso a alimentos, água e habitação. As pessoas são as que mais sofrem com a falta de

condições dignas de sobrevivência e a sociedade internacional entende que a segurança de uma

pessoa, de uma comunidade ou de uma nação reside na decisão de muitos outros2.

Isso amplia o escopo do termo segurança para além do Estado em direção à segurança dos

seres humanos. Ela não substitui, mas sim complementa a segurança estatal, fortalecendo os

direitos e o desenvolvimento humano. Segurança entre os Estados continua sendo uma condição

para a segurança dos indivíduos, mas sozinha não consegue atender a todas as necessidades

individuais e por isto não é suficiente para garantir a segurança humana. Além disto, tem que

haver uma forma de proteger os seres humanos da violência arbitrária estatal.

Segurança humana significa a liberdade de ameaças à vida3. Ela entende que em um

mundo interligado e interdependente uma ameaça a uma pessoa pode se transformar em uma

privação de segurança muito maior, ameaçando sua comunidade ou ultrapassando fronteiras e

influenciando uma região e até o mundo como um todo, tornando-se um desafio à manutenção da

segurança e paz internacionais.

A segurança humana deseja proteger o indivíduo de uma série de ameaças e depois,

fortalecê-lo de forma que ele mesmo possa lutar pelo seu sustento, bem-estar e segurança e que

possa se manifestar pelo bem de outros.

Human security in its broadest sense embraces far more than the absence of violent conflict. It encompasses human rights, good governance, acess to education and health care and ensuring that each individual has opportunities and choices to fulfil his or her own potential4.

A Comissão independente em Segurança Humana financiada pelo governo do Japão sob a

liderança de Amartya Sen publicou um relatório sobre este conceito e sobre os desafios impostos

a ele. A Comissão não determinou quais são as ameaças à segurança humana, pois entendia que

este é um conceito dinâmico que pode mudar constantemente, dependendo do que passe a

2 Cf. COMISSION ON HUMAN SECURITY. Human Security Now. New York: Comission on Human Security, 2003. 3 Cf. WEISS, Thomas. Op. Cit.

4 COMISSION ON HUMAN SECURITY. Op. Cit., p. 4. Segurança humana no seu sentido mais amplo engloba muito mais do que a ausência de conflito violento. Isto engloba os direitos humanos, boa governança, acesso à educação e assistência médica e assegura que cada indivíduo tenha oportunidades e escolhas para preencher o seu próprio potencial. (T.A.)

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desafiar a condição de liberdade do ser humano. O que é vital hoje pode se transformar com o

tempo, por isso segurança é muito mais do que somente a ausência de conflito, é poder usufruir

os direitos humanos e de educação e informação, as quais possibilitem que o indivíduo atinja os

seus objetivos e possa trabalhar para suprir suas necessidades.

O fortalecimento de uma cidadania é a possibilidade das pessoas adquirirem a habilidade

de atuar em seu favor ou de outras pessoas. Estas pessoas se tornam conhecedoras de seus

direitos e podem demandar respeito por eles e o fortalecimento de uma forma de viver digna. Elas

podem reproduzir o que aprenderam, mobilizar outras pessoas e criar oportunidades de emprego.

Isto faria com que eles mesmos dentro de suas comunidades pudessem criar condições para a

superação de situações de falta das necessidades básicas e não dependessem por toda a vida de

ajuda externa. Isto também faria com que as ameaças à segurança humana não fossem

reproduzidas constantemente através das gerações.

Os membros da Comissão entendem que as ameaças estão inter-relacionadas. A privação

de coisas elementares à sobrevivência como comida e água e o tratamento de forma desigual dos

indivíduos não geram um conflito armado ou uma revolta, mas a persistência desta situação

permanece nas memórias e forma a visão de mundo dos submetidos a esta situação. Mais tarde,

estas privações podem contribuir para a evolução de um confronto.

O desenvolvimento do conceito foi possível porque há uma nova gama de atores que

podem agir internacionalmente. Os Estados - nacionais, organizações regionais, transnacionais e

não governamentais e a sociedade civil se preocupam com o ser humano e podem agir para

buscar sua segurança no sentido mais amplo do termo. A não vinculação desses atores a um

Estado soberano permite que eles possam trabalhar dentro das fronteiras do Estado nacional para

assegurar a sobrevivência, liberdade e dignidade destes indivíduos sem que isto constitua um

desrespeito à soberania nacional. Eles só agem, é claro, depois da permissão do Estado, mas

como não influenciam na sua autoridade, a sua atuação é mais facilmente permitida e eles podem

ajudar na obtenção desse objetivo.

O Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional, produzido no ano de 19995, reflete este

conceito. O objetivo do tribunal é julgar indivíduos que tenham cometido crimes contra a

humanidade, crimes de guerra e genocídios. Apesar de suas falhas, demonstra uma preocupação

5 Cf. AXWORTHY, Lloyd. Human security and Global Governance: Putting Peple First. Global Governance, vol.7, nº 1, 2001.

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com o ser humano e mais do que isto é a possibilidade de um indivíduo ser julgado por crimes

internacionais6.

Outro exemplo de ação conjunta inspirada no conceito de segurança humana é a Human

Security Network,7 uma rede que hoje engloba mais de doze países, mas que nasceu de uma

sinergia entre Canadá e Noruega. O seu crescimento demonstra uma tendência dos países e

sociedade civil se envolverem com o tema da segurança humana. Ela ajuda à ONU a proteger os

civis e identifica oportunidades para ações coletivas com o objetivo de promover a segurança e a

dignidade das pessoas.

Outros exemplos são convenções que buscam estudar o assunto e produzir políticas que

solucionem ou melhorem a situação de pessoas afetadas pelas ameaças à sua segurança. Exemplo

disto foi a Conferência Internacional sobre crianças afetadas pela guerra de 2001 e a Conferência

da ONU, do mesmo ano, sobre Armas leves. Foram reuniões que tentaram compreender fontes

geradoras e consequências dos conflitos que em seus pequenos detalhes podem afetar a vida de

muitas pessoas submetidas a situações de conflito8.

A cooperação contribui para o crescimento da utilização desse conceito na prática e

possibilita o entendimento de que as ameaças são inter-relacionadas e o mundo é

interdependente. Colaboração não só entre Estados, mas entre organizações da sociedade civil e

Estados. Estes são exemplos de como os mais diversos atores participam da sociedade

internacional e se envolvem com a formulação e emprego de políticas que buscam o

fortalecimento da segurança humana. O crescimento deste tema influencia vários âmbitos da

formulação de políticas nacionais e internacionais, inclusive a intervenção humanitária.

Como a intervenção humanitária ocorre quando genocídios ou deslocamentos em massa

acontecem, a segurança humana é um conceito aplicável já que ela preveniria ou proveria

soluções para estes casos. Como, normalmente, isto ocorre no transcorrer de conflitos e guerras,

durante estes momentos a vida das pessoas é desestruturada, casas são destruídas, assim como

fontes de suprimentos, estradas, fluxo da economia, etc. Depois do conflito ou mesmo durante

seu transcorrer, os países enfrentam a difícil tarefa de reconstruir tudo e, na falta destes pontos

6 Para saber mais sobre a Corte Penal Internacional e seu Estatuto ver: http://www2.icc-cpi.int/. A Corte Internacional de Justiça é um órgão das Nações Unidas que julga os Estados. Para saber mais sobre a Corte Internacional de Justiça ver: http://www.icj-cij.org/ 7 Para mais informações sobre a Human Security Network ver: http://www.humansecuritynetwork.org/menu-s.php 8 Cf. AXWORTHY, Lloyd. Op. Cit.

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básicos à sobrevivência, muitas pessoas morrem ou sofrem com a perda de seus familiares, de

seus bens, de seus trabalhos, enfim, de condições dignas de sobrevivência. A segurança humana é

um conceito que permite desenvolver estratégias para a superação destes efeitos por meio do

Estado ou da sociedade internacional.

Reconhecemos, contudo, que este é um conceito bem mais amplo, é aplicável em

qualquer caso em que um desafio à manutenção da paz de um indivíduo ponha em perigo sua

vida, liberdade ou dignidade. Uma intervenção não pode e não deve ser aplicada em qualquer

destes casos; outras soluções através da sociedade internacional ou por meio do fortalecimento do

Estado são mais aplicáveis a situações que fujam a assassinatos e migrações em massa.

3.1.2 Soberania como responsabilidade

A falta de reação do Conselho de Segurança durante os conflitos em Ruanda e em

Kossovo levou a uma série de discussões sobre o papel da ONU e a forma de fazer intervenção

humanitária9. Kofi Annan se pronunciou no The Economist10 sobre sua preocupação em permitir

que crises humanitárias acontecessem sem que qualquer Estado ou sem que a sociedade

internacional fizesse alguma coisa. A preocupação era sobre o que fazer no caso de inoperância

do Conselho de Segurança.

Uma resposta ao questionamento de Annan foi a formação de uma comissão independente

reunida pelo governo canadense para estudar este assunto. A International Commission on

Intervention and State Sovereignty (ICISS)11 produziu um relatório chamado Responsabilidade

de Proteger. Nele lança-se a proposta de adoção de uma nova forma de intervir frente ao antigo

conceito de direito de intervenção

Para entendermos esta idéia, devemos compreender sua relação com a dinâmica

apresentada pelo conceito de soberania. A soberania estatal passa a ser reconhecida pela noção de

soberania como responsabilidade. Isto é, o Estado se torna o protetor dos direitos humanos de

cada cidadão dentro de seus limites, passando o foco do desempenho da autoridade estatal para a 9 Cf. WEISS, Thomas. G. Op. Cit. 10 Kofi Annan, ‘‘Two Concepts of Sovereignty,’’ Economist, September 18, 1999, p. 49. 11 Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal. Para mais informações ver: INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. The Responsibility to Protect. Canadá: International Development Research Centre, 2001.

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proteção dos indivíduos. Os Estados passariam a ser um instrumento da preservação da segurança

humana. Como neste último conceito, o destaque se volta para o determinante “humano” que

modifica a ênfase do termo, ou seja, para que um Estado seja soberano, tem que resguardar os

direitos das pessoas submetidas à sua autoridade.

Então a soberania seria uma responsabilidade englobando diversas questões, inclusive a

de proteger sua população. Os direitos humanos passam a ser limitadores da soberania que, ao

invés de ser desempenho do poder interna e externamente, passa a ser responsabilidade. O poder

soberano deixa de ser absoluto, sem que ninguém possa constrangê-lo. O respeito aos direitos

humanos são uma restrição ao desempenho da soberania absoluta.

State sovereignty implies responsibility, and the primary responsibility for the preotection of its people lies with the state itself. Where a population is suffering serious harm, as a result of internal war, insurgency, repression or state failure, and the state in question is unwilling or unable to halt or avert it, the principle of non-intervention yields to the international responsibility to protect12.

Falhando em suas obrigações, o Estado passaria o dever de proteger seus cidadãos para a

comunidade internacional, deixando que ela tenha acesso à população que está sofrendo com a

violação de seus direitos. Esta passaria a exercer a responsabilidade de proteger as pessoas

necessitadas mesmo dentro das fronteiras de um Estado nacional. Se este acesso fosse negado,

uma responsabilidade de agir emergiria e o princípio de não intervenção seria suspenso em

detrimento do dever de preservar os direitos humanos.

A responsabilidade sobrepuja toda esta formalidade que resguarda a soberania estatal. Isto

porque se entende que a soberania já foi desrespeitada por meio dos genocídios, crimes de guerra,

limpezas étnicas ou crimes contra a humanidade.

O documento do ICISS apresenta a lógica do conceito de responsabilidade de proteger

sob a divisão de três momentos: a responsabilidade de prevenir, que é a necessidade de

desenvolver medidas de prevenção para eliminar a raiz e as causas diretas dos conflitos; a

responsabilidade de reagir, que é o período em que se empregam ações coercitivas como sanções

12 INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY. Op. Cit., p. xi. Soberania estatal responsabilidade, e a responsabilidade primária pela proteção do seu povo está no próprio Estado. Quando uma população está sofrendo graves danos, como resultado de guerras internas, insurgência, repressão ou falência estatal, e o Estado em questão não deseja o não está capacitado a impedir ou evitar isto, o princípio de não intervenção dá prioridade a responsabilidade internacional de proteger. (T.A.)

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e ações penais e, em casos extremos, ações de intervenção militar e a última responsabilidade que

é a de reconstruir, em que se mantém um vínculo com a região que sofreu a intervenção e que

ainda requer o emprego de medidas de recuperação, reconstrução e reconciliação13.

Há a articulação de diversos momentos em que a responsabilidade de proteger deve ser

empregada. Seria, como Weiss coloca, uma responsabilidade continua, tanto antes dos conflitos

quanto durante e depois. A ação militar seria apenas em casos extremos e o número de casos seria

reduzido pelas medidas preventivas que limitariam as ocasiões em que chegaríamos a conflitos

deflagrados. Deve-se perceber que não há uma simples ampliação da possibilidade de intervir,

mas sim uma ampliação do que se entende como intervenção.

Byers14 acredita que a ênfase do relatório está na prevenção do conflito que abarcaria uma

série de possibilidades de desenvolvimento para os países mais atrasados. Weiss15, no entanto,

argumenta que prevenir não é a prioridade, mas sim reagir de uma forma melhor frente aos

conflitos.

Durante a reação em casos extremos, uma ação militar seria decidida de acordo com

critérios derivados da Guerra Justa16, mas eles só seriam observados quando acontecimentos que

chocam nossa consciência ocorressem. Os episódios se restringiriam a grandes perdas de vidas

humanas ou limpezas étnicas com assassinatos, expulsões forçadas, atos de terror ou estupros17.

Na doutrina de Guerra Justa determinam-se critérios para decidir se deve haver uma

intervenção ou quais os casos em que se deve intervir. Na responsabilidade de proteger, a idéia é

determinar como intervir. No primeiro, há que haver uma intenção certa, ou seja, deve haver a

vontade de impedir ou evitar o sofrimento humano. A ingerência deve ser empreendida por meio

de ações multilaterais, apoiadas pela opinião pública regional e pelo consentimento das vítimas.

O objetivo é que existam intervenções em lugares nos quais realmente sejam necessárias e não

apenas em lugares em que os países tenham algum interesse.

Em segundo lugar, a ingerência, mesmo que humanitária, deve ser empreendida como

último recurso. Somente depois de esgotados todos os meios pacíficos previstos na

responsabilidade de prevenir e na de reagir e também no artigo 33 do capítulo sobre Solução

13 Cf. WEISS, Thomas. G. Op. Cit. 14 Cf. BYERS, Michael. A lei da Guerra. Clóvis Marques (trad.). Rio de Janeiro: Record, 2007. 15 Cf. WEISS, Thomas. G. Op. Cit. 16Cf. RAMSBOTHAM, Oliver. et al. Contemporary Conflict Resolution. The prevention, management and transformation of deadly conflicts. Cambridge: Polity Press, 2008. 17 Cf. WEISS, Thomas. G. Op. Cit.

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Pacífica de Controvérsias da Carta da ONU deve-se recorrer à solução da ação militar. Deve-se

avaliar igualmente se não há como empreender medidas menos violentas.

A proporcionalidade dos meios é o terceiro critério e determina que a dimensão, a duração

e intensidade da intervenção militar devem ter a menor amplitude possível para alcançar os

objetivos humanitários. Ou seja, os meios militares usados devem ser proporcionais ao conflito

enfrentado para que não haja mais perdas do que o necessário para fazer cessar a crise.

O quarto e último critério seria a necessidade de existirem perspectivas razoáveis de

sucesso da operação. A ação não pode trazer piores consequências do que a falta de ação; se ela

causar mais sofrimento, então é melhor que não ocorra18.

Para que estes pré-requisitos todos sejam avaliados é preciso que haja uma autoridade

adequada, que o relatório lega ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Contudo, como

pode haver alguns problemas, tais como a impossibilidade de que uma intervenção seja

autorizada contra um dos membros permanentes do Conselho ou que, por algum outro motivo, o

mesmo se mantenha inoperante. Nestes casos, o documento do ICISS determina algumas outras

possibilidades.

A primeira possibilidade seria a convocação da Assembléia Geral da ONU (AGNU) pelos

procedimentos da resolução Unidos para a Paz (Uniting for Peace Resolution). Esta resolução foi

utilizada da década de 50 para permitir que a AGNU adotasse medidas de força para garantir a

paz e a segurança internacionais diante da paralisia do Conselho de Segurança pelo veto de seus

membros permanentes19. Ela foi adotada durante a Guerra da Coréia em 1950, no Egito em 1956

e no Congo em 196020.

Outra possibilidade é a ação de organizações regionais que agissem no entorno de suas

fronteiras para proteger a segurança regional. Estas duas possibilidades constituiriam uma

exceção ao não uso da força. Como não seria uma exceção expressa na Carta da ONU e nem

empreendida por um de seus órgãos, ela seria uma intervenção unilateral. Segundo o documento

18 Cf. Ibid. 19 Para saber mais sobre o possibilidade de veto das decisões do Conselho de Segurança e sua organização ver: HERZ, Mônica. HOFFMAN, Andréa Ribeiro. Organizações Internacionais: história e práticas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 20 Cf. SAUERBRONN, Christiane. A Responsabilidade de Proteger (The Responsibility to Protect). BRIGAGÃO, Clovis. MELLO, Valerie de Campos. (org.). Diplomacia Cidadã. Panorama Brasileiro de Prevenção de Conflitos Internacionais. Rio de Janeiro: Gramma: fundação Konrad Adenauer, 2006.

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do ICISS, mesmo que isto seja um problema para a ordem internacional, ainda sim seria um

ganho conseguir-se impedir ou fazer cessar uma crise humanitária21.

Contudo, o que se deseja é que o Conselho de Segurança encontre melhores formas de

proceder e não que seja substituído por outras organizações ou coalizões. Mesmo pelo próprio

documento Responsabilidade de Proteger, as intervenções unilaterais só são previstas em um caso

de congelamento das ações do Conselho e devem adotar o mesmo procedimento previsto para as

ações da ONU, através dos diversos critérios que determinam quando e como agir.

Mas, então, o que aconteceu em Darfur? Depois de um intenso debate sobre o que fazer

quando o Conselho de Segurança ficar inoperante e sobre qual o caminho para solucionar crises

humanitárias, o conflito nesta região do Sudão não resultou em nenhuma ação efetiva da

comunidade internacional. Milhares de pessoas foram mortas22 e soluções para a situação

avançaram pouco desde o ano de 2003.

Durante o ano de 2003, a resposta foi limitada ao envio de ajuda humanitária através de

organizações não governamentais. No ano de 2004, havia fortes indícios de que estava

acontecendo um genocídio empreendido pelas forças estatais confirmado pelo coordenador no

Sudão enviado pelo ONU. A organização Human Rights Watch também reportou sérios casos de

desrespeito aos princípios de direitos humanos em que o governo seria certamente culpado dos

crimes23.

Apesar de todas estas evidências, as discussões no Conselho de Segurança evitavam

admitir a existência de assassinatos em massa e a culpa do governo sudanês. Alguns países se

mostravam a favor do envio de tropas ao local, outros declinavam, entendendo que não havia a

necessidade do uso de contingentes militares e nem a imposição de outras medidas coercitivas

como sanções e embargos ao país.

Estes países entendiam que o sofrimento humano em Darfur era insuficiente ou não

qualificavam a transferência de responsabilidade do Sudão para a sociedade internacional.

Acreditavam que este país preenchia todos os requisitos para proteger seus cidadãos e que esta

responsabilidade era primeiramente do Estado nacional ao qual estas pessoas pertenciam,

portanto não deveria ter uma ingerência externa no país. Como o governo do Sudão negava a

21 Cf. Ibid 22 Pelo site da ONU, 300.000 pessoas morreram e 2.500.000 foram deslocadas de suas casas em Darfur. Ver: http://www.un.org/Depts/dpko/missions/unamid/ 23 Cf. BELLAMY, Alex J. Responsability to Protect or Trojan Horse? The Crisis in Darfur and Humanitarian intervention after Iraq. Ethics & International Affairs, v. 19, Issue 2, pp. 31-54, 2005.

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autorização de entrada de uma intervenção da ONU, este grupo esperava que a comunidade

internacional pudesse ajudá-los a alcançar a capacidade de resguardar os direitos humanos

internamente24.

O que aconteceu em Darfur foi um conflito entre a autorização política de uma

intervenção e a que é pautada por critérios de direitos humanos. Devido à negativa do governo do

Sudão (consenso) em permitir interferências externas, qualquer ação seria regularmente

impossível pelos critérios de uma peacekeeping da ONU, mas possíveis pelos critérios da

responsabilidade de proteger. Como eles ainda não eram adotados por esta organização, dever-se-

iam seguir os regulamentos adotados. Contudo havia um entendimento de que a ação era

implicitamente obrigatória, por isso, todas as discussões, tanto no meio acadêmico quanto no

meio político e na opinião pública25.

Assim, os que eram a favor da intervenção usavam o argumento de que o país falhou em

suas obrigações de proteger seus cidadãos e que seu direito de não intervenção teria sido anulado

pelo desrespeito aos direitos humanos por meio de genocídios, o que fazia a população migrar

para outras localidades com medo de perder suas vidas26.

O Conselho de Segurança conseguiu condenar as violações dos direitos humanos, mas

não conseguiu entrar em acordo sobre nenhuma medida efetiva que viesse a deter tais abusos.

A União Africana (UA) enviou uma pequena missão com tropas com o objetivo de

proteger os monitores internacionais. Mesmo com a ajuda humanitária, as tropas da União

Africana estavam pouco preparadas para o que iam enfrentar em Darfur e não conseguiram fazer

com que a situação melhorasse. Pior do que isso, ela realmente deteriorou. Mais tarde houve um

aumento em quantidade das tropas da UA e os Estados Unidos passaram a apoiar com sua força

aérea27, mas nem isso foi suficiente para deter a ampliação dos crimes humanitários.

As discussões no Conselho de Segurança começaram em 2003 e no ano de 2005, apesar

da presença de uma missão da UA, a ONU ainda não tinha conseguido tomar nenhuma decisão

efetiva e os países continuavam a discutir quem era responsável enquanto milhares de pessoas

24 Cf. Ibid. 25 Cf. Para entender mais sobre esta mesma discussão só que em relação ao caso de Ruanda ver: PROENÇA JÚNIOR, Domício. O enquadramento das Missões de Paz (PKO) nas teorias da guerra e de polícia, v. 45, nº 2, pp. 147 a 197, july/dec 2002. 26 Cf. BELLAMY, Alex. Op. Cit 27 Cf. Ibid.

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morriam. O Conselho de Segurança conseguiu apenas requerer um cessar fogo e a apuração de

crimes de guerra.

A linguagem da Responsabilidade de Proteger foi utilizada tanto pelos favoráveis a uma

intervenção quanto pelos contrários a ela. Como pela doutrina do direito de intervir, as decisões

foram tomadas politicamente usando a mesma matriz teórica. A responsabilidade de proteger

mostrou-se, neste caso, ineficaz para alcançar seu principal objetivo que é o de colocar a vida das

pessoas em primeiro lugar, antes da autoridade soberana do Estado.

Não houve coerência no uso da linguagem da responsabilidade de proteger. Mesmo diante

das hesitações dos membros do Conselho e Segurança, dever-se-iam ao menos empregar as

medidas cabíveis na responsabilidade de prevenir que seriam úteis para evitar a ampliação do

genocídio e do número de pessoas afetadas mesmo que não evitasse o conflito que já havia

começado. O atraso em organizar um consenso em torno das sanções também ajudou na

deterioração da situação.

Como previsto no relatório do ICISS, diante da paralisia do Conselho de Segurança, uma

organização regional tomou o lugar da ONU e se mobilizou para enviar uma missão de paz, só

que era muito pequena e incapaz de solucionar os problemas. Faltou à UA a capacidade e a

experiência da ONU. Por isso, o questionamento sobre intervenções fora do âmbito das Nações

Unidas permanece sem respostas.

Somente em julho de 2007, o Sudão aceitou uma operação conjunta entre a UA e a ONU,

que foi autorizada pelo Conselho de Segurança e teve seu mandato estendido até julho de 2009.

Esta operação foi autorizada pelo capítulo VII da Carta da ONU, o que permite que as tropas

ajam, tanto para apoiar a implementação do acordo de paz quanto para proteger o seu pessoal e

também a população civil. Há uma ressalva importante para toda a discussão sobre a soberania do

Sudão que diz que as ações da operação de intervenção não prejudicariam a responsabilidade do

governo do país28.

Apesar da primeira prova da responsabilidade de proteger ter sido confusa, problemática e

ainda muito capitaneada pelos desejos políticos, ela foi, em meio a crise em Darfur, adotada pela

ONU no documento final do The 2005 World Summit.

28 Cf. http://www.un.org/Depts/dpko/missions/unamid/

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3.1.3 The 2005 World Summit

Em 2005 a comemoração dos 60 anos da Organização das Nações Unidas foi chamada de

2005 World Summit. Consistiu em uma oportunidade de rever os avanços da Declaração do

Milênio, bem como a necessidade da Organização se ajustar às mudanças na política

internacional desde o fim da Guerra Fria.

Foi organizada de tal forma que muitos Chefes de Estado e de Governo dos países

participantes da organização compareceram a uma reunião chamada Painel de Alto Nível do

Secretário Geral sobre Ameaças, Desafios e Mudanças.

Duas mudanças são importantes para o assunto da intervenção humanitária: a primeira é a

criação do Conselho de Direitos Humanos, que tem o claro objetivo de fortalecer a defesa dos

direitos humanos por meio das Nações Unidas e substituir a Comissão de Direitos Humanos que

estava enfraquecida.

A evolução do uso da força frente a grandes violações dos direitos individuais levou à

segunda mudança: a adoção no documento final desta reunião,29 da teoria de responsabilidade de

proteger. O consentimento da nação não é requerido, nem a configuração de que isto seria uma

ameaça à segurança regional. A interpretação das Nações Unidas é a de que não precisa haver o

consentimento da nação afligida ou das vizinhas, mas o que determinaria o envolvimento de uma

força de paz seria a ocorrência de abusos dos direitos humanos, mais especificamente genocídios,

crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade30.

Da mesma forma que a ICISS, o Painel de Alto Nível do Secretário Geral sobre Ameaças,

Desafios e Mudanças privilegia os meios pacíficos frente à utilização de armas. Contudo, a única

forma de ação compreendida é através do Conselho de Segurança da ONU. Diferentemente do

documento do ICISS, o relatório do Painel não permite outra forma de ingerência31.

Possivelmente, as discussões sobre Darfur e as consequências desta ação ou desta falta de

ação influenciaram a adoção desta doutrina em um documento político da ONU.

29 C. GENERAL ASSEMBLY. 2005 World Summit Outcome. Nova York: General Assembly, 2005. A/RES/60/1. 30 Cf. SOUZA, Isabela de. As transformações no Direito de intervir no documento final do 2005 WORLD SUMMIT. Rio de Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, ano 2, n. 19, 2007. 31 Cf. WEISS, Thomas G. Op. Cit.

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3.1 Documentos da ONU: Capstone Doctrine e Un Mundo Más Seguro

Muita coisa mudou na forma de fazer uma intervenção humanitária desde o fim da Guerra

Fria, contudo os documentos só incorporaram estas mudanças um pouco mais tarde. Atendendo à

necessidade de conceituar, organizar e direcionar as transformações vividas, o United Nations

Peacekeeping Operations – Principles and Guidelines32 é um documento da ONU formulado

para adaptar a organização a estas modificações.

O também chamado Capstone doctrine foi formulado no ano de 2008 e está acima de

qualquer outro no que diz respeito às diretrizes de uma missão de paz. Uma revisão de seu

conteúdo está agendada para o ano de 2010 de forma que, através de revisões periódicas, ele

possa ser um documento dinâmico que constantemente se adapte às diversificações no contexto e

na forma de fazer intervenção.

Entendemos que este documento é um enunciado e que o discurso é expresso por

intermédio da forma com que foi formulado e das escolhas feitas para sua elaboração.

Entendemos, então, que as idéias concebidas a respeito das intervenções humanitárias estão

contidas neste documento analisado. Através dele, entendemos que a peacekeeping33 evoluiu e se

tornou uma das principais formas de manter a paz e a segurança internacionais e que aquelas

determinações extratextuais34 que assinalamos como a emergência das idéias de segurança

humana, de soberania como responsabilidade e de responsabilidade de proteger produzem o

discurso que estudamos.

Este documento prevê que o Conselho de Segurança é o órgão principal de

estabelecimento de operações de manutenção da paz e tem se acostumado a fazer referência ao

capítulo VII de “Ações relativas a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão” no mandato

estabelecido para cada operação. Segundo a Capstone doctrine não há, contudo, a necessidade de

se fazer referência a um capítulo da Carta, não tendo nunca feito alusão ao capítulo VI sobre

“Solução Pacífica de Controvérsias”. Esta discussão se dá porque muitos teóricos diferenciam o

procedimento em intervenções e suas fases mediante a associação com o capítulo presente no

mandato. 32 Cf. UNITED NATIONS. United Nations Peacekeeping Operations – Principles and Guidelines. New York: DEPARTMENT OF PEACEKEEPING OPERATIONS. DEPARTMENT OF FIELD SUPPORT, 2008. 33 O termo utilizado nos documentos da ONU é pecekeeping, contudo também pode ser utilizada a sua tradução para o português que é manutenção da paz. 34 Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo. História e Análise de Textos. In:______. Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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As operações de manutenção da paz são definidas como:

Peacekeeping is a technique designed to preserve the peace, however fragile, where fighting has been halted, and to assist in implementing agreements achieved by the peacemakers. Over the years, peacekeeping has evolved from primarily military model of observing cease-fires and the separation of forces after inter-state wars, to incorporate a complex model of many elements- military, police and civilian – working together to help lay the foundations for sustainable peace35.

Segundo esta definição a peacekeeping é enviada para apoiar a implementação de um

cessar-fogo ou de um acordo de paz. Contudo, não está especificado o fato destes acordos serem

muitas vezes frágeis e às vezes baseados em concertos apenas com uma parte no conflito. O

consentimento das principais partes não quer dizer que haja um consentimento no nível local. Ou

seja, as operações podem agir em consonância com as convenções estabelecidas, mas se

depararem com regiões em que parece não haver qualquer acordo.

Um consentimento universal é muito pouco provável. A existência de uma realidade

complexa permite que muitos atores que são parte no conflito não tenha suas demandas atendidas

e pode ser que eles nem tenham feito parte das negociações dos acordos.

Estas operações podem usar a força apenas em auto-defesa e em defesa do mandato. O

uso da força é em nível tático36.

Peacekeeping Peace enforcement

Nível em que se usa a força nível tático nível estratégico ou

internacional

Consentimento há o consentimento do

Estado anfitrião e/ou das

principais partes

há apenas o consentimento

do Conselho de Segurança

35 UNITED NATIONS. Op. Cit., p. 18 A manutenção da paz é uma técnica destinada a preservar a paz, ainda que frágil, onde combates foram interrompidos, e para ajudar na implementação de acordos alcançados por pacificadores. Ao longo dos anos, a manutenção da paz tem evoluído de, principalmente, modelo militares de observação de cessar-fogo e separação das forças após guerras inter-estatais, para incorporar um modelo complexo de muitos elementos-militares, policiais e civis - trabalhando juntas para ajudar a estabelecer as fundações para uma paz sustentável. (T.A.) 36 Segundo a teoria da guerra, as operações podem ser divididas em três dimensões: a política que compreende os objetivos, a tática que delimita como deve ser o uso da força no combate e a estratégica que é o uso dos combates em prol dos objetivos. Para mais informações sobre este assunto ver: PROENÇA JÚNIOR, Domício. O enquadramento das Missões de Paz (PKO) nas teorias da guerra e de polícia, v. 45, nº 2, pp. 147 a 197, july/dec 2002.

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A linha entre peacekeeping robusta e peace enforcement37 pode ser tênue e muitas vezes

pode haver sobreposições entre os campos de atuação das duas. Contudo, a diferença reside no

consentimento ou não do uso da força pelo Estado que recebe a intervenção e em que nível ela

pode ser utilizada.

A peace enforcement envolveria:

The application, with the authorization of the Security Council, of a range of coercive measures, including the use of military force. Such actions are authorized to restore international peace and security in situations where the Security Council has determined the existence of a threat to the peace, breach of the peace or act of aggression. The Security Council may utilize, where appropriate, regional organizations and agencies for enforcement action under its authority38.

A diferença reside no enfoque do uso da força. Na imposição da paz, a força seria usada

mais amplamente pela determinação do Conselho de Segurança e seria desempenhada pela

própria ONU ou por organizações regionais.

As operações militares são executadas de duas formas: com forças multinacionais da

ONU e com a autorização do uso da força para os Estados – membros, sendo individualmente,

em coalizões ou por meio de organizações regionais.

O discurso da organização não perde o foco da manutenção da paz e do fim da violência.

Os meios muitas vezes são violentos, por meio de armas, já que é a única forma de serem

coercitivos, mas os fins são de paz.

A decisão de intervir passa pela Secretaria Geral da ONU que ajuda a decidir qual a

melhor forma de intervir em cada situação. Existem consultas com vários atores em que se decide

qual a melhor forma de intervir no conflito em questão.

Assim como em Darfur, onde anos se passaram até que uma missão da ONU fosse

enviada ao local, as discussões sobre o caso transcorriam no Conselho de Segurança e

informações eram mandadas pelos enviados especiais à região. 37 O termo utilizado nos documentos da ONU é peace enforcement, contudo também pode ser utilizada a sua tradução para o português que é imposição da paz. 38 UNITED NATIONS. Op. Cit., p.18 A aplicação, com a autorização do Conselho de Segurança, de uma série de medidas coercitivas, incluindo o uso da força militar. Tais ações são autorizadas a restabelecer a paz e a segurança internacionais em situações em que o Conselho de Segurança tenha determinado a existência de uma ameaça à paz, violação da paz ou ato de agressão. O Conselho de Segurança poderá utilizar, quando apropriado, as organizações e agências regionais para uma ação coercitiva sob a sua autoridade. (T.A.)

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Diferentemente da teoria da responsabilidade de proteger, a decisão de intervir passa por

várias discussões políticas que seriam minimizadas se o único requisito fosse o acontecimento de

genocídios e abusos dos direitos humanos. O consentimento do país em conflito seria relativo já

que sua autoridade teria se perdido em meio à desestruturação estatal ou diante dos desrespeitos

aos direitos básicos dos indivíduos. A impossibilidade de proteger seus cidadãos faria com que o

Estado perdesse o direito de não intervenção e o único consentimento necessário seria o das

pessoas que estariam passando por esta situação e da opinião pública regional.

Existem alguns princípios que norteiam a execução de uma operação de manutenção da

paz: o consenso, a imparcialidade e o não uso da força.

Deve haver um consenso entre a ONU e as partes envolvidas no conflito. A ausência dele

caracterizará uma peace enforcement. Em uma operação de manutenção da paz, a ausência de

consenso ou o enfraquecimento ao longo da missão trazem o risco da peacekeeping se tornar

parte do conflito e ser arrastada para uma ação ofensiva e para longe de seus objetivos de manter

a paz. Por isso, deve haver um consentimento progressivo, os peacekeepers devem

constantemente trabalhar para não perdê-lo. O consentimento dá uma liberdade de ação, tanto

política quanto física, para a operação percorrer as tarefas do mandato.

A imparcialidade significa o não favorecimento de nenhuma parte. Não há um inimigo

para a força de paz, contudo, ela não deve ser confundida com a neutralidade na execução do

mandato.

O uso da força tem sido ampliado para a permissão do seu uso em defender o mandato. As

operações que têm um mandato robusto são as que podem utilizar todos os meios necessários39

para alcançar seus objetivos. Isso significa que o uso da força está permitido. Quanto mais

mandatos usando esta expressão mais o uso da força se dissemina por entre as operações de paz.

Este foi um artifício utilizado porque as intervenções enfrentavam contextos cada vez mais

hostis. Robusta ou mandato robusto é uma palavra usada para indicar que existe o uso da força.

As operações dificilmente alcançariam seus objetivos de pacificar as regiões se não coagissem e

impusessem a paz.

À medida que os conflitos foram mudando, as tarefas das operações de manutenção da

paz foram aumentando. O uso da força acompanhou as mudanças da peacekeeping e do cenário

internacional. Esta medida de coerção, contudo, não é eficaz se não houver uma continuidade de

39 Os mandatos têm se caracterizado pela expressão: use all necessary means.

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objetivos por meio de um peacebuilding40 ou o seu estabelecimento junto da operação de

manutenção da paz.

“Moreover, an operation may be required to switch to a more robust posture and back

again at various points in a mission´s lifecycle...41”

A ênfase no uso da força pode mudar durante a missão, robustecendo ou voltando a

enfraquecer a postura, por exemplo, de acordo com um programa de Desarmamento,

Desmobilização e Reintegração (DDR), durante um período eleitoral ou durante uma operação de

segurança.

Segundo o United Nations Peacekeeping Operations – Principles e Guidelines o uso da

força deve ser feito como último recurso. Ele deve:

ser usado de maneira precisa, proporcional e apropriada;

seguir o princípio de mínima força necessária para alcançar o efeito desejado;

manter o consentimento e o mandato.

Estes requisitos são necessários para que o uso da força seja utilizado caso outros métodos

de persuasão tenham se esgotado. Deve ser empregado de forma precisa com um objetivo

determinado para que não haja uma escalada da violência como reação.

Estes cuidados são explicitados porque o uso da força sempre tem implicações políticas

que podem levar a circunstâncias imprevistas. Se há estas várias ressalvas no documento é porque

o uso da força já foi feito de forma a levar a circunstâncias indesejadas. Além disso, o uso da

violência por combatentes e por peacekeepers pode ser confundido.

A legitimidade e a credibilidade também são objetivos a serem perseguidos e facilitam o

compromisso com os princípios.

A ação das missões de paz deve ser percebida como legitima e crível. A legitimidade vem

da obtenção do mandato antes que a missão seja executada e da representação ampla dos Estados

que contribuem com pessoal e com fundos. A credibilidade vem de crença de que há meios para

40 O termo utilizado nos documentos da ONU é peacebuilding, contudo também pode ser utilizada a sua tradução para o português que é construção da paz. 41 UNITED NATIONS. Op. Cit. p. 13. Além disso, uma operação pode ser obrigada a mudar para uma postura mais forte e novamente voltar em vários pontos durante o ciclo de vida de uma missão. (T.A.)

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alcançar o seu mandato e preencher as expectativas da população local, do Estado anfitrião e da

sociedade internacional.

A circunspeção no uso da força é um dos aspectos que gera legitimidade. Assim, a

conduta da tropa deve ser respeitável e as ações não devem ser abusivas. O comportamento do

pessoal da ONU não deve ser uma fonte de ressentimentos para a população local. Se isto ocorrer

as pessoas podem desenvolver um sentimento hostil em relação à operação e isso pode permitir

um retorno a um ambiente potencialmente perigoso.

O pessoal das operações de peacekeeping deve respeitar os direitos humanos tanto no

relacionamento com seus colegas de trabalho quanto no contato com a população local e devem

saber reconhecer abusos quando diante deles. As operações de manutenção da paz devem

respeitar as leis humanitárias internacionais, observando as quatro Convenções de Genebra de

1949 e os Protocolos Adicionais de 1977.

Os boinas azuis devem seguir também as políticas da ONU, apesar de não estar sob o

comando da Organização e sim sob a direção do comandante da força. Os níveis de autoridade

não são muito claros porque correspondem a uma organização complexa. Contudo, os militares

estão diretamente subordinados ao United Nations force commander42.

Quanto maior a credibilidade e quanto mais rápido o seu estabelecimento, menor a

necessidade de uso da força. Se a operação não for feita segundo os critérios adotados, o uso da

força no início da mesma pode levar a uma perda da credibilidade em um momento crítico no

qual as projeções de como a missão deve ser circunscrevem esperanças imensas. O

estabelecimento de uma missão gera altas expectativas de que as necessidades da população local

serão atendidas. Se isso não ocorre, pode gerar insatisfação ou oposição ativa por parte das

pessoas atendidas e da opinião pública internacional.

A promoção da propriedade local e nacional, isto é, a devolução das atividades

desenvolvidas pela ONU para o país, é uma forma de restituir o Estado a estas pessoas e ir se

retirando aos poucos de modo que eles possam preencher a responsabilidade de se organizarem e

de protegerem sua população. Isto gera credibilidade à missão por causa do cumprimento de seus

objetivos, da capacitação da população local e da devolução da autoridade a quem tem este

direito.

42 Comandante das forças das Nações Unidas (T.A.)

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A missão pode assumir algumas funções estatais, mas isto pode ser uma grande

intromissão e a população pode se sentir usurpada. Isto pode erodir a legitimidade da intervenção.

De acordo com a teoria da responsabilidade de proteger, a soberania é uma

responsabilidade e cabe primeiro ao Estado e depois à comunidade internacional. Portanto, assim

que os objetivos da missão tenham sido alcançados e a população capacitada para voltar a dirigir

o destino de seu país, a responsabilidade de proteger aos poucos vai voltando ao governo local.

Os peacekeepers devem estar atentos ao desenvolvimento destas capacidades e logo que

possível, o direito de propriedade deve ser devolvido à população. Isto é importante para que,

quando termine a peacekeeping, o Estado possa continuar forte e estabelecido e o conflito não

volte. Assim, eles poderão emergir do conflito como uma comunidade política nacional em que

outras transformações ocorrerão, mas não haverá uma ruptura do Estado de direito e da paz

social.

O Relatório Un Mundo Más Seguro43 foi elaborado ao longo do ano de 2003 por um

grupo de pessoas escolhidas pelo Secretário Kofi Annan e está preocupado em descobrir quais as

novas ameaças no contexto em que vivemos. Contudo, há nele uma parte dedicada somente ao

uso da força em que tenta compreender como a ONU faz uso desta ferramenta e faz algumas

recomendações para o seu uso. Como é um documento da ONU, entendemos que segue o mesmo

discurso da Capstone doctrine, mas se diferencia fazendo recomendações para o uso da força.

Para os formuladores deste relatório, o único capaz de autorizar o uso da força é o

Conselho de Segurança. Entretanto, este deve ser o último recurso utilizado. Quando último

meio, o uso da força deve estar baseado em cinco critérios:

gravidade da ameaça: a ameaça ao Estado ou ao ser humano deve ser

suficientemente clara e grave para justificar o uso da força militar;

propósito correto: o objetivo principal deve ser por fim a ameaça ou evitá-la;

último recurso: a força militar só deve ser utilizada após consideradas todas as

opções não militares;

proporcionalidade de meios: a escala, a duração e intensidade da ação militar deve

ser o exatamente necessário para enfrentar a ameaça e

43 Cf GRUPO DE ALTO NIVEL SOBRE LAS AMENAZAS, LOS DESAFÍOS Y EL CAMBÍO. Un Mundo Más Seguro: la responsabilidad que compartimos. New York: Grupo de Alto Nível sobre las amenazas, los desafio y el cambío, 2004, p. 60 – 71.

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balanço de consequências: deve haver fundamento para acreditar que o uso da

força militar faça desaparecer a ameaça e que o seu uso não seja pior do que não

fazer nada.

O uso da força também deve ter suas diretrizes especificadas na resolução do Conselho de

Segurança que antecede sua efetivação.

Os formuladores do relatório constatam que o uso da força para impor a paz tem cabido a

forças independentes porque a ONU não tem efetivos militares. Roberts44 conclui que quando

não há consentimento, os Estados têm assumido o papel de líderes da missão, demonstrando que,

quando se trata de uso da força, eles não perderam o seu papel principal.

Contudo, casos como Ruanda e Darfur nos fazem concluir que esta válvula de escape não

funciona em todos os casos e que existe a necessidade de haver interesses nacionais envolvidos

para que um país mobilize seus efetivos militares.

Apesar de serem os países os responsáveis por fazerem o uso da força em casos de falta

de consentimento, Un mundo más Seguro requer que os países preparem suas tropas para missões

de paz e disponibilizem maiores efetivos para este emprego. Talvez pelo fato destes exércitos

ainda estarem voltados para funções da Guerra Fria sejam eles os que mais consigam, pela

percepção de Roberts, atender às missões que não têm consentimento do país em questão.

Uma resposta pronta e eficaz seria possível se os países oferecessem um maior número de

contingentes de forma veloz. Eles percebem que há a necessidade de agir rapidamente para que

os conflitos não aumentem ou para que os acordos costurados não deteriorem. Entretanto, não

conseguem propor alternativas para que, no nível estratégico, Conselho de Segurança e

Assembléia Geral, produzam as respostas céleres e precisas. A necessidade de resolver questões

políticas neste nível da ação interventora o torna lento e às vezes inoperante. Os planos

operacionais e táticos também têm questões políticas a serem tratadas, mas as regras a serem

seguidas já foram estabelecidas anteriormente e as experiências de outras situações levam a uma

ação, normalmente, mais rápida.

44 Cf. ROBERTS, Adam Sir. The United Nations and Humanitarian Intervention. In: WELSH, Jennifer. Humanitarian Interventions and International Relations. New York: Oxford University Press, 2006

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Como no outro documento da ONU, a distinção no uso da força se faz pelas situações que

enfrentam. Então, por exemplo, a reação a uma invasão de fronteiras será mais violenta do que o

uso da força durante um cessar-fogo.

Ainda, de acordo com o documento precedente, a diferenciação entre o capítulo VI e VII

presentes nos mandatos das operações é exagerada. Entende-se que as missões em virtude do

capítulo VI sem faculdades coercitivas têm o direito de usar a força não só em legítima defesa,

mas também em defesa da missão. Os autores de Un mundo más seguro entendem que,

independentemente do capítulo, o importante é que o mandato seja adequado, prevendo todos os

recursos necessários, bem como as circunstâncias que a missão pode enfrentar.

O objetivo da missão é proteger os civis, o que inclui não só o uso da força, mas a

capacidade de negociação com combatentes para chegar aos civis, financiamento da assistência

humanitária e não permissão da militarização por grupos armados de campos de refugiados. O

segundo alvo da missão é proteger seu pessoal.

A previsão de que uma operação de manutenção da paz deve ser estabelecida apenas

mediante um acordo de paz ou um cessar-fogo gera alguns problemas para a previsão do uso da

força. A assinatura do acordo pode não ter sido realizada por todas as facções, nem todos podem

estar realmente comprometidos, alguns podem crer que sairão perdendo e que seus interesses

serão prejudicados.

Um cessar-fogo é somente o que o nome diz: um compromisso de suspender o uso da

força militar. Entretanto, as questões do conflito ainda podem estar em suspenso e podem voltar

a influenciar negativamente o diálogo e fazer os confrontos retornarem.

Os acordos de paz estabelecidos entre governos ou rebeldes que abusam maciçamente dos

direitos humanos são frágeis e “no sirven para nada y no se pueden poner en práctica45”.

A situação é instável e neste documento fala-se mais claramente que, mesmo havendo o

acordo de paz, a força prevista deve ser maior, capaz de enfrentar conflitos, coagir rebeldes e

estabilizar situações confusas. É uma peacekeeping com forma de peace enforcement. Os

contingentes militares devem ser suficientes para coagirem as partes a entrarem em acordo e

firmarem a paz, pois o consentimento é frágil e as situações de violência deflagrada podem, com

grande probabilidade, voltar a ocorrer.

45 GRUPO DE ALTO NIVEL SOBRE LAS AMENAZAS, LOS DESAFÍOS Y EL CAMBÍO. Op. Cit. p. 67. não servem para nada e não podem ser postos em prática. (T.A.)

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Un mundo más seguro sugere a criação de um órgão intergovernamental dedicado às

tarefas de consolidação da paz. Ele capacitaria as pessoas a manter e fortalecer a estabilidade em

seus países e controlaria para que, a um sinal de deterioração da situação, sejam efetivados

reforços objetivos, indicados exatamente para a questão em processo de mudança. Desta forma,

evitaria o retorno da situação ao estágio de conflito.

3.3 A política externa americana pós 11 de setembro

A doutrina Bush não é uma reação direta aos ataques de 11 de setembro46. No período

governamental que os antecedeu e na campanha presidencial, a doutrina já estava sendo

delineada.

Desde o fim da Guerra Fria há uma busca por uma nova estratégia de ação internacional

que tem sua formulação antes dos atentados, mas que só recebe denominação após este evento. A

Guerra contra o Terrorismo é, no discurso americano, uma cruzada mundial contra o terror e, na

prática, a predominância de atitudes unilaterais, centradas em seus interesses e em detrimento de

acordos, normas ou regras internacionais47. Após os atentados, há um aumento da ocorrência

destas ações respaldadas pelo argumento de combate ao terrorismo. Não existe realmente uma

guerra contra o terror, existe o terror como nova ameaça. A guerra é realmente contra países e o

terror é enfatizado no discurso48.

Esta política foi expressa no discurso de 20 de setembro de 2001, no qual estão presentes

os pontos balizadores desta teorização.

O primeiro seria a formação de uma coalizão de países contra o terrorismo internacional.

Esta formação foi iniciada pela adesão da Grã-Bretanha, seguida pelas inúmeras manifestações de

solidariedade de países do mundo todo (tanto da parte ocidental, quanto da parte islâmica), pela

evocação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) nas Américas e pela

Europa, que, pela primeira vez, recorreu aos artigos de defesa militar da Carta da Organização do

46 Ataque terrorista da Al-Qaeda a alguns símbolos do poder americano como o Pentagono e o World Trade Center. 47 Cf. TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. O Império e o Estado-nação Hoje: uma História Comparada. In: COSTA, Darc.; TEOXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira. (Org.). Mundo Latino e Mundialização. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2004. 48 Cf. PRESS-BARNATHAN, Galia. The War against Iraq and International Order: From Bull to Bush. International Studies Review, v. 6, Issue 2, pp.195–212, 2004.

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Tratado do Atlântico Norte (OTAN)49. A constituição desta coalizão se reflete na frase “Either

you are with us or you are with the terrorists”50.

O segundo aspecto seria o apelo aos ideais da liberdade e da democracia. Neste discurso,

essencialmente ideais que caracterizariam os Estados Unidos. A intenção é levar estes valores de

forma quase messiânica ao resto do mundo, principalmente, aos países tidos por eles como

terroristas.

Por último indica quem são os inimigos americanos. O terrorismo e a Al Qaeda, mas

também todos os regimes que apóiam o terrorismo são identificados como o mal e o mal é o que

os Estados Unidos devem eliminar.

Uma das manifestações desta doutrina foi o Ato Patriótico51 que suprimia várias formas

de liberdade dentro dos Estados Unidos no intuito de prevenir novos atentados. Outra mostra da

Guerra contra o Terrorismo foi a invasão do Afeganistão e a manifestação do princípio de ataques

preventivos a países que apoiassem o terrorismo ou desenvolvessem armamentos perigosos à

segurança mundial52. A terceira grande ação unilateral foi a invasão ao Iraque sem o apoio da

ONU ou de qualquer organização internacional53.

A OTAN assumiu a o comando da International Security Assistance Force (ISAF) no

Afeganistão, em 2003 e a ONU reconheceu a ocupação americana e britânica no Iraque 54. No

caso do Afeganistão, que aconteceu logo após os ataques de 11 de setembro, os EUA receberam

apoio da comunidade internacional, principalmente dos países ocidentais, que também se

sentiram ameaçados pelo terrorismo. A ação foi desenvolvida no âmbito da ONU. No Iraque o

respaldo da ONU foi buscado através do Conselho de Segurança, mas o consenso por meio da

retórica do terrorismo já havia ruído, e não foi aprovada uma resolução que enviasse uma missão

para aquele país.

49 TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Guerra Contra o Terrorismo. In: Francisco Carlos Teixeira da Silva. (Org.). Enciclopédia de guerras e revoluções do século XX: As grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004. 50 ou vocês estão conosco ou estão com os terroristas (T.A.) National Address de 20/09/2001 em uma seção do Congresso Americano. 51 Patriotic Act, 24 de outubro de 2001. 52 Cf. TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. O Império e o Estado-nação Hoje: uma História Comparada. In: COSTA, Darc.; TEOXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira. (Org.). Mundo Latino e Mundialização. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2004. 53 Cf. BUZAN, Barry.; GONZALEZ-PELAEZ, Ana. “International Community” after Iraq. International Affairs, v. 81, Issue 1: pp. 31-52, 2005. 54 Cf. Ibid.

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A crise entre EUA e ONU passou rapidamente e foi substituída pela falta de planos

coerentes para a reconstrução e ocupação do Iraque. Os países ocupantes ainda sofreram forte

resistência interna com atentados constantes de várias formas para abalar a legitimidade da

ocupação55.

Press-Barnathan56 acredita que, apesar do unilateralismo, as instituições internacionais

foram fortalecidas por esta estratégia de segurança americana porque na intervenção no Iraque os

EUA tiveram que voltar a ONU para buscar apoio internacional para sua ação. Ir à guerra sozinho

ou em coalizão significa ficar fora do consenso internacional em torno daquela questão e os EUA

não mantiveram esta posição por longo tempo, tendo que recuar e requerer a atuação da ONU e

de outros países. Isto quer dizer que seu grande poder de destruição não necessariamente lhe deu

legitimidade internacional.

Apesar do reconhecimento da ONU, o Iraque não é uma operação de paz. A ocupação

americana foi reconhecida pela resolução 1483 do Conselho de Segurança e a ONU passou a ter

um papel na reconstrução do país57.

A ONU atua no Iraque sob um mandato essencialmente político de: assistir na escolha do

Conselho Consultivo; aconselhar a Comissão Eleitoral, o governo e a Assembléia Nacional

iraquiana durante o processo eleitoral; promover o diálogo, consenso e reconciliação nacional

para a formulação de uma constituição; aconselhar o governo do Iraque no desenvolvimento de

serviços civis e sociais; contribuir na reconstrução, desenvolvimento e assistência humanitária;

promover o respeito aos direitos humanos, a reforma judicial e legal para que haja um reforço do

direito no Iraque e assistir bem como aconselhar na formulação de um plano inicial de conduta de

um censo compreensivo58.

Assim, tanto no Iraque, quanto no Afeganistão, a operação da ONU desenvolvida é

política. A missão no Iraque é comandada pelo Department of Political Affairs e a do

Afeganistão é dirigida pelo Department of Peacekeeping Operations, ambos órgãos da ONU.

Para nós é importante perceber quais são as prioridades do governo americano em termos

de segurança internacional e entender quais as tendências de emprego do uso da força pelos

contingentes dos EUA.

55 Cf. Ibid. 56 Cf. PRESS-BARNATHAN, Galia. Op. Cit. 57 Cf. MURPHY , Sean D. Security Council Recognition of U.S. Postwar Role in Iraq. The American Journal of International Law, v. 97, nº. 3, pp. 681-683, Jul.,2003. 58 De acordo com a Resolução 1546 do Conselho de Segurança da ONU. www.un.org.

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O questionamento do Conselho de Segurança em torno do Iraque também foi sobre

quando é legítimo usar a força em outros países soberanos. Segundo a doutrina americana da

Guerra contra o Terrorismo seria na prevenção de futuros ataques, defendendo o mundo do uso

de armas de destruição em massa. Esta crise trouxe a questão da legitimidade do uso da força sem

um acordo coletivo e apenas sob a suspeita de que pudesse haver alguma ameaça. A falta de

apoio da comunidade internacional e a percepção de que não há um respaldo do direito

internacional nos indica que a guerra no Iraque não abrirá precedentes para ações sem a

autorização do Conselho de Segurança59.

A guerra nestes lugares foi desenvolvida por meio de uma operação militar que visa o

menor número de mortes de soldados americanos e aliados possível. A doutrina Powell60, como é

chamada, prima pelo uso abundante de meios tecnológicos e pouca ação em terra.

O argumento do Afeganistão foi a caça ao grupo terrorista Al Qaeda e a Bin Laden e no

Iraque a busca de armas de destruição em massa desenvolvidas e armazenadas durante o governo

de Sadam Hussein. Todas elas foram desenvolvidas pela retórica da Guerra contra terrorismo e

são demonstrações do poder americano no mundo. O humanitarismo e a reconstrução destes

países não os leva a ser intervenções humanitárias e tampouco os fazem justificáveis pela

doutrina da responsabilidade de proteger ou por qualquer regra das Nações Unidas.

3.4 Documento americano: FM 3-07

A Capstone doctrine e o Relatório Un mundo más Seguro não fazem referência a táticas,

técnica e procedimento militares, pois entendem que eles são prerrogativas dos Estados membros,

a quem caberá o envio de soldados às operações de paz. Por isso, as doutrinas militares utilizadas

serão as dos países membros. Eles têm sua própria forma de atuar e seus próprios princípios

militares.

59 BUZAN, Barry.; GONZALEZ-PELAEZ, Ana. “International Community” after Iraq. International Affairs, v. 81, Issue 1: pp. 31-52, 2005. 60 TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Guerra Contra o Terrorismo. In: Francisco Carlos Teixeira da Silva. (Org.). Enciclopédia de guerras e revoluções do século XX: As grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004.

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Usamos documentos do exército americano que por serem específicos para operações de

paz carregam o discurso americano sobre este assunto, mas também tentam se conformar aos

princípios da ONU.

O exército é uma organização de luta militar, o que faz com que ele atue bem em

operações de estabilidade e nas de apoio61. Estes são os tipos de operações que são utilizadas nas

missões de paz. É uma operação que pode responder tanto a conflitos como a desastres naturais,

estrangeiros ou domésticos. É a forma ideal a ser empregada em um desenvolvimento estratégico.

O documento FM 3-07 frisa que o exército é utilizado em operações de estabilidade e

operações de apoio porque as políticas e leis americanas permitem que seja assim e porque a

capacidade do exército é o que melhor atende aos requisitos.

Estas atividades cooperativas, desenvolvimento em tempos de paz e ações coercitivas são

também utilizadas para promover e proteger os interesses nacionais.

Stability operations promote and protect US national interests by influencing the threat, political, and information dimensions of the operational environment through a combination of peacetime development, cooperative activities and coercive actions in response to crisis (FM 3 – 0). Army forces accomplish stability goals through engagement and response. The military activities that support stability operations are diverse, continous, and often long-term. Their purpose is to promote and sustain regional and global stability62.

Diferentemente dos documentos produzidos no âmbito da ONU, este documento enfoca

os interesses nacionais. Isto porque tratamos de um manual do exército americano que se debruça

sobre o tema das técnicas a serem empregadas em missões de paz quando chamados pela ONU

para integrarem os contingentes militares. Este documento é portador do discurso americano de

formação nacional e precisa estar de acordo com a Estratégia de Segurança Nacional.

61 No inglês Stability operations e support operations. Cf. DEPARTMENT OF THE ARMY. Stability Operations and Support Operations – Field Manual 3 – 07. Washington, DC: Department of the Army, 2003, p.1-2. 62 Ibid, p.1-2. Operações de estabilidade promovem e protegem os interesses nacionais dos EUA, influenciando a ameaça, as dimensões políticas e de informações do ambiente operacional mediante uma combinação de desenvolvimento em tempos de paz, atividades cooperativas e ações coercitivas em resposta à crise (FM 3 - 0). As forças do Exército alcançam objetivos de estabilidade por meio de empenho e da capacidade de resposta. As atividades militares que sustentam as operações de estabilidade são diversas, contínuas, e muitas vezes em longo prazo. O seu objetivo é promover e apoiar a estabilidade regional e global. (T.A.)

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“In exercising our leadership, we will respect the values, judgement, and interests of our

friends and partners. Still, we will be prepared to act apart when our interests and unique

responsibilities require63”.

O propósito do exército americano seria o de lutar pelos interesses nacionais, refletindo a

matriz de formação do exército nacional. Mesmo que tentando se adequar às novas ameaças, os

americanos respondem de forma realista aos desafios impostos às tropas que participam das

missões de paz.

“The Army, as an instrument of national power, promoted and protected national

interests, and relieved human suffering64”.

Ao longo de sua existência, o Exército não poderia se furtar da busca contínua da

promoção dos interesses nacionais domesticamente e internacionalmente. Ele também se propõe

a fazer isto em qualquer situação, mesmo que em missões de paz, e assim pode desempenhar,

ainda que como boinas azuis, a sua função de instrumento do poder nacional.

Eles conseguem uma forma de juntar os seus objetivos como país às práticas

humanitárias.

Many modern conflicts do not directly affect the interests of the United States. Others, however, affect US humanitarian interests, acess to markets and materials, the safety of our citizens, and the stability necessary to sustain democratic government. These threats to US national interests may require stability operations or support operations in response65.

Os objetivos do país são muito mais do que a busca de ganhos, dentro destes há uma série

de outros que diretamente os afetam. Os interesses humanitários são um guarda chuva grande

aplicável às intervenções humanitárias e que permite ao exército americano decidir onde farão

parte de uma intervenção da ONU. Isto também os permite intervir unilateralmente em um

63 National Security Strategy of the United States of America, White House, NSC, 2002, p. 31. No exercício de nossa liderança, vamos respeitar os valores, o julgamento, e os interesses de nossos amigos e parceiros. Ainda assim, vamos estar preparados para agir a parte quando nossos interesses e responsabilidades únicas exigirem (T.A.). 64 DEPARTMENT OF THE ARMY. Stability Operations and Support Operations – Field Manual 3 – 07. Washington, DC: Department of the Army, 2003, p.1-7. O Exército, como um instrumento de poder nacional, promoveu e protegeu os interesses nacionais, e aliviou o sofrimento humano. (T.A.) 65 Ibid, p.1-8. Muitos conflitos modernos não afetam diretamente os interesses dos Estados Unidos. Outros, no entanto, afetam os interesses humanitários, acesso a mercados e materiais, a segurança dos nossos cidadãos, bem como a estabilidade necessária para sustentar um governo democrático. Estas ameaças aos interesses nacionais americanos podem exigir operações de estabilidade ou operações de apoio em resposta. (T.A.)

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conflito para buscar qualquer um destes alvos. Estes interesses americanos devem ser

implementados pelo exército, mesmo que em conjunto com outras forças.

Segundo este manual, a participação do exército americano no mundo demonstra o

compromisso deles, melhora o diálogo com outras organizações, reafirma as alianças, promove a

transparência, transmite os ideais democráticos, detém a agressão e ajuda a conter fontes de

instabilidade antes que se tornem crises militares.

Os ideais americanos estão mais uma vez desempenhando a função de plataforma de ação

dos EUA no mundo e agem como fonte de transmissão do american way of life.

Nas operações de estabilidade podem existir missões ofensivas e defensivas e não só de

monitoramento de situação. Este tipo de missão seria útil para destruir as forças que procuram

desafiar a operação e para defender a sua atuação.

Se analisarmos a Capstone doctrine perceberemos que há uma sintonia com este manual

do exército americano, o FM 3-07. Quando o documento da ONU fala em defesa do mandato,

apesar de não falar explicitamente, permite que haja uma certa agressividade na operação.

Uma operação de paz é conceituada da seguinte maneira:

“PO are multiagency operations involving diplomatic and humanitarian agencies with

military support. They may be conducted to prevent or control a conflict, in support of a peace

settlement, or in response to a complex emergency66.”

É um conceito que entende o papel militar em conjunto com outros papéis

desempenhados em uma operação por outras agências. A previsão de operações de apoio é

também a compreensão de que o efetivo militar pode desempenhar funções outras que não

militares, como a de ajuda humanitária, através de reconstrução de infra-estrutura, atendimento

médico, socorro à população etc.

Mais especificamente uma manutenção da paz é diferenciada de imposição da paz.

Peacekeeping consists of military operations undertaken with the consent of all

major parties to a dispute, designed to monitor and facilitate implementation of a agreement (cesasefire, truce, or other such agreement) and support diplomatic efforts to reach a long-term political settlement67.

66 Ibid., p. 4-2 PO são operações que contem várias agências, envolvendo agências diplomáticas e humanitárias com o apoio militar. Eles podem ser realizados para prevenir ou controlar um conflito, em apoio de um acordo de paz, ou em resposta a uma emergência complexa. (T.A.) 67 Ibid., p. 4-3.

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Compreende todos os pontos presentes nos documentos da ONU como consenso e

monitoramento de um acordo. Contudo, prevê a força como forma de promover o consenso.

The peacekeeping force must use all techniques available, short of coercive force, to gain and mantain the initiative. Using force in a pecekeeping mission is generally limited to self-defense. The force maintains and promotes consent so the political process can continue to guide the parties to a lasting settlement. A loss of consent by the parties usually necessitates the withdrawal of the peacekeeping force or change in its mission to one of peace enforcement68.

Prevê o uso da força como forma de promover o consenso. A coerção seria uma aliada das

tropas em missão de paz. Há uma ênfase militar natural em um documento feito com propósito de

estabelecer os parâmetros de atuação do exército.

Em uma manutenção da paz, apesar de armado, o exército desempenha as funções de

supervisionar e assistir o estabelecimento da paz. Caso haja alguma infração, a única ação que

pode implementar é a de reportar as transgressões às instâncias superiores. Na imposição da paz,

o exército pode intervir em uma disputa e até separar as partes no conflito através da força.

Peace enforcement (PE) is the application of military force, or the threat of its use, normally pursuant to international authorization, to compel compliance with resolutions or sanctions designed to maintain or restore peace and order (JP 3-07). PE operations are by definition coercive in nature and rely on the threat or use of force. However, the impartiality with which the peace force treats all parties and the nature of its objectives separates PE form war69.

A Manutenção da paz consiste de operações militares realizadas com o consentimento de todas as principais partes envolvidas em uma disputa, concebida para acompanhar e facilitar a implementação de um acordo (cessar-fogo, trégua, ou outro acordo desta natureza) e apoiar os esforços diplomáticos para chegar a um compromisso político de longo prazo. 68 Ibid, p. 4-3. As forças de manutenção de paz tem de usar todas as técnicas disponíveis, um pequeno uso da força coercivas, para ganhar e manter a iniciativa. O uso da força em uma missão de manutenção da paz é geralmente limitada à auto-defesa. A força mantém e promove o consenso para que o processo político possa continuar a orientar as partes para uma solução duradoura. Uma perda de consentimento das partes geralmente exige a retirada das forças de manutenção de paz ou a mudança na sua missão para uma de imposição da paz. (T.A.) 69 Ibid., p. 4-6 A imposição da paz (PE) é a aplicação de força militar, ou a ameaça de seu uso, normalmente, nos termos da autorização internacional, para obrigar o cumprimento das resoluções ou sanções concebidas para manter ou restabelecer a paz e a ordem (JP 3-07). PE são operações, por definição, de caráter coercivo e se baseiam na ameaça ou uso da força. No entanto, a imparcialidade com que a força de paz trata todas as partes envolvidas e a natureza dos seus objetivos separa a PE da guerra. (T.A.)

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A conceituação de uma imposição da paz está no uso disseminado da força como em uma

guerra. A diferença em relação a uma guerra não está no uso da força, mas na imparcialidade de

tratamento das partes envolvidas no conflito. Elas não são o inimigo das unidades de paz, o

conflito sim é o inimigo. A ONU, segundo o FM 3-07 não está preparada para desenvolver uma

operação como esta, as organizações regionais e as coalizões de Estados seriam as capacitadas a

proceder neste arranjo.

Existem várias considerações que devem ser feitas a uma organização militar que se

propõe a agir como força de paz. Estas considerações são importantes porque diferenciam esta da

ação militar tradicional:

eles agirão por meio de cooperação em ações multinacionais;

a capacidade e a legitimidade do país anfitrião devem crescer durante sua permanência no

país;

as consequências não intencionais das ações de indivíduos e pequenas unidades podem

afetar a operação toda;

devem ter a capacidade de usar a força de um modo não ameaçador;

devem agir decisivamente para prevenir a escalada da violência e

devem aplicar a força seletivamente e discriminadamente70.

O exército tem um desafio no que tange ao uso da força, que deve ser usada de uma forma

diferente das operações ofensivas e defensivas. A tropa deve ser capaz de mostrar força e

resolução sem ameaçar as pessoas. Deve estar preparada para combater, mas não provocar a

criação de adversários. Apesar de em momentos de paz, “The force should convey to all parties

the breadth and depth of the resources available71”.

Se o ambiente pacífico criado sofrer um processo de deterioração, então as forças terão

que agir com iniciativa, velocidade e determinação.

“Units and individuals pursue military objetives energetically and apply military power

forcefully if required. Army forces may act decisively to dominate a situation by force or

negotiate to settle disputes72”.

70 Cf. Ibid, p. 1-4 e 1-5. 71 Ibid, p. 1-5. A força deverá transmitir a todas as partes a amplitude e a profundidade dos recursos disponíveis (T.A) 72 Ibid., p. 1-5

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Esta ação compreenderia algum grau de agressividade, dando a eles credibilidade pela

resolução rápida. Eles entendem que o conflito pode ser resolvido de uma forma diferente por

meio de uma negociação, contanto que haja velocidade nesta ação. Uma falha em agir

decisivamente os faria perder o respeito perante a população.

Estas ações rápidas devem usar a força com parcimônia, decisivamente, mas sem excessos

e de acordo com as limitações prescritas nos acordos entre as partes. O uso exagerado da força

pode levar a uma perda do apoio local e a uma descrença da missão ante a sociedade

internacional. Isto pode ameaçar o procedimento da missão.

As operações decisivas em operações de estabilidade são as que cumprem os seus

objetivos, normalmente de proteger vidas e propriedades ou promover a paz. Elas não têm

resultados imediatos, mas o impacto das ações é visto a longo prazo. Elas podem ser bem

diferentes como o desarmamento de beligerantes ou a condução de eleições.

Nestas operações não há um inimigo e ele não pode ser criado. Deve haver o

entendimento de que existem obstáculos a serem ultrapassados e pessoas e agências que precisam

de apoio. Se este conceito for quebrado, a imparcialidade não será mantida e a missão pode

perder sua legitimidade. A peacekeeping pode ser arrastada para dentro da disputa.

In PO, it is the conflict and not the parties to the conflict that is the enemy. In complex contingencies, it may be hunger or disease and not competing political factions that is the enemy ... Commanders must guard against taking actions that would inadvertently create an enemy where there was not one 73.

A própria população pode ou não ser hostil. Isto não faz deles inimigos, mas sim causa

um desafio a ser entendido e enfrentado.

As operações de estabilidade podem ser usadas não só em missões de paz, mas também

para prevenir, deter ou responder ao terrorismo. Isto é um reflexo do 11 de setembro nos

documentos americanos. Quando falam que estas missões servem também para promover a

liberdade da opressão, subversão, falta de lei e insurreição é uma forma de adequar a operação do

Unidades e indivíduos buscam objetivos militares com energia e aplicam o poder militar energicamente, se for necessário. As forças do Exército podem agir de forma decisiva para dominar uma situação por meio da força ou pela negociação para resolver os litígios.(T.A.) 73 Ibid., p. 2-14. PO é peace operations que em português seria operação de paz. Na PO, é o conflito e não às partes no conflito que é o inimigo. Nas contingências complexas, pode ser fome ou doença, e não facções políticas concorrentes, o inimigo ... Os comandantes devem se precaver contra a adoção de medidas que inadvertidamente podem criar um inimigo onde não havia um. (T.A.)

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Afeganistão nesta categoria. Esta sugestão aproxima as guerras no Afeganistão e no Iraque à

categoria de missões de paz em vista do uso das mesmas formas de atuação (operações de

estabilidade) nos dois momentos.

Esta aproximação causa um problema de conceituação pois em uma intervenção como no

Iraque ou no Afeganistão, o exército americano é força beligerante. Já nas operações de paz,

deve haver o distanciamento desta posição. Ele deve ser um elemento fora do conflito.

Estas operações de estabilidade e de apoio devem se acomodar às novas situações

surgidas durante o período da missão. Elas devem ter versatilidade para mover de um tipo de

operação para outro.

O uso da força está baseado em apoio e proteção. Capacidades letais são previstas pois

são um poder de dissuasão das forças hostis. Este caráter mortal pode gerar uma violação de

cessar –fogo e responsabilidades por mortes de civis. Portanto, deve ser evitado ou usado com

muito cuidado e segundo os procedimentos previamente estabelecidos.

Existem princípios a serem seguidos que não são necessariamente os mesmos

determinados pela ONU. Os princípios são: consenso, imparcialidade, transparência, restrição,

credibilidade, flexibilidade, legitimidade, perseverança, comando e controle, relacionamento de

comando e coordenação.

O consenso deve ser buscado ao longo da missão. Uma perda do consentimento das partes

pode levar a uma escalada da violência. A FM 3-07 acredita que a capacidade do exército deve

ser aumentada para que o acordo de paz seja pressionado a um compromisso maior.

A imparcialidade, como já falado dentro de uma peacekeeping e de uma peace

enforcement, deve ser mantida. A operação de paz não tem inimigos e deve, portanto, tratar as

partes no conflito de forma igual.

A transparência significa que a força deve comunicar seus objetivos a todos: para a

população, para os beligerantes e para a opinião pública internacional.

A restrição é a limitação no emprego das capacidades militares. Mais do que uma

recomendação, no manual do exército se torna um princípio.

“When force is used, it should be precise and overwhelming to minimize friendly and

noncombatant casualties and collateral damage74.”

74 Ibid., p. 4-16 Quando a força é usada, deve ser precisa e abundante de forma a minimizar a morte em forças amigas e não-combatente e danos colaterais. (T.A.)

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Apesar da restrição, existem casos em que a força será usada de forma precisa e

esmagadora para que seu uso seja rápido. Para estabelecer a dominação dos EUA e para alcançar

os seus interesses nacionais, o uso da força sem parcimônia é permitido. Isto deve estar presente,

contudo, nas Regras de Engajamento (Rules of Engagement – ROE)75.

A força deve ser equipada e preparada de forma a alcançar seus objetivos. Isto aumenta a

credibilidade frente à opinião pública. A recuperação da liberdade de movimento, tanto das forças

armadas quanto da população civil para qualquer lugar do espaço determinado para a operação

seria algo que creditaria credibilidade à missão.

A flexibilidade é a possibilidade de mudar a tarefas, as missões e as operações à medida

que o contexto vai mudando. Para que a força possa mudar rapidamente de posição, ela precisa

estar devidamente equipada, capacitada e com sua capacidade logística atuante. As operações

civil-militares funcionam como instrumentos da flexibilidade, harmonizando a interação entre a

esfera civil e a militar, para determinar qual a área de cada uma e em que parte deve haver

cooperação.

A legitimidade é a percepção que a população, as facções beligerantes e a opinião pública

internacional devem ter da legalidade, moralidade e correção das ações empreendidas pela

operação de paz. A percepção da legitimidade só poderá ser mantida se as normas no uso da força

e os princípios humanitários forem seguidos.

A perseverança diz respeito ao longo prazo de comprometimento do exército com a

operação. Deve haver uma estratégia e objetivos que permitam a sua permanência por um longo

período.

Quanto ao comando, o desafio é trabalhar fora da estrutura a que estão acostumados e

treinados. Esta área é integrada pelos arranjos e relacionamentos complexos entre a ONU e o

exército do país membro. São formadas por ações unificadas, mas multinacionais e com a

integração de várias agências. Nestas ações podem existir casos em que os agentes não controlam

75 Regras de Engajamento (ROE), segundo o FM 3-07, são procedimentos emitidos por autoridades militares competentes para determinar as circunstâncias, o lugar, o momento, contra quem e quais os limites em que uma unidade pode usar a força. Os comandantes e conselheiros legais formulam as regras que precisam ser coerentes com as leis domésticas, com a lei internacional e políticas da central de comando. A ROE pode ser mudada de acordo com o aumento ou redução das hostilidades na região. Para mais informações ver: DEPARTMENT OF THE ARMY. Stability Operations and Support Operations – Field Manual 3 – 07. Washington, DC: Department of the Army, 2003, Appendix C, pp. C-1 a C-6; PROENÇA JÚNIOR, Domício. O enquadramento das Missões de Paz (PKO) nas teorias da guerra e de polícia, v. 45, nº 2, pp. 147 a 197, july/dec 2002.

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diretamente seus comandados. Na ausência de comando deve haver cooperação, negociação e

consenso para alcançar uma unidade.

Existem vários níveis de autoridade ao qual o comandante do exército americano deve se

reportar. As direções e autoridades políticas emanam do Conselho de Segurança, a direção e

controle executivo pertencem ao Secretário-Geral e a autoridade no campo se volta para o chefe

da ONU na missão.

Independentemente, se o objetivo é humanitário, político ou militar há que haver uma

coordenação de esforços para que a missão possa andar junta e para que os objetivos

determinados possam ser avançados em todas as áreas.

3.5 Considerações sobre as diferenças de abordagem entre os documentos da ONU e dos EUA

Ao longo deste capítulo tentamos analisar os parâmetros delineados para a atuação em

operações de paz tanto concebidos pela ONU quanto pelos EUA, um dos principais países

atuantes em missões de paz. Tentamos também perceber como a imagem do uso da força foi

influenciada pelos fatores externos e pela emergência de novas teorias e como esta mudança foi

absorvida pelos documentos oficiais destas instituições.

Tentamos compreender como as regras e princípios se relacionam com o uso da força e

não nos detivemos apenas neste uso especificamente, apesar de legarmos espaço especial à sua

análise.

Percebemos que os documentos da ONU tratam menos do uso da força e, quando há

necessidade, ressaltam diversas condições de uso. Na Capstone Doctrine há diversas ressalvas ao

uso da força diante do perigo de perder o consenso; já a coerção através da força na FM 3-07 é

um instrumento da peacekeeping. Nele há uma constante referência ao uso da força para enfrentar

agressões que ultrapassam fronteiras, conflitos internos, ameaças transnacionais,

desenvolvimento e proliferação de tecnologias militares perigosas e desastres humanitários.

Como o ofício do exército se relaciona com o uso da força, ele tende a se referir a ela com

mais liberdade e coloca o seu foco neste uso. Assim, por exemplo, a retirada das forças na

Capstone doctrine está baseada em deixar a população preparada para retomar o controle de seu

Estado; no FM 3-07 está baseada nas tropas estarem, o mais rápido possível, preparadas para

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futuras operações. Indo mais além, o FM 3-07 fala em agressividade, o que não está explicitado

nos documentos da ONU, que falam em defender a si mesmo e ao mandato.

Os documentos da ONU incorporam apenas parcialmente alguns aspectos da teoria da

responsabilidade de proteger, por exemplo, quando tratam da devolução da autoridade ao povo do

país em que a operação foi realizada. Esta teoria é utilizada no pós-conflito, mas não no momento

anterior e no transcorrer dos confrontos, ou seja, não é tratada no que diz respeito à prevenção e

solução de conflitos por meio de instrumentos coerentes com a segurança humana.

O manual americano não incorpora esta teoria, apenas a toca quando tenta entrar em

acordo com os procedimentos da ONU. Ele se adapta às novas ameaças que são postas com a

retórica da Guerra contra o terrorismo.

Além disto, o princípio de não uso da força não faz parte das operações militares apesar

de fazer parte das operações da ONU, o que torna a junção das duas algo muito complicado,

ainda que sejam feitas várias exceções a este princípio. Acima dos interesses humanitários estão

os interesses nacionais. Então, para defender estes últimos, a força também pode ser usada. Este

tema da busca dos interesses nacionais não se coaduna com as teorias propostas no relatório Un

Mundo Más Seguro, que fala em um propósito correto que seria somente o objetivo de pôr fim à

ameaça ou evitá-la.

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CONCLUSÃO

É normal que as operações de paz tenham mudado ao longo dos anos. O aumento de sua

utilização como forma de manter a paz e segurança internacionais proporcionaram um acúmulo

de experiências, fazendo com que elas se modificassem para melhor se adaptar às situações.

Além disso, houve um aumento do que se entendia como ameaça e isto levou à atuação em

situações novas e violentas. As operações têm agido em ambientes mais instáveis, o que requer o

maior uso da força por parte dos peacekeepers da ONU. Portanto, as operações têm enfrentado

duas mudanças no que tange ao uso da força: contextos mais violentos e a necessidade de buscar

a paz nestes contextos, o que leva a um maior emprego da força como instrumento de

convencimento e coerção.

Não é difícil imaginar que, delineado este quadro, a forma de proceder em uma missão de

paz tenha mudado e dentro disto tenha mudado também a imagem do uso da força. Há a evolução

para um pensamento em que intervenção humanitária está sempre associada ao conceito de uso

da força.

Para que esta mudança no emprego do uso da força e a incorporação pelos documentos

oficiais acontecessem foi preciso que houvesse duas mudanças fundamentais: a primeira foi a

utilização do capítulo VII, que prevê o uso da força nos mandato para resolver controvérsias e

não só o capítulo VI, que prevê apenas soluções pacíficas, apesar de antes este último capítulo

não ser explicitado no mandato do Conselho de Segurança.

A segunda mudança foi a formulação de uma teoria que justificasse esta transformação,

fazendo com que o direito de intervenção, que é a legitimação da ingerência em assuntos internos

por forças estrangeiras em casos de genocídios e migrações forçadas em massa, começasse a dar

lugar à responsabilidade de proteger. O direito da primeira conceituação se converte em dever de

intervir se os indivíduos de um país que sofresse com guerras e desrespeitos dos direitos humanos

não estão sendo protegidos pela autoridade local, porque ela não quer ou não pode. A

comunidade internacional passa então da obrigação de oferecer seus esforços para a de levar

ajuda aos indivíduos mesmo que o Estado não autorize.

O foco sobre o uso da força, que é um poder exclusivo do Estado no tipo clássico de

soberania, passa a uma visão liberal que acredita na possibilidade de intervenção com a

autorização do Estado. Por último, no conceito de soberania como responsabilidade, o verbo

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usado não é poder, é dever intervir para proteger as pessoas que são afligidas com violações dos

direitos humanos. A imagem do uso da força então muda também. Não há a necessidade de

consentimento, deve-se usar a força, se necessário, para fazer cessar as crises humanitárias.

Contudo, a soberania ainda é um ponto forte e de inflexão na questão da intervenção humanitária.

Segundo os documentos da ONU, o consenso continua a ser requerido do país em que se

empreenderá a missão ou, se o Estado estiver totalmente desestruturado, das partes beligerantes.

Podemos ver isto em Darfur: o não consentimento do Estado, além da pouca atuação do Conselho

de Segurança, foram questões fundamentais para que não se enviasse uma missão de paz para

esta região. A soberania para a ONU ainda é fortemente defendida, apesar da adoção dos termos

da responsabilidade de proteger pelo 2005 World Summit. Há o respeito da autoridade soberana

do Estado em autorizar que um poder externo atue em seu território. Apesar disso, a adoção deste

conceito indica uma tendência de mudança nesta regra. Quanto ao princípio do consenso, mudou

apenas o desenvolvimento do raciocínio, entendendo que o consenso se relaciona com outras

várias ações durante a intervenção e que seu nível pode mudar ao longo dela.

Também há uma tendência a usar mais a linguagem da responsabilidade de proteger do

que o direito de intervenção nos documentos deste tipo. Há também o uso de uma recomendação

do documento Responsabilidade de Proteger para quando o Conselho de Segurança ficar

politicamente sem possibilidade de autorizar intervenções. Esta sugestão é a autorização para que

organizações regionais desempenhem as operações de paz em suas áreas de abrangência quando a

ONU estiver impossibilitada de exercer este papel. Há, com certeza, a necessidade de que,

mesmo politicamente parada, a ONU possa tomar certas atitudes como: proporcionar sua ajuda

através de instrutores e de pessoas que possam transferir seus conhecimentos, incentivar os países

para que ofereçam sua ajuda em recursos materiais, financeiros e humanos e se posicione sobre o

conflito, exercendo sua influência mediante do seu poder de dissuasão junto às partes.

Os outros dois princípios da intervenção humanitária lançados no Suplemento para Uma

Agenda para a Paz por Boutros Boutros–Gali, a imparcialidade e o não uso da força exceto em

defesa própria, sofreram modificações entre os dois momentos. A imparcialidade foi dividida

entre imparcialidade e neutralidade; houve uma despersonalização, identificando o inimigo com o

conflito. As forças de paz não são neutras em relação aos seus objetivos e portanto, não são

neutras em relação aos beligerantes ou a qualquer pessoa que aja contra o objetivo da missão.

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O uso da força foi ampliado para além da defesa pessoal, em direção à defesa do mandato,

incluindo um grau maior de agressividade às missões de paz, inclusive pelo envio de missões

mais robustas. O manual americano já entendia uma certa ampliação do uso da força, mas não

conseguia relacioná-lo aos outros princípios e as alterações que eles sofreriam em relação à

mudança do uso da força. Para o manual defender o mandato era tão somente supervisionar o

compromisso com os termos do acordo e do mandato dado pelo Conselho de Segurança como a

função dos observadores e dos monitores.

Nos documentos americanos que já incluíam este conceito na segunda geração de

intervenções, o termo era moldado de forma diferente. O objetivo era alcançar uma resolução

pela conciliação e não pelo uso da força. Entendemos que até hoje o ideal e a primeira tentativa

seja a conciliação, mas existe a possibilidade de um efetivo uso da força. Houve um

desenvolvimento do conceito e um detalhamento de seu uso já que havia uma maior preocupação

com o aumento da utilização da força e com a necessidade deste uso para que a missão alcançasse

seus objetivos.

No segundo momento, a exceção do não uso da força foi, também para a ONU, ampliada

para além da defesa pessoal e passou a ser permitida para a defesa do mandato. As idéias que

contribuem para a emergência do indivíduo no cenário mundial contribuem para esta mudança. A

defesa do mandato é a intenção de que a operação de paz proceda em termos seguros e mais

garantidos e que os indivíduos possam ser protegidos pelas forças de paz.

A defesa do mandato tem a aplicação da força militar ou sua ameaça, mesmo que a

palavra usada seja defesa, o que suaviza a agressividade da ação. Se, por exemplo, eles defendem

o objetivo de contribuir para a restauração das condições de segurança, a fim de que a assistência

humanitária seja prestada ou para que haja a proteção de civis sob iminente risco de violência

física, há a necessidade de uso da força, mesmo que seja somente a advertência. As operações são

preparadas de forma mais robusta justamente para que haja esta possibilidade e para que o

agressor seja dissuadido de sua intenção. O fato de serem mais robustas também permite que elas

enfrentem ameaças maiores efetivamente usando a força.

O objetivo da missão de peacekeeping mudou da prevenção de conflitos e da busca da paz

para a preservação da paz por meio da implementação dos acordos assinados. O conceito

compreende também que o fato da operação ser mais robusta e mais complexa com muitos

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elementos, como civis, militares e policiais, permite que ela já vá construindo os fundamentos

para uma paz duradoura desde seu início.

Nos documentos da ONU, a previsão de missões de peace enforcement passou a aparecer

na terceira geração - antes esta possibilidade não existia no âmbito da ONU. São operações que

usam largamente a força e não necessitam de consenso das partes. Contudo, a ONU autoriza seu

emprego para organizações regionais e coalizões e não só para a atuação da organização, apesar

desta possibilidade estar prevista na conceituação. Na segunda geração, este conceito estava

apenas sendo construído, sendo prevista a utilização de unidades de peace enforcement.

A própria existência de um manual em 2008 e a não existência na segunda geração

demonstra uma crescente necessidade de regular as atividades das operações de paz que são cada

vez mais abrangentes. Além disso, muitas práticas já haviam mudado e ainda não estavam em

documentos, apenas no conhecimento de cada função. A percepção sobre como deveriam ser as

intervenções também já tinha se transformado. O documento veio preencher uma lacuna de

legitimação das atividades realizadas frente à comunidade internacional e o fato delas serem

reguladas permite que este conhecimento seja passado a outras organizações que queiram fazer

operações de paz e, mesmo dentro da própria ONU, este conhecimento pode ser divulgado.

Nos manuais de campo americanos, a peacekeeping continuou a ser definida da mesma

forma com quase exatamente as mesmas palavras, mas foi acrescentado um trecho sobre a

utilização da força e todas as técnicas disponíveis para manter ou ganhar uma iniciativa. A

relação com o consenso também é feita e diz que há necessidade de usar vários esforços para que

ao usar a força, o consenso não seja perdido. Apesar disso e de mencionar a defesa do mandato

em outras partes do manual, ele, logo depois, reforça a idéia de que o uso da força em uma

peacekeeping deve ser, geralmente, limitado a autodefesa, o que deixa um pouco ambígua a

conclusão sobre em que momentos há a permissão do uso da força.

Quanto às peace enforcement o seu uso já era previsto na segunda geração. O uso da força

parece surgir primeiro nos manuais militares do que nos documentos da ONU que demoram um

pouco mais para adotar estas medidas e as adota com muito mais cautela. Os Estados Unidos

adotam na terceira geração o cuidado em afastar a conceituação deste tipo de ação das atividades

da guerra, se assemelhando apenas no uso da força e em sua natureza coercitiva. Elas se

diferenciam pela imparcialidade de suas ações e pela natureza de seus objetivos.

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Acreditamos, contudo, que as peacekeeping mais robustas e a previsão de defesa do

mandato são a possibilidade de, como prevê o Relatório Brahimi, uma maior utilização da força.

Mesmo nestas operações a agressividade aumentou, apesar de a peace enforcement e a

peacekeeping se afastarem em conceito pela natureza da operação: a primeira tem a coerção

como característica e a segunda apenas a possibilidade de uso da força.

Os manuais americanos mudaram poucos pontos, a essência dos termos continuou igual.

Os detalhes aumentaram e o documento passou a ser mais descritivo em relação às influências

das alterações sofridas de um princípio em outro e da necessidade de atentar sempre para a

manutenção do consenso e da imparcialidade da missão.

O manual de 2003 parece se adaptar a situações de emergência com as operações de apoio

e a situações de guerras contra o terrorismo com as operações de estabilidade. Este mesmo

modelo usado em operações de paz poderia ser usado em ações contra o terrorismo, que são

essencialmente guerras em que os Estados Unidos são uma parte beligerante. A previsão de

operações de apoio é útil para o contexto de missões de paz também porque muitas vezes os civis

precisam de assistências como resgate, ajuda médica, reconstrução de infra-estrutura etc.

Na primeira fase, o manual de campo fala menos dos interesses americanos. Não explica

quais são eles e não sente necessidade de conectá-los à objetivos humanitários como o segundo

momento. O documento político, o PDD-25 fala sobre os interesses americanos mais

amplamente. O documento de 2003 reserva um espaço muito grande em várias seções para fazer

a ligação entre os interesses americanos e os objetivos humanitários de uma operação de paz.

Para a doutrina Bush a preservação dos interesses americanos é um ponto muito importante.

Assim, ao lado da ONU, a Capstone Doctrine veio preencher uma importante lacuna no

que diz respeito às operações de paz pois era preciso que o uso da força fosse regulamentado no

nível prático para que os desvios fossem evitados e para que as forças de paz não entrassem como

parte no conflito. O uso da força precisa ser feito com cautela e de acordo com instruções

precisas como as determinadas nesse documento. A força deve ser proporcional à ameaça, deve

ser a mínima força necessária e estar de acordo com as determinações do mandato. Por isso as

idéias lançadas pelo Relatório Um Mundo Mais Seguro sobre critérios bem definidos para o uso

da força quando necessária apontam uma direção mais segura de atuação.

É preciso também que a resposta seja mais rápida no plano estratégico, Assembléia Geral

e Conselho de Segurança, para que a escalada da violência seja contida sem que a força precise

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ser usada de maneira tão enfática. Se a força for mobilizada e enviada depois do conflito

espalhado será mais difícil que ele seja contido. Os critérios da guerra justa e da responsabilidade

de proteger lançam luz sobre a necessidade de regulamentação de várias áreas que se inter-

relacionam. A responsabilidade de proteger sugestiona critérios para determinar como precisa ser

a operação e a guerra justa para determinar em que casos a operação deve ser autorizada. São

tentativas de estabelecer diretrizes de procedimento e também são diretrizes mais claras de

atuação. Há especulações sobre quais casos determinariam uma operação. Claro que não é uma

relação causal rígida, pois falamos de relações humanas, mas a determinação de em que casos a

ONU acredita que é necessária a ingerência externa. A adoção pelo 2005 World Summit dos

casos determinados pela Responsabilidade de Proteger deixa claro quais são as ocasiões que a

ONU aceita enviar intervenções humanitárias: grandes perdas de vidas humanas ou limpezas

étnicas com assassinatos, expulsões forçadas, atos de terror ou estupros.

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ANEXO

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