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O CONTRATUALISMO MODERNO Rodrigo Almeida Cruz Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Fernando Augusto da Rocha Rodrigues Rio de Janeiro Agosto de 2010

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O CONTRATUALISMO MODERNO

Rodrigo Almeida Cruz

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Filosofia (PPGF), Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte

dos requisitos para a obtenção do título

de Doutor em Filosofia.

Orientador: Fernando Augusto da Rocha

Rodrigues

Rio de Janeiro

Agosto de 2010

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Cruz, Rodrigo Almeida

O CONTRATUALISMO MODERNO / Rodrigo Almeida Cruz.

Rio de Janeiro: UFRJ 2010.

vii, 120 f.; 29,7 cm

Orientador: Fernando Augusto da Rocha Rodrigues.

Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS,

2010.

Referências Bibliográficas: f. 118-120.

1. Filosofia do Direito. 2. Contratualismo. I. Rodrigues, Fernando

Augusto da Rocha (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. III. Título.

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O CONTRATUALISMO MODERNO

Rodrigo Almeida Cruz

Orientador: Fernando Rodrigues

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF),

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Aprovada por:

Prof. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues - Orientador

Doutor

Prof. Aquiles Côrtes Guimarães

Doutor

Prof. Luigi Bordin

Doutor

Prof. Rafael Haddock Lobo

Doutor

Prof. Reuber Gerbassi Scofano

Doutor

Rio de Janeiro

Agosto de 2010

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Dedico esta tese ao meu orientador, meus pais, Carmem Lúcia, Minha esposa e meus

filhos.

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RESUMO

CRUZ, Rodrigo Almeida, O CONTRATUALISMO MODERNO; Orientador

Fernando Augusto da Rocha Rodrigues. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS; 2010. Tese

(Doutorado em Filosofia)

O objetivo da presente tese é tornar explícito o conceito de homem pressuposto pelas

teorias modernas do contrato social, particularmente as teorias defendidas por Hobbes

e Locke. A fim de mostrar suas características específicas com relação ao conceito de

ser humano, o autor recorre à concepção de Aristóteles de homem, usando sua visão

naturalista como um contraste com as teorias modernas do contrato. A tese possui

quatro capítulos. No primeiro, alguns pressupostos teóricos subjacentes ao

contratualismo moderno são apresentados. O segundo lida com a posição aristotélica,

sobretudo a encontrada na Política. O terceiro e quarto capítulos abordam as teorias

do contrato social de Hobbes e Locke, respectivamente. Essas três teorias são

investigadas por uma perspectiva que leva em conta o contexto sócio-político em que

foram desenvolvidas. A conclusão retoma os principais pontos considerados e

enfatiza, mais uma vez, o conceito de homem assumido pelo contratualismo moderno.

Palavras-Chave: Filosofia do Direito; Contratualismo.

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ABSTRACTC

CRUZ, Rodrigo Almeida, O CONTRATUALISMO MODERNO; Orientador

Fernando Augusto da Rocha Rodrigues. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS; 2010. Tese

(Doutorado em Filosofia)

The aim of this thesis is to make explicit the concept of man presupposed by the

modern theories of the social contract, particularly as their are put forward by Hobbes

and Locke. In order to show the specific features of these theories as far as the

concept of human being is concerned, the author resorts to Aristotle‟s conception of

man, using his naturalist view as a foil to the modern contract views. The thesis has

four chapters. In the first one, some theoretical assumptions underlying modern

contractualism are advanced. The second deals with the Aristotelian view, mainly as

it is found in the Politics. The third and fourth chapters address Hobbes‟ and Locke‟s

theory of social contract respectively. These three theories are investigated from a

standpoint that takes into consideration the social and political context within which

they were developed. The conclusion resumes the main points considered and

emphasises once more the concept of man assumed by modern contractualism.

Keywords: Law Philosophy; contractualism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I: Observações Preparatórias 12

1. Pressupostos das teorias contratuais modernas 12

2. A legitimação do estado pelo contrato 15

3. Vários sentidos da noção de contrato 19

4. A crítica ao contratualismo após os séculos XVII e XVIII e sua

retomada na atualidade

26

4.1. A crítica de Hume 27

4.2. Outras críticas ao modelo contratual 29

4.3. A retomada do contratualismo a partir de J. Rawls 31

CAPÍTULO II: O Homem e seu Pertencimento Natural à Cidade-

Estado

40

1. A estrutura geral da Política 41

2. Da ética à política 46

3. A política, o cidadão e a cidade-estado ideal 53

CAPÍTULO III: Hobbes e o Contratualismo Absolutista 62

1. Hobbes: elementos biográficos 64

2. O método e o mecanicismo de Hobbes 66

3. A obra de Hobbes e o tema do homem e do corpo político 71

4. A abordagem do corpo político ou commonwealth a partir de seus 72

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elementos

5. O estado hobbesiano de natureza 77

6. A criação do homem artificial, o Leviathan 82

7. O contratualismo absolutista 87

CAPÍTULO IV: Locke e o Contratualismo Constitucional 88

1. Locke em sua época: vida, obra e contexto 88

2. O Primeiro Tratado e a discussão com Filmer 92

3. O estado de natureza no Segundo Tratado 96

4. O direito de propriedade 105

5. A instauração da sociedade civil por meio do consenso 109

6. A estrutura do estado 111

7. O contratualismo constitucional 112

CONCLUSÃO 114

BIBLIOGRAFIA 118

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INTRODUÇÃO

A presente tese discute teorias contratuais modernas que pretendem legitimar

a existência da sociedade civil ou estado contrastando-as com um modelo alternativo

segundo o qual a sociedade é uma estrutura natural advinda da própria essência do

homem. O objetivo é evidenciar que as noções de homem como indivíduo e de estado

como um organizador e mediador de interesses individuais, pressupostas pelo

contratualismo, são invenções modernas e estão longe de serem per se incontestáveis,

por mais que tenham feito carreira e sejam ainda hoje muito difundidas e aceitas,

sobretudo com a retomada de teorias políticas liberais a partir dos anos 70 do século

XX.

Não analisarei todo o conjunto de teorias modernas contratuais, pois estas

estendem-se, por um lado, desde Grotius e Pufendorf, e, por outro, desde Hobbes e

Locke, chegando até Rousseau e Kant. Restringir-me-ei, neste trabalho, às posições

de Hobbes e de Locke. Ainda que a teoria de Rousseau presente no Contrato Social

pudesse também servir como uma instância clássica do modelo contratualista e seja

freqüentemente elencada como um dos três mais importantes do contratualismo

clássico (ao lado do de Hobbes e de Locke), restringi-me aos dois filósofos

mencionados por estarem no mesmo contexto histórico inglês do século XVII, o que

permite uma melhor apreciação de variações do modelo contratual para responder a

problemas sócio-políticos de uma mesma situação. No concernente ao modelo

alternativo, concentrar-me-ei na posição aristotélica. Com relação a esses principais

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autores – Hobbes, Locke e Aristóteles – centrar-me-ei, na análise de seus

pressupostos filosóficos, naqueles pontos que são relevantes para o contraste que

pretendo estabelecer.

Nos dias de hoje observa-se, sobretudo a partir da teoria política de J. Rawls,

um renascimento das posições contratuais, pois o próprio Rawls, ao defender sua

teoria da justiça como eqüidade (fairness), afirma explicitamente assumir uma

posição contratual. Minha discussão não abordará, no entanto, posições atuais sobre o

contratualismo, restringindo-se antes àquelas teorias históricas acima mencionadas. É,

contudo, possível que, ao se abordarem temas e questões clássicas da história da

filosofia, sobretudo no que diz respeito à filosofia política, acabe-se por contribuir

para esclarecimentos de questões atuais.

A eleição dos filósofos modernos Hobbes e Locke deveu-se ao fato de,

embora ambos defendam teorias contratuais e ambos tentem, de certo modo, explicar

a sociedade civil a partir do contrato, terem eles visões bastante distintas sobre a

condição que seria oposta ao estado de vida social e, portanto, visões diferentes sobre

a função do estabelecimento da sociedade. Um acaba por defender uma posição

absolutista e o outro, uma postura constitucionalista. Também a noção de homem

hobbesiana afasta-se muito da lockeana. Essa diferença servirá para mostrar a

amplitude que as teorias contratuais tiveram no cenário do pensamento político

moderno, pois, apesar dos mais variados pontos de partida e das mais variadas

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concepções de ser humano, um grande número delas compromete-se com algum

modelo de contrato social.

A escolha de Aristóteles, por sua vez, explica-se pela clareza com que se pode

identificar em sua Política a visão de homem e de sociedade que pode servir de

contraste para as posições contratuais modernas. Com efeito, poder-se-ia também

aqui lançar de Tomás de Aquino, que, devido a sua concepção da relação entre

homem e sociedade, serviria também como um contraste adequado para as teorias

contratuais modernas. Nesse sentido, admito que a escolha entre Aristóteles e Tomás

de Aquino deu-se pelo mero fato de estar eu mais familiarizado com as posições

aristotélicas.

A tese estará estruturada a partir dos seguintes passos:

1. Em um primeiro capítulo, apresentarei uma série de observações

preparatórias com a finalidade de estabelecer distinções e fazer precisões conceituais

que servirão para uma melhor compreensão da noção de contrato;

2. No segundo capítulo será abordada a posição aristotélica sobre o homem e

a sociedade e a relação entre ambos. Para tanto recorrerei sobretudo ao texto da

Política. Como, no entanto, não raro, para se compreenderem posições da Política,

faz-se necessário recorrer a discussões presentes nos escritos éticos, farei algumas

remissões à Ética Nicomaquéia.

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3. No passo seguinte, capítulo terceiro, analisarei a posição hobbesiana sobre

a função do contrato. O texto base para tal investigação será o texto do Leviathan,

embora também venha a utilizar, de modo auxiliar, o texto do De Cive.

4. Enfim, em um quarto capítulo, investigarei a posição contratualista de

Locke, sobretudo como se apresenta no Segundo Tratado sobre o Governo.

A conclusão deverá realçar o contraste que perpassa toda a tese entre uma

posição contratual em que homem e estado são definidos de modo extrínseco, sem

que o primeiro conceito implique necessariamente o segundo, e uma posição segundo

a qual o homem, para realizar sua natureza, deve viver no âmbito de um estado cuja

estruturação ultrapassa os indivíduos.

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CAPÍTULO I: OBSERVAÇÕES PREPARATÓRIAS

1. Pressupostos das teorias contratuais modernas

As teorias do contrato social modernas floresceram, no pensamento ocidental,

durante os séculos XVII e XVIII. Trata-se de teorias que buscam justificar a estrutura

estatal a partir de uma decisão dos membros dessa sociedade. A finalidade do modelo

do contrato, tal presente em autores como T. Hobbes, J. Locke e J.-J. Rousseau, é a

de legitimar o poder exercido pelo estado sobre os indivíduos.

A necessidade de legitimação da existência do estado mostra-se necessária a

partir do momento em que os homens passam a ser compreendidos como não estando,

por natureza, ligados a algum tipo de comunidade com estruturação de poder,

impondo -lhes restrições de algum tipo a seus interesses. O homem moderno é

concebido como um indivíduo, como um ser que, por natureza, não é ligado a algum

tipo de comunidade. O fato de o homem não se auto-compreender como pertencente

por essência a uma comunidade leva a uma segunda característica, a saber: serem os

homens, por natureza, iguais entre si. Era apenas no âmbito da comunidade, em que

se distinguiam funções, atribuindo-as diferentemente aos membros dessa comunidade,

que se podia falar de uma diferença natural entre os homens, pois alguns eram, por

natureza, mais aptos a desempenhar um tipo de função que não cabia a um outro.

Com a modernidade essa diferença natural de funções desaparece e, portanto, os

homens passam a ser considerados como iguais. Juntamente com a noção de

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igualdade surge também a compreensão de que os homens, também por natureza, são

livres, livres de algum poder que lhes imponha restrições e livres para decidir o que

bem queiram, pensem ou façam. Mas, se por natureza não há regras que restrinjam os

interesses, pensamentos e vontades humanos, eles próprios podem no entanto se auto-

atribuir tais regras. Os homens são seres autônomos no sentido etimológico da

palavra, no sentido de que são eles e não uma outra instância (como Deus ou o

soberano) que determinam sobre que regras desejam viver.

As características da individualidade, igualdade, liberdade e autonomia fazem

com que as estruturas estatais apareçam como um problema. Nas sociedades

anteriores à época moderna, o fato de um homem pertencer naturalmente a uma

estrutura social explica a desigualdade, a ausência de liberdade e a ausência de

autonomia. A estrutura social impõe a cada um um tipo peculiar de papel a ser

desempenhado e desse papel resultam a desigualdade, a ausência de liberdade e,

conseqüentemente, de autonomia.

Com a modernidade, toda uma visão de mundo altera-se, afetando não só a

compreensão do que é o homem, mas a compreensão de todo o cosmo. A natureza e

todos os seus elementos deixam de ser vistos de modo qualitativo, a partir da função

que têm para o todo de uma ordem, e passam a ser vistos quantitativamente. Passa-se

de uma visão teleológica de natureza para uma visão mecanicista. A explicação de

por que ocorre um dado evento não se dá mais por recurso a certos lugares naturais

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que os seres envolvidos nesse evento teriam no cosmo, mas, antes, apelando-se a

certas forças mecânicas que seriam responsáveis por produzir o evento.

Diferentes espécies de discurso da modernidade manifestam uma ruptura com

a ordem anterior. Nas reflexões sobre o conhecimento, busca-se fundar o

conhecimento a partir de um eu. Isso é o caso, por exemplo, de Descartes, que

pretende a partir do ego cogito fundar não apenas as certezas sobre o próprio eu, mas

também sobre Deus e sobre o mundo. Também no pensamento político vemos -e é

esse o ponto que nos interessa nesta tese- a partir do indivíduo ser legitimada a

estrutura estatal.

Pode-se ainda ver um movimento na mesma direção em discursos não teóricos,

como é o caso da literatura. É na modernidade que surge o gênero do romance em seu

sentido próprio, um gênero que narra as atitudes de um indivíduo. Personagens como

Robinson Crusoe (do romance de mesmo nome de D. Defoe), Tom Jones (do

romance de mesmo nome de H. Fielding) e Tristam Shandy (do romance de A Vida e

as Opiniões de Tristam Shandy de L. Sterne) não poderiam estar presentes em

literaturas anteriores ao século XVII. Se se comparam os Canterbury Tales de G.

Chaucer com algum desses romances, vê-se a clara distinção na concepção de homem

nas obras. Em Chaucer, é-nos narrada uma peregrinação de um grupo a Canterbury,

sendo que os membros que compõem esse grupo representam diferentes funções na

sociedade. Fazem parte do grupo um cavaleiro, um moleiro, um carpinteiro, um

cozinheiro, um oficial de justiça, um monge, um frade mendicante, um escudeiro,

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uma mulher de Bath, dentre outros. Cada um deles, ao longo da peregrinação narra

uma história para passar o tempo. O modo como as histórias são narradas, bem como

os temas aí retratados refletem a posição que o personagem ocupa na sociedade. É

como se, na peregrinação, fosse retratada toda a sociedade com seus membros

desempenhando funções diferenciadas. A visão de mundo apresentada nesse tipo de

narrativa opõe-se frontalmente à presente nos romances acima mencionados. Nestes,

trata-se de centrar a atenção em um determinado indivíduo e não em um papel.

Não pretendo aqui afirmar que o advento do indivíduo tenha surgido

repentinamente, de um século para outro. É possível que indicações do indivíduo já

estejam em germe em alguns discursos medievais. Os chamados romances1

medievais já consistem em um tipo de obra que era lida por um leitor isolado (ainda

que ele lesse em voz alta, pois não se sabia ler em silêncio), mas mesmo nesse caso

não se pode falar propriamente de um leitor que se conceberia como um indivíduo.

2. A legitimação do estado pelo contrato

A concepção de pessoa descrita acima leva a que qualquer poder que venha a

restringir suas propriedades de ser igual aos demais, de ser livre e de ser autônomo

deva ser legitimado. Ora, o estado é exatamente uma instância de poder que intervém

na esfera individual, impedindo que os homens realizem certos cursos de ação e

exigindo que realizem outros cursos, diferenciando os homens entre si na distribuição

de poder e de bens e impondo ao homem uma lei externa a ele, portanto questionando

1 O termo “romance” aqui não designa o que nos séculos XVII, XVIII e XIX era considerado como

gênero literário de mesmo nome, mas sim uma literatura escrita na línguas nacionais (línguas

românicas) para ser consumida nas cortes.

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sua autonomia. Se é assim, trata-se aqui de uma instância que exige legitimação. Mas

de onde pode ele obter a legitimação?

A legitimação para a existência do estado não pode advir nem de Deus, nem

de alguma ordenação natural, pois esses tipos de legitimação só funcionam se se abre

mão de uma noção de indivíduo autônomo, mas é justamente essa noção que é

considerada a mais evidente para os modernos. A legitimação moderna só pode se dar

a partir da própria autonomia. Os homens por livre determinação decidiriam restringir

seu âmbito de liberdade e igualdade para, então, viver em um estado. É nesse

procedimento que justamente consistiria o contrato. O contrato social consiste em um

procedimento pelo qual os indivíduos autonomamente abririam mão de parte de sua

liberdade e igualdade para viver sob um conjunto de regras.

Mas só faz sentido a aceitação da restrição da igualdade e da liberdade se se

mostrar que a situação em que os homens se encontrarão posteriormente à restrição é

mais vantajosa do que a situação anterior. Há que se mostrar que, racionalmente, o

homem ganhará se restringir sua igualdade e liberdade e passar a viver sob um

conjunto de regras que lhe imponha deveres e obrigações que ele antes não possuía.

Isso explica por que todos os teóricos que defendem que o estado deva surgir

de um contrato entre sujeitos autônomos apresentam uma situação anterior, chamada

de condição natural, que serviria para retratar uma situação que, ou de imediato ou a

médio prazo, poderia ser vista como trazendo mais desvantagens ao indivíduo. Esse

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estado de natureza foi compreendido de diversas maneiras, dependendo do teórico.

Para Hobbes, consistia em uma guerra de todos contra todos (bellum omnium contra

omnes):

It cannot be denied but that men‟s natural state, before they came together into

society, was War; and not simply war, but a war of every man against every

man. For what else is WAR but that time in which the will to contend by force

is made sufficiently known by words or actions? All other Time is called

PEACE (1642, 29s. (cap. I, XII))

Hereby it is manifest, that during the time men live without a common Power

to keep them all in awe, they are in that condition which is called Warre; and

such a warre, as is of every man, against every man. For WARRE, consisteth

not in Battell onely, or the act of fighting; but in a tract of time, wherein the

Will to contend by Battell is sufficiently known: and therefore the notion of

Time, is to be considered in the nature of Warre; as it is in the nature of

Weather. For as the nature of Foule weather, lyeth not in a showre or two of

rain; but in an inclination thereto of many dayes together: So the nature of War,

consisteth not in actuall fighting; but in the known disposition thereto, during

all the time there is no assurance to the contrary. All other time is PEACE.

(1651, 88s. (cap. 13))

Uma visão diferente ocorre em Locke, no Segundo Tratado sobre o Governo. Para

ele, o estado de natureza, longe de ser uma situação desregrada, é uma situação onde

imperam leis da razão:

The State of Nature has a law of nature to govern it, which obliges every one:

And Reason, which is that Law, teaches all Mankind, who will but consult it,

that being all equal and independent, no one ought to harm another in his Life,

Health, Liberty, or Possessions (1689, 271 (cap. II, §7))

Ainda uma terceira posição pode ser vista no Discurso sobre a Origem e os

Fundamentos da Desigualdade entre os Homens e no Contrato Social de Rousseau.

Em crítica explícita a Hobbes, Rousseau afirma que, no estado de natureza, os

homens possuíam um sentimento natural, a piedade, que fazia com que eles

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moderassem seu egoísmo. A passagem do estado de natureza para o estado civil

consistiria na substituição de algo instintivo pela noção explícita de um dever:

It is therefore certain that pity is a natural sentiment, which, by moderating in

every individual the activity of self-love, contributes to the mutual

preservation of the whole species. It is this pity which hurries us without

reflection to the assistance of those we see in distress; it is this pity which, in a

state of nature, takes the place of laws, manners, virtue, with this advantage,

that no one is tempted to disobey her gentle voice: it is this pity which will

always hinder a robust savage from plundering a feeble child, or infirm old

man, of the subsistence they have acquired with pain and difficulty, if he has

but the least prospect of providing for himself by any other means: it is this

pity which, instead of that sublime maxim of rational justice, Do to others as

you would have others do to you, inspires all men with that other maxim of

natural goodness a great deal less perfect, but perhaps more useful, Do good to

yourself with as little prejudice as you can to others. It is in a word, in this

natural sentiment, rather than in finespun arguments, that we must look for the

cause of that reluctance which every man would experience to do evil, even

independently of the maxims of education. (1757, 88)

The transition from the state of nature to the civil state produces a very

remarkable change in man, by substituting in his behavior justice for instinct,

and by imbuing his actions with a moral quality they previously lacked. Only

when the voice of duty prevails over physical impulse, and law prevails over

appetite, does man, who until then was preoccupied only with himself,

understand that he must act according to other principles, and must consult his

reason before listening to his inclinations (1762,166 (livro I, cap. VIII))

A questão que sempre se apresenta é se o estado de natureza era considerado

como uma situação que realmente existiu ou uma situação meramente hipotética.

Retornarei a esse tema mais abaixo quando tematizar a crítica de D. Hume às teorias

contratuais.

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3. Vários sentidos da noção de contrato

Na seção anterior abordei a importância e a necessidade de se recorrer a um

procedimento como o contrato para, na época moderna, se justificar a existência do

estado. Agora, farei algumas distinções terminológicas para que se tenha claro o tipo

de teoria contratualista que se quer aqui abordar.

D. Boucher e P. Kelly, em uma coletânea organizada por eles sobre contrato

social (1994), distinguem várias usos e várias conseqüências que pode ter o apelo a

um contrato. Há, desse modo, diferentes tradições das teorias contratuais:

The idea of the social contract when examined carefully is seen to have very

few implications, and is used for all sorts of reasons, and generates quite

contrary conclusions. The reason why it is such a flexible tool in the hands of

the theorist is that the choice posited, when one is posited, is variable (1994, 2).

Na tradição clássica moderna, objetiva-se instituir, por meio do contrato, a sociedade,

a sociedade civil ou o soberano. Mas o contrato pode também ser utilizado para a

criação de regras procedurais de justiça, como pode ser visto na teoria de J. Rawls.

Além disso, há ainda aplicações do contrato à moralidade, com o objetivo de

justificar certas regras morais. As propostas de J. Mackie em seu livro Ethics –

Inventing Right and Wrong e de D. Gauthier em Morals by Agreement podem ser

vistas como aplicações da noção de contrato ao âmbito moral. Além dos objetivos a

que serve o contrato, há outros pontos de vista que levam a maneiras variadas de se

pensar a noção de contrato. Os membros que celebram o contrato podem, por

exemplo, ser considerados como reais, como ideiais ou como hipotéticos.

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Discussões acerca de quando surgiu a noção de contrato podem, por vezes,

levar a confusões por falta de clareza sobre o tipo de contrato que se está

considerando. Há quem veja a origem do contrato na distinção grega entre natureza e

convenção, remetendo a Antifonte, a Hipias, a Trasimaco ou a Glaucon as primeiras

teorias contratuais que explicariam o surgimento e a organização da sociedade

política (idem: 1994, 2). A posição de Glaucon, por exemplo, é às vezes considerada

como uma das primeiras teorias do contrato, já que, na República de Platão, ele

justifica que a justiça teria sido adotada pelos homens não com base em algum

elemento natural, mas, antes, com a finalidade de se evitar que injustiças sejam

cometidas com relação à própria pessoa. Essa idéia talvez ecoe as posições de Hobbes,

para quem a passagem do estado de natureza, onde não existiria nem justiça nem

injustiça, ao estado da vida em sociedade garantiria uma segurança aos homens. No

entanto, o objetivo de Hobbes parece ser bem diferente do de Glaucon. Não se trata,

no caso do filósofo moderno, de estabelecer a moralidade a partir do consenso:

“Hobbes‟s theory (...) is more a theory of the origin and legitimacy of political

obligation and sovereignty than an attempt to ground morality in mutual consent”

(idem: 1994, 2). Boucher e Kelly mantêm ainda que é justamente o fato de Hobbes

não aceitar uma moralidade fundada no acordo que o leva a legitimar a necessidade

de se erigir um soberano.

No que se segue distinguirei brevemente entre três modelos de teorias

contratuais. O modelo moral, o civil e o constitucional. O contratualismo moral tem

por fim legitimar regras morais com base no auto-interesse. O ponto de partida é o

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fato de que a moral consiste na exigência de que, muitas vezes, se adotem cursos de

ação que vão de encontro aos interesses do agente e beneficiam, antes, o outro. A

pergunta que se põe é: como se pode legitimar essa exigência em um mundo em que

o apelo à religião, a uma natureza sacralizada, ou a uma noção de razão de tipo

kantiano não parece ter mais sentido? O mundo moderno é desacralizado, consistente

de relações meramente mecânicas. A resposta dos contratualistas morais a esse tipo

que questionamento consiste em mostrar que é justamente a partir do auto-interesse

que se podem validar regras que restrinjam os próprios interesses em prol de

interesses alheios. O bom cooperador, aquele que, ao agir, considera interesses de

outros, poderá a médio prazo ter vantagens, pois também seus interesses serão

levados em consideração pelos demais. A partir dessa estratégia de argumentação,

busca-se, então, legitimar regras morais que teriam por base um acordo. O problema

de concepções morais de tipo contratualista está, no entanto, no fato de que, para

muitos, parece que a própria noção de moral, nesse perspectiva, parece desaparecer.

Os críticos aos contratualistas morais perguntam-se até que ponto o modelo

contratualista pode ainda receber o nome de moral, já que tudo é baseado no auto-

interesse.

As teorias clássicas do século XVII e XVIII são chamadas, por Boucher e

Kelly, de teorias civis do contrato. Autores como Grotius e Pufendorf, por um lado,

que buscam estabelecer o contrato governamental e Locke e Rousseau, por outro lado,

que buscam determinar onde está a soberania podem ser considerados como

defensores de um contratualismo civil. Mesmo Hobbes, até certo ponto, estaria

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nesse grupo. Seguindo ainda as interpretações de Boucher e Kelly, o objetivo desse

tipo de teoria contratual é o de garantir, por meio da sociedade civil ou política,

direitos e deveres que existiriam já antes desse tipo de sociedade. O que se busca é,

por meio de um contrato social, justificar o poder coercitivo de alguma autoridade e

legitimar também a existência da sociedade civil.

Isso é claro em Grotius, Pufendorf e Locke. Para esses autores, já haveria no

estado de natureza uma situação em que os homens teriam direitos e deveres, pois

nesse estado, ainda que não se possa falar de lei humana, pode-se identificar a lei

divina. Há no estado de natureza uma moralidade natural a ser garantida, mas não

criada, pela sociedade civil. Esta apenas dá efetividade a algo que já existiria antes

dela. É verdade que Hobbes não aceita esse tipo de posição, pois, para ele, é o

estabelecimento do soberano que gera a justiça e a injustiça, que gera direitos e

obrigações para com os outros. Pode-se identificar contemporaneamente uma posição

que, apesar de várias diferenças, faz eco a de Locke sob esse aspecto. Trata-se da

teoria libertária de R. Nozick:

A variation of this „Lockian‟ argument has recently been advanced by Robert

Nozick in Anarchy, State and Utopia. For Nozick, individuals in the pre-

political state are bearers of rights to life, liberty and property; these rights are

absolute, negative side constraints, but unlike Locke‟s natural rights they are

not derived from God‟s natural law, rather they are taken to be the conditions

for a conception of the person as a free and equal subject (Boucher e Kelly:

1994, 5).

A teoria de Nozick, é verdade, não é contratual. No entanto, a idéia básica de que não

é a partir do estado civil que os indivíduos adquirem direitos, mas, antes, a partir de

sua própria qualidade de pessoas, é compartilhada por ele.

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Além dos clássicos Grotius, Hobbes, Locke e Pufendorf, podem-se identificar,

como fazendo parte do contratualismo civil, os filósofos Rousseau e Kant. A posição

de Rousseau é ambígua, pois, no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da

Desigualdade entre os Homens, o contrato é visto como um mecanismo que pioraria

as desigualdades. A sociedade e as leis teriam, antes, acorrentado ainda mais os

homens fracos e pobres aos ricos, enquanto, no Contrato Social, o contrato é

considerado um meio de remediar as desigualdades. Até certo ponto, há uma

concordância entre Rousseau e Hobbes. Embora aquele não aceite a descrição que

este oferece da natureza humana e do estado natural do homem, ambos aceitariam

que uma situação de guerra generalizada poderia ser encontrada no passado da

humanidade e que uma tal situação poderia sempre irromper de novo. No entanto, o

contrato, para o Rousseau do Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da

Desigualdade entre os Homens, foi um artifício dos ricos para garantir-lhes uma

situação de estabilidade e manter os pobres cada vez mais subjugados. A conhecida

passagem que se segue é constantemente citada para ilustrar essa situação:

Such was, or must have been the origin of society and of law, which gave new

fetters to the weak and new power to the rich; irretrievably destroyed natural

liberty, fixed forever the laws of property and inequality; changed an artful

usurpation into an irrevocable right; and for the benefit of a few ambitious

individuals subjected the rest of mankind to perpetual labor, servitude, and

misery. (1754, 125)

(…) it would be a hard matter to prove the validity of a contract which was

binding only on one side, in which one of the parties should stake everything

and the other nothing, and which could only turn out to the prejudice of him

who had bound himself. (1754, 129)

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Já o Contrato Social teria maior confiança no contrato para que essa situação seja

alterada. Tratar-se-ia de um pacto com cláusula bem precisa para justamente

resguardar a cada um sua liberdade, sua pessoa e sua propriedade:

„„To find a form of association that may defend and protect with the whole

force of the community the person and property of every associate, and by

means of which each, joining together with all, may nevertheless obey only

himself, and remain as free as before.‟‟ Such is the fundamental problem of

which the social contract provides the solution.

The clauses of this contract are so determined by the nature of the act that the

slightest modification would render them pointless and ineffectual; so that,

although they have never perhaps been formally enunciated, they are

everywhere the same, everywhere tacitly accepted and recognized, until, the

social pact being violated, each man returns to his original rights and takes

back his natural liberty, while losing the conventional liberty for which he

renounced it. (1762, 163)

A visão kantiana do contrato enquadra-se também nesse grupo do

contratualismo civil. O contrato, para Kant, não tem por fim explicar a formação da

sociedade política, mas a realização de uma regra da razão. H. Williams (1994, 135ss.)

destaca quatro características da teoria contratual kantiana: (1) o contrato não foi

realizado de fato pelos membros contratantes; (2) o contrato é pensado com vistas a

uma reforma política que governantes e governados devem realizar; (3) o contrato

social kantiano ultrapassaria os limites nacionais; e (4) a visão kantiana anteciparia

visões mais atuais do contrato, como a de Rawls. Nesse sentido, assim como a

posição de Locke é ecoada na contemporaneidade por Nozick, mesmo que este

último não se comprometa com uma visão contratual, do mesmo modo pode-se dizer

que a posição kantiana é ecoada hoje em dia pela teoria rawlsiana, uma teoria que se

admite explicitamente como contratual.

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Não vou descrever em detalhes as posições acima, já que elas têm por fim

meramente chamar a atenção para o fato de haver maneiras diferentes de se

compreender e aplicar o contratualismo. Passo agora a expor brevemente um terceiro

tipo de contratualismo, o constitucionalista.

Para o chamado contratualismo constitucional, não se trata, por meio do

contrato, de assegurar a legitimidade da sociedade civil. O contratualismo

constitucional tem, antes, caráter jurídico. Boucher e Kelly identificam a origem

desse modelo nos juristas romanos, bem como nos pactos presentes no Antigo

Testamento, no direito comercial e nos contratos feudais entre senhores e vassalos

(1994, 10). O que se busca assegurar são relações entre os que governam e os que são

governados. Os contratantes, nesse modelo, não são indivíduos, mas, por um lado, os

governados e, por outro, o governante.

O contratualismo constitucional é sobretudo relevante quando se remete à lei

ou ao direito para explicar certas estruturações da sociedade. Mesmo na Idade Média,

havia certos tipos de relações entre homens e entre homens e Deus que não se

explicavam apenas por uma referência a Deus, mas antes por uma lei. Para esses

casos, a noção de um contrato é essencial:

The idea that legislation is an integral aspect of political practice, rather than

the declaration of what to a large extent already exists in convention, custom

and natural law, found clear theoretical expression in Marsilius of Padua‟s

conviction that the will of the legislator was the source of law. The legislator

for him was the people (or the weightier part thereof) from whom the authority

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of law derived, and which was more likely to be obeyed if understood as self-

imposed. Although Marsilius does not use contractual language, the idea of

conditional government was pervasive throughout the middle ages. The

conditions were often specified as inherent in the terms of appointment, as

Manegold of Lautenbach famously illustrates towards the end of the eleventh

century: „is it not plain‟, he argues, that a tyrant „falls from the dignity granted

to him? Since it is evident that he has broken the contract by virtue of which

he was appointed‟ (1994, 10s.)

Os três modelos de contratualismo destacados acima (moral, civil e

constitucional) mostram a amplitude em que se pode falar de pactos que regram as

relações entre os homens. Tanto a vida moral, quanto a vida política e a vida das

relações jurídicas podem ser compreendidas a partir de um contrato entre os

envolvidos. É, portanto, preciso ter em mente o tipo de modelo contratual que se

considera para evitar confusões conceituais nas discussões sobre contratualismo.

4. A crítica ao contratualismo após os séculos XVII e XVIII e sua retomada na

atualidade

Com relação a teorias como a do direito natural dos reis, o contratualismo

ofereceu uma explicação mais racional, com menos comprometimentos metafísicos

da sociedade civil ou do estado. Para uma explicação racionalista das relações

humanas, a teoria do contrato social apresentava-se como uma atraente alternativa aos

modelos anteriores. Após fins do século XVIII, no entanto, as teorias do contrato

começaram a se tornar cada vez menos plausíveis para legitimar a existência das

estruturas sociais.

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4.1. A crítica de Hume

Embora D. Hume critique, juntamente com a tradição contratualista, as teorias

do direito divino dos monarcas, ele também é um dos grandes críticos da teria do

contrato. Essa crítica está presente no artigo de 1742 “Of the Original Contract”. Com

relação a essa questão, J. Bentham, no item 36 do capítulo primeiro de A Fragment

on Government, afirma ter Hume demolido totalmente a idéia de um contrato que

gerasse o estado. A idéia de um tal contrato é uma ficção. Bentham refere-se em uma

nota à passagem em que faz essa afirmação ao terceiro volume do Tratado da

Natureza Humana, certamente às seções VII (“Of the Origin of Government”) e VIII

(“Of the Source of Allegiance”) da II parte do terceiro livro. Hume é saudado por

Bentham nos seguintes termos:

As to the Original Contract, by turns embraced and ridiculed by our Author, a

few pages, perhaps, may not be ill bestowed in endeavouring to come to a

precise notion about its reality and use. The stress laid on it formerly, and still,

perhaps, by some, is such as renders it an object not undeserving of attention. I

was in hopes, however, till I observed the notice taken of it by our author, that

this chimera had been effectually demolished by Mr HUME. I think we hear

not so much of it now as formerly. The indestructible prerogatives of mankind

have no need to be supported upon the sandy foundation of a fiction. (1776)

Apesar de Hume manter que é o consenso que é responsável pela associação

inicial dos homens entre si quando viviam em situações primitivas, Hume nega que o

governo tenha sido estabelecido por meio de um contrato. A concessão aparece logo

no início do texto. No caso de se considerar o início mais primitivo do governo,

quando os homens encontravam-se ainda nos desertos e nos bosques, não há, segundo

Hume, como negar que o consenso entre os homens tenha sido o motivo para a

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geração de uma associação. Hume ainda admite que, caso se chame esse consenso

inicial de contrato original, então os contratualistas estariam corretos em afirmar que

os governos e os estados teriam sua origem em um contrato:

When we consider how nearly equal all men are in their bodily force, and even

in their mental powers and faculties, till cultivated by education, we must

necessarily allow, that nothing but their own consent could, at first, associate

them together, and subject them to any authority. The people, if we trace

government to its first origin in the woods and deserts, are the source of all

power and jurisdiction, and voluntarily, for the sake of peace and order,

abandoned their native liberty, and received laws from their equal and

companion. The conditions upon which they were willing to submit, were

either expressed, or were so clear and obvious, that it might well be esteemed

superfluous to express them. If this, then, be meant by the original contract, it

cannot be denied, that all government is, at first, founded on a contract, and

that the most ancient rude combinations of mankind were formed chiefly by

that principle. (1742, 187s.)

No entanto, mesmo que se faça a concessão anterior, observa-se que, no caso

das sociedades não primitivas, com uma vida política e social complexificada, não

pode ser o contrato que é a origem das mesmas, mas sim, conforme mostra Hume, a

violência, sem que haja qualquer consideração dos detentores do poder por aqueles

que são por eles subjugados. Não há como remontar nenhum dos governos atuais a

um contrato: “Almost all the governments which exist at present, or of which there

remains any record in story, have been founded originally, either on usurpation or

conquest, or both, without any presence of a fair consent or voluntary subjection of

the people” (1742, 189s.). Aqui vê-se a clássica refutação humeana da teoria do

contrato segundo a qual o não houve nenhum contrato de fato que explicasse as

sociedades, pelo menos as sociedades complexas atuais.

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Além desse elemento da crítica humeana baseado em um dado de realidade,

i.e. no fato de ser implausível pressupor um contrato gerador das sociedades

complexas, há ainda uma outra perspectiva de sua crítica. Essa perspectiva apela a um

interesse empírico dos homens. Esse interesse levaria em consideração os outros

homens. No capítulo VII da parte II do livro II (“Of Compassion”) do Tratado da

Natureza Humana, Hume refere-se a um sentimento de compaixão e, no livro III (“Of

Morals”), ele mostra que a moral deriva não da razão, mas de um senso moral. Isso

levaria a que as relações entre os homens, inclusive as relações no âmbito da

sociedade civil pudessem ser explicadas a partir desses interesses e sentimentos

empíricos. Com isso, não seria necessário recorrer à noção de um contrato para

explicar o estado, mas ele poderia ser explicado com base em certos sentimentos que

temos com relação aos outros.

Essa visão humeana de um interesse no outro influenciou teorias utilitaristas

da moral, como as de Bentham e de Austin.

4.2. Outras críticas ao modelo contratual

A crítica humeana não foi a única a contribuir para que o contratualismo

caísse em descrédito. Tanto no contexto inglês quanto no alemão afastou-se, por

razões diferenciadas, das teorias contratuais.

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Os utilitaristas ingleses, a começar por Bentham, recusaram a idéia de um

contrato, ainda que, como os contratualistas, aceitassem posições liberais e

individualistas com relação à política e à economia. Uma posição bem diferente é a

que ocorre no contexto alemão. Hegel, por um lado, e pensadores de cunho romântico,

por outro, recusavam o contratualismos exatamente por se voltarem contra idéias

individuais e liberais. É verdade que Hegel ainda defende um certo tipo de concepção

contratual, mas trata-se aqui de uma visão de contrato tão singular que não se pode,

sem ambigüidades no uso do termo contratualismo, dizer que ele defende algum

modelo contratual. A crítica ao voluntarismo e ao individualismo em Hegel e nos

românticos impede que eles dêem adesão a um modelo de pensamento cujas bases

são justamente a vontade autônoma do indivíduo.

Além dessas críticas diretas aos teóricos do contrato, a perda de interesse que

acometeu os modelos contratuais clássicos ao longo do século XIX e na primeira

metade do século XX deveu-se também a um interesse cada vez mais forte, por parte

da filosofia pelo menos, em questões sobretudo de teoria do conhecimento. O

neokantismo do século XIX, que marcou fortemente o movimento filosófico,

centrava-se sobretudo em questões cognitivas e não em problemas de filosofia

política.

Para efeitos da presente tese, não é necessário alongar-me no tratamento das

críticas de viés utilitarista e de viés hegeliano ao modelo contratualista. Limito-me a

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fazer as observações acima, passando agora à retomada que sofreu essa teoria ao na

segunda metade do século XX.

4.3. A retomada do contratualismo a partir de J. Rawls

Com a publicação de Uma Teoria da Justiça, o contratualismo volta a assumir

um papel de proeminência no pensamento político e moral. O início da década de 70

do século XX marca a retomada não só do contratualismo, mas também do

pensamento político na filosofia do século XX. No prefácio à segunda edição da obra,

Rawls afirma que um de seus objetivos é o de oferecer uma alternativa ao utilitarismo

como modelo para o pensamento político e fazer isso lançando mão de uma teoria do

contrato social, uma teoria que seria mais geral e mais abstrata:

I wanted to work out a conception of justice that provides a reasonably

systematic alternative to utilitarianism, which in one form or another has long

dominated the Anglo-Saxon tradition of political thought. (…) I used a more

general and abstract rendering of the idea of the social contract by means of

the idea of the original position as a way to do that. A convincing account of

basic rights and liberties, and of their priority, was the first objective of justice

as fairness. (1971, XIs.)

Essa posição já estava, de resto, presente no prefácio à primeira edição. Em termos

semelhantes, mas de modo ainda mais explícito, Rawls mostra-se vinculado às teorias

clássicas do contrato. Os clássicos Locke, Rousseau e Kant, como representantes das

teorias do contrato social são nomeados explicitamente nessa passagem: “What I

have attempted to do is to generalize and carry to a higher order of abstraction the

traditional theory of the social contract as represented by Locke, Rousseau, and Kant”

(1971, XVIII). Praticamente com as mesmas palavras, mais uma vez, é reiterado o

vínculo com o contratualismo na seção 3, do capítulo 1, da primeira parte: “My aim is

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to present a conception of justice which generalizes and carries to a higher level of

abstraction the familiar theory of the social contract as found, say, in Locke,

Rousseau, and Kant” (1971, 10).

Apesar da explícita referência à teoria do contrato social clássica, há uma

marcante diferença entre esta teoria e o modelo rawlsiano no que concerne aos

objetivos a serem atingidos pela aplicação do modelo contratual. No caso dos

contratualistas clássicos, talvez com exceção de Kant, o objetivo principal era o de

legitimar o poder do estado. Para Rawls, ao contrário, o que se busca com o modelo

contratual é, antes, obterem-se princípios de uma ética que tenha aplicação na

política. O filósofo busca, por meio de sua teoria, uma estrutura que equilibre dois

valores do mundo liberal: liberdade e igualdade. O próprio Rawls observa, logo

após ter-se filiado às teorias contratuais, que há pontos dessemelhantes entre sua

proposta e o objetivo das teorias clássicas:

(…) we are not to think of the original contract as one to enter a particular

society or to set up a particular form of government. Rather, the guiding idea is

that the principles of justice for the basic structure of society are the object of

the original agreement. They are the principles that free and rational persons

concerned to further their own interests would accept in an initial position of

equality as defining the fundamental terms of their association. (1971, 10)

As teorias contratuais clássicas descrevem a situação de natureza como

apresentando um problema que deverá ser solucionado por meio do contrato. Rawls

não recorre a um estado de natureza, mas, se se quer fazer um paralelo, pode-se dizer

que a sociedade atual apresenta problemas no que concerne à distribuição de

liberdades e dos bens sociais e econômicos. Diante dessa situação existente, ao

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contrário do que ocorreria no estado de natureza, há pessoas que são beneficiadas

tanto no que concerne às liberdades de que dispõem quanto no que diz respeito aos

bens que possuem. Além disso, essas pessoas não se sentem inseguras com relação

aos privilégios de que usufruem. Também diferentemente do que ocorre no estado de

natureza clássico, o contrato não é um meio para que todos possam sair de uma

situação de insatisfação. Como as pessoas já sabem qual é sua situação na sociedade e

não estão, de antemão, dispostas a abrir mão de seus privilégios e mudar o modo

como se dá a distribuição de liberdades e de bens sociais e econômicos, não

escolherão dar adesão a novas regras da organização social e política. Rawls, no

entanto, partindo de uma noção de justiça como equidade, pergunta-se que princípios

poderiam ser aceitos em uma sociedade que não produzissem uma distribuição

desigual de liberdades e bens. Essa preocupação não é a presente em todos os

membros da sociedade, mas apenas naqueles que têm um determinado senso de

justiça que se choca à situação existente.

Dado que se queira alterar a situação atual, a pergunta que se coloca é: quais

seriam os princípios adequados de organização social de modo a garantir equidade na

distribuição das liberdades e dos bens. Ora, para chegar a esses princípios, Rawls

supõe uma espécie de estado de natureza, um estado em que as pessoas saberiam que

passarão a viver numa sociedade estruturada, mas não sabem em que situação dessa

sociedade se encontrarão, i.e. estariam inseguras sobre seu futuro: “In justice as

fairness the original position of equality corresponds to the state of nature in the

traditional theory of the social contract” (1971, 11). Diante dessa situação seria mais

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interessante para todos que os princípios organizadores da sociedade fossem

marcados pela equidade, pois, se isso ocorrer, não correriam o risco de ficar em uma

situação de desvantagem. Essa situação de ignorância serve apenas para que se

chegue a certos princípios marcados pela equidade. Na situação original os que

decidiriam pelos princípios organizadores da sociedade estariam sob um véu com

respeito ao conhecimento da situação que ocuparão na sociedade. Rawls o chama de

véu da ignorância:

The idea of the original position is to set up a fair procedure so that any

principles agreed to will be just. The aim is to use the notion of pure

procedural justice as a basis of theory. Somehow we must nullify the effects of

specific contingencies which put men at odds and tempt them to exploit social

and natural circumstances to their own advantage. Now in order to do this I

assume that the parties are situated behind a veil of ignorance. They do not

know how the various alternatives will affect their own particular case and

they are obliged to evaluate principles solely on the basis of general

considerations. (1971, 118).

It is understood as a purely hypothetical situation characterized so as to lead to

a certain conception of justice.5 Among the essential features of this situation

is that no one knows his place in society, his class position or social status, nor

does any one know his fortune in the distribution of natural assets and abilities,

his intelligence, strength, and the like. I shall even assume that the parties do

not know their conceptions of the good or their special psychological

propensities. The principles of justice are chosen behind a veil of ignorance.

(1971, 11)

Por meio desse artifício se constrói uma situação em que partes deverão dar

adesão a princípios de justiça. Os princípios de justiça já haviam sido estabelecidos

no livro Uma Teoria da Justiça antes de Rawls abordar a posição original. O livro,

desse modo, não é uma abordagem do conceito de justiça que siga uma ordem das

razões. Muitas vezes pontos que são apresentados em um momento são

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fundamentados em um momento posterior. Para que se tenha uma noção da primeira

parte do livro, indicarei, antes de voltar a abordar os princípios de justiça, em linhas

muito gerais sua estrutura.

A primeira parte do livro, chamada “Teoria”, é dividida em três capítulos: (1)

Justiça como Equidade; (2) Os Princípios da Justiça; e (3) A Posição Original. O

capítulo (1) consiste de uma exposição informal sobre uma teoria de justiça. É aí

mostrado como a justiça tem um papel na estrutura social e afirmado que aquilo que

primariamente seria considerado como justo ou, conforme o caso, injusto seria a

estrutura básica da sociedade, i. e. “the way in which the major social institutions

distribute fundamental rights and duties and determine the division of advantages

from social cooperation” (1971, 6). Rawls segue mostrando que os princípios de

justiça que devem estar presentes na estrutura básica da sociedade são princípios que

pessoas livres e racionais e guiadas pelo mero auto-interesse escolheriam se

estivessem em uma situação inicial de igualdade (1971, 10), em uma posição original.

O capítulo (2) discute dois princípios de justiça que se aplicam a instituições e vários

princípios de justiça aplicáveis a indivíduos. Ele menciona dois princípios de justiça

que seriam eleitos na posição original. O capítulo (3), enfim, consiste em uma

descrição da posição original em que os membros dariam adesão aos princípios

elencados.

Retornando agora aos princípios, apesar de eles terem sido mencionados já no

capítulo (2) da primeira parte, é no capítulo (3) que será mostrado que na posição

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original as partes darão adesão a eles. São eles: (I) cada pessoa deve ter igual direito

ao mais amplo esquema de iguais liberdades básicas, esquema este compatível com

uma distribuição semelhante de liberdades para outros; e (II) as desigualdades sociais

e econômicas devem ser organizadas de tal modo que (a) seja esperável, de modo

razoável, que elas sejam vantajosas para todos e (b) elas sejam ligadas a posições e

funções abertas a todos (1971, 53). Esses princípios aplicam-se primariamente à

estrutura da sociedade e há uma ordem de prioridades de tal modo que o primeiro

deles é o mais relevante. “This ordering means that infringements of the basic equal

liberties protected by the first principle cannot be justified, or compensated for, by

greater social and economic advantages” (1971, 53s.).

Com relação à elaboração de sua teoria da justiça, é importante mencionar que

Rawls não pretende justificá-la a partir de uma fundamentação radical. Ele recorre,

antes, a um equilíbrio reflexivo (1971, 18), um equilíbrio entre as intuições que temos

e conclusões a que se chega racionalmente.

A teoria da justiça de Rawls, exatamente por se declarar contratualista e por

ter tido uma ampla influência nas discussões políticas contemporâneas, contribuiu

para um retorno do interesse no contratualismo em discussões atuais. As posições

defendidas em Uma Teoria da Justiça foram, em alguns pontos, revistas pelo próprio

autor. No artigo “Justice as Fairness: Political not Metaphysical”, publicado no

periódico Philosophy and Public Affairs em 1985, por exemplo, mostra que sua

posição, apesar das várias referências a Kant em Uma Teoria da Justiça, não é a de

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uma teoria contratualista que busque chegar aos princípios morais com base em

deduções a partir do conceito de agente racional. Trata-se, antes, de uma teoria

política:

(...) justice as fairness is intended as a political conception of justice. While a

political conception of justice is, of course, a moral con- ception, it is a moral

conception worked out for a specific kind of subject, namely, for political,

social, and economic institutions. (1984, 224)

O objetivo desse tipo de afirmação é eliminar a impressão de que, como ocorre com a

moral kantiana, houvesse também na obra Uma Teoria da Justiça uma tentativa de se

derivar do mero conceito de razão princípios morais, uma concepção de justiça.

Como o autor deixa claro no referido artigo, a concepção de justiça que resulta de sua

teoria é política, ligada a interesses e valores do liberalismo. Essa reformulação da

teoria só deixa claro que as concepções liberais a que Rawls dá adesão não podem

atingidas por mera análise conceitual. Ele, no entanto, de modo algum, coloca em

questão os valores liberais e a concepção de pessoa presente no liberalismo.

A posição de Rawls e, em geral, as posições liberais contemporâneas sofreram

nos anos 80 e em parte dos anos 90 do século XX críticas advindas de perspectivas

que colocam em dúvida exatamente os pressupostos das teorias contratuais em

particular e liberais em geral no que concerne ao conceito de pessoa.

Um dos primeiros a criticar a posição de Rawls foi M. Sandel, em seu livro

Liberalism and the Limits of Justice. Nessa obra, criticam-se exatamente os

pressupostos do conceito de pessoa tal como concebido na Modernidade. Esse

conceito, conforme visto acima, centra-se na noção de um indivíduo livre, autônomo

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e igual aos demais. Esses atributos levam a que a compreensão liberal de um eu seja a

de um ser que está totalmente afastado do contexto empírico e social. Ora,

exatamente essa noção de homem é colocada em questão por Sandel pelo fato de não

corresponder ao modo como vivemos e nos auto-compreendemos. O conceito liberal

de homem, que é chamado por Sandel de “eu desencarnado (disembodied self)”, seria

uma construção filosófica. O eu de Rawls não é radicalmente desencarnado, mas o

autor de Uma Teoria da Justiça distingue entre o eu e suas várias possessões, i.e. seus

atributos. A posição original não apenas produz uma concepção de justiça, mas

também compromete-se com uma visão de pessoa: “(...) implicit in Rawls‟ theory of

justice is a conception of the moral subject that both shapes the principles of justice

and is shaped in their image through the medium of the original position” (Sandel, M.:

1982, 49). Esse eu presente em Rawls é um eu que estaria distanciado de seus fins,

ainda que não esteja totalmente desconectado deles. É exatamente uma tal concepção

de pessoa como distanciada de seus fins que Sandel considera implausível. Críticas

nesse mesmo sentido são feitas por outros autores, como A. MacIntyre e C. Taylor.

Esses autores são, em geral, chamados de comunitaristas.

A crítica comunitarista ao modelo liberal é relevante para esta tese, pois o

debate entre liberais e, em particular, contratualistas, por um lado, e comunitaristas,

por outro, espelha a oposição, objeto desta tese, entre, por um lado, os contratualistas

da época moderna e, por outro, a posição aristotélica. As duas contraposições

concernem, em última instância, à noção de pessoa. Para os comunitaristas, a pessoa

não pode ser entendida como desvinculada de um contexto, pois faz parte do modo

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como vivemos e da auto-compreensão que temos de nós mesmos que sejamos

animais que vivem em uma comunidade que nos ultrapassa e que não pode ser

concebida apenas como uma união voluntarista de indivíduos. É justamente essa a

posição aristotélica. O homem é, por natureza, social. E a sociedade não é uma

organização estabelecida de modo voluntarista por um grupo de indivíduos.

- - - - -

Feitas essas observações de caráter preliminar, passo agora ao segundo

capítulo da tese, onde, conforme foi indicado na introdução, será analisada a posição

aristotélica acerca do homem e de sua relação com a sociedade.

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CAPÍTULO II: O HOMEM E SEU PERTENCIMENTO NATURAL

À CIDADE-ESTADO

Se se considera a auto-compreensão de homem presente em textos do mundo

antigo e medieval, observa-se que os homens se concebiam como fazendo parte de

uma comunidade. É inerente à própria noção do que é homem o pertencimento a

alguma comunidade. Essa noção opõe-se à auto-compreensão moderna de indivíduo.

Se o homem está, por natureza, ligado a uma comunidade, não há necessidade de

justificar a existência de uma organização em que os homens vivam dispostos uns

para com os outros segundo certas relações de poder. O que se pergunta é, antes, qual

o melhor tipo de organização. É desse modo que se compreendem as investigações de

Aristóteles presentes, por exemplo, na obra Política. No que se segue, apresentarei

essa posição aristotélica de modo a utilizá-la como um contraposto às posições

contratualistas modernas, que exporei nos próximos capítulos.

Antes de abordar a Política propriamente dita, farei uma breve observação

sobre o contexto em que ela foi produzida. As discussões sobre a melhor forma de

viver e a melhor forma de governo estão presentes em vários escritos de pensadores

gregos, notadamente nos escritos de Platão e Aristóteles. Esse tipo de questionamento

ocorre não por acaso no mundo grego e, mais precisamente em Atenas, na segunda

metade do século V. Após a Guerra do Peloponeso (431 - 404 a.C.), Atenas estava

não só politicamente, mas moralmente fragilizada. Isso explica questões sobre a

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melhor vida e a melhor forma de governo presentes, por exemplo, na República de

Platão e nas Éticas e na Política de Aristóteles. Não se tem mais certeza sobre quais

atos instanciam as virtudes nem sobre que tipo de governo é o melhor. Uma clássica

passagem de Tucídides sobre a falta de compreensão dos termos morais pode ser aqui

mencionada para ilustrar a pouca clareza por parte do senso comum com relação ao

significado dos termos que denotam virtudes:

A aceitação comum das palavras em sua relação com as coisas mudava com

base em qualquer justificação. Audácia negligente passou a ser vista como

lealdade corajosa ao partido; hesitação prudente, como covardice dissimulada;

moderação, como um disfarce para fraqueza feminina; e ser hábil em todas as

coisas significava não fazer nada em nenhuma coisa (livro III, LXXXII, 4)

É importante observar que tanto no caso de Platão quanto no de Aristóteles

havia uma estreita ligação entre a resposta à primeira questão (como se deve viver?) e

a resposta à segunda (qual a melhor organização política?). Será a determinação do

que é a boa vida para o homem que implicará em uma resposta para o governo ideal.

A natureza humana remete necessariamente a um determinado tipo de governo. Isso

será exemplificado no que se segue, a partir de uma análise da Política, onde ficará

claro que é para possibilitar que o homem, o cidadão, realize uma boa vida, uma vida

feliz, que se perguntará sobre a melhor forma de governo, já que é na pólis que o

homem realiza sua felicidade, sua natureza.

1. A estrutura geral da Política

A Política é uma obra consistente de oito livros. Certamente não foram textos

escritos de modo a formar uma obra unitária. Considera-se, no entanto, que todos

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tenham sido escritos no segundo período em que Aristóteles esteve em Atenas2. Os

melhores manuscritos gregos da obra não são de grande qualidade e são recentes,

datando do século XV3. Há discussão entre os comentadores atuais sobre a ordem

desses livros, sendo que vários estudiosos modernos defendem, contra a ordem dos

manuscritos, que o grupo VII-VIII deve ser colocado antes do grupo IV-VI.

Conforme mostra Ross (1923, 247s.), o que importa, no entanto, é observar que os

oito livros comportam cinco tratados, já que não haveria uma ordem originária desses

textos. Apresentarei brevemente o conteúdo desses tratados e, em seguida, discutirei

em detalhe os pontos relevantes para o objetivo desta tese.

O primeiro tratado, presente no livro I, diria respeito à estrutura familiar ou

doméstica (oikonomía). É aí mostrado que a cidade-estado (pólis) é um agregado de

vilarejos (kóme) e um vilarejo é um agregado de famílias4 (oikía ou oîkos). Todos

esses três agrupamentos são comunidades (koinonía) e as comunidades são

estabelecidas com vistas à realização de algum fim (1252a2s). Ainda que um tipo de

comunidade advenha naturalmente do outro, o vilarejo surgindo a partir das famílias

e a cidade-estado a partir dos vilarejos, a estrutura de cada um desses tipos de

comunidade é própria. Desse modo, não se pode dizer que uma cidade-estado

2 Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), nascido em Estagira, foi aos 18 anos para Atenas para estudar na

Academia de Platão, tendo aí permanecido durante vinte anos. Em 348-7, quando Espeusipo sucedeu

Platão na Academia, Aristóteles deixa Atenas, indo para a Ásia Menor, para a ilha de Lesbos e, enfim,

para a Macedônia, onde se torna preceptor de Alexandre o Grande. Retorna a Atenas em 335 para

estabelecer sua própria escola. Em 323, quando Alexandre morre e as posições anti-macedônicas

ganham força em Atenas, ele mais uma vez deixa a cidade, indo para Cálcis, onde vem a morrer. Do

segundo período de sua estada em Atenas datam as principais produções intelectuais de Aristóteles e é

nesse período que foram escritos os textos da Política. Sobre a vida de Aristóteles, cf. Ross (1923, 1

ss.). 3 Cf. Rackham (1932, viii s.).

4 Utilizo “família” e não “casa” ou “lar” para os termos oikía e oîkos.

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pequena é o mesmo que uma família grande, pois, afirma Aristóteles, o senhor de

uma casa não governa do mesmo modo que o governante de uma cidade-estado

(1252a8ss.). É ainda mostrado que a cidade-estado tem uma prioridade com relação

aos outros tipos de comunidades, sobretudo com relação à família (1253a9ss.), pois o

todo é anterior às partes.

O livro II abarcaria o segundo tratado e discute as estruturas estatais (politeía)

consideradas boas. O objetivo de Aristóteles na Política seria o de mostrar que tipo

de comunidade política é mais adequado para se viver a melhor vida. Para tanto, ele

investiga, no livro II, aquelas comunidades políticas existentes consideradas de

excelência, bem como as comunidades políticas propostas por certos pensadores

como sendo as melhores (1260a26ss.). A primeira parte do livro dedica-se,

criticando-as, às teorias de Platão presentes na República e nas Leis. Em seguida,

Aristóteles aborda a proposta de Faleas de Calcedon5 e a de Hipôdamo de Mileto

6.

Após tratar dessas várias propostas de uma estrutura política ideal, o texto passa a

considerar as estruturas de cidades-estados existentes consideradas boas: a de Esparta,

a de Creta e a de Cartago.

O terceiro tratado estaria no livro III. O objetivo da investigação constante

desse livro é salientar em que consiste a cidade-estado, i.e. o que é essencial à cidade-

estado. Como uma cidade-estado é composta por cidadãos, Aristóteles começa por

abordar em que consistiria um cidadão (1274b41ss.). É, nesse contexto, indagado se o

5 Além desse texto de Aristóteles, não se tem outras referências a esse autor (cf. Rackham (1932, 110)).

6 Hipôdamo era um arquiteto e planejador urbano (cf. Rackham (1932, 120)).

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bom homem é o mesmo que o cidadão digno. A partir dessas considerações,

Aristóteles investiga (1278b6ss.) se há apenas uma estrutura da cidade-estado ou se

há vários tipos de estrutura. São três os tipos de estrutura, sendo que, para cada um,

há uma realização correta e uma desviante. As realizações corretas são: monarquia

(ou realeza), aristocracia e constituição7 (1279a32ss.). Essas três formas podem ser

desviantes (1279b6ss.), em que o governo não será feito com vistas ao benefício da

comunidade, mas sim com vistas ao benefício ou interesse do monarca, caso da

tirania, ou dos ricos, caso da oligarquia, ou dos pobres, caso da democracia. A

discussão, em seguida, incide sobre a distribuição de poder no âmbito da cidade-

estado e é abordada, em detalhe, a realeza.

Um quarto tratado pode ser visto como presente nos livros IV, V e VI. Esses

livros tratam de estruturas democráticas e oligárquicas existentes. Ross chama essa

seção de abordagem das estruturas estatais inferiores (“inferior constitutions”) (1923,

248). No passo 1289a31s., é afirmado que, dos seis tipos de estruturas (a saber:

realeza, aristocracia e constituição, por um lado, e tirania, oligarquia e democracia,

por outro), a realeza e a aristocracia já foram abordadas. A realeza é de fato tratada no

livro III, mas até agora não se abordou a aristocracia. Na verdade, poder-se-ia dizer

que elas estão abordadas nos livros VII e VIII, sobre as melhores estruturas políticas.

Essa é uma das razões para se colocarem os livros VII e VIII antes do grupo IV, V e

VI.

7 Aristóteles usa o termo politeía para designar a estrutura das cidades-estados em geral bem como

para designar aquele tipo de cidade-estado governado pela multidão, o que aqui foi traduzido por

constituição.

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Os livros VII e VIII, enfim, comporiam o quinto tratado. São aqui abordadas

as de cidades-estado ideais. No início do livro VII há uma retomada de posições da

Ética Nicomaqueia. Afirma-se que o melhor estado oferece a melhor boa vida

(1323a16ss.) e procede-se a um pequeno resumo da Ética. Em seguida são elencadas

condições para o melhor governo. Isso é feito ao longo dos livros VII e VIII, sendo

que o livro VIII não foi concluído ou não foi transmitido integralmente.

Com exceção do livro II, as demais partes da Política não parecem constituir

textos íntegros, tendo sido, antes, deixados incompletos ou tendo sido danificados na

transmissão dos textos de Aristóteles.

O objetivo deste capítulo é mostrar que, para Aristóteles, o homem, por

natureza, pertence à cidade-estado (pólis). Essa tese, como mostrarei, é visível na

Política. E é nesta obra que se pode vê-la com maior clareza, sendo, portanto, a

Política o texto aristotélico que mais interessa para um contraste entre a visão antiga

e medieval e a visão moderna sobre as relações entre homem e comunidade. No

entanto, para uma melhor compreensão dessa tese, abordarei, inicialmente, de modo

breve, algumas posições presentes na Ética Nicomaquéia, pois as investigações

políticas de Aristóteles parecem surgir a partir de questões presentes nas

investigações éticas, vindo a complementar estas últimas. Selecionei, para efeitos de

minha apresentação, a Ética Nicomaquéia e não a Eudêmica pelo fato de a primeira

ser ampla e a mais conhecida e de meu interesse aqui não ser primariamente nos

escritos éticos, mas sim nos escritos políticos de Aristóteles.

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2. Da ética à política

A Ética Nicomaquéia, ainda que também não deve ter sido pensada como uma

obra para publicação no estado em que se encontra, possui uma estrutura bem mais

identificável do que a Política.

O livro I começa colocando a questão pelo fim último do homem, qualificado

por felicidade (eudaimonía). O ponto de parida é uma investigação sobre o homem.

As opiniões divergem sobre qual seria o fim do homem, ainda que concordem com o

nome desse fim, a saber: felicidade8:

As pessoas comuns identificam-na [sc. a boa-vida] com algum bem óbvio e

visível, como o prazer, a riqueza ou a honra - alguns dizem uma coisa e outros

dizem outra coisa; com efeito, o mesmo homem diz coisas diferentes em

momentos diferentes: quando ele está doente, ele pensa que a saúde é a boa-

vida, quando está pobre, pensa que é a riqueza. Por vezes, dando-se conta da

própria ignorância, os homens admiram aqueles que propõem algo grande e

acima de suas mentes. Alguns pensadores afirmaram que, ao lado das várias

coisas boas mencionadas, há um bem que é o bem em si mesmo e é a causa de

todas as coisas boas serem boas (1095a22ss.)

No que concerne ao nome, pode-se dizer que a maioria dos homens concorda

acerca dele; pois tanto as pessoas comuns quanto as refinadas chamam-no [sc.

o mais alto bem] de felicidade (eudaimonía), concebendo-o como bem viver e

bem agir (1095a17ss.)

Dada essa divergência, é preciso encontrar um critério que permita dizer

objetivamente em que consiste esse fim. Esse critério, Aristóteles pretende encontrá-

8 Ainda que o termo “felicidade” não seja uma tradução adequada de “eudaimonía”, podendo sugerir

não uma vida com valor, mas um determinado estado mental, preferi mantê-lo porque parece mais

adequado à língua portuguesa do que “boa-vida” ou “vida lograda”.

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lo através de um tipo de argumentação que ficou conhecido na literatura secundária

sobre a Ética Nicomaquéia como argumento do érgon ou argumento da função.

O argumento do érgon consiste em determinar em que consiste a felicidade a

partir daquilo que é próprio ao homem e que o homem não compartilha com nenhum

outro ser. É preciso aqui observar que Aristóteles, como de resto a visão de mundo

antiga e medieval, é marcado por uma compreensão teleológica de tudo o que existe.

Como é bem sabido, uma das causas que explicam a existência de algo é a causa final.

Isso significa que tudo o que existe possui uma finalidade a ser atingida. Não apenas

os produtos humanos foram feitos com uma determinada função, mas também os

seres naturais, dentre eles o homem. É exatamente na realização dessa função que

consiste a felicidade. O homem feliz é aquele que bem realiza a função que lhe é

própria. A determinação dessa função será dada pelo argumento do érgon. Esse

argumento consiste não apenas em pressupor que tudo, inclusive o homem, tem uma

função, mas também em admitir que a função de cada tipo de objeto está na

realização daquela tarefa que só pode ser desempenhada por objetos daquele tipo.

Cabe então encontrar a tarefa que é própria à natureza humana.

No caso dos seres vivos em geral, i.e. dos seres que são capazes de produzir, a

partir de si mesmos e não por meio de uma causa externa, algum tipo de alteração,

diz-se que é a alma desses seres que é responsável por essa alteração. O termo alma

designa a fonte a partir da qual seres produzem por si mesmos alterações. Nesse

sentido, pode-se dizer, por exemplo, que plantas têm alma, dado que nutrem-se e

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crescem a partir de si mesmas. A alma dos seres vivos é responsável por que eles

tenham certos desempenhos, realizem sua função. No caso do homem, este realiza

várias funções a partir de si mesmos. Não apenas nutrem-se e crescem, como as

plantas, mas também movem-se para satisfazer seus desejos, como os animais em

geral. Além disso realizam um certo tipo de atividade de acordo com a razão (lógos).

É essa atividade que é peculiar ao homem. Daí a definição clássica de homem como

animal racional (dzôon lógon échon).

Pode-se entender aqui a definição preliminar da felicidade, presente 1098a17,

segundo a qual ela ou o bem do homem consiste na atividade da alma segundo a

virtude:

O bem do homem consiste na atividade da alma em acordo com a excelência

ou virtude, ou, caso haja várias excelências ou virtudes humanas, de acordo

com a melhor e mais perfeita dentre elas (1098a17ss.)

(...) na medida em que a felicidade é uma certa atividade da alma em

conformidade com a perfeita virtude, é necessário examinar a natureza da

virtude (1102a5s.)

Dado que o homem tem funções a realizar e dado que a sede dessas funções é a alma,

a felicidade consistiria no bom desempenho delas. No entanto, nem todas as funções

constituem o que é peculiar ao homem. A função de nutrição e crescimento, por

exemplo, bem como a função de mover-se sem raciocínio, como fazem os animais,

não seriam funções da alma humana decisivas para a determinação da felicidade.

Aristóteles nesse contexto faz então uma análise da alma, distinguindo as

chamadas partes da alma (1102a27ss.). Inicialmente são distinguidas duas partes, a

irracional (álogon) e a que possui razão (lógon échon). A parte irracional, por sua vez,

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subdivide-se em duas outras partes: a responsável pela nutrição e crescimento e uma

outra que, apesar de irracional, pode, no caso do homem, ser submetida à razão. Esta

última subparte é responsável pelos movimentos dos animais e pelas ações humanas.

É a parte ligada ao apetite, que faz com que os animais movam-se em determinada

direção para satisfazer suas necessidades. Além da parte irracional, o homem possui

uma parte racional da alma, responsável por que se atinja a verdade.

Cada uma dessas partes ou, melhor, funções da alma, pode ser realizada bem

ou mal. Aristóteles diz, então, que tanto melhor realiza sua função, quanto mais

virtude possui essa parte. Pode-se, desse modo, dizer que cada uma dessas partes

possui um tipo de virtude a ela ligado.

A parte irracional ligada à nutrição e ao crescimento é uma função que o

homem tem em comum com as plantas e os demais animais. Na verdade, todo ser

vivo possui uma alma com pelo menos essa função. Todo ser vivo nutre-se e cresce.

A virtude dessa parte consiste na boa realização do crescimento. Pode-se, desse modo,

dizer que uma árvore é virtuosa se cresceu e é frondosa e dá frutos. Essa função da

alma não é relevante para a determinação do érgon do homem, pois ela não é própria

apenas ao homem, mas, antes, o homem a tem em comum com todos os outros seres

vivos.

A segunda subparte irracional, responsável pelos movimentos ou, conforme o

caso, ações, ainda que o homem a tenhas em comum com os demais animais, possui,

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no caso humano, uma peculiaridade. Ela pode deixar-se guiar pela razão. Ela não é,

por si mesma, racional, mas pode seguir um princípio racional. Essa característica

dessa função da alma humana é peculiar ao ser humano. Ele não a tem em comum

com nenhum outro ser vivo. Desse modo, ela pode ser um bom candidato para a

determinação do érgon humano.

Há, enfim, a parte racional da alma humana. Por meio dessa parte, obtêm-se

os mais diversos tipos de conhecimento. É o que nos permite chegar à verdade sobre

vários tipos de objetos. É evidente que essa função da alma é peculiar ao homem e é

também um possível candidato para o érgon humano.

Antes de continuar a discussão, farei uma breve observação sobre o termo

“virtude”, já que o estou utilizando em minha exposição da Ética Nicomaquéia sem

elucidá-lo, o que pode levar a que se confunda o sentido grego e, em especial, de

Aristóteles do mesmo com usos atuais, muitas vezes de cunho religioso, da palavra. A

palavra “virtude (areté)” em grego é usada como o substantivo abstrato do adjetivo

“bom (agathón)”. “Ser bom”, por sua vez, significa “bem realizar sua função”. Se se

diz, por exemplo, que uma árvore é boa ou um carpinteiro é bom, entende-se por essa

afirmação que a árvore ou o carpinteiro bem realizam sua função. A mesma coisa dá-

se a entender quando se diz que a árvore ou o carpinteiro têm virtude. Também aqui

não se quer dizer outra coisa senão que eles bem realizam sua função.

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Agora pode-se melhor compreender que, quando Aristóteles define a

felicidade como a atividade da alma segundo a virtude, ele não tem outra coisa em

vista senão a atividade da alma bem realizada.

Dito isso, pode-se agora retomar a discussão acima. A felicidade foi definida

no passo 1098a17ss. como atividade da alma de acordo a virtude e foi especificado

que, no caso de haver várias virtudes, de acordo com a mais perfeita. Ora, como a

alma humana possui várias funções, ela possui também várias virtudes, cada uma

ligada a uma das funções. Mas como, ademais, apenas duas dessas funções são

propriamente humanas, a saber: a concernente à parte racional e a que diz respeito à

parte irracional passível de seguir a razão, será exatamente a partir da boa realização,

i.e. na realização virtuosa, de uma dessas duas partes que se encontrará a felicidade.

A questão, no entanto, que se coloca é: qual das duas partes, em realizando bem sua

função, qualifica o homem para ser considerado feliz?

Essa questão só será respondida no livro X da Ética Nicomaquéia. Entre o

livro I e o livro X, a maior parte das discussões versa sobre os vários tipos de virtude

humana. Tanto a parte racional da alma quanto a irracional que pode ser submetida à

razão possuem vários tipos de virtude. As virtudes afetas à primeira são chamadas de

dianoéticas; às afetas à segunda, de éticas. A palavra “ética” aqui diz respeito ao

caráter. Não vou passar em revista os vários tipos de virtude, pois uma tal análise

escaparia ao escopo da presente investigação. Passarei diretamente a algumas

considerações feitas no livro X sobre a felicidade.

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O livro X, após tratar da questão do prazer (1172a19-1176a29), dedica-se à

felicidade (1176a30ss.). Há aqui uma retomada da questão colocada no livro I, cuja

resposta foi postergada até o livro X9. Qual o melhor tipo de vida?, i.e.: como se pode

determinar a felicidade? Já foi visto que a felicidade é a atividade da alma segundo a

melhor virtude humana e que há dois tipos de virtude propriamente humanas, as da

parte racional e as da parte irracional submetível à razão. A primeira concerne ao

conhecer, à atividade teórica, a segunda, ao agir, à atividade prática. A questão, então,

consiste na seguinte: Que tipo de atividade é a mais nobre, a partir de cuja realização

se pode determinar a felicidade? A atividade teórica ou a prática?

A resposta explícita aristotélica será a de que a felicidade é a atividade em

acordo com a virtude mais elevada:

Mas, se a felicidade consiste na atividade de acordo com a virtude, é razoável

que deva ser de acordo com a virtude mais elevada; e esta será a virtude de

nossa melhor parte. (1177a11s.)

A virtude mais elevada, por sua vez, é a da parte racional, teórica. Aristóteles dá

vários argumentos para respaldar essa sua afirmação (1177a18ss.): (a) a atividade

teórica é a da nossa parte mais elevada; (b) é a mais contínua; (c) é a mais agradável;

(d) é a mais auto-suficiente; (e) é um fim em si mesmo; (f) é a que envolve maior

ócio; (g) é a atividade do homem divino; e (h) é a que realiza o elemento supremo da

natureza humana.

9 Quando refiro-me aos livros da Ética Nicomaquéia segundo a ordenação de I a X, não pretendo

afirmar que eles tenham sido escritos nessa ordem ou que Aristóteles tenha pretendido que eles

figurassem nessa ordem, caso viessem a ser publicados. No entanto, de fato, o livro I parece introduzir

um tipo de investigação e o livro X parece concluir essa investigação.

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Sendo assim, a melhor vida para o homem seria, de acordo com Aristóteles, a

vida contemplativa. No entanto, há uma segunda melhor vida, caso a primeira não

possa ser atingida. Trata-se da vida prática. Na realização da vida prática, há que se

estudar a educação moral para ver como tornar as pessoas virtuosas (1179a33ss.). A

educação moral, por sua vez, exige uma legislação que a promova (1179b32ss.). Para

se produzir uma legislação adequada, enfim, é necessário uma ciência legislativa

(1180a33ss.). Nesse ponto, as investigações éticas devem ceder lugar às investigações

políticas. Retomo, então, a análise da Política de Aristóteles.

3. A política, o cidadão e a cidade-estado ideal

As investigações feitas até aqui permitem que se estabeleça que, para a visão

aristotélica de homem e de sociedade, a legislação, i.e. a estruturação de uma

comunidade política, é uma decorrência necessária da natureza humana. O homem

não é um ser isolado da comunidade. Sua natureza é tal que, por essência, ele realiza

sua felicidade no âmbito da comunidade política. Pelo menos se se considera a

segunda melhor vida do homem, a vida prática, é preciso que, para que o homem aí

realize uma atividade em acordo com a virtude, haja uma pólis organizada de acordo

com uma boa legislação.

Qual, então, o melhor tipo de legislação? Isso é mostrado na Política.

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Conforme já indicado acima, os livros VII e VIII são dedicados a uma

investigação das cidades ideais. Não é por acaso que o livro VII inicia com uma

retomada da Ética Nicomaquéia. O modelo de Aristóteles é o de uma sociedade em

que os membros têm, cada um, uma determinada função a desempenhar e a

desempenha com esmero. Essa sociedade não se altera e tem por alvo permitir que

cada um realize suas atividades e seja feliz. É importante observar que, ainda que

Aristóteles tenha referido-se nas investigações éticas ao fim, ao télos, do homem em

geral, ele crê que exista, dentre os homens, subtipos. Não apenas a distinção entre

homem e mulher e entre senhor e escravo, como aparecem no livro I, mas também a

distinção entre várias outras funções no âmbito da pólis são atribuídas a indivíduos, e

isso é feito de tal modo que os indivíduos detentores dessas funções permaneceram

realizando-as sem possibilidade de alteração.

Por mais que hoje em dia essa distinção de funções seja, com razão, vista

como incorreta, é importante observar que ela não prejudica o modelo aristotélico no

seu todo, pois o que importa, para o modelo, não é que haja, dentre os homens,

funções diferentes a serem desempenhadas por cada um, mas sim que o homem tem

uma função, conforme mostrou acima o argumento do érgon, e que essa função só se

deixa satisfazer no âmbito da pólis.

A partir do passo 1325b33, Aristóteles começa a descrever a estrutura da

cidade-estado ideal. Esse estado deve preencher certas características externas e

certas características internas, bem como prover educação para seus cidadãos.

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Dentre as condições externas, são mencionadas: (a) ter uma certa população,

com um número adequado, número esse que deve ser limitado a partir de um

princípio, a saber: a população pode expandir-se até que se torne auto-suficiente; (2)

ter um certo território, com um tamanho e uma natureza adequados, sendo que esse

território deve ser auto-suficiente; (3) ter uma localização próxima ao mar e próxima

ao campo; (4) ter uma população com uma natureza tal que demonstre tanto coragem

quanto inteligência.

As condições mais interessantes para mostrar a estrutura institucional da

cidade-estado ideal são, no entanto, as internas. Uma primeira condição interna

concerne às instituições sociais e políticas. Para determiná-las, Aristóteles investiga

as funções necessárias que toda pólis deveria realizar (1328b2ss.). São elas: (1) o

provimento de alimentos; (2) a produção de artefatos; (3) a defesa armada; (4) a

reserva de riquezas para necessidades internas e para a guerra; (5) a religião; e (6) a

decisão de questões de interesse e de direito entre os cidadãos e de interesse do estado.

A essas funções básicas correspondem os seguintes papeis desempenhados pelos

cidadãos: camponeses (georgós), artesãos (technítes), soldados (tò máchimon),

detentores de riqueza (tò eúporon), sacerdotes (hieréus) e juízes e conselheiros (krités

e symphéron). A sexta função acima destacada corresponde à função de governo.

Especificadas as funções, surge a questão sobre se é possível que todas as

pessoas participem de todas as funções ou sobre se pessoas determinadas

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participariam de funções determinadas. Dependendo da resposta que se dê a essa

pergunta, chega-se a modelos diferentes de governo. Os que afirmam que todos

podem participar de todas as funções comprometem-se com a democracia; os que

negam isso, com a oligarquia. Mas Aristóteles, na passagem em questão, não está

interessado nessas formas, pois, como se disse acima, essas são formas corrompidas

de governo. Ele tem por objeto, antes, as formas corretas. Isso faz com que se

especifique que grupo exatamente pode ter acesso a que funções. Nem camponeses,

nem artesãos podem participar das funções de decisão. Com relação aos soldados,

eles podem, com efeito, participar, mas não ao mesmo tempo em que são soldados.

Os detentores de riquezas seriam cidadãos e, portanto, poderiam participar das

funções de decisão. Com relação aos sacerdotes, a função por eles desempenhada

deveria ser atribuída a ex-governantes, já idosos. Desse modo, Aristóteles separa

claramente, por um lado, os camponeses e artesãos, que estariam separados das

funções de militar, de governo e de religião. Por outro lado, ele também exclui os

soldados e os sacerdotes da função de governo. Ao contrário do que ocorria na

democracia ateniense, onde as funções de decisão e de julgamento poderiam ser

desempenhadas também pelos trabalhadores (camponeses ou artesãos) e por pessoas

idosas, Aristóteles reserva essas funções de governo a um grupo específico:

In all this he [sc. Aristóteles] intentionally departs from the practice of the

Athenian and other democracies, which made over deliberative and judicial

functions not only to men concerned with necessary work, but also to men

whose age, he held, unfitted them for their proper discharge. Aristotle‟s desire,

on the contrary, is to reserve these functions for those who are unfitted for

them neither by occupation nor by age - for men in the prime of their powers,

neither too old nor too young (Newman: 1887, 325)

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Com relação a quem é cidadão e proprietário, enfim, Aristóteles pensa que são os

soldados e governantes que terão esses atributos.

Uma segunda condição interna diz respeito à divisão do território e a seu

cultivo (1329b36ss.). A terra pertence aos cidadãos, mas não é por eles cultivada.

Mas antes de se atribuir a terra aos cidadãos, é preciso separar uma parte que servirá

para prover os sacrifícios e para as refeições comuns. Subtraídos esses territórios, o

que restar será distribuído entre os cidadãos. Cada um receberia um pedaço distante

do centro urbano e um pedaço nas proximidades. Quem cultivaria as terras seriam,

para Aristóteles, não os próprios proprietários, mas sim escravos (1330a26ss.).

Enfim, uma terceira condição diz respeito à própria estruturação urbana da

cidade-estado (1330a34ss.). Inicialmente a cidade deve situar-se de modo que o

acesso ao mar, ao campo e ao continente não seja dificultado. O ideal seria que a

cidade se localizasse em um declive, pois isso seria favorável para a saúde e para

propósitos políticos e militares. Deve haver suprimento de água. Uma cidadela é

também importante para a defesa. Mas Aristóteles pensa também na estrutura urbana

de vias e nos muros de fortificações para a proteção. Enfim, a cidade deve dispor de

templos e prédios públicos. Em vários pontos, a descrição urbana da pólis lembra

Atenas, embora Aristóteles tenha se inspirado também em outras cidades-estado por

ele visitadas.

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Além das condições externas e internas para que a cidade funcione bem, um

terceiro ponto de importância, também abordado em detalhes no livro VII da Política,

é a educação (1331b24ss.). Nesse passo, Aristóteles retoma alguns pontos presentes

em seus escritos éticos. O objetivo da cidade ideal é que os cidadãos sejam felizes.

Mas para que eles sejam felizes não basta o preenchimento das condições externas e

internas mencionadas acima. Eles só serão felizes se a atividade de sua virtude for

completa. Para que um cidadão seja feliz, são necessários, na verdade, dois elementos:

uma natureza favorável e a existência da virtude. Uma natureza favorável consiste na

existência de bens externos (como possuir um corpo são, possuir riquezas, dentre

outros fatores) e é pela sorte que alguém obtém ou não esses bens; por outro lado, o

desenvolvimento da virtude depende de uma boa legislação. A virtude, para

Aristóteles, depende da natureza, mas também do hábito e da razão.

A educação busca fazer com que os cidadãos sejam bons governados e, em

segundo lugar, bons governantes. E ser um bom governado e um bom governante

consiste em ser um bom homem. Sendo assim, é função da educação produzir bons

homens. A educação desenvolverá tanto os atributos corporais quanto os morais e

intelectuais. Vê-se aqui que o desempenho das três partes da alma, conforme referido

acima, será promovido pela educação. Começar-se-á por desenvolver o corpo; em

seguida serão moldados os apetites, fazendo com que o cidadão venha a possuir um

caráter bem formado; enfim, será colocado ênfase na razão, desenvolvendo-se as

características intelectuais. A partir do passo 1334b5, o sistema educacional é

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descrito em detalhes, abarcando tal abordagem o final do livro VII e todo o fragmento

do livro VIII que chegou até nós.

O estado deve regular os casamentos para a produção de proles adequadas.

Desde crianças, o estado de cuidar para que sejam bem formadas e sejam afastadas

das más influências. O sistema educacional divide os alunos por períodos etários,

sendo administrado a cada período um tipo próprio de educação. É com a idade de

sete anos que a educação instrutiva propriamente começa.

A discussão sobre a educação, continuando no livro VIII, começa por afirmar

que o legislador deve cuidar da educação dos jovens e que ela deve valer para todos

os filhos de cidadãos e ser realizada pelo estado. Em seguida, o livro começa a

detalhar o sistema educacional, mas não termina, pois é um livro que nos chegou

incompleto.

Com essas observações, apresentou-se, em linhas gerais, a visão aristotélica

da cidade ideal.

- - - - -

O capítulo 2 teve por objetivo mostrar que há uma estreita conexão natural

entre o homem e a sociedade. É com vistas a mostrar como a felicidade do homem

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pode ser alcançada que Aristóteles realiza suas investigações sobre a melhor cidade.

É apenas na cidade ideal que o homem poderá realizar sua natureza, seu télos.

É claro que se pode (e se deve) discordar do tipo de cidade ideal que

Aristóteles tinha em vista e que é apresentada nos livros VII e VIII da Política. Não

há como defender a instituição da escravidão, nem a situação em que a mulher se

encontra no modelo de Aristóteles. O que importa, no entanto, é o fato de, nas

investigações aristotélicas, a preocupação com a pólis crescer a partir de uma

preocupação com o homem, pois há uma relação intrínseca entre ambos.

Aqui compreende-se a afirmação empregada por Aristóteles de que o homem

é por natureza um animal político (1253a3, 1278b20). Para uma posição como essa,

não há por que se buscar explicar a necessidade da existência do estado. A

justificação do estado segue-se da própria definição de homem como um animal

político. A questão que pode surgir é sobre o tipo de estado mais apropriado para

permitir que a natureza humana se realize. É com vistas a responder a essa pergunta

que se compreendem as investigações de Aristóteles, como também de Platão, acerca

da melhor cidade-estado.

O próximo passo será o de abordar um modelo contraposto a esse de

Aristóteles no que concerne às relações entre pessoa e estado, um modelo segundo o

qual a existência do estado não se segue mais diretamente da compreensão de homem.

O estado será, nesse caso, então, um mal necessário. A questão para o pensamento

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político não será mais apenas sobre o melhor estado. Há que se perguntar também

sobre a legitimidade da existência do estado.

A noção de contrato visa exatamente responder a essa questão. Há vários

modos de se compreender, no entanto, o contrato que teria dado origem ao estado (ou

à sociedade civil). Começarei, no capítulo seguinte, a abordar uma deles, a saber: a

teoria hobbesiana do estado.

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CAPÍTULO III: HOBBES E O CONTRATUALISMO

ABSOLUTISTA

Assim como no capítulo anterior, começarei o presente capítulo fazendo

algumas observações sobre o contexto histórico que impeliu a que se refletisse sobre

o governo nas Ilhas Britânicas no século XVII, quando Hobbes e Locke

desenvolveram suas teorias políticas. Indicarei também nesses parágrafos iniciais que,

ao contrário do que ocorreu com as investigações de Aristóteles, como também de

Platão, a estrutura estatal não decorre de uma tentativa de se mostrar como a natureza

humana poderia melhor realizar-se.

É comum referir-se à Revolução Francesa como um marco de ruptura política

no mundo moderno. O mundo inglês do século XVII, no entanto, apresenta uma série

de rupturas e reviravoltas políticas de alcance tão ou mais importante do que veio a

ocorrer um século depois no Continente. Desde disputas no Parlamento, passando por

uma revolução em que um rei foi deposto e posteriormente decapitado, um período de

uma república puritana, uma restauração da monarquia, até uma revolução para

implantar uma monarquia constitucional, o século XVII inglês foi marcado por

freqüente insegurança das instituições políticas. Após ter chegado ao trono em 1640,

Carlos I, da dinastia Stuart, esteve em constante litígio com o Parlamento. Acreditava

que, dado que os reis detinham seu poder a partir de Deus, não poderia esse poder ser

restringido pelo Parlamento. Determinou por conta própria aumento de impostos,

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aproximou a Igreja da Inglaterra da Igreja Católica. Durante 10 anos, de 1629 a 1640,

governou sem convocar o Parlamento. Seu governo culminou em uma guerra civil,

com uma série de conflitos entre 1642 e 1651, em que se enfrentaram, por um lado,

os realistas, defensores de Carlos I, e, por outro, os parlamentaristas, sobretudo de

influência puritana. Com a vitória dos parlamentaristas, foi estabelecida, já em 1649,

uma república, durando até 1660. Carlos I foi julgado, acusado de traição, e

executado. Esse período republicano é chamado de interregnum e a figura

determinante do governo era Oliver Cromwell. Em 1660, a monarquia foi restaurada

na Inglaterra, subindo ao trono Carlos II. A dinastia Stuart permaneceu no poder até

1688, quando então, com a Revolução Gloriosa, Jaime II foi destronado e impôs-se

definitivamente uma monarquia constitucional na Inglaterra.

Esse ambiente de instabilidade das instituições políticas levou,

semelhantemente ao que ocorreu no mundo grego, conforme mostrado anteriormente,

a uma intensa reflexão sobre a forma de governo que melhor se legitimaria. É

importante, no entanto, observar que o estado, agora, diferentemente do mundo grego,

é visto não como um promotor da natureza humana, mas como um conjunto de

instituições que restringem o que os indivíduos buscariam realizar. Essa restrição faz

com que se deva justificar a existência do governo, mostrando que, ainda que haja

restrições, há um ganho, a médio prazo, um ganho indireto, que as compensa. Busca-

se mostrar que a existência do estado, por mais que traga consigo elementos que

reduzam as possibilidades de os indivíduos preencherem seus interesses, lhes será, de

algum modo, proveitosa.

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As teorias políticas modernas, então, terão de justificar a existência do estado,

mostrando ser esse inevitável, apesar de não totalmente desejável. Além disso, em se

admitindo sua inevitabilidade, há que se mostrar que tipo de estruturação deverá ele

assumir. As várias teorias contratuais propostas no século XVII e no XVIII têm por

fim responder a essas duas questões. Serão nesta tese examinadas e discutidas duas

delas: a de Hobbes, no presente capítulo, e a de Locke, no próximo capítulo.

1. Hobbes: elementos biográficos10

Hobbes nasceu em 1588, segundo filho de um clérico, e viveu até 1679.

Nasceu no ano em que a Armada Espanhola atacou a Inglaterra. Segundo o próprio

Hobbes narra em sua auto-biografia, na hora de seu parto, “um tal temor se apossou

de minha mãe que ela deu à luz a duas crianças, a mim e ao medo” (apud Maier: 1986,

266). Já com 4 anos sabia ler e escrever e com 7 começou a aprender grego e latim.

Freqüentou a Universidade em Oxford, recebendo em 1607 o título da baccalaurus

artium. Tornou-se, então, preceptor da família do barão de Hardwicke, cuidando da

educação do filho deste último, com quem realizou a viagem pela Europa em que

culminava a educação de um nobre. Após o retorno à Inglaterra, tornou-se secretário

privado dos Hardwicke. Hobbes distanciava-se da cultura escolástica, aproximando

de escritores antigos, sobretudo dos historiadores. Traduziu, nessa época, Tucídides.

Essa tradução para a língua inglesa é ainda hoje utilizada. Até esse momento sua vida

transcorreu como a vida usual de um scholar dotado, de origem não nobre.

10

As informações aqui expostas sobre a vida de Hobbes são baseadas no artigo de H. Maier (1986).

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Retornou à França entre 1629 e 1631, como preceptor do filho de Clifton,

tendo nessa estada travado conhecimento com os Elementos de Euclídes. A partir

dessa obra, Hobbes teria elaborado seu método de investigação filosófica. Apesar de,

no que concerne à matemática, não ter escrito obras relevantes, aplicou o método

euclidiano aos diversos estudos que fazia. Também parece ter sido nessa viagem que

passou a interessar-se pelo conhecimento sensível.

Mais uma vez, dentre 1634 e 1637, Hobbes retorna ao continente, como

sempre acompanhando uma família nobre inglesa. Teve, então, contato direto com

Galileu, Mersenne e outros intelectuais franceses. Conheceu Descartes e apresentou

suas Objeções às Meditações.

No entanto, nos anos de 1628 a 1660, sua vida tornou-se bastante

movimentada, tendo ele se envolvido nos acontecimentos políticos da época. Teve de

fugir da Inglaterra, retornou e conciliou-se com o governo republicano e, em seguida,

com o governo da monarquia restaurada. Em 1640, manifestou-se favoravelmente ao

rei Carlos I, o que o levou a ter de se refugiar em Paris, onde viveu durante 11 anos.

Retorna à Inglaterra, em 1652, em meio ao interregnum. Dessa época data seu

interesse por temas de moral e política. Em 1642 publicou De Cive e, sob o impacto

do julgamento e da execução de Carlos I, escreveu o Leviathan.

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Desde seu retorno à Inglaterra até sua morte, em 1679, manteve uma

existência mais tranqüila, afastada dos eventos políticos de seu país.

2. O método e o mecanicismo de Hobbes

Hobbes tenta investigar o homem more geometrico, pois, ainda que ele não se

interessasse por fazer matemática ou geometria, serviu-se de seu método, aplicando-o

às questões que buscava tratar. Se, de fato, um tal método é aplicável a temas de

política e de moral, é certamente uma questão que o intérprete de Hobbes deve

colocar-se. O fato é que Hobbes pretendia alcançar resultados nesses campos como os

alcançados por outros (como Galileu) no âmbito da natureza. Por volta de 50 anos de

idade, Hobbes começa a aplicar a suas investigações o método com que teve contato

em uma das viagens que fizera a Paris.

Além de adotar o método geométrico, Hobbes via seus objetos de análise a

partir de uma perspectiva mecanicista. Partiu do princípio de que o que cada homem

deseja é o que ele chama de bom e aquilo a que ele tem aversão ele chama de mau.

Desse modo, bem e mal não são propriedades objetivas, referentes a qualidades nas

coisas. São, antes, determinadas pelo modo como as coisa nos afetam. Quando vários

desejos estão em conflito, aquele que tiver a maior força será preponderante11

. É a

partir dessa visão mecânica do funcionamento do ser humano que serão explicadas as

relações do homem com a sociedade e com o estado.

11

Cf., sobre isso, Plamenatz: 1963, vol. 1, 174s.

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Aqui é importante enfatizar o contraste entre a visão clássica, exposta acima a

partir de Aristóteles, e a visão hobbesiana. O homem, no pensamento clássico antigo

e no medieval, era dotado de uma natureza, com uma qualidade, que poderia ser

melhor ou pior realizada. Os conceitos de “bom” e “mau” estavam ligados a esse

elemento qualitativo a ser realizado teleologicamente pelo homem, bem como pelos

seres da natureza em geral. Ora, o que se tem agora, em Hobbes, é, antes, um

conjunto de forças, de desejos que servirão para determinar o que é bom para o

homem.

As ações humanas visão à realização desses desejos. Daí decorre uma visão

totalmente egoísta de ser humano. Quando ocorrer de alguém ter compaixão pela

infelicidade alheia, isso se explica simplesmente pelo fato de ele saber que poderia

também estar naquela situação. Pena e benevolência são sentimentos que, ainda que

não egoístas, só aparecem ao homem porque a imaginação permite que ele se veja

como podendo estar na mesma situação daquele por quem ele tem esses sentimentos.

Desse modo é apenas com vistas a satisfação de seus próprios desejos que funciona

esse ser que é o homem. A partir dessa perspectiva, Hobbes determinou o modo como

os homens de fato comportam-se no âmbito do estado e da sociedade e o modo como

eles devem comportar-se.

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Hobbes explicita o modo como compreende a organização das ciências no

prefácio do De Cive, em passagens do De Corpore e no cap. 9 do Leviathan12

,

intitulado “Of the severall subjects of knowledge”:

There are of KNOWLEDGE two kinds; whereof one is Knowledge of Fact:

the other Knowledge of the Consequence of one Affirmation to another. The

former is nothing else, but Sense and Memory, and is Absolute Knowledge; as

when we see a Fact doing, or remember it done: And this is the Knowledge

required in a Witnesse. The later is called Science; and is Conditionall; as

when we know, that, If the figure showne be a circle, then any straight line

through the Centre shall divide it Into two equall parts. And this is the

Knowledge required in a Philosopher; that is to say, of him that pretends to

Reasoning. (1651, 60)

Pouco após essa passagem, Hobbes apresenta uma tábua dos conhecimentos (1651,

61):

12

Cf. Sorell, T.: 1996b, 45s.

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Há para Hobbes dois tipos de conhecimento, o de fatos e o de conseqüências.

Os de fatos são chamados de testemunho e estão nos livros de história; os de

conseqüência são chamados de ciência ou filosofia. Enquanto no Leviathan a ciência

ou filosofia é definida meramente como um conhecimento das conseqüências, no De

Corpore a definição é melhor precisada. No artigo segundo, do capítulo 1, da parte 1,

lê-se: “Filosofia é o conhecimento dos efeitos ou fenômenos adquiridos pelo

raciocínio correto, a partir de suas causas ou modos de vir a ser dados; ou,

alternativamente, conhecimento dos modos possíveis de vir a ser a partir de efeitos

conhecidos” (1655, 2).

A classificação do conhecimento em vários ramos, a partir de uma dada

definição era comum no século XVII. Não apenas Hobbes, mas também Bacon e

Descartes procederam a uma tal estruturação do saber. Há, entretanto, diferenças

entre os modos de cada um estruturar seu esquema.

O estudo do homem e do corpo político será feito por Hobbes a partir desse

modelo geral. Ou bem se tentarão extrair conseqüências ou efeitos causais a partir de

algo dado ou bem serão inferidas causas a partir de efeitos dados. No caso do homem,

o que é dado é o fato de ser um ser que possui interesses e busca apenas realizar seus

interesses. Disso, pode-se inferir a estrutura que devem possuir os corpos políticos. O

modelo mecanicista é aplicado não só aos fenômenos psíquicos e aos fenômenos

morais, mas também ao corpo político. Dada a definição de conhecimento como

explicação ligada a causas, serão os corpos em movimento que serão o objeto de

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estudo de Hobbes. Também o funcionamento da mente será explicado a partir de

desejos e aversões e das conseqüências que eles produzem.

O modo como Hobbes concebe o conhecimento faz com que ele investigue

apenas corpos sensíveis, o que levanta a suspeita de materialismo e de ateísmo.

Certamente, Hobbes é um materialista, mas parece longe de ser um ateu.

3. A obra de Hobbes e o tema do homem e do corpo político

A obra de Hobbes tem diretamente relação com suas preocupações com as

situações políticas concretas. Em 1640, escreveu os Elementos de Direito, natural e

Político, tendo sido em 1650 publicadas duas partes, sendo que o texto integral foi

publicado apenas postumamente. As partes publicadas intitulam-se: “A natureza

humana ou os elementos fundamentais da política” e “De corpore politico ou os

elementos do direito, da moral e da política”. Somente em 1889, F. Tönnies, com

base em vários manuscritos, organizou uma nova edição da obra com textos até então

desconhecidos. Em 1642, foi publicado De Cive. De Cive é uma das três partes que

compõem o grande sistema filosófico de Hobbes. As duas outras partes, De Corpore

e De Homine, foram publicadas respectivamente em 1655 e 1658. Em 1651, foi

publicado em Londres o Leviathan.

Seus escritos, conforme dito acima, ocupam-se de corpos. Há dois tipos de

corpos na filosofia hobbesiana: os corpos naturais, criados por Deus, e os corpos civis,

criados pelos homens. O sistema de Hobbes, Elementa Philosophica, articulado pelas

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obras De Corpore, De Homine e De Cive, aborda os dois tipos de corpos. A primeira

e a segunda parte concernem ao corpo físico em geral e ao homem, ambos criaturas

de Deus. Já a terceira parte, De Cive, estuda propriamente o estado, objeto produzido

pelo homem. No esquema acima, extraído do Leviathan, as duas primeiras partes dos

Elementa Philosophica corresponderiam à filosofia natural e a terceira, à filosofia

civil.

Há ainda que mencionar, com relação à obra de Hobbes, o texto, publicado

postumamente, Behemoth: the history of the causes of the civil wars of England, and

of the counsels and artifices by which they were carried on from the year 1640 to the

year 1660. Pelo próprio título vê-se aqui uma obra diretamente voltada para

acontecimentos contemporâneos, mostrando que o interesse de Hobbes, como sempre,

estava direcionado não apenas para a teoria, mas buscava, sobretudo,, a partir desta,

compreender o contexto em que vivia.

4. A abordagem do corpo político ou commonwealth a partir de seus elementos

Os textos de Hobbes que interessam para a questão do contratualismo são o

Leviathan e De Cive. É verdade que também textos dos Elementos de Direito, natural

e Político podem ser relevantes para o tema, mas restringir-me-ei àquelas duas obras.

O Leviathan tem exatamente por tema o corpo político ou o estado, buscando explicar

sua natureza. Conforme já visto, o corpo político é uma criação humana, ao contrário

da natureza, que é criação divina. Também o De Cive investiga a mesma questão.

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O objeto de investigação em cada um dos dois livros é mencionado

explicitamente no prefácio de cada uma das obras. No Leviathan, Hobbes afirma:

To describe the Nature of this Artificiall man, I will consider

First the Matter thereof, and the Artificer; both which is Man.

Secondly, How, and by what Covenants it is made; what are the Rights and

just Power or Authority of a Soveraigne; and what it is that Preserveth

and Dissolveth it.

Thirdly, what is a Christian Common-Wealth.

Lastly, what is the Kingdome of Darkness. (1651, 10)

Já no prefácio do De Cive, apresenta os objetivos do livro nos seguintes termos:

This book sets out men‟s duties, first as men, then as citizens and lastly as

Christians. These duties constitute the elements of the law of nature and of

nations, the origin and force of justice, and the essence of the Christiam

Religion (so far as the limits of my design allow). (1642, 7)

Hobbes busca explicar a criação de um artefato, feito pelos homens, a saber: o

estado. Começa, já no prefácio do Leviathan, distinguindo entre dois tipos de

criaturas. Por um lado, a natureza, produzida por Deus; por outro, um homem

artificial, o estado, produzido pelo homem. Esse homem artificial possui também,

como o homem natural, uma estrutura interna semelhante ao mecanismo biológico. E,

de início, Hobbes indica a causa da criação desse homem artificial: a segurança do

homem natural:

(...) though of greater stature and strength than the Naturall, for whose

protection and defence it was intended; and in which, the Soveraignty is an

Artificiall Soul, as giving life and motion to the whole body; The Magistrates,

and other Officers of Judicature and Execution, artificiall Joynts; Reward and

Punishment (by which fastned to the seat of the Soveraignty, every joynt and

member is moved to performe his duty) are the Nerves, that do the same in the

Body Naturall; The Wealth and Riches of all the particular members, are the

Strength; Salus Populi (the Peoples Safety) its Businesse; Counsellors, by

whom all things needfull for it to know, are suggested unto it, are the Memory;

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Equity and Lawes, an artificiall Reason and Will; Concord, Health; Sedition,

Sicknesse; and Civill War, Death. Lastly, the Pacts and Covenants, by which

the parts of this Body Politique were at first made, set together, and united,

resemble that Fiat, or the Let Us Make Man, pronounced by God in the

Creation. (1651, 9s.)

O texto do Leviathan começa descrevendo o homem em isolamento de sua

situação como membro de um estado. Semelhantemente, no De Cive, Hobbes

começará com a matéria que constitui o estado: “(...) I should begin with the matter of

which a commonwealth is made and go on to how it comes into being and the form it

takes, and to the first origin of justice” (1642, 10). A matéria é, aqui, o homem.

Começar-se-á por entender qual é a estrutura da natureza humana e em que situações

é adequado ou inadequado para ele construir um estado e como os homens que

querem viver juntos devem ser conectados.

O ponto de partida de ambas as obras e sua função para o todo ficam claros

quando se atenta para a estrutura dos livros. O Leviathan divide-se em quatro partes

(Do Homem; Do Estado (Commonwealth); Do Estado Cristão; e Do Reino da

Escuridão); o De Cive articula-se em três partes (Liberdade; Governo; e Religião). O

início das duas obras é sobre o homem fora da sociedade. Isso é explícito no capítulo

1 do segunda delas, intitulado: “Sobre a situação do homem fora da sociedade civil”).

Hobbes considerava dois métodos para as investigações científicas: a análise e

a síntese. A primeira partia dos corpos dados aos sentidos e ia até as suas causas. A

síntese construía complexos a partir dos seus elementos. A análise, para a época, era

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o método da descoberta (ars inveniendi), por oposição à síntese, que era o da

exposição (ars judicandi). Na seção 8, do primeiro capítulo da parte I do De Corpore,

Hobbes refere-se a esses dois procedimentos como podendo ser aplicados na filosofia:

O assunto da filosofia, ou a matéria de que ela trata, é todo corpo que pode ser

pensado como vindo a ser e que é capaz de ser comparado com outros corpos

com relação a algum de seus aspectos. Isso é: qualquer corpo suscetível de

síntese e análise ou, em outras palavras, todo corpo que pode ser

compreendido como vindo a ser e como tendo uma ou outra propriedade.

(1655, 9)

O método utilizado do Leviathan é, no que concerne às partes I e II, sintético, pois o

autor parte de uma noção ou um princípio simples, o homem, e mostra como a partir

dele se pode explicar o surgimento do estado.

O estudo do homem elenca inicialmente as faculdades que possui. São

reduzidas a quatro no De Cive: força física, experiência, razão e paixão. O texto do

Leviathan é um pouco mais extenso, passando por sensações, imaginação,

pensamento discursivo (trayne of thoughts), fala, razão e ciência, paixões, discurso,

valoração (virtudes), conhecimento, poderes (físicos e não-físicos), costumes e, enfim,

a religião. Todos esses desempenhos e produtos teriam sua origem no homem,

independentemente de ele ser parte da sociedade civil ou estado. Os capítulos 1-5

centram-se nas propriedades cognitivas e conceituais; do capítulo 6 ao final, são antes

as propriedades ligadas a paixões e ao movimento que são destacadas. Em toda essa

descrição, observa-se que o homem é apenas um ser natural dentre outros tipos de

seres naturais.

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É importante notar que o homem, apesar de dotado de paixões, não é movido

cegamente por estas. A deliberação é um meio de colocar fora de ação as paixões,

sejam apetites, aversões, esperanças, temores. Por meio dela colocamos um fim a

nossa liberdade, à liberdade de agir seguindo simplesmente as paixões. Por sua vez, o

último apetite ou aversão que adere a nossa ação, na deliberação, é chamado de

vontade. Isso mostra que o homem e também, para Hobbes, alguns outros animais

não agem sempre de modo a apenas extravasar as paixões, mas sim, muitas vezes, por

deliberação. O capítulo 6, da parte I, do Leviathan, explora essa restrição às paixões

feita pela deliberação (1651, 44).

É importante realçar que, a princípio, o homem poderia se passar do estado

para realizar esses desempenhos. Nesse ponto, vê-se, conforme já enfatizei várias

vezes neste trabalho, a grande distinção entre a concepção clássica de homem e a

concepção hobbesiana. Essa distinção não foi indicada apenas pelos intérpretes de

Hobbes, mas por ele mesmo, de modo explícito, no De Cive:

The majority of previous writers on public Affairs either assume or seek to

prove or simply assert that Man is na animal Born fit for Society, - in the

Greek phrase, dzôon politikón. On this foundation they erect a structure of

civil doctrine, as if no more were necessary for the preservation of peace and

the governance of the whole human race than for men to give their consent to

certain agreements and conditions which, without further thiught, these writers

call laws. This Axiom, though very widely accepted, is nevertheless false; the

error proceeds from a superficial view of human nature. (1642, 21s.)

É com base numa concepção de homem em cuja definição não há nenhuma

implicação de relação essencial com a sociedade civil que Hobbes pode lançar mão

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da hipótese do estado de natureza. Tratar-se-ia aqui de uma situação em que os

homens dispusessem de todas as suas faculdades, mas ainda não se encontrariam no

âmbito da sociedade civil. A essa hipótese dedico-me na próxima seção.

5. O estado hobbesiano de natureza

Tanto no Leviathan como no De Cive, o estado (ou, como Hobbes mais

freqüentemente formula, condição) natural do homem é abordada nas partes

referentes ao estudo do homem e não nas seções sobre a sociedade civil, pois,

evidentemente, essa seria uma situação em que o homem se encontraria sem que

tivesse celebrado qualquer pacto para a constituição da sociedade civil.

Uma recorrente questão sobre o chamado estado de natureza diz respeito a seu

status. Trata-se de um estado real que se supõe ter de fato existido historicamente ou

simplesmente de uma hipótese? No caso específico de Hobbes, a condição natural

nunca existiu historicamente, conforme ele próprio admite, não existiu de fato, pois

“there had never been any time, wherein particular men were in a condition of warre

one against another” (1951, 90). Por mais que em várias passagens o leitor tenha a

impressão de que Hobbes está referindo-se a uma situação histórica, observa-se, na

citada frase, que ele próprio considerava o estado de natureza como uma hipótese, um

experimento de pensamento, como se diria hoje em dia.

Em que consiste exatamente essa condição natural hipotética em que os

homens se encontrariam para, então, formar o estado? Em primeiro lugar, é

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importante notar que não se está descrevendo uma situação em que os homens se

encontrem fora de qualquer sociedade. Na condição natural, os homens estão fora do

poder de um estado ou de uma sociedade civil. Eles podem muito bem estar

associados de algum modo, desde que não sob o poderio estatal.

Partindo-se do fato exposto acima de que o homem é um ser que possui

desejos e busca, tem interesse em realizar esses desejos, a pergunta que se pode fazer

é, então: O que esses homens, caracterizados desse modo, teriam como vantagem ou

desvantagem caso eles se encontrassem em uma situação em que não estivessem

submetidos ao poder do estado? Acresce-se ainda que, para Hobbes, os homens são,

uns com relação aos outros, iguais quanto à força de que dispõem. Ainda que possa

haver diferenças de força física, essas diferenças são insignificantes, pois o mais forte

fisicamente nunca poderia ter a certeza de que se imporia sobre os demais sem vir a

ser, posteriormente, derrotado ou morto:

Nature hath made men so equall, in the faculties of body, and mind; as that

though there bee found one man sometimes manifestly stronger in body, or of

quicker mind then another; yet when all is reckoned together, the difference

between man, and man, is not so considerable, as that one man can thereupon

claim to himselfe any benefit, to which another may not pretend, as well as he.

For as to the strength of body, the weakest has strength enough to kill the

strongest, either by secret machination, or by confederacy with others, that are

in the same danger with himselfe (1651, 86s.)

O estado de natureza não é, apesar da ausência do poder estatal, uma situação

sem leis. Algumas leis naturais, que fazem parte da própria natureza do homem,

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estariam presentes nessa situação. Trata-se de leis da condição natural. Essas leis

devem também, até onde possível, viger na sociedade civil.

No estado de natureza, todo homem tem o poder, o direito natural (jus

naturale) ou a liberdade de usar seus poderes como bem quiser de modo a preservar

sua própria natureza. Vige aí também uma lei natural, i.e. uma máxima racional que

o impeça de fazer o que quer que seja que coloque em risco sua vida. A proteção da

vida é o interesse mais fundamental que nutrimos, de acordo com Hobbes. As leis

naturais deveram ser máximas que promovam ações com vistas a realizar esse

interesse ou impeçam ações que ameacem o preenchimento desse interesse.

De acordo com os direitos naturais, poderíamos buscar obter quaisquer

objetos e realizar quaisquer cursos de ação com vista a preservar nossa natureza.

Para evitar que se confunda direito natural (right of nature ou, na expressão

latina, jus naturale) com o que os jusnaturalistas chamam de direito natural, Hobbes

explicitamente afirma que o direito natural tal como ele compreende é uma liberdade

de fazer ou deixar de fazer e não uma máxima. A máxima é expressa, antes, pela lei

natural (law of nature ou, na expressão latina, lex naturalis), que também vige no

estado de natureza, tendo sido encontrada pela razão para que o homem aja de modo

a realizar seus interesses mais fortes:

A LAW OF NATURE, (Lex Naturalis,) is a Precept, or generall Rule, found

out by Reason, by which a man is forbidden to do, that, which is destructive of

his life, or taketh away the means of preserving the same; and to omit, that, by

which he thinketh it may be best preserved. For though they that speak of this

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subject, use to confound Jus, and Lex, Right and Law; yet they ought to be

distinguished; because RIGHT, consisteth in liberty to do, or to forbeare;

Whereas LAW, determineth, and bindeth to one of them: so that Law, and

Right, differ as much, as Obligation, and Liberty; which in one and the same

matter are inconsistent. (1951, 91)

Hobbes enumera várias leis naturais, sendo a primeira a seguinte:

"That every man, ought to endeavour Peace, as farre as he has hope of

obtaining it; and when he cannot obtain it, that he may seek, and use, all

helps, and advantages of Warre." The first branch, of which Rule, containeth

the first, and Fundamentall Law of Nature; which is, "To seek Peace, and

follow it." The Second, the summe of the Right of Nature; which is, "By all

means we can, to defend our selves." (1651, 92)

O interesse mais básico do homem, para Hobbes, é a preservação da vida. A busca da

paz, na medida em que ela é possível, é um meio de preservar esse interesse. No caso

de a paz ser inviável, o homem deve defender-se por todos os meios.

Como decorrência da primeira lei, surge uma outra, chamada de segunda lei

da natureza. Esta prescreve que o homem deva consentir em abrir mão de seu direito

a todas as coisas, desde que os outros homens procedam igualmente e que isso

conduza à paz:

"That a man be willing, when others are so too, as farre-forth, as for

Peace, and defence of himselfe he shall think it necessary, to lay down this

right to all things; and be contented with so much liberty against other

men, as he would allow other men against himselfe." (1951, 92)

Essa segunda lei corresponde, como mostra o próprio Hobbes, a Lei do Testamento,

segundo a qual não se deve fazer ao outro o que não se quer que seja feito a si.

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Seguem várias outras leis, concernentes a contratos e promessas (3ª lei), à

gratidão (4ª lei), à complacência (5ª lei), dentre várias outras. As leis naturais são

máximas de comportamento deduzidas do fato de os homens serem livres e iguais e

terem de conviver uns com os outros. Elas buscam, todas, garantir a segurança e uma

vida o mais possível adequada. Esse fim será também o do estado. A ordenação do

estado já estaria, assim, indicada na própria condição natural. Por que então substituir

essa condição natural por uma outra? A resposta a essa pergunta está, para Hobbes,

no fato de as leis naturais, ainda que possam atenuar a tendência humana a lançar

mão de todos os meios para realizar seus interesses, não serem suficientes para

eliminar o comportamento passional que acaba por colocar em risco a vida dos

demais bem como a própria. Elas não seriam suficientes para evitar, em última

instância, comportamentos que pudessem ser caracterizados como uma guerra de

todos contra todos. Elas não eliminariam, de cada indivíduo, o direito de perseguir,

do modo como bem lhe aprouver, a preservação da própria existência.

For the Lawes of Nature (...) if themselves, without the terrour of some Power,

to cause them to be observed, are contrary to our naturall Passions, that carry

us to Partiality, Pride, Revenge, and the like. And Covenants, without the

Sword, are but Words, and of no strength to secure a man at all. Therefore

notwithstanding the Lawes of Nature, (which every one hath then kept, when

he has the will to keep them, when he can do it safely,) if there be no Power

erected, or not great enough for our security; every man will and may lawfully

rely on his own strength and art, for caution against all other men. (1651, 117s.)

Para que haja uma garantia de que os indivíduos não vão perseguir cursos de

ação que acabem em um conflito generalizado, deve haver uma instância superior que

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eles temam. É o temor de sofrer punições por uma instância mais forte do que eles

que impedirá o possível caos da condição natural.

6. A criação do homem artificial, o Leviathan

A solução é a criação do estado. A representação desse corpo político é a de

um homem, mas que seja tão poderoso a ponto de não poder ser destruído por um

outro homem, nem mesmo se vários homens se associassem com esse fim. Como

viria a ser criado esse corpo político e que atributos teria?

A criação só poderia se dar por meio de um contrato ou um pacto. Isso porque,

conforme já foi mostrado, os homens são livres e não estão, pela natureza, vinculados

a entrar em uma associação estatal. Hobbes menciona isso explicitamente no capítulo

21 do Leviathan:

(...) there being no Obligation on any man, which ariseth not from some Act of

his own; for all men equally, are by Nature Free. And because such arguments,

must either be drawn from the expresse words, "I Authorise all his Actions," or

from the Intention of him that submitteth himselfe to his Power, (which

Intention is to be understood by the End for which he so submitteth;) The

Obligation, and Liberty of the Subject, is to be derived, either from those

Words, (or others equivalent;) or else from the End of the Institution of

Soveraignty; namely, the Peace of the Subjects within themselves, and their

Defence against a common Enemy. (1951, 150)

O contrato que institui o estado não é um contrato como os que poderiam ser

celebrados na condição natural. Trata-se de um contrato em que todos conferem todo

seu poder e força a um homem ou a uma assembléia, reduzindo todas as vontades dos

indivíduos a uma única vontade.

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The only way to erect such a Common Power, (...) is, to conferre all their

power and strength upon one Man, or upon one Assembly of men, that may

reduce all their Wills, by plurality of voices, unto one Will: which is as much

as to say, to appoint one man, or Assembly of men, to beare their Person; and

every one to owne, and acknowledge himselfe to be Author of whatsoever he

that so beareth their Person, shall Act, or cause to be Acted, in those things

which concerne the Common Peace and Safetie; and therein to submit their

Wills, every one to his Will, and their Judgements, to his Judgment. (1651,

120)

Um tal contrato realizado por todos não é simplesmente um acordo, mas sim

uma união real de todos:

This is more than Consent, or Concord; it is a reall Unitie of them all, in one

and the same Person, made by Covenant of every man with every man, in such

manner, as if every man should say to every man, "I Authorise and give up

my Right of Governing my selfe, to this Man, or to this Assembly of men,

on this condition, that thou give up thy Right to him, and Authorise all his

Actions in like manner." (1651, 120)

Realizados esses atos, surge o estado, o commonwealth. Ele é representado

por Hobbes como uma pessoa de poderes sobre-humanos, é um deus mortal, já que o

soberano a quem se concedem todos os direitos é uma pessoa que virá a morrer

algum dia. A representação dessa criatura, i.e. do soberano, é a de um homem que

contivesse em si todos os direitos bem como julgamentos e vontades de todos os

pactuantes, já que estes abriram mão deles em prol daquele:

This done, the Multitude so united in one Person, is called a COMMON-

WEALTH, in latine CIVITAS. This is the Generation of that great

LEVIATHAN, or rather (to speake more reverently) of that Mortall God, to

which wee owe under the Immortall God, our peace and defence. For by this

Authoritie, given him by every particular man in the Common-Wealth, he hath

the use of so much Power and Strength conferred on him, that by terror thereof,

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he is inabled to forme the wills of them all, to Peace at home, and mutuall ayd

against their enemies abroad. (1651, 120)

Hobbes nomeia o soberano Leviathan, nome extraído de um mostro marinho

bíblico referido seis vezes no Antigo Testamento. A página inicial da primeira edição

do livro contém a famosa figura de um soberano cujo corpo consiste dos homens que

celebraram o contrato. Em suas mãos ele possui uma espada e um cajado de pastor,

simbolizando os poderes terrenos e religiosos. Ele encontra-se sobre terras e cidades,

indicando seu poderio sobre terras, cidades e seus habitantes. Enfim, em cima da

figura há um texto latino, extraído do livro de Jô: “Nenhum poder na terra é

comparável ao seu”. Reproduzo abaixo a figura descrita.

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Com relação aos atributos do soberano, Hobbes começa a enumerá-los no

capítulo 18, segundo capítulo da parte II. O estado tem, para Hobbes, a função de um

juiz com o monopólio do emprego da força. Inicialmente, ele tem poderes de decisão

sobre assuntos ligados à guerra e à paz. Mas também detém outros direitos: (1) não

poder ser deposto; (2) não poder ser atacado juridicamente; (3) o direito de indicar

seu sucessor.

O soberano produzirá leis e é somente agora, quando às leis estarão atreladas

punições no caso de seu descumprimento, que haverá efetividade nas leis da natureza,

conforme é mostrado no capítulo 26.

Duas observações fazem-se ainda necessárias. Em primeiro lugar, o soberano

também possui deveres. Ele deve garantir a paz interna e garantir, no caso de ataque

externo, a defesa. Caso ele fracasse nessas funções, não estará desempenhando sua

parte no pacto. Em segundo lugar, é preciso também observar que há uma situação

em que é lícito ao indivíduo romper com o pacto em que cedeu seus direitos ao

soberano. Trata-se da situação em que está ameaçado de perder a vida, de ser ferido

ou de ser preso. No pacto, o indivíduo não cedeu esses direitos ao soberano, nem

poderia tê-los cedido, já que foi justamente com vistas à proteção deles que o pacto

foi celebrado.

7. O contratualismo absolutista

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Antes de concluir este capítulo, gostaria de fazer uma observação sobre o tipo

de estado que o contrato, em Hobbes, produz. Trata-se de um estado absolutista. Se,

por um lado, Hobbes não se filia aos defensores do direito divino do monarca,

mostrando que a autoridade dos monarcas deriva, antes, de uma concessão que lhes

fazem os súditos, por outro lado, ele concebe o estado criado pelo contrato com

propriedades dos estados absolutistas. Essa posição de Hobbes desagradou, na

Inglaterra da época, tanto aos realistas, defensores da monarquia Stuart, quanto aos

defensores do Parlamento.

- - - - -

Apresentou-se no presente capítulo um modelo de instituição de estado que

não se justifica a partir da própria natureza humana, mas sim exige um ato de vontade

dos cidadãos para que seja erigido. A necessidade de remeter a criação do estado a

um contrato deveu-se ao fato de Hobbes ter uma concepção não teleológica e

comunitária, mas sim mecanicista e individualista de homem. O resultado foi a

concepção de um estado de características absolutistas. No próximo capítulo será

examinada a posição de um outro filósofo que, apesar de manter também que a

origem do estado está em um contrato, irá chegar a um modelo não absolutista de

governo, mas sim a um modelo constitucional.

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CAPÍTULO IV: LOCKE E O CONTRATUALISMO

CONSTITUCIONAL

1. Locke em sua época: vida, obra e contexto

Nascido em 1632, filho de jurista, Locke fez seus estudos de escola em casa e,

depois, de 1646 a 1652, no Westminster School, tendo, em seguida, ido para Christ

Church de Oxford. O modelo de filosofia dominante na época era a escolástica.

Interessou-se mais por filosofias modernas, como a de Descartes, que lia

privadamente, do que pelos clássicos. Em 1656, obteve o título B. A. e em 1658, o

M.A. Deu aulas de grego, de retórica e filosofia moral. Locke também interessava-se

por química e física e estudou medicina, obtendo um diploma em 1674, ainda que

nunca a tenha praticado. Participou de missões diplomáticas, tendo encontrado-se

com Frederico Guilherme I, Eleitor de Brandenburg e Duque da Prússia. Retornando

à Inglaterra, foi preceptor do filho do Duque de Shaftesbury. Em 1672, Shaftesbury é

nomeado Lord Chancellor, Locke é, então, indicado, por ele, para ocupar várias

secretarias importantes na Inglaterra. Entre 1675 e 1680, permanece na França, por

questões de saúde. Nessa época aproximou-se de grupos pro e contra a filosofia de

Descartes. Foi também dessa época que ficou marcado pela filosofia de Gassendi.

Retornado em 1680 à Inglaterra, voltou a servir Shaftesbury.

Em 1683, Locke vai para a Holanda, fugindo de possíveis perseguições. Seu

nome foi inscrito na lista de pessoas procuradas pelo governo quando, em 1685,

Jaime II assume o trono. Locke não retorna à Inglaterra até que, após a Revolução

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Gloriosa, Guilherme de Orange estivesse no trono inglês. Assumiu, mais uma vez,

cargos importantes na administração governamental. A partir de 1700, por questões

de saúde, retirou-se totalmente dos cargos públicos, morrendo em 1704.

A grande obra de Locke é o Ensaio acerca do Entendimento Humano.

Conforme o próprio autor afirma na carta ao leitor publicada junto à obra, ele

escreveu o Ensaio com o objetivo de determinar os limites do nosso conhecimento,

ou melhor: o que é ou não adequado a nosso conhecimento.

Were it fit to trouble thee with the history of this Essay, I should tell thee, that

five or six friends meeting at my chamber, and discoursing on a subject very

remote from this, found themselves quickly at a stand, by the difficulties that

rose on every side. After we had awhile puzzled ourselves, without coming

any nearer a resolution of those doubts which perplexed us, it came into my

thoughts that we took a wrong course; and that before we set ourselves upon

inquiries of that nature, it was necessary to examine our own abilities, and see

what objects our understandings were, or were not, fitted to deal with. This I

proposed to the company, who all readily assented; and thereupon it was

agreed that this should be our first inquiry. (1690, vol. 1, 7)

O principal escrito de J. Locke sobre política são os Dois Tratados sobre o

Governo. A obra consistia de dois livros. Os dois tratados criticavam a teoria do

direito divino dos reis, tal como R. Filmer a defendia em seu livro Patriarcha or

Natural Powers of Kings, de 1680. O primeiro dos tratados consiste em uma crítica

direta à obra de Filmer; o segundo, em uma teoria positiva que Locke apresenta como

alternativa. É muito possível que o segundo tratado tenha sido escrito antes do

primeiro. Conforme mantém Laslett em na introdução à edição organizada por ele

dos dois tratados,

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I am prepared to venture a general assertion on the basis of this discussion. As

early as 1679 Locke had begun a work on government, and a work with the

immediate object of refuting Filmer. He had begun it, it would seem, with

Shaftesbury‟s connivance, perhaps at his request and with his assistance in the

manner of sources. But the work he had begum was not the First Treatise, but

the Second. He seems to have reached paragraph number 22 of that Treatise,

possibly number 57 and even number 236, almost the very end, when he

changed his mind sometime in 1680, and decided to write the First Treatise

too. (1960, 59)

A primeira edição da obra, de 1689, foi seguida por duas outras. O segundo

tratado foi nomeado pelo próprio Locke de Essay concerning the True Original,

Extent. and End of Civil Government. Além disso, note-se que a obra possuía uma

parte entre os dois tratados que se perdeu, conforme observa seu autor no prefácio,

dedicado ao leitor: “what Fate has otherwise disposed of the Papers that should have

filled up the middle, and were more than all the rest, ‟tis not worth while to tell thee”

(1689, 137).

Dois Tratados sobre o Governo são publicados em 1689, um ano após a

Revolução Gloriosa, em que o monarca católico Jaime II foi deposto. Ao contrario do

que ocorreu com a deposição e execução de Carlos I, a deposição de Jaime II deu-se

em uma situação sem maiores violências. Jaime II subiu ao trono em 1685, com a

morte de seu irmão, Carlos II, que não havia deixado filhos legítimos. Jaime era

católico e partidário da doutrina do direito divino dos reis. Jaime deveria ser sucedido

por sua filha protestante, Maria, casada com Guilherme de Orange. No entanto,

nasceu-lhe um filho, que então passou a assumir o primeiro posto na linha de

sucessão ao trono inglês. A perspectiva de que um rei e próximo à monarquia

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francesa subisse ao trono, dando continuidade à política de Jaime II, opunha-se aos

interesses dos representantes do Parlamento inglês. Os dois partidos marcantes do

Parlamento (Whigs e Tories) uniram-se e propuseram a Guilherme de Orange que

invadisse a Inglaterra. Com a garantia de apoio interno, Guilherme invade e toma o

poder na Inglaterra. Foi uma mudança de poder sem derramamento de sangue,

chamada muitas vezes de Bloodless Revolution. O importante da Revolução Gloriosa

para a mudança política foi o fato de a partir de então o monarquia governar com o

Parlamento. O ato do Parlamento Bill of Rights (An Act Declaring the Rights and

Liberties of the Subject and Settling the Succession of the Crown), aprovado em

dezembro de 1689, estabelece as bases de uma monarquia constitucional para a

Inglaterra.

Os Tratados de Locke podem ser vistos como defendendo, por meio de um

modelo contratual de instauração do governo, uma monarquia constitucional. Esse

modelo identifica-se com o governo estabelecido na época, com a invasão de

Guilherme, a Revolução Gloriosa e o estabelecimento de uma monarquia

constitucional. Os objetivos da obra são relatados pelo próprio autor no prefácio da

obra:

These, which remain [sc. as partes dos Tratados que restaram], I hope are

sufficient to establish the Throne of our Great Restorer, Our present King

William; to make good his Title, in the Consent of the people, which being the

only one of all lawful Governments, he has more fully and clearly, than any

prince in Christendom; and to justify to the world the people of England,

whose love of their just and natural rights, with their resolution to preserve

them, saved the nation when it was on the very brink of slavery and ruin.

(1689, 137)

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Locke pretende, conforme mostra essa passagem, oferecer uma justificação teórica

para o modelo de governo que acabara de se estabelecer. Três objetivos são

discriminados: (a) legitimar o governo de Guilherme de Orange; (b) legitimar o título

do rei com base no consenso do povo; e (c) legitimar as ações do povo da Inglaterra,

i.e. do Parlamento, perante o mundo.

Esses objetivos são igualmente visíveis no título dado ao segundo tratado:

Essay concerning the True Original, Extent. and End of Civil Government. O livro

apresentará uma teoria da legitimação do poder político e essa legitimação dar-se-á a

partir da determinação da origem, do alcance e dos fins do estado. Um poder político

que derive de uma origem adequada, a saber: do consentimento do povo, que tenha

um âmbito determinado de exercício, a saber: respeitando certos direitos individuais,

e que persiga determinados fins ligados ao bem comum estará legitimado. O segundo

dos tratados vai consistir justamente em determinar os critérios a serem preenchidos

por esses três âmbitos.

2. O Primeiro Tratado e a discussão com Filmer

A teoria do direito divino dos reis remonta a Jean Bodin (1529-1596). Sua

principal obra, Les six livres de la République (onde “república” designa o conceito

geral de estado (res publica)) (1576), defende uma monarquia absolutista e

centralizante, em que o soberano só teria de prestar contas a Deus. Sua interpretação

era baseada no direito romano.

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R. Filmer, (1588-1653) em seu escrito Patriarcha, publicado postumamente

em 1680, mostra-se como um defensor do direito divino dos reis. Durantes os

conflitos entre o Parlamento e Carlos I, colocou-se a favor do rei. Sua teoria baseia-se

na Bíblia e seus argumentos remetem freqüentemente a eventos históricos. É das

Escrituras que ele deriva o direito dos reis. Inicialmente justifica o poder real com

base no poder paternal. É um poder natural que os pais têm em relação aos filhos. Do

mesmo modo, é também um poder natural o que o rei detém:

To confirm this natural right of regal power, we find in the Decalogue that the

law which enjoins obedience to kings is delivered in the terms of "Honour thy

father," as if all power were originally in the father. (…) If we compare the

natural rights of a father with those of a king, we find them all one, without

any difference at all but only in the latitude or extent of them: as the father

over one family, so the king, as father over many families, extends his care to

preserve, feed, clothe, instruct, and defend the whole commonwealth. His war,

his peace, his courts of justice, and all his acts of sovereignty, tend only to

preserve and distribute to every subordinate and inferior father, and to their

children, their rights and privileges, so that all the duties of a king are summed

up in an universal fatherly care of his people. (1680)

O próximo passo do texto consiste em mostrar que não é natural que o povo

governe ou escolha os governantes. Enfim, busca justificar por que as leis positivas

não podem interferir no poder real, um poder derivado diretamente de Deus.

A teoria do direito divino, na versão que a apresenta Filmer, baseia-se na

natureza. E é a partir de natureza que se justifica não apenas a existência do poder

estatal, mas também a forma que esse poder deve assumir, a saber: uma monarquia

absolutista. Se se comparam as posições de Hobbes com as de Filmer, observa-se,

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com relação ao primeiro, que, embora ele justifique a existência do poder estatal de

modo bem diferente da justificativa de Filmer, ambos validam uma monarquia

absolutista. Para Hobbes, no entanto, é um contrato e não um poder natural advindo

de Deus que legitima a autoridade real.

Já a teoria de Locke destoa duplamente da de Filmer. Não apenas a existência

do poder estatal é justificada diferentemente, mas o tipo de estrutura estatal também.

O Primeiro Tratado é indicado na página frontal da obra do seguinte modo: “In the

former, the false principles and foundations of Sir Robert Filmer, and his followers,

are detected and overthrown”.

Contra Filmer, Locke questiona a tese de que Adão teria um poder real

outorgado por Deus. Ainda que Adão tivesse esse poder, não há como provar que o

poder teria sido transmitido a seus herdeiros. Ainda que tivesse sido transmitido, a

ordem da sucessão não estava determinada. Os pressupostos da teoria de Fimer, como

mostra Locke, apóiam-se no fato de os homens não nascerem livres:

His System lies in a little compass, ‟tis no more but this,

That all Government is absolute Monarchy.

And the Ground he builds on, is this,

That no Man is Born free. (1689, 142)

Um resumo do que Locke realizou no Primeiro Tratado é

apresentado pelo próprio Locke no início do Segundo:

It having been shewn in the foregoing discourse,

1. That Adam had not, either by natural right of fatherhood, or by positive

donation from God, any such authority over his children, or dominion over the

world, as is pretended:

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2. That if he had, his heirs, yet, had no right to it:

3. That if his heirs had, there being no law of nature nor positive law of God

that determines which is the right heir in all cases that may arise, the right of

succession, and consequently of bearing rule, could not have been certainly

determined:

4. That if even that had been determined, yet the knowledge of which is the

eldest line of Adam‟s posterity, being so long since utterly lost, that in the

races of mankind and families of the world, there remains not to one above

another, the least pretence to be the eldest house, and to have the right of

inheritance:

All these premises having, as I think, been clearly made out, it is impossible

that the rulers now on earth should make any benefit, or derive any the least

shadow of authority from that, which is held to be the fountain of all power,

Adam’s private dominion and paternal jurisdiction; so that he that will not

give just occasion to think that all government in the world is the product only

of force and violence, and that men live together by no other rules but that of

beasts, where the strongest carries it, and so lay a foundation for perpetual

disorder and mischief, tumult, sedition and rebellion, (things that the followers

of that hypothesis so loudly cry out against) must of necessity find out another

rise of governwent, another original of political power, and another way of

designing and knowing the persons that have it, than what Sir Robert Filmer

hath taught us. (1689, 267s.)

A ausência de liberdade do homem está fundada, para Filmer, na Bíblia:

“Because the Scripture is not favourable to the liberty of the people, therefore many

fly to natural reason, and to the authority of Aristotle” (1680). O ponto de partida de

Locke na parte positive de sua teoria será, então, justamente o de apresentar uma

situação do homem em que, por natureza, ele seja livre. É nesse sentido que, no

Segundo Tratado, após um capítulo introdutório, Locke dedica-se a uma investigação

sobre o estado de natureza.

3. O estado de natureza no Segundo Tratado

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O segundo capítulo começa mencionando a importância de se começar a

investigação com uma determinação do estado de natureza, pois será somente a partir

dele que se poderá estabelecer de modo justificado o poder estatal:

TO understand political power right, and derive it from its original, we must

consider, what state all men are naturally in, and that is, a state of perfect

freedom to order their actions, and dispose of their possessions and persons, as

they think fit, within the bounds of the law of nature, without asking leave, or

depending upon the will of any other man (1689, 269)

A idéia geral do estado de natureza é compartilhada com Hobbes como sendo uma

situação em que não haveria o monopólio de poder do estado.

Um primeiro ponto a ser observado é o fato de Locke, ao contrário de Hobbes,

considerar o estado de natureza uma situação histórica em que os homens de fato

teriam vivido. O próprio Locke ergue com relação a sua teoria uma possível objeção,

a saber: a de que o estado de natureza seria uma ficção. Essa objeção será de resto,

como foi mostrado acima no capítulo I, apresentada por Hume às teorias contratuais.

A resposta de Locke não consiste, diferentemente do que fez Hobbes, em considerar

o estado de natureza como uma situação hipotética, mas antes em tentar avançar

provas de que de fato houve e ainda há, pelo menos em sua época, homens vivendo

nesse estado. Os argumentos vão no sentido de apresentar exemplos.

It is often asked as a mighty objection, where are, or ever were there any men

in such a state of nature? To which it may suffice as an answer at present, that

since all princes and rulers of independent governments all through the world,

are in a state of nature, it is plain the world never was, nor ever will be,

without numbers of men in that state. I have named all governors of

independent communities, whether they are, or are not, in league with others:

for it is not every compact that puts an end to the state of nature between men,

but only this one of agreeing together mutually to enter into one community,

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and make one body politic; other promises, and compacts, men may make one

with another, and yet still be in the state of nature. The promises and bargains

for truck, &c. between the two men in the desert island, mentioned by

Garcilasso de la Vega, in his history of Peru; or between a Swiss and an

Indian, in the woods of America, are binding to them, though they are

perfectly in a state of nature, in reference to one another: for truth and keeping

of faith belongs to men, as men, and not as members of society. (1689, 276s.)

O estado de natureza é marcado pela igualdade e liberdade de todos os

homens. Come em Hobbes, esses são os pontos de partida da análise. A liberdade, em

ambos, é baseada na igualdade. É porque os homens são iguais que possuem

igualmente liberdade. A igualdade em Locke, no entanto, não concerne às faculdades

naturais dos homens em ameaçar os outros. A igualdade significa, antes, o fato de os

homens, todos, terem nascido para usufruir das vantagens da natureza:

A state also of equality, wherein all the power and jurisdiction is reciprocal, no

one having more than another; there being nothing more evident, than that

creatures of the same species and rank, promiscuously born to all the same

advantages of nature, and the use of the same faculties, should also be equal

one amongst another without subordination or subjection, unless the lord and

master of them all should, by any manifest declaration of his will, set one

above another, and confer on him, by an evident and clear appointment, an

undoubted right to dominion and sovereignty. (1689, 269)

Dizer que os homens são “nascidos para as mesmas vantagens da natureza” significa

dizer que são livres para servirem-se das próprias forças e capacidades e para

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apropriarem-se dos objetos e forças da natureza. A posição de Locke é semelhante à

defendida pelos levellers13

.

Essa compreensão sobre o estado de natureza exclui, já de início, a

possibilidade da escravidão. Ao contrário da posição aristotélica, não há nada mais

anti-natural para Locke do que a escravidão.

No estado de natureza os homens são iguais e possuem liberdade no sentido

acima especificado, a saber: o poder de usarem suas faculdades da maneira que bem

desejarem, desde que não infringissem limites impostos por Deus. Dentre esses

limites, está a não licitude em destruir-se a si próprio, pois isso Deus não permitiria.

Liberdade é sinônimo, para Locke, de propriedade. Em sentido amplo,

propriedade significa liberdade ou direito (right). Ele também, às vezes, utiliza o

termo “propriedade” em sentido estrito. Neste caso, propriedade está ligada ao direito

de usar, com exclusividade, certos objetos externos.

Como em Hobbes, há também leis no estado de natureza, pois, apesar de

haver liberdade, não se trata de uma situação de licenciosidade, dado que há leis da

natureza que impedem certos cursos de ação. Essas leis são descobertas pela razão.

Dentre elas, está também uma lei que, partindo do fato de os homens serem iguais e

13

Os levellers formavam um movimento, por volta de meados do século XVII, na Inglaterra, cujos

membros defendiam a soberania popular. Foram sobretudo influentes durante as três guerras civis

inglesas (1642-1651). Além da soberania popular, também pregavam a tolerância religiosa, a igualdade

perante a lei e a extensão do direito a voto. Os direitos (rights) naturais eram igualmente defendidos. O

mais conhecido membro dos levellers foi John Lilburne.

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independentes, determina não poderem eles prejudicarem-se a si próprios, nem aos

outros.

But though this be a state of liberty, yet it is not a state of licence: though man

in that state have an uncontroulable liberty to dispose of his person or

possessions, yet he has not liberty to destroy himself, or so much as any

creature in his possession, but where some nobler use than its bare

preservation calls for it. The state of nature has a law of nature to govern it,

which obliges every one: and reason, which is that law, teaches all mankind,

who will but consult it, that being all equal and independent, no one ought to

harm another in his life, health, liberty, or possessions (1689, 270s.)

Locke acreditava não apenas em uma leis (law) naturais, o que Hobbes

chamava de lex naturalis, mas também, advindos dessa lei, em direitos (rights)

naturais (ius naturale). Esses direitos são direitos subjetivos, a que se pode recorrer

para legitimar cursos de ação. Não é a legislação humana que criaria esses direitos,

mas eles já existiriam no estado de natureza. A esses direitos corresponderiam

também deveres por parte dos outros.

O homem tal como Locke o idealiza já no estado de natureza não seria, como

em Hobbes, um ser marcado por uma psicologia egoísta, que buscaria sempre

satisfazer seus interesses. Isso, associado às leis naturais, faz com que, já no estado de

natureza, haja uma certa organização entre os homens, ainda que não haja ainda uma

instância com monopólio do poder, o estado.

Os homens são, pelas leis naturais, impedidos de invadir os direitos dos

demais homens. Quem é responsável pela execução dessa lei, na situação natural, são

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os próprios homens ou, melhor, cada um dos homens. As leis da natureza necessitam,

como qualquer lei, de uma instância que as ponha em prática, e essa instância são os

próprios indivíduos. Desse modo, em sendo cada um um executor da lei natural, cada

homem tem um poder sobre todos os demais, ainda que não seja um poder absoluto,

mas, antes, um poder ditado pela razão. Todos têm, assim, poder de punir aquele que

viole alguma lei natural.

Além do direito natural de punir quem aja contrariamente à lei natural, há,

também para cada um, o direito natural de buscar reparação caso tenha sido lesado

por alguém que violou a legislação natural. Todos teriam, desse modo, no estado de

natureza, um poder executivo para fazer ser eficaz a lei natural. Ainda que não

dispusessem de um poder legislativo, pois esse constituiria na própria natureza, que

nos daria as leis, que, por sua vez, seriam descobertas pela razão, disporiam do direito

de executá-las.

Locke antecipa uma objeção que lhe seria feita com relação a esse direito que

todos teriam, um direito natural, de executar as leis. Cada um, ao julgar casos em que

a própria pessoa estivesse envolvida como parte, seria imparcial, não aplicando a lei

natural de acordo com um padrão de objetividade. Além disso, as pessoas são

freqüentemente conduzidas por sentimentos de vingança e paixões exacerbadas, o

que os levaria a punir de modo mais rigoroso do que naturalmente seria correto (1689,

275). Locke, concede que a objeção faz sentido e que a instauração da sociedade civil

e do estado poderia ser uma solução a esse problema, mas o modelo de sociedade

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civil que o solucionaria não poderia ser a monarquia absoluta, pois esta incorreria nos

mesmos problemas presentes no estado de natureza.

I easily grant, that Civil Government is the proper Remedy for the

Inconveniencies of the State of Nature, which must certainly be Great, where

Men may be Judges in their own Case, since ‟tis easily to be imagined, that he

who was so unjust as to do his Brother an Injury, will scarce be so just as to

condemn himself for it: But I shall desire those who make this Objection, to

remember, that Absolute Monarchs are but Men; and if Government is to be

the Remedy of those Evils, which necessarily follow from Mens being Judges

in their own Cases, and the State of Nature is therefore not to be endured, I

desire to know what kind of Government that is, and how much better it is

than the State of Nature, where one Man, commanding a multitude, has the

Liberty to be Judge in his own Case, and may do to all his Subjects whatever

he pleases, without the least liberty to any one to question or controle those

who Execute his Pleasure? (1689, 276)

Ao conceder a objeção, Locke afirma que o governo civil, i.e. o estado, seria

de fato um meio de remediar o problema, já indicando aqui uma razão para a

existência do estado, para se justificar a passagem da situação natural ao estado, à

sociedade civil. No entanto, serve-se também dessa concessão para mostrar que o

estado em questão não pode ser uma monarquia absoluta, pois, nesse caso, uma

pessoa, a saber: o soberano, julgaria, em última instância, todas as situações,

inclusive aquelas em que ele possui interesses. Com a monarquia absoluta repetir-se-

ia a mesma estrutura problemática presente no estado de natureza.

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Locke distingue o estado de natureza de um estado de guerra, mostrando aqui

uma discussão com posições como a de Hobbes. O estado de natureza é um estado

regrado por leis, as leis naturais, a que todos dariam adesão por serem racionais e por

ser a razão a instância que revela essas leis aos homens. O problema aí é o fato de

todos serem executores das leis naturais, inclusive nos casos em que os próprios

interesses estão em jogo. Diferentemente desse estado, o estado de guerra é um

estado em que os homens explicitamente buscam destruir a vida de outro(s)

homem(ns). Esse estado baseia-se no direito natural de “destroy that which threatens

me with Destruction” (1689, 278). Esse direito advém da lei natural que Locke,

ecoando em parte Hobbes, considera como a mais fundamental:

For, by the Fundamental Law of Nature, Man being to be preserved as much

as possible, when all cannot be preserv‟d, the safety of the Innocent is to be

preferred: And one may destroy a Man who makes War upon him, or has

discovered an Enmity to his being, for the same Reason that he may kill a Wolf

or a Lyon; because such Men are not under the ties of the Common Law of

Reason, have no other Rule, but that of Force and Violence, and so may be

treated as Beasts of Prey, those dangerous and noxious Creatures, that will be

sure to destroy him whenever he falls into their Power. (1689, 278s.)

Mas não apenas é lícito matar alguém quando este atenta contra a vida, mas

também em situações em que um homem pretende manter um outro sob seu poder

absoluto, como é o caso da escravidão, que poderia levar, em última instância à

destruição do próprio homem. Locke estende a legitimidade de se matar alguém a

uma terceira situação. Não apenas quando se atenta contra a vida, nem apenas quando

se busca escravizar, mas também nos casos em que alguém pretende apoderar-se de

algum item externo de propriedade, “because using force, where He has no Right, to

get me into his Power, let his pretence be what it will, I have no reason to suppose,

that he, who would take away my Liberty, would not when he had me in his Power,

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take away every thing else. And therefore it is Lawful for me to treat him , as one

who has put himself into a State of War with me, i.e. kill him if I can” (1689, 280).

O estado de guerra, no entanto, não deve ser confundido com o estado de

natureza. Locke frisa essa diferença pelo fato de, segundo ele, alguns terem

confundido os dois estados (1689, 280). A referência aqui é clara a Hobbes que,

como vimos, concebeu o estado de natureza no De Cive como uma guerra de todos

contra todos. O estado de natureza, de acordo com Locke, seria uma situação em que

reinaria a paz, a boa vontade, o auxílio recíproco e a preservação; o estado de guerra,

por outro lado, estaria marcado pela inimizade, malícia, violência e destruição mútua.

And here we have the plain difference between the state of nature and the state

of war, which however some men have confounded, are as far distant, as a

state of peace, good will, mutual assistance and preservation, and a state of

enmity, malice, violence and mutual destruction, are one from another. (1689,

280)

A razão, tornando claras as leis naturais, é o guia das relações entre os homens

no estado de natureza. Já no estado de guerra, será, antes, a força de uma pessoa sobre

a outra que determinará a convivência. A ausência de um juiz comum a todos, de tal

modo que cada um seja juiz em todos os casos, caracteriza para Locke o estado de

natureza; a força sem direito sobre um homem caracteriza o estado de guerra. A

passagem do estado de natureza à sociedade civil vai ser marcada exatamente pela

existência de um juiz comum e pela retirada das mãos de cada um a possibilidade de

ele ser um executor da lei natural: “Want of a common judge with authority, puts all

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men in a state of nature: force without right, upon a man‟s person, makes a state of

war, both where there is, and is not, a common judge” (1689, 281)

O estado de guerra, de resto, também designaria um estado em que houvesse

um monarca absolutista, pois este colocaria, para Locke, sem direito, uma ameaça

sobre a vida de todos os súditos. A noção de um estado de guerra, descrito aos moldes

de Locke, seria um estado que ocorreria não apenas quando a vida de alguém fosse

ameaçada por outro, mas também quando sua integridade física ou seu patrimônio

estivessem em risco. Ora, uma monarquia absolutista, tal como concebida por Hobbes,

serviria apenas para garantir a vida e, possivelmente, a integridade física das pessoas,

mas não suas propriedades, não seu patrimônio. Exatamente por isso esse modelo de

monarquia não será uma solução para Locke. Ainda que o direito mais fundamental

seja a vida, há outros direitos naturais que seriam também, segundo ele, invioláveis,

ainda que alienáveis.

É exatamente para evitar que se caia, da situação natural, em um estado de

guerra que Locke vai justificar o estabelecimento da sociedade civil.

To avoid this state of war (wherein there is no appeal but to heaven, and

wherein every the least difference is apt to end, where there is no authority to

decide between the contenders) is one great reason of men‟s putting

themselves into society, and quitting the state of nature: for where there is an

authority, a power on earth, from which relief can be had by appeal, there the

continuance of the state of war is excluded, and the controversy is decided by

that power. (1689, 282)

4. O direito de propriedade

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Antes de passar propriamente à abordagem da instauração da sociedade civil,

farei algumas observações sobre o direito à propriedade.

A noção de propriedade no sentido estrito, i.e. no sentido de se possuir, sobre

bens externos (que não o próprio corpo e a própria vida) direito de usar, usufruir,

alienar e reivindicar, é de fundamental importância para Locke. Ele legitima esse

direito com base no fato de, pelo trabalho, o homem tornar úteis certos objetos

naturais. Deus deu a natureza aos homens em comum. Mas, em várias situações, a

natureza, tal como se encontra, não pode ser utilizada. É necessário que o trabalho

humano a torne utilizável. O argumento de Locke segue a seguinte linha: (1) por

natureza o homem é proprietário de seu corpo; (2) pelo fato de o trabalho ser um

atributo do corpo, ele pertence ao homem, como sua propriedade; (3) quando o

homem, por meio do trabalho, altera algum objeto da natureza, ele mistura esse

objeto com algo que é sua propriedade; e (4) disso segue-se que o objeto natural que é

alterado pelo trabalho humano passa a ser de propriedade daquele que o alterou.

Though the earth, and all inferior creatures, be common to all men, yet every

man has a property in his own person: this no body has any right to but

himself. The labour of his body, and the work of his hands, we may say, are

properly his. Whatsoever then he removes out of the state that nature hath

provided, and left it in, he hath mixed his labour with, and joined to it

something that is his own, and thereby makes it his property. It being by him

removed from the common state nature hath placed it in, it hath by this labour

something annexed to it, that excludes the common right of other men: for this

labour being the unquestionable property of the labourer, no man but he can

have a right to what that is once joined to, at least where there is enough, and

as good, left in common for others. (1689, 287s.)

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A apropriação dos bens naturais por parte do homem tornando-os sua

propriedade, desse modo, é permitida por uma lei natural. No entanto, há limites

nessa apropriação, limites dados pela própria lei natural. Não é lícito que haja uma

apropriação de bens naturais de tal modo que outros fiquem privados desses bens.

Tampouco é permitido que os bens naturais apropriados não possam ser utilizados e

acabem por apodrecer.

(…) for this labour being the unquestionable property of the labourer, no man

but he can have a right to what that is once joined to, at least where there is

enough, and as good, left in common for others. (1689, 288)

It will perhaps be objected to this, that if gathering the acorns, or other fruits of

the earth, &c. makes a right to them, then any one may ingross as much as he

will. To which I answer, Not so. The same law of nature, that does by this

means give us property, does also bound that property too. God has given us

all things richly, 1 Tim. vi. 12. is the voice of reason confirmed by inspiration.

But how far has he given it us? To enjoy. As much as any one can make use of

to any advantage of life before it spoils, so much he may by his labour fix a

property in: whatever is beyond this, is more than his share, and belongs to

others. Nothing was made by God for man to spoil or destroy. (1689, 290)

A questão que surge também com respeito à propriedade é a aquisição não nos

frutos produzidos pela terra, mas a da própria terra. A propriedade da terra é

adquirida do mesmo modo que seus frutos. O homem a adquire à medida que a

mistura a seu trabalho. Quando ele ara, planta, cultiva, ele mescla seu trabalho à terra,

o que lhe outorga o direito de ser dela proprietário. Com isso, ele pode cercá-la

retirando-a do âmbito do bem comum. Deus, ele mesmo, colocou as terras à

disposição dos homens para que eles as trabalhassem, as tornassem úteis. Aquele,

então, que trabalha a terra torna-se seu proprietário.

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(…) the chief matter of property being now not the fruits of the earth, and the

beasts that subsist on it, but the earth itself; as that which takes in and carries

with it all the rest; I think it is plain, that property in that too is acquired as the

former. As much land as a man tills, plants, improves, cultivates, and can use

the product of, so much is his property. He by his labour does, as it were,

inclose it from the common. (1689, 290s.)

A posição de Locke em defesa da propriedade faz com que ele seja com

justeza considerado o pai do liberalismo. O pensamento liberal, sobretudo aquele que

se centra na defesa da propriedade privada encontra em Locke seu principal defensor.

Uma posição totalmente contrária está presente no Discurso sobre a Origem e

os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. O que se apropria de terras é

considerado por Rousseau um impostor e alguém que produziu grandes males à

humanidade. A famosa passagem é a seguinte:

The first man, who after enclosing a piece of ground, took it into his head to

say, this is mine, and found people simple enough to believe him, was the real

founder of civil society. How many crimes, how many wars, how many

murders, how many misfortunes and horrors, would that man have saved the

human species, who pulling up the stakes or filling up the ditches should have

cried to his fellows: Beware of listening to this impostor; you are lost, if you

forget that the fruits of the earth belong equally to us all, and the earth itself to

nobody! (1754 , 113)

Com relação ao modo como Locke apresenta e defende o direito à propriedade

é interessante observar a interpretação oferecida por C. B. MacPherson (1962, 199ss.).

Este intérprete mostra que, embora inicialmente Locke possa parecer defender a

propriedade privada de bens nos limites do que prega a lei natural, o que ele faz é

justamente remover esses limites no que toca à propriedade. “Locke‟s astonishing

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achievement was to base the property right on natural right and natural Law, and then

to remove all natural law limits from the property right” (199).

Locke parte do fato de que tanto a Bíblia quanto a razão natural mostram que

a terra e seus frutos foram criados para serem usados pelos homens em comum. Esse

ponto de partida era à época defendido por teóricos puritanos. Mas, partindo-se dessa

visão da função da terra e de seus frutos, fica difícil, conforme o próprio Locke

admite, justificar a propriedade. Contra os que derivavam do ponto de partida

mencionado a ilegitimidade da propriedade privada, ele “shall endeavour to shew,

how men might come to have a property in several parts of that which God gave to

mankind in common, and that without any express compact of all the commoners”

(1689, 286). MacPherson interpreta essa estratégia como consistindo justamente em

eliminar os limites que a lei natural imporia ao direito de propriedade. Apesar das

limitações mencionadas acima –a não apropriação para além dos limites a partir dos

quais os outros seriam privados e para além dos limites em que os frutos apropriados

acabariam por apodrecer–, limitações aplicadas explicitamente aos frutos da terra e

implicitamente à própria terra, Locke parece, de acordo com MacPherson, considerar

ilimitadas as terras. Locke, para justificar a apropriação de terras, refere-se à grande

quantidade de terra disponível, o que, para a época, era sobretudo evidente após a

descoberta do Novo Mundo. Mas, em seguida afirma:

But be this as it will, which I lay no stress on; this I dare boldly affirm, that the

same rule of propriety, (viz.) that every man should have as much as he could

make use of, would hold still in the world, without straitening any body; since

there is land enough in the world to suffice double the inhabitants, had not the

invention of money, and the tacit agreement of men to put a value on it,

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introduced (by consent) larger possessions, and a right to them; which, how it

has done, I shall by and by shew more at large. (1689, 293)

Exatamente aqui MacPherson vê a retirada dos limites que a lei natural imporia ao

direito de propriedade.

5. A instauração da sociedade civil por meio do consenso

Conforme mencionado acima, no final do item 3, a sociedade civil seria o

meio apropriado de impedir que os homens passassem do estado de natureza ao

estado de guerra. Aqui surgem duas questões que já foram abordadas no caso de

Hobbes: Como se dá essa passagem? e: Que feições deve assumir a sociedade civil

resultante? É importante, para responder a essas duas questões, ter em mente o fato de

que a formação do estado tem por objetivo justamente garantir os direitos naturais e

fazer valer, sem imparcialidade em sua aplicação, as leis naturais. Portanto, é para

garantir os direitos à vida, à integridade corporal e à propriedade de bens externos

que deverá ser instaurada a sociedade civil. Além disso, é também relevante não

perder de vista que, no estado de natureza, os homens são iguais, além de serem livres,

livres para igualmente (a) usufruírem de seus direitos e (b) para executarem as leis da

natureza caso alguém as viole.

O que impediria que se saísse do estado de natureza para o estado de guerra

seria a existência do monopólio de execução das leis. Ao invés de cada um ser

executor das leis da natureza, esse direito passaria às mãos de uma instância que não

os indivíduos.

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A sociedade civil irá impor limites ao homem que se encontrava no estado de

natureza. Como, no entanto, por natureza, os homens são iguais e livres, a restrição a

alguns de seus interesses só poderá ser legitimamente realizada por consenso dos

próprios homens. É no consenso que se inicia a sociedade civil. Aqui vê-se como

Locke adere a uma teoria do contrato.

MEN being, as has been said, by nature, all free, equal, and independent, no

one can be put out of this estate, and subjected to the political power of

another, without his own consent. The only way whereby any one divests

himself of his natural liberty, and puts on the bonds of civil society, is by

agreeing with other men to join and unite into a community, for their

comfortable, safe, and peaceable living one amongst another, in a secure

enjoyment of their properties, and a greater security against any, that are not of

it. This any number of men may do, because it injures not the freedom of the

rest; they are left as they were in the liberty of the state of nature. (1689, 330s.)

É uma regra de prudência, uma regra que permite aos homens melhor realizar

seus interesses, que os levará a, de modo racional, abrir mão de sua condição natural

e aderir ao estado.

O ingresso na sociedade civil consiste sobretudo em se abrir mão do direito de

executar as leis naturais. Nem todos terão mais esse direito, o que impediria que todos

pudessem julgar qualquer um, inclusive aqueles em que têm interesse. Além disso,

em se estabelecendo um poder sobre os indivíduos, será evitada a passagem do estado

de natureza para o estado de guerra. O que os cidadãos concedem ao monarca é o

poder político; ao mesmo tempo, abrem mão da auto-defesa.

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O consentimento pode ser um consentimento tácito quando se herda a

propriedade. O estado garantirá sobretudo a propriedade privada, sobretudo a relativa

à terra. O estado, por deter territórios, determina também como se pode dispor das

terras no âmbito desses territórios, e é no âmbito desse território que se herda. Ainda

que a propriedade seja um direito natural para Locke, a sociedade civil, que, em

última instância, protege a propriedade, é artificial: “The great and chief end,

therefore, of men‟s uniting into common-wealths, and putting themselves under

government, is the preservation of their property. To which in the state of nature

there are many things wanting” (1689, 350s.)

6. A estrutura do estado

O estado seria composto por Locke por três poderes: o poder de fazer as leis, o

poder de guerra e paz e o poder executivo.

Inicialmente, os indivíduos abrem mão de seu poder político para constituir a

sociedade civil. O início desta se dá por um consentimento explícito:

Nothing can make any man so, but his actually entering into it by positive

engagement, and express promise and compact. This is that, which I think,

concerning the beginning of political societies, and that consent which makes

any one a member of any common-wealth. (1689,349)

Tendo cada um consentido em entrar na sociedade civil, será agora a maioria que

determinará o restante. A maioria constituirá um governo, ao criar o legislativo, que

seria o poder supremo. O legislativo é o primeiro poder que se estabelece após o

consentimento dos indivíduos. Sua função é criar as leis, mas, tão logo as cria,

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dissolve-se, deixando ao poder executivo, que lhe é subordinado, a tarefa de executá-

las, i.e. fazer com que sejam cumpridas.

In all cases, whilst the government subsists, the legislative is the supreme

power: for what can give laws to another, must needs be superior to him; and

since the legislative is no otherwise legislative of the society, but by the right it

has to make laws for all the parts, and for every member of the society,

prescribing rules to their actions, and giving power of execution, where they

are transgressed, the legislative must needs be the supreme, and all other

powers, in any members or parts of the society, derived from and subordinate

to it. (1689, 367s.)

The executive power, placed any where but in a person that has also a share in

the legislative, is visibly subordinate and accountable to it, and may be at

pleasure changed and displaced (...) (1689, 368)

Dado que os estados possuem relações externas com outros estados, é

necessário também um poder que se ocupe das questões de paz e guerra. Esse seria

para Hobbes o poder federativo.

7. O contratualismo constitucional

O monarca pode participar do legislar, mas nunca será superior ao legislativo.

Com isso, Locke serve-se da teoria contratual para estabelecer um tipo de governo

que, longe do resultado a que chegou Hobbes, vai deixar o poder que lhe foi

conferido no pacto não nas mãos de um soberano, mas antes nas mãos do poder

legislativo, criado pela maioria.

Locke não exclui a existência do monarca. este pode muito bem participar do

legislativo (como é o caso na Inglaterra do King ou, conforme o caso, Queen in

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Parliament), mas ele, na verdade, não é um chefe supremo; ele é apenas o chefe do

executivo, que é subordinado ao legislativo e deve apenas fazer cumprir as leis

produzidas pelo legislativo.

In some common-wealths, where the legislative is not always in being, and the

executive is vested in a single person, who has also a share in the legislative;

there that single person in a very tolerable sense may also be called supreme:

not that he has in himself all the supreme power, which is that of law-making;

but because he has in him the supreme execution. (1689, 368)

- - - - -

O governo gerado a partir do contrato idealizado por Locke constitui-se em

um modelo que, apesar de poder ser monarquista, está longe de ser uma monarquia

absoluta. O fato de o monarca, que exerce o poder executivo supremo e pode

participar do Parlamento, estar sempre submetido a este último, i.e. ao legislativo, faz

com que a monarquia que possa surgir do contrato seja uma monarquia constitucional.

Essa mudança de perspectiva com relação a Hobbes resulta dos tipos de direitos de

que o indivíduo não abre mão quando dá seu consentimento para formar a sociedade

civil. Em Hobbes, os direitos que não eram passados ao soberano eram o direito à

vida e o direito à integridade física. Já em Locke, além desses, há também o direito à

propriedade. Isso faz com que o soberano não possa dispor como bem lhe aprouver

do direito à propriedade de seus súditos.

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CONCLUSÃO

O objetivo desta tese foi duplo. Por um lado mostrar que o modelo contratual

de geração do estado, presente nos teóricos políticos modernos pode se adequar a

diferentes tipo de governo: monarquia absolutista ou monarquia constitucionalista.

Cada um desses tipos não está desvinculado da vida política inglesa do século XVII.

O governo de Carlos I, por exemplo, pode ser considerado como uma monarquia de

tipo absolutista; o de Guilherme de Orange, como uma monarquia constitucional. No

geral as monarquias absolutistas eram legitimadas não com base em teorias

contratuais, mas sim por recurso ao direito divino dos reis. O que é marcante na teoria

hobbesiana é o fato de ela defender, em última instância, uma monarquia absoluta,

mas com base em pressupostos contratuais.

Mas a tese teve um outro objetivo. Chamar atenção para o fato de as teorias

contratuais pressuporem uma noção de homem que não é evidente por si só. Trata-se

da noção de homem como um indivíduo. É bem verdade que tanto Hobbes quanto

Locke admitem que, mesmo no estado de natureza, os homens mantinham algum tipo

de associação, estavam, de algum modo, em relação uns com os outros. Mas ambos

negam que faça parte da natureza humana viver em uma estrutura cujas

determinações possam restringir seus interesses. O poder estatal, com função de

impedir e determinar certos cursos de ação, tem de ser legitimado, por não fazer parte

da natureza humana. E essa legitimação só pode se dar por meio do assentimento dos

próprios homens. O que subjaz a essa visão é o fato de o homem ser um indivíduo,

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um ser que, por natureza, não está submetido às estruturas de uma sociedade que o

suplanta.

Para visualizar melhor essa compreensão de ser humano como um indivíduo,

usei um modelo contrastante, o modelo aristotélico, segundo o qual faz parte da

essência mesma de homem que ele pertença à pólis. O homem não é, de acordo com

Aristóteles, um indivíduo, mas sim um animal político, um animal que, para realizar

bem sua função, deve viver na estrutura da pólis.

Sobretudo o segundo objetivo tem um papel importante para as discussões

atuais sobre política. Grande parte das teorias políticas atuais filia-se ao liberalismo,

em geral defendendo alguma versão da posição de Rawls. O pressuposto básico das

doutrinas liberais é justamente uma concepção de homem como indivíduo. Mas, se

essa visão do que é o ser humano é meramente um construto histórico, então as

teorias liberais devem ser relativizadas.

Esses dois objetivos determinaram a estrutura do trabalho. Comecei, no

capítulo I, com algumas considerações gerais sobre o contratualismo. Indiquei os

pressupostos em que se baseiam as teorias contratuais, sobretudo os pressupostos

acerca da concepção de homem presente no contratualismo. Passei, então, a explorar

a razão de se recorrer na época moderna ao modelo contratual para legitimar as

estruturas estatais, i.e. estruturas que restringem o âmbito de liberdade dos indivíduos.

Como o termo contrato, por sua vez, pode ser aplicado a modelos teóricos diferentes,

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não se restringindo ao modelo político, distingui três sentidos em que se utiliza o

termo. Enfim, apresentei, ainda no primeiro capítulo, algumas críticas e influências

que o modelo contratual teve, do século XVII até hoje.

O segundo capítulo dedicou-se ao modelo que serviu de contraste ao

contratual. Examinei a posição de Aristóteles presente na Política. Como o texto da

Política, segundo vários intérpretes, é um desenvolvimento de questões já presentes

nos escritos éticos aristotélicos, fui levado a um exame da Ética Nicomaquéia. Desta

obra foi obtida uma noção de homem e da função que o homem deve preencher.

Dado que essa função remete à estrutura da pólis, passei então à investigação da pólis

ideal tal como aparece nos livros VII e VIII da Política. O importante dessa

investigação é, para a presente tese, enfatizar que o homem, na concepção aristotélica

ou, melhor, na concepção pré-moderna em geral, não é um indivíduo, mas um animal

político.

Os terceiro e quarto capítulos buscaram explorar duas teorias contratuais

elaboradas no contexto inglês do século XVII, a hobbesiana e a lockiana. O ponto

comum dessas teorias é a idéia de que o homem é um indivíduo e de que o estado,

como instância restritiva dos interesses individuais, deve ser legitimado. O estado só

pode ter sua existência legitimada se os indivíduos consentem nessa existência. Esse

é o núcleo das teorias contratuais da sociedade civil. Para extrair esse consentimento

por parte dos indivíduos, os dois autores descrevem uma situação em que os homens

estariam, ainda que talvez em algum tipo de associação entre si, fora do monopólio de

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poder do estado. Essa situação foi designada de situação natural ou estado de natureza.

O objetivo é o de mostrar que os indivíduos garantem melhor o preenchimento de

seus interesses se estiverem submetidos ao poder estatal do que se estiverem na

situação natural, o que justifica que elas devam dar seu consentimento para formar o

estado.

Apesar dos objetivos semelhantes entre as teorias de Hobbes e de Locke, eles

chegam a modelos distintos de estado resultante do pacto. Um chega a um modelo

absolutista, o outro a um modelo constitucional. Pretendi mostrar que essa diferença

funda-se sobretudo nos diferentes direitos que Hobbes e Locke elegeram para serem

tutelados pelo estado.

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