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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas GABRIELA PAIVA DE TOLEDO IDEA DEL TEMPIO DELLA PITTURA (1590) DE GIOVANNI PAOLO LOMAZZO: ESTUDO CRÍTICO DA OBRA E TRADUÇÃO PARCIAL COMENTADA. CAMPINAS 2017

GABRIELA PAIVA DE TOLEDO IDEA DEL TEMPIO DELLA PITTURA ... · organização do que faltava para a viagem. Minha mãe deixou o trabalho para me acompanhar nos três primeiros meses

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Page 1: GABRIELA PAIVA DE TOLEDO IDEA DEL TEMPIO DELLA PITTURA ... · organização do que faltava para a viagem. Minha mãe deixou o trabalho para me acompanhar nos três primeiros meses

Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

GABRIELA PAIVA DE TOLEDO

IDEA DEL TEMPIO DELLA PITTURA (1590)

DE GIOVANNI PAOLO LOMAZZO:

ESTUDO CRÍTICO DA OBRA E TRADUÇÃO PARCIAL

COMENTADA.

CAMPINAS

2017

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GABRIELA PAIVA DE TOLEDO

IDEA DEL TEMPIO DELLA PITTURA (1590) DE GIOVANNI PAOLO LOMAZZO:

ESTUDO CRÍTICO DA OBRA E TRADUÇÃO PARCIAL COMENTADA.

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de

Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em História, na área História da Arte.

Supervisor/Orientador: Prof. Dr. Luiz Cesar Marques Filho

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA [PELO PELA ALUNA GABRIELA PAIVA DE TOLEDO E ORIENTADA PELO PROF. DR. LUIZ CESAR MARQUES FILHO.

CAMPINAS

2017

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2014/05800-8

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Idea del tempio della pittura (1590) by Giovanni Paolo Lomazzo: critical study and partial commented translation Palavras-chave em inglês: Italian art Painting, italian Renaissance Art - Discourses, essays and conferences Área de concentração: História da Arte Titulação: Mestra em História Banca examinadora: Luiz Cesar Marques Filho [Orientador] Patricia Dalcanale Meneses Alexandre Ragazzi Data de defesa: 31-03-2017 Programa de Pós-Graduação: História

Pow ered b y

Toledo, Gabriela Paiva de, 1989- T575i Idea del tempio della pittura (1590) de Giovanni Paolo Lomazzo : estudo

crítico da obra e tradução parcial comentada / Gabriela Paiva de Toledo. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

Orientador: Luiz Cesar Marques Filho. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas.

1. Lomazzo, Giovanni Paolo, 1538-1592 - Idea del tempio della pittura. 2. Arte italiana. 3. Pintura italiana. 4. Renascença. 5. Arte - Discursos, ensaios e conferências. I. Marques Filho, Luiz Cesar,1952-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado,

composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública

realizada em 31/03/2017, considerou a candidata Gabriela Paiva de Toledo

aprovada.

Prof Dr Luiz Cesar Marques Filho

Profa Dra Patricia Dalcanale Meneses

Prof Dr Alexandre Ragazzi

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica da aluna.

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Agradecimentos

Desenvolver uma pesquisa historiográfica é uma tarefa bastante solitária. Porém,

isto não significa o não envolvimento das pessoas do nosso entorno. É preciso muita

compreensão da família e dos amigos diante da constante ausência ou da presença

passageira, sempre com um prazo impondo a partida. Agradeço a todos por isso. No entanto,

devo o maior dos agradecimentos aos meus pais, Sandra e Vagner, pois, para além desta

compreensão, a participação de ambos foi de fato imprescindível.

Quando sofri três fraturas no cotovelo em um acidente e fui encaminhada para

uma cirurgia emergencial, duas semanas antes do início do meu período de pesquisa em

Florença - eu estava com tudo preparado e com uma bolsa de pesquisa outorgada pela

FAPESP - , meus pais interromperam tudo para me ajudar na recuperaração e na

organização do que faltava para a viagem. Minha mãe deixou o trabalho para me

acompanhar nos três primeiros meses de estadia na Itália. Eu realmente não tenho meios

para agradecê-la o suficiente. Obrigada a ambos pelo suporte em todos os sentidos; por não

questionarem o fato de eu não deixar a biblioteca do Kunst 1 para nada, inclusive aos

domingos; pela paciente companhia em todo e qualquer museu, igreja, galeria e exposição;

pelos apuros com relatórios e documentação; pelas idas e vindas de bibliotecas quando eu

não podia dirigir; pela constante preocupação, carinho, amor e apoio ao longo desses três

anos; por lerem textos, ouvirem as minhas dúvidas existenciais e meus impasses com o meu

objeto de pesquisa. Não sei o que faria sem os dois.

Gostaria de agradecer ao meu orientador, o prof. Dr. Luiz Marques, quem me

conduziu pela História da Arte desde quando aluna de graduação. O professor Luiz Marques

é um intelectual sem igual, de quem eu tive o privilégio de ser aluna e orientanda. Agradeço-

lhe imensamente pelo constante encorajamento. Há alguns anos, quando conversávamos

sobre um possível tema para o projeto de mestrado, o prof. Luiz me sugeriu este tratado do

Lomazzo, afirmando que: "Se você sobreviver ao Lomazzo, você sobrevive a qualquer

coisa!". Pois bem, sobrevivi, mas não sem sua orientação.

Agradeço à profa.Dr.a Patricia Dalcanale Meneses e ao prof. Dr. Alexandre

Ragazzi pela inestimável participação no exame de qualificação e na banca de defesa. À

profa. Isabella Tardin Cardoso (IEL - UNICAMP) por ter generosamente se disposto a

corrigir a tradução dos epigramas do latim para o português. Às minhas irmãs, Rafaele e

1 Kunsthistorisches Institut in Florenz.

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Ana, pelo apoio, amor e encorajamento. Aos colegas da pós, Felipe, Gabriela, Francisco,

Antonio, Letícia, Juliana, Inácio, Larissa, Paula, Mateus, Ian e os demais. Foram muitas

trocas, dicas, conversas, artigos recomendados, cafés, congressos. Em especial ao Ian, quem

me incentivou a entrar no processo para a bolsa de estudos em Florença e quem, sempre que

eu me encontrava em completo desespero acadêmico, me apoiava dizendo que sentia o

mesmo, e que, portanto, tudo estava bem. E pelas conversas mesmo que à distância. À

Larissa, minha querida companhia em todo o período em que estive em Florença.

Ao professor Dr. Alessandro Nova - por ter me aceito em seu departamento, pelas

reuniões de orientação e por sua imensa gentileza - e ao Kunsthistorisches Institut de

Florença - Mandy Richter, Christine Kloeckner e Fabian Jonietz - sou profundamente grata.

Fui muito bem acolhida por todos. Também devo agradecer aos bibliotecários da Biblioteca

Ambrosiana (Milão) por terem sido tão solícitos e me permitirem examinar todos os desenhos

relacionados ao Lomazzo e seu círculo. Também sou grata à Società Storica Lombarda, à

Biblioteca Braidense, à Villa i Tatti e à Mediateca Fondazione Scuole Civiche de Milão.

Agradeço imensamente à Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São

Paulo (FAPESP) por financiar integralmente esta pesquisa e pela bolsa concedida (BEPE)

para o meu período de pesquisa em Florença e em Milão. Eu não poderia ter realizado este

trabalho sem este suporte financeiro.

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RESUMO

O tratado teórico de Giovanni Paolo Lomazzo, Ideia do templo da pintura,

publicado em Milão em 1590, constitui um valioso meio para a compreensão do contexto

artístico italiano da segunda metade do século XVI. Nele convergem insignes correntes do

pensamento do período e discussões no campo das artes figurativas de extrema relevância

para todo o Cinquecento, resultando em uma proposta teorética singular e pioneira, na qual se

verificam formulações que de certo modo se manifestam na estética, na teoria, na

historiografia e na crítica artística dos séculos posteriores. Através desta obra e de uma breve

análise da história de sua recepção e da trajetória de seu autor, é possível observar as tensões

sociais e culturais que envolviam os artistas e sua atividade. Em vista disso, a produção de

uma tradução comentada (ainda que parcial) deste tratado, acompanhada de um estudo crítico

da obra - contexto de produção, recepção, Fortuna Crítica -, é pertinente para o campo da

História da Arte em âmbito nacional.

Palavras Chave: Arte Italiana; Giovanni Paolo Lomazzo; Idea del tempio della pittura; Pintura; Renascimento; Teoria da Arte.

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ABSTRACT

Giovanni Paolo Lomazzo's theoretical treatise, Idea of the temple of painting,

published in Milan in 1590, is a valuable medium for understanding the Italian artistic context

in the second half of the sixteenth century. In this work, one can find important currents of

thought of the period along with discussions in the field of figurative arts of extreme

relevance for the whole Cinquecento, resulting in a unique and pioneering theoretical

proposal, in which one can detect formulations that, to a certain extent, are manifested in later

periods' aesthetics, art theory, historiography and art criticism. Through this work and a brief

analysis of its reception's history and its author's life trajectory, it is possible to observe the

social and cultural tensions that involved artists and their activity. Therefore, the production

of a commented translation (even if partial) of this treatise along with a critical study of the

work - the context of production, its reception, its Fortuna Critica - are pertinent to the field of

Art History in national frame.

Keywords: Art Theory; Giovanni Paolo Lomazzo; Idea del tempio della pittura; Italian art; Painting; Renaissance.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Autorretrato como abade da Academia do Vale Blênio, c.1568. Óleo sobre tela, 56 x 44 cm. Pinacoteca di Brera, Milão (Fonte: http://www.wga.hu/) ................................... 26

Figura 2 - Albretch Dürer. Melancolia I, 1514, gravura, 239 x 189 mm, Kupferstichkabinett, Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe (Fonte: http://www.wga.hu/) ............................................... 31

Figura 3 - Giogione (atr.). Pastore con Flauto, séc. XVI, óleo sobre tela, 61,2 X 46,5 cm, Hampton Court Palace, Royal Collection (Fonte: http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/) .................................................................................. 32

Figura 4 - Anônimo. Pastore con Flauto, séc. XVI, óleo sobre madeira, 56 x 40 cm, depósito do Museo Diocesano di Milano (Fonte: http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/) ...................32

Figura 5 - Giovanni Gerolamo Savoldo. Pastore con Flauto, c1540, óleo sobre tela, 97 X 78 cm, J. Paul Getty Museum, Los Angeles (Fonte: http://www.wga.hu/) .................................. 33

Figura 6 - Giovanni Antonio Boltraffio. Busto di giovane incoronato di spine e foglie di vite. Desenho com ponta metálica sobre papel preparado em azul, 308 x 219 mm, Turim, Biblioteca Real (Fonte: google imagens) ................................................................................. 33

Figura 7 - Michelangelo Merisi da Caravaggio. Bacchino Malato, c. 1593, Óleo sobre tela, 67 x 53 cm, Galleria Borghese, Roma (Fonte: http://www.wga.hu/) ........................................... 34

Figura 8 - Lomazzo. Autorretrato, 1557-59, óleo sobre papel, 39 cm de diâmetro, Kunsthistorisches Museum, Viena (Fonte: http://www.wga.hu/) ............................................ 42

Figura 9 - Giovanni Paolo Lomazzo. Estudo para a Allegoria della Cena Quadragesimale. The Royal Library, Windsor Castle (Fonte: https://www.royalcollection.org.uk) .................. 42

Figura 10 - Giovanni Paolo Lomazzo. Allegoria della Cena Quadragesimale, 1567, Refeitório de Sant'Agostino, Piacenza (Fonte: catálogo da mostra Rabisch, org. pelo Museo Cantonale d'Arte de Lugano, 28 de março a 21 de junho de 1998. Cfr. BORA, G.; KAHN- ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). Rabisch. Il grottesco nell'arte del Cinquecento. L'Accademia della Val di Blenio, Lomazzo e l'ambiente milanese. Milão: Skira, 1998, p. 24) .................... 44

Figura 11 - Giorgio Vasari. Il banchetto di Ester e Assuero, 1548, Museo Statale d'arte medievale e moderna em Arezzo (Fonte: http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/) ................ 44

Figura 12 - G. P. Lomazzo. Noli me tangere, 1568, óleo sobre madeira, 231x141,8 cm, Pinacoteca di Palazzo Chiericati, Vicenza (Fonte: google imagens) ..................................... 46

Figura 13 - G. P. Lomazzo. Cristo in Pietà con le Marie, 1568, , Pinacoteca di Brera, depósito (Fonte: CHAI, J.J. Idea of temple of painting (trad). cit., fig. 21) ............................. 47

Figura 14 - Giovanni Paolo Lomazzo. S. Francesco che riceve le stimmate, 1568, Santi Barnaba e Paolo, Milão (Fonte: CHAI, J.J. Idea of temple of painting (trad). cit., fig. 10)47

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Figura 15 - Giovanni Paolo Lomazzo. Caduta di S. Simon Mago, 1570, Capela Foppa, San Marco, Milão, parede esquerda (Fonte: google imagens) ........................................................ 48

Figura 16 - Giovanni Paolo Lomazzo. Gloria Angélica, 1570, Capela Foppa, San Marco, Milão, teto/abside (Fonte: google imagens) ............................................................................. 48

Figura 17 - Giovanni Paolo Lomazzo. Profetas e Sibilas, 1570, Capela Foppa, San Marco, Milão, cúpula (Fonte: google imagens) ................................................................................... 48

Figura 18 - Giovanni Paolo Lomazzo. Evangelista, 1570, Capela Foppa, San Marco, Milão, pendente (Fonte: google imagens) ........................................................................................... 49

Figura 19 - Giovanni Paolo Lomazzo. Evangelista, 1570, Capela Foppa, San Marco, Milão, pendente (Fonte: google imagens) ........................................................................................... 49

Figura 20 - Giovanni Paolo Lomazzo, 1570-71, Capela Foppa, San Marco, Milão, afrescos do teto e retábulo (Fonte: google imagens) .............................................................................. 49

Figura 21 - Giovanni Paolo Lomazzo. Madonna col Bambino e i ss. Pietro, Paolo e Agostino , 1571, Capela Foppa, San Marco, Milão (Fonte: google imagens) ........................................ 50

Figura 22 - Giovanni Paolo Lomazzo. Cristo in croce con la Madonna e S. Giovanni, 1571, atualmente na paróquia de S. Antonio Abate em Valmadrera, Lecco (Fonte: CHAI, J.J. Idea of temple of painting (trad). cit., fig. 9) ......................................................................................... 50

Figura 23 - Giovanni Paolo Lomazzo. Cristo in croce con la Madonna, S. Giovanni e Maria Magdalena, 1571, óleo sobre madeira, 250 x 148 cm, atualmente na Pinacoteca di Brera (Fonte: http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/) ..................................................................... 51

Figura 24 - Giovanni Paolo Lomazzo. Orazione nell'orto, 1571, atualmente em San Carlo al Corso, Milão (Fonte: google imagens) .................................................................................... 51

Figura 25 - Scipione Delfinone, Camillo da Posterla; Desenho de Giuseppe Arcimboldi e Giuseppe Meda. Il Gonfalone di Milano. 1565-1566, tecido, bordado e têmpera, Museo d'Arte Antica, sala VII, Milão (Fonte: google imagens) ..................................................................... 59

Figura 26 - Ramon Llull. Arbor scientiae, venerabilis et caelitvs, illuminati patris Raymvndi Lvllii Maioricensi. edição de 1515 (Fonte: google imagens) ................................................. 153

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LISTA DE TABELAS

Taleba 1 - Robert Klein ........................................................................................................... 71

Tabela 2 - Gerald Ackerman ....................................................................................................71

Tabela 3 - Roberto Paolo Ciardi .............................................................................................. 76

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Esta lista de abreviaturas destina-se à leitura da tradução parcial comentada

apresentada no Apêndice.

Tr. R.K. (refere-se à tradução francesa de Robert Klein. Florença: Istituto Nazionale di Studi

sul Rinascimento, 1974).

Tr.J.J.C. (refere-se à tradução inglesa de Jean Julia Chai. Pennsylvania: The Pennsylvania

State University Press, 2013).

V.A. Crusca (refere-se ao Vocabolario degli Accademici della Crusca). Saraiva (Refere-se ao dicionário SARAIVA, Novíssimo Dicionário Latino-português. 12a.ed.

Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2006).

L.S. (Refere-se ao Libro dei Sogni (c.1563), obra não publicada de Lomazzo, intitulada Gli

sogni e raggionamenti composti da Giovan Paulo Lomazzo milanese, con le figure de spiriti

che gli racontano da egli dessignate).

Quando houver referência ao Trattato della pittura ou ao Libro dei Sogni, a edição utilizada é

a ed. crítica de Roberto Paolo Ciardi: CIARDI, R.P. Scritti sulle arti. 2vol. Florença: Marchi

E Bertolli, 1973.

n.t. (Utilizo quando me refiro à nota de rodapé das traduções de Klein ou Chai, ou da edição

crítica de Ciardi).

As edições utilizadas para Paolo Pino, Benedetto Varchi, Lodovico Dolce e Giorgio Vasari

(entre outros) são as edições da Accademia della Crusca junto à Fondazione Memofonte,

encontradas na plataforma http://memofonte.accademiadellacrusca.org/ , e a edição crítica

da Paola Barocchi, Scritti d'arte del Cinquecento. Torino: Giulio Einaudi, c1977- .

Sempre especifico a edição na nota de rodapé.

O exemplar do Rime ad imitazione dei Grotteschi utilizado é de 1587, que pode ser

encontrada no formato PDF na plataforma de busca www.archive.org.

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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................................................. 16

Capítulo I - Um olhar sobre a trajetória do autor: contexto de elaboração dos tratados ........................ 25

1. Vida e Obra de Giovanni Paolo Lomazzo (1538-1592) .................................................................... 25

2. Milão durante o período da formação e consolidação de Lomazzo como artista e acadêmico (1560- 1590) ..................................................................................................................................................... 54

Capítulo II - Idea del Tempio della pittura ........................................................................................... 63

1. O processo de desenvolvimento do corpus teórico de Lomazzo ................................................................................................................................................. 64

1.1. Robert Klein (1959) e Gerald Ackerman (1964): tratado primordial, livro do discernimento e o livro dos governantes ............................................................................................................... 64

1.2. O Libro dei Sogni ................................................................................................................. 72

A) Terminus post e ante quem ............................................................................................................... 72

B) Estudo crítico da obra e a nova cronologia do corpus lomazziano à luz do Libro dei Sogni ......... 74

C) O Libro dei Sogni e a teoria dos moti. Crítica veneziana e o afresco do Juízo Final .................... 77

Capítulo III - Recepção e Fortuna Crítica da obra ................................................................................. 82

1. A recepção imediata ........................................................................................................................... 83

1.1. Circulo social em Milão ....................................................................................................... 83

1.2 As impressões dos tratados .................................................................................................... 84

1.3 Hilaire Pader e o impacto dos tratados de Lomazzo no contexto francês .......................................................................................................................................... 86

1.4 Razões do insucesso no contexto milanês ............................................................................. 92

2. Giovanni Paolo Lomazzo: pintor, poeta e teórico milanês na História da pintura e literatura italiana (1595-1844) ........................................................................................................................................... 96

3. Fortuna Crítica contemporânea ....................................................................................................... 106

3.1. Lomazzo, a literature artística e a primeira aproximação com Marsilio Ficino ............. 106

3.2. Lomazzo como um teórico conservador ............................................................................. 110

3.3. Os juízos críticos em Lomazzo ........................................................................................... 112

3.4. Ecletismo e o ut pictura poesis ........................................................................................... 114

3.5. Os artigos de Paris e Barelli ............................................................................................... 118

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3.6. Perspectivas internas: a análises da década de 1960 .......................................................... 119

3.7. As edições críticas modernas .............................................................................................. 124

3.8. Os últimos estudos .............................................................................................................. 130

3.9. Metatechne ......................................................................................................................... 133

Capítulo IV - Arquitetura da obra ........................................................................................................134

1. Comentários ao capítulos traduzidos do Idea del Tempio della pittura ................................................................................................................................................... 134

2. O Idea del tempio della pittura: capítulos 1-20 ............................................................................... 137

A) Título, encômios e dedicatória ........................................................................................................ 137

B) Capítulo I - Proêmio ao leitor ......................................................................................................... 140

C) Capítulo 2 - Da força da instrução artística e da diversidade dos gênios ....................................... 141

D) Capítulo 3 - Da necessidade do discernimento ............................................................................... 143

E) Capítulo 4 - Dos escritores da arte antigos e modernos .................................................................. 144

F) Capítulo 5 - Como os pintores podem representar todas as coisas ................................................. 145

G) Capítulo 6 - Da nobreza da pintura ................................................................................................. 145

H) Capítulo 7 - Dos efeitos e a utilidade da pintura ............................................................................ 146

I) Capítulo 8 - Das ciências necessárias ao pintor ............................................................................... 147

J) Capítulo 9 - A construção do templo da pintura e seus governantes .............................................. 149

K) Capítulo 10 - Do fundamento das sete principais partes sétuplas da pintura e sobre quem as governam ............................................................................................................................................. 157

L) Capítulo 11 - Das sete partes ou gêneros da proporção .................................................................. 158

M) Capítulo 12 - Das sete partes ou gêneros do movimento ............................................................... 159

N) Capítulo 13 - Das sete partes ou gêneros da cor..............................................................................159

O) Capítulo 14 - Das sete partes ou gêneros da luz - e capítulo 15 - Das sete partes ou gêneros da perspectiva ........................................................................................................................................... 160

P) Capítulo 16 - Das sete partes ou gêneros da composição ............................................................... 160

Q) Capítulo 17 - Das sete partes ou gêneros da forma ........................................................................ 160

R) Capítulo 18 - Do discernimento da pintura e de suas partes ........................................................... 162

S) Capítulo 19 - Da primeira parte da pintura e de suas espécies ......................................................... 163

T) Capítulo 20 - Da segunda parte da pintura e de suas espécies ........................................................ 163

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Conclusão ............................................................................................................................................. 164

Bibliografia ......................................................................................................................................... 165

Apêndice ............................................................................................................................................. 186

Tradução ................................................................................................................................... 186

Cap. I - Proêmio ao leitor ................................................................................................................. 194

Cap. 2 - Da força da instrução artística e da diversidade dos gênios ................................................ 201

Cap. 3 - Da necessidade do discernimento ...................................................................................... 209

Cap. 4 - Dos escritores da arte antigos e modernos ......................................................................... 212

Cap. 5 - Como os pintores podem representar todas as coisas ........................................................ 221

Cap. 6 - Da nobreza da pintura ........................................................................................................ 224

Cap. 7 - Dos efeitos e a utilidade da pintura .................................................................................... 231

Cap. 8 - Das ciências necessárias ao pintor ..................................................................................... 235

Cap. 9 - A construção do templo da pintura e seus governantes .................................................... 243

Cap. 10 - Do fundamento das sete principais partes sétuplas da pintura e sobre quem as governam ......................................................................................................................................... 247

Cap. 11 - Das sete partes ou gêneros da proporção ......................................................................... 249

Cap. 12 - Das sete partes ou gêneros do movimento ....................................................................... 250

Cap. 13 - Das sete partes ou gêneros da cor .................................................................................... 253

Cap. 14 - Das sete partes ou gêneros da luz - e capítulo 15 - Das sete partes ou gêneros da perspectiva ....................................................................................................................................... 257

Cap. 16 - Das sete partes ou gêneros da composição ...................................................................... 259

Cap. 17 - Das sete partes ou gêneros da forma ................................................................................ 262

Cap. 18 - Do discernimento da pintura e de suas partes .................................................................. 267

Cap. 19 - Da primeira parte da pintura e de suas espécies ............................................................... 272

Cap. 20 - Da segunda parte da pintura e de suas espécies ............................................................... 276

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16

INTRODUÇÃO

"A inteira história da crítica vive no pensamento atual" 2.

Ao deparar-me com a necessidade de elaborar uma introdução, refleti em demasia

sobre como a conduziria, qual seria o posicionamento teórico que escolheria para guiar o

leitor através dos capítulos desta pesquisa. Este foi o momento mais difícil em todo o

processo de escrita da dissertação: saber organizar o trabalho de pesquisa que desempenhei

por quase três anos em torno de um eixo crítico. A esta altura, já havia escrito todos os

capítulos e concluído a tradução e as notas, e feito milhares de revisões. Portanto, a pesquisa

estava pronta. Eu havia realizado todo o meu trabalho sem grandes impasses na escolha dos

caminhos. Porém, somente quando tive que meditar sobre a minha própria conduta enquanto

historiadora que me dei conta dos desafios epistemológicos deste campo de estudo e da vasta

quantidade de discussões e posições sobre os limites e antinomias da História da Arte.

Um caminho me havia sido apontado como uma possibilidade de análise 3: trazer

o Idea del Tempio della pittura para o contemporâneo. De que maneira esta obra dialoga com

o presente? Pois bem, comecei a refletir sobre esta questão, percorrendo alguns autores,

dentre os quais Robert Williams 4. Foi, então, que decidi refazer os meus próprios passos para

entender a forma como eu mesma havia me aproximado do meu objeto de pesquisa 5.

Desde o princípio, meu principal objetivo foi contabilizar as leituras que esta obra

suscitou entre os historiadores do século XX. Meu intuito era realizar uma atualização da

Fortuna Crítica contemporânea deste tratado, para compor uma tradução comentada

acompanhada de uma discussão bibliográfica atual. Este, na verdade, foi o meu primeiro

passo, logo que iniciei os estudos em torno desta obra. Portanto, a preocupação com o

presente sempre esteve no meu horizonte metodológico. No decorrer da pesquisa, surgiu a

necessidade de um estudo sobre a trajetória do autor e sobre o contexto de produção da obra,

para que as conjunturas histórico-culturais se tornassem mais palpáveis. Paralelamente, tive

que delimitar o lugar deste tratado e de seu autor no curso da literatura artística do período, e,

desta maneira, identificar seus interlocutores. Por fim, fui impelida a realizar um sobrevôo

sobre a história de sua recepção, desde o momento em que foi publicada, pois somente deste

2 VENTURI, L. Storia della critica d'arte. Turim: Einaudi, c. 1964, p. 330. Houve uma primeira edição em inglês, History of art criticism, 1936. 3 A sugestão foi dada pelo professor Alexandre Ragazzi (UERJ) durante o exame de qualificação. 4 Art, theory, and culture in sixteenth-century in Italy : from techne to metatechne .Cambridge, 1997. 5 Naturalmente, sempre acompanhada pelo meu orientador, o prof. Luiz Marques.

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modo seria possível perceber com mais nitidez as nuances das abordagens da própria crítica

contemporânea. A forma como se questiona nos diz mais do que a forma como se responde a

questão: "No limite, poder-se-ia dizer que a lição da história já está presente na questão que

nos esforçamos por lhe colocar", como disse André Chastel 6. Também, estava curiosa para

entender as desventuras que esta obra sofreu imediatamente após sua publicação, como

veremos mais adiante, no terceiro capítulo.

Iniciei esta dissertação com uma frase de Lionello Venturi, parte de uma obra

publicada pela primeira vez cerca de oitenta anos atrás. Ainda hoje, o apelo de Venturi não

perdeu o seu vigor: é imprescindível que o historiador reflita sobre o presente, pois a

percepção do presente é a condição para toda e qualquer compreensão do passado. Apenas a

experiência do presente possibilita uma atuação crítica diante do objeto ou do acontecimento

passado. E sem juízo crítico a análise se esvazia, sem discriminar aquilo que é contingente,

próprio da época e do local, daquilo que atravessa a história e se conecta com o presente.

Portanto, é mister fincarmos os pés no presente para percebermos a real força da

sobrevivência do objeto examinado, antes de percorrermos os meandros que conduzem ao

entendimento da obra e do autor em questão, e nos debruçarmos sobre as delícias da

investigação do passado, saltando ao desvelamento de uma personalidade e dos frutos da

atividade pensante de um homem inserido em seu contexto histórico, onde o historiador

mergulha com imenso prazer, desfrutando cada nova peça encontrada para compor um

quebra-cabeça, cuja forma acabada ganha nitidez na medida em que o processo aproxima-se

do fim, daí a fonte do fascínio da profissão.

Para citar André Chastel, em sua reflexão sobre o ensaio moral de Alberti, De

tranquilitate animi (1443-1444) 7, onde a identificação das figuras nos mosaicos é comparada

à atividade intelectual,

"Tudo nos chega no estado de fragmentos, feitos de cacos de vasos, de mármores, de objetos vis ou preciosos, reunidos como que às cegas e ao acaso. Desse monte que se acumulou e ajustou bem ou mal no solo, devemos por deslocamentos atentos de elementos fazer emergir pouco a pouco uma figura, ou melhor: a composição que torna o todo 'inteligível'" 8.

6 No prefácio do "La forme et l'intelligible". Cfr. KLEIN, R (org. por André Chastel). La forme et l'intelligible. São Paulo, SP : EDUSP, 1998, p. 13. 7 No prefácil do La forme et l'intelligible (1970). 8 Ibidem, pp. 12-13.

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Antes de mais nada, é preciso sempre ter em mente que o passado é uma abstração e que a

análise histórica é uma interpretação atual deste passado. Ele é fruto de um desejo ou de uma

necessidade do presente em buscar aspectos que ressignifiquem o próprio presente. Portanto,

é preciso olhar para o passado tendo em vista o presente, para que este passado tenha qualquer

potência transformadora. Esta é a missão do historiador enquanto sujeito crítico, enquanto ele

mesmo agente histórico,

" Os esquemas são sempre mortos. Não é vivo senão o presente. Esse pode vivificar o passado. Não pode o passado servir de norma para o presente. No momento próprio em que o presente aceita conformar-se ao passado, não é mais presente, não é vivo" 9.

Em vista disso, a primeira ponderação que proponho de imediato é sobre a

atualidade do pensamento de Giovanni Paolo Lomazzo. Qual a sua potência enquanto vestígio

de um passado que não mais existe (e não pode ser apreendido integralmente)? Qual o

interesse do historiador da arte em buscar compreender uma obra como Idea del Tempio della

Pittura? Em outras palavras, quais valores atribuídos a essa obra que a fizeram saltar aos

olhos da contemporaneidade? Claramente, estes questionamentos não possuem apenas uma

única resposta. Sendo assim, delimitemos algumas delas, a partir dos historidadores

contemporâneos.

Primeiramente, o Idea del Tempio della pittura insere-se no âmbito da história do

pensamento artístico, na teoria da arte do século XVI. Ele faz parte da história da crítica da

arte, ou seja, da história das reações diante do problema do objeto artístico. Por ser uma ação

crítica em frente da arte de seu tempo, ele próprio participa da arte. Ele é a expressão de um

juízo crítico. A manifestação do juízo crítico de um artista, segundo Venturi, nasce da

interação entre gosto e arte, isto é, entre aquilo que diz respeito a um grupo ou contexto

específico, e aquilo que diz respeito a uma questão universal, à expressão da força criadora de

uma mente pensante. Portanto, através dele podemos apreender um extrato do período e de

sua cultura, da ordem do gosto, e, também, ele nos permite identificar as permanências, os

aspectos que encontram o mundo contemporâneo. É tarefa do historiador, como afirmou

Venturi, para além das mudanças, saber traçar as permanências no processo diacrônico,

9 VENTURI, L. Storia della critica d'arte. Turim: Einaudi, c. 1964, p. 171.

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mesmo nas revoluções. Aquilo que é permanente revela a atualidade do vestígio, torna-o fato

vivo.

Ao longo do século XX, os pesquisadores voltaram a atenção para o Idea del

Tempio della pittura e para a personalidade do pintor e teórico Giovanni Paolo Lomazzo com

maior sensibilidade às relações com o seu contexto cultural, social e estético. Tal

comportamento não se constituiu como um caso isolado em torno de Lomazzo e seu corpus,

mas revela uma marca das transformações ocorridas, de forma geral, no campo da História da

arte. A historiografia, com a virada do novo século, esforçou-se para superar a conduta

investigativa baseada no encadeamento dos fatos históricos consolidada pelo século XIX, que

enxergava o progresso técnico nas artes. A filologia trouxe para o campo da historiografia

artística o rigor documental e o exame da arte em relação a outros aspectos da cultura e da

sociedade coevos, pautando-se em um juízo de valor do objeto artístico com aspecto de

neutralidade. Tanto o positivismo quanto a filologia ocasionaram uma vasta bibliografia sobre

artistas, monumentos e objetos de arte, descobertas, correções e novas atribuições. Porém,

apresentavam um abismo metodológico profundo diante da arte moderna.

Como se sabe, os acontecimentos que irromperam no século vinte,

desestabilizando os paradigmas que sustentavam os vários campos do conhecimento,

reverberaram na revisão e no debate epistemológico dentro das chamadas Ciências Humanas.

Como se afirmou, no que diz respeito à arte moderna, a história positivista e a filologia do

século XIX não eram capazes de produzir um conhecimento crítico que desse conta de sua

compreensão sem rejeitá-la por completo. Lionello Venturi, que, em 1936, publicou nos

Estados Unidos, durante seu exílio da Itália fascista, a "Storia della critica d'arte", diante

deste problema, propôs uma nova perspectiva para os estudos dentro do campo, influenciado

pela estética crociana. Era preciso trazer o juízo crítico para a análise histórica por meio da

identificação da história da arte com a história da crítica da arte, isto é, com o "exame das

reações críticas que uma obra de arte suscitou no curso dos séculos". Desta forma, seria

possível delimitar as relações entre arte e gosto, e, no âmbito dessas relações, evocar o próprio

juízo crítico do artista, a experiência com a realidade a qual pertenceu, evitando qualquer

valorização em termos absolutos do gosto.

Deste modo, a ótica da análise histórica ganhou uma nova vitalidade a partir da

compreensão do processo artístico como criação, adaptando a chave da estética crociana da

intuição-expressão, fruto dos sentidos e da imaginação, inseridos em um mundo

historicamente concreto. Dá-se ênfase a importância da personalidade do artista imerso em

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seu contexto e à potência criadora individual. É em meio a este sopro de novos ventos que o

Idea de Tempio e seu autor serão acolhidos, reexaminados, revividos e reinterpretados.

As ideias apresentadas por esta obra específica de Lomazzo - seu conteúdo

neoplatônico, o templo da pintura e seus dispositivos mágico-astrológicos - constantemente

causaram estranhamentos e dificuldades em sua recepção. Foi somente no século XX que este

aspecto da teoria do Idea seria examinado com real interesse 10. Entretanto, Lomazzo foi

continuamente considerado um autor sinóptico de seu tempo, um teórico obstinado em reunir

todas as possibilidades do fazer artístico disponíveis em seu contexto histórico-cultural.

Ainda, no século XX, foi classificado com o grande representante do período conhecido como

"Maneirismo", já que sua teoria artística procurou estabelecer fundamentos críticos e teóricos

para a noção de pluralidade de estilos, ou, maneiras de expressão do artista, contrapondo-se ao

cânone ciceroniano em torno do modelo único de beleza predominante na primeira metade do

século XVI.

Os historiadores do século XIX enxergaram em Lomazzo uma fonte para

preciosas informações sobre artistas e obras, fazendo um uso documental de seus escritos e

desconsiderando os traços das correntes ocultas, classificados como delírios ou caprichos do

autor. No século XX, a efervecência epistemológica impulsionou uma urgência em buscar as

dimensões individuais, os sujeitos da história, e, no caso da história da arte, o juízo crítico

desses sujeitos, estimulando uma rica produção acadêmica em torno de Lomazzo e seus

tratados. Os artigos de Maria Luisa Gengaro (1932), Annamaria Paris (1954) e Emma Spina

Barelli (1958), por exemplo, apresentam este ímpeto em torno da individualidade e da crítica

em nosso autor, que transborda para além de seu próprio contexto histórico 11. No caso de

Gengaro, existe um esforço da pesquisadora em detectar uma atitude diante do fenômeno

ótico em Lomazzo que poderia ser justaposta à sensibilidade futurista de Carlo Carrá. Ainda,

o crítico de arte milanês, Guido Lodovico Luzzatto, em um artigo publicado na ocasião do

quarto centenário da morte de Albretch Dürer (1928), elogia o senso crítico de Lomazzo que

deveria ser tomado como exemplo pelos próprios críticos de arte contemporâneos, já que o

autor demonstra uma agudeza intelectual tamanha que é capaz de desvencilhar-se de seu

próprio gosto pessoal e avaliar com precisão mesmo as obras mais singulares de um artista

germânico como Dürer.

10 Isto ficará mais claro no terceiro capítulo desta dissertação. 11 Estes artigos foram comentados no terceiro capítulo desta dissertação.

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Contudo, foi apenas no final da década de 1950 que a teoria presente no Idea del

Tempio foi de fato trazida para o centro das investigações, a partir dos artigos de Robert

Klein, "La forme et l'intelligible" (1958) e "'Les sept gouverneurs de l'art' selon Lomazzo"

(1959). Robert Klein foi um intelectual de excepcional calibre. Sua conduta de pesquisa

marcou-se pela percepção dos fenômenos, das intencionalidades, avesso a ideias totalizantes.

Seus estudos sobre Lomazzo, autor que ocupou-lhe a mente por muitos anos, foram

conduzidos com grande sensibilidade crítica, deixando aflorar as correntes do pensamento não

ortodoxas de seu objeto de pesquisa. Sempre em busca das contradições, Klein percebeu a

grande tensão latente no pensamento de Lomazzo, que, ao meu ver, é o seu aspecto mais

vivaz: a vontade de liberar a inventividade artística das regras e dos preceitos, potencializando

a individualidade criativa, mas, ao mesmo tempo, organizando o fazer artístico dentro de um

sistema que justificasse a obra de arte para além da questão puramente individual,

submetendo-a a uma ordenação cosmológica. Na próprias palavras de Klein,

"contra a anarquia pura que marcava o remate da teoria subjetivista, os neoplatônicos tentavam garantir-se mediante a atribuição às regras de um papel ao menos subordinado; sua justificação encontra-se nos princípios que presidiram a criação do universo, ordo, modos e species; mas sua importância limita-se à de 'preparações'" 12.

Giovanni Paolo Lomazzo e seu Idea del Tempio della pittura encontraram Robert

Klein no ponto de "inervação"13 que mais agitava este pesquisador: o pensamento mágico.

Klein passou a maior parte de sua vida acadêmica meditando sobre a ideia de

Responsabilidade - e pode-se dizer que sua trajetória pessoal, vivendo as mazelas do Nazismo

quando ainda estava na Romênia, foi o gatilho para esta reflexão, que no fundo toca a questão

da liberdade, algo que paira sobre o pensamento de Lomazzo também -, o que levou-o ao

Neoplatonismo e à Magia Natural, dentro da chave de compreensão mágica da potência das

almas: é possível gerenciar as forças da natureza através da captação de energias e mediante à

correta preparação da matéria.

Entrevê-se um processo de fusão da arte e da ciência nos séculos XV e XVI.

Tanto Alberti quanto Leonardo podem ser compreendidos a partir deste fenômeno da arte-

cência. Os signos visuais e as imagens como o próprio fim da ciência, a preparação da matéria

para dominar os mecanismos do mundo externo e a crença em uma racionalidade ordenadora

na natureza são alguns dos pontos de afinidade entre ciência e magia. Não é de se admirar que

12 KLEIN. op. cit., p. 157. 13 Expressão usada por A. Chastel. Cfr. Ibidem, p. 13.

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ambas tenham se encontrado em inúmeros momentos: Cornelio Agrippa de Nettesheim e

Leonardo circulavam nos mesmos ambientes; Parmigianino foi pintor e alquimista. O ponto

em que quero chegar, para onde precisamente Klein se dirigiu, é o momento em que a magia,

a ciência e a arte se consubstanciaram. E é exatamente nesta etapa do raciocínio em que

Lomazzo tornou-se o foco da atenção deste pensador.

Robert Klein, então, percebeu que Lomazzo havia adpatado os conteúdos da

magia astrológica ao pensamento artístico, elaborando uma teoria completamente nova. Pela

primeira vez, teoria, história e crítica formariam uma unidade, manifesta nos sete governantes

e expressa pela alegoria do templo da pintura. Os sete governantes, representando sete

diferentes maneiras do fazer artístico, ligados aos pintores antigos, concretizavam-se no

presente através das sete personalidades selecionadas por Lomazzo - Michelangelo, Rafael,

Leonardo, Mategna, Tiziano, Polidoro da Caravaggio e Gaudenzio Ferrari - . Ao mesmo

tempo, encarnavam sete temperamentos astrais, conectando as identidades individuais ao

Macrocosmo, através do mecanismo mágico dos influxos astrais. É interessante notar, como

destacou Chastel, que Lomazzo combina em sua teoria as análises diacrônica e sincrônica,

prefigurando posições famosas da historiografia e crítica contemporânea da arte14.

Foi na Magia Natural que Lomazzo encontrou suporte filosófico para formular

uma teoria da expressão dos afetos através da imaginação do artista: o talento, a força

contagiosa do afeto manifestada pela forma, o papel e o encanto da individualidade e a

inspiração não poderiam ser explicados pelo aristotelismo15. Tais aspectos detém um caráter

bastante atual para crítica da arte. Outra questão que salta aos olhos diz respeito ao tema

mágico da inclinação pessoal e permanente, que encontra a ideia da involuntariedade do

estilo. A expressão artística na teoria de Lomazzo deve ser fluida, natural, intuitiva: em certa

medida, não se pode deixar de notar os pontos comuns com a própria estética crociana

(intuição-expressão).

Klein situa o pensamento de Lomazzo em um momento de crise das artes. Era

tempo de repensar os paradigmas que haviam sustentado o campo até então. Derrubando a

ideia da arte enquanto regra, erguia-se o princípio da arte como graça, e a expressão do artista

ligada ao movimento ou afeto, à paixão da alma. O furor e a espontaneidade do artista

criavam as condições para o surgimento do gênio artístico, quase cem anos depois. Um

14 Ibidem, p. 15. 15 Ibidem, p. 149 e ss.

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protótipo do gênio é o tipo saturnino melancólico de Lomazzo, encarnado na figura de

Michelangelo no Idea del Tempio, que o pensamento do século XIX incorporaria tão bem, e

que se estenderia para o século XX16.

O que pretendo assinalar é que tais aspectos que, sem dúvida, pulsam na teoria de

Lomazzo, cuja maior expressão é o Idea del tempio, percebidos pela historiografia

contemporânea - sobretudo Robert Klein, Roberto Paolo Ciardi, Gerald Ackerman e Jean

Julia Chai 17 -, revelam uma sensibilidade em relação ao objeto, seu autor e o contexto que

parte de uma perspectiva presente. A ideia da obra de arte como fruto da invenção, a ênfase na

criatividade do artista, na espontaneidade, a noção do conhecimento artístico como

conhecimento individual onde o universal se espelha, da diversidade do sentir humano, da

variedade da criatividade artística, que também varia em cada obra do mesmo artista, o

princípio da pluralidade de perfeições de toda forma criada que depende da personalidade do

artista, são alguns dos princípios estéticos que se verificam em Lomazzo, e que podem ser

encontrados mutatis mutandis na crítica atual18. A noção, formulada por Venturi, de que é

necessário reconstruir a personalidade do artista para verificar se esta se manifesta na obra,

através da imaginação criadora, também aparece na conduta crítica lomazziana, bem como a

imprescindibilidade da história para a crítica da arte, como vimos.

Mesmo a noção do gosto, tão importante para o pensamento estético desde o

século XVII, encontra, em Lomazzo, um primeiro delineamento, partindo de uma estética do

encantamento (mecanismo do fascínio), que explica a comoção do espectador por meio das

inclinações astrais. Lomazzo conecta o artista, a obra e o espectador através da fusão do

pensamento mágico com a arte. E esta conexão através dos afetos, sentimentos e paixões,

encontra os séculos XIX e XX. O expressionismo, por exemplo, possui pontos em comum

com esta ideia de ligação artista-público através das emoções. Bem como a resposta

formulada por Tolstoi, na obra em que o autor se questiona sobre o que seria a arte (1889):

"Toda obra de arte tem como finalidade colocar-se em relação ao homem a quem ela se dirige, de uma certa maneira, imediatamente com aquele que a produziu e com todos os que, simultaneamente, anteriormente ou posteriormente, recebem suas impressões. A palavra, transmitindo os pensamentos dos homens, é um meio de união entre eles; e também a arte o é. O que as distingue, enquanto meios de comunicação, é que com a palavra,

16 No artigo "La forme et l'intelligible" (1958) In KLEIN. op. cit., p. 156. 17 Cfr. cap. 3 desta dissertação (seções 3.7 e 3.8). 18 Alguns desses princípios aparecem cá e lá no texto de VENTURI, op. cit. (prefácio) e GRASSI, L. Teorici e Storia della Critica d'Arte. Roma: Multigrafica Editrice, 1985 (prefácio do primeiro volume).

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isto é, através da palavra, o homem transmite os pensamentos, enquanto que, através da arte, ele transmite seus sentimentos e suas emoções. E é assim que se opera esta transmissão. (...) Desde que os espectadores ou o público experienciem os sentimentos que o autor exprime, há obra de arte" 19 .

A inclusão da dimensão subjetiva, historicamente localizada, para compreender e

formular um juízo crítico de uma obra ou de um artista teve sua primeira aparição no curso da

historiografia artística na teoria de Giovanni Paolo Lomazzo. E, neste sentido, seu

pensamento dialoga diretamente com as práticas investigativas atuais. Com isso, deixo ao

leitor a reflexão sobre tais pontos de contato que destaquei sem a pretensão de formular uma

grande teoria sobre a questão. Ao meu ver, o mais interessante é perceber a sensibilidade

contemporânea na investigação do objeto do passado.

Deste modo, finalizaremos com um último autor. Somente através da experiência

de momentos de profunda crise civilizatória é que uma época consegue captar as sustilezas

das inquietações de outra época anterior. No que diz respeito ao século XX e ao atual,

vivenciamos inúmeros momentos de perturbações; a noção do declínio está na ordem do dia

no mundo contemporâneo. O pensamento de Giovanni Paolo Lomazzo faz parte de um

momento de profunda mudança na História da Arte Ocidental e esta mudança radical latente

na obra de Lomazzo foi percebida pelos autores contemporâneos, sobretudo porque se conecta

com o problema da arte contemporânea, e foi tratada por Robert Williams na obra "Art,

theory, and culture in sixteenth-century in Italy. From Techne to Metatechne" 20.

Robert Williams enxerga na análise do Renascimento e no estudo do

Humanismo uma possibilidade de reavaliação do presente para uma ação tranformadora: eles

revelam a potência política das representações e da arte. O Humanismo foi um processo

histórico de tomada de consciência de que a relação entre o indivíduo e o mundo é mediada

pela atuação de significados culturais. E estes significados são ordenados e reordenados

dentro de sistemas de representação. Ao longo do século XVI, a arte adquiriu este papel

central de organizadora dos sistemas de representação através dos signos, e é a partir da

percepção desta transformação do papel social da arte e da definição de arte que Williams

observa uma mutação histórica mais profunda, que lançou os alicerces da Modernidade. A

teoria da arte do período foi analisada por ele como um termômetro deste processo. Williams

demonstra como a noção de arte se altera e passa a significar um princípio absoluto,

totalizante, um sistema ordenador ideal que contém em si todos os sistemas possíveis. A arte,

19 TOLSTOI, L (Trad. Teodor de Wyzewa). Qu'est-ce que c'est l'art. Paris : Perrin, 1918. pp. 54-59. 20 WILLIAMS, op. cit.

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que detém o domínio sobre todos os campos do saber, adquire a função de "gerenciadora das

relações entre coisas e signos social e politicamente sensíveis" 21. Percebe-se um uso das

representações pelo poder, "a instrumentalização do imaginário", que configura uma nova e

moderna forma de relação entre cultura e arte.

Através da teoria de Giovanni Paolo Lomazzo, Williams pôde observar este

processo. Aliás, ele viu em Lomazzo uma de suas maiores expressões. Lomazzo reúne todos

os tipos possíveis de realização artística, objetivando-as em sete estilos diferentes, e ordena

estes sete modos do conhecimento em um sistema cosmológico. Desta forma, ele prevê um

lugar para as identidades individuais dentro de uma hierarquia, transmitindo a ideia de uma

igual estabilidade no mundo e na ordem social. Conceitos lomazzianos como a euritmia, o

discernimento e o decoro reforçam esta ordenação baseada em padrões ideais sociais.

Destarte, verifica-se que as identidades subjetivas se definem a partir das relações de

significado dentro de um sistema, isto é, são produtos da cultura. Daí o poder das

representações e o poder da arte.

Através da teoria artística do final do século XVI, sobretudo com Giovanni Paolo

Lomazzo e Federico Zuccari, observa-se a sublimação da teoria da arte em filosofia,

afastando-se da técnica para tornar-se uma metatécnica. O autor conclui salientando que o

poder ordenador das representações ainda é real e faz um apelo à urgência de uma arte crítica,

que recobre este papel central político-social das artes, em detrimento do caráter

fundamentalmente teórico e conceitual que ela adquiriu.

CAPÍTULO I

Um olhar sobre a trajetória do autor: contexto de elaboração dos tratados.

1. Vida e Obra de Giovanni Paolo Lomazzo (1538-1592).

Dentre os muitos caminhos que poderiam ter sido utilizados para dar início a este

capítulo, não pude resistir à escolha do insigne autorretrato da Pinacoteca di Brera (fig. 1)

21 WILLIAMS, R. op. cit., p.10.

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como o primeiro passo em direção à biografia de Giovanni Paolo Lomazzo. Isto porque o

gênero do autorretrato nos permite acessar um discurso do artista sobre si mesmo, que não

apenas toca em pontos da sua psicologia, mas também diz respeito ao lugar que este

personagem reivindica no interior da sociedade da qual faz parte. Através do autorretrato,

podemos nos aproximar do artista dentro da dinâmica coletiva, a partir da imagem de si que

ele projeta no mundo, por meio da qual ele pretende não somente ser identificado por seus

contemporâneos, bem como recordado pela posteridade. O autorretrato não é privado, não é

meramente um exercício de auto conhecimento e, de forma alguma, trata-se de uma reflexão

reservada. Ele foi traduzido em tinta a óleo sobre uma tela com dimensões consideráveis (56 x

44 cm), fruto de um processo de criação que envolveu preparo, projeto, esboço, matéria,

gestos e correções. Ele movimentou um ateliê e foi feito para durar. Quando ele se apresenta

ao mundo, em sua forma acabada, ele constitui a concepção final de si que o artista quis

imortalizar publicamente. Este autorretrato foi concebido para compor uma das facetas da

autobiografia de Gian Paolo Lomazzo, ao lado de seus versos autobiográficos. Além de ser

uma apologia de si, ele também aponta para as tradições referidas pelo pintor, inserindo-o em

certo lugar no curso da historiografia artística. Portanto, aproximar-se desta personalidade e

tentar compreendê-la em seu contexto histórico, social e cultural, envolve o exercício de

meditação sobre esta obra.

1- Autorretrato como abade da Academia do Vale Blênio, c.1568. Óleo sobre tela, 56 x 44 cm. Pinacoteca di

Brera, Milão (Fonte: http://www.wga.hu/).

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Primeiramente, este autorretraro é um retrato comemorativo. Ele foi executado no

período que ouso dizer ter sido o momento máximo da atuação social de Lomazzo. A datação

é de 1568, ano em que Lomazzo encontrava-se no auge de sua carreira como pintor (que foi

interrompida pela perda da visão cerca de três anos depois) e na liderança do círculo de

artistas, artesãos e literatos da singular Accademia dei facchini della Val di Blenio, fundada

em 1560. Portanto, reafirmo o que Dante Isella salientou sobre o retrato em questão, que trata-

se de um duplo autorretrato, o que é atestado não tão somente pelas componentes

iconográficas e pela data, mas também através da inscrição inserida pelo pintor na base do

quadro: ZAVARGNA NABAS VALLIS BREGNI ET P[AULUS] L [OMATIUS] PI[C] T

[O] R22. Zavargna era seu codinome na academia bleniense. De acordo com Isella, a palavra é

"uma formação deverbal de um alótropo de zavajà", que no Vocabulário milanês-italiano de

Francesco Cherubini 23 pode ser definido como "Canzonare. Burlare. Celiare.

Scoccoveggiare. Scioperare". Nabad, por sua vez, é formada pelo acréscimo da N ao

vocábulo Abad que significa abate (do latim abbas, atis: líder de uma comunidade religiosa).

Lomazzo foi eleito abade da Academia do Vale Blênio no ferragosto de 156824. Traduzindo a

inscrição de seu autorretrato, temos, portanto, "Zavargna, abade da Academia do Vale Blênio,

e Paolo Lomazzo pintor". São duas faces de um mesmo indivíduo, dois papéis sociais, duas

identidades, o que não quer dizer que se contraponham. Muito pelo contrário, quando

conhecemos a trajetória biográfica e o conjunto de sua obra, essas duas identidades se

complementam: nas palavras de Francesco Porzio, o retrato de Lomazzo como líder desta

academia literária e como pintor sintetiza o princípio horaciano defendido por ele em seus

escritos, ut pictura poesis, isto é, a pintura tal qual a poesia25.

22 ISELLA, D. Per una lettura dei Rabisch. In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). Il Grottesco nell'arte del Cinquecento (...). Milão: Skira, 1998. p. 113. As letras P e L (Paulus Lomatius) são grafadas sobrepondo-se uma à outra.

Sobre este monograma e sobre este retrato de modo geral, cfr. PORZIO, F. G.P. Lomazzo, Autoritratto in veste di Abate dell'Accademia della Valle di Blenio. In Pinacoteca di Brera, Scuole lombarda, ligure e piemontese 1535-1796. Milão, 1989. pp. 254-256; LYNCH, J.B. Giovanni Paolo Lomazzo's self-portrait in Brera. Gazette des Beaux-arts, Paris, no 244, pp.189-197, outubro 1964; CARDI, M.V. Intorno all'autoritratto in veste di Baco di Giovan Paolo Lomazzo. Storia dell'arte, Florença, no 81, pp. 182-193, 1994; VIA, C.C. Giovanni Paolo Lomazzo. Ritratto pittorico e ritratto letterario: morfologia e sintassi. In CONTINISIO, C.; FANTONI, M. (org.) Testi e contesti. Roma: Bulzoni, 2015. pp. 217-225. 23 Vocabulário do estudioso do dialeto milanês Francesco Cherubini (1789-1851), publicado primeiramente em Milão, em dois volumes, em 1814, e, depois, em quatro volumes, em 1839-43. Um quinto volume é acrescentado postumamente em 1856. 24 Quinze de agosto. Sobre a datação da obra, cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). Il Grottesco nell'arte del Cinquecento (...). Milão: Skira, 1998. pp. 179-80. 25 Cfr. op. cit. p. 179.

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28

Lomazzo se auto representou de lado, com a cabeça rotacionada em 3/4,

enquadrado do peito para cima. O fundo neutro possui uma paleta de cor que varia entre tons

de negro e marrom, tons encontrados também nas vestes e na barba do retratado, garantindo a

unidade tonal da obra. Uma luz quente ilumina o lado esquerdo de sua face, o pescoço, o

manto de pele que encobre seu ombro e suas costas, o bastão envolvido por ramos de hera que

ele porta, cruzado por cima do ombro esquerdo, o chapéu enfeitado com ramos de videira e

louro, o medalhão dourado na aba do chapéu, a mão direita que segura o compasso e a parte

superior do quadro, sobre o qual apóia essa mesma mão. Esta iluminação seletiva e diagonal,

modo de tratar a luz caracteristicamente lombardo, e que mais tarde seria utilizada por

Caravaggio, anuncia os elementos principais necessários para a leitura da obra26.

A indumentária é explicada na obra Rabisch 27, única publicação dos acadêmicos

do Vale Blênio, e foi inspirada, assim como a Academia em sua totalidade, nos trabalhadores

braçais (i facchini) originários deste vale, localizado entre a Suíça e a Itália, que desciam para

a Planície Padana para oferecer sua força de trabalho ( eram carregadores de potes,

limpadores de chaminé, lenhadores, brentadori - carregadores de vinho -, taberneiros,

vendedores de castanhas, entre outros). Estes trabalhadores humildes, que falavam de maneira

rudimentar o dialeto milanês, formavam um grupo social de bastante impacto na dinâmica da

cidade de Milão e constituíam uma corporação própria, contabilizada entre as

aproximadamente cem corporações milanesas28. No âmbito das manifestações festivas, este

grupo promovia festas públicas, religiosas e profanas, nas quais se pronunciava o universo

cômico-grotesco da cultura popular. Uma destas festas descrita pelos estudiosos é a festa de

mosgètt, que ocorria no dia 3 de agosto, quando a corporação realizava uma doação para a

Opera del Duomo. Durante esta festa, antes do primeiro período borromaico, era costume a

presença do cavalazz ou cavalasc, um cavalo de madeira preenchido por linguiças, salames,

26 Sobre a escolas lombardas no Quinhentos, cfr. LONGHI, R. Quesiti Caravaggeschi: i precedenti. Firenze: Sansoni, 1968; CAROLI, F. (org.) Il Cinquecento lombardo: da Leonardo a Caravaggio. Milão: Skira, 2000; BORA, G. La cultura figurativa a Milano, 1535-1565. 1977; Note cremonese. L'eredità di Camillo e i Campi. Paragone - Arte, n. 327, 1977; Note cremonesi. II: l’ eredità di Camillo e i campi. Paragone - Arte. Florença. 28, 327, 54-88, 1977; I leonardeschi e il ruolo del disegno In Disegni e dipinti leonardeschi dalle collezioni milanesi. Milão, 1987; I leonardeschi. L’eredità di Leonardo in Lombardia. Milão: Skira. 1998; FIORIO, M.T. La pittura del Cinquecento nei territori di Milano e Cremona IN La pittura in Italia. 1, 64-94, 1988.; NATALE, Mauro (ed). Foppa, Zenale and Luini. Lombard painters before and after leonardo. Londres: Robilant + Voena, 2012; ROMANO, G. Rinascimento in Lombardia. Foppa, Zenale, Leonardo, Bramantino. Milão: Feltrinelli, 2011; RUGGERI, U. Disegni Lombardi del Cinquecento, 1974. 27 LOMAZZO, G.P. Rabisch dra academiglia dor compa Zavargna, Nabad dra Vall d' Bregn. Paolo Gottardo Pontio: Milano, 1589. 28 ISELLA, D. Per una lettura dei Rabisch. In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). Il Grottesco nell'arte del Cinquecento (...). Milão: Skira, 1998. p.111.

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mortadelas e etc, como se fossem suas entranhas, transportado para a praça do Duomo e

atacado pela plebe, que saqueava os conteúdos de seu ventre. Um verdadeiro espetáculo

grotesco 29.

Neste autorretrato, Lomazzo aparece representado como abade (título usual dos

líderes das corporações) facchinesco: porta o chapéu de palha e o manto de pele, como

símbolos de humildade, remetendo ao universo camponês. O manto de pele de cabra também

é um símbolo de Baco, eleito o protetor da academia, a quem este animal era tradicionalmente

sacrificado30. Sobre o chapéu, a coroa de louro, que significa a eternidade de sua liderança

como abade da academia, e de ramos de videira, que faz referência ao furor do vinho ("a

inspiração poética, a nutrição do espírito"31). O bastão carrega diversas conotações:

comparado ao tirso báquico, reporta-se ao protetor da academia, o deus Baco; Adornado por

ramos de hera, carrega o símbolo da perenidade do domínio do abade; A ponta de ferro se

refere às vitórias sobre os inimigos, fazendo alusão à lança com que Baco derrotou Licurgo e

Penteo. Isella, a partir da descrição presente no Rabisch, conta-nos que o líder, durante a

cerimônia de posse, recebia este bastão através do alto chanceler (que era Giovanni A.

Brambilla, o compà Borgnin 32), que lhe devia entregá-lo com a "mão do coração", isto é, a

mão esquerda, a mesma com que Lomazzo segura o bastão em seu autorretrato. No medalhão

dourado, observamos a imagem de um galigliogn (galeon), um recipiente utilizado para beber

vinho em grandes quantidades, ornado com folhas de videira, também remetendo a Baco. No

tocante aos elementos iconográficos referentes à identidade como pintor, aparecem o

compasso, que ele segura com sua mão esquerda, e um quadro.

É interessante notar a aliança em seu dedo indicador: Francesco Porzio33 chama

atenção para este elemento, que não pode ter sido colocado no quadro de maneira casual, dada

29 ISELLA, D. op. cit., loc. cit.; BERNARDI, C.; CASCETTA, A. Dai "profani tripudi" alla "Religiosa Magnificenza". La ricostruzione del sistema cerimoniale nella Milano borromaica. In BUZZI, F.; ZARDIN, D. (org.). Carlo Borromeo e l'opera della "Grande Riforma". Cultura, religione e arti nel governo nella Milano del pieno Cinquecento. Milão: Silvana, 1997. p. 234. 30 VALERIANO, P. Hieroglyphica (...). Basiléia, 1556. APUD VIA, C.C. Giovanni Paolo Lomazzo. Ritratto pittorico e ritratto letterario: morfologia e sintassi. In CONTINISIO, C.; FANTONI, M. (org.) Testi e contesti. Roma: Bulzoni, 2015. p. 220. 31 ISELLA, D. op. cit. p. 114. 32 Nascido em Milão, em ano desconhecido. Tem-se notícias suas até 1591. Para uma breve biografia do artista, cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit. p. 337; LOMAZZO. Trattato dell'arte della pittura (...). In Scritti sulle arti. Florença, 1973, vol. II, p. 534. Todos os membros da academia são citados no Rime ad immitazione dei grotteschi (Milão, 1587). 33 Cfr. PORZIO, F. Lomazzo e il realismo grottesco: un capitolo del primitivismo nel Cinquecento. In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). Il Grottesco nell'arte del Cinquecento (...). Milão: Skira, 1998. pp. 179-180.

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a densidade simbólica de toda a representação. Para o autor, é plausível pensar na hipótese de

que a presença desta aliança matrimonial no dedo indicador, que não era o dedo habitual onde

se colocava uma aliança deste tipo, indique a união entre teoria e prática, um dos temas

centrais da teoria artística de Lomazzo, que faz parte da estrutura de seus tratados34. A aliança

no dedo indicador faz a mediação entre o compasso (teoria) e o quadro (prática), unindo-os.

Ainda, a junção do artista teórico e prático com o poeta, que recebe os influxos do furor

divino, apresenta a síntese da tese presente em seus tratados sobre a pintura supracitados, cujo

núcleo teórico já havia sido elaborado neste período 35.

No âmbito da História da Arte, as referências de Lomazzo neste retrato são

Leonardo da Vinci e Dürer, que advogam a união da teoria e da prática em seus tratados 36. A

incisão da Melencolia I de Dürer (fig. 2), que contém uma reflexão sobre este tema e sobre o

estado melancólico atrelado ao furor criativo, que, no autorretrato de Lomazzo, dá-se por

meio da relação entre o efeito do vinho (simbolizado pelo medalhão, pelos ramos de videira e

pelos símbolos báquicos supracitados) e o sorriso sombrio de tipologia melancólica com o

qual Lomazzo se representou nesta obra. Ainda, a iconografia da célebre gravura de Dürer

circula pelos universos da alquimia, da magia natural e do neoplatonismo, também presentes

no pensamento teórico do pintor milanês37.

Para além disso, F. Porzio indica como o principal modelo compositivo de

Lomazzo o protótipo giorgionesco referente ao Pastore con flauto, escolhido pelo pintor

talvez por seu primitivismo arcádico, do qual existem diversas versões (figuras 3; 4; 5). Esta

aproximação é mediada por um desenho preparatório da Biblioteca Ambrosiana (Cod. F 271

inf. n. 47)38. A angulação em 3/4 do rosto faz referência ao modelo giorgionesco de

34 O Trattato dell'arte della pittura (1584) é dividido em cinco livros da teoria e dois livros da prática. O Idea del Tempio della pittura (1590), por sua vez, é apresentado como a teoria que fundamenta o seu tratado prático, publicado seis anos depois. Ao longo do texto em ambos os tratados, é recorrente o tema vitruviano da complementaridade entre teoria e prática. 35 Sobre a cronologia do processo de composição dos tratados lomazzianos, cfr. capítulo 2 desta dissertação. 36 Leonardo da Vinci. Trattato della pittura, 1651 (Lomazzo teve acesso às folhas através de Francesco Melzi) e Albretch Dürer. Vier Bücher von menschlicher Proportion, 1528. 37 No próxima capítulo, estudaremos a presença destas correntes ocultas no pensamento de G. P. Lomazzo. Sobre a gravura de Dürer, cfr. BERTOZZI, M. Metamorfosi di Saturno. Schifanoia, Pisa, no 48/49, 2016. pp. 12- 19. WITTKOWER, R; WITTKOWER, M. Born under saturn. The character and conduct of artists ; a documented history from antiquity to the French revolution. Nova York: Norton, 1969; CALVESI, M. La melencolia di Albretch Dürer. Turim: Enaudi, 1993. 38 BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). Il Grottesco nell'arte del Cinquecento (...). Milão: Skira, 1998. P. 180.

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31

autoretrato em frente ao espelho39. Também, é possível comparar a expressão facial ébria e o

tema dionisíaco deste retrato com um desenho atribuído a Boltraffio, que faz parte da coleção

da Biblioteca Real de Turim (fig. 6).

Por fim, em um sentido oposto, partindo do autorretrato de Lomazzo, a crítica

destaca uma possível inspiração, no que diz respeito ao tom saturnino e ao tema dionisíaco,

para o autorretrato como Bacchino malato (fig.7) de Michelangelo Merisi da Caravaggio, cuja

formação se deu em Milão nos anos 1580, no ateliê de Simone Peterzano, conhecido de

Lomazzo40.

2- Albretch Dürer. Melancolia I, 1514, gravura, 239 x 189 mm, Kupferstichkabinett, Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe (Fonte: http://www.wga.hu/).

39 VIA, C.C. op. cit., p. 219. 40 Cfr. PORZIO, F. Lomazzo e il realismo grottesco: un capitolo del primitivismo nel Cinquecento. In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). Il Grottesco nell'arte del Cinquecento (...). Milão: Skira, 1998. p.32.

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3 - Giogione (atr.). Pastore con Flauto, séc. XVI, óleo sobre tela, 61,2 X 46,5 cm, Hampton Court Palace, Royal Collection (Fonte: http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/).

4. Anônimo. Pastore con Flauto, séc. XVI, óleo sobre madeira, 56 x 40 cm, depósito do Museo Diocesano di

Milano ( Fonte: http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/).

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5- Giovanni Gerolamo Savoldo. Pastore con Flauto, c1540, óleo sobre tela, 97 X 78 cm, J. Paul Getty Museum, Los Angeles (Fonte: http://www.wga.hu/).

6- Giovanni Antonio Boltraffio. Busto di giovane incoronato di spine e foglie di vite. Desenho com ponta metálica sobre papel preparado em azul, 308 x 219 mm, Turim, Biblioteca Real (Fonte: google imagens).

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7- Michelangelo Merisi da Caravaggio. Bacchino Malato, c. 1593, Óleo sobre tela, 67 x 53 cm, Galleria Borghese, Roma (Fonte: http://www.wga.hu/).

Em três momentos, Lomazzo menciona especificamente um autorretrato como

abade da Academia do Vale Blênio em seus escritos. No Rime ad immitazione dei

grotteschi41, existe um poema intitulado Ritratto de l'autor fatto da lui stesso. Neste poema,

Lomazzo nos conta que realizou um autorretrato quando foi eleito abade da Academia do

Vale Blênio, representando-se com o tirso de Baco, com a guirlanda de louros, com as vestes

típicas dos acadêmicos blenienses (provavelmente, a pele e o chapéu de palha) e com o selo

da academia, no qual Baco nu se alça aos céus com a piva (gaita) na mão esquerda e o galeão

na mão direita, e seu carro é puxado por dois tigres. Toda esta cena ocorre sobre um grande

rochedo, lugar de reunião dos acadêmicos do Vale Blênio. Esta mesma descrição aparece no

Rabisch. No Idea del Tempio della pittura, no último capítulo, Lomazzo menciona dois

autorretratos dados ao príncipe Carlos Emanuel de Savoia e um deles se trata de uma

autorepresentação como abade da Academia do Vale Blênio.

Como pudemos perceber, as descrições da iconografia do medalhão presentes no

Rime e no Rabisch não se assemelham ao medalhão que vemos no retrato da Pinacoteca de

Brera, o que pode sugerir que Lomazzo talvez tenha executado dois autorretratos distintos

como abade da academia. Contudo, não se pode afirmar nada com precisão, já que não existe

outro autorretrato deste tipo pelo que se sabe até o momento.

41 LOMAZZO, G.P. Rime ad immitazione dei grotteschi. Milão: Paolo Gottardo Pontio, 1587. pp.119-120.

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A partir deste breve balanço sobre as interpretações e informações a respeito deste

autorretraro, foi possível percorrer alguns elementos que compõem a biografia de Giovanni

Paolo Lomazzo. Sabemos, então, que foi um pintor milanês, bem como dedicava-se à escrita,

já que foi eleito líder de uma academia literária. Diante das referências ao vinho, a Baco e ao

furor poético, pode-se deduzir que a atividade central desta academia era a poesia. À frente

desta academia, defendia alguns princípios em torno do processo de criação artística: acima

de tudo, a arte como criação; Também, a ideia de que o verdadeiro artista é aquele inspirado

pelo furor poético; Além do furor criativo, o artista deveria conciliar o estudo da teoria com o

exercício prático; Em um movimento de retorno ao universo primitivo, através da figura dos

camponeses que desciam dos vales localizados aos pés dos Alpes, existe uma busca pela

valorização do rústico, das origens, do local e do universo rural (ou seja, há uma oposição ao

rebuscado e ao metropolitano).

Através da interpretação iconográfica deste autorretrato, nota-se que existe uma

ênfase no universo profano, na mitologia, na cultura popular grotesca, no princípio cômico e

na questão da arte como improviso. É preciso lembrar que no mesmo ano em que a Academia

do Vale Blênio foi fundada, em 1560, o futuro São Carlos Borromeo, o porta-voz da

Contrarreforma trentina na Itália setentrional, foi nomeado arcebispo de Milão. Portanto, é

possível imaginar a tensão que se instaurou entre os acadêmicos blenienses e o poder

eclesiástico da Milão borromaica, que, a partir de então, viria a exercer um grande controle

sobre as manifestações artísticas por todo o ducado42 .

Passemos aos dados biográficos mais pontuais. De acordo com seus versos

autobiográficos, Giovanni Paolo Lomazzo nasceu em Milão no dia vinte e seis de abril de

1538. Filho primogênito entre sete filhos, seu pai foi Giovanni Antonio di Giorgio e sua mãe,

Francesca Mozzanica. Não foi o único dos irmãos a exercer uma profissão artística, seus

irmãos Pomponio e Cesare também foram pintores, e Girolamo foi bordador. A pesquisa

documental de Marzia Giuliani e Rossana Sacchi43 nos mostra que G. P. Lomazzo provinha

de uma família de certo status social. Não se sabe ao certo se seu pai exercia alguma atividade

artesanal de alto nível, porém não é uma hipótese a ser descartada.

42 Isto será tratado a seguir, no seção 2 deste mesmo capítulo. 43 A atualização documental referente à vida de Giovanni Paolo Lomazzo foi realizada por Marzia Giuliani e Rossana Sacchi, e publicada no catálogo da mostra Rabisch, organizada pelo Museo Cantonale d'Arte de Lugano, que ocorreu entre os dias vinte e oito de março e vinte e um de junho do ano de 1998. A referência do catálogo é BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). Rabisch. Il grottesco nell'arte del Cinquecento. L'Accademia della Val di Blenio, Lomazzo e l'ambiente milanese. Ed. Skira: Milano, 1998, e os documentos se encontram nas pp. 329 e ss. ("Giovan Paolo Lomazzo e fratelli Lomazzo: regesto dei documenti").

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Até janeiro de 1571, a família residia em uma casa próxima a antiga igreja de

Santa Maria Beltrade (que foi demolida em 1934, restando apenas a praça de mesmo nome),

na região da Porta Ticinese, onde também se localizava seu ateliê. Esta região, nos arredores

das paróquias de Santa Maria Beltrade, Santa Maria Segreta e San Giorgio al Palazzo, era um

local de grande concentração de ateliês. Alfaiatarias, oficinas de bordadores, tapeceiros,

fabricantes de armas, joalheiros, entalhadores de pedras e cristais, pintores, gravadores, entre

outros compunham este cenário de rica produção de artigos de luxo e objetos decorativos. Foi

em meio a estas vielas compostas por ateliês diversificados que Giovanni Paolo Lomazzo e

seus irmãos cresceram.

Ainda, é possível traçar uma teia de conexão entre a família dos Lomazzo e

famílias de outros artistas locais, dentres estes, alguns membros da Academia do Vale Blênio.

Um deles é Scipione Delfinone, célebre bordador, um dos acadêmicos do Vale Blênio, cuja

filha foi casada com Cesare Lomazzo, um dos irmãos de Giovanni Paolo. Outro é Vincenzo

Figino, notável fabricante de espadas e armaduras, também residente na região de Santa Maria

Beltrade, e pai de Ambrogio Figino, que viria a ser aluno de Giovanni Paolo Lomazzo a partir

de janeiro de 1564 e tornar-se-ia um dos maiores pintores milaneses da segunda metade do

Cinquecento. Pelo lado materno, existe uma ligação dos Lomazzo com um dos mais

importantes alfaiates do período, Giovan Antonio Maiocchi. Ainda, há ligações diretas entre

Giovanni Antonio Lomazzo, pai de Giovanni Paolo, e a família Mazenta, que eram grandes

colecionadores de arte do período, que inclusive terminaram por administrar a herança

artística de Leonardo da Vinci44. Portanto, não é de se estranhar a profissão seguida por nosso

pintor e seu constante envolvimento com o universo do artesanato local, inclusive na

liderança de uma academia formada, em sua grande maioria, por artesãos.

Giovanni Antonio di Giorgio, ao perceber a inclinação à pintura demonstrada por

seu primogênito, colocou-o sob a tutela de um preceptor, quando Giovanni Paolo completou

dez anos de idade. Foi por meio deste preceptor que Lomazzo aprendeu a ler, escrever e

contar, entrou em contato com literatura e, por fim, aprendeu a desenhar. Ainda, Lomazzo

tomou lições de música com o tocador de alaúde Giovan Michel Gerbo, citado e elogiado

44 No artigo de Giuliani e Sacchi, o estudo de E. Veiga é indicado (La famiglia mazenta e le sue collezione d'arte. Archivo Storico Lombardo, pp. 267-295, 1918). Cfr. GIULIANI, M.; SACCHI, R. Per una lettura dei documenti su Giovan Paolo Lomazzo, "storico pittor fatto poeta" In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., p. 327, nota 13.

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algumas vezes em seus escritos45. Aos quatorze anos, foi introduzido no ateliê de Giovanni

Battista della Cerva, pintor novarês, ativo em Milão naquele período, e discípulo e

colaborador do grande mestre lombardo Gaudenzio Ferrari46. Lomazzo menciona que

executou muitos "quadros, bizarrices, histórias, frisos, grotescos, troféus, paisagens, naturezas

mortas e retratos de diversas dimensões" no ateliê do mestre Della Cerva47. O jovem pintor

permaneceu na bottega de Della Cerva até aproximadamente 155948, e, nos primeiros anos da

década de 1560, passou a exercer a profissão como pintor independente no ateliê da família na

região da paróquia de Santa Maria Beltrade.

No ano de 1560, executou a cópia do Cenacolo de Leonardo da Vinci para o

refeitório de Santa Maria della Pace em Milão, obra que não é citada em sua autobiografia

(este afresco não foi conservado até os dias atuais)49. Nestes anos, Lomazzo atendeu

importantes comitentes e admitiu aprendizes50. Data-se em vinte de janeiro de 1564 a

45 Michel Gerbo é um dos personagens de um dos diálogos do Libro dei Sogni (c.1563). O Libro dei Sogni ou Gli sogni e ragionamenti composti da Giovan Paolo Lomazzo milanese, con le figure de spiriti che gli racontano da egli dessignate jamais foi publicado. O manuscrito foi encontrado na King's library do British Museum, com a identificação Add. 12196, com o nome de Dissertation on art by G. P. Lomazzo. R. P. Ciardi relata que nas primeiras quarenta e nove folhas existe um poema de autor desconhecido, que também aparece publicado por Gabriele Piero em Veneza em 1475, e que deve ter sido unido ao texto de Lomazzo quando o manuscrito já se encontrava na Inglaterra (Existem traços de uma antiga numeração que compreende apenas o texto lomazziano. Ainda, a numeração do manuscrito de Lomazzo foi feita à tinta, enquanto que nas demais folhas ela aparece a lápis. A qualidade do papel também varia e existe um indício de um antigo código de identificação presente na primeira folha do manuscrito de Lomazzo). Cfr. CIARDI, R.P. Scritti sulle arti. Florença: Marchi e Bertolli, 1973, vol. I, pp. LXXXI-LXXXII (appendice bibliografica). Este manuscrito foi analisado por Eugenio Battisti no capítulo dez do Rinascimento e Barrocco (1960) e trabalhado por Roberto Paolo Ciardi, inserido em sua edição crítica dos escritos de Lomazzo (supracitada). Antes deles, Giuseppe Bossi, em Del Cenacolo di Leonardo da Vinci (1810), utiliza-o como parte de sua argumentação sobre a hipótese da atividade literária de Lomazzo em seus anos de juventude. Não se sabe ao certo como este manuscrito saiu das mãos de Bossi e terminou no British Museum, mas ao menos sabemos que isto se deu no século XIX. Sobre a cronologia dos escritos de Lomazzo e o Libro dei Sogni, cfr. capítulo 2, pp. 63-82 desta dissertação. 46 Sobre o ingresso de Giovanni Paolo Lomazzo no ateliê de Giovan Battista della Cerva, existe um contrato (Pacta et conventiones) datado em três de fevereiro de 1552, que trata-se de um acordo entre Gio. Antonio Lomazzo e Della Cerva, em relação ao início do aprendizado de Giovanni Paolo Lomazzo no ateliê do pintor novarês (Archivio di Stato di Milano, rubrica notarial 4263, notário G. Battista Rozzi. Este documento também é citado em SACCHI, R. ad vocem Della Cerva, Giovanni Battista, In Dizionario Biografico degli Italiani, Roma, 1988, vol. XXXVI, pp. 4-5). Cfr. GIULIANI, M.; SACCHI, R. op. cit., p. 329. 47 Rime ad imitazione dei grotteschi, p. 529. 48 Existe um documento de Liberatio, datado em trinta de outubro de 1559, no qual as autoridades responsáveis deliberam sobre o conflito entre Giovan Antonio e Giovanni Paolo Lomazzo, de um lado, e Della Cerva, de outro, devido à ruptura do contrato estabelecido entre eles em três de fevereiro de 1552 (Archivio di Stato di Milano, rubrica notarial 9778, notário Enrico Porri. Este documento é citado em SACCHI, R. op. cit., p. 5). Cfr. GIULIANI, M.; SACCHI, R. op. cit., p. 329. 49 Citado por Lomazzo no Rime, p. 109. O afresco foi datado por C. Biaconi, Nuova Guida di Milano per gli amanti delle Belle Arti, Milano, 1787, p. 111. Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., p. 329; Também, o terceiro capítulo da presente dissertação (seção 2), pp. 100 e ss. 50 Em seus versos autobiográficos, Lomazzo cita cerca de cinquenta retratos executados para nobres cavalheiros e senhores milaneses, alemães, suíços, prelados e patrícios pertencentes ao círculo imperial habsburgo. Dentre

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admissão de Ambrogio Figino, que havia então onze anos, em seu ateliê, quando o mestre

havia vinte e cinco anos, comprovada por um contrato de Pacta et Conventiones entre

Vincenzo Figino e o filho, e Giovanni Paolo Lomazzo. No documento, acorda-se que

Ambrogio Figino permaneceria no ateliê de G. P. Lomazzo por seis anos51. Em novembro do

mesmo ano, Lomazzo encontra-se completamente emancipado do pai52.

Lomazzo afirma que, desde cedo, escrevia em verso e em prosa "vari concetti que

lhe surgiam no pensamento e o fazia de maneira livre, rendendo-se aos caprichos de sua

imaginação, característica das mentes jovens". Foi neste período que nosso pintor compôs os

diálogos do Libro dei Sogni - obra que remete ao universo onírico, caricato e bizarro- , os

versos do Rime ad imitazione dei grotteschi - uma obra com um tom mais moralizante e

cristão - , e o primeiro núcleo daquilo que viria a se tornar seus tratados de pintura publicados

na maturidade53.

Em 1560, a Accademia della Val di Blenio é fundada, compreendendo entre seus

membros, artistas, artesãos e literatos: seu fundador e Alto Chanceler foi o gravador Giovanni

Ambrogio Brambilla54; Dentre os onze membros do Conselho, constam o bordador Scipione

Delfinone55, o escultor e entalhador Annibale Fontana56, o pintor Ottavio Semino57, o

eles, encontram-se Carlo Borromeo, Francesco Fernando d'Ávalos, nobres do séquito de Rodolfo e Ernesto de Habsburgo, filhos do futuro imperador Maximiliano II. É provável que tenha pintado o dobro deste número de retratos, já que nesta lista constam apenas os realizados para a elite recordados por ele, deixando de fora os retratos de amigos e colegas que executara. Cfr. Rime, pp. 530-3. 51 Archivio Storico di Milano, rubrica notarial 11271, notário Gaspare Rejna. Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., pp. 329-330. 52 Archivio Storico di Milano, rubrica notarial 11897, notário G. Pietro Carcano. Cfr. Ibidem. p. 330. 53 Sobre esta produção heterogênea de Lomazzo, que, em um primeiro momento, parece contraditória, cfr. PORZIO, F. Lomazzo e il realismo grottesco: un capitolo del primitivismo nel Cinquecento In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., p.23-36. 54 Nascido em Milão, em ano desconhecido. Tem-se notícias suas até 1591. Para uma breve biografia do artista, cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit. p. 337; LOMAZZO. Trattato dell'arte della pittura (...). In CIARDI. Scritti sulle arti. cit., vol. II, p. 534. Todos os membros da academia são citados no Rime ad imitazione dei grotteschi (Milão, 1587). 55 Nascido em Milão, entre 1522-1530, e morto em 31 de agosto de 1590. Sua filha, Clara Delfinone, foi casada com o irmão mais novo de Lomazzo, Cesare Lomazzo, como já foi dito. A ligação entre ambas as famílias, principalmente entre Giovan Paolo e Delfinone, é constante nos documentos. Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., pp. 325 e 338-9; LOMAZZO. Trattato dell'arte della pittura (...). In CIARDI. Scritti sulle arti. cit., vol. II, p.363. 56 Nascido em Milão em 1540 e morto em 1587. Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., p. 339; LOMAZZO. Trattato dell'arte della pittura (...). In CIARDI. Scritti sulle arti. cit., vol. II, pp. 159, 300, 420, 284, 381, 534, 552; LOMAZZO. Idea del Tempio della pittura (...). In CIARDI. Scritti sulle arti. cit., vol. I, pp. 269 e 370. 57 Nascido em Gênova por volta de 1530 e falecido em Milão em 1604, conhecido como compà Argh. Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., pp. 340-1; LOMAZZO. Trattato dell'arte della

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engenheiro Giacomo Soldati 58, o astrólogo Gerolamo Vicenza59, o fabricante de espadas

Francesco Giussano60, o músico Giuseppe Caimo61. Ainda, fizeram parte da academia os

pintores Paolo Camillo Landriani62 e Aurelio Luini63, o entalhador de cristais e camafeus

Francesco Tortorino64, o humanista, acadêmico e poeta Bernardino Baldini65, o poeta Lorenzo

Toscano66, o literato Bernardo Rainoldi67 e o ator Simone da Bologna68. Este grupo

heterogêneo contava com o apoio de importantes homens de Milão, como o secretário dos

duques de Milão, Giuliano Gosellini, e, acima de tudo, Pirro Visconti Borromeo (Moscont

Pirr) e Prospero Visconti 69.

pittura (...). In CIARDI. Scritti sulle arti. cit., vol. II, pp. 367 e 379; LOMAZZO. Idea del Tempio della pittura (...). In CIARDI. Scritti sulle arti. cit., vol. I, p. 370. 58 Giacomo Soldati (c.1540, Lugano (?) - 1600, Turim) foi um engenheiro hidráulico, civil e arquiteto, atuando em seus primeiros anos de atividade em Milão e na Lombardia. Data de 1566 sua primeira missão na corte de Emanuele Filiberto di Savoia (Turim). Em 1570, encontra-se de volta em Milão colaborando com Martino Bassi (projeto de reestruturação do sitema de canalização das águas dos canais de Milão). De acordo com Marino Viganò (2003), a grande concorrência no meio e as inimizades devido ao fato de Soldati ser um forasteiro dificultava sua atuação em Milão. Assim, em 1576 transfere-se para o Piemonte para ocupar o cargo de arquiteto na corte do duque Emanuel Filiberto de Savóia. Cfr. MAMINO, Sergio. Scienziati e architetti alla corte di Emanuele Filiberto di Savoia: Giovan Battista Benedetti e Giacomo Soldati. Studi piemontesi, 18, pp.429-449, 1989 e VIGANÒ, Marino. Giacomo Soldati da Neggio: un ingegnere nel Piemonte ducale sabaudo, Arte & storia, 18, pp. 106-117, (nov-dez) 2003. Cfr. nota 463 (tradução - apêndice). 59 Compà Ramozza. Cfr.CIARDI. Scritti sulle arti. cit., vol. I, pp. XXXVI e 312 (n. 6). 60 Compà Traver. Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., pp. 103 e 107. 61 Nasceu em Milão em 1545 e morreu em 1584. Cfr. CHAI, J.J (trad.). Idea of temple of painting. Pennsylvania: The Pennsylvania State University, 2013, pp. 8-11. 62 Camillo Landriani, conhecido como "Il Duchino", nascido em Ponte in Valtellina por volta de 1560 e falecido em Milão em 1619. Conhecido na academia como compà Squartamaglia; 63 Nascido em Milão em 1530 e falecido em 1593. Conhecido como compà Lovign. 64 Nascido em Urbino, mas ativo em Milão. As notícias de sua atividade datam de 1569-1578. Morre em 1595. Conhecido com compà Tortorign. Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., pp. 273, 327 e 341; ORLANDI, P.A. Abecedario pittorico. Veneza: Giambattista Pasquali, 1753, p.203; LOMAZZO, Trattato dell'arte della pittura (...) In CIARDI. Scritti Sulle arti. cit., vol. II, p. 300. 65 Nascido em 1515 em Lago Maggiore, morreu em 1600. Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit. pp. 67 e 104; LOMAZZO. Idea del Tempio della pittura (...). In CIARDI. Scritti sulle arti. cit., vol. I, p. 301; LOMAZZO, Trattato dell'arte della pittura (...) In CIARDI. Scritti Sulle arti. cit., vol. II, p. 22 (nota 2). 66 Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit. p. 106. 67 Conhecido como compà Sluriglian, um dos doze defensores da academia. Cfr. Ibidem, p. 48. 68 Compà Svanign. Cfr. Ibidem, p. 112. 69 Giuliano Gosellini (Roma, 1525 - Milão, 1587). Cfr. Ibidem, pp. 103, 105 e 108; Prospero Visconti era prior do Ospedale Maggiore, diplomata e colecionador de arte. Desenvolveu um importante papel junto a Guglielmo V da Bavária coletando objetos artísticos para compor as coleções do duque bávaro, colocando as produções artísticas milanesas em circulação nas cortes alemãs. Cfr. Ibidem, pp. 47, 105 e 107; Sobre a atuação de Pirro Visconti como um dos apoiadores da academia, cfr. Ibidem, pp. 17-21 e pp. 89-100.

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Lomazzo foi eleito abade da academia em quinze de agosto de 1568, como foi

dito anteriormente. Esta academia tinha como seu protetor o deus Baco e voltava-se para a

criação dos denominados "grotescos poéticos", gênero de poesia fundamentado no universo

cômico, bizarro, grotesco, caricato, carnavalesco e das manifestações populares, e nas

grotescas, tipo de representação gráfica composta por linhas sinuosas, arabescos, folhagens,

máscaras, animais e objetos diversos. Uma das maiores fontes de inspiração desta academia

era o pintor Leonardo da Vinci, com suas cabeças caricaturais e suas pesquisas fisionômicas.

É sabido que o pintor Aurelio Luini possuía um caderno de Leonardo que continha vários

destes desenhos de rostos caricatos, deformados e marcadamente expressivos70. Existe uma

série de desenhos atribuídos aos membros da academia bleniense que demonstram a forte

ligação destes artistas com as cabeças grotescas de Leonardo71.

O estandarte levantado por esta academia era o da arte como criação, como fruto

da inventividade do artista, indivíduo tomado pelo furor poético, simbolizado por Baco e pelo

vinho. Como já foi mencionado, esta academia baseava-se nos facchini do Vale Blênio,

trabalhadores braçais provenientes deste vale. Esta população humilde possuía um modo

rústico de falar o dialeto milanês, exprimia-se alto, ria, agitando a grande cidade lombarda,

infiltrada em todo o tipo de atividade laborativa menos especializada, de onde a inspiração

para a imitação caricatural deste grupo, inclusive no que diz respeito à linguagem. Os

acadêmicos do Vale Blênio não só se inspiraram nos trajes e costumes destes trabalhadores

braçais, como também criaram uma língua facchinesca, uma mistura dos dialetos milanês,

bergamasco, veneziano, genovês e bolonhês, através da qual se expressavam tanto na escrita

quanto na fala. Em 1589, o impressor Paolo Gottardo Pontio publicou em Milão, uma

coletânea de versos dos acadêmicos blenienses na língua facchinesca organizada por

Lomazzo, intitulado Rabisch dra Academiglia dor compà Zarvagna nadad dra Vall d'Bregn

72.

70 Para mais informações sobre esta academia, seus fundamentos e seus membros, mais uma vez cito o catálogo da mostra Rabisch. Il Grottesco nell'arte del Cinquecento. L'Accademia della Val di Blenio, Lomazzo e l'ambiente milanese (Lugano, 1998), organizado por Giulio Bora, Manuela Kahn-Rossi e Francesco Porzio. Também, LYNCH, J.B. Lomazzo and The Accademia Della Valle di Bregno. The Art Bulletin. 48, 210-211, 1966. Sobre Aurelio Luini e o Libricciuolo de Leonardo, cfr. Trattato dell'arte (...). VI, cap. XXXIII In CIARDI. op. cit., vol. II, p.315. 71 Tive a oportunidade de ver estes desenhos pessoalmente no acervo da Biblioteca Ambrosiana (Milão), em junho de 2016 (pesquisa financiada pelo programa BEPE-FAPESP). 72 O grande estudioso deste tema foi Dante Isella, que publicou em 1993 em Turim, uma edição crítica traduzida e comentada da obra: LOMAZZO, G.P. Rabisch. Giovan Paolo Lomazzo e i Facchini della Val di Blenio (Texto crítico e comentário de Dante Isella). Turim: Einaudi, 1993.

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Diante do movimento de cerceamento da liberdade de expressão, tanto

figurativa, quanto poética e no âmbito das manifestações populares, instaurado no período do

arcebispado de Carlo Borromeo a partir de 1565, a Academia do Vale Blênio constituiu um

verdadeiro reduto da cultura profana, do universo oculto e mágico em plena Milão da

Contrarreforma. Seus membros escondiam-se por trás de fantasias e codinomes, rituais e

reuniões secretas, que eram traços da mímese caricaturesca de Leonardo e do universo

carnavalesco nos quais se baseavam, mas também, em certo sentido, constituía um

mecanismo de mascaramento para proteção de suas identidades. Contudo, ainda assim, alguns

dos acadêmicos sofreram processos e foram presos pela igreja borromaica. É o caso de

Giovanni Ambrogio Brambilla que foi preso e torturado, e, devido à perseguição, transferiu-se

para Roma a partir de 1575, permanecendo ali até o fim da vida73. Também, em 1581, Aurelio

Luini foi proibido de exercer sua profissão por um certo período de tempo74. Alguns

pesquisadores, como Roberto Paolo Ciardi e Giulio Bora75, identificaram neste clima de

repressão uma possível explicação para a não publicação do manuscrito do Libro dei Sogni,

cujo conteúdo mágico poderia comprometer o autor, e também para o constatado

enxugamento do hermetismo e de elementos mais ritualísticos da prática mágica nos tratados

de pintura de Lomazzo publicados apenas na década de 1580-9076.

Passemos, então, à produção pictórica (pelo menos aquilo que nos chegou ao

conhecimento). Já mencionamos sua extensa produção de retratos e a cópia do Cenacolo

vinciano. Para além do autorretrato de Brera, existe um outro, de data bastante anterior, que

encontra-se no Kunsthistoriches Museum de Viena. Este autorretrato foi executado entre de

1555-65 (fig. 8)77. Por volta de 1556, quando ainda não era um pintor independente, Lomazzo

73 Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., p. 337-8. 74 Cfr. Ibidem, p. 340. 75 BORA, G. Milano nell'età di Lomazzo e San Carlo: riaffermazione e difficoltà di sopravvivenza di una cultura In Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., pp. 37-56; CIARDI, R.P. Scritti (...). cit., vol. I, pp. LII-LX. 76 No prefácio do Libro dei Sogni, Lomazzo afirma que haveriam dezesseis diálogos na obra. Porém, o manuscrito é interrompido no sétimo diálogo, curiosamente no debate em torno das ciências ocultas que se dá entre o necromante Ceco D'Ascoli e o teólogo Pietro Abano. 77 Para uma comparação estilística entre os dois autorretratos de Lomazzo, que revela a influência da pintura flamenga no retrato de Brera, para além da referência ao universo caricaturesco de Leonardo, coincidindo com o retorno de Lomazzo a Milão após sua viagem por Flandres, cfr. CIARDI, R.P. Giovanni Paolo Lomazzo In Dizionario Biografico degli Italiani, vol. 65, 2005. Acesso: http://www.treccani.it , data: 02/12/2016, 10h00.

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executou um ciclo de afrescos no presbitério da igreja de Santa Maria Nuova de Caronno

Pertusella78.

Sabe-se que Lomazzo realizou uma viagem por alguns dos grandes centros

artísticos europeus. Nesta viagem, empreendida entre agosto de 1561 e janeiro de 1564,

Lomazzo visitou Roma, Nápoles, Messina, Florença, Bolonha e Antuérpia 79. Ainda, o pintor

havia estado no Piemonte anteriormente80. Os historiadores apontam para a perceptível

mudança estilística de Lomazzo quando retorna a Milão, que passa a adotar traços do

vocabulário tosco-romano. Em c.1564, Lomazzo pinta a cena do Incontro di Abramo e di

Melchisedech no refeitório de Santa Maria della Passione em Milão81. Em 1567, realiza um

ciclo de afrescos na igreja de Sant'Agostino em Piacenza, representando a Allegoria della

Cena Quadragesimale (figs. 9 e 10)82. Nesta última obra, vê-se uma mescla do universo sacro

e profano através da inserção de elementos de caráter cômico-grotesco na representação de

um tema religioso83. Observamos a turba que se aglomera em torno de uma grande mesa

disposta diagonalmente, comendo, bebendo e conversando em meio a agitação de pratos que

78 Entre os documentos organizados por Giuliani e Sacchi está um pagamento por parte da Scuola di Carittà que administrava a paróquia. Cfr. GIULIANI; SACCHI. Per una lettura dei documenti (...) In BORA, G.; KAHN- ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., p. 330. Cfr. COLOMBO, P.; MONTI, P.; ZAFFARONI, P. Chiesa della purificazione. Caronno Pertusella. Florença: Alinea, 2011. 79 Vinte e oito de agosto de 1561 é a data da ida de Lomazzo a Arona, a pedido de Carlo Borromeo, para realizar o retrato da irmã do arcebispo, Gerolama Borromeo, e de Eleonora de Habsburgo, futura esposa de Guglielmo Gonzaga. Entre vinte e nove de dezembro de 1563 e sete de janeiro de 1564, Ernesto e Rodolfo de Habsburgo, filhos do futuro imperador Maximilano II, hospedam-se em Milão e, nesta ocasião, Lomazzo pinta retratos de alguns dos membros de seu séquito, como afirma no Rime, p. 531. Cfr. GIULIANI; SACCHI. op. cit., p. 329; CIARDI, R.P. Giovanni Paolo Lomazzo In Dizionario Biografico degli Italiani , vol. 65, 2005. Acesso: http://www.treccani.it data: 02/12/2016, 10h00.

A fortuna crítica de Giovanni Paolo Lomazzo menciona a circulação do pintor por estes grandes centros artísticos. Cfr. CIARDI, R.P. op. cit., vol. I, p. VIII, notas 9 e 10; KLEIN, R (trad). Idea del tempio della pittura. Florença: Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento, 1974, vol II, pp. 451-52; CHAI, J.J. op. cit., p. 7 Alguns acenos na obra Rime, pp. 107, 302 e 303. 80 Para além do contato com a pintura piemontesa por meio de Gaudenzio Ferrari, é provável que Lomazzo tenha passado um período em Turim entre 1556-59 (Rime, pp.158, 302). Cfr. CIARDI, R.P. op. cit., vol. I, p. VIII, notas 9 e 10; CIARDI, R.P. Giovanni Paolo Lomazzo In Dizionario Biografico degli Italiani , vol. 65, 2005. Acesso: http://www.treccani.it data: 02/12/2016, 10h00. 81 Cfr. GIULIANI; SACCHI. op. cit., p. 330; Rime, p.534; BORA, G. Due secoli d'arte a milano: la pittura in santa maria della passione e il conservatorio giuseppe verdi a milano. Milão: Silvana, 1981. 82 Ibidem. O afresco anterior foi destruído. Em relação a Cena Quadragesimale, restou-nos a documentação fotográfica e os desenhos preparatórios de Windsor. Cfr. CIARDI. Ibidem; Rime, p. 534; CARDI, M.V. Gian Paolo Lomazzo: La cena quadragesimale. Bollettino storico piacentino, Piacenza, 91, 77-89, 1996. 83 Daí a crítica de Lanzi a este afresco, "un mescuglio di sacro e di ridicolo, di Scrittura e di taverna, che non fa buona lega". Sobre a crítica de Lanzi, cfr. capítulo 3 (seção 2) desta dissertação, pp. 101-2; PORZIO, F. Lomazzo e il realismo grottesco: un capitolo del primitivismo nel Cinquecento In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. op. cit., p.23.

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vão e vem, parecendo ignorar completamente a figura de Cristo ao fundo. Cestos de frutas,

depositórios de vinho e um cão aparecem em primeiro plano. A cena é representada diante de

uma paisagem de aspecto flamengo. No que se refere à construção do espaço perspectivo no

sentido diagonal, com o auxílio da grande mesa, e ao excesso de personagens e de elementos

decorativos, Ciardi nos direciona para a pintura toscana do período, sobretudo Vasari (a fig.

11)84.

8- Lomazzo. Autorretrato, 1557-59, óleo sobre papel, 39 cm de diâmetro, Kunsthistorisches Museum, Viena (Fonte: http://www.wga.hu/).

84 Indico, para um exercício de comparação, a obra Il banchetto di Ester e Assuero, pintada para o refeitório da abadia das santas Flora e Lucilla (Arezzo) em 1548, localizado hoje no Museo Statale d'arte medievale e moderna em Arezzo.

Cfr. CIARDI, R.P. Giovanni Paolo Lomazzo In Dizionario Biografico degli Italiani , vol. 65, 2005. Acesso: http://www.treccani.it data: 02/12/2016, 10h00.

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9- Giovanni Paolo Lomazzo. Estudo para a Allegoria della Cena Quadragesimale. The Royal Library, Windsor Castle (Fonte: https://www.royalcollection.org.uk).

10- Giovanni Paolo Lomazzo. Allegoria della Cena Quadragesimale, 1567, Refeitório de Sant'Agostino, Piacenza (Fonte: catálogo da mostra Rabisch, org. pelo Museo Cantonale d'Arte de Lugano, de 28 de março a 21 de junho de 1998. Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). Rabisch. Il grottesco

nell'arte del Cinquecento. L'Accademia della Val di Blenio, Lomazzo e l'ambiente milanese. Milão: Skira, 1998, p. 24).

11- Giorgio Vasari. Il banchetto di Ester e Assuero, 1548, Museo Statale d'arte medievale e moderna em Arezzo (Fonte: http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/).

A partir de 1568, nota-se a expressão de uma musculatura mais proeminente e

delineada em suas figuras, que adquirem maior monumentalidade, remetendo ao vocabulário

anatômico michelangelesco. Isto pode ser notado no retábulo executado por Lomazzo para a

igreja de Santa Maria della Pace em Milão, representando o tema do Noli me tangere (fig.

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12)85. Ainda no ano de 1568, Lomazzo executou o Cristo in Pietà con le Marie (fig. 13) para

a igreja dos frades capuchinhos próxima à Porta Vercellina e o S. Francesco che riceve le

stimmate para a igreja de S. Barnaba e Paolo em Milão (fig. 14)86. Por volta de 1570,

Lomazzo realizou a Natività para o convento de S. Romano em Lodi; os afrescos

representando a Moltiplicazione dei pani e dei pesci e L'Ultima Cena no refeitório de S.

Maurizio; e o grande conjunto de afrescos da Capella Foppa na igreja de S. Marco em Milão,

representando a Caduta di S. Simon Mago (parede esquerda), S. Paolo risuscita

Eutico (parede direita, mas que encontra-se praticamente perdido), os profetas e sibilas no

teto, os evangelistas nos pendentes e uma glória angélica no teto da abside (figg. 15, 16, 17,

18, 19 e 20)87. Em 1571, Lomazzo pintou o retábulo representando a Madonna col Bambino e

i ss. Pietro, Paolo e Agostino (fig. 21) para essa mesma capela, que apresenta uma ênfase na

linguagem de Leonardo da Vinci, sem no entanto perder a monumentalidade e a acentuação

muscular de caráter tosco-romano. É importante notar a reafirmação de princípios lombardos

utilizados na construção dos escorços dos afrescos da Capella Foppa, atualizando as técnicas

empregadas pelos grandes representantes da pintura lombarda do final do Quattrocento e

primeira metade do Cinquecento, Vincenzo Foppa, Bernardo Zenale88, Bramantino e

85 Ainda, a obra apresenta uma aderência a valores de extremo caráter religioso, revelados pela iluminação e pela expressão emotiva dos personagens, como as luzes douradas dos estigmas e ao redor da cabeça de Cristo e a troca de olhares entre o Cristo e a Madalena, que é representada segundos antes de se jogar de joelhos aos pés do redentor, aumentando a dramaticidade da cena ao representar a iminência do ato de prostração devocional e intensa reação passional da personagem diante da visão do Cristo. Esta inserção de elementos de teor devocional é um reflexo da gestão de Carlo Borromeo sobre a cultura figurativa milanesa. Ainda, há uma aproximação da técnica de iluminação de Antonio e Giulio Campi, já ativos em algumas igrejas milanesas neste período (S. Paolo Converso), que se direciona à pesquisa de efeitos naturalísticos da luz, trabalhada de maneira cortante e brilhante, utilizada para destacar as formas e os contornos. Para mais informações sobre a obra, cfr. CAROLI, Flavio. Il Cinquecento Lombardo: da Leonardo a Caravaggio. Milão: Skira, 2000, pp. 438-39. 86 A primeira, encontra-se no depósito da Pinacoteca di Brera, e a segunda, ainda localiza-se em S. Barnaba e Paolo em Milão. Em ambas as obras, nota-se uma acentuação do uso da luz cortante, delineando as figuras e destacando as formas. Ciardi destaca o distanciamento da linguagem leonardesca nessas obras. Cfr. CIARDI, R.P. Giovanni Paolo Lomazzo In Dizionario Biografico degli Italiani , vol. 65, 2005. Acesso: http://www.treccani.it data: 02/12/2016, 10h00; Rime, pp. 535-6. 87 A Natività de Lodi encontra-se atualmente na igreja de Boffalora d'Adda. Cfr. GIULIANI; SACCHI. op. cit., p. 331; Rime, p. 535. Para uma análise da obra, cfr. CAROLI, Flavio. op. cit., pp. 440-41.

Os afrescos de S. Maurizio foram perdidos. Cfr. CHAI. op. cit., p. 7; Rime, p. 536. 88 Vincenzo Foppa nasceu na Brescia entre 1427-30 e morreu em 1515-16 no mesmo local. Foi um importante pintor, considerado um dos expoentes do Quattrocento lombardo, manifestando uma forma empírica de aplicar as regras de perspectiva albertiana e um estudo da iluminação lateral, atitudes naturalísticas que se consolidariam como marca das escolas lombardas ao longo do século seguinte. Cfr. ROMANO, G. Rinascimento in Lombardia. Foppa, Zenale, Leonardo, Bramantino. Milão: Feltrinelli, 2011.

Bernardo Zenale (1455-1460, Treviglio - 1526, Milão) foi um pintor e arquiteto lombardo, cujo vocabulário estilístico teve como referências Bramante, Leonardo e Vincenzo Foppa. Em seus primeiros anos de atividade, decorou, junto com seu conterrâneo Bernardino Butinone, as pilastras de Santa Maria delle Grazie em Milão (representando santos dominicados e beatos). Teve também participação em outros projetos decoraticos,

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Bramante. Portanto, este conjunto pictórico constitui o momento máximo de seu

desenvolvimento estilístico89.

No mesmo ano, Lomazzo executou o Cristo in croce con la Madonna e S.

Giovanni (que de acordo com Ciardi, encontram-se atualmente na paróquia de S. Antonio

Abate em Valmadrera, Lecco. Fig. 22) para a igreja de San Giovanni in Conca em Milão e

uma outra crucificação em que também aparece a Maria Madalena (agora na Pinacoteca di

Brera) para esta mesma igreja (fig. 23)90. No ano seguinte, Lomazzo pinta a Orazione

nell'orto para o altar da capela Gosellini na igreja de Santa Maria dei Servi em Milão

(atualmente na igreja de S. Carlo al Corso em Milão. Fig. 24)91.

assumindo, por volta de 1485, papel de proeminência, como por exemplo na execução do políptico de San Martino em Treviglio, e nos afrescos da Capela Grifi de San Pietro em Gessate, Milão (c. 1490), nos quais pintou as histórias de Santo Ambrósio. Assumiu posição de prestígio como pintor no cenário artístico lombardo nos anos finais de Ludovico, o Mouro, e durante o domínio francês. Após 1502 , atua como arquiteto na estrutura da Santa Maria presso San Celso (Milão), e em seus ultimos anos de vida, como arquiteto do Duomo de Milão (cf. NATALE, Mauro (ed). Foppa, Zenale and Luini. Lombard painters before and after leonardo, Robilant + Voena: Londres, 2012; FIORESE, G. Rivalutare Bernardo Zenale come architetto pittore. Anagke, 72, pp.138- 142, (maio) 2014). Ver nota 460 da tradução.

89 Cfr. BORA, G. Milano nell'età di Lomazzo e San Carlo: riaffermazione e difficoltà di sopravvivenza di una cultura In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. op. cit.., p. 44; GIULIANI; SACCHI. op. cit., pp. 330- 31; Rime, pp. 536-7. 90 Apesar de ambas as obras terem sido executadas para a mesma paróquia, tenho a impressão de que a segunda pertença a este período mais tardio, já que se aproxima estilisticamente da maneira do conjunto da Capella Foppa, enquanto que a primeira dialoga melhor com as obras realizadas em 1568. Cfr. Rime, p. 538; LANZENI, L. Due Crocifissioni di Giovan Paolo Lomazzo già nella chiesa milanese di San Giovan in Conca. 2003. 91 Existe um outro retábulo sobre o mesmo tema atribuído a Lomazzo na Pinacoteca Ambrosiana (inv. 108). Cfr. Rime, pp. 537-8.

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12. G. P. Lomazzo. Noli me tangere, 1568, óleo sobre madeira, 231x141,8 cm, Pinacoteca di Palazzo

Chiericati, Vicenza (Fonte: google imagens).

13- G. P. Lomazzo. Cristo in Pietà con le Marie , 1568, , Pinacoteca di Brera, depósito (Fonte: CHAI, J.J. Idea of temple of painting (trad). cit., fig. 21).

14- Giovanni Paolo Lomazzo. S. Francesco che riceve le stimmate, 1568, Santi Barnaba e Paolo, Milão (Fonte: CHAI, J.J. Idea of temple of painting(trad). cit., fig. 10).

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15- Giovanni Paolo Lomazzo. Caduta di S. Simon Mago, 1570, Capela Foppa, San Marco, Milão, parede esquerda (Fonte: google imagens).

16- Giovanni Paolo Lomazzo. Gloria Angélica, 1570, Capela Foppa, San Marco, Milão, teto/abside (Fonte: google imagens).

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17- Giovanni Paolo Lomazzo. Profetas e Sibilas, 1570, Capela Foppa, San Marco, Milão, cúpula (Fonte: google imagens).

18- Giovanni Paolo Lomazzo. Evangelista, 1570, Capela Foppa, San Marco, Milão, pendente (Fonte: google imagens).

19- Giovanni Paolo Lomazzo. Evangelista, 1570, Capela Foppa, San Marco, Milão, pendente (Fonte: google imagens).

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20- Giovanni Paolo Lomazzo, 1570-71, Capela Foppa, San Marco, Milão, afrescos do teto e retábulo (Fonte: google imagens).

21- Giovanni Paolo Lomazzo. Madonna col Bambino e i ss. Pietro, Paolo e Agostino , 1571, Capela Foppa, San Marco, Milão (Fonte: google imagens).

22- Giovanni Paolo Lomazzo. Cristo in croce con la Madonna e S. Giovanni , 1571, atualmente na paróquia de S. Antonio Abate em Valmadrera, Lecco (Fonte: CHAI, J.J. Idea of temple of painting(trad). cit., fig. 9).

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23- Giovanni Paolo Lomazzo. Cristo in croce con la Madonna , S. Giovanni e Maria Magdalena, 1571, óleo sobre madeira, 250 x 148 cm, atualmente na Pinacoteca di Brera (Fonte: http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/).

24- Giovanni Paolo Lomazzo. Orazione nell'orto, 1571, atualmente em San Carlo al Corso, Milão (Fonte: google imagens).

Não mais residente na região de Santa Maria Beltrade, Lomazzo muda-se para

uma residência maior, localizada na região da paróquia de Sant'Eufemina (então paróquia de

San Pietro in Campo Lodigiano) em 1570, quando estava no auge da carreira92. Ao longo de

toda a década de 1560, Lomazzo havia conquistado espaço entre os mais importantes pintores

milaneses do período. Para além da rede extensa de conexões, de sua grande influência entre a

sociedade de artistas, literatos, artesãos e comitentes de Milão, e de sua notoriedade fora dos

92 Cfr. GIULIANI; SACCHI. op. cit., p. 324-5.

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limites da cidade93, é possível perceber o seu reconhecimento como um renomado artista

através dos documentos. Em dezembro de 1562, uma patente ducal em nome de Felipe II é

emitida, autorizando uma transação financeira entre Giovan Paolo Lomazzo e seu pai, Giovan

Antonio, e, nesta patente, Giovan Paolo é referido como "primos civitatis pictores et est

notissimum". Também, Lomazzo concentrava um grande número de encargos de obras por

parte de importantes personalidades de Milão, sobretudo no que se refere a execuções de

cópias das obras dos grandes mestres do primeiro Cinquecento (Michelangelo, Rafael,

Leonardo, Luini)94.

Foi então que, no ano de 1572, sua carreira como pintor foi permanentemente

interrompida em razão da perda completa da visão95. Em sua obra Rime, Lomazzo afirma que

"Depois disso {a execução dos afrescos em San Giovanni in Conca96}, não passaram-se muitos dias,]

que por um grave acidente meus olhos foram

fechados; E perdi a amada e cara luz,

O que me fez sair fora de mim.

Assim como previra o grande Cardano

Médico e Matemático consagrado (...)

O que o famoso astrólogo Vicenza

Que igualmente foi retratado por mim

Também previra muito tempo antes

Com muitos males e ainda muitos bens.

Dos quais parte deixo e parte mantenho

Conforme a eterna vontade de Deus

Protegendo aquilo a que o céu me inclinava

Com as fortunas colocadas no meio dos céus (...).

Mas esta foi a dor, que naquela idade,

Na qual florescer deveria a arte, isto me aconteceu.

Pois que foi para a minha infeliz sorte

93 No Idea del Tempio, cap. XXXVIII, Lomazzo afirma que o Duque de Savoia possuía dois autorretratos seus junto com cópias de seu Trattato della pittura e Rime, ambos dedicados a Carlo Emanuele. Cfr. CIARDI, R.P. Scritti sulle arte. cit., vol. I, p. VIII. 94 GIULIANI; SACCHI. op. cit., pp. 324-325. 95 Giuliani e Sacchi apresentam um documento, publicado por Casati em 1884, datado em doze de agosto de 1572, com uma ressalva a um contrato firmado entre Giovanni Paolo Lomazzo e o senador Giulio Claro a respeito da encomenda de uma série de telas que deveriam ser executadas pelo pintor, que só puderam ser parcialmente entregues, pois Lomazzo, devido à cegueira, ficou incapacitado de finalizar o trabalho . Cfr. GIULIANI; SACCHI. op. cit., pp. 330-31. 96 Grifo meu.

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Nos anos trinta e três da minha idade.

Que então era tempo de exprimir a arte,

Com suas verdadeiras cores, que na juventude

Não soube; Apesar de que ardente era o desejo.

Mas na idade viril tudo haveria

Feito com razão verdadeira e firme, e segura"97.

Impossibilitado de exercer a amada profissão, Lomazzo retoma as obras de poesia

e teoria da pintura que havia escrito ao longo da década de 1560, e inicia um período de

meditação e aprofundamento dos conceitos que vinham sendo formulados por ele desde o

princípio de sua carreira como pintor. Em 10 de setembro de 1582, o senado de Milão

concede-lhe autorização para a publicação do Trattato della pittura e o exclusivo direito sobre

os exemplares impressos98. No mês seguinte, Lomazzo vende parte de sua residência a

Vincenzo Vimercati. Ao que tudo indica, sua intenção era conseguir uma quantia de dinheiro

para financiar a publicação de sua obra, já que, na mesma data do registro da venda (23 de

outubro de 1582), existe um outro contrato de fornecimento de papel da parte de Gaspare

Fiocchi. Quase um ano depois, em agosto de 1583, Vimercati revende a parte comprada para

Lomazzo. No ano seguinte, o Trattato dell'arte della pittura tem sua primeira edição

publicada pelo tipógrafo Paolo Gottardo Pontio. Mais duas edições são publicadas no mesmo

ano. Em 1585, publica-se uma quarta edição99.

Em 1587, sua coletânea de versos intitulada Rime ad imitazione dei grotteschi é

publicada pelo mesmo tipógrafo. Em 1589, o conjunto de poemas escritos pelos acadêmicos

blenienses em língua "facchinesca", organizado por Lomazzo, é publicado com o título de

Rabisch, que significa arabesco na língua facchinesca. Finalmente, em 1590, o objeto da

presente pesquisa, o Idea del tempio della pittura, ganha sua primeira e única edição do

período. Apenas duzentos anos depois, a obra seria reimpressa100. Em 1591, sua última obra é

publicada, intitulada Della forma delle muse.

Data de quatro de agosto de 1590 seu testamento. Neste, o pintor e teórico milanês

escreve

"Cum vita et mor in manu Dei Onnipotentis sint, et melius sit sub timore mortis vivere quod sub spe vivendi ad mortem subitaneam

97 Rime, pp. 538-9 (trad. livre) 98 Cfr. GIULIANI; SACCHI. op. cit., p. 333. 99 Ibidem. Sobre as edições do Trattato, cfr. capítulo 3 (seção 1.2) desta dissertação, pp. 85-86. 100 Sobre as edições do Idea del tempio, cfr. capítulo 3 (seção 1.2) desta dissertação, p. 86.

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pervenire, id circo ego Jo. Paulus Lomatius, filius quondam domini Jo. Antonii, porta Ticinesis, parrochia Sancti Petri in Campo laudensi foris Mediolani, sanus mente, intellectu et corpore, licet cecus et luce mundi privatus101".

Apesar da asserção em relação ao "sanus corpore", ao que tudo indica, Giovanni

Paolo Lomazzo estava doente, estado que se prolongaria por dois anos, levando-o à morte102.

No registro de óbito, datado em 27 de janeiro de 1592, a causa mortis é especificada como

"malatia longha sine signo di peste"103.

2. Milão durante o período da formação e consolidação de Lomazzo como artista e

acadêmico (1560-1590).

De forma alguma é minha intenção abranger a totalidade de um período tão rico e

dinâmico como foram estas três décadas da Milão borromaica. Não pretendo realizar uma

análise histórica do projeto religioso de São Carlo Borromeo; Também não configura o

escopo desta dissertação compreender as tensões entre a igreja milanesa e estado laico sob a

administração espanhola; Nem ao menos esgotar o problema da produção figurativa nestas

décadas, tendo em vista que para isto seria necessário um estudo acurado sobre os artistas

milaneses e não milaneses ativos na cidade durante o período, sobre os comitentes religiosos e

laicos que movimentaram este cenário, sobre as tensões existentes entre as diversas escolas,

sobre os decretos borromaicos em torno da representação visual e da cultura popular, sobre o

impacto do programa de renovação social e eclesiástica de Borromeo sobre as artes plásticas,

etc. Um trabalho de tamanha proporção não seria viável em apenas um tópico dentro desta

pesquisa. Muito pelo contrário, demandaria muitas linhas e muito fôlego. Em um sentido

diverso, pretendo assinalar alguns episódios que ocorreram neste período - que coincide com

os anos de atuação de Giovanni Paolo Lomazzo como pintor, poeta, teórico e líder acadêmico

-, que podem contribuir para elucidar certos pontos da biografia e do pensamento do nosso

autor. Se isto for satisfatoriamente atingido, considero ter cumprido o objetivo desta seção.

101 GIULIANI; SACCHI. Op. cit., p. 334. 102 Cfr. Ibidem, pp. 325 e 334. Lomazzo revoga os privilégios concedidos a Giovan Antonio Maiocchi em seu primeiro testamento (29 de maio de 1581), pois Maiocchi demonstrara ingratidão a Lomazzo, "luce corporali privato et in infirmitate gravi consunto necessitatibus urgentis circumvoluto quibus et aliis de causiis que brevitate omittunt". 103 Cfr. Ibidem, p. 335.

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Primeiramente, não podemos deixar de considerar o arcebispado de Carlo

Borromeo104. Cardeal responsável pela administração da arquidiocese de Milão desde 1560,

foi nomeado arcebispo em maio de 1564 e instalou-se de fato na cidade a partir de 1565, ali

permanecendo até o fim da vida, de acordo com seu princípio de "arcebispo pastor" - que

deve permanecer junto ao corpo da comunidade que zela -. O programa reformador de Carlo

Borromeo representava as necessidades mais urgentes da Igreja, estipuladas pelo Concílio de

Trento (1545-1565), no qual as diretrizes da "Grande Reforma Católica" foram determinadas.

O arcebispo estabeleceu duas frentes de ação reformadora: uma interna, que dizia respeito à

própria estrutura eclesiástica, fortalecendo a hierarquia da Igreja e centralizando o controle e a

autoridade na figura do arcebispo - "voi siete i miei occhi, le mie orecchie, le mie mani" - , e

uma externa, que dizia respeito à sociedade laica, procurando eliminar hábitos e costumes

pagãos, supersticiosos, transgressores e "infames", em suma, tudo o que pudesse desvirtuar a

moral dos indivíduos da comunidade cristã105. Estas medidas tiveram um grande impacto na

arquitetura sacra do período, já que o espaço arquitetônico dialogava intimamente com a

liturgia das missas e com as celebrações religiosas, e nas artes figurativas, devido à imposição

de regras de decoro exigidas pela Contrarreforma. Os limites entre o sacro e o profano viriam

a ser estabelecidos de maneira bastante rígida pelos reformadores católicos, basta nos

recordarmos dos grandes tratadistas representantes desta tradição, como Gilio da Fabriano e o

cardeal Gabrielle Paleotti106.

No ano de 1577, Borromeo publica as suas Instructionum fabricae et supellectilis

ecclesiasticae libri II, onde lança as diretrizes estipuladas a partir do terceiro concílio

provincial presidido por ele próprio (como é afirmado pelo arcebispo no prefácio à obra) para

as edificações (planta, pavimento, janelas, altares, frontões, ...) eclesiásticas - "sacris aedibus,

cappellis, altaribus, oratoriis, baptisteriis, sacrariis" - e imagens sacras - "ceterisque id generis

extruendis, tum de vestibus etiam sacris, ornamentis, vasibus, alioque ecclesiastico apparatu

conficiendo, ea potissimum praescripsimus, quae provinciae nostrae ecclesiarum frequentiori

usui et ornatui opportuna atque accommodata vidimus". Sobre a pintura, Borromeo declara

que "Iam vero de sacris imaginibus pie religioseque exprimendis, cum maxime ex decreto

Tridentino, constitutionibusque provincialibus Episcopus cavere debet,", isto é, que as

104 Nasceu em Arona em 1538 e faleceu em Milão em 1584. Foi canonizado em primeiro de novembro de 1610 pelo papa Paolo V. 105 Sobre o período borromaico, Cfr. BUZZI, F; ALZATI, C. Carlo Borromeo e l’opera della "Grande Riforma". Cultura, religione e arti del governo nella Milano del pieno Cinquecento.Milão: Silvana, 1997. 106 Gilio da Fabriano. Due dialoghi dove si ragiona degli errori e degli abusi de' Pittori circa l'historie. Camerino, 1564; Gabrielle Paleotti. Discorso intorno alle immagini sacre e profane.1582.

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imagens sacras deveriam seguir os preceitos estabelecidos a partir do Concílio de Trento e dos

decretos provinciais do arcebispo. Ficavam banidas, sob risco de grave pena, a violação das

diretrizes tridentinas e episcopais. As imagens não poderiam exprimir falsos dogmas,

discordantes das sagradas escrituras e da tradição da Igreja: "nihil falsum, nihil incertum

apocryphumve, nihil superstitiosum, nihil insolitum adhiberi debet, ita quicquid prophanum,

turpe vel obscaenum, inhonestum procacitatemve ostentans, omnino caveatur"107.

Paralelamente, a cidade de Milão vinha se tornando, ao longo do século XVI, o

centro da região da Lombardia: sede da administração espanhola desde 1556, com a ascensão

de Carlo Borromeo à arquidiocese, a cidade transformou-se no epicentro do qual partiam as

coordenadas para a organização de toda a comunidade religiosa da região através dos

Conselhos Provinciais108. Para além do fator de ordem político-administrativa e religiosa,

Milão era uma grande exportadora de artigos de luxo e de arte decorativa, objetos de metal,

entalhes em cristais e pedras preciosas, tapeçarias, vestuário, ourivesaria, armaduras e

espadas, e objetos artísticos como pintura e escultura, que saíam daí diretamente para as

cortes de toda a Europa109. Existe uma rede de conexão entre artistas milaneses e as cortes do

norte, como as cortes de Paris e Praga, e também Madrid. Portanto, a cidade constituía-se

como um pólo de atração de artistas e artesãos de toda a região.

A elite política local, parte da máquina administrativa espanhola, passou a cultivar

um gosto por novas tendências maneiristas, sobretudo por artistas provenientes das escolas

"estrangeiras", como por exemplo o pintor cremonês Bernardino Campi110, cujo estilo

refinado e rebuscado, com referências a Giulio Campi, Giulio Romano, Parmigianino e

Camilo Boccaccino, vinha ao encontro das necessidades da corte de Ferrante Gonzaga e do

clima imperial instaurado a partir de então111. Este pintor, durante a década de 1560 e início

da década de 1570, dominou o cenário artístico local. Convidado para instalar-se em Milão

pela esposa do governador Ferrante Gonzaga, a princesa Isabella di Molfetta, em 2 de maio de

107 BORROMEO, C. Instructionum fabricae (...). Milão, 1577, p. 24. Fonte: Fundação Memofonte. 108 Cfr. BUZZI, F; ALZATI, C. op. cit. 109 Cfr. BORA, G. Milano nell'età di Lomazzo e San Carlo: riaffermazione e difficoltà di sopravvivenza di una cultura; VENTURELLI, P. "E per tal variar natura è bella". Arti decorative a Milane tra Leonardo e Lomazzo ambos In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. op. cit.; ROMANI, Marzio Achille (org.). Made in Milano. Le botteghe del Cinquecento. Parma: Grafiche Step editrice, 2015. 110 Nasceu em 1522 em Cremona e morreu em 1591. Foi aluno de Giulio Campi e de Ippolito Costa. 111Sobre o governador Ferrante Gonzaga, cfr. GIANVITTORIO, S (org.). Ferrante Gonzaga. Il Mediterraneo, l’Impero (1507 - 1557). Roma: Bulzoni, 2009. Sobre a produção pictórica na Milão de Gonzaga, cfr. BORA. G. Milano nell'età di Lomazzo e San Carlo: riaffermazione e difficoltà di sopravvivenza di una cultura, in BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. op. cit., p. 37.

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1550, Bernardino Campi permanecerá ligado à elite política de Milão durante os anos

sucessivos, sendo muito reconhecido por sua grande habilidade no gênero do retrato112.

Também, a partir da instalação da corte de Gonzaga, o canteiro de Santa Maria

presso San Celso passaria a ser administrado por um grupo de nobres milaneses eleitos pelo

duque, constituindo-se como um dos canteiros mais dinâmicos do período, que vinha se

caracterizando pela preferência por artistas inovadores, e, na maioria dos casos, estrangeiros,

em contraposição aos núcleos mais tradicionais como o canteiro do Duomo113. Deste modo, o

influxo de artistas vindos de fora de Milão, atraídos pela corte imperial, torna-se cada vez

mais intenso, coincidindo com o período de formação do nosso pintor, ao longo da década de

1550, no ateliê gaudenziano de Della Cerva, e com os anos de sua atuação como pintor

independente ao longo da década de 1560.

Vale lembrar que, como mencionamos no tópico precedente, Lomazzo executou

uma cópia do Cenacolo de Leonardo da Vinci para o convento de Santa Maria della Pace por

volta de 1560. A herança de Leonardo, transmitida através de seus discípulos, sobretudo

Francesco Melzi114, e deste para Girolamo Figino115, grande representante da escola de

Leonardo no período, era um grande marco da cultura figurativa local. Como ressalta F.

Porzio, em paralelo à cópia da célebre obra de Leonardo, é sabido que Lomazzo havia

iniciado um projeto de escrita da vida de Girolamo Figino nestes anos, talvez a primeira de

muitas vidas de pintores lombardos, inspirando-se na obra vasariana publicada poucos anos

antes116. O final da década de 1550 e início da década de 1560, configura-se, então, como um

momento de recuperação dos valores artísticos próprios das escolas de Milão, ligados, de um

lado, ao legado de Leonardo da Vinci, e de outro, à tradição assente em Vicenzo Foppa

(Bernardo Zenale, Bramante e Bramantino).

O ano de 1563 e os anos que se seguiram a ele foram marcados por uma forte

rivalidade nutrida pelos artistas das escolas locais contra os artistas estrangeiros, sobretudo

112 O pintor foi chamado à corte de Ferrante Gonzaga para executar o retrato de Ippolita Gonzaga, filha do duque de Milão, na ocasião de seu matrimônio. Cfr. BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. op. cit., pp. 39-40. 113 Cfr. BORA. G. Milano nell'età di Lomazzo e San Carlo: riaffermazione e difficoltà di sopravvivenza di una cultura In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. op. cit., p. 37. 114 Pintor da corte Gonzaga nos anos 1550-60. Cfr. Ibidem. pp. 39-40. 115 Sobre Girolamo Figino, cfr. BORA, G. Girolamo Figino, "stimato valente pittore e accurato miniatore", e il dibattito a Milano sulle "regole dell’arte" fra il sesto e il settimo decennio del Cinquecento. Raccolta Vinciana, 30, 267-325, 2003. 116 Cfr. PORZIO, F. Lomazzo e il realismo grottesco: un capitolo del primitivismo nel Cinquecento. In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. op. cit., p. 24 e nota 12.

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cremonenses (Bernardino Campi e os irmãos Giulio, Vincenzo e Antonio Campi). Data-se em

1564 a disputa pela comissão do estandarte de Santo Ambrósio, ícone da cultura religiosa

local. Inicialmente, o encargo do projeto do estandarte havia sido dado ao pintor cremasco

Carlo Urbino117. Contudo, ocorre uma mudança na administração do canteiro e o bordador

Bartolomeo Rainone é substituído pelo já citado Scipione Delfinone, auxiliado por Camillo

Pusterla, que solicita um novo concurso para o projeto do estandarte. Lembrando que

Scipione Delfinone, que possuía ligações de amizade e parentesco com Lomazzo, era um

artista inserido no contexto dos ateliês milaneses da região de Santa Maria Beltrade e era um

dos conselheiros da Academia do Vale Blênio. Desta disputa participariam os pintores

Giuseppe Meda (milanês)118 e Bernardino Campi, cujos projetos seriam julgados por

Girolamo Figino e Francesco Melzi, personagens de maior autoridade no campo figurativo em

Milão e de claro posicionamento filo-milanês, e, por fim, o projeto do pintor milanês

Giuseppe Meda (em colaboração com Giuseppe Arcimboldo) é eleito o vencedor (fig. 25).

117 Crema, 1525 - 1585. Carlo Urbino da Crema foi colaborador de Bernardino Campi. Cfr. BORA, G. Note cremonese. L'eredità di Camillo e i Campi. Paragone - Arte, n. 327, 1977. 118 Giuseppe Meda (1531/34 - 1599) foi um importante arquiteto, pintor e engenheiro civil milanês, amigo de Arcimboldo, Martino Bassi e Giovanni Paolo Lomazzo. Iniciou seu aprendizado em pintura no ateliê de Bernardino Campi, contudo, desde cedo demonstrara maior interesse por engenharia hidráulica, apesar de seu grande talento para a pintura. Por isso, por intermédio de seu pai, Andrea Meda, que fora alertado por seu mestre Bernardino Campi sobre o interesse do rapaz por hidráulica, junto com Biagio Arcimboldo, pai do pintor Giuseppe Arcimboldo, alguns anos mais velho que Giuseppe Meda, começa a se relacionar com o pintor Arcimboldo, por quem passa a cultivar muita admiração, e, assim, retoma seu interesse por pintura. Ambos inciam um período de colaboração na década de 1550: executam os afrescos da casa Negroli (Santa Maria Segreta); Os ciclo de afrescos da abóbada e parede do fundo do transepto meridional do Duomo di Monza a partir de 28 de maio de 1556 (Passione degli Evangeliste e Albero di Jesse); Juntos executam a composição para o estandarte (gonfalone) do duomo de Milão, porém Arcimboldo é convidado a ir à corte imperial, e, então, parte para Viena, deixando a conclusão da composição do estandarte para Meda. Depois disso, Meda recebe inúmeras comitências e começa a se tornar um pintor reconhecido e prestigiado no círculo de comitentes milaneses e ao entorno de Milão. No início dos anos 1560, retoma seus interesses em engenharia hidráulica e passa a se relacionar com Martino Bassi. Ainda, é escolhido pelo barão Giovanni Tommaso Martirano, emissário de Felipe II, junto a Vincenzo Seregni e a Pellegrino Tibaldi, para fornecer ideias, desenhos, modelos e pareceres para a obra do Escorial. A colaboração com estes dois grandes arquitetos chancelou seu sucesso como arquiteto e engenheiro no circuito Milão-Madrid. Em 1580 é nomeado para solucionar a questão da navegabilidade do rio Adda desde o lago de Como até o canal de Martesana. Sobre o Palácio de Próspero Visconte, a atribuição do projeto arquitetônico a Meda,"um dos edifícios mais inovadores realizados em Milão na segunda metade do Cinquecento" (1589-91), vem sendo cada vez mais confirmada pelos estudiosos. Em 1597, é processado e preso devido ao desabamento das obras no canal de Paderno (acusado por seus inimigos). Morre em 1599 aos 65 anos, após sair da prisão, sem conseguir ver a obra do canal de Paderno concluída. (cfr. MALARA, Empio. Milano come opera d'arte: Giuseppe Meda (1534-1599) pittore, architetto, ingegnere. Milão: Ulrico Hoepli, 2011). Ver nota 461 da tradução (apêndice).

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25. Scipione Delfinone, Camillo da Posterla; Desenho de Giuseppe Arcimboldi e Giuseppe Meda. Il

Gonfalone di Milano. 1565-1566, tecido, bordado e têmpera, Museo d'Arte Antica, sala VII, Milão (Fonte: google imagens).

Outra importante comissão aqueceu o ambiente artístico milanês nestes mesmos

anos: o projeto pictórico das persianas do novo órgão da catedral de Milão. Assim como a

disputa em torno do projeto do estandarte, esta comissão também acentuou a rivalidade entre

os artistas locais e estrangeiros. Contudo, a querela, iniciada em 1559-60 entre os pintores

Bernardino Campi e Giuseppe Meda, acaba despontando em um concurso promovido pelas

autoridades responsáveis, F. Melzi, G. Figino e Bartolomeo Taegio, que ocorre em 1564. Os

artistas que participaram do concurso eram os já citados Bernardino Campi e Giuseppe Meda,

Giulio, Antonio e Vincenzo Campi (indicados pelo arcebispo Borromeo119), Aurelio Luini e o

pintor bergamasco Francesco Terzi, recém chegado da corte de Viena. Por fim, em dezembro

119 Os irmão Campi (Giulio, Antonio e Vincenzo) inserem-se no cenário milanês através da comissão da decoração da igreja de clausura de S. Paolo Converso, pertencente às irmãs Angélicas (ordem religiosa que havia sido fundada por Paola Lodovica Torelli, a condessa de Guastalla, e ratificada pelo Papa Paolo III em 1535). Na década de 1560, a madre responsável pelo convento, Giulia Sfondrati, encomenda e financia a empresa dos irmãos Campi. Os Sfondrati eram uma nobre família cremonense e não é por acaso sua preferência por pintores provenientes da terra natal. Ademais, a Ordem das Angélicas era uma ordem protegida pelos arcebispo Borromeo, que as considerava um modelo de vida religiosa monástica, o que fortalecia ainda mais a posição dos pintores Campi no cenário artístico de Milão. Cfr. BORA, G. Milano nell'età di Lomazzo e San Carlo: riaffermazione e difficoltà di sopravvivenza di una cultura In BORA, G.; KAHN-ROSSI, M.; PORZIO, F. op. cit., p. 53.

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de 1565, o cartão de G. Meda (o único que enviou um projeto) é aprovado por Francesco

Melzi120.

A partir destes dois episódios é possível perceber o embate travado pelos pintores

milaneses contra os pintores estrangeiros, em um esforço de afirmação das escolas locais. É

neste contexto de intenso confronto artístico em que nosso autor iniciou a escrita de suas

obras de teoria e, depois, recém chegado de sua viagem pelos grandes centros artísticos

europeus, por volta de 1564, insuflou a alma da academia bleniense, liderando artistas,

artesãos e poetas locais. Também, alguns anos depois, Lomazzo executava os afrescos da

Capela Foppa, utilizando escorços acentuados, efeitos de sottinsù e construções de

perspectivas arquitetônicas como fizeram Arcimboldo e Meda no estandarte, e Meda nas

persianas, reiterando as práticas tradicionalmente relacionadas aos mestres lombardos.

No Libro dei sogni, sua obra não publicada, Lomazzo escreve algumas linhas

sobre a disputa entre os artistas contemporâneos e a forma como os comitentes, influindo

sobre as obras e oferecendo o encargo a quem cobra menos, contribuíam para a decadência

das artes, algo que o pintor reitera nas linhas do Idea del Tempio121,

(Leonardo) "Oh! Quão benigno pintor era este Apeles. Por certo que, assim como eu pensava, considerava que entre os pintores antigos houvesse gandíssima bondade e que se um buscasse superar o outro, era por amor à arte, totalmente sem más intenções e opinião. Atualmente, vê-se um pintor contra o outro, não sem grandíssimo desprezo pela pintura, que mais por causa disso que por outra razão declinou e rebaixou-se. Vê-se, agora, certas pinturecas que nem ao menos uma meia simetria apresentam, que por todos os lados, movidos pela inveja, não fazem outra coisa senão maldizer este ou aquele, apontando para todas as falhas alheias, não se recordando de seus próprios defeitos. E, nos dias de hoje, tornou-se corriqueiro, por causa deles, que se um gentil-homem ou senhor de qualquer grau que se queira há de fazer pintar alguma coisa, coloca-a, da mesma forma que as coisas que se compram em leilão, dizendo querer dar-la àquele que por menor preço far-la-á, sem preocupar-se com quem é competente e quem é ignorante. (...) na cidade de Milão, estando por pintar as portas do órgão da Catedral, o nobre cavalheiro Francesco Salviati, digníssimo pintor que, então, vinha da França para depois seguir para Roma, foi dispensado, quem ter-las-ia pintado por um preço honesto no lugar de um certo Bernardino cremonês, ao qual mais discursos e louvores abundam, (...)" 122.

120 O tema do projeto era o episódio do Trasporto dell'arca santa. Para mais informações sobre as disputas em torno destas comissões, cfr. BORA. G. op. cit. pp. 40 e ss. 121 No final do cap. III (sobre o discernimento). Ideia também presente em Vasari, cfr. trecho citado, nota 366 da tradução (apêndice). 122 Trad. Livre. Cfr. Libro dei Sogni In CIARDI. op. cit..; vol. I, pp. 90-91.

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É necessário discorrer brevemente sobre a questão da censura, que após o

Concílio de Trento e a ascensão de Carlo Borromeo, estreitou cada vez mais seus limites.

Antes da liderança borromaica da arquidiocese milanesa, a inquisição espanhola (introduzida

em Milão em 1563) e a romana já atuavam na região com o intuito de frear a disseminação do

protestantismo, que vinha se tornando cada vez mais forte na Itália setentrional, e também

eliminar todo o tipo de superstição e sincretismo. O Santo Ofício que, em Milão, era delegado

aos frades da ordem dominicana, tinha sua sede no convento de Santa Maria delle Grazie (a

partir de 1558)123. De acordo com Fumi, grande parte dos processos da inquisição do período

tiveram como causa sortilégios, feitiços, magias, superstições e blasfêmias, e a maior

ocupação dos agentes do Santo Ofício se deu em torno da censura de livros124. Dentre estes,

as obras de Cornélio Agrippa de Nettesheim foram incluídas, uma das grandes fontes de

Lomazzo e dos acadêmicos do Vale Blênio125.

"A igreja proibia todas as formas de supertição, os abusos de aplicações de doutrinas astrológicas e as especulações dos cabalistas; mas sobretudo condenva as bruxarias126.

Pode-se imaginar as dificuldades que os acadêmicos blenienses tiveram que

enfrentar conforme acentuava-se a vigilância da Igreja. Esta situação, como foi dito

anteriormente, pode ser uma das justificativas para Lomazzo não ter dado continuidade ao

manuscrito do Libro de Sogni, e muito menos publicado-o, já que, além do conteúdo mágico

bastante suspeito, alguns de seus personagens eram nomes listados como autores proibidos

pela inquisição, como Ceco D'Ascoli e Pietro Abano127.

A nomeação de Carlo Borromeo ao arcebispado intensificou as circunstâncias.

Em função da reforma promovida pelo futuro santo, muitos decretos foram realizados a fim

de minar tudo o que fosse considerado desviante para a purificação da comunidade católica. A

existência de pólos de vigilância e autoridades plurais desencadearam conflitos entre as

próprias instituições: não são poucos os casos de atrito entre a Inquisição romana, o arcebispo

e o governo espanhol128.

123 Cfr. FUMI, L. L'inquisizione romana e lo stato di milano. Archivio storico lombardo, Milão, Vol. 14 , 4th ser., fascículo 27, setembro (1910), p. 27. 124 Cfr. Ibidem, pp. 12-19. 125 Cfr. FUMI. op. cit., pp. 89- 90. 126 Cfr. FUMI. op. cit., p. 92. 127 Cfr. pp. 40-1 desta dissertação. 128 Cfr. FUMI. op. cit., pp. 101 e ss.

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São Carlo Borromeo repudiava manifestações da cultura popular ligadas ao

paganismo, que faziam parte do repertório recreativo da sociedade. Atores, bailarinos,

espetáculos de fantoches, jogos de cartas, corridas, jogos de dados, danças, adivinhações,

feiras, libretos populares, magia, máscaras, menestréis, previsões do futuro, contos populares,

bruxarias, tavernas, o carnaval e todo o tipo de espetáculo teatral eram os principais alvos dos

reformadores129. Através dos Conselhos Provinciais, que ocorriam a cada dois anos, o

arcebispo instituía decretos para a regulamentação das práticas consideradas ilícitas: em 1565,

as Sacras Representações foram condenadas; Em 1579, os tumultos de carnaval, entre outras

práticas. Devido a este decreto sobre o carnaval, ocorreu um conflito entre o arcebispo e o

então governador de Milão, o marquês de Ayamonte. O caso foi levado a Roma, e o Papa

Gregório III solucionou o conflito lançando uma bula em 1580, que aprovava "tutti i decreti

dell'arcivescovo concernenti la santificazione delle feste", conferindo autoridade total ao

arcebispo de Milão130.

Uma das manifestações populares proibidas pelo arcebispo foi a supracitada festa

dos facchini que envolvia a cerimônia do cavalazz. Bora, Bernardi e Cascetta nos contam que

esta festa fazia parte da mais importante procissão anual da cidade, na qual havia cortejos que

partiam das seis portas milanesas carregando as ofertas à Fabbrica del Duomo. No cortejo da

Porta Ticinese, região onde viviam, como já sabemos, Lomazzo e diversos artistas e artesãos,

era costume a presença de um cavalo de madeira contendo gêneros alimentícios como

linguiças, salames, mortadelas e todo o tipo de embutidos, algo que não era muito bem visto

aos olhos do santo arcebispo 131.

Diante dessas considerações, pudemos enxergar com um pouco mais de nitidez o

cenário desta Milão contraditória. Artistas, cidadãos e autoridades laicas viviam em constante

tensão com a censura eclesiástica, que limitava a expressão da cultura e dos costumes locais.

Ao longo da década de 1560, quando Lomazzo consolidava-se como líder da supracitada

academia bufa, também o Concílio de Trento lançava suas diretrizes reformadoras, São Carlos

assumia o controle da igreja milanesa, a inquisição se fortalecia enquanto instituição nas mãos

dos frades dominicanos e o governo espanhol atuava com sua própria instituição inquisitorial.

A Academia do Vale Blênio, pautada na cultura popular, no grotesco, no carnaval

e no universo do espetáculo do improviso, caminhava exatamente na contra-mão das

129 Lista citada de Peter Burke APUD BERNARDI, C; CASCETTA, A. op. cit., p. 229. 130 Cfr. BERNARDI, C; CASCETTA, A. op. cit., p. 232. 131 Cfr. BERNARDI, C; CASCETTA, A. op. cit., p. 234; BORA, G. op.cit., p. 52.

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diretrizes da Igreja. Alguns dos companheiros de Lomazzo acabaram sofrendo processos

durante este período, como já foi dito na seção anterior: Giovanni Ambrogio Brambilla, a

figura mais eminente da academia, conhecido incisor e autor de uma série de gravuras

caricaturescas, e o pintor Aurelio Luini132. Giulio Bora aponta para o decreto estabelecido no

Concílio Provincial de 1569, que eliminava toda a excentricidade ou caracterização tipológica

das imagens, considerando que possivelmente o decreto tinha como alvo os acadêmicos do

Vale Blênio e sua produção de caricaturas. Também, artistas, bailarinos, bufões, comediantes

e frequentadores de tavernas haviam sido banidos do ducado. O historiador cita um soneto do

Rime no qual é possível notar uma denúncia feita por Lomazzo sobre a situação da censura no

período:

"Pobre de mim que jamais pude dar

Os meus grotescos a um que não soubesse

A arte de bem compor os assados e os cozidos

Porém, com estes tais desejo ficar

Para não ter que submetê-los a exame

E submetê-los ainda a mil processos

Com estranhos pontos, torções, dissimulações e fendas

Pelos quais a verdade está no dançar.

Se fossem feitas de um único modo tanto com as penas

Quanto com os pincéis, não seriam aquelas

Bizarras variedades, que para compreender-las

Outra coisa não vale que a amizade das estrelas"133

CAPÍTULO II

Idea del Tempio della pittura

Iniciaremos este segundo capítulo discorrendo sobre o longo processo de

elaboração da teoria artística de Giovanni Paolo Lomazzo, que atravessou todo o seu

desenvolvimento como pintor e pensador, desde a juventude até o fim de sua vida. Em vista

disso, apresento um balanço das hipóteses que a nossa bibliografia nos trouxe, acompanhadas

132 "Aurelius Luinus pictor aliquam imaginem publice vel privatim non effingat...; si vero secus fecerit pena arbitrio Ill....mi Archiepiscopi mulctabitur", cfr. BORA, G. op. cit., p. 51 e nota 66. 133 Cfr. LOMAZZO, G.P. Rime, p. 289 (trad. livre); BORA, op. cit., p. 51.

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por tabelas para facilitar a compreensão das linhas de raciocínio de cada autor. O meu intuito

é apresentar as conclusões dos principais estudiosos do corpus teórico de Lomazzo até

chegarmos ao estado atual da questão.

1. O processo de desenvolvimento do corpus teórico de Lomazzo.

Nesta seção, inicio partindo de algumas conclusões que serão demonstradas ao

longo do texto: a) o Idea de Tempio della pittura, pelo menos em seu núcleo fundamental, foi

pensado e elaborado no mesmo processo de concepção do Trattato dell'arte della Pittura,

processo que se deu ao longo dos anos de formação e consolidação de Lomazzo como pintor e

acadêmico (déc. 1560), e que se estendeu ao longo dos anos 1570, após sua cegueira precoce,

aos 33 anos. Na década de 1580, seus escritos são selecionados e organizados no formato que

temos até hoje; b) O Trattato dell'arte e o Idea del tempio não constituem a totalidade da obra

de teoria de Lomazzo, sendo precedidos pelo Libro dei Sogni, que jamais foi publicado; c) A

delimitação daquilo que viria a ser o Trattato e do que viria a ser o Idea del Tempio não se

deu de forma sistemática e clara desde o início do desenvolvimento do pensamento teórico de

Lomazzo, do qual o Trattato e o Idea formam seu núcleo maduro, mas ocorreu em uma etapa

mais tardia, talvez no momento de organização do Trattato. Seu objetivo, ser um guia prático

para o pintor incipiente, não condizia com as reflexões metafísicas presentes nos capítulos que

foram deixados para mais tarde formarem o Idea; c) Por serem fruto de um processo extenso e

contínuo que conjugou diversas correntes de pensamento do período, os tratados apresentam

uma teoria por vezes confusa e aparentemente contraditória; d) Ambos os tratados de

Lomazzo se constituem por núcleos teóricos comuns aos tratados da segunda metade do

Cinquecento, herdeiros da tradição humanista albertiana, influenciados pela crítica literária e

compartlilhando questões comuns ao período pós tridentino. Mas, também, possuem um traço

específico - fundamentam a pluralidade das maneiras e estilos artísticos no pensamento

mágico-hermético - .

1.1. Robert Klein (1959) e Gerald Ackerman (1964): tratado primordial, livro do

discernimento e o livro dos governantes.

Nesta seção abordaremos os pontos apresentados por Robert Klein pela primeira

vez no artigo 'Les sept gouverneus de l'art' selon Lomazzo (1959), e a tese de Gerald

Ackerman, The structure of Lomazzo's treatise on paiting (1564). Vale lembrar que nem

Klein e nem Ackerman tinham conhecimento da existência do manuscrito do Libro dei Sogni

(doravante L.S.), o primeiro arcabouço teórico de Lomazzo, editado e estudado por Roberto

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Paolo Ciardi em sua edição crítica das obras teóricas lomazzianas, publicada em 1973 (que

veremos a seguir).

Inicio o nosso percurso partindo daquilo que o próprio texto de Lomazzo nos diz.

No subtítulo do Idea, que adianta o conteúdo e o propósito do texto, lê-se "no qual ele

discorre sobre a origem e o fundamento das coisas contidas em seu tratado da arte da pintura".

O Idea é apresentado ao leitor como um aprofundamento das questões que fundamentaram o

seu primeiro tratado publicado seis anos antes. No último parágrafo do último capítulo do

Idea (cap. 38), o autor manifesta a intenção de que o jovem pintor primeiro fizesse a leitura do

Idea, caracterizado como um compêndio das questões tratadas no Trattato, para então,

segundo a "ordem de doutrina", seguir para a leitura do Trattato dell'arte della pittura.

"Daqui em diante o pintor poderá passar para a leitura do Tratado da Pintura, já publicado há alguns anos, ainda que, segundo a ordem de doutrina, devesse sair depois deste, pois este é uma espécie de compêndio e sumário daquele, como declarei inúmeras vezes no começo. E unindo um ao outro, será possível compreender mais claramente e de maneira mais completa, tudo o que discorri extensamente em torno da arte da pintura, tanto difícil quanto nobre e liberal"134.

Para além de uma questão editorial e comercial135, que sugeria no início do Idea

um aprofundamento do conteúdo do Trattato e no final da obra um caráter de compêndio,

como se fosse uma introdução ao Trattato, existe aí claramente a questão de

complementaridade entre ambas as obras: juntas abarcam todo o pensamento de Lomazzo

sobre a arte da pintura, como ele mesmo afirmou.

Na dedicatória a Filipe II da Espanha no Ideia, Lomazzo afirma

"Este é fruto de meus anos de juventude, concebido nas horas em que, cansado de pintar, tinha vontade de me distrair, não encontrando mais doce distração que contemplar e investigar os segredos da arte que praticava o dia inteiro. E, nos dias de hoje, novamente o retomei em mãos, aprimorei-o e o embelezei o melhor que pude" 136.

No Rime ad imitazione dei Grotteschi, publicado alguns anos antes, em 1587, nos

versos autobiográficos no apêndice da obra, Lomazzo menciona seu hábito de explicar em

poesia e em prosa as suas reflexões quando era um jovem pintor:

134 Trad. livre. LOMAZZO. Idea del Tempio della pittura. Milão, 1590 In CIARDI. Scritti sulle arti. cit., p.373. 135 Cfr. ACKERMAN, G. The structure of Lomazzo's Treatise on Painting. Pennsylvania: Princeton University, 1964, p. 10; KLEIN, R. Idea del Tempio della Pittura (Trad. francesa). Florença: Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento, 1974, vol. II, p. 504. 136 Na dedicatória, p. 186 e ss. (Apêndice).

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"Parti de seu ateliê, explicando em versos 137

E em prosa, todos os meus vários conceitos

Que estranhos me vinham, como costuma ocasionar

A alegre juventude; E assim escrevi

Em rima os meus Grotescos, onde expressei

Muitos caprichos que havia no coração concebido

Aos quais, depois cego, ainda muitos adicionei

E e então tratei da pintura

Em muitos livros, que agora foram publicados."

A primeira observação diz respeito à informação repetida pelo autor na

dedicatória a Felipe II e no Rime, sobre o hábito de escrever e refletir sobre a pintura desde

jovem, tanto em prosa quanto em poesia. A segunda observação refere-se à afirmação, na

dedicatória do Idea, de que a obra se tratava de uma revisão e aprimoramento de escritos

elaborados na juventude.

Tanto Klein (1959), o primeiro a olhar para a questão como um problema a ser

analisado com mais atenção, quanto Ackerman (1964), quem esmiuçou o problema de

maneira mais aprofundada, apontaram para o fato de que, quando lemos o Idea, percebemos

de imediato a confusão de seus conteúdos, algumas sentenças desconexas do restante do texto,

algumas incoerências, como, por exemplo, no próprio proêmio ao leitor, no Idea, quando o

autor anuncia o plano da obra,

"Em seguida, eu a dividi [a pintura - grifo meu] em seus gêneros, e estes segundo suas espécies e partes, e dividi o volume exatamente de acordo com a quantidade de gêneros, tratando de cada um separadamente e declarando a virtude e a potência de cada um deles, gradualmente, e de suas espécies e qualidades." 138

E mais adiante,

" No primeiro livro, versa-se sobre o discernimento, a preparação e a teoria Universal, já que nele se discorre sumariamente sobre todas as partes da pintura, que serão discutidas individualmente mais adiante, cada uma em seu respectivo livro". 139

O Idea não é dividido sistematicamente de acordo com a quantidade de partes da

pintura como afirma Lomazzo em seu proêmio. Seu conteúdo é distribuído da seguinte

maneira: capítulos introdutórios (proêmio ao leitor, importância da teoria e da prática,

escritores antigos e modernos, paragone entre pintura e escultura, nobreza da pintura,

137 O autor se refere ao mestre Giovan Battista della Cerva. 138 O proêmio se inicia na p. 194 (Apêndice). 139 P.198 (Apêndice).

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liberalidade da pintura, ciências necessárias ao pintor), e uma introdução ao discernimento e à

diversidade de temperamentos; Em seguida, a partir do capítulo nove, o autor expõe a

arquitetura do Templo da Pintura, a Teoria dos Sete Governantes, as sete partes da pintura e

seus gêneros, o discernimento e seus gêneros; A partir do capítulo vinte e seis, Lomazzo

começa a demonstrar os meios de unir as partes da pintura através do discernimento, teoriza

sobre a euritmia ou disegno, e no capítulo final dá informações e pareceres críticos sobre

pintores e obras contemporâneos. Por sua vez, o Trattato dell'arte della pittura é dividido em

sete livros, cada um dedicado a uma parte da pintura, e, portanto, a estrutura apresentada no

trecho supracitado adequa-se mais ao Trattato.

No proêmio do Idea, o autor nos diz que o primeiro livro da obra é dedicado ao

discernimento, "já que nele se discorre sumariamente sobre todas as partes da pintura, que

serão discutidas individualmente mais adiante, cada uma em seu respectivo livro". Novamente

este plano da obra anuncia um programa incoerente e incompatível com o Idea.

A percepção destes contrassensos impulsionaram a hipótese formulada por Klein

de que este proêmio faria parte de uma antiga introdução a uma primeira obra, que seria

composta por oito livros: o primeiro livro sobre o discernimento (que corresponderia aos

capítulos 3, 18 e 26-32 do Idea), e os sete livros seguintes corresponderiam ao que veio a ser

o Trattato dell'arte della pittura. O Idea teria sido, portanto, o resultado da reunião de

capítulos não utilizados neste primeiro tratado (o Livro do Discernimento retirado do

Trattato) somados ao aprofundamento em literaturas ocultas após a redação do Trattato della

pittura, sobretudo no De Occulta Philosophia de Cornelio Agrippa. Klein identifica a obra de

Agrippa na Teoria dos Governantes de Lomazzo.

Logo adiante, ainda no proêmio, Lomazzo expõe a arquitetura do Templo da

Pintura, que, na visão de Klein, havia sido concebida antes da publicação do Trattato,

localizando o discernimento no alicerce do Templo, as sete partes da pintura nas paredes e na

cúpula. Os sete artistas canônicos, os Governantes da pintura, teriam sido pensados

posteriormente ao Trattato, colocados no lugar das colunas de sustentação do Templo (Ver

tabela 1).

Gerald Ackerman, partindo destas incoerências textuais do Idea e das hipóteses

levantadas por Robert Klein, dobra-se sobre a tarefa de desvelar a estrutura destes dois

tratados, justapondo-os com o intuito de compreender suas etapas de elaboração, identificá-

las, classificá-las, entender seu processo de sobreposição e organizar estas etapas em uma

linha do tempo, conforme o desenvolvimento da teoria de Lomazzo. Ao realizar este

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exaustivo trabalho de análise dos tratados, Ackerman chega a conclusões mais categóricas que

R. Klein: a teoria cosmológica de Cornelio Agrippa influenciou a estruturação de todo o

corpus teórico de Lomazzo muito antes da década de 1580140. O significado neoplatônico que

o conceito de discernimento adquire em vários momentos ( e que Klein, até então, havia

compreendido a partir do uso corrente da época, ou seja, como a aplicação do juízo em casos

particulares), junto com alguns indícios de reestruturação do texto em um sentido

cosmológico, presentes tanto em capítulos do Trattato quanto no Idea, sobretudo naquilo que

Klein havia identificado como o Livro do Discernimento, demonstram a presença da literatura

mágica de Agrippa já no núcleo anunciado pelo proêmio do Idea.

De acordo com Ackerman, Lomazzo começou a escrever o seu primeiro tratado

na década de 1560, em seus anos de juventude141. Em seguida, na década de 1570, após

perder a visão, voltou-se para a teoria da composição tripartida do Universo, aprofundando-se

na obra de Agrippa. Assim, Lomazzo elabora novos capítulos sobre o discernimento e sua

aplicação, nos quais o discernimento ganha uma tônica neoplatônica (capaz de conduzir o

pintor à Ideia Divina), e insere trechos aos capítulos de seu tratado primordial, alterando as

relações entre um capítulo e outro, a fim de adaptar o novo sistema cosmológico (tripartite:

intelectual, racional e físico), sem alterar, no entanto, os conteúdos que já havia escrito. É a

partir de então que a coesão e a coerência da obra de Lomazzo começam a ficar

comprometidas. Então, Lomazzo elabora o proêmio que se encontra no Idea, estruturando

cosmologicamente o plano da obra: livro do discernimento - esfera intelectual; os cinco livros

de teoria - esfera racional; e o livro da prática (composição e forma) - esfera sensual.

Não é somente a cosmologia neoplatônica de Agrippa que impactou a teoria de

Lomazzo neste período. Ackerman identifica nesta nova estrutura cosmológica, a teoria

humoral, com base na obra de Ramon Llull, quem também influenciou C. Agrippa 142. De

140 Com o conhecimento do L.S, ver-se-á que o pensamento mágico-astrógico de Agrippa estava presente no pensamento de Lomazzo desde a juventude. Isto será discutido mais adiante, quando abordarmos a crítica de R.P. Ciardi (seção 1.2 deste capítulo). 141 Uma hipótese bastante acertada, como será demonstrado a partir da descoberta do manuscrito do L.S. (seção 1.2 deste capítulo). 142 Ramon Llull foi um monge catalão, ligado aos franciscanos, que viveu no final do século XIII e início do século XVI, e que investigou e concebeu uma arte combinatória, fundamentada em uma Cosmologia Neoplatônica, que tinha como objetivo provar a trindade de Deus. Ainda, Llull estabeleceu um sistema no qual os influxos planetários determinavam as misturas dos elementos que compõem a organização do Cosmos. Desta maneira, Llull concordou os sete planetas astrológicos com os quatro humores (melancólico, fleumático, sanguínio e colérico), e atribuiu a cada planeta (mercúrio, vênus, marte, júpiter, saturno, sol, lua) e a cada humor/elemento (ar, terra, fogo, água) duas das quatro qualidade básicas (quente, frio, seco, úmido), uma sendo mais predominante que a outra, o que permitia então calcular as influências dos planetas em cada composição. Agrippa adapta a arte de Llull no segundo volume do Opera Omnia. Cfr. ACKERMAN. op. cit., pp. 70-2.

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acordo com a medicina astrológica-humoral de Llull, os sete planetas astrológicos associam-

se aos quatro humores e elementos, permitindo, assim, a identificação das influências astrais

nos temperamentos. Este pensamento pode ser observado no Livro II (Movimento) do

Trattato. Para além disso, a obra de Giulio Camillo, Idea del Theatro, publicada em Veneza

em 1550, também serviu de base para Lomazzo, que admirava este autor, citado como fonte

de inspiração no Idea.

A leitura destes autores ocasionou grandes modificações no tratado primordial de

Lomazzo, que sobrepôs um sistema teórico ao outro, na medida em que expandia sua

bibliografia. Em um terceiro momento, Lomazzo elaborou um novo sistema astrológico, do

qual se originou o chamado Livro dos Governantes, que compreende os capítulos 9-17 do

Idea, e novas adições foram feitas aos capítulos que já havia escrito. A sobreposição deste

novo sistema astrológico sobre o sistema humoral teve como resultado uma teoria

extremamente obscura.

As etapas formuladas por Ackerman são (ver tabela 2):

a) Ao longo dos anos 1560, quando exercia sua atividade como pintor, um

primeiro esboço retórico, que em sua fase inicial é composto por teorias humanistas comuns

aos tratados do período somadas a técnicas e métodos de ateliê, um formato herdeiro da

tradição tratadística instituída por Alberti (De Pictura). Ainda, há uma influência anedótica

vasariana. A primeira parte humanista do esboço retórico pode ser identificada tanto em

capítulos do Trattado quanto do Idea, que em geral apresentam conteúdos humanistas como o

elogio da pintura e de suas partes, o paragone entre pintura e escultura, a definição e divisão

da pintura em partes, a discussão teórica seguida pela discussão prática, a liberalidade da

pintura, etc. Seu caráter é retórico, com conselhos sobre as partes da pintura circunscritos no

âmbito da técnica, além de anedotas e citações dos poetas.

Em um segundo momento, Ackerman identifica uma outra etapa do esboço

retórico, que ele chama de analítico, no qual se pode observar um aprofundamento da teoria e

subdivisões das partes da pintura, acompanhados por um aumento da presença de literaturas,

esboço que pode ser identificado na estrutura dos capítulos 19-25 do Idea, que revelam a

ambição do autor em produzir uma obra teoricamente mais complexa.

b) O segundo esboço, chamado de cosmológico, foi escrito e sobreposto ao

primeiro esboço retórico após a perda da visão, no início da década de 1570, infuenciado pelo

aprofundamento nas leituras de Cornelio Agrippa, sobretudo no De Occulta Philosophia. A

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necessidade de se pensar em uma esfera intelectual do processo de produção artística, já que

os livros até então escritos por Lomazzo apenas davam conta das esferas racional ( as cinco

partes teóricas) e sensual (as duas partes práticas) da cosmologia de matriz neoplatônica,

resulta na elaboração do Livro do Discernimento e na atribuição de uma dimensão filosófica a

este conceito (alcançar a Ideia Divina). Uma nova estrutura cosmológica (do universo

dividido em três) reconfigura a ordem interna dos capítulos e a relação externa entre eles,

introduzindo uma nova hierarquia.

No capítulo 32 do Idea é possível identificar a estrutura cosmológica da teoria de

Lomazzo de forma bastante clara. Neste capítulo, Lomazzo afirma que se pode conhecer a

Forma das coisas de dois modos, o primeiro se dá através da seleção das melhores formas a

partir da observação empírica da realidade (método sensorial aristotélico); O segundo se dá

através da cadeia dos seres, de maneira platônica, no qual a Forma é transmitida por Deus,

que a transfere aos anjos, destes para os planetas (os sete governantes do mundo), que a

transmitem para a mundo terrestre:

"(...) de maneira que Deus, contendo em si principalmente toda a força de todos os dons, começa primeiramente a comunicá-los aos anjos que circundam o entorno de seu trono, de modo que cada um é enriquecido por um dom mais do que por outro, segundo a propriedade da natureza de cada um; os quais que movem, então, os governantes do mundo, ou seja, os planetas, que pela ordem, através de sua virtude, oferecem aqui para baixo os dons recebidos, (...)". 143

Divisa-se, neste capítulo, um esquema de fisionomia astrológica, influência de

Agrippa, mas ainda não plenamente desenvolvido, combinado com a teoria humoral de

origem llullista, que resulta em um sistema dividido e classificado de acordo com os quatro

elementos/humores:

"Porque nos planetas são demonstradas todas as substâncias, a base e os fundamentos de como exprimir na pintura todos os movimentos, afetos e paixões que podem existir, de acordo com as diferentes naturezas, quando vemos as figuras nuas e proporcionadas de acordo com a força dos elementos, da qual discorro no Livro da Proporção. Razão pela qual vê-se todas as várias cores, grandezas, brevidades e sutilezas dos membros, fazendo-os com as ações dos braços e do resto conveniente a sua natureza. Portanto, para representar o fogo, que é quente e seco, as pernas devem ter a forma forte e audaz, à maneira do fogo, com o corpo e a cabeça erguida, os braços e as mãos em todos os seus efeitos altos e galhardos. Para o ar, no qual a umidade reina mas em concorrência com o calor, devem haver movimentos plenos de majestade, não totalmente elevados, mas com o rosto reto demonstrando beleza. Para a terra, sendo ela totalmente seca e fria, os membros devem pender completamente para baixo, mostrando gravidade e

143 Trad. livre. LOMAZZO. Idea del Tempio della pittura. Milão, 1590 In CIARDI. Scritti sulle arti. cit., p.335

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imaginação. E com esta regra, finalmente, devem-se em todos os outros demonstrar os afetos, transportando ainda um membro em seguida do outro, para que com tal multiplicação de membros se venha a compor quantas diversidades de pessoas se possa compor". 144

c) Esboço astrológico, também elaborado antes da publicação do Trattato,

provavelmente na segunda metade da década de 1570, que compreende o que se

convencionou chamar de Livro dos Governantes, capítulos 9-17 do Idea, e que traz um

sistema totalmente novo e divergente do antigo sistema dos humores.

Tabela 1: Robert Klein.

Tratado primordial

Formado por oito livros.

(antes de 1584)

Tratados publicados

Trattato dell'arte della pittura

(1584)

Idea del tempio della pittura

(1590)

O primeiro capítulo: Livro do discernimento (Caps. 3, 18 e 26- 32 do Idea del tempio)

O Livro do discernimento e a introdução são deixados de fora.

O Livro do discernimento é retomado.

Sete livros do Trattato (Livros da proporção, do movimento, da cor, da luz, da perspectiva, da forma e da composição).

Nova introdução mais os sete livros são publicados.

Elaboração do Livro dos Governantes (caps. 9-17. Teoria mágico- astrológica pensada a partir de Agrippa)

Antiga introdução (caps. introdutórios) + Livro do discernimento + capítulos novos (Livro dos Governantes e capítulos finais) são publicados como o Idea del Tempio della pittura.

Tabela 2: Gerald Ackerman.

Déc. 1560 Déc. 1570 Déc. 1580 Déc. 1590

Esboço Retórico Esboço Cosmológico Esboço Astrológico Organização Final

Década de 1560 Post quem 1572 (cegueira)

Ante quem 1584 1584-1590

Esboço Humanista

Esboço Analítico

Teorias humanistas comuns aos tratados do

período somadas a técnicas e

Aprofundamento da teoria e

subdivisões das partes da pintura,

acompanhados por um aumento

Aprofundamento do autor na teoria do

Universo tripartite e da cadeia do ser

neoplatônica (De Occulta Philosophia de

Cornelio Agrippa).

Sistema teórico totalmente novo e

divergente do antigo sistema dos humores.

Trattato dell'arte della pittura (Livros de teoria e Livro da

prática. Novo prefácio)

144 Trad. livre. LOMAZZO. Idea del Tempio della pittura. Milão, 1590 In CIARDI. Scritti sulle arti. cit., p.335- 6.

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métodos de ateliê

da presença de literaturas.

Reestruturação dos capítulos de acordo com

essa lógica.

Livro do

Pode ser identificado no Trattato e no Idea.

Identificado principalmente na estrutura dos capítulos 19-25

do Idea

discernimento/esfera intelectual

+

Livros de teoria (proporção, movimento,

cor, luz e perspectiva)/esfera

racional

Trechos são adicionados a alguns capítulos do

Trattato, sobretudo ao Livro do

Movimento, o mais influenciado pelo

sistema astrológico

+

Idea del Tempio della

Pittura (Livro do discernimento, Livro

dos Governantes, antiga introdução com adições, novo capítulo

com informações sobre artistas, obras e

+

Livros da prática (forma e composição)/esfera

Livro dos Governantes:

Capítulos 9-17 do Idea.

personalidades contemporâneas)

sensual

A etapa retórica do Livro do discernimento: capítulos 3 e 18 do Idea.

A etapa analítica (divisões, subdivisões e

aplicação do discernimento em cada uma das sete partes da

pintura): capítulos 26-32 do Idea.

Nova formulação neoplatônica do conceito

de discernimento.

1.2 O Libro dei Sogni.

Como dissemos, nem R. Klein nem G. Ackerman sabiam da existência do Libro

dei Sogni, e, portanto, não puderam contar com esta obra ao investigarem as estruturas dos

tratados de Lomazzo. Veremos a seguir como a descoberta do manuscrito de Lomazzo alterou

as análises críticas dos tratados.

A) Terminus post e ante quem.

No capítulo dez do Rinascimento e Barocco (1960), “Um retrato desconhecido de

Leonardo”, Eugenio Battisti apresenta o então recém descoberto manuscrito de Giovanni

Paolo Lomazzo, Gli sogni e ragionamenti145, no qual é possível entrever, através da relação

145 Sobre a descoberta do L.S., cfr. CIARDI. op. cit., vol. I, pp. LXXXI-LXXXII.

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entre Lomazzo (discípulo) e Leonardo (mestre), novas tensões frente ao clássico, presentes no

ambiente cortesão milanês. Diante da entusiasmada menção à obra de Lodovico Dolce146,

com ares de novidade, E. Battisti data o manuscrito de Lomazzo por volta de 1560: "como em

certo diálogo há pouco tempo descreveu Ludovico Dolce, no qual tão claramente tratou da

pintura"147.

O manuscrito já havia sido mencionado uma vez na história da crítica de

Lomazzo, mais precisamente pelo pintor e acadêmico Giuseppe Bossi, no início do século

XIX. Na obra Del Cenacolo di Leonardo da Vinci (1810), Bossi se refere ao manuscrito,

utilizando-o para situar a atividade literária de Lomazzo nos anos de juventude, datando a

obra por volta de 1563 (o autor alega que Lomazzo alude a Michelangelo como se o mestre

ainda fosse vivo, indício que estabelece o ante quem da obra em fevereiro de 1564).

Roberto Paolo Ciardi148 afirma ser possível estabelecer a data do manuscrito com

maior precisão: para além da referência a Michelangelo vivo, Lomazzo explicita a idade do

mestre, "e vi si compreende le ettà sua che omai passa nonta anni" 149. Michelangelo morre

aos 89 anos de idade. A declaração da idade avançada do mestre florentino dá razões para se

pensar que Lomazzo estivesse escrevendo em uma data mais próxima do fim da vida de

Michelangelo. Ciardi também aponta para referência ao monumento fúnebre ainda inacabado

de Gian Giacomo de' Medici, il Medeghino, feito pelo escultor imperial Leone Leoni, que foi

concluída em janeiro de 1563 (data do pagamento da quantia total ao escultor),

"(...) e agora o papa Pio faz a bela sepultura de seu irmão, Giovan Giacomo de Medici, marquês de Melegnano, na Catedral, a maior igreja de Milão, em um canto a partir do qual ver-se-ão certas estátuas que parecem colossos, que demonstrarão quanto um homem mortal pode alcançar (...)”150.

Portanto, para Ciardi, Lomazzo deve ter escrito a obra em torno a 1563.

146 DOLCE, L. L'Aretino o Dialogo della pittura. 1557. Portanto, o terminus post da obra de Lomazzo seria a data de publicação do diálogo de Dolce. Nota-se, em diversos momentos no Libro dei Sogni, um grande entusiasmo em relação a Tiziano Vecellio, com uma série de informações sobre o pintor com um tom de frescor (como, por exemplo, na p. 108 - sempre nos Scritti sulle arti de Ciardi, vol. I). Fica clara, na minha opinião, a influência da leitura do texto de Dolce, e, até mesmo arrisco dizer, das publicações de Pietro Aretino. É notável a falta de excitação de Lomazzo em relação a Michelangelo, e isto talvez se deva, para além da influência da crítica veneziana, ao fato de que o pintor ainda não tivesse estado em Roma, pelo menos logo que iniciara a escrita do manuscrito. Mais adiante, entraremos na questão do impacto dos afrescos de Michelangelo na Capella Sistina na teoria e arte de Lomazzo. 147 Cfr. LOMAZZO. Libro dei Sogni In CIARDI. op. cit., vol I, p. 86. 148 Em sua edição crítica da obra teórica de Lomazzo, Scritti sulle arti, publicada em Florença em 1973 (apêndice bibliográfico, pp. LXXXI-II). 149 Cfr. Ibidem, vol. I, pp. 164-5. 150 Cfr. Ibidem, p. 165.

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Na minha opinião, é possível apontar para outros indícios: Lomazzo discorre

sobre o encargo conferido à Bernardino Campi para a execução das pinturas das persianas do

órgão da catedral de Milão151, criticando a escolha e alegando que o pintor florentino

Francesco Salviati teria sido uma melhor opção. Em 28 de agosto de 1559, decide-se dar a

incumbência ao pintor Bernardino Campi. Apesar da disputa que ocorrera nos meses

sucessivos entre Campi e o pintor Giuseppe Meda, novamente afirma-se que a comissão seria

dada a B. Campi em 11 de julho de 1560. Contudo, mais uma vez ocorre uma divergência

sobre tal resolução, e, em 1564, promove-se um concurso para resolver o problema152.

Portanto, Lomazzo redigia o manuscrito durante o desenrolar desta querela (1560-64), à qual

lança opiniões enérgicas.

Ademais, o fato de Lomazzo não demonstrar entusiasmos em relação à

Michelangelo, ao qual faz referências sem vivacidade, permite-nos pensar que o pintor ainda

não vira as obras do mestre em Roma, que iriam provocar grande impacto tanto em sua

produção pictórica quanto em sua produção escrita153. Sendo assim, provavelmente o

manuscrito foi escrito logo no início de sua viagem pelos grandes centros artísticos europeus

(apenas o final do sétimo ragionamento parece ter sido escrito depois, como veremos a

seguir), entre 1562 e 1563, já que o pintor deixa Milão para ir a Arona em agosto de 1561.

B) Estudo crítico da obra e a nova cronologia do corpus lomazziano à luz do Libro dei

Sogni.

Roberto Paolo Ciardi foi o primeiro a realizar um estudo crítico do L.S,

justapondo-o às outras obras teóricas de Lomazzo, a fim de estabelecer um desenvolvimento

(não necessariamente linear) de seus conteúdos. A ciência da existência do L.S. acarretou em

algumas mudanças a respeito da cronologia dos escritos teóricos de Lomazzo, que somente

pode ser compreendida a partir do L.S, já que ele é o único texto que pode ser datado com

maior precisão (como vimos na seção anterior, entre 1562-1563).

O manuscrito não tem como único e principal alvo a arte da pintura. Ele é bem

heterogêneo nos temas abordados e ao tema da pintura reserva um excursus em forma de

diálogo entre dois icônicos personagens, o escultor antigo Fídias e o pintor moderno (que

inicia a terceira idade vasariana e o herói das escolas lombardas) Leonardo da Vinci. O

151 Cito a passagem em questão no cap. 1 (Seção 2) desta dissertação, p. 60 (n. 122). 152 Cfr. Libro de sogni In Scritti sulle arti, cit., vol. I, p. 91, nota 52. 153 Sobre sua produção pictórica, cfr. cap. 1 (seção 1), pp. 40 e ss. Sobre o impacto das obras de Michelangelo em sua produção escrita, cfr. CHAI. Gian Paolo Lomazzo and the art of expression. cit., cap. II, pp. 88 e ss.

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prefácio ao leitor anuncia o plano da obra, que seria constituída por dezesseis diálogos, cada

qual contendo dois personagens e tratando de um determinado assunto, variando entre

astrologia, magia, pintura, matemática, farmacologia, música, etc. Porém, a obra permanece

incompleta, na forma de um esboço contendo apenas sete ragionamenti.

As fontes principais de Lomazzo neste seu primeiro esboço teórico são,

sobretudo, Plínio, Alberti, Vasari e Aldovrandi. Pietro Aretino paira significativamente sobre

o texto, influenciando a própria adoção do termo "ragionamenti" e o tom erótico que a obra

assume em alguns diálogos. Outros autores com os quais Lomazzo faz interlocução são Anton

Francesco Doni (Dialoghi della Musica; I Marmi)154, Lodovico Dolce e Paolo Pino (os dois

últimos pela característica literária de suas obras de teoria artística, também em formato

dialógico, fortemente marcadas pela influência da crítica literária e das poéticas horaciana e

aristotélica)155. O caráter anedótico aponta para o universo da tratadística humanista de

Ghiberti e Vasari, ambos artistas-teóricos, e a variedade e o interesse especulativo para

Leonardo da Vinci, grande referência do jovem pintor.

É possível identificar a estreita conexão entre o Rime e o L.S., já que este último

deriva daquele, como afirma Lomazzo no prefácio da obra156. Ambos são textos que possuem

uma mesma linha teórico-filosófica. No Rime, a Teoria dos Governantes (a teoria artística

fundamentada na relação entre arte e ordenação cósmica, através dos artistas canônicos

relacionados com os sete planetas astrológicos), baseada na filosofia hermética, aparece em

diversos momentos, núcleo conceitual que é esboçado no L.S.157. Sendo assim, nota-se que

Lomazzo já havia tido contato com a obra de Agrippa desde o momento da elaboração dos

versos do Rime e do L.S., ou seja, desde aproximadamente 1560, diferentemente do que havia

sido pensado por Klein e Ackerman.

Acompanhando a passagem do L.S. para seus escritos maduros, Ciardi divisa

algumas permanências e modificações, que se dão no âmbito da forma e do conteúdo. As

componentes mágico-cabalísticas permanecem, agora mais profundamente infiltradas na

arquitetura teórica das obras. Também, o pensamento astrológico, as notícias anedóticas e o

princípio, trazido da crítica veneziana, do ut pictura poesis horaciano; Na transição para o

154 CIARDI. Op. cit., vol. I, p. LII, nota 150. 155 Sobre a questão do ut pictura poesis horaciano nos tratados da segunda metade do Cinquecento, cfr. LEE, R. W. Ut pictura poesis: the humanistic theory of painting. NY: Norton, 1967. 156 CIARDI. Op. cit., vol. I, pp. LIV e 5 (prefácio do Libro de Sogni). 157 Cfr. Rime, pp. 64 e 91.

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Trattato percebe-se logo de imediato a transformação do texto de Lomazzo, que deixa de se

ordenar na forma de diálogo para adquirir uma organização mais técnica (divisão entre teoria

e prática, partes da pintura, os topoi da tratadística humanista como o paragone entre pintura e

escultura, artistas antigos e modernos, etc). Isto denuncia um esforço de distanciamento dos

teóricos literatos (Pino, Dolce e Gilio) e uma aproximação dos tratados especializados de

artistas como Cennini, Ghiberti, Alberti e Vasari.

Ainda, do Trattato exclui-se o núcleo dos fundamentos neoplatônicos, exotéricos,

mágicos e astrológicos presentes no L.S. e no Rime, dando lugar a um tratado voltado para a

casuística das possibilidades de aplicação prática dos preceitos. Também, descarta-se a

"moldura alegórico-simbólica", restando apenas indícios dela, como a divisão sétupla da obra

e a teoria dos governantes dispersa nos exemplos práticos de artistas.

O que teria ocasionado este enxugamento teórico? Ciardi afirma que é improvável

que o L.S. pudesse ser publicado na Milão do período, onde a inquisição romana e os

representantes da Contrarreforma adquiriam cada vez mais controle sobre as manifestações

artístico-culturais e sobre as publicações e vendas de livros (como vimos no capítulo 1, seção

2)158. Lomazzo já era um alvo de suspeita bastante evidente sem que o L.S. fosse exposto ao

público.

Por sua vez, a publicação do Idea del tempio seis anos mais tarde teria surgido da

vontade de expor seu pensamento teórico, formulado ao longo de tantos anos. Talvez, o

contato com a obra de Giulio Camillo, citada pelo autor, tenha colaborado para este ímpeto,

que uma vez lida por Lomazzo, auxiliou-o a refrescar e reformular as ideias e conceitos de

inclinação hermética. Segundo Ciardi, talvez a complexidade das ideias contidas no Trattato,

carentes de embasamento teórico e apresentando uma cosmologia mal fundamentada, possa

ter gerado um debate entre os leitores, incentivando o autor a preparar o material teorético

para ser publicado. (Ver tabela 3)

Tabela 3: Roberto Paolo Ciardi.

Déc. 1560 Déc. 1570 1584-1590

Versos grotescos

(mais tardes publicados no

Libro de sogni

(até 1564)

Elaboração do Trattato della

pittura.

Publicação do Trattato della

Pittura

Idea del

tempio della

pittura

158 Pp.53 e ss.

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Rime)

Temas variados: Tema:

astrologia, magia, pintura,

matemática, farmacologia, música,

Tema: a arte da pintura (tratado para instrução prática).

fundamentos teóricos da

arte da etc. pintura.

Rimas soltas

Diálogos.

Sete livros (cinco livros de teoria e dois livros da prática). Anedotas apenas para exemplificação

da aplicação prática dos preceitos.

Retomada e reformulação do material do L.S. e do

material filosófico e conceitual

escrito depois dele.

Influência

Fontes: Plínio, Vasari, Alberti, Aldrovandi, Pietro Aretino,

Lodovico Dolce, Paolo Pino, Anton Francesco Doni, Leonardo, Cornelio

Agrippa.

Maior aproximação dos artistas teóricos da

tradição humanista: Cennini, Ghiberti, Vasari, Alberti.

maior da leitura do Idea del

Theatro de Giulio

Camillo Delmino.

Teoria hermética; Inserção das artes figurativas dentro de uma organização

Erotismo, teorias mágica, astrológica e cabalística. Chave simbólica para a

interpretação do real. Teoria dos governantes.

A cosmologia se faz presente, também a teoria hermética, mas de forma mais sutil, inserida na

estrutura da obra.

cósmica; relação entre

caso particular e universal,

mediados pelo conceito de discernimento, que suplanta a preceptística e os modelos histórico- artísticos.

C) O Libro dei Sogni e a teoria dos moti. Crítica veneziana e o afresco do Juízo Final.

Dando continuidade à apreciação das novas possibilidades interpretativas

ocasionadas pelo L.S., apresentarei as conclusões expostas por Jean Julia Chai, Gian Paolo

Lomazzo and the art of expression (1990), que, em síntese, identifica os núcleos teóricos

fundamentais de todo o corpus literário de Lomazzo já no L.S. - o conceito de discernimento,

a questão do decoro, a teoria dos moti -, que denunciam uma íntima ligação do pensamento

lomazziano com os teóricos venezianos (Paolo Pino, Lodovico Dolce e Pietro Aretino).

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Para além dos elementos teóricos que estabelecem unidade, a pesquisadora

investiga um fator de contraste entre o L.S. e o conjunto Trattato-Idea, que possibilita

acompanhar um progressivo desenvolvimento do pensamento de Lomazzo: o impacto da

experiência do contato direto com afresco do Juízo Final, lançando as bases para teoria dos

moti expressa no livro II do Trattato. Isto só pôde ocorrer após a viagem empreendida por

Lomazzo pelos centros artísticos do período, ou seja, não antes de 1564. Antes disso,

Lomazzo apenas tivera contato com o capolavoro do gênio da terribilità através de gravuras e

cópias que circulavam por toda a Itália159. Estas, por se tratarem de cópias em dimensões

reduzidas, alteravam a percepção do afresco.

Considerando a força da dinâmica anatômica da obra de Michelangelo, não é

possível ter a mais remota sensação da obra sem o contato direto com ela. Ainda, as

reproduções, como afirma Chai, davam ênfase às expressões faciais em detrimento dos outros

elementos, o que também poderia alterar as considerações sobre a obra. Por isso, a

experiência fenomenológica do afresco do Juízo Final foi um marco decisivo tanto para a

teoria das artes figurativas de Lomazzo quanto para seu próprio estilo pictórico160.

Como já foi dito, o L.S. é um esboço de uma obra, constituído por sete diálogos.

No plano da obra, anunciam-se dezesseis diálogos, nos quais o autor discute temas variados

através da narrativa de um sonho.

"(...) assim pensando, fui tomado por um sono, que me forçou a adormecer, no qual me veio na virtude fantástica, uma fantasia acerca de tal pensamento, que muito me agrada; a qual, depois que despertei, dispus-me a escrever da seguinte maneira: estavam na Grécia, em uma ilha entre as tantas do arquipélago, em um maravilhoso palácio, que por encanto de espírito, pouco antes, um certo necromante havia feito, diante de uma clara fonte, que de branquíssimo mármore entalhado e polido era circundada, dezesseis espíritos entre homens e mulheres, que partiram desta vida, todos nus, seus nomes, se bem me recordo, são estes: Ludovico Ariosto, poeta; Paolo Giovio, historiador; Pitágoras de Samos, filósofo; Euclides, geômetra; Giovan Michel Gerbo, músico, quando vivo era um caríssimo amigo meu; Pietro Sola, mestre de armas; Leonardo da Vinci, pintor florentino; Fídias, pintor e também escultor; Cecco d'Ascoli, necromante; Alberto Magno, teólogo; Angiola piacentina, prostituta; Francesca sanese, cafetina; Tramon Uxio, mendigo; o rei Crasso; Pietro d'Abano, mago; e Filiberto, amante apaixonado". 161

159 Ciardi lista, como exemplo, os gravuristas Marcantonio Raimondi, Caraglio e Fantuzzi. Cfr. CIARDI. op. cit., vol. I, p. LXXIX.. 160 Cfr. n. 149. 161 Trad. livre. CIARDI. op. cit., vol. 1, p.3-4.

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Em cada diálogo, narra-se a fantasia de um dos personagens. No quinto

ragionamento, diálogo que se dá entre Leonardo e Fídias, discute-se sobre a pintura, com

intuito de decidir se os antigos são superiores aos modernos. Para tanto, ambos percorrem a

história da arte, desde a Antiguidade até o período moderno, movimento que revela a leitura

de Plínio e da primeira edição das Vidas de Vasari (Florença, 1550). Também, o De

Architettura de Vitrúvio162. Ainda, as informações sobre Tiziano junto a críticas a

Michelangelo163, replicadas por Lomazzo através da voz de Leonardo da Vinci, denunciam a

leitura do diálogo de Lodovico Dolce, citado pelo autor.

Fídias divide a pintura em três partes mutuamente interdependentes:

moto/invenzione, disegno e colorito. Esta divisão da pintura é a mesma presente na teoria

artística veneziana, Paolo Pino e Lodovico Dolce, autores ligados à crítica literária, sendo

uma de suas fontes o La Poetica de Bernardo Daniello (Veneza, 1536), obra na qual se expõe

a divisão da oratória latina (inventio, dispositio, elocutio, memoria e actio)164. Fídias admite a

superioridade dos modernos, dentre os quais o expoente máximo é Michelangelo Buonarroti.

Neste ponto, Lomazzo afirma a tese vasariana e distancia-se da crítica veneziana, tão negativa

diante do estilo do mestre toscano.

A defesa de Michelangelo continua no sexto ragionamento, do qual participam os

mesmos interlocutores e se discute sobre a escultura. Em relação à crítica do Juízo Final,

Lomazzo retoma os argumentos que lhe são contrários (principalmente de Gilio da

Fabriano)165, que dizem respeito à questão do decoro do afresco, e em seguida os rebate.

Contudo, a defesa que Lomazzo faz é bastante genérica, apoiado sobretudo na tese de Vasari,

atitude crítica que apresentará uma mudança drástica no Trattato.

O sétimo ragionamento ocorre entre Pietro d'Abano e Cecco d'Ascoli, que

retomam as ideias herméticas presentes no corpus teórico de Henricus Cornelios Agrippa de

Nettesheim166, célebre professor de ciências ocultas da Universidade de Pavia (1512). Ao

162 Provavelmente a edição de 1535 organizada por Francesco Luzio Durantino, para além da ed. de Cesariano (1521). Há também a tradução comentada de Daniele Barbaro, citada no capítulo VIII do Idea. Cfr. CIARDI. op. cit., vol. I, p. 159. 163 Fídias afirma que das três partes da pintura, Michelangelo apenas possui o disegno, conforme foi afirmado por Dolce em seu diálogo. Leonardo, então, replica dizendo que Dolce escreveu seu diálogo com o auxílio de Tiziano, e, portanto, seu parecer é parcial, anuviado pela afeição que tinha pelo mestre veneziano. L.S. In CIARDI. op. cit., vol. I, p. 87. 164 LEE,R. Ut pictura poesis: The Humanistic Theory of Painting. NY: Norton, 1967. 165 DOLCE. cit., pp. 188-91; GILIO. cit. p. 81. 166 Colônia, 1482 - Grenoble, 1535. Cfr. CIARDI. op. cit., vol. I, p. X (nota 17).

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final da folha 217 do manuscrito, existe um hiato no texto. O argumento mágico é

interrompido e o texto é retomado na folha 218 sem nenhuma conexão com o assunto

anterior. Roberto Paolo Ciardi nota uma alteração na grafia e na tinta, o que indica um lapso

temporal entre uma folha e outra. Novamente, Lomazzo resolve discorrer sobre o tema da

pintura, desta vez sendo ele próprio quem fala.

Sobre esta mudança de direção do texto, Ciardi afirma que é possível que

Lomazzo tenha retornado ao tema da pintura por uma questão de interesse, sendo ele próprio

pintor, e para trazer de volta assuntos já discutidos antes, inclusive recuperando os

personagens do quinto ragionamento e a discussão das partes da pintura, a fim de finalizar a

obra e concluir seu raciocínio, abandonando a ideia inicial de produzir dezesseis diálogos167.

Após retomar a divisão da pintura mencionada no diálogo entre Fídias e Leonardo, o que mais

uma vez afirma a dívida com a crítica veneziana, Lomazzo declara que irá discorrer sobre

cada uma das três partes da pintura, contudo apenas comenta a primeira delas, o

movimento/invenção, novamente interrompendo seu texto, e, desta vez, definitivamente.

Ciardi chama atenção para o fato de que o Trattato dell'arte será iniciado exatamente nesta

mesma questão, dando a entender que Lomazzo, ao ver a complexidade do assunto de que

pretendia tratar, decidiu iniciar uma nova obra totalmente voltada para a pintura e suas partes.

Nestas poucas páginas escritas por Lomazzo, a síntese de sua teoria é exposta: o

discernimento, o mais importante princípio, que depende do juízo do pintor (e aqui juízo

aparece equacionado com engenho, assim como fazem os teóricos venezianos), é a parte da

pintura através da qual o pintor afirma sua aptidão natural e é por meio dele que o pintor

representa as emoções na pintura; O fato da expressão figurativa das emoções (moto) estar

associada à invenção, noção que vem de Pino e de Dolce, já denuncia o primeiro esboço da

teoria dos moti lomazziana. É através do movimento que se realiza a expressão do gênio do

artista, a capacidade inventiva de seu intelecto. Aqui está inserida a noção do ut pictura poesis

horaciano, já que o pintor inspirado, assim como o poeta, é aquele capaz de representar as

emoções humanas, comparação que Lomazzo deixa bastante explícita neste trecho; O decoro,

tal qual aparece no diálogo de Ludovico Dolce (convenevolezza e ordine), está presente. O

pintor deve estar atento às fontes (à história e à poesia, no caso de Ludovico Dolce, e à

teologia, conhecimento destacado pelos críticos da Contrarreforma, como Gabriele Paleotti e

Gilio da Fabriano), para não incorrer em erros que possam dificultar a compreensão da

narrativa e a correta expressão da emoção dos personagens.

167 Ibidem, p. 231 (nota 236).

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O discernimento natural, parte do movimento, é a faculdade capaz de distinguir a

variedade entre as pessoas, caracterizando de maneira apropriada as vestimentas e atitudes

dentro da obra (e, neste trecho, Lomazzo diferencia o espanhol o italiano, o alemão, o francês,

e etc, como viria a fazer novamente no Idea, no capítulo VIII). Verifica-se aqui a leitura do

De incertitudine et vanitate omnium scientiarum et artium liberalium (1530; publicada em

italiano, em Veneza, em 1547) de Cornelio Agrippa. Ainda, a insistência na diferenciação

adequada das emoções humanas aparece no De Occulta Philosophia (Colônia, 1533).

Quase no final do texto, Lomazzo afirma que o movimento se atinge por duas

vias: a primeira delas é a imitação e a segunda, a mais importante de todas, é o discernimento,

que é saber representar as coisas invisíveis, ou seja, aquelas que não são vistas, como a forma

de Deus e dos anjos, da maneira que eles deveriam ser, algo que somente um verdadeiro

pintor é capaz de realizar apropriadamente. Este tema será retomado no capítulo 2, livro VII

do Trattato, e no Idea, no capítulo 2.

Outra característica da teoria madura de Lomazzo que já aparece no L.S, e que

será o fio condutor de seu pensamento teórico, é o reconhecimento da diversidade de estilos,

cada um perfeito ao seu modo, de acordo com a individualidade de cada pintor, noção que

também tem origem em Pino (que atribui o gosto à diferença de influências astrais) e em

Dolce168. Esta ideia está na base da questão do movimento-invenção, já que a participação

pessoal do artista na obra de arte se dá através da expressão figurativa do movimento e da

emoção. Nota-se como esta noção se desenvolve, passando para o Trattato (Livro II e Livro

VI), até atingir sua concepção mais madura no Idea, no qual a expressão pessoal do artista se

realiza em todas as partes da pintura, na totalidade do estilo.

A partir do L.S., foi possível observar a presença dos teóricos venezianos,

principalmente o diálogo de Lodovico Dolce. O interesse na representação das emoções e a

identificação entre juízo e discernimento também são provenientes de Pietro Aretino (fonte de

Dolce), das cartas publicadas169. Para Aretino, o discernimento, marca da individualidade do

artista, constitui a base do estilo pessoal.

Lomazzo absorve esta definição veneziana de discernimento, porém é na tradição

neoplatônica que ele busca as bases teóricas para definir o conceito, que não equivale ao

juízo, como pudemos ver através da descrição dos caminhos para se representar o movimento,

168 PINO, p. 132; DOLCE, p. 186. 169 ARETINO, P. Lettere sull'arte. 1537. Cfr. CHAI, J.J. Gian Paolo Lomazzo and the Art of expression. Harvard University, 1990, p. 50-1.

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um por meio da imitação, outro por meio do discernimento 170. Portanto, mais uma vez

constatamos que Lomazzo percorreu os textos da tradição neoplatônica desde a juventude.

Após empreender sua viagem pela Itália e Flandres, Lomazzo retorna com suas

ideias revigoradas e muito impressionado com os afrescos de Michelangelo, e experimenta

dar continuidade a obra iniciada na época em que partira de Milão. Em vista da situação

política de Milão e ao dar-se conta da extensão do argumento que decidira desenvolver, deixa

de lado o antigo manuscrito e recomeça sua empresa, abandonando o formato dialógico de

modo que os princípios que ele havia elaborado até então fossem expostos de forma mais

sistemática e coerente.

Em 1584, o autor publica o Trattato dell'arte della pittura; Diante da necessidade

de esclarecer os fundamentos teóricos que o levaram a escrever este tratado técnico, e

inflamado pelo contato com a obra de Giulio Camillo, retomando partes que havia excluído da

primeira obra e refrescando as noções mágicas esboçadas em seu manuscrito, Lomazzo decide

organizar um novo tratado, desta vez filosófico, uma alegoria visual de toda sua teoria, a fim

de concluir o empreendimento iniciado na juventude, produzindo um corpus textual completo

dedicado à arte da pintura.

CAPÍTULO III

Recepção e Fortuna Crítica da obra

O escopo deste capítulo é realizar um sobrevôo pela Fortuna Crítica da obra, a fim

de perceber a forma como ela foi recebida e lida pelos diversos autores, marcada pela

sensibilidade crítica de cada período. Ainda, notar-se-á que os fundamentos de sua teoria

somente ganharão a atenção dos historiadores no século XX.

170 Marsilio Ficino, em Platonica theologia de immortalitate animorum (Florença, 1482), situa na faculdade da

fantasia, o ato de discernir uma imagem particular em meio às várias formas coletadas pela imaginação. Este representa o penúltimo estágio do pensamento, antes desta determinada forma passar para o intelecto, local onde ela é preparada para receber a Ideia divina. O discernimento, no L.S, aparece como este ato de individuar uma determinada forma, coerente com a ideia a ser representada, penetrando na essência das coisas, como, por exemplo, a representação da imagem de Deus, que é invisível, e portanto desconhecida de modo concreto, cuja forma deve ser elaborada pelo intelecto de acordo com a função que ela irá assumir na obra de arte. Para isto, é preciso compreender a natureza da substância de Deus, a Causa Primeira.

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Em um primeiro momento, discutiremos o silêncio em torno da obra no período

imediatamente após sua publicação, e a repercussão fora da Itália, em ambiente francês, onde

Lomazzo ecoa como uma das vozes sobre a expressão das paixões humanas na obra de arte,

uma alternativa às explicações cartesianas expostas por Charles Le Brun na Academia

Francesa em 1688, inspirado nas ideias estéticas contidas no Les passions de l'âme (Paris,

1649) de Descartes.

Em seguida, apresentaremos autores que incluíram Lomazzo entre os principais

literatos milaneses e citaram o Idea del Tempio ao longo dos séculos XVI - XVIII,

interessados em compor obras que reunissem a totalidade da produção artística e literária de

Milão ou da Itália.

Depois, os autores do século XIX, mais atentos ao conteúdo da obra, utilizando os

escritos de Lomazzo como fonte documental. Neste momento, a percepção do corpus de

Lomazzo adquire tons um pouco mais vibrantes, e importantes considerações sobre os escritos

lomazzianos são esboçadas.

Então, adentraremos no século XX, momento em que o Idea del Tempio ganha

maior visibilidade no âmbito das investigações sobre a literatura artística do Cinquecento e na

história da crítica da arte, até chegar aos estudos totalmente voltados para a compreensão de

sua complexa estrutura teórica, sensíveis aos diálogos estabelecidos pelo autor com as

correntes filosóficas ocultas.

1. A recepção imediata da obra

É significativo o silêncio no qual a teoria artística de Lomazzo foi imersa

imediatamente após sua publicação. Em geral, no que se refere ao contexto milanês,

testemunhamos apenas os costumeiros elogios contidos nos poemas reunidos no início de suas

obras, prática bastante usual no período, que em geral fazem alusão ao grande intelecto do

autor e à fatalidade da cegueira que o atingiu ainda jovem, sem abordar propriamente os

conteúdos teóricos de seus textos 171. Através destes poemas, é possível reconstituir um

proveitoso quadro do seu círculo social, que se torna mais nítido na medida em que são

confrontados com outros documentos.

1.1. Circulo social em Milão.

171 Somam quase cinquenta poemas no total, escritos por cerca de quarenta autores diferentes, e todos, na maioria das vezes, fazendo alusões à cegueira ou contendo metáforas em torno da sombra e da luz, como ressalta G. Ackerman. Cfr. ACKERMAN. op. cit., p. 15.

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Lomazzo foi um personagem ativo entre os artistas, poetas, nobres e magistrados

milaneses, como pudemos ver ao longo do primeiro capítulo desta dissertação. É sabido de

seu papel central na academia bleniense172, imortalizado por seu autorretrato da Pinacoteca di

Brera173. Também, suas coletâneas de poemas, Rime ad imitazione dei grotteschi (Milão,

1587) e Rabisch (Milão, 1589), revelam suas relações com amigos artistas e homens de letras,

comitentes e protetores, e seus desafetos e rivalidades.

Dentre os membros da Academia do Vale Blênio, divisam-se artistas de todos os

ramos, pintores, escultores, atores, arquitetos, poetas, músicos, bordadores, tapeceiros,

fabricantes de espadas e gravadores174. Nota-se, portanto, que a rígida divisão entre arte e

artesanato não ocorria ali. Mais uma vez, destaco o papel central da cidade de Milão na

produção de artigos de luxo para o circuito das cortes européias: dali eram exportados artigos

de todo o tipo, jóias, tapeçarias, tecidos, objetos em metal e cristal, entalhes de gemas,

espadas, armaduras, enviados para as cortes de Turim, Madri, Florença, Viena e Praga175.

Para além do contato evidenciado pela Academia Bleniense, foi destacado, no

primeiro capítulo, as relações de parentescos e laços afetivos entre Lomazzo e o círculo de

artesãos locais. Esta dinâmica rede artesanal, conectada geograficamente e afetivamente,

permite imaginar o sentimento de orgulho bairrista cultivado entre estes personagens. Para

além disso, havia uma boa relação deste grupo com nobres influentes de Milão, como Pirro

Borromeo Visconti, Próspero Visconti e Giuliano Goselini 176.

Isto posto, é hora de tratarmos da questão central desta seção, referente ao

imediato insucesso dos textos teóricos de Lomazzo, sobretudo o Idea del Tempio della

pittura. Não existe referência às obras de Lomazzo no tratado de Giovan Battista Armenini,

172 Toda sua Fortuna Crítica, desde os primeiros autores, como Ghilini (1647) e Picinelli (1670), destaca a atuação de Lomazzo nesta academia. Cfr. cap. 1 (seção 1) . 173 Com o qual iniciamos esta dissertação. Autorritratto in veste di abate dell'Accademia della Val di Blenio, 1568, óleo sobre tela, 56x44cm, Pinacoteca di Brera, Milão. Figura 1, p. 26. 174 Já citados no primeiro capítulo: Ottavio Semino, Annibale Fontana, Gio. Ambrogio Brambilla, Scipione Delfinone, Francesco Tortorino, Lorenzo e Rafaello Toscani, Guido Mazzenta, Sigismondo Foliani, Bernardino Baldini, Giacomo Soldati, Francesco Giussano, Giuseppe Caimo, Girolamo Vincenza, Simone da Bologna, Paolo Camillo Landriani, Aurelio Luini, Vespasiano Marino, entre outros. Sobre a Academia do Vale Blênio e seus membros, cfr. Rabisch. Il grottesco nell'arte de Cinquecento. L'Accademia della Val di Blenio, Lomazzo e l'ambiente milanese. Skyra: Milão, 1998. 175 Cfr. BERTELLI, C. Introduzione In Rabisch. Il grottesco nell'arte de Cinquecento. L'Accademia della Val di Blenio, Lomazzo e l'ambiente milanese. Skyra: Milão, 1998, pp. 17-21. ROMANI, Marzio Achille (org.). Made in Milano. Le botteghe del Cinquecento. Parma: Grafiche Step editrice, 2015; Capítulo I (seção 1). 176 cap I (seção I) p. 38

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De' veri precetti della pittura (Ravena, 1587), que provavelmente conhecia Lomazzo177.

Tampouco no tratado de Gregório Comanini, Il Figino, overo del fine della pittura (Mântua,

1591), que, além de ter escrito versos para o Idea, era próximo de Giovan Paolo Lomazzo.

O poeta piemontês Gherardo Borgogni, instalado em Milão desde o início da

década de 1570, que também mantinha relações de proximidade com Lomazzo, não inclui

nenhum verso sobre ele em sua coletânea Le Muse toscane di diversi nobilissimi ingegni

(Bergamo, 1594), apesar de ter escrito um poema para o Trattato. Outro exemplo é o de

Giuliano Goselini, seu antigo protetor, que mantinha relações estreitas com a Academia

Bleniense, e que, em suas Rime (1572-1588), também não faz menção a ele ou às suas

obras178.

Seus conterrâneos não falam sobre elas, nem para criticá-las, nem para elogiá-las,

com exceção do historiador jesuíta Paolo Morigia, que as menciona, sem qualquer pretensão

de comentar seus conteúdos, em sua Nobiltà di Milano (Milão, 1595). O humanista Giovanni

Paolo Gallucci, na tradução que realiza do livro de proporções de Albrecht Dürer, Della

simmetria de i corpi umani (Veneza, 1591), adiciona-lhe um quinto livro, no qual discorre

sobre a expressão dos afetos e das emoções. Provavelmente, Gallucci se inspirou na teoria da

expressão de Lomazzo, mas não faz nenhuma citação ao nosso autor milanês. Lomazzo, em

um de seus versos (1587), parece fazer-lhe uma acusação de plágio179.

1.2. As impressões dos tratados.

Observar o histórico das impressões dos tratados também é um meio interessante

para se refletir sobre a questão. Tanto R. Klein quanto R.P. Ciardi realizaram este exercício.

Existem, no total, quatro edições do Trattato dell'arte ( dentre essas, não conto a edição

crítica moderna de Ciardi) e duas traduções, uma para o inglês e outra para o francês. Já o

Idea obteve três edições (dentre essas, não conto a edição crítica moderna de Ciardi) e uma

adaptação para o francês no século XVII, sem levarmos em conta a tradução moderna de

Robert Klein, de Jean J. Chai e a presente tradução para a língua portuguesa.

177 Armenini esteve em Milão no final dos anos 1550, como convidado de Bernardino Campi. Além disso, tinha relações próximas com Ambrogio Figino, antigo discípulo de Lomazzo. Cfr. BORA, G. Milano nell'età di Lomazzo e San Carolo: riaffermazione e difficoltà di sopravvivenza di una cultura In BORA, G.; KAHN- ROSSI, M.; PORZIO, F. (org.). op. cit., p. 37; RAGAZZI. op. cit., p. 148. 178 Cfr. KLEIN, R. op. cit., vol. II, pp. 463- 467; ACKERMAN, G. op. cit., pp. 15-18; CHAI, J.J. op. cit., p.36. 179 Cfr. KLEIN. op. cit., p. 469; CHAI. op. cit., pp. 36-7; LOMAZZO, Rime ad imitazione dei grotteschi, Milão, 1587, p. 293.

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Ambos os historiadores destacam a alteração do título do Trattato nas edições de

1584. A primeira não contém em seu título as palavras "scoltura e architettura", que

aparecem somente na terceira edição do mesmo ano, com o acréscimo do subtítulo que

apresenta os temas dos sete livros, faz menção ao index e à dedicatória ao duque de Savoia, e

referência aos nomes daqueles que autorizaram a publicação. A segunda edição anuncia um

capítulo que, como explica o editor, havia sido esquecido. Este é retirado da terceira edição.

Depois, uma edição é publicada em 1585, com o título expandido, como na terceira edição, e

com o retrato de Lomazzo no frontispício. Nota-se um esforço do editor em tornar o

frontispício mais atraente, expondo melhor os seus conteúdos e expandindo o assunto da obra.

Em 1598, Richard Haydocke publica sua tradução ilustrada dos cinco primeiros

livros do Trattato, alterando seu conteúdo em algumas partes para facilitar a compreensão

(inclusão de quadros sinópticos das categorias da proporção, por exemplo). Mais tarde, em

1649, o pintor toulousain Hilaire Pader traduziu o primeiro livro do Trattato (da proporção),

revisado e corrigido, adicionando-lhe gravuras. Ambos os tradutores prometem a conclusão

da tradução, mas isto jamais ocorreu em nenhum dos casos. Depois disso, em 1844, Saverio

dal Monte publica uma nova edição do Trattato, com intervenções na ortografia e na sintaxe,

provocando, segundo Ciardi, muitas interpretações arbitrárias do texto180.

Por sua vez, o Idea del Tempio teve uma primeira edição em 25 de dezembro de

1590, uma segunda publicação, igual à primeira, em Bolonha (Istituto delle scienze) em

março de 1785 e uma terceira publicação, similar à de Bolonha, em Roma em 1947 181.

Observa-se que uma segunda publicação da obra foi feita somente quase duzentos anos

depois, o que já indica seu fracasso de vendas. A repercussão mais significativa de que se tem

notícia até o momento foi a adaptação da obra feita por Hilaire Pader. Sobre Hilaire Pader e

sua obra, valerá à pena abrirmos um novo tópico.

1.3. Hilaire Pader e o impacto dos tratados de Lomazzo no contexto francês.

180 Cfr. CIARDI, R.P. op. cit., vol. I, p. LXXXIV. 181 Não incluí na listagem os capítulos do Idea e do Trattato inseridos na coletânea de Paola Barocchi (Scritti d'arte del Cinquecento, Milão-Nápolis, 1971), nem as traduções críticas contemporâneas do Idea supracitadas, que serão abordadas mais adiante, neste mesmo capítulo, quando formos discutir a crítica contemporânea. Isto também vale para os Scritti sulle arti (1973) de Roberto Paolo Ciardi mencionados acima. Além disso, existem, de acordo com Ciardi (op. cit., vol. I, p. LXXXVIII) e Klein (op. cit., vol. II, p. 471), duas outras aparições de capítulos dos tratados lomazzianos em coleções: a primeira é a Antologia dell'arte pittorica, che contiene (...) alcune regole della pittura di Gio. Paolo Lomazzo - Ciardi afirma, baseado em Schlosser (La letteratura artistica, 2a. ed., Florença, p. 678), que foi organizada provavelmente por Baldassare Orsini -, publicada em 1782 e, depois, em 1784. De acordo com Ciardi, trata-se de uma seleção de pensamentos de ambos os tratados, escritos de maneira livre. A segunda foi publicada em Veneza em 1839, por Luigi Carrer, Ammaestramenti per la pittura tratti da varii scrittori, que contém quatro capítulos do Idea.

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Hilaire Pader (1607-1677), pintor nascido em Toulouse, discípulo de Jean

Chalette, empreendeu uma viagem à Itália no período de 1635 a 1640, na qual entrou em

contato com as obras de Giovanni Paolo Lomazzo182. De acordo com Stéphanie Trouvé, o

Trattato dell'arte de Lomazzo era uma obra procurada pelos pintores franceses da primeira

metade do século XVII e, como exemplo, a autora cita o caso de Sébastien Bourdon, que

encarrega Félibien de trazer-lhe um exemplar da obra quando retornasse de sua viagem à

Itália.

O erudito francês lhe relata, em uma carta de 1647, que estava com dificuldades

de encontrar o livro, pois a obra de Lomazzo era uma raridade. Por fim, Félibien encontra um

exemplar e informa ao pintor que

"que é o único que havia aqui, e que eu ainda procurei em outras vilas: mas eu paguei bem por ele, pois ele me custou 12 testons, pois ele é ainda mais estimado na França" 183.

Trouvé enfatiza a repercussão da obra de Lomazzo na França, na segunda metade

do século XVII, apontando para sua presença nas bibliografias dos acadêmicos franceses,

como Trichet du Fresne, Roger de Piles, Dupuy du Grez. Sobre este último, é possível divisar

empréstimos (declarados pelo autor) de Lomazzo em seu Traité sur la peinture pour en

apprendre la theorie, E se perfectionner dans la pratique (Toulouse, 1699). Contudo, parece-

me que esta afirmação é verdadeira sobretudo para o caso do Trattato. No tocante à teoria da

pluralidade das maneiras, ao templo dos governantes e ao sistema mágico-astrológico

presentes no Idea del Tempio, Hilaire Pader foi um dos poucos que se aventurou por este

caminho.

Em Toulouse em 1649, Pader publica uma tradução ilustrada184 do primeiro livro

do tratado de Lomazzo, intitulada Traicté de la proportion naturelle et artificielle de les

choses par Jean Pol Lomazzo, peintre milanois. Ouvrage necessaire aux peintres, sculpteurs,

graveurs, e à tous ce qui pretendent à la perfection du dessein. Na dedicatória à Maurício de

Savoia - escolhido por ser filho do duque Carlo Emanuele de Savoia, a quem Lomazzo

182 Sobre este período de Pader na Itália, cfr. TROUVÉ, S. Les leçons d'Hilaire Pader. l’ introduction des albums des portraits et armes des présidents et conseillers du parlement de Toulouse (1664). Studiolo . Roma/Paris, 7, 139-160, 2009, pp. 142-3. 183 "qui est le seul qui fût ici, et que j'ai encore fait chercher en ces autres villes là: mais je l'ai bien payé, car il me coûte 12 testons, d'autant qu'il est encore plus estimé ici qu'en France", cfr. THUILLIER, J. "Lettres familiè d'Andrès Félibien" XVIIe siècle, No. 138 (1), janvier-mars 1983, pp. 143 e 153 APUD TROUVÉ. op. cit, p. 156 (nt. 25). 184 De acordo com o próprio autor, na dedicatória a Maurício de Savoia, as ilustrações inseridas são de seu próprio punho.

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dedicou o Trattato -, Pader afirma que entrou em contato com a obra do pintor milanês no

período em que frequentou as academias italianas. Na introdução, Pader enfatiza a

necessidade de que todos os pintores franceses conhecessem os preceitos e a teoria reunidos

por Lomazzo. O autor salienta o problema da diversidade de estilos e mestres a serem

seguidos na Itália, o que torna difícil a escolha, "parmi de sentiments si contraires", do pintor

"novice", e nisso reside a importância de se voltar à obra do pintor milanês, pois

"É ele quem lhes dá a mão para sair do labirinto de seus erros, e que os conduziu sabiamente no Templo da Verdade, tendo-os feito aprender a fazer através da razão, o que muitos creram poder adquirir somente através do hábito" 185

Ao fim, o pintor promete a tradução dos demais livros na condição de que a

tradução do primeiro livro seja bem acolhida pelo público francês. Mais adiante, nos versos

que precedem a tradução, Pader afirma que a sua obra é a verdadeira interprete do "douto

pintor milanês".

Passam-se quatro anos e Pader, ao invés de dar cabo da tradução dos demais

livros do Trattato, expõe os conteúdos dos dois primeiros livros (da proporção e do

movimento) em uma obra em versos intitulada La Peinture Parlante. Também, nesta obra,

Pader expõe a questão da diversidade de talentos dos pintores e faz apologia ao conhecimento

dos tratados de Lomazzo

"Em uma palavra Lomazzo encontrou o verdadeiro ângulo,

Abrindo-nos um caminho jamais visto

Para formar nossos espíritos e tornar tal um homem

Que ele poderá ser páreo aos mais perfeitos de Roma" 186

Em 1658, Hilaire Pader publica uma terceira obra, desta vez em prosa, e, nesta

última adaptação, o Idea del Tempio se manifesta com maior vigor. O título da obra é Songe

enigmatique sur la peinture universelle, e me parece interessante um breve exercício de

reflexão sobre ele. A obra de Lomazzo carrega o conceito platônico da Idea (eidos) em seu

título e faz referência direta ao tratado mnemotécnico, de inspiração hermética, de Giulio

185 "C'est lui qui leur donner la main pour sortir de labyrinthe de leurs erreurs, e qui les a conduit sagement dans Le Temple de la Verité, leur ayant appris à faire par raison, ce que plusieurs ont creu pouvoir acquerir par la seule habitude"; Na dedicatória do Traicté de la proportion naturelle (...). 186

"En un mot le Lomasse a trouvé le vrai biais,

Nous ovrant un chemin qu'on n'avoit vu jamais

Pour former nos esprits e rendre tel un homme

Qu'il pourra faire teste aux plus parfaits de Rome" La Peinture Parlante, p. 10.

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Camillo Delminio, o Idea del Theatro, como vimos no capítulo anterior. No caso de Pader, o

termo utilizado é "sonho enigmático". Diversas vezes na advertência ao leitor, o autor se

refere à sua obra como "o meu enigma".

Lomazzo, em sua juventude, também escreveu uma obra intitulada "sonho", Gli

sogni e ragionamenti (c. 1562-65), da qual tratamos também no capítulo anterior.

Provavelmente, Pader desconhecia este manuscrito de Lomazzo, tendo entrado em contato

com os tratados do autor no contexto das academias italianas. Contudo, o artifício do sonho e

do enigma como uma forma abstrata e alegórica para tratar de um determinado campo do

conhecimento, pode ser, ao meu ver, um ponto de encontro interessante entre estes autores.

Seria preciso aprofundar-se nesta questão, o que não cabe a esta dissertação.

A palavra enigma, do latim aenigma, conota algo oculto, alegórico, secreto, que é

preciso ser desvelado para ser compreendido, ou seja, não é algo que se acessa de maneira

direta, mas através de dispositivos facilitadores e do preparo intelectual. A expressão "sonho

enigmático", aenigmata sominiorum, pode ser encontrada no De divinatione de Marcus

Tullius Cicero (44 a.c.), significando a obscuridade ou o sentido oculto dos sonhos 187.

Na advertência ao leitor, Hilaire Pader faz referência à filosofia hermética,

esclarecendo que seu objetivo é elucidar a diferença entre os pintores particulares e os grandes

pintores universais históricos, mas que sua obra ("mon Enigme") pode conter novas ideias

("quelque nouvelle lumière") para os pesquisadores do hermetismo. Ou seja, não se trata de

uma obra de ciência oculta, mas sobre pintura, o que não exclui o diálogo com este campo do

saber, na medida em que revela um conhecimento superior e complexo, e coloca em relação o

Micro e o Macrocosmo. Diante dessas referências ao hermetismo e a um enigma a ser

desvelado, revelando uma verdade superior, não se pode deixar de traçar paralelos com a obra

de Camillo, também envolta na questão do segredo, grande fonte de inspiração para Lomazzo.

Pader provavelmente havia lido a obra de Camillo, talvez como um modo de compreender

melhor o Idea del Tempio.

No tocante ao restante do título, "la peinture universelle", este demonstra

exatamente o ponto de maior distanciamento entre ambos os autores: a crença na

possibilidade de existir um artista que reúna em si todos os estilos. Porém, é interessante

observar esta leitura equivocada da teoria de Lomazzo como uma teoria que faz apologia ao

187 SARAIVA, F.R. dos Santos. Dicionário latino-português. 12a. ed.. Belor Horizonte: Livraria Garnier, 2006.

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ecletismo, interpretação que não foi realizada apenas por Pader, mas por inúmeros autores ao

longo da história da arte, como veremos no decorrer deste capítulo.

Pader descreve o espaço arquitetônico mnemônico de seu tratado: ao invés do

templo circular de Lomazzo, a arquitetura de Pader se expande e torna-se mais complexa,

constituída por um jardim, escadas, câmara, galerias, salão principal. Trata-se de um palácio

imaginário, o "Palácio da Pintura", que é representada por uma estátua localizada no topo do

edifício. Neste sentido, Pader aproxima-se muito mais da arte clássica de memória do que

Lomazzo. Para acessar este palácio é necessário adentrar o jardim místico, guiado pela Mãe

Natureza. Este jardim possui seis ângulos e, em cada um destes ângulos, existe uma árvore,

cada uma representando uma categoria de pintor, cada um excelente em uma das seis partes

da pintura (a forma e a composição estão unidas sob a prática), todos diferentes entre si e

excelentes. No centro do jardim está a árvore que representa a categoria do pintor universal,

que possui em si todas as seis categorias reunidas. Os degraus da escadaria que leva ao

palácio são compostos pelas cinco partes teóricas da pintura (de acordo com divisão e

ordenação de Lomazzo), e levam à câmara secreta. Nesta, encontra-se a prática (forma e

composição). A seguir, passando pela câmara, avista-se o Palácio de Netuno, " pois é

necessário que o pintor não somente viage por terra, mas que, além disso, ele enfrente os

perigos do mar", e alcança-se a galeria, na qual os protetores dos pintores estão. Na entrada,

vê-se o ancião, que evoca o tempo; ao final da galeria, está Mercúrio Trimegistus, com sua

tripla coroa mística, como aquele que revela os mistérios por meio da ascensão na cadeia dos

seres. Ao longo da galeria, na parte inferior, estão os retratos dos pintores excelentes, "os

protetores da pintura", como os modelos a serem observados para que não se perca a

referência na arte da pintura. O autor declara que esta é uma obra de adaptação da Idea del

Tempio della pittura de Lomazzo em conjunto com as "Vidas" dos mais célebres artistas de

Vasari.

A união entre crítica e história da arte é instituída por Vasari. Em Lomazzo,

ambas aparecem vinculadas, estruturando todo o sistema mágico-astrológico lomazziano. Em

Hilaire Pader, verifica-se a presença da galeria de retratos dos pintores selecionados como os

protetores da pintura, a galeria dos exempla. No Idea del Tempio, o sistema teórico é disposto

de uma maneira mais compacta: o pintor/governante/cariátide, representando ao mesmo

tempo um arquétipo do estilo, um temperamento astral e o modelo a ser observado pelo pintor

incipiente, contendo em si uma linhagem ligada a uma tradição artística, é colocado no

horizonte do aprendiz, guiando-o ao longo da busca por seu próprio estilo. Em Pader isto é

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eliminado. O que se vê são as categorias de pintores excelentes, dispostas nos ângulos do

jardim místico, na forma de árvores.

Na teoria de Lomazzo, todo o processo se dá a partir do princípio da

personalidade artística: deve-se conhecer seu próprio temperamento por meio do mapa astral e

alinhar-se a um dos sete governantes durante o período de formação até que uma

personalidade artística própria se desenvolva e seja possível ganhar autonomia. Em Pader, as

categorias são abstratas, não estão vinculadas a uma personalidade, mas a uma das partes da

pintura, e verifica-se a presença do pintor universal, desprovido de personalidade, de

individualidade, uma realização de caráter academicista e de um ecletismo sistemático

racional. Neste ponto, podemos divisar a discordância mais gritante entre Pader e Lomazzo.

Avança-se os degraus em direção ao desvelamento do grande mistério, na medida

em que se toma conhecimento da teoria e das ciências necessárias ao pintor, da prática da

pintura e da história da arte, e percorrem-se os olhos pelos retratos da galeria. Todo este

percurso é tutelado por Saturno, isto é, pelo tempo e por Mercúrio Trimegistus, quem dá

acesso a conhecimentos complexos, figuras centrais na tradição hermética.

A faculdade do discernimento que, através de suas partes e subpartes, atravessa e

une as etapas do processo de ascensão à Ideia, não existe. O tom do enigma do pintor francês

é muito mais alegórico, acadêmico e mnemotécnico do que o tratado neoplatônico, pautado na

teoria da expressão pessoal, no furor artístico, na conexão, através da cadeia dos seres entre

ideia, artista, obra e espectador e na ideia da obra de arte como um objeto talismânico.

Ambas as últimas obras de Pader foram reunidas em uma única edição e

oferecidas à Académie Royale de Peinture et de Sculpture (1657-58), em uma tentativa de

afirmar seu status de pintor savant no contexto da disputa contra Antoine Durand, que havia

sucedido Pader como pintor oficial da cidade de Toulouse (1645) 188. De fato, Pader obteve

um posto na academia em 1659. Contudo, a teoria lomazziana, da forma como foi adaptada

por Pader, não teve um impacto significativo.

Na segunda metade do século XVII, vê-se o triunfo da ciência fisiológica e

mecânica de Descartes (Les Passions de l'âme, 1649) através de Charles Le Brun, a partir da

conferência dirigida à academia em 1668. J.J. Chai afirma que Hilaire Pader enviou uma

cópia do La peinture parlante a Poussin, louvado e exaltado em muitos momentos ao longo

do texto. Contudo, é possível que Poussin já tivesse conhecimento das obras de Lomazzo,

188 TROUVÉ, S. op. cit.

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antes do recebimento do exemplar de Pader. De acordo com Chai, nas notas do pintor,

organizadas e editadas por Giovanni Pietro Bellori (Osservazioni sopra la pittura), quando

Poussin trata da beleza neoplatônica incorpórea que desce somente para a matéria bem

prepara, ele faz uma nota indicando o capítulo vinte e seis do Idea del Tempio della pittura de

Lomazzo. Para além disso, a autora avança na possibilidade de que Poussin tenha utilizado o

Idea para formular sua "teoria dei modi", na qual os modos musicais são associados à

expressão na pintura 189.

No entanto, quem melhor interpretou as ideias de Lomazzo neste contexto francês

foi Roger de Piles, o grande defensor de Rubens. Chai afirma que De Piles certamente foi

influenciado pelo Songe enigmatique de Pader, pois também constrói uma arquitetura

imaginária de caráter minemotécnico. Contudo, o papel de maior importância na arquitetura

de De Piles é dado à inventio, responsável pelo projeto arquitetônico e pelos materiais

envolvidos em sua construção. O teórico francês é o grande defensor do gênio e do talento

inato do pintor e foi quem mais se aproximou da teoria da expressão pessoal do artista de

Lomazzo. De Piles também destaca as questões da comoção do espectador e da afinidade de

temperamentos entre este e o pintor. Portanto, foi em território francês no século XVII, que a

essência da teoria da expressão de Lomazzo seria revivida, relida e acolhida, mas por autores

que não representavam as correntes do pensamento dominantes no período.

1.4. Razões do insucesso no contexto milanês.

A bibliografia aponta para razões de duas naturezas: uma da ordem do conteúdo -

as nuances de teoria oculta, a crítica em desacordo com os padrões da época da publicação

dos tratados e a complexidade estrutural da escrita de Lomazzo - e outra no âmbito das

relações pessoais e do envolvimento em conflitos com outros artistas do cenário milanês190.

No fim, estas razões acabam se entrelaçando, já que sua visão crítica impulsiona sua oposição

aos pintores maneiristas cremonenses (i campi e seus seguidores), apoiados pelo cardinal

Carlo Borromeo, por patrícios eminentes (a esposa do governador F. Gonzaga, Isabella di

Capua, foi quem convidou Bernardino Campi para instalar-se em Milão, em 1550191) e pelo

189 Cfr. CHAI, J.J. Giovanni Paolo Lomazzo and the art of expression. cit., 1990, pp. 182-183 e p. 194 e nota 96, 97 e 98 e CHAI, J.J. Idea of Temple of painting (trad.). cit., 2013, p. 40. 190 Cfr. KLEIN. op. cit., vol II, pp. 463-467 (conflitos pessoais e crítica antiquada) e pp. 507 (complexidade do texto); CHAI, J.J. Idea of temple of painting (trad.). cit, pp. 5 e ss. 191 Cfr. BORA, G. op. cit., p. 39.

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canteiro do santuário de Santa Maria presso San Celso ("um dos centros mais vivazes da

cultura figurativa em Milão nas décadas de 1550 e 1560" 192).

Lomazzo foi um defensor da escola milanesa local, ligada a Gaudenzio Ferrari,

com traços de contaminação do estilo de Leonardo da Vinci, figura crucial para a cultura

artística de Milão. Os artistas louvados por ele, para além do mestre Gaudenzio, são aqueles

ligados a este círculo e ao Quattrocento lombardo: Bernardino Lanino, Aurelio Luini,

Giuseppe Meda, Giovan Battista della Cerva (seu preceptor), Bernardo Zenale, Ambrogio

Figino, Vincenzo Foppa, Bramante, Bramantino, Ottavio Semino, Bernardino Butinone,

Giuseppe Arcimboldo. Para além da escola milanesa local, Lomazzo é admirador dos grandes

mestres do primeiro Cinquecento: Rafael, Michelangelo, Leonardo, Giulio Romano, Antonio

da Correggio, Tiziano, Parmigianino, Giorgione da Castelfranco, Albretch Dürer, Rosso

Fiorentino, Perin del Vaga, Polidoro da Caravaggio e Andrea del Sarto (entre outros, citados

inúmeras vezes em seus textos).

O próprio autor, seus biógrafos e a literatura contemporânea falam sobre a viagem

que Lomazzo empreendeu no início da década de 1560, na qual pôde ver as obras dos grandes

mestres italianos, alemães e flamengos, e é possível perceber as referências aos mestres

italianos, principalmente Michelangelo, em suas últimas produções pictóricas193. Pode-se

imaginar, portanto, o antagonismo que o estilo maneirista aristocrático e rebuscado dos

pintores vindos de Cremona e Bolonha, dentre eles o seu principal rival, Bernardino Campi,

causara em um pintor como Lomazzo, inclinado a meditar sobre as obras dos grandes mestres

e reinventá-los a partir do princípio da espontaneidade do estilo pessoal, e engajado na defesa

da arte de seus conterrâneos.

Sobre sua visão crítica, vale ressaltar novamente um fato de suma relevância: a

perda da visão por volta dos trinta e três anos. Diante disto, é preciso levar em conta que

Lomazzo apenas pudera ver aquilo que foi produzido até aproximadamente 1572194. A pintura

que presenciou, portanto, foi principalmente a das décadas de 1550 e 1560 ( meados do

século, caracteriza-se por um período de reavaliação, inibido e introspectivo195), parte das

obras do Quattrocento lombardo e aquelas que ele vira durante sua viagem pela Itália e pelo

192 Ibidem. pp. 37 e ss. 193 Cfr. CHAI. Idea of (...). cit., 2013, pp. 7-6 (análise das mudanças em seu estilo pictórico após seu retorno a Milão, alinhado ao naturalismo racional, característico dos discípulos de Leonardo); Capítulo 1 (seção 1). 194 CIARDI, R.P. op. cit., vol. I, p. LXXXIX. 195 CHAI. op. cit., p. 6

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norte. Roberto Paolo Ciardi avança a hipótese de que L. não vira a maioria das obras que cita

e critica; Ainda, que dentre as que viu, teve contato com boa parte delas através de incisões,

impressões, desenhos e cópias, "tanti che si potrebbe dire che piu che di Michenlangelo,

Rafaello e Tiziano, si trata di Marcantonio, di Caraglio, di Fantuzzi" 196.

Sendo isto verdade ou não, a questão é que o juízo crítico do nosso autor não era

compatível com a época em que seus escritos, elaborados cerca de trinta anos antes, foram

publicados. Para além disso, sua mais intensa interlocução se dá com os autores de metade do

século, como Giorgio Vasari, Pietro Aretino, Lodovico Dolce, Paolo Pino e Benedetto Varchi,

como pudemos ver no capítulo precedente.

Constantemente a literatura destaca o nome de Giuliano Goselini (1525-1588),

secretário dos duques de Milão desde o início de sua atuação política, intercalada por períodos

delicados, de Ferrante Gonzaga, eleito duque de Milão em 1546197. Goselini, além de um

magistrado importante e um homem bem relacionado, era poeta (seus versos encontram-se

reunidos em suas obras intituladas Rime. A primeira edição é de 1572, impressa pelo editor

milanês P.G. da Ponte. Depois houveram mais quatro edições: em Veneza por P. Deuchino,

1573; em Milão, por P.G. Da Ponte, 1574; em Veneza, por Err. P. Deuchino, 1581 e a última,

no dia seguinte da morte de Goselini, publicada em Veneza por F. Franceschi, 1588). Sua

relação com Lomazzo era próxima, sendo de sua autoria dois dos versos laudatórios, um que

aparece no Rime ad imitazione dei Grotteschi e outro, no Trattato. Lomazzo, em seus versos

autobiográficos, conta que executou um "christo ch'ora nel orto con li suoi"198 para Goselini.

Klein avança na hipótese de que também fora o secretário quem encomendou o retrato do

marquês Francesco Ferrante de Pescara 199, também listado por Lomazzo em seus versos.

No Rime de Lomazzo, observamos um poema sobre o retrato executado para o

marquês:

"A Francesco Ferrante, grande marquês

De Pescara já fiz um retrato seu.

Onde o qual de delicado corpo adequado

Pintei-o, à vista belo e cortês".

196 Cfr. CIARDI. op. cit., vol. I, p. LXXIX. 197 Cfr. ACKERMAN. op. cit., p. 16; KLEIN. op. cit., p. 463 e BORA. op. cit, pp. 37 e ss. 198 Existem duas telas pintadas por Lomazzo sobre este mesmo tema, uma está na basílica de San Carlo al Corso (Milão) e outra na Pinacoteca Ambrosiana (Milão). Cfr. capítulo 1 (seção 1) p. 45. 199 Cfr. KLEIN. ibidem.

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Mais adiante, neste mesmo poema, Lomazzo escreve

"O qual tinha feito um outro um tal 'bisfatto'

Pintor que perfilado ao fim torna

Ele foi aquele tão raro e pelegrino

Que a fama e o esplendor dos outros amortiza

Chamado o altivo Campi Bernardino.

Cujo nome exaltar tanto se esforça,

Da mesma forma que o meu, com rimas o Goselini;

Que na arte de dizer toda hora intensifica".

Nota-se aí uma crítica ao seu rival B. Campi, e ao fato de Goselini ter-lhe

dedicado versos. De fato, nas Rime de Giuliano Goselini, existe um poema louvando o pintor

cremonense intitulado sopra un ritratto del Marchese di Pescara à Bernardino Campi (tanto

na edição de 1574, quanto na ed. de 1588. Não consegui checar as demais edições.). Goselini

não faz menção à Lomazzo nem nestes versos, nem no restante de sua obra (pelo que pude

verificar até então). Ainda, na edição de 1588, o secretário ducal dedica um poema a

Ambrogio Figino (1548-1608), À Gio. Ambrogio Figino Milanese, pennello famoso, antigo

discípulo de Lomazzo.

Sabe-se do rompimento entre Lomazzo e seu antigo aluno, Ambrogio Figino.

Desconhece-se quando isto ocorreu ao certo, mas pode-se supor a razão. Tanto no Trattato

dell'arte della pittura (1584), quanto nas Rime ad imitazione dei Grotteschi (1587), o nome de

Figino é muitas vezes louvado por Lomazzo com um tom afetuoso, "Il mio Figino, il divo

Ambrogio". Já no Idea del Tempio (1590), Figino não é citado nenhuma vez, mas existem

referências indiretas a ele:

"Quando também ele [Pelegrino Tibaldi] edificou em Milão o nobilíssimo templo de S. Fedele (...). A qual [esta belíssima arquitetura] foi, a cada dia, acrescida dos ornamentos dos quadros que ali foram postos, e seria muito mais engrandecida, se algum dos artífices da igreja seguisse a primeira boa maneira, e não a modificasse para pior" (cap. XXXVIII)

Neste trecho, Lomazzo faz alusão à Incoronazione della Vergine, que de acordo com

Ciardi200, pode ser datada nos anos imediatamente seguintes a 1580.

Nos anos 1590, Figino é alvo de muitos encômios de poetas e tratadistas, sua

reputação como excelente pintor torna-se cada vez maior, assim como a distância em relação

ao seu antigo preceptor. Gregório Comanini (c.1550 - 1608), autor de um dos versos

laudatórios do início do Idea del Tempio, dedica-lhe seu tratado, Il Figino overo del fine della

200 CIARDI. op. cit. vol. I, p. 361( nt. 8).

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Pittura, publicado em Mântua em 1591 e, como foi dito, não faz nenhuma referência a

Lomazzo. Gherardo Borgogni (1526 - c.1608), a quem Lomazzo dedica versos em suas Rime

e quem escreveu um poema presente no início do Trattato dell'arte, também não o menciona

em suas Muse toscane di diversi nobilissimi ingegni, obra publicada em Bérgamo em 1594.

Nesta obra, Borgogni dedica muitas linhas a Ambrogio Figino.

Não é possível afirmar ao certo o que ocorreu entre Lomazzo e seu antigo e

querido discípulo. O que se pode constatar, a partir das obras de Figino, dos comentários de

Lomazzo e do aparente esforço dos poetas e admiradores de Figino em não conectá-lo ao seu

antigo preceptor, é que houve um distanciamento entre ambos, tanto pessoal quanto em

relação aos princípios estilísticos, e que este distanciamento, de certo modo, contribuiu para

impulsionar Lomazzo e seus tratados para longe dos círculos intelectuais milaneses do

período.

Apesar deste isolamento em terra natal, é possível perceber uma certa circulação

de seus tratados no âmbito acadêmico italiano: Romano Alberti, na quinta sessão da

Accademia di S. Lucca em Roma, em dezessete de janeiro de 1594, apresenta o Trattato

dell'arte e discorre sobre a teoria dos moti lomazziana201. De acordo com Chai, foi a partir de

então que Lomazzo foi reconhecido como autoridade na questão da expressão pictórica. Em

Dialogos de la pintura (1633), Vicente Carducho o menciona entre aqueles que discorreram

sobre a representação das emoções e movimentos. Giulio Mancini, em Considerazione sulla

pittura (Roma, 1627-28), dirige-lhe uma crítica severa no que diz respeito ao uso da palavra

moto, pois, de acordo com Mancini, o termo designa "continuidade no tempo", o que não

pode ser alcançado na pintura. Para além disso, Mancini discorda da essência da teoria

artística de cunho metafísico de Lomazzo, relacionada ao temperamento pessoal do artista

determinado pelos influxos astrais que imperam sobre ele, e advoga uma teoria da arte mais

racionalista, técnica e acadêmica. Ainda, temos o já mencionado caso de Domenichino e da

má interpretação exposta na carta a Francesco Angeloni. Veremos mais adiante, como o

julgamento equivocado de Domenichino influenciará a crítica contemporânea.

2. Giovanni Paolo Lomazzo: pintor, poeta e teórico milanês na História da pintura e

literatura italiana (1595-1844).

Giovanni Paolo Lomazzo foi recordado como célebre pintor e teórico pelos

cronistas milaneses e italianos. Seu nome, sua biografia e suas obras constam nas linhas

201 Cfr. CHAI. op. cit. p. 37.

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escritas pelo jesuíta Paolo Morigia, La Nobiltà di Milano (Milão, 1595), pelo abade Girolamo

Ghilini, Teatro d'huomini letterati (Veneza, 1647), pelo monge agostiniano Filippo Picinelli,

Ateneo dei letterati milanesi (Milão, 1670), pelo historiador, numismático e diretor da

Biblioteca Ambrosiana Filippo Argelati, Bibliotheca Scriptorum mediolanensium (Milão,

1745) e pelo historiador e abade jesuíta Girolamo Tiraboschi, Storia della letteratura italiana

(Modena, 1772-1782).

Pode-se observar que as informações presentes nos textos são frequentemente as

mesmas e que, provavelmente, a fonte comum de todos os autores tenha sido os versos

autobiográficos de Lomazzo, publicados em sua obra Rime ad imitazione dei grotteschi (con

la vita del autore descritta da lui stesso in rime sciolte), 1587. Nos textos historiográficos,

mencionam-se a data, o local e o horário de nascimento - vinte e seis de abril de 1538 em

Milão, às dezessete horas (com exceção de Morigia) - ,

"Da nossa saúde o ano mil

Quinhentos e trinta e oito, e vinte e seis

Dias de abril, e hora dezessete

Corriam; quando eu nasci em Milão.

em um dia dedicado à Citerea"202.

a vocação para a pintura desde a infância (somente Picinelli),

"Deste modo, crescendo, tinha sempre a mente

Concentrada em desenhar; tanto que então

A um professor me dirigi aos dez anos" 203

a filiação a Giovanni Battista della Cerva (Argelati) ou Gaudenzio Ferrari (Ghilini),

"Com tais princípios a pintar me dei

Sob um discípulo do falecido Gaudenzio

Ferrari, que foi já digno pintor

Nomeado Gian Battista della Cerva"204.

a nomeação como príncipe da Accademia della Val di Blenio (Ghilini, Picinelli, Argelati,

Tiraboschi),

"E, então, foi fundada também a alta academia

Do Bregno; e eu dela fui feito líder.

202 Rime, p. 529. 203 Ibidem. 204 Ibidem.

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Onde falavam todos em língua rústica"205

as principais obras pictóricas - o afresco em Santa Maria della Passione em Milão (L'Incontro

di Abramo e Melchisedech), citado por Morigia e Ghilini (ambos falam equivocadamente de

uma cena de nozze in cana di Galilea afrescada no refeitório), e Picinelli,

"Então, de volta, na Passione

Pintei no refeitório a fachada,

Onde se vê o gran Melchisedech,

Que oferece a Adão o pão e o vinho.

O qual já havia feito a gran jornada

Das cinco cidades com os reis aprisionados.

E muita gente que ali era no entorno,

E se vê de longe a batalha,

Contra cada um deles ferido e preso

E acima, no meio dos círculos, os profetas,"206

a Cena Quadragesimale no convento de S. Agostino em Piacenza,

"Então fui a Piacenza, e ali fiz

No refeitório de Santo Agostino

A fachada com tal história pintada.

De longe há Pedro em oração,

Que vê abaixo do céu um grande lençol

Descer, cheio de animais pequenos e grandes.

De onde a Quaresma foi derivada.

Aí pintou-se uma grande e rica mesa.

Onde o Papa senta na cabeceira, e à direita

Os príncipes e senhores estão sentados.

E sentam à esquerda os religiosos

Por ordem colocados, e por último há Cristo,

Que a mesa, e isto existe, benediz"207

o conjunto da Capela Foppa na igreja de S. Marco em Milão,

"Então me foi na mesma cidade

Dada a pintas aquela grande Capela,

De Santo Marco, na abóboda da qual

205 Ibidem, p. 530 206 Ibidem, p. 534. 207 Ibidem.

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as obras em S. Giovanni in Conca,

Fiz os profetas e as sibilas em escorço (...)

Na esquerda fiz Simão mago,

Que cai do alto diante de Nero;

Pelo comando de São Pedro"208

"Em San Giovan in Conca, um Cristo crucificado;

Que fala com a mãe, e é aí presente João

Com Madalena em pé, esta ao sobrinho" (loc. cit., p. 538)

-, a cegueira precoce, que havia sido prevista pelo médico e astrólogo Girolamo

Cardano,

"Depois disso não se passaram muitos dias;

Que por grave acidente os meus olhos

Fecharam; e perdi a amada e cara luz,

Que me fez sair fora de mim mesmo;

Assim como havia predito o gran Cardano,

Medico e Matematico de prestígio". (op. cit., loc.cit.)

e os seus principais discípulos, Figino e Chiocca (Ghilini),

"Agora ei de dizer dos meus alunos,

Que muitos foram, mas escolherei os melhores.

Dentre os quais o ´primeiro é Figino, e depois Chiocca "209.

Os escritos de Lomazzo aparecem listados pelos autores, que associam a grande

parte de sua produção literária à fatalidade da cegueira precoce (Morigia, Ghilini, Picinelli,

Argelati e Tiraboschi): Trattato dell'arte della Pittura (1584), Rime ad imitazione dei

Grotteschi (1587), Della forma delle muse (1591), Accademia della Valle di Bregno - Todos

os autores citam esta obra, talvez baseados em Morigia, o primeiro a listá-la. Argelati, ao

incluí-la na lista de escritos lomazzianos, faz uma observação "Ita asserit Picinellus, nullo

autem loco, aut anno impressionis indicato" 210 - , Rabisch (1585) - É citado por Argelati - ,

Idea del tempio della pittura (1590) - Argelati e Tiraboschi mencionam uma primeira

publicação em 1584211; Argelati afirma que uma segunda edição foi impressa em 1591,

208 Ibidem, p. 536. 209 Ibidem, p. 542. 210 Klein (Idea del Tempio della pittura (trad.), Florença, 1974, p. 473) afirma que este é um título equivocado dado por Morigia ao Rabisch e transmitido pelos biógrafos que copiaram o texto do jesuíta. 211 Bossi (Del Cenacolo di Leonardo da Vinci. Skira, (1810) 2009, p. 37) aponta para o equívoco de Tiraboschi ao datar uma edição do Idea contemporânea ao Trattato, sendo que, no Idea, o próprio Lomazzo avisa que a obra foi publicada mais tarde.

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enquanto Tiraboschi a situa em 1590 - e Esposizione sopra il Trattato della pittura - Argelati

afirma não ter encontrado esta obra. Tiraboschi não a inclui na lista de obras lomazzianas -

212.

Em 1787, Carlo Bianconi, pintor e escultor bolonhês, e, então, secretário da

Accademia di Belle Arti di Brera, publicou a "Nuova Guida di Milano per gli Amanti delle

Belle Arti e delle Sacre, e Profane Antichità milanesi", um guia, como o título já indica, das

obras de pintura, escultura e arquitetura da cidade de Milão. Neste guia, algumas das obras

pictóricas de Giovanni Paolo Lomazzo são citadas: o afresco representando a passagem

veterotestamentária de Melquisedeque e Abrãao, pintado na fachada do refeitório (hoje

biblioteca) da igreja de Santa Maria della Passione, próxima à Porta Orientale, atual Porta

Venezia; Na região da Porta Romana, no convento de Santa Maria della Pace, a cópia do

cenáculo vinciano, executada por Lomazzo no início de sua carreira, aos vinte e dois anos, de

acordo com Bianconi. Em relação a essa obra, Bianconi critica a desproporção dos pés,

"(...) e aí fez pés tão gigantescos que dão medo. Quem jamais haveria de dizer, vendo tanta falta de consideração, que o mesmo homem que ficou cego elaboraria preceitos sobre pintura, e indicaria as mais minutas e exatas proporções do corpo humano a serem seguidas" 213.

Na igreja de S. Barnaba, também na região da Porta Romana, o autor cita uma tela tardia de

Lomazzo representando São Bartolomeu, S. Francisco e S. Bernardino214. Seu conjunto

pictórico da Capela Foppa, na igreja agostiniana de S. Marco, é bastante louvado por

Bianconi, que apenas critica a composição da Glória Angélica da abside, demasiada confusa

para sua sensibilidade neoclássica,

"No altar da primeira à direita, da antiquíssima família Goppa, há uma das mais belaz e magistrais pinturas de Gio. Paolo Lomazzo, representando a Madonna sedente col Bambino no colo, o qual entrega as chaves a S. Pedro, estando presentes S. Paolo e S. Agostino, e com dois putti acima deles".

"(...)Ricas e variadas são as composições, não poucas belas figuras, e muitas cabeças de grandioso caráter, e tratadas por um franco mestre: mas alguma parte, como a ábside mencionada, é confusa e embaraçada por tantos anjos mostrados em escorço que parece um monte disforme de rãs colocadas em contrafação perspectiva". (p. 381)

212 Giuseppe Bossi (op. cit., loc. cit.) também confirma não ter notícias desta obra, lançando a hipótese de que talvez Morigia tenha se enganado e que o erro tenha sido transmitido através de Picinelli. Robert Klein (op. cit., vol II, p. 473) afirma que tal notícia foi uma falsa assertiva transmitida pelos biógrafos. 213 BIANCONI. Guida di Milano. Milano, 1787, p. 111. 214 Provavelmente se trata do retábulo "S. Francesco che riceve le stimmate" na igreja de S. Barnaba. V. fig. 14.

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Para além do Lomazzo pintor, Bianconi utiliza as informações sobre obras e artistas presentes

em seus tratados, confirmando ou negando sua veracidade diante de novas informações ou do

confronto direto com as obras, analisando-as empiricamente. Este uso dos escritos

lomazzianos, somente como fonte para informações históricas, pode ser reforçado através de

um comentário do autor

" De quem [Lomazzo] o raro tratado de pintura abstrato e aristotélico serà sempre estimável pelas tantas pitorescas e espalhadas notícias" 215.

O abade Luigi Lanzi, para compor sua Storia pittorica dell'Italia (1792-96),

utiliza as obras de Lomazzo entre suas principais fontes, como ele mesmo afirma no prefácio,

e declara que, apesar de ser quase vinte e cinco anos mais jovem que Vasari, Lomazzo era

mais douto e escrevia com melhor crítica, além de corrigir e complementar as questões sobre

a Lombardia, pouco conhecidas por Vasari216. O abade jesuíta afirma o caráter de compêndio

do Idea, publicado seis anos depois do Trattato. Sobre a cegueira de Lomazzo, Lanzi

concorda com Bianconi e situa o ocorrido por volta de 1571. No que diz respeito ao gosto

pela Astrologia, Lanzi condena esta inclinação de Lomazzo, mas considera a natureza curiosa

e filosófica do nosso autor, interessado por todo tipo de conhecimento. Este "defeito" de sua

obra é mais grave, como observa Lanzi, em seu compêndio, isto é, no Idea,

"Enquanto ensina uma arte que está no bem desenhar e colorir, voa de planeta em planeta. A cada um dos sete pintores que considera principais, atribui um corpo celeste, e, então, um metal correspondente; e a esta mal concebida ideia conecta, pois, outras ainda mais extravagantes 217".

Contudo, este conteúdo é mais disperso e pouco significativo no Trattato, o que alivia o

"problema". No entanto, de acordo com Lanzi, a característica prolixa dos textos de Lomazzo

somada à sua teoria astrológica e à falta de um índice exato, dificultam a compreensão de suas

obras, que acabaram sendo ignoradas. O abade, então, defende a necessidade da organização

de uma nova edição dos textos teóricos de Lomazzo, selecionando apenas os conteúdos úteis,

que não dizem respeito apenas a notícias históricas, mas também apresentam noções teóricas

substanciais ligadas às escolas de Gaudenzio e de Leonardo, observações sobre as práticas dos

grandes mestres e muita erudição acerca de mitologia, história e cultura antiga.

"Nenhuma outra [obra] do meu conhecimento é mais propícia a fecundar uma mente jovem de belas ideias pitorescas para todos os temas; nenhuma outra afeiçoa-lhes melhor e os instrui a tratar argumentos sobre

215 BIANCONI. op. cit., p. 163. 216 LANZI, L. Storia Pittorica dell'Italia. Bassano, 1795-96, p. 95 (Della incisione in Rame) 217 LANZI, L. Storia Pittorica dell'Italia. 5a.ed., Firenze: Guglielmo Piatti, 1834, vol. 4, p. 177-178

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coisas antigas; nenhuma outra melhor os dispõe a conhecer o coração humano, e quais afetos aí habitam, e com quais sinais se manifestam no exterior, e, com eles, qual a cor transferida para a paisagem, e uma diferente em outra, e quais são os limintes de sua conveniência; nenhuma outra, em suma, em um só volume encerra tão úteis preceitos para formar um artífice reflexivo e racional, formado segundo o espírito de Leonardo, que foi o fundador da escola milanesa, e, se me permitem dizer, também da filosofia pictórica, que reside completamente no pensar profundamente em cada parte da profissão 218".

Um dos preceitos mais fundamentais da teoria lomazziana, que Lanzi identifica

também em sua produção pictórica, sendo uma máxima da escola de Gaudenzio Ferrari,

reside na questão da originalidade compositiva e na oposição aos pintores que copiam os

outros. Lanzi elogia a vivacidade das cores de Lomazzo, a originalidade compositiva, a

variedade de atitudes e o capricho nos panejamentos ao falar do afresco de Santa Maria della

Passione, mas reprova a confusão compositiva da obra do refeitório de S. Agostino em

Piacenza (Cena Quadragesimale), com traços de um naturalismo indecoroso, "uma mistura de

sacro e ridícolo, de escritura e taverna, que não combinam219".

Em 1810, o pintor e acadêmico Giuseppe Bossi publica seu estudo sobre o

reputado cenáculo vinciano, Del Cenacolo di Leonardo da Vinci, como parte de sua pesquisa

em torno da obra de Leonardo para a elaboração de uma cópia, exposta por Bossi em 1809.

Seu estudo se divide em quatro seções: a primeira organiza a Fortuna Crítica do cenáculo

(1498 - 1810), a segunda se trata de uma descrição e análise da obra, a terceira, sobre as

cópias precedentes (1510 - 1675) e a quarta, sobre aspectos técnicos da obra. Lomazzo é

abordado pelo autor no âmbito da Fortuna Crítica, já que o cenáculo é citado várias vezes em

suas obras de teoria artística, e na terceira seção, sobre as cópias, tendo em vista que Lomazzo

foi um dos primeiros a executar uma cópia do afresco de Leonardo.

Sobre o Trattato dell'arte, Bossi o descreve como "o mais completo tratado sobre

a pintura que nos chegou ao conhecimento". Logo no frontispício, há um desenho retratando

Leonardo e, abaixo, uma descrição da fisionomia do mestre retirada do Idea del Tempio della

Pittura, "Leonardo ebbe la faccia con i capelli lunghi e con le ciglia e con la barba tanto

lunga che egli pareva la vera nobiltà dello studio quale fu altronde il druido Ermes o l'antico

Prometeo". Tanto o Trattato como o Idea foram utilizados como fontes para a discussão

acerca do afresco de Leonardo, sobretudo no que diz respeito ao seu estado de conservação.

Contudo, Bossi não deixa de fazer ressalvas àqueles que desejam tomar contato com a obra de

218 Ibidem., p.178. 219 Ibidem, p. 180. Cfr. cap. 1 (seção 1), pp. 41-2.

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Lomazzo, afirmando que é preciso ter cuidado ao diferenciar os bons argumentos históricos e

poéticos dos ruins, pois muitas vezes o autor milanês se "abandona a loucuras astrológicas,

que são muito mais modos de exprimir-se do que opiniões científicas".

Ainda, para lidar com o texto lomazziano, o autor recomenda paciência e

discernimento "para penetrar dentro da mente do autor" e alerta sobre as dificuldades

incutidas também pelos erros tipográficos, que acrescem a complexidade das obras. Então,

Bossi desencoraja os leitores "de menor visão, que não conhecem o ouro a não ser quando é

depurado de toda imperfeição", que pretendem ler os tratados de Lomazzo, deixando claro

que somente os que possuem um intelecto mais aguçado são capazes de compreender e tirar

proveito do obscuro teórico milanês. Após estas advertências a seus leitores, que eram, em sua

maioria, os pintores da Accademia di Belle Arti di Brera, e, portanto, nem todos eruditos,

Giuseppe Bossi segue analisando os relatos e juízos críticos que Lomazzo faz sobre o

Cenacolo (capítulo nove, livro I do Trattato; Também, no cap. dois, livro II; cap. cinco, livro

III; cap. dois, livro VII. No Idea, cap. treze). Ao falar do Idea, Bossi afirma que, apesar de ter

sido publicado seis anos depois do tratado, parece que foi composto antes dele.

Quando Bossi passa para a discussão do estado de conservação do Cenáculo na

época de Lomazzo, o autor faz algumas considerações cronológicas: tanto o Trattato quanto o

Idea foram compostos nos anos juventude de Lomazzo. Isto pode ser confirmado pelo próprio

autor na dedicatória do Idea del Tempio ao rei Felipe II, e que, não sendo permitido mentir a

um soberano "sem ignomínia", provavelmente esta declaração de Lomazzo é verdadeira. Para

além disso, partindo da mesma dedicatória, o autor confirma a precedência do Idea ao

Trattato e o seu caráter de fundamento teórico e não de compêndio, "o germe, por assim

dizer, de uma obra maior, que resultaria num tratado completo".

De acordo com as conclusões do capítulo anterior desta dissertação, pode-se

constantar que as opiniões de Bossi eram bastante precisas. Para Bossi, o Trattato é a obra

mais importante, mais substancial de Lomazzo, fruto de anos de trabalho, aprendizado e

congregação de todo o conhecimento alcançado pelo pintor e teórico milanês, processo que

ocorreu antes de sua cegueira, "na flor da idade e no melhor momento para se colocar em

práticas suas especulações". Diante disso, o autor defende que as opiniões e informações

sobre o Cenáculo presentes nas obras de Lomazzo são contemporâneas ou mesmo anteriores a

Vasari.

Ainda argumentando sobre a cronologia das obras de Lomazzo, Giuseppe Bossi

nos fornece uma importante notícia, referente ao manuscrito Gli sogni e Ragionamenti; O

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autor afirma que tomou contato com o manuscrito, o que lhe serviu como prova da atividade

poético-literária de Lomazzo em seus anos imaturos, anos de "maior furor poético", antes

mesmo de ser líder da Accademia della Vale di Blenio. O autor verifica que Lomazzo fala de

Michelangelo vivo, e, assim, a obra deveria ter sido escrita antes de 1563-64. Para Bossi, a

prova fornecida pelo manuscrito de Lomazzo, junto a afirmações sobre sua atividade poético-

literária, iniciada aos dezesseis anos, nos versos do Rime, apontam para uma hipótese de

datação mais prematura das informações sobre o afresco de Leonardo presentes no Trattato e

no Idea, isto é, por volta de 1560220.

Carlo Casati, em 1884, publicou em Milão, o "Leone Leoni d'Arezzo scultore e

Giovan Paolo Lomazzo pittore milanese". Em relação a Lomazzo, o autor afirma que seu

intuito era, se não expor por completo todas as particularidades biográficas, ao menos

apresentar "um quadro verídico de seus méritos". Casati inicia o texto de forma pungente,

declarando o quase completo esquecimento no qual Lomazzo foi imerso pela posteridade

"É opinião universal que a Fortuna cesse de exercitar seu império sobre os homens, quando esses morrem; O que, estreitamente falando, é verdade, pois o nome, apesar de claro, de alguns personagens se aniquilam e sucumbem em um completo esquecimento, ou, às vezes, o faz sobrevoar ao sepulcro, e o envia através das bocas dos posteriores esplêndido, honrado e ilustre. Entre os que, depois da morte, provaram o favor desta Deusa caprichosa, não consta certamente o exímio pintor milanês Gian Paolo Lomazzo".

Contudo, o autor reitera que o pintor e teórico milanês não foi inteiramente

esquecido, e cita as obras de Morigia, Ghilini, Picinelli, Argelati e Tiraboschi, nas quais

Lomazzo foi lembrado e louvado por suas obras. Porém, não houve quem se ocupasse com

mais atenção da vida do pintor, o que justifica a empreitada de Casati.

Carlo Casati, assim como os demais autores, serve-se dos versos autobiográficos

do Rime para traçar a biografia do artista: data de nascimento, filiação e parentesco. O autor

aponta para um laço familiar entre Lomazzo e Gaudenzio Ferrari - a irmã de Gaudenzio,

Francesca, era mãe de Giovanni Paolo Lomazzo 221. Repetem-se, então, as informações

recorrentes sobre sua biografia - a inclinação precoce para o desenho; o tirocínio no ateliê de

Gaudenzio (notícia equivocada) e, depois da morte do mestre, seu período sob tutela de Giov.

Battista della Cerva; o intelecto curioso pelas ciências e pelo estudo em geral; a agilidade no

aprendizado e a criatividade para realizar obras de vários gêneros e com diversas técnicas

220 Sobre a datação do manuscrito, cfr. capítulo 2 (seção 1.2 A). 221 Notícia apócrifa de acordo com Klein. Cfr. KLEIN. op. cit., vol. II, p. 459.

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desde jovem; a numerosa produção de retratos; a nomeação como abade da Accademia della

Vale di Blenio; sua cegueira precoce, aos trinta e dois anos, prevista pelos astrólogos Cardano

e Vicenza; a forma resignada de lidar com a perda da visão; suas boas relações com homens

ilustres de Milão, como Pirro Visconti - . Também fala de sua produção pictórica, analisando

detalhadamente seus afrescos e, assim como os autores anteriores, Lanzi, Bossi e Bianconi,

critica seus exageros e confusões compositivas em contraste com sua teoria artística

equilibrada e defensora da legibilidade. Sobre a data e a causa mortis, o autor apresenta um

trecho do documento (equivocado) do Necrologio del Magistrato della Sanità de Milão

"Porta Cumana, Parochia Sancti Simpliciani — 1600 — die XIII februarii. Paulus Lomatius, annorum 60 vel circa, in quinta, ex febre et catharro, sine peste suspicione, juditio Augustini Scaparri, chirurgi Sanitatis" 222

Casati, assim como Bossi, aponta para a atividade poética de Lomazzo em seus

anos de juventude (compôs os Grotteschi entre dezesseis e vinte anos) e situa a escrita de suas

obras teóricas no início da década de 1560, aos vinte e dois anos - o Trattato dell'arte della

pittura e o Idea del Tempio della pittura -, os quais aperfeiçoa mais tarde ("que na velhice

reelaborou"). Uma afirmação interessante, que mais tarde é ratificada pela crítica da década

de 1960 e 1970, é sobre o impacto da obra de Vasari na formação do pensamento de

Lomazzo, que é estimulado pelo pintor aretino a empreender uma viagem para ver as obras

dos grandes mestres de seu tempo e dos séculos anteriores. Casati acertadamente data este

período de viagem antes da morte de Michelangelo, sendo, portanto, o ano de 1564 o ante

quem 223.

O autor cita as considerações que Bossi e Lanzi fazem sobre a qualidade do

conteúdo e a completude do Trattato dell'arte della pittura, cuja leitura é imprescindível aos

professores e estudantes de arte. Ainda, traz algumas inéditas informações sobre os escritos

teóricos de Lomazzo: na nota de rodapé, comenta sobre a existência de uma tradução francesa

do primeiro livro do Trattato feita por Pader, publicada em Tolouse em 1649, e sobre a

tradução inglesa de Richard Haydocke, publicada em Oxford em 1598. Também, fala da

inserção de um "copioso índice alfabético" na edição romana de 1844 feita por Saverio Del-

Monte. Ademais, Casati destaca a teoria da expressão das paixões das almas e seus efeitos no

corpo, tema tratado com delicadeza e sensibilidade pelo pintor milanês.

222 Este documento não se refere ao Lomazzo pintor e teórico, que morreu em 1592. Cfr. Capítulo 1 (seção 1), pp. 52-3. 223 Sobre a viagem empreendida por Lomazzo, Cap. 1 (seção 1).

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Sobre o Idea del Tempio, o autor afirma que foi composto concomitantemente aos

primeiros cinco livros do Trattato, em torno de 1560, e retoma a opinião de Lanzi sobre o

defeito teórico de Lomazzo, inclinado à obscuridade e à astrologia, mas importante por conter

notícias históricas e informações substanciais. Por fim, Casati termina de listar os escritos

lomazzianos (Della forma delle muse, 1591; Rime, 1587; Rabisch,1580) e comenta a

descoberta que Bossi faz do manuscrito "Gli sogni e ragionamenti".

3. A crítica contemporânea

3.1. Lomazzo, a literatura artística e a primeira aproximação com Marsilio Ficino.

No século XX, o primeiro a realizar um substancial exercício de compreensão do

Idea del Tempio foi o grande representante da segunda geração da escola de Viena e discípulo

de Franz Wickhoff, Julius von Schlosser, ligado a uma abordagem filológica dos processos

históricos. Schlosser publicou a obra intitulada Die Kunstliteratur em 1924. Foi justamente

Schlosser que atribuiu a alcunha de "bíblia do Maneirismo" ao colossal e enciclopédico

Trattato dell'arte della pittura, scoltura et architettura.

Schlosser analisa o período em questão, no qual a reflexão sobre a atividade

artística torna-se comum entre os próprios artistas, reunidos em academias aos moldes das

academias literárias de natureza retórica e exercício filológico, e o que se observa é o

surgimento do ideal do artista virtuoso, aquele que é capaz de demonstrar, tanto na prática

quanto por meio da exposição teórica, os princípios da arte. No Idea, o próprio Lomazzo,

possivelmente amparando-se em Vitrúvio (I, 1), recém editado e traduzido por Cesariano

(publicado em 1521 por Gottardo Pontio, o mesmo editor de Lomazzo) e por Daniele Barbaro

(publicado em 1556 e, depois, em 1567 em Veneza), incansavelmente afirma que o excelente

pintor deve ser versado em ambas teoria e prática, caso contrário, jamais atingiria o ápice da

atividade artística.

Este momento da segunda metade do século XVI caracteriza-se pelo princípio da

didática na arte, pelo ensino teórico e prático, pela necessidade de reunir e organizar as

diversas experiências artísticas, e constituir um corpus teórico que não apenas abarcasse o

máximo de possibilidades de se realizar uma bela obra, mas também fundamentasse

filosoficamente o processo de concepção artística e justificasse a importância e o status das

artes visuais diante das discussões levantadas pelo acontecimento da Reforma-

Contrarreforma. A questão da utilidade da pintura, fundamentada em Aristóteles e Cícero,

discutida por toda a tradição humanista desde Alberti e abordada por Baldassare Castiglione -

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Il Cortegiano-, a sua aproximação da poesia - o ut pictura poesis horaciano -, e o diálogo com

a crítica literária e com a retórica latina estariam cada vez mais presentes nas obras dos

teóricos da pintura a partir da década de 1550. É neste contexto que Schlosser situa o nosso

autor.

Além disto, a noção de crise está presente nos textos do período. Tanto Vasari

quanto Armenini demonstram uma consciência do declínio das artes e transformam suas obras

em uma espécie de testamento-inventário do glorioso momento do ápice artístico alcançado

pelos grandes mestres da primeira metade do Cinquecento. Schlosser, no entanto, afirma que

Lomazzo, apesar de compartilhar com seus contemporâneos a ideia da decadência das artes,

não desconsidera a possibilidade de resgatar os princípios elevados dos grandes mestres e

transmiti-los às novas gerações, aconselhando os pintores incipientes a buscarem formas de

expressão genuínas, sem contudo desviar o olhar dos grandes exemplos do passado e da

tradição clássica.

A seguir, reduzindo o espectro da análise, Schlosser o situa no contexto da Itália

setentrional, compartilhando com autores como Paolo Pino, Lodovico Dolce e Pietro Aretino,

ideias comuns que circulavam no ambiente literário vêneto-lombardo, como por exemplo a

descentralização da figura de Michelangelo como o mais alto modelo de excelência e o

reconhecimento da diversidade de expressões artísticas. Schlosser chega até a vislumbrar um

programa eclético no diálogo de Paolo Pino, quando Lauro sugere a união de Tiziano e

Michelangelo no mesmo corpo, formando o "Deus da Pintura", unindo a excelência do

desenho à excelência do colorido. Longe de uma defesa do ecletismo como supõe Schlosser, a

crítica posterior a ele, como veremos mais adiante, irá afirmar que este argumento se trata

mais de um artifício didático e retórico, utilizado por estes autores para reforçar o princípio da

pluralidade da expressão artística. Ainda, ao meu ver, revela um olhar crítico sobre as obras

dos pintores, capaz de analisar e relativizar o fazer artístico de cada um, reconhecendo suas

fraquezas e suas qualidades. Para estes autores, a ideia do "Deus da Pintura" ou do pintor

universal não é outra coisa senão uma hipótese ideal, impraticável, útil para a reflexão teórica,

porém não aplicável à realidade prática.

Seguindo para a análise propriamente do Idea del Tempio, Schlosser reconhece

nele um compêndio dos conteúdos do Trattato. Identifica suas excentricidades, considerando-

as típicas de uma erudição barroca afeita a alegorias e a uma linguagem metafórica, como a

repetição do número sete, um número místico e cabalístico, e a alegoria do templo da pintura.

Ainda, após descrever a estrutura do Templo, identifica nos vícios representados nos pedestais

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dos governantes-cariátides um motivo da velha iconografia cristã pautada na ideia do triunfo

da virtude sobre seus correspondentes vícios, relacionada à Psychomachia de Prudêncio, e

que, contudo, não deixa de revelar uma tentativa de caráter barroco de fazer uma psicologia

artística. Finalmente, Schlosser destaca a importância do texto de Lomazzo como fonte de

informações históricas valiosas.

No mesmo ano, o célebre discípulo de Warburg, Erwin Panofsky, publica seu

Idea: Ein Beitrag zur Begriffsgeschichte der alteren Kunsttheorie , uma obra em que discute

como o princípio metafísico da "Ideia" (eidos) de Platão, que originalmente afastava de seu

sistema filosófico as artes plásticas (consideradas ou miméticas, e, portanto, cópias inferiores

das ideias, ou simulacros, distorcendo a realidade através de ilusões ópticas, e, deste modo,

perigosas à compreensão da verdade), gradativamente é incorporado no pensamento em torno

da obra de arte e da reflexão sobre o processo de concepção artística, adquirindo uma nova

configuração "antiplatônica", já que a Ideia, a partir de Cícero, é colocada no espírito do

artista, e, assim, rebaixada de seu lugar metafísico, o que paralelamente também altera a

essência da arte (também antiplatônica) e coloca em questão o objeto de sua representação.

No período denominado Renascimento, Panofsky situa o surgimento da teoria da

arte, que se constitui como um campo de reflexão específico no século XV. Em um primeiro

momento, estabelece-se um novo paradigma epistemológico, isto é, o distanciamento do

sujeito e do objeto, operado matematicamente através da perspectiva linear. Aqui, a

preocupação da teoria artística gira em torno de questões de ordem prática - das técnicas, dos

cálculos de proporção e simetria - e da apologia das artes plásticas a fim de resgatar seu antigo

status entre as artes liberais. Ainda, uma nova questão, estranha ao pensamento medieval, é

colocada, a da arte como rival da natureza. Conectada à Antiguidade Clássica através dos

célebres matemáticos, arquitetos, oradores e retóricos, como Cícero, Euclides, Vitrúvio e

Quintiliano, da teoria platônica apenas conservou o princípio da "Ideia", mas, no entanto, sem

nenhuma preocupação mais atenta com qualquer questão de ordem abstrata. Pelo contrário,

Panofsky analisa seu uso em Alberti, no qual a Ideia aparece como produto da experiência do

mundo sensível, um conceito formado no espírito do artista a partir do estudo das formas da

natureza.

"(...) a doutrina das Ideias, modificada pelo Renascimento, justamente havia contribuído para resolver para ele o problema do sujeito e do objeto antes mesmo que estivesse sido explicitamente colocado: a "Idea", que o artista produz em seu espírito e manifesta por seu desenho, não provém dele, mas sim da natureza por intermédio de um "julgamento universal", o que significa que ela se acha prefigurada e como que em

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potência nos objetos, mesmo que seja conhecida e realizada em ato só pelo sujeito" 224

Não havia, portanto, uma oposição ou hostilidade entre o espírito e natureza, o

sujeito e o objeto, o que permitia aos artistas, e Panofsky cita como exemplo Rafael e Guido

Reni, a afirmarem que na ausência de modelos belos da natureza, o artista poderia se utilizar

de uma "certa ideia" (reciprocidade entre natureza e ideia), muito distante da forma como a

Antiguidade utilizava o conceito de ideia, "no sentido de independência entre o espírito e a

natureza". Não causa estranhamento que o Neoplatonismo revivido nos círculos intelectuais

florentinos no período não tenha tido uma repercussão significante na teoria da arte até este

momento, já que estava preocupada em estabelecer regras universais e fundamentos

científicos, e não em lidar com questões subjetivas ligadas ao gosto ou à expressão do artista,

ou mesmo tinha qualquer interesse em especulações teoréticas.

Em seguida, Panofsky observa que, em meados do século XVI, a Ideia passa a ser

identificada com a própria imaginação (faculdade de representação), mais do que com o

conteúdo da representação. Para além disso, o Renascimento elabora o sentido de Ideia como

uma realidade superior, não de maneira metafísica, já que ela provém das leis universais,

observadas pelo espírito do homem na natureza, mas como um aperfeiçoamento do natural, o

que viria a ser elaborado nos escritos de Alberti, Leonardo e Dürer. Desta maneira, engendra-

se o primeiro substrato para, no século seguinte, pensar-se a questão do gênio artístico. A

teoria das Ideias neste período, portanto, sem que se percebesse de forma clara, colocava o

problema da existência de leis transcendentais (através da matemática) que limitavam a

liberdade artística, questão que só seria alvo de reflexão teórica em um momento seguinte.

Passando ao período denominado Maneirismo, Panofsky delineia a progressiva

percepção das oposições entre gênio e regra (espírito e natureza) que já estavam presentes no

momento anterior, mas que ainda não haviam sido claramente divisadas. De um lado, a crença

no didatismo, o academicismo, a multiplicação dos tratados e um esforço em direção à

organização da prática artística dentro de todas as suas possibilidades. De outro lado, a

oposição às leis de proporção da figura estática em função do movimento, à organização do

espaço através da matemática, às regras e aos cânones clássicos, ao equilíbrio da composição.

Um abismo entre o espírito do artista e a realidade sensível se abre, e a teoria da arte, que até

o momento teve como objetivo as questões práticas em torno do fazer artístico, doravante

224 PANOFSKY. op. cit., p.63.

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busca afirmar sua legitimidade teórica, recorrendo à metafísica para validar as representações

no espírito do artista para além de uma simples subjetividade.

É neste momento em que Panofsky situa Lomazzo, primeiramente com o seu

Trattato della pittura, publicado em 1584, de orientação aristotélico-escolática, encontrando

em Deus a fonte da inspiração divina e na "enformação" da matéria dócil, a possibilidade de

se realizar uma obra de arte a partir do conceito ou desenho interno do artista, e, em um

segundo momento, com o Idea del Tempio della pittura, alinhado à teoria Neoplatônica de

Marsilio Ficino, que surgia como resposta ao questionamento sobre a possibilidade do artista

em alcançar a beleza supraterrestre e divina. O autor classifica as excentricidades de Lomazzo

não como Schlosser, que apontava para tendências proto-barrocas, mas como um modo

tipicamente maneirista de lidar com correntes especulativas como o próprio Neoplatonismo, a

Astrologia e a Cosmologia. A teoria das Ideias, por sua vez, contribui para a consideração

especulativa do processo de concepção artística:

"os raios divinos iluminam primeiro a consciência dos anjos, onde provocam a visão das esferas celestes consideradas como puros modelos ou puras Ideias. Refletem-se a seguir na alma humana, onde fazem nascer a razão e pensamentos, e aparecem finalmente, sob a forma da imagem e da figura, no mundo dos corpos"225.

Ao final do capítulo, Panofsky compara o capítulo vinte e seis do Idea com a

teoria do belo exposta no comentário ao banquete de Platão de Marsilio Ficino (Sopra lo

amore o ver' Convito di Platone). No apêndice, coloca lado a lado o texto de Ficino e de

Lomazzo, comparando trecho por trecho ambos os textos e demonstrando quais as passagens

que praticamente foram transcritas por Lomazzo:

"Lomazzo, ao transcrever os capítulos em questão, procedeu diversos cortes (...), fez muitos acréscimos ao texto e apresentou o que deste conservara segundo uma ordem em parte diferente" 226.

3.2 Lomazzo como um teórico conservador.

Entre 1928 e 1934, uma série de artigos intitulada "Quesiti Caravaggeschi" foi

publicada por Roberto Longhi, onde o célebre historiador da arte discutia um dos temas ao

qual havia dedicado grande parte de seu interesse acadêmico: "il Caravaggio e i

caravaggeschi". Longhi busca as origens do naturalismo caravaggesco nas escolas lombardas

de Milão, Cremona e Bréscia, e identifica tendências proto-caravaggescas nas maneiras de

225 PANOFSKY. op. cit., p. 94. 226 Ibidem. p. 254, n. 305.

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expressão da luz e da cor dessas escolas, como nas obras de Moretto ("Conversão de S.

Paolo") e nas experimentações do ilusionismo luminoso de Antonio e Vincenzo Campi, e na

atitude empírica em relação à representação do espaço perspectivo de Vincenzo Foppa,

considerado o grande mestre do Quattrocento lombardo.

Entre os pintores da escola de Cremona, identifica em Antonio e Vincenzo Campi

a convergência das inclinações "grosseiras" bresciana e bergamascas, os quais poderiam ter

sido, muito provavelmente, os canais entre essas fontes, Simone Peterzano e, em um segundo

momento, o jovem Caravaggio.

Milão, entre os anos 1570-90, era um ambiente de aquecido debate e intensa

disputa no campo artístico, importante centro político e cultural na Itália setentrional,

atraindo, em vista disso, um enorme fluxo de artistas e artesãos estrangeiros, vindos sobretudo

de cidades próximas, sendo Cremona um dos pontos de vazão desses artífices227. Esta

profusão de artistas resulta em uma atmosfera de competição e rivalidade acirradas, gerando

discussões acaloradas, cada qual procurando legitimar e defender seu espaço228. É neste

contexto em que se insere a crítica de Lomazzo, cujos ataques se dirigiam sobretudo aos

representantes da escola de Cremona.

Entretanto, como bem ressalta Longhi, para além de questões da realidade

material e de um ambiente altamente competitivo, existe um evidente contraste estético entre

as escolas locais milanesas e os pintores cremoneses, principalmente no que se refere às

experimentações luminosas dos Campi (Lomazzo dirige críticas à "Santa Caterina in carcere"

de Antonio Campi nas Rime e aos afrescos de Giulio Campi em "S. Paolo Converso" no

Trattato). Ainda, Longhi descreve Lomazzo caracterizando-o como um personagem

excêntrico, superficial e dotado de certo pedantismo, reflexo de um período de transição que

reúne diversas tendências produzindo caprichos e bizarrices:

"Uma espécie de feiticeiro indulgente, louco por metafísica e astrologia estética, em cujos livros, portanto, espelha-se bem o ambiente do tardo-maneirismo na Lombardia, com as suas doses de arcaísmos quattrocentescos, misturadas ao intelectualismo leonardesco e clássico, às mais curiosas formas de simbolismo, e mesmo, à idolatria pelos extremos caprichos técnicos de um Arcimboldo e de uma Caterina Cantona " 229.

227 Cfr. cap I (seção 2). 228 Um exemplo de uma famosa disputa no período foi a que se deu em torno da comissão da decoração pictórica das persianas do Duomo de Milão, debate que envolveu diversos artistas locais e forasteiros, e terminou com a vitória do milanês Giuseppe Meda contra o cremonês Bernardino Campi. Cfr. capítulo I (seção 2). 229 LONGHI, R (ed. das obras completas). Me pinxit" e quesiti Caravaggeschi, 1928 - 1934. 1968, p. 134.

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Defensor de um gosto clássico, cujos modelos são os grandes mestres do

Renascimento como Leonardo, Michelangelo, e, principalmente, Rafael, Lomazzo foi

considerado por Longhi um grande rival do naturalismo lombardo que culminaria em

Caravaggio. Contudo, Longhi ressaltou a sensibilidade de Lomazzo à questão da sombra e da

luz tipicamente lombarda, capaz de considerar este princípio como algo autônomo dentro da

obra de arte. A concepção da luz servindo ao artifício dramático, não mais submetida ao

homem, subvertia toda a noção antropocêntrica construída pelo Renascimento.

A partir da crítica de Roberto Longhi, mesmo que não tenham sido feitas partindo

propriamente da análise dos seus tratados, Lomazzo seria visto como um conservador, cuja

teoria artística constitui-se como uma "exaustiva repetição maneirista de princípios estéticos

ultrapassados".

3.3. Os juízos críticos em Lomazzo.

Ainda, no ano de 1928, o crítico de arte milanês, Guido Lodovico Luzzatto,

publicou o artigo "Per il quarto centenario dalla morte di Alberto Dürer" na revista L'arte, no

qual discorria sobre o juízo crítico de Lomazzo em relação ao célebre pintor alemão,

mencionado por Lomazzo principalmente por sua atividade como gravurista (o que, por sinal,

não era uma atividade muito apreciada pelo teórico milanês), e louvado sobretudo por

características referentes à composição, a sexta parte da pintura na teoria de Lomazzo, ou seja,

pela inventividade, variedade e fantasia.

Para Luzzatto, essas características identificadas em Dürer foram destacadas por

Lomazzo devido ao papel central da composição em sua teoria artística, fundamentada no

princípio de ut pictura poesis horaciano:

"Para compreender o juízo crítico de Lomazzo, deve-se observar até que ponto as expressões da arte em poesia e pintura aparecem nele como substâncias da mesma natureza” 230.

Para além da invenção compositiva, Dürer foi exaltado por sua obra de teoria, seu

tratado das proporções publicado postumamente em Nurembergue em 1528. Contudo, ao meu

ver, o ponto mais significante da visão de Luzzatto reside na capacidade de Lomazzo em

saber destacar qualidades de um artista e inseri-lo no repertório de estilos de seu tempo,

apesar de seu gosto pessoal, um modelo para os críticos de arte contemporâneos, como

destaca Luzzatto:

230 LUZZATO. Per il quarto centenario dalla morte di Alberto Dürer. L'arte, Milão, no 31, pp. 49-57, 1928, p. 52.

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"(...) refratário por educação e sensibilidades à dureza superficial da forma, à falta de agradabilidade e graça na visão, Lomazzo soube sair do próprio gosto, esforçar-se e penetrar, para longe do mundo clássico, propriamente nas obras mais violentamente pessoais do artista de Nurembergue. Isto confere mérico singular ao seu intelecto ágil e agudo; que é malgrado a comprovada fortuna universal de Dürer na Itália do século XVI, o juízo de Lomazzo exprime alguma coisa a mais e revela uma independência crítica tal a ponto de servir de exemplo a certos críticos da mesma Itália contemporanea" 231.

Assim, a despeito de sua tendência ao colorido, à maciez da pintura e à

graciosidade compositiva, influência do ambiente lombardo do qual era parte, constantemente

exposto a artistas como Correggio, Parmigianino, Aurelio Luini e Gaudenzio Ferrari (mestre

de sua escola), e, portanto, distante da forma dura de um artista como Dürer, Lomazzo não

deixou de contabilizá-lo em sua crítica e de analisar as obras do mestre alemão, mesmo que

para isso tenha utilizado seu próprio metro, destacando as características que lhe eram

admiráveis, isto é, a minúcia, o detalhismo, a variedade, a monstruosidade, a fantasia e a

inventividade compositiva.

Maria Luisa Gengaro, em um artigo de 1932, “La teoria dell’arte di Giovanni

Paolo Lomazzo”, publicado no Archivio Storico Lombardo, partindo de um ensaio de Lionello

Venturi de 1919, “La critica e l’arte di Leonardo da Vinci”, no qual o papel da crítica de

Lomazzo para a compreensão de Leonardo foi revalorizado, buscou ressaltar a importância da

crítica lomazziana também para questões gerais da arte, como, por exemplo, o conceito de

espacialidade, com impacto não apenas local, pertinente à escola lombarda e vêneta do

período.

De acordo com Lionello Venturi, Lomazzo foi capaz de compreender a

importância que as técnicas de iluminação possuíam para a solução dos problemas espaciais

através de sua sensibilidade em relação à arte de Leonardo. Deste modo, pensando no papel

da luz para expressar espacialidade, Gengaro aproxima o pensamento de Lomazzo das

preocupações da arte moderna em torno da mesma questão, analisando a reflexão de Carlo

Carrá sobre o valor tonal das cores e a criação de espacialidade na obra.

Na Storia della Critica d’Arte, publicada pela primeira vez nos Estados Unidos

em 1936 (History of Art Criticism), cuja edição italiana, ampliada e reeditada, foi publicada

no pós guerra, entre 1945-48, na coleção Giustizia e Libertà, Lionello Venturi classifica a

obra teórica de Lomazzo dentro do âmbito da literatura artística tipicamente maneirista, que,

ao contrário de Alberti e Leonardo, lidava abstratamente com os temas em torno do objeto de

231 Ibidem. p. 57.

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arte, mesmo quando se propunha como manual para aplicação prática, como é o caso do

Trattato, exemplificando os pontos de sua teoria com obras e artistas a partir de seu próprio

gosto pessoal.

Sua teoria constituiu o último pilar de sustentação para o alicerce teórico dos

escritores dos séculos XVII e XVIII: estabeleceu a doutrina da diversidade de maneiras do

artista unida à vida dos artistas e à doutrina da interpretação da natureza, instituídas pelos

teóricos da arte predecessores. Ainda, Venturi afirma que Lomazzo pode ser considerado um

precursor da ciência artística alemã moderna, pois sua preocupação diz respeito à

sistematização abstrata dos elementos que constituem o fazer artístico, voltada para a

especulação filosófica e distinguindo a arte da teoria da arte.

Ao olhar para o sistema teórico lomazziano, Venturi enxerga os sintomas deste

período de transição, no qual ocorre um afastamento dos problemas concretos da obra de arte

e uma tendência à teorização abstrata e especulativa, inclusive quando o autor se esforça para

definir as partes da pintura, que acabam sempre elevando-se para o plano do abstrato e

interpretativo. Para Venturi, o ponto de chegada da teoria de Lomazzo é a questão do

movimento e da luz, onde reside a potência da representação das expressões psicológicas e o

impulso criativo. Sua sensibilidade para esta questão lhe deixa mais apto do que Vasari a

compreender a pintura setentrional. Para além disso, a questão do ecletismo acadêmico

próprio do período se faz presente em sua obra, apesar de pontuar os perigos deste sistema, e,

assim, prepara o terreno para a arte dos Carracci.

3.4. Ecletismo e o ut pictura poesis.

Anthony Blunt, célebre historiador inglês, publica, em 1940, um dos mais

importantes trabalhos sobre a teoria artística italiana dos séculos XV e XVI, “Artistic Theory

in Italy, 1450-1600”, iniciando sua análise com Léon Battista Alberti, no qual a arte como

ciência é consolidada, passando para Leonardo, quem dá continuidade ao caráter científico da

arte, pautando-se em uma atitude empírica ao invés das leis gerais deduzidas por seu

antecessor. Em seguida, aborda o Neoplatonismo presente nas reflexões de Michelangelo,

localizando-o em um momento de crise filosófica e religiosa que ocorre a partir de 1530, e,

depois, discorre sobre a figura de Lodovico Dolce, literato e não pintor, marcando o início da

questão da pintura como poesia, o que legitimava a reflexão de um erudito sobre a arte da

pintura, que, por ser ela como a poesia, era passível de ser analisada com critérios análogos.

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Sua trajetória tem continuidade com Paolo Pino, no qual destaca uma visão plural

das excelências estilísticas (louvando tanto Michelangelo pelo desenho, quanto Tiziano pela

cor). Em seguida, aborda a obra de Vasari, na qual o juízo do olho do artista é capaz de criar

obras que superam a natureza, destacando a nova acepção que o termo grazia adquire, que,

diferente da graça como beleza proveniente das proporções matemáticas de Alberti, define-se

por seu caráter irracional, dependendo do juízo crítico do próprio artista. Ainda, a facilidade

na obra de arte e a rapidez são valorizadas, ambas sinais da grazia, considerada um dom

divino.

Blunt, então, denuncia uma mudança nas conjunturas do período, desencadeada

pela Reforma Protestante, a Contrarreforma e o Concílio de Trento. O historiador enxerga na

Reforma Protestante e no Humanismo sinais da emancipação individual dos grandes sistemas

sociais fechados e estáticos do período medieval. A atividade comercial efervescente permitiu

uma mobilidade social que não existia antes, e, com isto, ocorre uma verdadeira mudança de

paradigmas, de coordenadas mentais e estruturas sociais. Neste sentido, a Contrarreforma foi

a reação à valorização do individualismo e seu advento teve como objetivo restabelecer a

ideia da autoridade institucional.

A partir de então, a arte ganha uma ênfase doutrinária e didática, e a teologia

passa a ser uma das principais reguladores da atividade artística. O significado sobressai ao

significante, ou seja, ocorre uma alteração no equilíbrio entre forma e conteúdo, sendo o

conteúdo o elemento mais importante da obra de arte, já que é nele em que se justifica a

importância da arte a serviço da propaganda católica. Junto à valorização do conteúdo,

destaca-se a necessidade de comoção do espectador, o alvo da persuasão da obra de arte, e

uma teoria da expressão artística acaba sendo inevitável.

Lomazzo se insere neste contexto, entre o grupo de teóricos que representa as

ideias deste período de transição para o século XVII. Ao tentar responder os questionamentos

de seus contemporâneos em torno da expressão artística, utiliza as teorias disponíveis no meio

intelectual. Assim, além do Neoplatonismo de Ficino, faz uso da Magia Natural e da

Astrologia, tratando a obra de arte como um amuleto. Para Blunt, esta tendência quase

medieval ao simbolismo místico muito forte em Lomazzo não é algo inusitado, já que “Milão

não havia sido completamente conquistada pelo Renascimento como as cidades da Itália

central”.

Ainda, ao lado dos autores da Contrarreforma - Paleotti, Comanini e Gilio da

Fabriano - Lomazzo sublinha a questão do decoro na obra de arte, preocupando-se em

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estabelecer os limites daquilo que é apropriado de acordo com o tema e com a destinação da

obra. Ao citar o Idea del Tempio, Blunt o descreve como um sumário do volumoso Trattato

dell’arte della pittura, contendo “conselhos menos detalhados e uma estética mais abstrata”.

Tanto Zuccaro, mais influenciado pela escolástica aristotélica, quanto Lomazzo, mais

inclinado ao Neoplatonismo, consideram a obra de arte fruto da ideia presente na mente do

artista e proveniente de Deus. Por fim, Blunt acusa o ecletismo em Lomazzo, sobretudo no

Idea, que havia sido vislumbrado por Schlosser e por Venturi, mas que aqui ganha maior

destaque.

No mesmo ano, o historiador americano Rensselaer Lee publica seu famoso artigo

"Ut Pictura Poesis: The Humanistic Theory of Painting" no jornal científico “Art Bulletin”,

que, mais tarde, torna-se um livro, publicado em 1967. Tão crucial quanto o trabalho de

Anthony Blunt para a reflexão sobre a teoria artística, a tese de Lee direciona-se em um

sentido totalmente distinto, acompanhando as mudanças sofridas pelo princípio da imitação

nas artes desde o começo do século XV até o século XVII, cujo significado se altera a partir

da transferência dos princípios das poéticas de Aristóteles e Horácio para a teoria da arte,

através da crítica literária do período, veiculada por Lodovico Dolce.

Desta forma, ocorre uma aproximação entre a poesia e a pintura, cujo ponto de

contato dava-se na representação das ações humanas e na valorização da história e da

invenção. Apenas com Lessing que esta aproximação seria extinta e cada uma adquiriria

limites específicos (a pintura diz respeito ao espaço, à beleza corpórea, domínio da sincronia;

a poesia, ao tempo, à expressão das emoções, domínio da diacronia). Na obra de Lee, a teoria

de Lomazzo também é definida por seus alicerces neoplatônicos, estabelecendo a fonte da

beleza ideal em Deus e não na natureza, como havia feito a teoria humanista de orientação

aristotélica. Lee também considera a visão de Lomazzo um sintoma do período da

Contrarreforma, pautada na questão da invenção, da história, do decoro, da expressão das

emoções, do convencimento e da comoção do espectador. Além das poéticas, os retóricos

latinos (Cícero e Quintiliano) influenciam a teoria artística do período.

Em 1953, Denis Mahon dobra-se sobre a questão do ecletismo em seu ensaio

“Eclecticism and the Carracci: Further Reflections on the Validity of a Label”, contra a

alcunha do ecletismo dada a Lomazzo por Anthony Blunt, oponente de Mahon ao longo de

toda sua carreira acadêmica. Neste ensaio, Mahon problematiza a questão do ecletismo nos

Carraci, doutrina que não foi por eles professada, mas que lhes foi atribuída pelo séc. XIX. De

acordo com Mahon, o equívoco se deu a uma má interpretação que a crítica do Seiscento fez

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do texto de Lomazzo e do discurso laudatório de Lucio Faberio (1550-1610) durante a

cerimônia fúnebre de Agostino Carracci em dezoito de janeiro de 1603.

O pano de fundo deste mal entendido teve origem na discussão sobre a excelência

da pintura realizada por Paolo Pino, Lodovico Dolce, Pietro Aretino e Giorgio Vasari cerca de

cinquenta anos antes, os primeiros defendendo a pluralidade de excelências - Pino atribui a

Michelangelo a primazia no desenho e a Tiziano, no colorido -, Aretino tomando o partido de

Tiziano, enquanto que Vasari transforma Michelangelo em seu paladino da arte. Neste

sentido, a atitude de Lomazzo, quarenta anos depois, configura-se como uma revisão da

questão, e, se por um lado demonstra ser “filho de seu tempo”, defendendo a necessidade da

inspiração e da graça do artista como um dom inato, por outro antecipa a questão do gênio

pessoal e da individualidade do artista que tomaria corpo cem anos depois:

"De fato, o motor de seu Idea del Tempio della Pittura é a convicção na diversidade de maneiras através das quais a excelência artística foi de fato alcançada, e sua demonstração, através da carcaterização interpretativa, das formas que esta variedade assumiu (….). Este é a real espinha dorsal de seu ponto de vista estético, e, de forma natural, ela o leva a adotar uma atitude decididamente cuidadosa e reservada em relação a até que ponto um artista deveria permitir-se influenciar pelo trabalho de outros" 232

E continua

“Lomazzo deixa suficientemente claro que, em sua opinião, os

pintores de maior sucesso são os que, possuindo o dom inato, não negaram seu talento mas o exercitaram e o cultivaram completamente”233.

E citando a passagem do Idea em que dois tipos de pintores que não nasceram

com o dom divino são descritos - os que buscaram remediar suas deficiências através do

estudo e os que, não compreendendo os princípios da arte, imitaram a maneira de outros -,

Mahon destaca a posição de Lomazzo em favor do primeiro tipo, que não sendo genial, no

entanto é respeitável. Mais adiante, Mahon demonstra, através de trechos do Idea, a

centralidade da individualidade do artista em Lomazzo e sua ênfase na variedade de maneiras 234, e conclui,

“Pode ser estranho, levando em conta os destaques dados ao ponto de vista de Lomazzo, que se considerou coerente descrevê-lo como defensor de uma doutrina ou método eclético. A expressão tardia, usada estritamente dentro do contexto da História da teoria da arte propriamente

232 MAHON, D. Eclecticism and the Carracci: Further Reflections on the Validity of a Label. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Londres, 16, 3/4, pp. 303-341, 1953, p. 313. 233 Ibidem, p. 314 234 Ibidem. p. 314.

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dita, é normalmente utilizada para se referir à ideia de um sistema de combinação e síntese balançeado: um conceito, por assim dizer, de marca tão estreitamente racionalística que corre o risco óbvio de naufragar nos rochedos da abstração e da impraticabilidade. Por que um individualista como Lomazzo, frequentemene incoerente mas com raios de senso comum intuitivo, foi classificado por um papel tão ironicamente incompatível?” 235.

Finalmente, chegando ao ponto central de sua tese, afirma que o trecho que

provocou esta má interpretação foi a célebre passagem da pintura ideal de Adão e Eva, citado

por Schlosser (1924) e por Blunt (1940) como prova da inclinação eclética do autor. Para

além da evidente defesa da expressão pessoal do artista e da condenação do maneirismo

presentes nos textos de Lomazzo, Mahon sublinha o constante afastamento do teórico milanês

de qualquer sistema estético claro e simplificado. Muito pelo contrário, verifica-se muitas

contradições e imprecisões, principalmente ao longo do Idea.

Longe de advogar um programa racionalista eclético, Lomazzo, ao longo do

capítulo dezessete do Idea, apenas esboça uma avaliação aproximada dos dados de sua

realidade, ou seja, faz uma espécie de contabilidade dos pintores de seu tempo. Neste sentido,

o quadro ideal de Adão e Eva, de acordo com Mahon, nada mais é do que um artifício retórico

interpretativo e classificatório construído metaforicamente, e, posteriormente, tomado de

maneira literal pela crítica.

3.5. Os artigos de Paris e Barelli.

Em 1954, Annamaria Paris, em Sistema e giudizi nell'Idea del Lomazzo, apresenta

uma nova abordagem em relação aos juízos críticos do Idea del Tempio. Para a autora, não é

possível separar a crítica do sistema que estrutura o tratado teórico de Lomazzo, como haviam

feito os estudiosos até então. Ninguém havia dado ênfase aos juízos críticos presente em sua

obra e os resultados das análises, até o momento, haviam conduzido a uma construção da

imagem de Lomazzo como um teórico rígido, conservador e preocupado apenas com a

metafísica.

A estudiosa afirma que pode-se observar a manifestação da formação lombarda

(escola de Gaudenzio Ferrari) de Lomazzo no gosto pessoal do pintor expresso através de

seus juízos críticos, nas omissões e naquilo que ele destaca nas análises que faz, e na sua

inquietação diante da narrativa vasariana centrada na maneira tosco-romana. A eleição do

mestre Ferrari entre os baluartes da idade moderna, algo impensável para Vasari, sugere este

incômodo. Crítica e sistema caminham lado a lado: Lomazzo avalia o estilo de cada artista na

235 Ibidem. p. 315.

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medida em que avança no desenvolvimento de seu sistema em torno das sete partes da pintura

e dos sete temperamentos. Apesar de se apoiar na crítica contemporânea, Lomazzo insere

observações bastante independentes e originais na visão da autora, como, por exemplo,

quando analisa a questão da cor em Michelangelo, “que serviu à fúria e profundidade do

desenho”, ou mesmo quando estabelece uma hierarquia das várias maneiras do mestre

florentino: a observada no teto da Capela Sistina, que é superior em relação às outras, e

depois, de forma decrescente, a presente no Giudizio Universale e a da Capela Paolina, juízo

que seria incorporado pela crítica moderna.

Mais tarde, em 1958, Emma Spina Barelli publica o artigo "Il Lomazzo o il ruolo

delle personalitá psicologiche nella estetica dell'ultimo manierismo lombardo". Ao realizar

um balanço das revisões críticas da teoria do Idea del Tempio, verifica que elas variam entre a

visão, de um lado, de que existe um classicismo universal ideal limitando os estilos dos

artistas, e, de outro lado, que os estilos mantém sua integridade como a expressão pessoal do

artista e sugerem um padrão relativo do gosto. A autora opta pela segunda interpretação, mas

com ressalvas. Em sua visão, a psicologia na teoria de Lomazzo não se rende à subjetividade

do indivíduo de forma completa, pois é baseada na pesquisa empírica e objetiva dos casos da

obra e da composição.

3.6. Perspectivas internas: a análises da década de 1960.

Robert Klein veio a se tornar a grande autoridade no assunto, ao lado de Roberto

Paolo Ciardi, ambos responsáveis pelas duas edições críticas modernas do Idea del tempio de

maior relevância. Em um artigo publicado nas atas do IV Convegno Internazionale di Studi

Umanistici (1958), "La forme et l'intelligible", e, no ano seguinte, em outro artigo publicado

na revista Arte Lombarda (1959), “'Les sept gouverneurs de l’art' selon Lomazzo", Klein

apresentou novas perspectivas sobre o Idea del Tempio della pittura, que, até hoje, são

centrais para a compreensão desta obra236.

Pela primeira vez, a abordagem dada à obra foi totalmente voltada para a

investigação de sua estrutura interna. Também, observou-se, de maneira bastante perspicaz, a

íntima integração entre ambos os tratados de Lomazzo, o que impulsionou o historiador a

formular a hipótese de que o Idea del Tempio pudesse ter se originado de capítulos

236 KLEIN. La forme et l'intelligible In Atti del IV Convegno internazionale di studi umanistici Centro Internazionale di Studi Umanistici (org. Enrico Castelli) , Pádua, 103-121; KLEIN. 'Les sept gouverneurs de l’art' selon Lomazzo. Arte Lombarda, vol. 4, No. 2 (1959), pp. 277-287. Estes artigo foram reunidos e publicados por André Chastel na coletânea de ensaios de R. Klein, La forme et L’inteligible (1970).

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descartados e não publicados no Trattato, o que doravante alteraria as interpretações em torno

deste corpus teórico237.

Klein verifica a presença de conteúdos mágicos, sobretudo a obra de Cornélio

Agrippa, De Occulta Philosophia, a principal fonte de Lomazzo. Sobre a questão da

pluralidade das maneiras, o autor afirma que ela revela uma ruptura com os “sólidos dogmas

tradicionais – a doutrina da imitação, a ideia de um cânone único de beleza e o mito da pintura

como ciência”.

Sobre as relações estabelecidas entre os mestres da pintura e os planetas

astrológicos, Klein aproxima o quadro de correspondências tipológicas presente no Idea del

Tempio e os livros de destinos, como o Triumpho di Fortuna, de Sigismondo Fanti, publicado

em 1526. Ainda, observa o caráter talismânico que a obra de arte assume no Idea, outro traço

da influência do pensamento neoplatônico e mágico do De Occulta Philosophia de Agrippa: a

obra de arte, se preparada sob as influências corretas, é capaz de captar os influxos astrais e

transmiti-los ao espectador.

Neste princípio talismânico, que sugere a preparação da obra de arte, existe um

dos pontos de conflito da teoria de Lomazzo, pois impede uma total e espontânea expressão

do artista. Deste modo, não se pode afirmar um total relativismo do gosto em Lomazzo, como

havia afirmado Barelli. O que se vê é uma tentativa de se conciliar duas correntes opostas: de

um lado, a concepção aristotélica e humanista da arte, ou seja, a arte como preparação e

fabricação; de outro, a infinidade de temperamentos artísticos e do caso particular da obra

sujeita à invenção. Este seria o problema manifesto em toda a estética maneirista, tensão

própria de um período de transição. Além disso, Klein observa que não é possível separar

teoria, crítica e história da arte no Idea, pois os governantes são os modelos dos pintores,

arquétipos de um determinado estilo ligado ao temperamento, que pertencem a uma linhagem

ou família de pintores.

No ano de 1960, a célebre obra de Eugenio Battisti, “Rinascimento e Barocco”,

foi publicada, cujo escopo era perseguir o problema do classicismo, “o significado e a

importância do classicismo para a arte italiana”. No capítulo oitavo, ao tratar da questão da

imitação, Battisti parte da polêmica entre Pietro Bembo e Gian Francesco Pico sobre a

imitação de um ou mais modelos, que ocorreu no ano de 1512, e, na seqüência, reflete sobre

as diversas posições que os artistas e teóricos tomaram em relação a este problema. O autor

237 Como vimos no capítulo II desta dissertação.

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classifica Lomazzo entre os teóricos setentrionais, ao lado de Dolce e Pino, mais próximos do

naturalismo e defensores da função primordial da cor na distinção das multiplicidades dos

fenômenos, contrários ao idealismo maneirista tosco-romano.

Ainda sobre a questão da imitação, Battisti aponta para a condenação que

Lomazzo faz, no capítulo dois do Idea, aos maneiristas, que, ao invés de seguirem sua

inclinação pessoal, imitam os outros. Mais adiante, apresenta o opúsculo de Cristoforo Sorte,

Osservazioni nella pittura, publicado em Veneza em 1580, onde se pode distinguir a relação

entre a inclinação natural do artista e os influxos astrais, origem do estilo e da pluralidade de

excelências. Vê-se aí um protótipo da teoria das expressãos de Lomazzo, o que aproxima

Lomazzo de Sorte. Contudo, o autor nos lembra que ambos partilhavam de um mesmo

universo conceitual médico-astrológico bastante difuso no período238.

No capítulo dez, “Um desconhecido retrato de Leonardo”, Battisti apresenta pela

primeira vez o manuscrito inédito de Lomazzo encontrado no British Museum de Londres, Gli

sogni e ragionamenti. O pesquisador considera Lomazzo um discípulo indireto de Leonardo,

que mantinha contato com a obra do mestre através dos manuscritos e desenhos tão famosos

em Milão no período. Emerge, através da obra de Lomazzo, uma visão de Leonardo como um

homem que, assim como ele, pertencia ao ambiente cultural da corte tardo-gótica milanesa, na

qual o esoterismo, a Astrologia e o mito circulavam fluidamente, sendo esta a via de conexão

estabelecida com o Antigo.

No ano de 1964, o historiador da arte norte-americano Gerald Ackerman defendeu

sua tese de doutorado sobre os tratados de Giovanni Paolo Lomazzo, sob orientação de Erwin

Panofsky e Rensselaer Lee, na Universidade de Princeton. Intitulada The Structure of

Lomazzo's Treatise on Painting, sua proposta foi investigar lado a lado a estrutura de ambos

os tratados de Lomazzo, o Trattato della pittura e o Idea del Tempio, a fim de identificar as

etapas de desenvolvimento de seu pensamento teórico e a maneira como os tratados foram

sendo concebidos no decorrer de muitos anos até seu momento final, quando os capítulos são

organizados e editados para serem publicados239. De acordo com a tese de Ackerman, quando

os tratados são estudados como uma única obra, seus conteúdos se dividem em seções bem

delimitadas que podem ser relacionadas entre si, permitindo-nos reconhecer a estrutura

primitiva do "tratado primordial" de Lomazzo, que mais tarde foi dividido em Trattato e Idea,

238 Sobre esta obra de Cristoforo Sorte, cfr. RAGAZZI. op. cit., pp. 126-127. Uma bibliografia sobre a atuação de Sorte como cartógrafo é apontada nesta tese de doutorado, p. 126 (ns. 113 e 114). 239 A tese de Ackerman foi apresentada no capítulo II desta dissertação.

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e acompanhar as mudanças teóricas realizadas na medida em que Lomazzo amadurecia suas

concepções filosóficas e acrescentava leituras à sua teoria.

Entre 1971 e 1977, a historiadora da arte Paola Barocchi publica, em três

volumes, seu extenso comentário crítico aos tratados do Ciquecento, os "Scritti d'arte del

Cinquecento", organizando-os em torno de problemas teóricos centrais para o período. O Idea

del tempio foi analisado por Barocchi nas seguintes temáticas: no volume 1, em generalia,

onde Lomazzo é colocado ao lado de Possevino, ambos em diálogo com Paolo Giovio e

Vasari. A autora observa, de maneira diacrônica, o desenvolvimento da teoria da arte em

torno da questão da maniera, que, ao atingir o fim do século, esforça-se para conciliar as

várias tendências artísticas do Cinquecento, de forma enciclopédica e promovendo um retorno

às fontes clássicas. Barocchi comenta o quarto capítulo do Idea del Tempio, "degli scrittori

dell'arte antichi e moderni", uma espécie de coletânea das fontes bibliográficas de Lomazzo;

No tópico sobre a pintura, a autora identifica duas definições, uma no Trattato, de caráter

enciclopédico e heterogêneo no tocante às fontes, extraindo dos mestres da pintura os

preceitos de seu tratado "prático" em um esforço para prever e acolher, nas palavras da autora,

qualquer solução. A outra está no Idea, no qual as regras traçadas pelo Trattato são inseridas

na arquitetura do Templo da Pintura, e a esfera de ação do juízo crítico do pintor é tranferida

ao discernimento, levando ao extremo a necessidade de categorização dos elementos e dos

processos, o que, segundo Barocchi, resulta na perda de toda vitalidade histórica e estilística,

transformando a pintura em categorias rígidas. Desta forma, citando Klein, a pintura torna-se

casuística e a teoria artística se configura como uma arte lullista, "fornecendo princípios para

a solução racional e conveniente de todos os problemas possíveis". A autora comenta o cap.

XVIII ("Della discrezzione della pittura e delle sue parti") do Idea.

No volume 2, em "o artista", a historiadora verifica a defesa do conhecimento

universal do artista em Lomazzo, baseado em Vitrúvio e sensível às disposições astrais.

Comenta-se o capítulo VIII do Idea, "Delle scienze necessarie al pittore"; Na "imitação",

pautado na questão da disposição astrológica pessoal do artista, que determina o modelo no

qual se espelhar, Lomazzo nega o cânone do modelo único e estabelece a pluralidade de

belezas, e o discernimento passa a gerenciar o processo criativo. A pesquisadora comenta o

capítulo II, "De la forza de l'instituzione dell'arte e della diversità dei geni" e o capítulo III,

"Della necessità della discrezione", do Idea; Em "Beleza e Graça", Lomazzo é colocado ao

lado de Vicenzo Danti como autores que buscam conciliar suas visões cosmológicas e a

beleza concreta das obras de arte. Lomazzo incorpora a beleza platônica através de Ficino e

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utiliza as teorias mágica e astrológica para justificar a variedade do gosto. Barocchi comenta o

capítulo XXVI do Idea, "Del modo di conoscere e constituire le proporzione secondo la

belleza"; Em "Proporção. Medida. Juízo", a visão cosmológica de Lomazzo é destacada,

ligando tipologias astrológicas e temperamentais, fatores sociais, estilísticos e históricos a

proporções e medidas, que também são, por outro lado, fundamentadas em Vitrúvio, Dürer e

Alberti. Ainda, a autora afirma que o juízo "dell'occhio" michelangelesco adquire um caráter

objetivo e universal, em uma chave de compreensão aristotélica, já que, em Lomazzo, todos

os elementos subjetivos são descritos, analisados e previstos em seu tratado enciclopédico, e,

desta forma, tornam-se objetividade. Do Idea del Tempio, Barocchi faz comentários aos capp.

XI , XXX e XXXIV.

No volume 3, Lomazzo é inserido dentro das discussões sobre o "Colecionismo",

constituindo-se como uma importante fonte sobre a questão, sobretudo a respeito do

colecionismo "principesco", já que comenta sobre as empresas museográficas de Felipe II (El

Escorial), Maximiliano II (galeria de obras de Arcimboldo), Cosimo I de Médici e Carlos

Emanuel I de Savóia. O capítulo referido e comentado pela autora é o XXXVIII do Idea del

Tempio.

Em 1971, Carlo Ossola publica o "Autunno del Rinascimento: 'Idea del Tempio'

dell'arte nell'ultimo Cinquecento”, no qual buscava refletir, através da literatura artística

produzida no segundo Cinquecento, sobre este período de transição, entre o último

Renascimento e o Barroco, período de constantes mutações, experimentações, alargamento de

limites e liquidez de barreiras formais. O Idea del Tempio de Lomazzo é situado no agitado

ambiente contrarreformístico lombardo, e, ao lado do tratado de Comanini, promove uma

expansão dos limites temáticos tão caros aos teóricos da Contrarreforma como Paleotti,

Borghini e Armenini.

Seguindo em uma reflexão sobre o conceito de imitação no Renascimento, da

mesma forma que Battisti na obra supracitada, Ossola observa que este conceito postulava um

mundo estático, o mundo ptolomaico e albertiano, calculável e passível de ser mensurado.

Ainda, no Cinquecento, na medida em que o conceito de mímese se altera, deixando de

significar imitação fiel ou aperfeiçoamento da natureza para se tornar emulação de sua

potência genética e criadora, e a obra passa a ser representação da ideia interior do artista,

processo racional e especulativo, o autor identifica uma transformação na imagem do mundo,

agora fluido e variado, e uma atenção maior às particularidades e minúcias do Microcosmo.

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Em Lomazzo, o processo de criação artística ocorre completamente na mente do

pintor de forma totalmente introspectiva, incorporando, assim, o conceito de Idea de

inclinação ficiniana. Observa-se o ápice da noção horaciana do ut pictura poesis, no qual a

poesia e a pintura se confundem. Ainda, a invenção e a composição deixam de ser dois

momentos distintos no processo de criação artística e equiparam-se, instituindo um cenário de

fluidez entre fantasia e realidade. A ânsia de Lomazzo em tudo nomear, em reunir todas as

possibilidades artísticas em seu Trattato della pittura, reflete este contexto amplo, variado e

volúvel de formas e temas. Para atingir a completude de interpretação, o teórico satura a

previsibilidade dos casos em seu Trattato e iguala a beleza e variedade.

3.7. As edições críticas modernas.

Finalmente, chegamos às edições críticas modernas dos tratados de Lomazzo. A

primeira a ser publicada foi a edição moderna italiana de Roberto Paolo Ciardi, Gian Paolo

Lomazzo. Scritti sulle arti (Florença, 1973), na qual estão presentes as edições comentadas do

Trattato dell’arte della pittura; dos Sogni e ragionamenti, do Idea del Tempio della pittura e

do Della forma delle muse; A segunda, a tradução francesa comentada do Idea por Robert

Klein, publicada postumamente também em Florença em 1974. Ambas constituem o principal

corpus para o estudo dos tratados de Lomazzo até hoje, dada a importância e autoridade das

visões destes pesquisadores.

O extenso trabalho requerido pela pioneira tarefa de transcrever, corrigir e dar

cabo da análise filológica dos textos, em suma, das etapas necessárias para produzir uma

inédita edição moderna crítica das obras de Giovanni Paolo Lomazzo, foi realizado por

Roberto Paolo Ciardi, que iniciou seus estudos em torno deste objeto no ano de 1959, como

afirma no prefácio à obra, e a elaboração das edições críticas em c.1961. É, portanto, ao longo

da década de 1960 em que as mais colossais investigações sobre o conjunto da obra teórica de

Lomazzo foram realizadas, isto é, o trabalho de Gerald Ackerman, de Robert Klein, de

Roberto Paolo Ciardi e de Paola Barocchi.

A edição moderna de Roberto Paolo Ciardi foi dividida em dois volumes, o

primeiro contém uma introdução, o Libro dei Sogni e o Idea del Tempio (que segundo o autor

foram agrupados no mesmo volume por uma questão de desenvolvimento lógico e não

cronológico, já que, de acordo com Lomazzo, o Idea del Tempio deveria ser lido antes do

Trattato). No segundo volume, encontram-se uma introdução de caráter técnico (sobre as

partes práticas da pintura), o Trattato della pittura e o Della forma delle muse.

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Na introdução ao primeiro volume, Ciardi confronta as informações

autobiográficas dadas por Lomazzo nas suas Rime com documentos de arquivo a fim de

verificá-las; Captando as poucas notícias fornecidas por Lomazzo sobre seu período juvenil,

tenta melhor esboçar os anos do tirocínio do nosso artista, sua primeira formação junto ao

preceptor Giovanni Michel Gerbo e seus anos no ateliê do mestre gaudenziano Giovanni

Battista della Cerva. A seguir, aproxima-o de Cornélio Agrippa de Nettesheim, de quem

absorveu grande parte das lições (talvez via Leonardo da Vinci), muito difusas na Lombardia

a partir de 1511.

Compreendido em seu contexto cultural, seus escritos e seu método ganham uma

outra percepção, apesar da aparente confusão e singularidade de seu pensamento. Este

trabalho de assimilação de Lomazzo inserido em um cenário cultural e social específico, no

âmbito do chamado "Contrarrenascimento"240, foi uma tendência dos estudos publicados a

partir de meados da década de 1960 em diante.

De extrema relevância foi o esforço de Ciardi em tentar reconstruir a “biblioteca

lomazziana”, atento ao fato de que a maior parte da bibliografia havia sido lida por Lomazzo

até os trinta e três anos de idade (isto é, até 1572), antes da perda da visão, e que a Tavola dei

nome degli Autori citati nell’opera (no apêndice do Trattato) exclui e inclui autores

identificados ou não ao longo do texto de Lomazzo, o que requer grande cautela ao utilizá-la

nesta tarefa. O fio condutor dos comentários à edição reside neste crucial exercício de

reconstituição bibliográfica, a mais precisa análise apresentada por toda a Fortuna Crítica da

obra.

Ciardi admite uma notável erudição em Lomazzo, não muito comum à maioria

dos pintores do período, porém exclui o fato de que o autor conhecia o grego e, além disso,

considera seu conhecimento de latim limitado, e mesmo sua desenvoltura na escrita da língua

italiana vulgar comumente utilizada (a língua toscana), nitidamente precária, já que seu

idioma natal era o dialeto milanês.

Uma vasta quantidade de citações literárias pode ser identificada nos textos.

Contudo, Ciardi acusa a possibilidade de Lomazzo ter retirado boa parte delas de

enciclopédias de notícias heterogêneas e de coleções de epígrafes muito comuns na época

(manuais eruditos de Petrarca, Boccaccio e Polidoro Virgilio, todos traduzidos ao vulgar no

período de Lomazzo; Também, os manuais de Cartari, Lazio, Giraldi e Celio Rodigino).

240 Cfr. HAYDN, H. Il Controrinascimento. Bolonha: Il mulinho, 1967.

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Ademais, o fato de Lomazzo pertencer a um círculo de intelectuais variado torna muito

provável que ele tenha obtido auxílio de seus colegas no enriquecimento de seus textos, e que,

exposto a constantes discussões dentro das academias milanesas, manteve-se atualizado nos

debates literários e filosóficos.

No entanto, Ciardi reconhece que, no caso da teoria e historiografia artística - isto

é, Vitrúvio e os comentário de Cesariano e Barbaro, Alberti, Gaurico, Dürer, Beham,

Leonardo, Vasari, Dolce, Pino, Sorte e Aretino -, Lomazzo provavelmente atuou de forma

mais ativa no enfrentamento das fontes, recolhendo e interpretando os textos de maneira

integral.

Ao reconstruir a cronologia dos escritos lomazzianos, Ciardi traz para o espaço de

reflexão o manuscrito autógrafo conhecido como Libro dei sogni (que data por volta de

1563241), que não havia sido levado em conta por Klein e nem incluído no trabalho de G.

Ackerman, pois ainda era desconhecido. Através da análise do manuscrito, Ciardi delineia o

perfil intelectual e cultural de Lomazzo em seus anos de juventude, cujos interesses variavam

em um leque bastante amplo, incluindo música, poesia, dança, farmacologia, ciências ocultas,

entre outros. Seu interesse e admiração por Pietro Aretino e a emulação de Leonardo da Vinci

são bastante perceptíveis. Este trânsito de interesse por áreas diversas, como observa Ciardi,

era muito comum entre os pintores do período, o que não confere nenhuma excepcionalidade

ao nosso artista-autor.

Comparando a sua produção juvenil (Libro dei Sogni, Rime e Rabisch) aos seus

tratados teóricos publicados na maturidade (Trattato, Idea e Della forma delle muse), Ciardi

nota o encolhimento de citações poético-literárias242, que passam a ser utilizadas com mais

economia para exemplificar possíveis usos na pintura - "tornam-se uma coleção de possíveis

modelos inspiradores para o artista, um prontuário do qual extrair elementos para a

representação dos mais variados acidentes" -. É possível perceber uma total adesão do autor

ao princípio ut pictura poesis, tão disseminado no período, sendo o conhecimento da poesia

recomendado ao pintor como modelo para que se pudesse traduzir visualmente a linguagem

escrita. No que toca ao universo oculto, Ciardi verifica uma presença mais íntima e estrutural

do pensamento mágico nos escritos maduros de Lomazzo, manifesta plenamente no Idea (a

visão de caráter "mágico-cognitivo da expressão gráfico-plástica").

241 Sobre a cronologia dos escritos, cfr. capítulo 2. 242 A partir dos apontamentos de Bossi sobre a cronologia lomazziana.

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No que se refere aos aspectos próprios da teoria de Lomazzo, a primeira questão

pontuada por Ciardi é a crença na possibilidade de uma pedagogia das artes, a arte entendida

como objeto de um processo didático (ensino e aprendizado). Ela se aproxima da linguagem,

sendo veículo semântico, e, desta maneira, a teoria artística avizinha-se da retórica e da teoria

literária. Nas palavras de Ciardi, a teoria artística configura-se como a sistematização de uma

gramática e de uma sintaxe, um cursus pré-ordenado e orgânico de momentos, enunciando

regras, prevendo exceções e fornecendo exemplos concretos através de autores

consensualmente considerados modelos de ortodoxia na aplicação dos preceitos de maneira

original. Deste modo, percebe-se a forte conexão entre a teoria de Lomazzo e Cícero,

Quintiliano e os codificadores da Poética aristotélica do período como Scaligero, Castelvetro

e Naugerio.

O ponto de contato entre esta tendência à sistematização originada do âmbito

retórico e literário e a cultura hermética e oculta (Lull e Bruno), cuja coexistência na teoria

lomazziana pode provocar uma aparente contradição, dá-se na concepção da teoria artística

como uma arte da memória (ars memoriae) - dispositivo que estava presente tanto na retórica

quanto nas correntes de pensamento de matriz neoplatônica243. Não apenas a teoria artística

incorporava este aspecto mnemônico, mas a própria pintura também (definição que pode ser

observada na introdução do Trattato).

Sobre as sete partes da pintura, Ciardi chama atenção para o fato delas não serem

conceitos estáticos, mas momentos ao longo do processo de concepção artística, e por isso a

inconsistência na delimitação de cada uma na extensão do corpus textual lomazziano. O

discernimento e a noção de beleza ideal ou graça divina, por sua vez, são os conceitos que

sustentam toda a teoria. O discernimento é quem faz a mediação entre a beleza universal e a

beleza contingente, e, na medida em que é dele a função de selecionar aquilo que convém ao

caso particular da obra, sugere-se o domínio do intelecto sobre a teoria e sobre a prática.

Ciardi explica que existe uma dificuldade em dar uma definição unívoca ao

conceito do discernimento, que ao mesmo tempo reúne um conjunto de regras gerais e

qualidades subjetivas não ensináveis, que escapam ao aprendizado acadêmico e à rotina de

ateliê. O discernimento é o "próprio método do artista que se encontra diante do problema da

concreta efetuação do quadro", sendo ele a regra ideal que desce ao artista, em harmonia com

243 Sobre a arte da memória e o pensamento neoplatônico, cfr. cap 4 ( no comentário ao cap IX do Idea).

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seu temperamento, condicionado pelos influxos astrais, possibilitando a manifestação da

beleza ideal de forma individual no caso particular da obra através do estilo do artista.

No que diz respeito à seleção dos mestres canônicos, Ciardi conecta Lomazzo à

noção, presente em Ghiberti e Alberti, da participação do artista no curso da história como

uma força criadora, e, ainda, ao recurso à individuação de uma série de mestres canônicos

inseridos no curso da História da Arte presente em Vasari e também na tratadística retórica. A

pluralidade de excelências, todas igualmente perfeitas, refuta a questão da imitação de um

modelo, ideia de caráter tipicamente maneirista e academicista comum no período. O acento

se dá nos princípios da escolha e da personalidade individual, que constituem "o momento

primeiro da operação expressiva", selecionando o modelo ou os modelos a serem imitados de

acordo com a inclinação pessoal do artista. "O estudo, a imitação e o exercício", nas palavras

de Ciardi, "não devem falsificar a vocação, mas devem auxiliar no desenvolvimento da

personalidade, e não servem para construí-la ex nihilo."

Diante de tais considerações, Ciardi conclui que, para Lomazzo, a arte em si não é

passível de ser ensinada, sendo ela expressão individual, fruto do furor criativo, que tem

origem na graça divina através dos influxos astrais. Há uma aparente aporia na teoria de

Lomazzo que reside justamente na tensão entre uma noção de didática artística e a declarada

crença de Lomazzo no furor criativo, que se resolve através da concepção da realidade

concreta da personalidade singular e individual do pintor, compreendendo a prática como a

encarnação de um saber, não como a realização dele. O que pode ser ensinado é o método

para pintar, a gramática e a sintaxe, não a arte.

Por último, Ciardi faz algumas considerações sobre o juízo crítico de Lomazzo:

nota-se uma atitude bastante genuína do pintor diante das obras e seu interesse indiscriminado

por todas as formas de expressão artística. Contudo, é necessário ressaltar que Lomazzo não

teve uma experiência direta com todas as obras que analisa em seu texto e que não enxergava

desde os 33 anos. Portanto, quando Lomazzo manifesta juízos críticos sobre as obras, para

além de sua própria memória, apoia-se na crítica contemporânea.

Na tradução crítica francesa de Robert Klein (1974)244, há uma preocupação em

apresentar documentos e fontes em torno da biografia de Lomazzo (a maior parte das

informações, como ele demonstra, provém dos versos autobiográficos ao final da obra Rime).

Através deste olhar mais atento à biografia do nosso autor, percebemos um indivíduo

244 Na introdução (volume dois).

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conectado ao universo intelectual milanês, ligado às principais figuras do período - artistas,

acadêmicos, patrícios, astrólogos, médicos e magistrados. Diante deste rico ambiente cultural,

pode-se deduzir que Lomazzo obteve uma formação como pintor, poeta e teórico bastante

diversificada, dinâmica e atualizada nas principais tendências do período.

Tais perspectivas sobre a personalidade de Lomazzo, permitiram uma melhor

compreensão da amplitude de seu juízo crítico, aberto a todas as impressões, capaz de avaliar

diferentes tipos de expressões com igual interesse, curioso por agregar em seu repertório

intelectual as novidades disponíveis: “um verdadeiro maneirista, ele considera a arte de seus

predecessores como uma grande galeria de exempla e nota em todos os lugares as 'soluções' ”.

Klein questiona o problema da recepção da obra teórica de Lomazzo, sobretudo o

Idea del Tempio, em torno do qual houve quase que um absoluto silêncio de seus

contemporâneos e conterrâneos. Então, discute o episódio da ruptura entre Lomazzo e seu

antigo discípulo Ambrogio Figino, célebre pintor milanês, e a oposição de Lomazzo ao pintor

cremonês Bernardino Campi. Tal rivalidade direcionada a essas duas figuras de peso no

contexto milanês talvez possa ter sido um dos motivos para seu aparente isolamento nas

décadas de 1580 e 1590. Ainda, deve-se levar em consideração que, no momento da

publicação dos tratados, havia vinte anos que Lomazzo era cego, o que contribuiu para o

caráter um tanto ultrapassado ou excessivo dos seus julgamentos críticos, baseados em

memórias de obras vistas muitos anos antes.

Recuperando os argumentos dos artigos que havia escrito sobre o Idea, Klein

discute a alegoria do templo, as influências da teoria mágica e do Neoplatonismo, matriz da

teoria da expressão de Lomazzo - demonstrando que esta já estava presente no livro do

movimento no Trattato -, a visão crítica presente no sistema astrológico, a noção ficiniana em

torno da beleza e a central importância da obra de Cornelio Agrippa.

Nesta introdução, Klein discute mais extensivamente o problema de uma teoria

que lida concomitantemente com a universalidade e com a expressão individual, colocando

em cheque a validade da própria teoria. Buscando solucionar o problema, Lomazzo dá

unidade ao belo, uma unidade que está além do mundo sensível e pode ser alcançada através

da regra da conveniência que determina racionalmente a escolha e a distribuição dos

caracteres estéticos diferenciais. Ainda, encerra o gosto dentro de uma classificação

tipológica, e, desta maneira, elabora uma teoria de certa maneira eclética, já que exige a

combinação dosada de diferentes estilos de acordo com o julgamento do gosto. A existência

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de um tratado da pintura, então, só é possível a partir do encontro entre teoria, crítica e

história da arte, pois, doravante os modelos dos pintores são os mestres.

3.8. Os últimos estudos.

O norte-americano David Summers, em The judgment of Sense: Renaissance

Naturalism and the Rise of Aesthetics, publicado em Cambridge em 1987, levanta o problema

da identificação do ponto de partida - que para o autor coincide com a ascensão do

naturalismo no Renascimento, ou seja, da obra de arte análoga à experiência óptica - para a

compreensão do valor estético da arte e a consequente adaptação de uma linguagem

psicológica, pautada na experiência sensível do indivíduo, às discussões em torno do objeto

artístico. Para isto, fez-se necessária uma reformulação da noção de juízo, que até então vinha

sendo ligada à tradição escolático-aristotélica relacionada ao princípio da prudência, uma

prática da virtude intelectual, derivado da Ética a Nicômaco (VI, IX-XI)245.

Summers traça uma outra linha de origem do conceito, também dentro da tradição

aristotélica medieval, mas conectado ao juízo intelectual pré-racional, tendo como base o De

Anima (426-b). Deste modo, o autor constrói seu raciocínio em torno da reavaliação da

importância do sentido da visão para a crítica da obra de arte no Renascimento e para a

formulação do conceito de juízo, central para a teoria artística do período.

Dentro desta análise, Summers examina a acepção do termo na obra de Lomazzo,

destacando a forte ligação deste autor com o pensamento neoplatônico ficiniano, mais

especificamente o comentário ao Banquete de Platão. Ficino adapta a noção de forma

aristotélica, que, separada da matéria, é aquilo que se pode racionalizar e que se encontra

impresso no espírito, e estende este princípio colocando a forma das coisas também na luz.

Deste modo, a beleza das coisas nos é transmitida através da luz e, portanto, incorporada no

espírito pela visão. Quando a beleza das formas dos objetos, veiculada através da luz,

encontra a impressão da Ideia da Beleza Divina em nosso espírito, ambas entram em

consonância.

Lomazzo, ao falar do "juízo dos olhos" do artista, citando as palavras de

Michelangelo, estaria se reportando à Ficino. Portanto, tanto a visão quanto o desenho

possuem um valor heurístico: é o "juízo dos olhos" (saper vedere) que possibilita selecionar a

beleza das formas que será transmitida para o desenho. Ainda, o juízo é uma faculdade inata,

245 KLEIN, R. Giudizio e gusto (1961) In La forme e l'intellible. Paris,1970.

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determinante para que alguém seja considerado ou não um verdadeiro artista, desempenhando

o papel de seleção e discriminação.

Em 1990, outro extenso trabalho em torno da teoria lomazziana foi publicado.

Trata-se da tese de Ph.D intitulada Giovanni Paolo Lomazzo and The art of expression, da

historiadora Jean Julia Chai (Harvard University). O estudo de Chai teve como foco de

reflexão a teoria da expressão e seu impacto no circuito artístico do século XVI. Herdeiro do

pensamento de Leonardo, cuja ênfase recaía sobre a questão da figuração das emoções,

passando pela crítica Vasariana, pelo diálogo de Dolce e pelos críticos da Contrarreforma, que

depositavam um grande valor na expressão dramática da obra, Lomazzo é o primeiro autor a

formular uma concepção da expressão de forma sistemática, englobando não apenas o objeto

artístico, mas o artista, a representação das emoções nas figuras e o espectador. É esta a

centralidade que Chai atribui à teoria de Lomazzo, essencial para a defesa da expressão

pessoal do artista.

Para entender como esta questão da expressão é engendrada no pensamento

lomazziano, a pesquisadora busca seus primeiros vestígios na obra de juventude de Lomazzo,

o Libro dei Sogni (c.1563), e encontra no conceito de moto sua formulação inicial - que

equivale à invenção, uma das três partes da pintura na teoria original de Lomazzo -246.

No tocante à teoria neoplatônica musical ligada aos planetas e à potência da

música na transmissão de afetos através dos vapores, que Lomazzo transferiu para a pintura,

Chai afirma que foi pouco explorada pela crítica. É possível perceber a forte influência da

obra de Marsílio Ficino, De vita coelitus comparanda in De vita triplici, publicado em 1489,

que se configura como um guia médico para os cuidados do espírito humano. Ao observar os

empréstimos que L. faz dessa obra, fica claro que seu contato com Ficino foi direto, não

através de leitores e discípulos.

A maioria dos pesquisadores que se debruçaram sobre as obras de Lomazzo até o

momento não havia explorado com real vigor sua repercussão nos teóricos imediatamente

posteriores. Chai busca ecos desta repercussão e encontra-os acompanhados de grandes doses

de má interpretação, como na carta de Domenichino a Francesco Angeloni (1632).

Diversamente, o teórico francês Hilaire Pader (1607-77) é apontado como um sincero

admirador de Lomazzo, que, inspirado no Idea del Tempio, escreveu o Songe Enigmatique sur

la peinture universelle (Toulouse, 1658), discutido em uma seção precedente.

246 O percurso de Chai foi apresentado no capítulo II desta dissertação.

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Apesar da ênfase na expressividade do artista, existem limites estabelecidos para a

inventividade. Em relação a esta questão, para além da convenevolezza veneziana e dos

teóricos da Contrarreforma, a historiadora aponta para uma forte influência dos tradutores e

críticos da Poética aristotélica, principalmente Lodovico Castelvetro. O decoro em Lomazzo,

muito além de uma questão de verdade histórica, cara aos teóricos da arte pós tridentinos,

caminha no sentido da verossimilhança. É, portanto, dever da arte representar o que deveria

ser: é no decoro, ou seja, no juízo prudente do pintor (e aqui ambos se equacionam), onde

reside a expressão.

A partir de Aristóteles, a preocupação em torno das questões formais do objeto

artístico foi trazida para o centro do debate, ou seja, a construção essencialmente interna do

artifício convincente, enquanto que os erros denominados de incidentais, isto é, a descrição

dos elementos da história de forma incorreta, tornaram-se secundários, apesar de contribuírem

para a legibilidade da obra.

Os críticos da Contrarreforma, espelhados em Horácio, enfatizavam o "decoro

artificial" (descritivo) preocupados com a fidelidade da obra aos detalhes narrativos da

história. O aparecimento da Poética de Aristóteles na cena literária, como afirma a autora, ao

sublinhar que o erro mais grave se dava na construção interna, e, portanto, na forma, ajudou a

redirecionar a arte de volta para seu eixo essencial.

Recentemente, em 2013, Jean Julia Chai elaborou uma tradução para o inglês do

Idea del Tempio della pittura, publicada nos EUA pela The Pennsylvania State University

Press. Nesta tradução, a autora utiliza, como base para seus comentários, a edição crítica de

Ciardi e a tradução de Robert Klein. Interessantes são as novas perspectivas sobre a Academia

do Vale Blênio e a atualização do aparato documental em torno da trajetória de nosso autor,

devedoras do catálogo da exposição Rabisch, organizada pelo Museo Cantonale d'Arte de

Lugano, entre março e junho de 1998.

Em 2010, o historiador brasileiro Alexandre Ragazzi, em sua tese de doutorado

defendida em Campinas (UNICAMP), Os modelos plásticos auxiliares e suas funções entre

os pintores italianos: com a catalogação das passagens relativas ao tema extraídas da

literatura artística, abordou a posição de Lomazzo diante do uso de modelos plásticos pelos

artistas, que, como verifica o pesquisador, é ambígua. No Tratado, existem diversos

momentos em que Lomazzo se demonstra bastante avesso ao uso de modelos plásticos para a

construção dos escorços, o que o historiador percebe como uma retomada, de maneira

bastante surpreendente, do paragone entre a pintura e a escultura. Para além disso, Lomazzo

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era impelido a salientar a necessidade da teoria para a pintura, defendendo seu caráter liberal,

característica própria dos tratados do final do século XVI 247.

Contudo, Ragazzi observa que existem momentos em que Lomazzo autoriza o uso

dos modelos plásticos em sua obra, citando, como exemplo de artistas que empregaram tal

prática, Michelangelo (no cap. VIII do Ideia) e Tiziano (no cap. XV do Ideia). Nota-se, no

entanto, que isto apenas ocorre quando não há a preocupação de negar a dependência da

pintura em relação à escultura, ou de intelectualizar a atividade pictórica, abrandando sua

faceta prática. A despeito da tensão e dos antagonismos próprios deste período de transição,

no qual os tratadistas pendem entre teoria e prática, é interessante perceber esta tendência à

conceitualização da arte da pintura, à afirmação de seu caráter teórico. Este movimento acusa

uma transformação que vinha ocorrendo no âmbito das artes, e que se pode divisar nos

teóricos situados neste período de passagem ao academicismo do século XVII. Na próxima

seção desta dissertação, trataremos da tese de Robert Williams, cuja reflexão sobre a arte

como Metatécnica vai ao encontro da análise de Ragazzi.

3.9. Metatechne.

Concluo este nosso percurso através da Fortuna Crítica de Lomazzo com a tese de

Robert Williams, publicada no Reino Unido em 1997 (The Cambridge university press), "Art,

Theory, and Culture in Sixteenth-Century Italy. From techne to Metatechne". Nesta obra,

Williams defende que é possível detectar, através da análise da literatura artística do século

XVI, compreendida dentro de um processo de desenvolvimento histórico mais amplo, uma

radical transformação no que se entendia como arte e na sua função social, o que ele considera

a grande realização do Renascimento: a arte como uma forma de conhecimento superior que

envolve o domínio de outros modos do saber.

Ao longo do século XVI, a arte foi redefinida, não mais pensada em termos

aristotélicos, ou seja, enquanto um conhecimento técnico e racional aplicado, mas como o

conhecimento que reúne em si todos os conhecimentos, tornando-se um princípio absoluto

(em um senso totalizante, não como uma substância metafísica): a arte ganha a

superintendência sobre todas as formas do saber. Para além de uma dimensão intelectual, ela

também assume uma dimensão afetiva, passando a ser um meio de formação da identidade

individual e de ordenação social. Nas palavras de Williams, "os modos de representação

passam a corresponder aos modos de conhecer e ser" e a unidade deste conhecimento dada

247 O historiador identifica esta mesma motivação em relação ao uso dos modelos plásticos no tratado de Carlo Urbino. RAGAZZI.op. cit., pp. 153 e ss, e pp. 165-66.

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pela arte permitia "crer que também a própria realidade era governada por uma ordem

inteligível".

Na visão do historiador, este processo de tranformação da arte indica uma

mudança radical na sociedade, em que o uso das representações pelo poder ganha uma

configuração moderna: a instrumentalização do imaginário. Esta mutação, acompanhada pela

urgência teorética, cujo escopo era situar a questão, racionalizando o processo e aproveitando

para defender a proeminência que a arte ganha no corpo social, denuncia um desenvolvimento

mais profundo, no qual a representação através de códigos e signos visuais, organizados

sistematicamente pela arte, torna-se o meio para ordenação de toda a sociedade. A arte,

portanto, passa a dar sustentação racional ao corpo social.

Dentro deste processo, Lomazzo, ao lado de Zuccaro, foi compreendido como o

momento em que a teoria da arte sublima-se em filosofia e a arte transcende para seu lugar

absoluto, como uma Metatécnica. O Idea del Tempio dell pittura é enxergado por Williams

como uma das maiores, senão a maior, expressão da Metatécnica, que possibilitou o advento

das teorias estéticas do século XVIII e XIX. Nele, a arte assume esta unidade intelectual

tornando-se um princípio a ser buscado. A obra de arte na sua singularidade acaba se

configurando como um sistema que aloca os diversos elementos e identidades existentes de

acordo com o padrão mais adequado aos seus fins limitados. Para além da obra de arte, sua

teoria mesma funciona como uma arte, mapeando todas as possibilidades do estilo artístico

(objetivando as subjetividades) e racionalizando as variedades na medida em que ordena os

estilos em um sistema que reflete a ordem do cosmos.

CAPÍTULO IV

Arquitetura da obra

Neste capítulo, situarei de maneira sucinta o nosso autor na chamada

Kunstliteratur, e, em seguida, farei comentários aos capítulos do Idea del Tempio traduzidos

nesta dissertação de mestrado.

1. Comentários aos capítulos traduzidos do Idea del Tempio della pittura.

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Inicio esta seção, situando brevemente o nosso autor na literatura artística, para

depois darmos seguimento aos comentários aos capítulos traduzidos nesta dissertação de

mestrado. Giovanni Paolo Lomazzo situa-se no contexto da Itália setentrional, mais

especificamente no âmbito vêneto-lombardo, aproximando-se, como ficou bem explícito no

capítulo dois, de autores como Pietro Aretino, Lodovico Dolce e Paolo Pino (Schlosser, 1924;

Lee, 1940; Mahon, 1953)248. Eugenio Battisti (1960) destaca a semelhança de valores

estéticos destes autores em torno do naturalismo e do papel central da cor como fator de

individuação dos elementos na obra de arte, diametralmente opostos aos princípios idealistas

dos maneiristas tosco-romanos. A preocupação maior de Giovan Paolo Lomazzo reside na

questão da pluralidade de maneiras, questão cara aos autores venezianos supracitados, em

oposição à exaltação de Michelangelo, promovida pelo pintor e teórico aretino Giorgio

Vasari.

Lomazzo também pertence ao grupo de teóricos, que, a partir de meados do século

XVI, reagem a uma percepção de declínio das artes, como é o caso de Giorgio Vasari e Gian

Battista Armenini (Schlosser, 1924). Tais autores reúnem em suas obras um inventário da arte

dos grandes mestres da primeira metade do Cinquecento, em um ato ao mesmo tempo

encomiástico e testamentário. Lomazzo, por sua vez, como observa Schlosser, também

organiza uma galeria de exemplos em seus escritos, mas, diferentemente dos outros, com o

intuito de fixar parâmetros ou modelos a serem seguidos ao longo do processo de aprendizado

artístico.

Em um contexto mais amplo, Lomazzo situa-se no período em que as academias

das artes figurativas estão tomando corpo, a partir da segunda metade do século XVI, para

consolidarem-se institucionalmente no século seguinte (Schlosser, 1924). É um momento,

portanto, de contabilizar as possibilidades do fazer artístico, estabelecer os preceitos da arte,

os cânones e métodos da prática artística. Também, diante das discussões levantadas pelos

reformadores protestantes, torna-se cada vez mais necessário defender a posição das artes

plásticas na sociedade, não apenas afirmando sua liberalidade, como fizeram os teóricos do

século anterior, mas também precisando sua função dentro do mecanismo social, o escopo do

fazer artístico, justificando, assim, sua existência e permanência.

O princípio pedagógico de que as artes plásticas são um campo do conhecimento

passível de ser ensinado e aprendido, fomenta o surgimento das academias de arte e a

248 Como vimos no capítulo anterior.

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produção de um corpus artístico sistemático. Lomazzo, apesar de não estar inserido em uma

academia de desenho ou pintura, como é o caso de Federico Zuccaro, faz parte dos círculos

acadêmicos milaneses, nos quais o ímpeto teorético e a urgência em organizar o

conhecimento estão presentes, proporcionando as devidas conjunturas para o surgimento de

seu corpus teórico. Para além disso, a partir do Idea del tempio della pittura, Lomazzo inicia

uma tradição de teóricos que, deixando o protótipo do tratado técnico-sistemático, passam a

centrar suas preocupações nas questões de ordem metafísica, resgatando noções filosóficas,

como o conceito platônico de Ideia e a visão cosmológica das artes (Ciardi, 1973)249.

Panofsky, em Idea: Ein Beitrag zur Begriffsgeschichte der alteren

Kunsttheorie (1924), situa Lomazzo no período denominado Maneirismo, quando surgem os

primeiros sintomas da percepção da oposição entre gênio e regra. Este é um momento de

constante tensão entre a crença no didatismo em torno das artes e a organização das

academias de um lado, e, do outro lado, a crescente refutação dos cânones artísticos e a busca

pelo movimento dentro da obra de arte, ao qual não se podia aplicar os métodos de proporção

matemática estabelecidos anteriormente.

A obra de Lomazzo surge com o intuito de buscar justificativas filosóficas para as

representações no espírito do artista que não se limitassem à simples subjetividade. Ainda não

era o momento para a completa crença no gênio artístico individual, algo que aparece

esboçado em Lomazzo, mas não totalmente estabelecido. A maneira encontrada pelo autor

para responder aos questionamentos em torno da expressão pessoal do artista foi inseri-lo em

uma organização cosmológica neoplatônica e submetê-lo às influências dos astros, de forma

que a obra de arte assumisse um papel fundamental na ligação do homem com a Ideia divina.

Neste sentido, Lomazzo pode ser colocado ao lado de Federico Zuccaro, quem também

recupera o eidos platônico para formular uma teoria sobre o processo de concepção artística.

Também, Lomazzo alinha-se aos teóricos da Contrarreforma ( A. Blunt, 1940; D.

Mahon, 1953), como Gabriele Paleotti, Gilio da Fabriano e Gregorio Comanini, em razão da

ênfase no decoro da obra de arte, isto é, da atenção que o pintor deve ter à correta e apropriada

representação do tema selecionado, levando em conta o propósito, o local e a quem a obra se

destina250. Diante do arrocho institucional da Igreja Católica pós Concílio de Trento, as artes

figurativas passam a assumir um novo papel social didático, a biblia pauperum (Blunt, 1940).

249 Cfr. CIARDI, R.P. Scritti sulle arti. cit., 1973, vol. I, p. LX. 250 Cfr. BAROCCHI, P. Scritti d'arte del Cinquecento. Turim: Einaudi, c.1977, vol. 3, cap.1 (invenzione)

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Desta maneira, a questão da comoção do espectador torna-se um dos focos da preocupação

dos teóricos da Igreja. Na base destas discussões, encontra-se o princípio horaciano do ut

pictura poesis, que aproxima a pintura da poesia, ambas centradas na representação da

história e das emoções humanas.

Lomazzo, no entanto, absorve esta noção literária de uma maneira diferente dos

autores trentinos, de forma laica (Barocchi, c.1977), incorporando a ideia do furor poético

platônico e buscando alicerces teóricos para a expressão dos afetos no Neoplatonismo e nas

correntes da tradição oculta. Além disso, o cuidado com o decoro na representação figurativa,

refinado pelo conhecimento da história, poesia e teologia, também está conectado à questão

da legibilidade compositiva, baseada no princípio da verossimilhança e da consciência da

existência de um público a ser comovido, noções disseminadas pelos críticos da Ars poetica

aristotélica, sobretudo Lodovico Castelvetro, que publicou sua vulgarização e comentário da

poética em Viena em 1570 (Chai, 1990).

Deve-se levar em conta a origem milanesa do autor (Paris, 1954): sua formação

como pintor se deu em um ateliê de matriz gaudenziana, sob influência das experiências com

a luz de Leonardo da Vinci e das construções perspectivas de tendência naturalística de

Vincenzo Foppa. Desta forma, Lomazzo ergue-se como uma voz contrária à tese de Giorgio

Vasari, em defesa da arte lombarda. Portanto, este teórico milanês possui um papel de

contraponto à teleologia vasariana que fixa Michelangelo como ápice da História da Arte

ocidental e afirma a primazia do desenho. Sua sensibilidade para as questões da investigação

da luz o tornam mais apto a formular juízos críticos mais exatos e a interpretar com mais

propriedade as obras fora do eixo tosco-romano.

Lomazzo conserva uma fidelidade ao pensamento de Leonardo da Vinci, tendo ele

próprio examinado os escritos do mestre251, recuperando em sua obra muitos de seus

princípios, tanto práticos (construções ópticas e técnicas de iluminação) quanto filosóficos

(atitude empírica, naturalismo, variedade, primazia da pintura, o caráter heurístico da arte, a

preocupação com a figuração das emoções e com o movimento).

2. O Idea del tempio della pittura: capítulos 1-20.

A) Título e dedicatória.

251 Através de Francesco Melzi. Cfr. Idea del tempio della pittura, capítulo IV, p. 217 desta dissertação.

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A primeira observação diz respeito ao título escolhido para a obra: Idea del

tempio della pittura. O uso da palavra Idea desencadeou discussões entre os pesquisadores252.

Uma ligação com o texto de Vitrúvio (De Architectura, I, 2) foi sugerida por Klein, onde o

termo designa épura253. Contudo, a referência ao conceito platônico de eidos, na minha

opinião, é a mais acertada. Sobre a retomada deste conceito pela teoria da arte no final do

século XVI, Panofsky desenvolveu um extenso estudo, como vimos no capítulo anterior,

quando tratamos da Fortuna Crítica da obra.

No entanto, a fonte mais provável para a adoção do uso da palavra Idea associada

a um edifício alegórico, compreendido como um dispositivo que estabelece a conexão entre o

Micro e o Macrocosmo, é a obra do hermético Giulio Camillo Delminio 254, publicada

postumamente em Veneza em 1550, o Idea del Theatro, citada por Lomazzo no capítulo IX

do Idea. A seguir, em uma próxima seção, trataremos da obra de Camillo com mais minúcia.

Por hora, basta algumas explicações sobre ela: a obra de Camillo descreve a construção de um

teatro, cuja arquitetura foi inspirada no teatro clássico vitruviano255, no qual todo

conhecimento do Universo estaria disposto através de imagens, organizadas em um sistema de

associação simbólica.

A obra de Camillo recupera, no Renascimento, a tradição da arte da memória

clássica que se originou na retórica antiga e a adapta à teoria Neoplatônica do final do século

XV, que englobava em sua estrutura o hermetismo e a cabala judaica junto às teorias de

Plotino, presentes em autores como Giovanni Pico della Mirandola e Marsilio Ficino. Neste

sentido, o Templo de Lomazzo possui uma grande dívida com o Teatro de Camillo. Alinhada

ao pensamento Neoplatônico, a obra de Camillo adota o termo Ideia, que é a substância

divina, próxima da verdade das coisas.

A noção de Ideia referia-se aos atributos de Deus (ou Nomes Divinos) na tradição

neoplatônica medieval (Scotus Erigina é um exemplo de autor neoplatônico que aplica o

termo neste sentido256). Ainda, no âmbito da Cabala judaica, o conceito de Idea correponde às

252 Cfr. KLEIN, Robert. Idea del Tempio della pittura (trad. francesa), cit., vol. II, p. 475; CIARDI, R.P.. Scritti sulle arti, cit., vol. I, p. LXIII; SCHLOSSER, Julius Von (trad. por Jacques Chavy). La littérature artistique. Paris: Flammarion, 1996, p. 396. 253 KLEIN, R. Ibidem. 254 Portogruaro, c.1485 - Milão, 1544. 255 Segundo Yates. Cfr. YATES, F. The art of memory. Reino Unido: Routledge and Kegan Paul, 1966. 256 Nascido em 815 - Falecido em 877. Cfr. YATES, F (trad. Flavia Bancher). A arte da memória. Campinas: Unicamp, 2007, p. 223.

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sefirot (Causas Primeiras), que constituem a base do sistema do teatro Camillo. Lomazzo,

seguindo o modelo de Giulio Camillo e próximo filosoficamente dos autores da tradição

neoplatônica e mágica, adota o termo para caracterizar o seu Templo, detentor da verdade

filosófica da pintura, capaz de elevar a mente do artista à contemplação da Beleza ou Ideia

Divina257.

Em relação ao subtítulo, "onde ele discorre sobre a origem e o fundamento das

coisas contidas em seu tratado da arte da pintura", manifesta-se a exata função deste tratado, o

que motivou a publicação da obra: apresentar os princípios que sustentam sua teoria. Portanto,

o Ideia não se trata de um conjunto de esboços reunidos e publicados posteriormente

(Ackerman, 1964), não se trata de páginas descartadas do Trattato dell'arte unidas a novas

leituras (Klein, 1959), não se trata somente de um apelo para aumentar as vendas de sua

primeira obra, tornando-a mais facilmente compreensível. Ele é a concepção final da teoria

artística de Giovanni Paolo Lomazzo, o embasamento filosófico de seu pensamento.

Sobre a dedicatória, parte imprescindível nas publicações da época. Para cada uma

das obras, Lomazzo escolheu um grande soberano como protetor: o Trattato dell'arte e o

Rime foram dedicados a Carlo Emanuele de Savoia, duque de Savoia e príncipe do Piemonte,

e o Della forma delle muse, a Ferdinando de' Medici, gran-duque da Toscana. O Ideia, por sua

vez, é dedicado a Felipe II, o maior deles. Os três soberanos são citados (Carlo Emanuele,

Ferdinando e Felipe II), no capítulo 38 do Idea, como grandes colecionadores de arte e

amantes da pintura.

Lomazzo diz que o Ideia não surgiu posteriormente ao Trattato ou mesmo na fase

madura do autor, mas foi concebido quando Lomazzo era um jovem e promissor pintor.

Contudo, com o passar do tempo, Lomazzo abandonou o projeto, retomando-o em um

momento anterior à data de publicação da obra (dezembro, 1590), rearranjando o texto,

corrigindo algumas partes e acrescentando trechos novos. Ainda na dedicatória, o autor

anuncia que trataria das subpartes de cada uma das sete partes da pintura, complexificando um

pouco mais a sua tendência à categorização dos conceitos e aprofundando-se nas noções

teóricas.

Lomazzo manifesta que tinha intenção de ilustrar a obra e que não o fez pois foi

acometido pela cegueira. Este dado revela um forte indício de continuidade entre o Libro dei

257 Cfr. cap. III do Ideia do Templo da pintura, p. 210 desta dissertação.

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Sogni, a obra teórica de juventude, e o Ideia, já que no primeiro existem espaços reservados

para desenhos.

Dentre as concepções teóricas explicitadas nesta introdução, encontramos a noção

em torno do processo de criação de uma obra de arte e uma primeira definição da pintura. A

obra de arte nasce do juízo do pintor, uma faculdade ligada ao sentido da visão, responsável

pelo primeiro ato de discriminação das formas apreendidas pelos olhar258. Além disso, a obra

de arte é um dispositivo heurístico (tema leonardiano259), ou seja, através dela é possível

compreender a beleza dos elementos da natureza, já que as formas encontradas na obra são o

resultado do processo de seleção realizado pelo intelecto do artista. Deste modo, o contato

com uma obra de arte permite refinar a faculdade do juízo.

O juízo sensorial pré-racional é um conceito aristotélico, cuja definição encontra-

se no De Anima (426b-c), ligada ao termo grego Kritikon (capacidade de julgar, que faz parta

da alma animal)260. O "juízo" é um conceito bastante utilizado pela literatura artística do

período (Leonardo, Vasari, B. Varchi, Paolo Pino) e, apesar de passível de ser refinado

através do exercício, é uma faculdade inata do artista (Michelangelo)261. Ainda, neste trecho,

pode-se identificar a ideia da dignidade da faculdade da visão, mais uma vez afirmando a

hereditariedade do pensamento de Leonardo262. Quanto à definição da arte da pintura dada

pelo autor, vê-se uma fórmula convencional, estabelecida desde L. Battista Alberti, "a arte

como rival da natureza".

B) Capítulo I - Proêmio ao leitor.

Nesta introdução, Lomazzo esboça o argumento do Templo da Pintura, sem entrar

em muitos detalhes. Este capítulo tem como objetivo traçar um plano da obra. Novamente,

Lomazzo afirma que começou a refletir, ler e escrever sobre a pintura desde jovem, e

caracteriza a presente obra como o resultado de todo o processo de desenvolvimento de sua

teoria artística. Ao longo da leitura desta introdução, é possível perceber que nem sempre

Lomazzo se refere propriamente ao Idea del tempio, como foi problematizado no capítulo

dois desta dissertação.

258 A natureza heurística da visão remonta a uma longa tradição fundamentada em Platão (Timaeus, 47 a.c.), Aristóteles, Methaphysics (980a), e em Cícero, De Officiis, I, IV. Cfr. Nota 342 (Apêndice). 259 Cfr. Leonardo, Trattato della pittura, cap 15 "Come la pittura avanza tutte l'opere umane per sottile speculazioni appartenente a quella" In Barocchi, op.cit., pp. 238 ss. 260 Cfr. SUMMERS, D. The Judgment of Sense. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, pp. 21-28. 261 Michelangelo (carta de Michelangelo a M. Bassi, 1570). 262 Cfr. SUMMERS. op. cit, pp. 71-5.

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Em diversos momentos, temos a sensação de que o autor discorre sobre o Trattato

dell'arte e seus livros: 1) "Nele apresentarei, da melhor maneira que puder, todas as

harmonias, as proporções e as medidas exigidas para se alcançar uma beleza perfeita e

completa na pintura", parece estar se referindo ao Livro da Proporção do Tratatto; 2) Logo

adiante, Lomazzo fala que discorrerá sobre as partes da pintura, dando uma abordagem teórica

e depois unindo a teoria com a prática, o que remete à estrutura do Trattato (cinco livros de

teoria e dois da prática); 3) O autor afirma que dará uma definição para a pintura, o que é feito

no Trattato e não no Idea263; 4) O trecho "...e dividi o volume exatamente de acordo com a

quantidade de gêneros, tratando de cada um separadamente" diz respeito aos livros do

Trattato; 5) "No que diz respeito ao meu método - aos preceitos, às observações e às outras

coisas apontadas neste tratado -, isto é tudo". Aqui, o autor está falando sobre o método

dedutivo adotado no Trattato264 (ordine di dottrina), e da união e interdependência das partes

da pintura, o que não dá conta do Idea del Tempio, obra de maior profundidade filosófica, em

que são expostos conceitos complexos como o discernimento e a euritmia; 6) Mais adiante o

autor descreve a estrutura da obra: o primeiro livro do discernimento. Este livro não existe e

pode corresponder a um núcleo presente no Idea del tempio, como vimos no capítulo dois

desta dissertação. Os demais livros citados correspondem aos livros do Trattato dell'arte.

Lomazzo diferencia a teoria da prática, dando a entender sua inclinação para a

primeira. Os governantes são citados, mas não especificados ainda, e existe um primeiro

esboço da noção de euritmia (a harmonia em um sentido mais geral, de onde resulta a beleza,

inserida na obra de arte através do gênero em que o pintor tem mais facilidade), que será

exposta mais adiante, nos capítulos 10, 33 e 37.

Vimos, no capítulo dois desta dissertação, que existem fortes indícios para

acreditarmos que esta introdução foi escrita antes mesmo da publicação do Trattato dell'arte

della pittura, quando Lomazzo ainda não havia definido a configuração de seu tratado da

pintura. A estrutura do Templo da Pintura é esboçada aqui, o que pode sugerir que Lomazzo

pretendia organizar sua teoria em um templo circular antes mesmo da publicação do Trattato

dell'arte, o que por conseguinte indica um contato com a obra de Giulio Camillo antes da

publicação do Trattato (antes de 1584).

C) Capítulo 2 - Da força da instrução artística e da diversidade dos gênios.

263 Cfr. Trattato (...), livro I, cap. I ("Della definizione della pittura"). 264 Cfr. Trattato dell'arte della pittura (...) In CIARDI. op.cit., vol II, pp. 21-24.

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Este capítulo também faz parte do núcleo introdutório que começou a ser

elaborado antes da publicação do Trattato. Um dos seus principais argumentos é a

complementaridade entre teoria e prática, um tema vitruviano265. Além de Vitrúvio, mais uma

vez aparece o tema leonardiano do caráter heurístico da pintura; Também, a ideia da arte

como rival da natureza.

Identificam-se ainda as noções da beleza fenomênica ciceroniana, que se dá a

partir da harmonia das partes, difundida por L. B. Alberti266. Ademais, a ideia, que tem

origem em Santo Agostinho, de que a experiência visual da beleza tem como finalidade a

contemplação de Deus267. Há uma objeção manifesta aos pintores maneiristas rebuscados e

artificiosos, que cometem exageros e ferem o princípio da conveniência e da clareza

narrativa268.

Outro argumento de destaque neste capítulo se dá na questão da diversidade de

maneiras e gênios, e na importância de conhecer a si mesmo para manter-se fiel à sua própria

natureza269. O processo de aprendizado do artista, explicitado neste capítulo, dá-se da seguinte

maneira: conhecendo a sua própria inclinação, o artista deve escolher o mestre (governante) a

ser imitado, de temperamento próximo ao seu, para guiar-se nos primeiros anos de

aprendizado, adicionando estudo teórico e prático, e, desta forma, atingir autonomia no estilo

e a perfeição, que não é tratada aqui em termos absolutos, mas de maneira particular.

Esta noção pluralista da expressão artística está fundamentada em Paolo Pino e

Lodovico Dolce, influenciados pela crítica literária (poetica horaciana). Contudo, a atitude

inovadora de Lomazzo reside no fato de que o conhecimento da inclinação pessoal torna-se

imprescindível para o excelente artista. No final do capítulo, Lomazzo ressalta a questão da

variedade de maneiras: como cada artista é uma personalidade individual, o estilo de cada um

é pessoal, e, portanto, não existem duas maneiras iguais. As maneiras são diversas e diferentes

entre si, e todas elas são igualmente perfeitas. Como exemplo, Lomazzo lista os grandes

mestres da Antiguidade, especificando a parte em que cada um é excelente.

265 De Acrhitetura, livro I (primeiro parágrafo). 266 PANOFSKY, E. Idea: A concept in Art Theory. NY: Harper and Row, 1968, pp. 53-54 e p. 197, nota 123 (sobre a beleza fenomênica clássica difundida por Alberti). 267 Ibidem, p.176, nota 68. 268 Objeção que pode ser encontrada em autores alinhados à Contrarreforma como Gilio da Fabriano e Gabrielle Paleotti. 269 Pietro Aretino, em suas Lettere (1537), afirma que "Chi non ha giudizio non conosce se stesso, e chi non conosce se medesimo non è conosciuto d'altrui, e chi non è noto ad altri anulla il suo essere". Chai (op. cit., p. 51) cita esta passagem com o intuito de demonstrar a influência do pensamento de Aretino sobre Lomazzo.

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Nisto se pode entrever um primeiro esboço do princípio da euritmia, no qual a

perfeição é inserida na obra por meio da(s) parte(s) em que o pintor é excelente,

transbordando para as demais partes e criando harmonia no conjunto da obra. Outrossim,

Lomazzo discorre sobre o tema da facilidade associada à graça, um tema Vasariano, que

percorre toda sua obra, e pode ser encontrado de maneira mais definida no proêmio da terceira

parte das vidas.

Pela primeira vez no texto, Lomazzo afirma que existem sete governantes da arte,

mas não especifica quem são. Mais adiante, cita alguns artistas como modelos, revelando seu

gosto pessoal: grande admirador de Rafael Sanzio e Leonardo da Vinci, que serão nomeados

governantes mais adiante; Cita pintores Lombardos (Cesare da Sesto, Camillo Boccaccino,

Parmigianino, Antonio da Correggio, Bernardino Luini), alguns deles ignorados por Vasari

em suas Vidas; Menciona pintores tosco-romanos como Maturino, Andrea del Sarto, Perino

del Vaga, Rosso Fiorentino, Marco Pino da Siena, Giulio Romano, Pellegrino Tibaldi, e

pintores venezianos como Tintoretto, Giorgione, Sebastiano del Piombo e Lorenzo Lotto.

Lomazzo refere-se a Correggio como "governante", o que demonstra que a Teoria dos

Governantes ainda não havia sido concluída até então e nem a escolha destes finalizada.

D) Capítulo 3 - Da necessidade do discernimento.

Este capítulo compreende a introdução ao conceito de discernimento, sendo ele o

primeiro do núcleo que trata especificamente sobre este princípio, que será composto pelos

capítulos 3, 18 e 26-32. Lomazzo define, de forma geral, o que é discernimento (a preparação

e ordenação da pintura em seu conjunto), presente desde o início do processo até a conclusão

da obra: ele é o fio que conecta cada uma das etapas - que nada mais são do que as partes da

pintura, como momentos dentro do continuum de elaboração do objeto de arte 270 - do

processo artístico. Ainda, o discernimento tem como função depurar o intelecto e o juízo, e é

absolutamente indispensável para o artista.

Lomazzo dá uma abordagem neoplatônica para o conceito, já que ele é uma das

condições para o intelecto atingir a Ideia Suprema, através da cadeia dos seres. O

discernimento traz clareza intelectual, e, por isso, permite ao juízo atingir a Beleza Divina. A

noção de discernimento em Lomazzo possui duas raízes: a primeira, na crítica veneziana

(Aretino, Dolce e Pino), que equaciona discernimento e juízo, sendo ele uma faculdade

inventiva e marca da individualidade do pintor; a segunda, na tradição neoplatônica, em

270 CIARDI. op. cit., vol. I, pp. LX-LXXIV.

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autores como Marsilio Ficino, Cornelio Agrippa e Ramon Llull271. Lomazzo transforma e

categoriza o conceito, e torna-o imprescindível ao artista, marca da graça divina.

O discernimento é também a faculdade que associa a história da arte à crítica, e

permite ao pintor evocar os exemplos das obras e artistas, guias no seu processo de

aprendizado e no desenvolvimento de novas soluções. Sem a história da arte não é possível

formar uma postura crítica e nem produzir nada novo. Por fim, o discernimento é uma

faculdade intelectual que garante um raciocínio minucioso, capaz de apreender as

particularidades e segmentações dentro de um problema, e, por isso, permite a compreensão

das partes e subpartes da pintura, conhecimento necessário ao pintor.

E) Capítulo 4 - Dos escritores da arte antigos e modernos.

Este capítulo, também parte do núcleo introdutório que há muito vinha sendo

elaborado por Lomazzo, trata-se, de acordo com Paola Barocchi272, de um compêndio da

bibliografia de Lomazzo. Grande parte das informações, sobretudo sobre os escritores da

Antiguidade, deste capítulo pode ser encontrada no Libro dei Sogni, no quinto e no sexto

ragionamenti (sobre a pintura e a escultura). Isto sugere que a bibliografia utlizada remonta à

juventude do autor.

De acordo com o dados fornecidos por Lomazzo, é possível identificar possíveis

títulos que provavelmente fizeram parte de sua bibliografia, alguns de maneira direta e outros

de maneira indireta (através de enciclopédias, antologias, amigos e colegas dos círculos

acadêmicos e artísticos)273: Storia Naturalis do Plínio (obra presente de forma massiva no

texto de Lomazzo), De saltatione de Luciano, De profectione in virtute de Plutarco, De

Temperamentis e De placitis Hippocratis et Platonis de Cláudio Galeno, Le statue di Roma

de Ulisse Aldrovandi, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres de Diógenes Laércio, Trattato

della nobiltà della pittura de Romano Alberti, Opticae Thesaurus de Friedrich Risner (editor),

Perspectiva de Witelo Thuringopolonis, De Architectura de Vitrúvio, Lectionum Antiquarum

libri de Ludovico Ricchièri, Degli elementi de Euclides de Megara (trad. vulgarizada de

271 Em Cornelio Agrippa (De incertitudine et vanitate scientiarum, 1530), ligado a Ciência ou Filosofia Moral. Agrippa utiliza constantemente o verbo discernere. A Ciência Moral de Agrippa influencia o discernimento natural, uma das partes do movimento, no L.S.. Cfr. capítulo 2 (seção 1C); Em Ficino, (Platonica Theologia de immortalitate animorum, 1482) baseado na faculdade da fantasia, que separa (discerne) uma imagem particular em meio às formas captadas pela imaginação; Em Llull (Liber ad memoriam confirmandam. c.1308), no qual a discretio é a parte da memória responsável por selecionar os conteúdos a serem utilizados pelo intelecto. Cfr. CHAI. op. cit., pp. 46-8. 272 Cfr. BAROCCHI, P. Scritti d'arte del Cinquecento. Milão: R. Ricciardi, 1971-1977. , vol I. (generalia). 273 CIARDI. op. cit., pp. VII ss.

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Nicolo Tartaglia, publicada em Veneza por Venturino Roffinelli em 1543), Opera Archimedis

Syracusani philosohpi et mathematici ingeniosissimi (ed. latina por Tartaglia, também

publicada em 1543), De incertitudine et vanitate omnium scientiarum et artium liberalium de

Agrippa, Le vite de' più eccelenti pittori, scultori et architettori de G. Vasari (ambas as

edições de 1550 e 1568, uma das grandes fontes de Lomazzo, citado várias vezes), talvez

tivesse tido acesso aos manuscritos sobre perspectiva de Bramante, de V. Foppa e de B.

Zenale, I Cinque Libri d'Architettura de Sebastiano Serlio, certamente teve contato com os

escritos de Leonardo em posse de Francesco Melzi, ex-discípulo do mestre e seu amigo, De

pictura e De re aedificatoria de Leon Battista Alberti, De sculptura de Pomponio Gaurico,

De divina proportione de Luca Pacioli, Della simmetria dei corpi humani (trad. Galluci) de

Albretch Dürer, o manual sobre as proporções do cavalo de Hans Sebald Beham, La prattica

della prospettiva de Daniele Barbaro, Disegno de Anton Francesco Doni, Dialogo della

pittura de Lodovico Dolce, Della nobilissima pittura et della sua Arte de Michelangelo

Biondo, Dialogo di pittura de Paolo Pino, Lezzione (...) de Benedetro Varchi, Discorso

intorno alla scoltura et pittura de Alessandro Lamo (a quem critica devido à associação com

Bernardino Campi).

F) Capítulo 5 - Como os pintores podem representar todas as coisas.

Continuando no núcleo de capítulos introdutórios, aqui Lomazzo busca

fundamentar a sua metodologia, baseada no método dedutivo, partindo do geral para o

particular, que ocorre ao longo do processo de concepção de uma obra de arte, nas etapas ou

momentos identificados com os gêneros da pintura. Lomazzo faz menção ao Livro do

discernimento, mais uma vez comprovando que estes capítulos introdutórios haviam sido

escritos anteriormente à publicação do Trattato dell'arte.

Também, retoma-se o argumento da disputa entre a pintura e a escultura, dando

preferência à pintura, discussão que havia sido iniciada no Libro dei Sogni, no qual a

influência do pensamento de Leonardo predomina. Esta questão é tratada novamente no

Trattato dell'arte274 e mais uma vez exposta no Idea del tempio, apesar de ter se tornado

ultrapassada, cerca de trinta anos após a publicação das cartas de Varchi.

G) Capítulo 6 - Da nobreza da pintura.

Ainda no núcleo introdutório, neste capítulo Lomazzo realiza um percurso pela

História da Arte, desde a Antiguidade até o período contemporâneo. Os capítulos 4 e 6 do

274 No prefácio.

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Idea del Tempio parecem um desdobramento de parágrafos do manuscrito do Libro dei Sogni,

do quinto e sexto diálogos, que ressurgem aqui de modo mais organizado. Ao longo do texto,

nota-se, mais uma vez, um claro uso da História Natural de Plínio e das Vidas de Vasari, suas

principais fontes.

Ainda, é possível que Lomazzo tenha tido contato com Biblioteca Storica de

Diodoro Sículo, Supplementum chronicarum de Giacomo Filippo da Bérgamo e De deis

gentium de Lilio Gregório Giraldi. Muito provavelmente tenha utilizado autores modernos

como Alberti, De re aedificatoria e o Della Pittura, ainda uma grande referência para a

tratadística do período; Gabriele Paleotti, Discorso intorno alle immagini sacre e profane;

Cornélio Agrippa, De occulta philosophia, uma de suas mais importantes fontes; os diálogos

de Paolo Pino e Lodovico Dolce, constantes referências; os tratados de Armenini e Gilio da

Fabriano.

No que se refere aos autores gregos Aristóteles (Política) e Platão (Leis e A

República), entre outros textos da Antiguidade e da Idade Média, é possível que Lomazzo

tenha tido acesso aos seus argumentos de maneira indireta, por meio de manuais eruditos e

enciclopédias como os de Boccaccio, Petrarca, Polidoro Virgilio, Cartari, Lazio, Giraldi,

Celio Rodigino275.

O capítulo sobre a "Nobreza da Pintura" termina com uma defesa de sua utilidade,

com adaptações de pensamentos comuns aos autores da Contrarreforma, contra às críticas dos

reformadores protestantes. O primeiro diz respeito ao caráter didático e devocional da pintura,

argumento presente nas obras de G. Paleotti e Armenini276. Também, a ideia de que a pintura,

assim como todas as artes, pode ser utilizada para ambas finalidades honestas e degeneradas,

e que isto depende do caráter de quem faz a obra e da forma como ela é recebida, é tratada de

maneira evidente no primeiro livro do Discorso intorno alle immagini sacre e profane 277.

H) Capítulo 7 - Dos efeitos e a utilidade da pintura.

Dando continuidade à apologia da pintura, Lomazzo inicia afirmando suas raízes

leonardescas, destacando o caráter heurístico da pintura associado ao também heurístico

sentido da visão. O conhecimento das diversas formas da natureza é alcançado através do

olhar e do exercício da pintura, que estimula a criatividade do engenho. A seguir, o autor traça

275 CIARDI. op. cit., vol. I, p. XX. 276 Cfr. Paleotti, I, capp. 4-7 ; Armenini, I, 3. 277 Paleotti, I, capp.1, 6,10.

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duas vias de acesso a este conhecimento, a imitação das anatomias, pertencente à tradição

tardo-quattrocentesca ligada ao corpo estático, e a imitação dos movimentos, gestos e afetos,

noção inserida no pensamento artístico por Leonardo da Vinci, e base para a teoria de

Lomazzo centrada nas emoções.

O segundo argumento de Lomazzo é sobre a função decorativa da pintura que

agrega valor aos objetos, raciocínio presente em Alberti, em Castiglione, Cícero e

Aristóteles278. Depois, sua utilidade militar, no desenho de mapas geográficos e artilharia,

remontando ao próprio Leonardo da Vinci279. É imprescindível, também, ao arquiteto civil,

como afirma Vitrúvio.

O aprendizado sobre a beleza das coisas, que, consequentemente, leva ao

conhecimento da beleza divina, já que a beleza das formas da natureza é um reflexo de Deus,

é uma noção presente em todo o texto de Lomazzo, ligada a autores alinhados à tradição

neoplatônica, como o próprio Santo Agostinho280. Contudo, a fonte mais provável para este

parágrafo é Castiglione, Il Cortegiano 281.

Lomazzo finaliza o capítulo falando da capacidade de criação de formas pela

pintura, elogiando sua liberdade inventiva, sua potência criadora e as possibilidades de iludir

os olhos e os sentidos que a arte da pintura apresenta, gerando um estado de deslumbramento

nos espectadores, pensamento que pode ser encontrado em autores que defendem a

inventividade do engenho, como Lodovico Dolce.

I) Capítulo 8 - Das ciências necessárias ao pintor.

Último dos capítulos do núcleo introdutório, este capítulo se inicia com uma

apologia à complementaridade entre teoria e prática, tema vitruviano, argumento que sustenta

a liberalidade das artes plásticas. Todo o capítulo é atravessado pela leitura do primeiro livro

De Architettura de Vitrúvio, de quem Lomazzo praticamente copia a lista das ciências a

serem aprendidas pelo pintor (escultor e arquiteto).

278 Cfr. Alberti, Della pittura, II; Castiglione, Il cortegiano, I, 49 e 52; Aristóteles, Política, V, 1338 a.; Cícero, De Inv., II, 1. 279 Sobre a cartografia como um ponto de encontro entre arte e ciência, cfr. RAGAZZI, A. Os modelos plásticos auxiliares e suas funções entre os pintores italianos: com a catalogação das passagens relativas ao tema extraídas da literatura artística. Campinas: Unicamp, 2010, p.126 280 Cfr. De civ. Dei, XXII, 19; Panofsky, op. cit., p.176. 281 nota 444 (Apêndice).

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A nomeação das histórias sacras e da teologia é própria do contexto da

Contrarreforma, que exige um adequação da representação visual ao texto, dentro da noção

didática da arte, tema que domina o tratado de Paleotti, por exemplo. O conhecimento de

história com o propósito de garantir mais verossimilhança à obra revela uma preocupação

presente na poética aristotélica, recém vulgarizada e comentada (Castelvetro, 1570). A

importância do contato com a poesia, que pode fornecer modelos para representar as emoções

humanas, discurso presente em Lodovido Dolce, baseia-se no príncipio horaciano do ut

pictura poesis282. Lomazzo se conecta com esta tradição literária através da adoção deste

princípio, que permeia o livro VII do Trattato, onde o autor utiliza muitos exemplos da poesia

para a representação na pintura. Porém, nesta segunda obra, a ênfase é dada à questão da

inventividade artística, que deve existir tanto no poeta quanto no pintor.

A listagem de Lomazzo termina de modo significativo, com o destaque do

conhecimento de anatomia. Deste modo, Lomazzo defende sua própria condição de artista-

teórico, o único tipo de escritor capaz de refletir sobre a pintura, já que possui uma vivência

completa, tanto prática quanto teórica. Isto foi enfatizado no início do capítulo quatro, quando

Lomazzo afirma que apenas pintores podem escrever sobre pintura, diferenciando-se dos

escritores eruditos. Ao descrever a importância da anatomia, Lomazzo relembra ao leitor que

ele próprio foi um pintor e que escreve para pintores.

A importância da representação dos gestos, movimentos e afetos é sublinhada,

justificando a necessidade deste conhecimento devido à conveniência das ações e dos

personagens dentro da obra, fator substancial para o efeito da verossimilhança, e, portanto,

para o convencimento e a comoção do público. O autor atribui os efeitos causados pelas

paixões, que variam nas pessoas, à diversidade de elementos e compleições de cada indivíduo,

aplicando a medicina humoral llullista, que conecta os quatro elementos, os quatro humores e

a Astrologia.

Ao destacar a importância da filosofia relacionando-a à pesquisa óptica, uma vez

mais, Lomazzo elogia e referencia Leonardo da Vinci. Por fim, o autor termina o capítulo

com a noção platônica do furor artístico, ideia retomada por Ficino em seu comentário ao

banquete de Platão e pela teoria literária fundamentada na Ars poetica de Horácio. O conceito

de "furor artístico" é crucial para a teoria artística de Lomazzo: apenas o pintor inspirado, que

nasceu com o dom para a pintura, possui as faculdades do juízo e do discernimento, e, assim,

é o único capaz de alcançar a Ideia Divina.

282 LEE. op. cit.

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Este trecho, portanto, desmonta o argumento da pedagogia da arte comum ao

período, que tornar-se-ia cada vez mais forte, na medida em que as academias de pintura e de

desenho se consolidassem no século seguinte. Para Lomazzo, o que é possível ser ensinado é

o método da arte, ou seja, sua gramática e sua sintaxe283. Contudo, não é possível ensinar o

furor, o "ser artista", já que isto não depende apenas do aprendizado teórico e do treino

prático, mas da graça dada por Deus.

Arrisco apontar para outro princípio filosófico, que pode ter sido determinante

para esta noção: a ideia de "homem hermético", que paira sobre toda a teoria artística de

Lomazzo, e que talvez não seja uma referência inconsistente, dada a influência dos autores da

tradição mágica e neoplatônica em seu pensamento. De acordo com o relato do Pimandro,

primeiro livro do Corpus Hermeticum, o homem, criado à imagem e semelhança de Deus,

possui o poder criador divino. À mente humana foram dados os poderes dos sete seres astrais

divinos, os sete Governantes. Quando a mens humana foi unida ao corpo, o homem ficou sob

o domínio das estrelas, mas a essência divina da mente não se apagou. Através da experiência

religiosa hermética de ascensão através das esferas, o homem é capaz de recuperar a sua

natureza divina284.

Esta noção perpassa a obra de Giulio Camillo Delminio, uma das principais fontes

de Lomazzo, cujo pensamento artístico é praticamente todo pautado nesta ideia do homem

hermético e neste capítulo é possível divisá-la. O artista criador-inspirado-agraciado (há um

trecho em que Lomazzo refere-se ao verdadeiro pintor como "o criador") é tal qual o homem

hermético, cuja mens possui a divindade desde a criação. Este capítulo encerra o núcleo

introdutório, que havia sido escrito (pelo menos a maior parte dele) antes do Trattato dell'arte

della pittura.

J) Capítulo 9 - A construção do templo da pintura e seus governantes.

Este é o primeiro capítulo do conjunto que aborda a Teoria dos Governantes e a

arquitetura do Templo da pintura. Até aqui, Lomazzo esboçou parte de sua proposição

metafísica em alguns momentos ao longo do texto. A partir do capítulo nove, o autor dá início

a uma abordagem minuciosa dos fundamentos do seu pensamento: os Governantes, o Templo

da Pintura, o discernimento e a euritmia.

O Templo da pintura.

283 Cfr. CIARDI. op. cit., vol I., pp. LX-LXI. 284 YATES. op. cit., p. 190-1.

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Primeiramente, o Templo da pintura é, antes de mais nada, um lugar de memória

que contém imagens de memória. Neste sentido, ele remonta à tradição da arte clássica da

memória, parte da retórica antiga, exposta no célebre Ad Herenium (autor desonhecido), na

Institutio oratoria de Quintiliano e no De inventione de Cicero285. Portanto, suas raízes

residem na oratória clássica286.

A arte clássica da memória faz parte de uma tradição que foi continuamente

atualizada ao longo dos séculos. Durante a Idade Média, ela foi reformulada sob um viés

aristotélico por Tomás de Aquino, e, a partir de então, reinserida nos meios acadêmicos

medievais através da visão escolástica, sobretudo entre os dominicanos. No final do século

XV e ao longo do século XVI, pode-se identificar o Ad Herenium com traços da escolástica

medieval, na matriz de importantes tratados da arte da memória laicos 287. Dentre esses, o

manual do alemão Romberch (Veneza, 1533) é um exemplo, e destinava-se, entre outros, aos

professores das artes liberais.

Estes tratados seguiam os métodos recomendados pelos oradores clássicos,

transmitidos pela Idade Média: escolher um espaço arquitetônico (de preferência tranquilo e

conhecido) como um lugar de memória, no qual as imagens de memória seriam dispostas.

Estas imagens de memória deviam ser expressivas. O intuito era organizar uma série de

associações de imagens e lugares a fim de memorizar argumentos e discursos. Ainda, o

tratado de Romberch traz como uma das possibilidades de sistema de lugares de memória a

organização cósmica: o mundo elementar, os planetas, as estrelas, a esfera celeste e as nove

ordens dos anjos, cosmologia muito popular na Idade Média. De acordo com o estudo de

Frances Yates288, uma das matrizes para esta organização é a Divina Comédia de Dante, que

também estaria presente no posterior Thesaurus artificiosae memoriae de C. Rossellius

(Veneza, 1579).

285 Todas as informações sobre a Arte da Memória foram expostas no estudo de F. Yates. Cfr. YATES. A arte da memória, cit., cap. 1. 286A forma como Lomazzo pensa o Templo da Pintura, como um dispositivo para a memória, é semelhante à função que ele atribui à pintura no Trattato dell'arte In CIARDI. op. cit., vol II, p. 12. 287Pedro de Ravena, Phoenix, sive artificiosa memoria, 1491; Johannes Romberch, Congestorium artificiose memorie, 1533. 288 The art of memory (1966).

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Avançando no estudo de Yates, a autora apresenta o teatro de G. Camillo

Delminio, célebre personagem do século XVI289. O teatro de Camillo transforma a arte da

memória como era entendida pelos autores clássicos e medievais, como um recurso para

auxiliar o orador: ele a insere no contexto das ciências ocultas. Diz-se que Camillo havia

construido dois Teatros da Memória, um em Veneza e outro na corte francesa de Francisco I,

que permaneceram incompletos. Em 1550, após sua morte, o Idea del Theatro é publicado,

cujo escopo era explicar o sistema do Teatro da Memória290.

A arquitetura do teatro de Camillo baseava-se no teatro vitruviano recuperado por

Palladio291: de planta circular, contendo sete corredores e cinco entradas para o palco, e, ao

centro, o palco e a orquestra. Esta organização possui uma correspondência com o zodíaco em

Vitrúvio. No caso do teatro de Camillo, a planta circular permanece, porém sete portões são

acrescentados aos sete corredores, e, sobre cada um desses, uma imagem é impressa. Há sete

fileiras horizontais no espaço do auditório, a primeira está no nível do térreo e as demais vão

se elevando gradativamente até chegar na sétima fileira, a mais alta. A mais importante das

fileiras é a que está próxima do solo, e, na medida em que se sobe de fileira, o grau de

importância diminui, tal qual no teatro vitruviano, onde as pessoas mais importantes

ocupavam a primeira fileira. Portanto, existem dois sistemas de organização: um vertical,

referente ao corredor, e outro horizontal, referente à fileira. O orador -mago-homem

hermético, ao ingressar no teatro, posiciona-se no centro, no lugar do palco, e a partir daí

visualiza a totalidade do sistema.

Agora, tratemos das imagens de memória. Camillo fundamenta seu pensamento

nos filósofos neoplatônicos, como Marsilio Ficino e Pico della Mirandola, tradição que, no

final do século XV, funde a cabala judaica, a filosofia hermética e o Neoplatonismo de

Plotino, todas tradições que se aproximam em certa medida. Da Cabala procede a noção da

"Casa da sabedoria de Salomão", cujos sete pilares correspondem às sete sefirot da esfera

supraceleste (as sete qualidades ou nomes de Deus), que se tratam de sete medidas para as

esferas inferiores (celeste e sublunar). Nestas sete sefirot estão contidas as ideias de todas as

coisas, que são transmitidas para as esferas inferiores através de emanações divinas, e

289 Sobre o teatro de Giulio Camillo, indico o estudo do professor Milton José de Almeida, acompanhado da tradução da obra para o português, O Teatro da Memória de Giulio Camillo. Campinas: Unicamp, 2005; Também, BOLZONI, L. Il teatro della memoria. Studi su Giulio Camillo. Pádua, Liviana, 1984.

290Organizado por Girolamo Muzio, a serviço de Afonso d'Avalos, governador de Milão. Cfr. ALMEIDA.op. cit., p. 17. 291 YATES. op. cit., pp. 216-17.

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manifestam-se de maneira distinta em cada um dos três mundos (neste sentido, existe uma

semelhança com os diagramas de Ramon Llull292).

A tradição hermética também postula este tipo de organização cósmica, na qual as

substâncias divinas se comunicam com o mundo elementar através da cadeia dos seres. De

acordo com esta tradição, era possível acionar as frações da essência divina presentes na

mente humana desde a criação, por meio da experiência religiosa hermética, como afirmamos

anteriormente. Por sua vez, Marsilio Ficino, no De vita coelitus comparanda, apresenta uma

teoria mágica astral, muito influenciado pelo Corpus Hemeticum e pelo Asclepius (manual de

rituais mágicos), demonstrando em sua obra, maneiras de captar os influxos das estrelas.

Todas estas noções metafísicas podem ser encontradas na teoria de Camillo e,

também, no corpus textual de Lomazzo. Não é possível saber se o hermetismo evidente em

Lomazzo foi veiculado primeiramente através do contato com os textos de Camillo ou se

Lomazzo já conhecia os textos herméticos em primeira mão ou através de terceiros (opção

que acho mais provável, já que o material hermético se faz presente desde o L.S., antes do

contato com Camillo). Provavelmente, Lomazzo lera Ficino. A presença da teoria musical

neoplatônica de Ficino aparece em sua teoria artística em torno da expressão dos afetos tanto

no Trattato dell'arte quanto no Idea 293.

Camillo utiliza as sefirot cabalísticas para organizar cada uma das sete categorias

do conhecimento universal reunido no sistema do teatro. Nota-se que o número místico sete é

outro ponto em comum entre ambos os autores, influenciados pelo pensamento mágico. Cada

um dos sete portões do primeiro nível pertence a uma dessas causis primis, associadas à

imagem de um dos sete planetas astrais (Mercúrio, Marte, Júpiter, Saturno, Vênus, Lua e Sol).

Os planetas são a primeira série de imagens a serem vistas, gravados nos portões, no primeiro

nível, correspondendo ao grau mais elevado de contato entre o mundo elementar e o mundo

celeste. Conforme o mago-orador sobe de nível em uma determinada série (sefirot-planeta),

imagens vão sendo reveladas, compreendidas dentro da chave simbólica da sefirot/planeta da

série, dando acesso a conhecimentos cada vez mais próximos do mundo elementar. Este

conjunto de imagens organizadas em um sistema de significados, para além de um esquema

fundado na arte da memória, possui o caráter mágico-astrológico da imagem como talismã, de

292 Ibidem, pp. 226 e ss. 293 CHAI. op. cit., pp. 156 e ss. (ut musica pictura); CIARDI. op. cit., vol. I, pp. XXIX e ss (Conoscenze musicali, cultura esoterica, cabbala, magia).

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inspiração ficiniana e também relacionado a um manual mágico muito famoso na época, o

Picatrix.

Lomazzo também aplica aos princípios da arte da memória clássica à teoria

hermetico-cabalista-mágico-astrológica. O Templo da Pintura possui uma planta circular, cuja

descrição lembra uma arquitetura bramantesca, como o tempieto di San Pietro in Montorio ou

mesmo o pantheon. A escolha de um templo é significativa, já que lugares religiosos eram

loci de memória comuns nos tratados da arte da memória medievais ("tranquilos e

conhecidos"). Lomazzo distribui suas "imagens" de memória pelo templo: as colunas são os

artistas canônicos; nos pedestais, a representação dos vícios a serem evitados; no alicerce, o

discernimento e suas sete partes; nas paredes, as partes da pintura e suas partes em gradação

até chegar à arquitrave, onde estão as sete partes da composição. Na cúpula, encontram-se as

sete partes da forma.

Nota-se que, ao contrário do que a arte da memória clássica e escolástica

recomendavam, Lomazzo não utiliza as "imagens expressivas" para as partes ou gêneros da

pintura. Neste ponto, Lomazzo se aproxima muito mais dos diagramas de Ramon Llull, como

a Árvore da Memória, nos quais Llull distribuía os atributos de Deus, os vícios, as virtudes, os

elementos, plantas, animais, etc, a fim de organizar e memorizar os fundamentos da sua ars

combinatoria (fig.26).

26- Ramon Llull. Arbor scientiae, venerabilis et caelitvs, illuminati patris Raymvndi Lvllii

Maioricensi. edição de 1515 (Fonte: google imagens).

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Ramon Llull destaca-se da tradição escolástica da ars memorativa fundada na

retórica clássica. Monge espanhol que viveu na passagem do século XIII para o século XIV,

ao contrário da maioria dos eruditos de seu tempo, afastou-se do aristotelismo de Tomás de

Aquino e aproximou-se do pensamento filosófico de Santo Agostinho. Seus diagramas, nos

quais utilizava palavras, serviam para memorizar a sua arte combinatória, desenvolvida por

ele com o intuito de provar a Trindade para os infiéis.

O Templo de Lomazzo não se trata apenas de um esquema mnemônico sugerido

para o artista aprendiz como um caminho didático facilitado, tal qual os diagramas de Llull ou

os sistemas de ars memorativa escolásticos e antigos. Da mesma forma que o Teatro da

Memória de Camillo em relação aos segredos do Universo, o Templo da pintura reúne todo o

conhecimento sobre a pintura, que é situada dentro de uma ordenação cósmica. O simbolismo

da luz, que entra pelo óculos e ilumina o templo, associada à substância divina, provém de

Marsilio Ficino e do Corpus Hermeticum. A finalidade da obra teórica de Lomazzo é revelar,

através do esquema do Templo, o segredo da pintura ao artista aprendiz, a sua verdade

metafísica.

Da mesma forma como ocorre no Teatro de Camillo, as imagens possuem um

poder talismânico na teoria de Lomazzo. Porém, consigo enxergar dois momentos de natureza

distinta em que o mecanismo talismânico imagético acontece: o primeiro, no interior do

Templo imaginário da pintura, através das estátuas dos Governantes. Assim como os magos

egípcios, que com a correta preparação da matéria e com a experiência religiosa hermética,

eram capazes de captar a substância divina, transformando suas estátuas em verdadeiros

deuses294, as estátuas dos Governantes de Lomazzo, através da chave associativa metal -

artista canônico - temperamento - animal - poeta - planeta (conhecimento mágico-

astrológico), são capazes de operar a captação dos influxos astrais.

Um segundo momento se dá propriamente no processo de concepção da obra de

arte: a obra de arte, na teoria de Lomazzo, comporta-se como um talismã mágico. O artista

que conseguiu compreender a verdade metafísica da pintura, que conheceu seu temperamento

e utilizou o esquema do Templo para desenvolver seu estilo pessoal, tomando como modelo o

Governante-arquétipo alinhado ao seu temperamento e escalando todas as etapas do processo

de concepção artística, desde o discernimento à forma (método dedutivo), foi capaz de acionar

a graça divina presente em si próprio (a divindade de sua natureza), já que desvendou a

294 YATES. op. cit., pp. 196-201.

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verdade superior. Desde modo, ele insere, através de sua conexão com o divino, a Ideia ou

Beleza Divina na matéria corretamente preparada, produzindo assim uma verdadeira obra de

arte.

Somente a verdadeira obra de arte é capaz de comover os espectadores, pois,

através dela, a Ideia divina é transmitida ao público. O processo de concepção artística na

teoria de Lomazzo assemelha-se ao processo de preparação de um objeto para receber o

spitirus mágico em autores como Ficino e Agrippa, e no Picatrix. Neste sentido, o artista é

um mago para Lomazzo.

A Teoria dos Governantes.

Os sete Governantes, termo presente no Corpus Hermeticum, relacionam-se aos

sete planetas astrológicos, como em Camillo (sete sefirots). Apesar da forte influência deste

autor no sistema do Templo da Pintura, no caso da Teoria dos Governantes, a fonte mais

importante é o De Occulta Philosophia de Cornelio Agrippa, outro discípulo de Ficino. O

termo "governante" é utilizado por Agrippa no livro III, com o mesmo significado

apresentado no Corpus Hermeticum. As associações dos governantes-planetas com elementos,

metais, vícios e virtudes estão todas esquematizadas na obra de Agrippa, conforme é

demonstrado nas notas da tradução dos capítulos que teorizam sobre os Governantes (11-17).

A originalidade de Lomazzo reside na associação dos sete governantes aos sete

artistas canônicos e na concepção de uma teoria artística pautada na questão da expressão

pessoal do artista, apoiada nas correntes do pensamento mágico-astrológico. Ainda, talvez

seja possível apontar uma outra inspiração para Lomazzo, no que diz respeito ao uso de

artistas em um esquema mnemônico. Lodovico Dolce foi quem pensou as obras dos artistas

modernos como imagens de memórias em um texto sobre a memória, publicado em 1562295.

Sabemos da influência de Lodovico Dolce no pensamento de Lomazzo desde o Libro de

Sogni. É possível que a aproximação da arte da memória, em um primeiro momento, tenha

sido impulsionada pelo erudito veneziano.

Na introdução do Trattato dell"arte, uma das explicações para o surgimento da

pintura é seu uso mnemônico296. O entendimento da obra de arte dentro do campo da oratória,

presente em Dolce, bem como na Idade Média, no Renascimento e na visão da

Contrarreforma, atravessa o pensamento de Lomazzo. Isto pode ser observado no livro II

295 YATES. op. cit., pp. 208-9. 296 Ibidem. op. cit., pp. 210-11.

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(Livro do Movimento) do Trattato dell'arte, no qual a capacidade da obra de arte em

transmitir determinado tipo de afeto está ligada a expressão dos moti e ao tema representado.

No entanto, dento do contexto veneziano, o pensamento artístico de Lomazzo

acerca-se com maior relevo do tratado de um grande admirador de Camillo, Rosselius, cujo

tratado sobre memória foi publicado em 1579. Nesta obra, o leitor é aconselhado a escolher

homens notáveis nas artes e nas ciências como imagens de memória para representar tais

artes/ciências dentro do esquema mnemônico. Yates associa esta prática a um costume antigo,

também no âmbito da arte da memória, que foi transmitido para o Renascimento e pode ser

identificado no afresco do "Trionfo di S. Tommaso d'Aquino" no capellone degli spagnoli em

Santa Maria Novella (Florença), representando o conhecimento de São Tomás de Aquino

através de figuras que personificam as ciências e as artes liberais, como, por exemplo, o

imperador Justiniano, representando o direito civil; Platão, a teologia antiga; Pitágoras, a

aritmética; Euclides, a geometria; Ptolomeu, a astronomia; Aristóteles, a dialética; Cícero, a

retórica. A mesma lógica persiste no famoso afresco de Rafael executado na stanza de Julio

II, "A escola de Atenas" 297.

Os artistas-governantes eleitos por Lomazzo correspondem, em parte, a um senso

comum da crítica do período, em parte, ao gosto pessoal do próprio artista e, por outro lado, à

necessidade de eleger artistas que representassem tendências distintas dentro das

possibilidades existentes no cenário contemporâneo. Michelangelo, Rafael e Leonardo, por

exemplo, são escolhas óbvias, considerados os grandes mestres do primeiro Cinquecento e o

apogeu das artes plásticas por grande parte dos teóricos e críticos até então. Tiziano, outra

escolha evidente, o campeão dos teóricos venezianos (Aretino e Dolce), grande representante

do colorismo veneziano e pintor de corte do imperador Carlos V, que concedeu-lhe, dentre

inúmeras honras, um título de cavaleiro 298.

Lomazzo, por vezes, ao longo do Trattato dell'arte, demonstra uma certa

hesitação entre Correggio e Tiziano para representar o arquétipo do pintor colorista.

Correggio, uma figura prestigiada no ambiente lombardo, referência para a maioria das

escolas de pintura da região, era uma possibilidade quase que acertada. Porém, por fim,

Lomazzo opta por Tiziano, o que pode ter ocorrido devido à influência dos teóricos de

Veneza, à ligação do pintor veneziano com os Habsburgos espanhóis (dada a situação política

297 YATES. op. cit., pp. 50, 209-10. 298 "Ordem da Espora de Ouro". Cfr. FREEDMAN, Luba. Titian’s Portraits Through Aretino’s Lens. Pennsylvania: Penn State University Press., 1995, p.118.

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de Milão e o fato de a obra ter sido dedicada a Felipe II) e, possivelmente, à reivindicação da

hereditariedade de Correggio por parte dos pintores da escola de Cremona, como B. Campi, a

quem Lomazzo faz forte oposição 299.

Gaudenzio Ferrari era um dos maiores mestres lombardos, líder da escola da qual

Lomazzo fazia parte. Polidoro da Caravvaggio foi escolhido por ser o representante da pintura

mural romana. O último é Andrea Mantegna, representante dos pintores interessados nas

construções de perspectiva e contrafações, também remontando às escolas lombardas, fazendo

referência aos grandes pintores locais como Foppa, Bramantino e Zenale.

As associações de cada mestre com um planeta astrológico também segue uma

lógica comum: Michelangelo associado ao temperamento saturnino, o temperamento

considerado filosófico e hermético; Rafael, conhecido por sua amabilidade e graça na pintura,

relacionado à Vênus; A Leonardo, o grande mestre da luz, conhecido por seus dotes musicais,

de atitude científica e em certa medida hermética, ao enxergar as leis do Macrocosmo nos

pequenos sistemas, foi dado o temperamento solar, o mais importante para os filósofos

neoplatônicos. Leonardo, por ser uma referência para os artistas lombardos, é colocado em

evidência no sistema lomazziano; Andrea Mantegna, representante do raciocínio analítico em

torno da organização compositiva e espacial (construções de perspectiva), foi associado ao

temperamento mercurial; Polidoro à Marte, devido às pinturas murais de temas bélicos com

forte referência à arte greco-romana; A Tiziano foi dado o temperamento lunar, referente à

sensibilidade afetiva presente em seu colorido, à representação dos fenômenos naturais, aos

ciclos de vida, ao movimento das coisas da natureza.

K) Capítulo 10 - Do fundamento das sete principais partes sétuplas da pintura e sobre

quem as governam.

Neste capítulo, Lomazzo dá continuidade à explanação de sua teoria. Lomazzo

esclarece que cada um dos sete governantes possui uma maneira ou estilo diferente, todos

igualmente perfeitos, e define o estilo como a manifestação do temperamento do governante

em cada uma das sete partes (etapas) da pintura reunidas harmonicamente na obra de arte.

Não se trata mais, como ocorre no Trattato, da expressão pessoal do artista através da

representação do movimento na obra de arte, mas da expressão de seu temperamento em

todas as partes da pintura, ou seja, ao longo de todo o processo de concepção do objeto

artístico.

299 KLEIN. Idea del tempio della pittura (trad. francesa). cit., vol. II, p. 478.

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Então, o autor introduz o conceito de euritmia, ao qual dedicará um capítulo

inteiro mais adiante (cap. 37). A euritmia, segundo Lomazzo, é o fundamento de tudo, de

onde nasce a beleza da obra. A beleza da obra está relacionada à harmonia das proporções,

ligada à harmonia musical, uma noção pitagórica também presente em Santo Agostinho e em

Marsilio Ficino (Lomazzo discorrerá sobre isto no capítulo 33, onde afirma que se baseou em

Hermes Trimegistus). O discernimento é a condição para que haja euritmia, pois é ele quem

prepara o intelecto e o juízo do pintor.

O governante ou mestre canônico, que devido às influências astrais, possui uma

maneira própria, insere a euritmia através do(s) gênero(s) onde reside sua facilidade

(graça/inclinação), trabalhando os demais gêneros a partir dele, o que resulta em uma obra

perfeitamente harmônica. Isto também gera variedade, já que nenhum dos mestres possui um

temperamento igual ao outro. A obra de arte deve buscar a universalidade, ou seja, deve

agradar a todos. Entendendo a euritmia ou harmonia da obra, esta questão fica mais clara: a

obra de arte harmônica, por refletir a harmonia celeste, é universal. A Causa Primeira

manifesta-se de maneira diversa nos elementos do mundo sensível, porém tais manifestações

provém da mesma fonte. Portanto, a euritmia não é uma harmonia das proporções das partes

de maneira quantitativa, mas um princípio geral.

É possível entrever, diante da noção de harmonia e euritmia, mais uma vez a

grande dívida com a teoria musical presente no De vita coelitus comparanda de Marsilio

Ficino, que por sua vez fundamenta-se no Corpus Hermeticum.

L) Capítulo 11 - Das sete partes ou gêneros da proporção.

A partir de agora até o décimo sétimo capítulo, Lomazzo irá descrever como cada

um dos sete governantes trabalha cada uma das sete partes da pintura. No caso da proporção,

Lomazzo retoma e aprofunda argumentos que haviam sido expostos no primeiro e no sexto

livro do Trattato, baseando-se sobretudo em Vitrúvio e Albretch Dürer.

Sobre a proporção de Saturno-Michelangelo, Lomazzo não faz uma análise

matemática ou esquemática, mas descritiva, que se aproxima muito mais da experiência de

observação concreta das obras de Michelangelo e não de uma tipologia saturnina literária. A

única observação que aponta para uma característica tipicamente saturnina reside na questão

da sabedoria do mestre toscano. Da mesma forma se dá a descrição da proporção nos demais

mestres. A necessidade de adaptar as proporções dos governantes ao sistema mágico-

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astrológico destermina a maneira como Lomazzo as caracteriza, de modo a relacioná-las de

alguma forma com a tipologia astral do governante em questão.

Porém, Lomazzo não se distancia do contato real com as obras dos mestres, nem

da opinião da crítica contemporânea. Em Gaudenzio, destaca os músculos delicados e lista

características jupiterianas (graça/majestade e diginidade); Em Polidoro da Caravaggio, o

autor faz alusão às pinturas murais que vira em Roma e em Nápoles, e dá características

marciais (grande, terrível e feroz); Em Leonardo, destaca sua inclinação científica,

relacionada a Apolo/Sol; Em Rafael, Lomazzo salienta a variedade, acompanhada de

conveniência, presente em suas proporções humanas, relacionando este caráter com a

tipologia de Vênus/Homem, que modera os afetos de forma racional; Em Mantegna, Lomazzo

destaca características tipológicas que podem ser relacionadas com Mercúrio (elegante,

inteligente e profundo); E em Tiziano, afirma o naturalismo sensível do mestre e a questão

atmosférica presente em suas obras. A relação com o tipo lunar se dá a partir do texto de

Agrippa ( De Occulta Philosophia, livro III, cap. 38), associado às mudanças, à retração e à

expansão, aos movimentos da natureza, aos ciclos.

M) Capítulo 12 - Das sete partes ou gêneros do movimento.

Lomazzo inicia este capítulo discorrendo sobre a figura serpentinata, forma que

ele deduziu da experiência com o afresco do Juízo Final de Michelangelo, relacionada à

maniera moderna. Nota-se que o movimento é o gênero onde se percebe a graça do pintor

mais facilmente, traço que remonta aos primeiros núcleos do pensamento teórico de Lomazzo,

como vimos no capítulo dois.

A descrição dos movimentos de cada um dos governantes foi praticamente uma

transcrição do capítulo 38 ("Os dons divinos que o homem pode receber do alto de todas as

ordens celestes e das inteligências") do livro III do De Occulta Philosophia, que já havia sido

citado no livro II, cap. 7 do Trattato dell'arte.

N) Capítulo 13 - Das sete partes ou gêneros da cor.

Ao descrever como a cor é utilizada em cada governante, novamente Lomazzo

demonstra uma sensibilidade crítica, a partir da memória sobre a experiência concreta com as

obras dos mestres. O esforço para encaixar os governantes no sistema mágico-astrológico

permanece, o que influi nas considerações de Lomazzo. Contudo, tenho a impressão de que na

descrição do colorido, Lomazzo coloca com mais vigor suas próprias percepções, quando, por

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exemplo, descreve a variedade de tecidos representada por Gaudenzio Ferrari e, depois,

compara a maneira deste e de Michelangelo300.

O) Capítulo 14 - Das sete partes ou gêneros da luz - e capítulo 15 - Das sete partes ou

gêneros da perspectiva.

Nestes capítulos, Lomazzo segue o mesmo esquema dos capítulos anteriores para

caracterizar a forma de dar luz e perspectiva de cada governante. No capítulo da perspectiva,

mais uma vez Lomazzo estabele uma comparação entre Gaudenzio Ferrari e Michelangelo,

deixando transparecer seu juízo pessoal, isto é, sua inclinação ao mestre de sua escola. Em

Gaudenzio, Lomazzo destaca a facilidade, a leveza e o ornamento, tanto no colorido (no

capítulo anterior), quanto na perspectiva, estabelecendo uma comparação com Michelangelo,

mestre da maneira tosco-romana, caracterizado pela dificuldade, pela tensão, pela energia

plástica.

P) Capítulo 16 - Das sete partes ou gêneros da composição.

Lomazzo inicia este capítulo com uma fórmula para se julgar as maneiras de

Michelangelo que serviria como base para a crítica michelangelesca posterior a ele: o teto da

Capela Sistina foi considerado a melhor fase do mestre, seguido pelo afresco do Juízo Final e,

por fim, os afrescos da Capela Paulina. Uma observação interessante foi feita por Klein sobre

o entendimento da composição neste capítulo: por vezes ela pode significar a união dos

membros do corpo de maneira adequada, por vezes a união das cinco partes teóricas da

pintura301.

Lomazzo segue o capítulo avaliando cada mestre um por um sob o mesmo

esquema utilizado nos capítulos anteriores.

Q) Capítulo 17 - Das sete partes ou gêneros da forma.

A forma, da maneira como é tratada por Lomazzo neste capítulo, não corresponde

à definição dada a ela até então. No Trattato dell'arte, forma significa iconografia, expressão

do conceito de um determinado tema, história ou invenção. Aqui, a forma aparece referindo-

se à tipologia astrológica de cada governante, associando as formas dos animais citados no

capítulo 11 ao temperamento de cada governante.

300 A primeira pesquisadora a investigar a percepção crítica de Lomazzo nesta obra foi Annamaria Paris, Sistema e giudizi dell'Idea del Lomazzo, 1954. 301 Nota 529 (Apêndice).

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A forma é tratada como uma "imagem de memória" do temperamento de cada

governante para que o pintor aprendiz, ao lembrar da forma do animal, lembre-se também das

características tipológicas do governante. As associações dos governantes e animais podem

ser encontradas em Agrippa, no primeiro livro (capp. 23, 25-27) e no terceiro livro (cap. 49)

do De Occulta Philosophia, mas também em manuais como Le immagini de i dei degli

Antichi (editio princ. 1556; primeira ed. impressa ilustrada em 1571) de Cartari.

Lomazzo explica brevemente a conexão artista-espectador, que se dá através da

correspondência das inclinações astrais que influenciam cada um. Mais uma vez, fala da

questão da euritmia, para explicar a excelência dos governantes. O pintor universal, ou seja,

aquele que possui excelência em todos os gêneros da pintura, isto é, que tem participação em

todas as naturezas é um ideal metafísico. Concretamente, ele não existe. Porém, os mestres

canônicos foram aqueles que tiveram participação na natureza de outros (isto fica mais claro

no capítulo 37, no qual Lomazzo cita as excelências dos governantes), e, por isso,

conseguiram se aproximar mais do princípio de universalidade que os demais.

É preciso tomar cuidado com esta ideia para não inferir em Lomazzo um ideal

eclético. Lomazzo fala da universalidade de maneira abstrata e utiliza a noção de

harmonia/euritmia para explicar a beleza na obra de arte. Ela agrada porque é harmônica em

um sentido metafísico. De modo algum, Lomazzo aconselha o pintor a buscar esta

universalidade, mas deve deixar fluir aquilo que lhe é natural, espontâneo.

Toda sua teoria artística é voltada para a expressão pessoal do pintor: em primeiro

lugar, o pintor deve conhecer a si mesmo, saber qual a sua inclinação, em que gênero(s)

possui excelência, pois é através deste(s) que a graça (facilidade) divina se manifesta. E é por

isto que o artista incipiente deve olhar para o mestre canônico: para ter um guia no qual se

espelhar até ser capaz de trabalhar com autonomia seu estilo pessoal. Os mestres canônicos

não buscaram universalidade, mas possuíam naturalmente excelência em uma quantidade de

gêneros maior.

No fim do capítulo, há o célebre trecho sobre a pintura de Adão e Eva, que gerou

argumentos para que se pensasse em Lomazzo como um defensor do ecletismo. É preciso

estar atento à totalidade do pensamento de Lomazzo para perceber que este quadro hipotético

de Adão e Eva é um artifício didático utilizado pelo pintor para explicar a diversidade de

excelências dos mestres da pintura. Igualmente, Paolo Pino (1548) também empregou um

exemplo parecido. Domenichino, em uma carta a Francesco Angeloni (1632), publicada por

Bellori em suas "Vidas" (1672), dirige uma crítica a este trecho de Lomazzo,

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"Disse, ainda, que para fazer um quadro perfeito de Adão e Eva, Adão desenhado por Michelangelo, colorido por Tiziano; A Eva, desenhada por Rafael e colorida por Correggio: ora, vede V.S. onde cai quem erra nos primeiros princípios" 302

Esta má concepção do pensamento de Lomazzo foi absorvida pela crítica ao longo

do século XIX e XX (Schlosser, 1924; Venturi, 1936; Blunt,1940), até que Denis Mahon, em

seu artigo “Eclecticism and the Carracci: Further Reflections on the Validity of a Label”

(1953), demonstrou que se tratava de um erro de interpretação303.

R) Capítulo 18 - Do discernimento da pintura e de suas partes.

Neste capítulo, Lomazzo discorre sobre as partes do discernimento. Até o

momento, o autor pontuou algumas questões sobre o discernimento: ele é a condição para que

o juízo alcance a Ideia através da cadeia dos seres. Também, ele é necessário para que o pintor

possa empregar a euritmia na elaboração da obra de arte, ou seja, dar harmonia à obra. O

discernimento acompanha o pintor no decorrer de todo o processo de concepção artística,

sendo utilizado em todas as etapas.

Ele não é apenas uma faculdade do intelecto racional, tal qual o juízo. O

discernimento, em um primeiro momento, corresponde à primeira (e mais importante) etapa

que envolve todo o desenvolvimento do pintor até culminar na obra de arte. Lomazzo defende

a ideia do pintor douto, versado na teoria e na prática, próprio do momento de efervescência

dos ambientes acadêmicos em que se encontra. O discernimento é, então, o fruto do processo

de aprendizado de um artista. A partir do momento em que o artista superou a fase do

aprendizado das ciências e das práticas de ateliê, ele está apto, caso tenha inclinação para o

métier, a realizar uma obra de arte com perfeição, utilizando-se de todo este conhecimento

prático e teórico, somado ao prévio conhecimento de si, de suas facilidades (astrológico). É

por isso que o discernimento depura o juízo do artista, este sim uma faculdade inata.

Para dissecar o conceito de discernimento, demonstrando a amplitude da questão,

Lomazzo empresta princípios vitruvianos, e, principalmente, conceitos retirados da retórica

302 BELLORI, P. Le vite de' pittori scultori e architetti moderni. Turim: Einaudi, 1976, p. 372. 303 Capítulo III (seção 3.4) desta dissertação.

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antiga (Quintiliano, Ad Herenium, Cícero, Aristóteles304). O pintor é tal qual um orador: é um

homem bem instruído, cuja arte requer um copioso estudo305.

O discernimento, no entanto, não constitui apenas o primeiro momento. As

considerações intelectuais sobre uma obra de arte são constantes. Cada obra é um caso

particular, e por isso que é recorrente na Fortuna Crítica de Lomazzo a atribuição do termo

"casuística da pintura" à forma como o autor lida com o processo de elaboração de uma obra.

O discernimento reside nesta atitude analítico-racional do pintor frente ao caso particular de

uma determinada obra, considerando o tema, o método a ser empregado, o público, a

finalidade e o local onde será exposta. Ele está presente em todas as etapas do processo

artístico, atuando, também, no encadeamento de cada etapa, visando à união adequada do

conjunto.

S) Capítulo 19 - Da primeira parte da pintura e de suas espécies.

Inicia-se, a partir deste capítulo até o capítulo 25, um conjunto no qual Lomazzo

cria subcategorias para as sete partes da pintura, complexificando seu sistema de classificação

das etapas do fazer artístico306. Não mais lidando com as partes da pintura do ponto de vista

do temperamento astrológico, como foi feito nos capítulos anteriores, o intuito deste capítulo,

no qual o autor se aprofunda na questão da proporção, é apresentar a totalidade das

possibilidades de se proceder nesta parte da pintura sob uma perspectiva quantitativa307. Ao

final do capítulo, Lomazzo faz novamente a ressalva vitruviana que fizera no capítulo 8 ("Das

ciências necessárias ao pintor"): não é preciso aprofundar-se em todas as razões matemáticas

expostas por ele, mas conhecê-las de modo geral.

T) Capítulo 20 - Da segunda parte da pintura e de suas espécies.

304 Cfr. BAROCCHI. op. cit., p. 988. 305 Ragazzi destaca a concepção de Armenini sobre a instrução do pintor, inspirada pela retórica (formação do orador) e pautada na imprescindibilidade da teoria para que alguém possa a vir a se tornar pintor, que coincide com a forma como também Lomazzo enxerga a questão:

"De acordo com a concepção de Armenini, inspirada também pela retórica e pela formação do orador, poderiam tornar-se pintores inclusive aqueles indivíduos desprovidos de um manifesto talento natural. Não que a inclinação natural para a arte não fosse necessária e qualquer um pudesse a vir a ser um pintor. Ao contrário, ela era fundamental, mas a questão era que sem a devida orientação mesmo os agraciados pela natureza fatalmente acabariam por ter seu talento desperdiçado" (RAGAZZI. op. cit., p. 144).

306 Como analisara G. Ackerman. Cfr. Capítulo 2 desta dissertação. 307 Os princípios matemáticos presentes aqui parecem ter sido retirados de algum tratado de música inspirado no Arithmetica de Boécio. O autor também faz uso do comentário de Cesariano ao tratado de Vitrúvio. Cfr. CIARDI. op. cit., vol. I, introd.

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Seguindo no conjunto dos capítulos sobre as subcategorias, Lomazzo aborda as

subcategorias da segunda parte da pintura, o movimento. As ideias presentes neste capítulo,

expostas de forma sucinta, estabelecem uma continuidade com o segundo livro do Trattato

dell"arte na medida em que conserva um resquício do pensamento em torno da papel do

movimento como principal canal para a expressão do artista.

Em relação à classificação do movimento, ele sintetiza as diversas categorias que

preenchem o Livro do Movimento, sem entrar na teoria dos humores, que domina grande

parte dos capítulos do Livro II.

CONCLUSÃO

Na introdução, propusemos uma reflexão sobre a atualidade do pensamento

exposto neste tratado de Giovanni Paolo Lomazzo, avaliando a forma como os historiadores

contemporâneas abordaram a obra.

No primeiro capítulo, traçamos a trajetória do autor e levantamos pontos

relevantes do cenário da Milão dos anos 1560-90 - seu papel na Academia do Vale Blênio, o

caráter profano e poético desta academia, o controle da igreja borromaica sobre as diversas

formas de expressão artística, o intenso fluxo de artistas estrangeiros atraídos para Milão na

segunda metade do século XVI, as disputas entre os artistas milaneses e artistas estrangeiros,

a afirmação das técnicas e linguagens ligadas às escolas locais pelos artistas milaneses a partir

da década de 1560 - . Tais considerações nos foram valiosas para inserir Giovanni Paolo

Lomazzo em um contexto histórico mais concreto, tornando mais palpáveis os aspectos da sua

crítica, as circunstâncias da recepção dos seus tratados, as conjunturas que influíram na

cronologia de seus textos e que contribuíram para seu posicionamento teórico.

A teoria da pluralidade das maneiras pautada na personalidade individual como

veículo da genuína manifestação do estilo do artista já estava engendrada na exaltação do

furor poético e nas ideias de arte como criação e fruto da espontaneidade, cultivadas no

âmbito da academia bleniense; Ainda sobre a academia, o pensamento mágico e o hermetismo

também circulavam ali. A ênfase nas escolas lombardas, sobretudo milanesas, sua filiação

teórica a Leonardo e sua manifesta averssão à artificialidade de pintores alinhados a um tipo

de maneirismo clássico internacional, identificado no cremonês Bernardino Campi, alvo de

muitos de seus versos e comentários ácidos, foram questões que apareceram ao longo da

análise do capítulo I e que estão presentes no Ideia.

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Com isso, não foi minha intenção afirmar que Lomazzo foi o único a compartilhar

desses posicionamentos. Alessandro Lamo, defensor de Boccaccino e biógrafo de Bernardino

Campi também foi um teórico ferrenhamente defensor das escolas lombardas; A decadência

da pintura, corrompida pelos exageros da maniera, foi advertida por Armenini. Estes juízos

compõem um quadro mais amplo da Itália setentrional e Lomazzo é uma dentre essas vozes.

No segundo capítulo, apresentaram-se os estudos sobre a cronologia da

composição dos tratados de Lomazzo realizados pelos principais estudiosos do assunto com o

intuito de atualizar a questão para o leitor. Ainda, ficou clara a importância da descoberta do

Libro dei sogni para precisar as inclinações teóricas de Lomazzo e os caminhos percorridos

por ele no desenvolvimento de seu pensamento.

No terceiro capítulo, discutimos o problema da recepção imediata da obra, e

acompanhamos a sua constante aparição em diversos autores, historiadores, artistas, eruditos

ao longo dos séculos, até alcançarmos a historiografia e crítica contemporâneas.

Em seguida, nosso autor foi situado no âmbito da literatura artística do período.

Por fim, comentários aos capítulos traduzidos do Ideia foram realizados, destacando os pontos

mais significativos para orientar o leitor no espaço interno da obra.

Espero que o percurso proposto por esta dissertação tenha proporcionado ao leitor

um acercamento fecundo desta tão insigne obra e de seu autor, e possibilitado um confronto

crítico com ela, contribuindo para uma leitura, senão totalmente límpida, ao menos mais

tangível do Ideia do templo da pintura.

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APÊNDICE

Tradução

Aqui, será apresentada a tradução dos vinte primeiros capítulos do Ideia do Templo da

pintura com comentários nas notas de rodapé. As escolhas realizadas pela tradutora foram

pautadas no confronto das traduções realizadas antes desta, ou seja, a tradução francesa de

Robert Klein (1974) e a tradução para o Inglês de J. J. Chai (2013). Ainda, para compor as

notas de rodapé, segui os apontamentos de Roberto Paolo Ciardi em sua edição crítica

moderna da obra (1973).

As notas acompanham o seguinte encadeamento lógico: a) notas de tradução; b) notas

de discussão bibliográfica; c) notas sobre conceitos do texto; d) notas sobre os diálogos

estabelecidos pelo autor com textos precedentes, antigos ou modernos; e) notas que conectam

o texto com outros trechos da obra teórica de Lomazzo; f) notas de contexto.

IDEIA DO TEMPLO DA PINTURA 308

onde ele discorre sobre a origem e o fundamento das coisas contidas em seu tratado da arte da pintura 309

308 Sobre o termo "Idea" no título da obra, Robert Klein (Idea del Tempio della pittura (trad. francesa), Florença, 1974, p. 475) afirma que pode ser traduzido por imagem ou, mais precisamente, por épura, citando o techo de Vitrúvio (De Architectura, I, 2): "species dispositionis, quae graece dicuntur ideai, sunt hae: ichonographia, orthographia, scaneographia". Ou seja, o plano, a elevação e a vista em perspectiva. Ainda, Klein afirma que é bastante comum a aparição da palavra "idea" em títulos associados a construções. Um exemplo a ser citado é o Idea del Theatro de Giulio Camillo Delminio, publicado postumamente em Veneza em 1550, ao qual Lomazzo faz referência mais adiante (cfr. Ciardi, R.P.. Scritti sulle arti, vol. I, p. LXIII; SCHLOSSER, Julius von. Kunstliteratur, Viena, 1924. Utilizei a ed. de Paris, 1996, trad. por Jacques Chavy. A referência está na p. 396). Erwin Panofsky, em Idea: Ein Beitrag zur Begriffsgeschichte der alteren Kunsttheorie (Leipzig/Berlin, 1924), acompanha o desenvolvimento do conceito platônico de "Ideia" desde a Antiguidade até o período Neoclássico, iniciando sua análise a partir da crítica de Platão às artes miméticas e da teoria das ideias (substâncias metafísicas apreensíveis por meio do exercício filosófico). Ao tratar do termo no período conhecido como Maneirista, Panofsky destaca a acepção neoplatônica que este conceito adquire na obra de Lomazzo: "a beleza divina manifesta-se, portanto, sob a influência das Ideias..." (op.cit., ed. Martins fontes, 2000, p. 94). As Ideias, substâncias metafísicas, iluminam na alma do artista instruído as impressões da Beleza Divina. Portanto, uma hipótese possível seria pensar o Templo da Pintura, denominado por Lomazzo de Ideia, nesta chave de raciocínio. O confronto com o Idea del Theatro de Camillo, um autor alinhado às correntes neoplatônicas e herméticas do século XV e XVI, reforça a hipótese de Lomazzo ter adotado o termo influenciado por essas tradições metafísicas. Outra comparação a ser feita, dentro do contexto da literatura artística, é com o Idea de' Pittori, Scultori et Architetti (Turim, 1609) de Federico Zuccari, pintor e teórico italiano também influenciado pelo pensamento neoplatônico. 309 Sobre a cronologia da composição dos tratados de Lomazzo, cfr. capítulo 2 (seção 1) desta dissertação. Ao longo da historiografia artística, os autores que problematizaram a questão foram: KLEIN, R. Idea del Tempio della Pittura, 1974, vol. 2, p. 502 ss. (Introdução) e ACKERMAN, G. The structure of Lomazzo's Treatise on painting, Princeton University, 1964. Ambos apontam para o fato de que este subtítulo do Idea indica ao leitor que esta obra seria um aprofundamento teórico dos conteúdos do Trattato dell'arte della pittura, sua obra anterior. Em contrapartida, no último parágrafo do último capítulo do Idea (cap. 38), a obra é descrita pelo autor como uma introdução, um compêndio do Trattato. Este caráter dúbio do Idea trouxe questionamentos sobre sua

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AO MUI INVICTO

E POTENTÍSSIMO SENHOR

O REI DOM FILIPE DE ÁUSTRIA 310

MEU SENHOR

Não duvidei, quando escolhi Vossa Majestade entre todos os grandes príncipes de

nosso tempo para dedicar esta minha obra, que a aceitaríeis e engrandeceríeis amavelmente,

embora seja este presente humilde e de Vós indigno. Pois pensava na singular humanidade311

com a qual Vós, não menos que com Vossas outras virtudes heróicas e com a grandeza de

Vossos Estados, superais todos os outros príncipes, não somente deste século, mas também

dos passados. Nada, porém, deu-me mais ânimo, diante da hesitação que nascia ao considerar

a humildade do meu presente, que recordar o quanto Vossa Majestade, dentre as diversas artes

liberais com as quais vos deleitais, comprazei-vos principalmente com a nobilíssima arte da

pintura. Assim, apesar de ter construído este meu Templo (que deste modo me agradou

chamá-lo) de forma rudimentar e sem nenhuma nobreza, assegurei-me de que minha obra não

seria desprezada entre Vossas outras ocupações, a ponto de por vezes inclinar vosso olhar

para ela e com prazer admirá-la, pois tinha em conta a dignidade da matéria de tal edifício, a

destinação original e sobre a cronologia dos textos de Lomazzo, questões analisadas por Klein ("les sept gouverneurs de l'art", 1959; La forme e l'intelligible, Paris, c. 1970) e por Ackerman (op. cit.). Com a descoberta do manuscrito do Libro dei Sogni, a cronologia e as relações entre os escritos maduros de Lomazzo são submetidos a novas consideraçõe por Roberto Paolo Ciardi, Scritti sulle arti (Florença, 1973) e Jean Julia Chai, Giovan Paolo Lomazzo and the art of expression (1990). 310 A partir de 1535, a cidade de Milão passa para o domínio imperial (Sacro Império Romano Gêrmanico); Em 1540, Carlos V nomeia seu filho, o futuro Felipe II, duque de Milão e esta permanece sob domínio do Império Espanhol até 1714. L. escolhe, como era usual no período, a autoridade política máxima como seu protetor. Sobre o contexto político de Milão no período de escrita do Idea, cfr. o capítulo 1 (seção 2) da presente dissertação.

311 Texto italiano: Umanità. Tr.R.K.: mansuétude (brandura; mansidão; misericórdia). Optei por traduzir o termo por Humanidade para preservar sua relação com a palavra latina humanitas, cujo significado pode se dar tanto no sentido de benevolência, bondade e benignidade, como no sentido de cultura do espírito, instrução, educação, belas artes, belas letras, ou mesmo polidez, civilidade, graça, bons modos e cortesia (Saraiva, 2006). No V.A. Crusca aparecem duas maneiras através das quais o vocábulo é empregado na literatura italiana do século XIV: a primeira, no sentido de "abstrato de humano", do latim Humanitas. A segunda definição dada pelo vocabulário é "benignidade, cortesia", do latim Humanitas, Lenitas. Em Il Cortegiano, Baldassare Castiglione utiliza o termo como um dos atributos de seu modelo ideal de homem da corte:

"Ma non ricercando più lontano, possiamo di questo far bon testimonio con la gloria memoria del duca Federico, il quali a' dí suoi fu lume della Italia; né mancano veri ed amplissimì testimonii, che ancor vivono, della sua prudenzia, della umanità, della giustizia, della liberalità, dell'animo invito e della disciplina militare (...)" (Il Cortegiano. Turim: Enaudi, 1965, p. 11)

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saber, a pintura, e a afeição e a estima que Vossa Majestade tendes por esta arte. Este é fruto

de meus anos de juventude, concebido nas horas em que, cansado de pintar, tinha vontade de

me distrair, não encontrando mais doce distração que contemplar e investigar os segredos da

arte que praticava o dia inteiro. E, nos dias de hoje, novamente o retomei em mãos, aprimorei-

o e o embelezei o melhor que pude 312.

Nesta obra apresentam-se de forma ordenada todas as partes substanciais da

pintura que são a proporção, o movimento 313, as cores, as luzes, a perspectiva, a composição

312 Gerald Ackerman (op. cit.), em sua análise da estrutura do corpus teórico de Lomazzo, formado pelo Trattato della pittura e pelo Idea del tempio (o pesquisador não tinha conhecimento da existência do L.S.), demonstra que ambas as obras incialmente formavam um mesmo núcleo, um único tratado sobre a pintura, em grande parte escrito no período entre 1560-1570, antes da cegueira de Lomazzo (aproximandamente em 1572). Além destes dois tratados publicados, existe ainda uma outra obra, um manuscrito não publicado de Lomazzo, o Libro dei Sogni (c.1563), descoberto na King's Library of the British Museum e publicado na edição crítica dos textos de Lomazzo por Roberto Paolo Ciardi (1974). Sobre a datação do manuscrito, cfr. capítulo 2 desta dissertação (seção 1.2.1). Nesta obra, Lomazzo expõe o primeiro núcleo de reflexão teórica sobre as artes figurativas, em forma de um diálogo, cujos interlocutores são Leonardo e Fídias (quinto e sexto ragionamenti). Como destaca Jean Julia Chai (Gian Paolo Lomazzo and the Art of Expression, Cambrigde, 1990), baseada nas considerações de Ciardi (op. cit.), há uma mesma matriz da concepção artística de Lomazzo percorrendo toda o seu corpus teórico, cujo processo de formulação e reflexão se inicia no Libro dei Sogni. Suas obras publicadas em seu período tardio, sobretudo o Trattato dell'arte (1584) e o Idea del Tempio (1591), constituem a expressão de "seu pensamento mais maduro e de uma maior precisão linguística e conceitual". Neste trecho, portanto, Lomazzo se refere ao seu manuscrito e ao longo processo de concepção de sua teoria artística. Para um maior aprofundamento na questão, cfr. capítulo 2 desta dissertação (seção 1). 313 Texto em italiano: moto, traduzido aqui por movimento. Tr. R.K.: mouvement; Tr. J.J.C: movement. A palavra, na obra de Lomazzo, significa expressão facial e gestual, a representação das emoções, um dos pilares de todo o seu pensamento, refletindo sua forte conexão com o pensamento de Leonardo. Segundo o V. A. Crusca, a palavra moto vem da palavra latina motus, que pode significar movimento, mas também gesto, gesticulação, ação (oratoria) dentro da obra de Cícero; Ainda sensação, sentimento, movimento da alma, comoção, paixão, alteração (Cfr. Saraiva, 2000). Em relação a esta conexão com a oratória clássica, é possível pensar no impacto que autores ligados à retórica tiveram na obra de Lomazzo: de um lado, Lodovico Dolce, e de outro lado, e aqui lanço uma hipótese, tratadistas da arte da memória ligados à mnemônica escolástica (seria preciso investigar melhor a questão). No primeiro caso, nas obras de Paolo Pino (1548) e Dolce (1557), moto também é sinônimo de invenzione, que corresponde a uma das três partes da pintura, e da mesma forma ele aparece no Libro dei Sogni (c. 1563). É através do movimento que o artista comunica suas emoções. No segundo caso, de acordo com os princípios da arte da memória, que fazia parte da retórica desde a Antiguidade e foi reelaborada pela escolástica medieval, as imagens expressivas eram utilizadas como imagens de memória, que estimulavam as emoções humanas através das similitudes corporais. É possível, portanto, estabelecer uma ponte entre a forma como Lomazzo destaca o papel do movimento na obra de arte, importante para comunicar emoções, e a maneira como a arte da memória empregava o princípio das similitudes corporais. A obra de arte, neste sentido, possui uma função como ars memorativa. Encontram-se traços deste pensamento na introdução do Trattato dell'arte. Sobre a arte da memória, cfr. YATES, F. op. cit.. No Trattato dell'arte della pittura (1584), moto aparece como uma das sete partes da pintura, sob a nova configuração sétupla na qual a pintura é reorganizada por Lomazzo. Lomazzo, no Trattato, considera o moto a principal e mais importante parte da pintura, o espírito e vida da arte, através do qual o artista transmite o temperamento, ideia que segundo Chai (op. cit.), derivou-se dos escritos teóricos de Leonardo, escritos aos quais Lomazzo teve acesso através de Melzi, ex aluno do mestre e amigo próximo de Lomazzo:

"in questo appunto [dar il moto alla figura convenientemente] consiste lo spirito e la vita dell'arte, onde i pittori lo sogliono dimandare ora furia, ora grazia et ora eccelenza dell'arte: e non senza ragione, poiché questa parte é la piú difficile a conseguire che sia in tutta l'arte et anco la piú necessaria da sapersi. Percioché con questa i pittori fanno conoscere differenti i morti da i vivi, i fieri da gl'umili, i pazzi da i savii, i mesti da gli allegri et in somma tutte le passioni e gesti che può mostrare e fare un corpo umano tra se distinti, che si dimandano con questo nome di moto, no per altro che per una certa espressione e

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das coisas314, e, finalmente, a forma de tudo o que se pode representar com o pincel315. E este

tratado vem a ser o espírito e a luz do outro tratado da pintura, onde se discorreu largamente

sobre todas essas partes316. Era minha intenção – e já havia iniciado este projeto – desenhar as

figuras através das quais se pudesse compreender com maior clareza todos os procedimentos e

a aplicação dos conceitos que eu havia ensinado. Isto teria sido de grandíssima utilidade não

somente aos homens devotados à prática da arte, mas também aos teóricos. Porém, não pude

dimostrazione estrinseca nel corpo di quelle cose che patisce internamente l'animo; (...)" ( Trattato, II, 2, pp97-98, "della necessità del moto")

Já no Idea, a expressão do temperamento do artista se expande para a totalidade de seu estilo. Neste último suspiro de seu pensamento teórico (na realidade seu mais profundo mergulho), a mais madura e conceitual de suas obras, Lomazzo equilibra a importância de todas as sete partes da pintura. Contudo, existem trechos em que esta característica do movimento ligado à fúria artística é destacada (cfr. cap. 20 do Ideia). 314 No texto em italiano ela aparece como composizione delle cose; Tr. R.K.: arrangement des choses; Tr. J.J.C.: composition. Robert Klein atribui os seguintes significados ao conceito: representação, composição, montagem, aplicação (mise en ouvre, composition, assemblage, application). Em seguida, aponta para as duas acepções possíveis para esta parte da pintura segundo o Trattato, VI, I: a união dos elementos e das partes da pintura e a ligação entre teoria e prática. Mais frequentemente " (...) il s'agit de l'art d'adapter et de grouper les figures et les objets sur un tableau, en tenant compte du sujet, de l'emplacement, etc." (op. cit., II, p. 488). A composição é a primeira parte da prática, que corresponde ao livro VI do Trattato, e que, portanto, faz a primeira conexão entre as cinco partes teóricas e a prática. Tal união da proporção, movimento, cor, luz e perspectiva deve ser acompanhada pela prudência e pelo juízo crítico do artista, adquiridos através do exercício prático. A composição, no Idea, adquire uma relação mais estreita com a expressão do temperamento do artista (assim como todas as outras partes). Cfr. Ciardi, op. cit., introd., pp. LXVIII-LXIX. 315 Texto em italiano: Forma. Tr. R.K.: figure/ figuration. Klein explica: "La septième partie ou forma est encore plus difficile à traduire par un terme équivalent: c'est, comme l'a souligné Fr. Saxl (Antike Goetter.. pp 14-5), tantôt l'aspect extérieure de l'object, tantôt la donnée iconographique, traditionnelle ou non, tantôt l'storia, le sujet même du tableau" (op. cit., II, pp. 488-9). Ela varia, portanto, ao longo do Trattato dell'arte entre forma externa, história/tema do quadro e iconografia. Tr.J.J.C.: form. Vale ressaltar a observação que Robert Kein faz na introdução à tradução francesa do Idea: os termos utilizados para denominar as sete partes da pintura possuem um sentido muito mais amplo e por vezes se misturam. A proporção pode significar a relação das dimensões de um corpo ou objeto, mas também o desenho de forma geral (correções de óptica no Tratt. I, 2); O movimento pode significar expressão, gesto e características, mas também conveniência e graça. A cor pode se referir à matéria manipulada, ao colorido, à qualidade em oposição ao desenho, à individuação da obra, ao fator que engendra a verossimilhança, ao indício da estrutura física; A luz pode se referir à iluminação, à perspectiva aérea, à matéria (reflexos). A luz, a perspectiva, a cor e a composição se cruzam algumas vezes, apresentando domínios comuns; A perspectiva pode significar a construção do espaço cênico, o escorço, pertencente ao desenho e à proporção também. Por vezes compreende a teoria de sombras, e sob o nome de perspectiva universal, o decoro, a colocação dos personagens (sua importância visual). A prática seria a parte mais propriamente artística e a composição, a ligação entre teoria e prática, ou seja, a ligação das sete partes da pintura, a prática propriamente dita, a arte de adaptar e de agrupar as figuras e seus objetos no quadro em relação ao tema, localização, etc; A forma seria a invenção, a iconografia, a história. Gerald Ackerman (op. cit.) afirma que essa amplitude de definições confusas, e que muitas vezes se intercalam, pode ser explicada pelo longo processo de formação da teoria de Lomazzo, o qual, na medida em que reformulava os seus conceitos e ampliava seu leque bibliográfico, sobrepunha e reorganizava os esboços do seu tratado da pintura. Cfr. cap. 2 (seção 1) da presente dissertação;Ciardi, op. cit., introd., pp. LXVIII e ss. 316 Trata-se do Trattato della arte della pittura, scoltura et architettura, publicado em Milão em 1584 por Paolo Gottardo Pontio. O "spirito e luce dell'altro della pittura": o Trattato foi concebido para ser um manual prático para os pintores (apesar de sua enorme extensão e complexidade), reunindo todas as possibilidades de se aplicar a proporção, o movimento, a luz, a cor e a perspectiva na obra, de acordo com o tema escolhido, o local, o comitente, etc, enquanto que o Idea constitui-se como sua obra teórica, metafísica, de cunho mais filosófico, que além de discorrer sobre o discernimento (faculdade intelectual, que faz com que o artista acesse a Ideia divina), fundamenta a organização cósmica na qual o artista e a obra de arte são inseridos através do Templo dos Governantes.

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levar essa empresa até o fim, tendo ficado cego nos anos áureos317 de minha vida, quando

havia apenas completado trinta e três anos 318. Assim sendo, voltado completamente à teoria,

dediquei-me somente a ampliar tais regras e observações com um estudo continuo e

exaustivo, mas jamais penoso, e até mesmo divertido e agradável. Pois sabia que me ocupava

de uma arte tão preciosa e nobre, a única que nos traz a verdadeira compreensão da beleza das

coisas criadas através do mais digno sentido do corpo humano passando ao juízo, do qual ela

nasce, e ao se unir a ele, ilumina-o319. E, além disso, realizei essa obra pensando nos

317 No texto em italiano, a expressão utilizada é "...essendo rimaso cieco nel più bel verde dell'etá mia...". Tr. R.K.: "...étant devenu aveugle dans las fleur de l'âge.". 318 De acordo com seus versos autobiográficos no final do Rime ad imitazione dei Grotteschi:

Doppo ció no passaron molti giorni;

che per grave accidente gli occhi miei

Chiusi; e perdei la amata e cara luce,

Che mi fece restar fuor di me stesso (...)

Ma questo fù il dolor, ch'in quella estade,

Che fiorir dovea l'arte, ciò m'avenne.

Però che fù per mia infelice sorte

Ne gl'anni trentatre de la mia etade." (Rime, 1587, p. 538-539)

Nesta passagem, Lomazzo fala sobre o projeto de ilustração do seu tratado, o qual já havia sido iniciado, mas foi interrompindo pela cegueira precoce. Este é um dado bastante importante, que pode ser utilizado para estabelecer uma ponte entre o Idea e o L.S. No L.S., como aponta Ciardi, existem espaços entre as páginas com inscrições que sugerem temas para ilustrações. Ou seja, Lomazzo pode estar se referindo ao L.S. neste trecho, que foi abandonado como tratado teórico por Lomazzo, mas que forneceu o núcleo conceitual dos tratados desenvolvidos alguns anos depois. 319 De acordo com o V.A.Crusca., a definição de giudizio varia entre "assembléia ou reunião de juízes" (do latim: iudicium, ius, forum), "sentença" (do latim: iudicium, sententia) e "discurso, parecer, opinião"(do latim: iudicium, sententia, opinio). Na literatura artística do século XVI, o termo é incorporado como o juízo crítico do artista, tanto em relação a suas próprias obras, quanto em relação às obras dos outros, que impulsiona o artista a fazer cada vez melhor e a alcançar a perfeição na arte. Este juízo crítico, mediado pelo conhecimento das proporções dos corpos humanos e dos animais (Leonardo, Trattato della pittura) e pelo exercício do desenho (Vasari a B. Varchi, Maggioranza delle arte, 1547), é considerado pela teoria artística do período como uma faculdade intelectual inata do artista, o "giudizio dell'occhio" (carta de Michelangelo a M. Bassi, 1570), que pode ser aperfeiçoada com a prática da arte (Paolo Pino, 1548; Vasari, 1568). Para um entendimento claro e bem pontuado do termo na literatura artística do Cinquecento, cfr. GRASSI, L; PEPE, M. Dizionario di Arte. Turim: UTET, 1995. David Summers (The Judgment of Sense, Cambridge, 1987), ao investigar o problema em torno do juízo na teoria e crítica artística do Renascimento, contrapõe-se à tradição apontada por Robert Klein (Giudizio et Gusto, 1961) em torno da prudência aristotélica (Ética a Nicômaco, VI, ix-xi), uma virtude do intelecto prático que adapta o caso particular a princípios universais e vice-versa, afirmando que, para além desta tradição, existe uma outra tradição não muito explorada referente ao '"Juízo sensorial pré-racional", que pode ser buscada em outro texto do estagirita, De Anima (426b-c). Na tradução latina moderna deste texto, o termo grego Krinein (discriminar, distinguir, diferenciar) passou para o latim como iudicium. De acordo com Aristóteles, a capacidade de julgar (Kritikon), atividade que faz parte da alma animal, é função não só do pensamento (razão), mas também da percepção (sentidos). No final do período conhecido como Idade Média, entre os autores do âmbito da psicologia aristotélica, referir-se ao "processo de conhecimento através da percepção dos sentidos" como "juízo" (iudicium) torna-se recorrente. Em seu estudo, partindo desta discussão da origem do termo, Summers investiga esta tradição ligada aos sentidos no intuito de compreender o densevolvimento do juízo ligado à faculdade da visão no pensamento artístico do Cinquencento. Cfr. SUMMERS, D. The Judgment of Sense. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, pp. 21-28. Nesta passagem de Lomazzo, esta conexão

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benefícios que poderia proporcionar ao demonstrar aos outros o caminho rápido e simples

para imitar e emular a natureza, no qual consiste toda a arte da pintura, coisa que poucos

podem compreender sem a luz das regras e dos preceitos320.

Resta manifestar os motivos que me impeliram a dedicar estes meus escritos a

Vossa Majestade e não a outro príncipe. Contudo, eles podem ser facilmente deduzidos por

todos, pois é de conhecimento geral que a finalidade principal dos escritores ao dedicar suas

obras a príncipes e a grandes senhores é para que os defendam com sua autoridade das

injúrias321 dos invejosos e das maledicências. E todos sabem também que maior protetor não

se poderia escolher, tanto pela grandeza da fortuna quanto pela grandeza dos méritos, que

Vossa Majestade, a qual, Deus, com mãos muito generosas, enriqueceu com todos os dons

que os homens julgam desejáveis e nenhum homem, do passado ou do presente, pode Vos

igualar. Ainda que sobre essa matéria não se possa dissertar em poucas linhas, ditadas por

uma linguagem inculta e despreparada, já que é digna somente de ilustres poemas e histórias,

direi somente que, considerando o conhecimento que Vossa Majestade possui sobre a pintura

e a muita estima que mostra por ela ter, julguei que esta minha criatura não poderia estar mais

segura que sob a vossa proteção e defesa, mais que sob a de qualquer outro príncipe, porque

Vós, não só com o escudo da autoridade, mas também com o da razão, sabereis e desejareis

defendê-la. Dignai-vos, então, a acolhê-la com sua face jovial e seu olhar sereno, como de

costume, não lhe valorizando outra coisa que a grandíssima afeição, reverência e devoção ao

Vosso glorioso nome, com as quais esta obra modestamente se apresenta diante de vós. Uma

vez que, de resto, esta obra sabe muito bem, assim como seu autor, que em todos seus outros

aspectos somos indignos de vir à Vossa presença, e muito menos de sermos acolhidos e

aceitos.

com a faculdade da visão fica clara. A dignidade da visão e a noção heurística da pintura são temas leonardescos. Cfr. Summers, op. cit, pp. 71-5. 320 Aqui, a pintura aparece definida segundo sua forma usual desde Alberti, a "Pintura rival da Natureza". Segundo Robert Klein (op.cit., n.t., vol II, p. 649), esta definição é utilizada por Lomazzo quando ele trata do exercício da arte e de seu ensinamento, enquanto que a definição anterior, a pintura que nasce do juízo do artista e que gera a compreensão da beleza da criação divina, é utilizada normalmente para afirmar a dignidade da profissão (arte liberal). Roberto Paolo Ciardi (op. cit., vol I, p. 244) aponta para um retorno à definição da pintura presente no Trattato (livro I, cap I, "De la definizione de la pittura"):

"(...) arte la quale con linee proporzionate e con colori simili a la natura de le cose, seguitando il lume perspettivo, imita talmente la natura de le cose corporee, che non solo rapresenta nel piano la grossezza et il relievo de' corpi, ma anco il moto, e visibilmente dimostra a gl'occhi nostri molti affetti e passioni de l'animo (...). et è imitatrice [a pintura] e come a dire simia de l'istessa natura, la cui quantità, rilievo e colore sempre cerca di imitare."

Cfr. ACKERMAN. op. cit., p. 116 e n. 213. 321 "...dai morsi degli invidi e maledici". Tr.R.K.: "...contre le morsures des envieux e des médisants".

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Milão, 15 de dezembro de 1590.

À Vossa Majestade.

Seu Humilde servo e vassalo,

Gio. Paolo Lomazzo

Ao Rei Opt. Max. Felipe da Áustria.

Sigismondo Folliano.

Dos grandes reis nascido, sois vós mesmo o rei maior,

Se alguém pode no mundo ser o maior;

Não sois apenas o rei maior, pois

Garantis a benéfica paz de Cristo, o Estado e a fé.

Não somente vossos feitos são ótimos aos bons, maiores aos grandes,

Como também ao sumo Deus, ó Filipe, sois como uma promessa322.

Para Giovanni Paolo Lomazzo. Sobre o Templo dele ou Ideia da sua pintura.

Epigrama de Sigismondo Folliano.

Quanto valhas pelo engenho, e o quanto sois também pela prática da pintura

Esta admirável obra de arte nos ensina:

Pois ao céu é similar e apresenta as coisas pintadas sob a forma de imagem

A qual a mente é capaz de bem discernir, mas não o olho.

Ainda que prisioneiro pelos olhos, não o és pela mente, Lomazzo,

Pois o que vês menos pelos olhos, vês mais pela mente.

Compões este templo, em cujo interior

apenas aos homens doutos em pintura é dado entrar.

Ao livro de Giovanni Paolo Lomazzo.

Poema de Bernardino Baldini.

Voltou a era das obras louváveis dos discípulos de Fídias:

Que traz os Praxíteles e os egrégios Escopas,

Além de outros, cuja honra, tu louvando, ó Propércio,

Vive até hoje e nunca há de perecer.

E se o velho Apeles estivesse presente, haveria de perceber que

sobretudo Paolo é semelhante aos antigos e também a si.

322 Devo a tradução dos epigramas latinos (Os dois de Sigismondo Folliano e o de Bernardino Baldini) à prof. a

Dr'. Isabella Tardin Cardoso (IEL - UNICAMP).

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Que ele discerne de forma mais aguda que os linces do mundo atesta

Esse teu agudíssimo livro, trazendo aos cegos as luzes conhecidas.

De Dom Gregório Comanini ao Autor.

Por fora toupeira e por dentro lince; Ora, com qual arte

Ergues ilustre edifício, no qual a glória

Esplender fazes dos pintores, e teces a história

De suas obras que o mundo tem em si espalhadas?

Já não Tântalo ou Creso ninguém designar-te

Pode, ou qual do ouro mais se aprecia e glorifica:

E mesmo um áureo templo à tua memória

Formas, que ao invés de arcos tem prosas e folhas.

Folhas saem mais que mármores aos duros dentes

Do tempo firmes, enquanto são doutos entalhes,

Claras vozes, sentidos criadores, altos segredos.

Quanta honra, quanta fama, amigo, agora colhidos,

Que mesmo cego vês, onde a Argo te igualas,

E porque nada podes, tudo ousas e tentas. Do Cavalheiro Vespasiano Marini ao Autor.

Pleno de suma inefável bondade

Criado pelo eterno almo Artífice,

Fixou-se o grande Lomazzo ao esplendor

De Deus, do Céu, das Almas beatas,

De harmonia gracioso, de ordem e beldade,

De perfeita sapiência, alto valor,

E aceso aos raios do soberano Amor,

Desceu para ilustrar cada futura idade.

E de si adornou de Hipocrene o coro,

De afeto a pintura, e movimento e vida,

Quando pareceu fechar, os olhos abriu.

Que feliz e altivo do gêmeo tesouro,

Então a gran vôo de alta virtude solitária,

Águia ao Céu apoiou, que aberto distinguiu.

Canção do senhor Francesco Gallarato ao autor.

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Pôde um filho de Apolo

Com arte jamais alguma vez ao mundo ouvida

Os corpos extintos retornar à vida.

Cantando, o sábio Orfeu,

Também de Apolo filho, com frequência fez

Com som dos doces acentos

As plantas, os rios e os animais atentos.

Tu não como eles,

De uma só honra contente, qual novo

Excelente Esculápio, com o pincel

Milhares de sem vida

Admiravelmente retorna à vida

E, depois, com doce canto

A Orfeu retiraste o valor e o louvor.

Mas filho uma vez não tivera

Febo (salvo aquele que muito ousado

No Pó do céu despencou ferido),

Que do carro e dos ferozes

Velozes incansáveis corcéis,

Que a diurna luz

Portam ao mundo, aventurou-se fazer-se líder.

E tu, de luz privado

(Admirável caso e digno de estupor),

Agraciado pela terça e mais sublime honra,

Também o pai imitando,

De uma parte do mundo à outra andando,

Quase a Febo segundo

Trazes clara luz a todo o mundo.

Ó três vezes abençoado,

Ó de três qualidades divinas ornado,

Tu Esculápio, tu Orfeu, tu Febo, aos mortos

Dás vida, cantos e luz ao mundo trazes.

Capítulo I

Proêmio ao Leitor

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195

Decidi discorrer nestas páginas sobre a nobilíssima arte da pintura, moldando-a na

forma de um templo, no qual poder-se-ão contemplar suas partes dispostas distintamente e de

maneira ordenada323. Acredito não ser possível versar sobre um mais belo e nobre tema, pois

foi através da pintura que o Senhor Deus embelezou e adornou não somente o Universo, mas

também o microcosmo que criou à Sua semelhança, colorindo os céus, as estrelas, o Sol, a

circunferência da terra, a água e todas as superfícies dos elementos com as encantadoras e

graciosas cores elementares324. E, desta maneira, foi a pintura um excelente meio que Deus

escolheu, dentre todos os outros, para revelar ao homem sua gloria e onipotência, e fazê-lo

participar do melhor e do mais belo de tudo o que ele criou.

Dediquei-me a esta arte desde a infância e nela me exercitei desde então: antes,

quando desfrutava da luz dos olhos, colocava em prática o que me era proposto pela teoria e

por sua contemplação. Depois, ao perdê-la, apliquei-me ao estudo teórico. Assim, veio-me a

ideia de reunir tudo o que havia adquirido, lendo e praticando325. Apesar dos segredos e

dificuldades que a envolvem, e de não haver espírito algum no mundo que, pensando em

tratar dela, não fique confuso e estarrecido, não hesitei, porém, em lançar-me nesta empresa,

confiando-me a Deus, quem afastará minhas fraquezas através de sua graça movido por

minhas humildes e fervorosas súplicas, e assim, poderei, de alguma forma, sombrear e colorir

este desenho326. Nele apresentarei, da melhor maneira que puder, todas as harmonias, as

323 O Templo da pintura, neste primeiro capítulo introdutório, é brevemente apresentado com função didática, uma mnemotécnica. Os capítulos 1,2, 4-8 fazem parte do núcleo introdutório elaborado antes da composição do que conhecemos como Trattato dell'arte della pittura (cfr. cap. 2 [seção 1]). Portanto, observamos que a concepção de um edifício mnemônico para ordenar a teoria lomazziana já havia sido pensada pelo autor há muito tempo, o que pode sugerir um primeiro contato com a obra de Camillo antes de 1584. 324 O tema de Deus pintor e escultor da natureza é um topos da tratadística do Renascimento como apologia das artes figurativas (CIARDI, op.cit., n.t., vol I, p. 245). As metáforas de Deus "modelador de Adão" e Deus "pintor dos elementos" foram utilizadas nos debates em torno da paragone entre pintura e escultura ao longo do século XVI (KLEIN, op. cit., n.t., vol II, p. 649). Sobre esta questão, Klein aponta para a resposta de Bronzino ao questionamento de Varchi, em 1546. Sobre as cores elementares, Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 650) e Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 245) citam a mesma passagem do Della pittura de Alberti:

"Dico per la permistione de colori nascere infiniti altri colori ma veri colori solo essere, quanto li elementi, quattro, dai quali più et più altre spetie di colori nascono. Sia colore di fuco il rosso, dell'aere celestino, dell'acqua il verde et la terra bigia et cenericcia. Li altri colori...sono permistione di questi"

Cfr. o comentário de Paola Barocchi, Scritti d'arte del Cinquecento, pp. 978 ss. 325 Vitrúvio, De Architectura, sobre a complementaridade da teoria e da prática:

"O arquiteto deve estar equipado com o conhecimento de muitos ramos do estudo e vários tipos de aprendizagem, pois é através de seu juízo que todo trabalho feito pelas outras artes é colocado à prova. Este conhecimento é filho da prática e da teoria." (Livro I, primeiro parágrafo, "a educação do arquiteto").

326 Tr.R.K.: disegno foi traduzido como esquisse, que também significa projeto (esboço, rascunho, plano). Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 650) nos lembra que a palavra disegno possui um duplo sentido, que, em francês, pode significar tanto dessin (desenho), quanto dessein (plano), e por isso a tradução para a palavra esquisse, que

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proporções e as medidas exigidas para se alcançar uma beleza perfeita e completa na pintura.

E, sendo eu por natureza não menos franco em demonstrar a sinceridade do meu pensamento

que desejoso de esclarecê-lo, declaro diretamente minha intenção neste tratado, sem o verniz

da ficção e sem o intuito de fazer crer que eu seja o que de fato não sou por meio do

ornamento das belas palavras, mas com apenas um propósito: tratar com clareza das questões

a respeito desta arte.

Digo, portanto, que minha intenção principal é explicar, ou melhor, esboçar

ordenadamente em partes toda a arte da pintura, sobretudo por meio da teoria, que, no entanto,

não se afastará muito da prática, mas será unida a ela pelos meios apropriados, o que se pode

perceber durante a leitura. E para que isto se realize de forma mais fácil e clara, delimitei

primeiro o que é esta nobre arte327, tal como os antigos a definiam, quando nos tempos de

Panfilo foi providenciada sua alocação na primeira classe das artes liberais, e ainda assim é

considerada pelos modernos328. Em seguida, eu a dividi em seus gêneros e estes segundo suas

espécies e partes, e dividi o volume exatamente de acordo com a quantidade de gêneros,

tratando de cada um separadamente e declarando a virtude e a potência de cada um deles,

gradualmente, e de suas espécies e qualidades329. Como nenhum destes gêneros pode ser

engloba ambos os significados. Tr.J.J.C.: traduz por design, que também abarca o sentido duplo de disegno (desenho, esboço, plano, projeto, modelo). O V. A. Crusca nos fornece a definição de disegno como "figura, composição de linhas e sombras, que demonstra o que se deve colorir, ou, realizar, e ainda aquilo que representa as obras executadas". O termo deriva do latim graphis, que na obra pliniana pode significar desenho, risco, plano, esboço, planta, e, em Vitrúvio, a arte de deduzir plantas arquitetônicas. Também, pode definir-se por modelo, do latim forma (plano, representação, modelo) e modulus (medida, modulação). A opção dos tradutores por palavras que abarquem o sentido duplo do termo é bastante coerente com a acepção com que Lomazzo emprega o termo disegno. Contudo, existe um jogo na contraposição entre as palavras cor e desenho; O ato de sombrear e colorir, um processo de individuação da obra de arte, corresponderia neste trecho ao refinamento teórico do tratado em processo de criação. Ainda, é processo que parte do geral para o particular, da figura desenhada para a figura colorida, seguindo o método epistemológico anunciado por Lomazzo em seu Trattato (Livro I, cap. 1), a ordine di dottrina, aplicada, portanto, na organização e desenvolvimento de sua teoria também no Idea (mesmo porque, de acordo com sua fortuna crítica, ambos constituiam uma única obra e fazem parte do mesmo processo de desenvolvimento teórico). Optei por manter a palavra desenho, conservando este jogo de contraposição com a cor e esta metáfora da epistemologia dedutiva empregada por Lomazzo. 327 Definição da pintura não se encontra no Idea, mas sim no Trattato, I, 1. 328 Em relação a este trecho, Klein e Ciardi apontam para a História Natural de Plínio (Livro XXXV, 1, 77), trecho comumente utilizado pela literatura artística do período (Benedetto Varchi, Paolo Pino, Lodovico Dolce, Gilio da Fabriano). No capítulo I do livro I do Trattato, Lomazzo faz referência a Plínio sobre a questão da liberalidade da pintura: " percioché Plinio apertamente la chiama arte liberale" (Ciardi, op. cit., vol. II, pp. 26). Portanto, pode-se perceber uma interpolação entre este trecho e o capítulo 1 do livro I do Trattato (aliás, este capítulo introdutório do Idea diversas vezes faz esta intercalação com o Trattato). Ao formular uma nova introdução para o Trattato, o autor deixa de lado os capítulos introdutórios já escritos, que viriam a ser melhor elaborados mais tarde, em uma segunda obra (o Idea). A lacuna referente à definição da pintura que existe neste texto foi resolvida por Lomazzo com esta oração (Klein. op. cit., n.t., vol II, p. 451). 329 Nesta apresentação do plano da obra, mais uma vez confirma-se que originalmente estes capítulos de caráter introdutório haviam sido escritos antes da publicação do Trattato. Vemos aqui uma referência à estrutura do Trattato, dividido em sete livros, cada um discorrendo sobre uma das sete partes da pintura. No proêmio do

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perfeito isoladamente sem o auxílio e o acompanhamento de todos os outros, jamais se

poderia ter o perfeito conhecimento deles, sem, no entanto, que todos sejam conhecidos e

compreendidos. Principalmente porque todos os outros gêneros resplandecem como que de

maneira mais clara no último, quando a pintura se conduz ao seu fim. E este último gênero

concerne a todos os outros na medida em que define através de si, de suas espécies e de suas

causas instrumentais a potência dos demais330. E, embora eu pudesse, na sequência, ter

representado por meio de desenhos tudo o que dissera ser necessário para praticar e exercitar

de forma louvável esta arte, todavia não o fiz, pois acredito que teria gerado mais confusão e

complicado ao invés de esclarecer 331.

No que diz respeito ao meu método - aos preceitos, às observações e às outras

coisas apontadas neste tratado -, isto é tudo332. Gostaria somente de ressaltar que nada retirei

de nenhum outro autor, mas tudo investiguei eu mesmo, por meio de um trabalho longo e

assíduo, porém deleitoso. Por isso, o leitor não encontrará aqui nada que tenha sido escrito ou

ensinado por algum outro autor em alguma outra obra. Confesso que, evidentemente,

existiram homens singulares e perfeitos no executar em todas as partes da pintura. No entanto,

nenhum demonstrou como aplicá-las de maneira apropriado. Através, portanto, desta ciência

(que já discuti e ainda discutirei), onde se originam todas as causas e raízes da teoria e da

prática, é possível ver de forma clara e compreender por meio de um sagaz raciocínio de que

maneira todas as coisas devem ser feitas e entendidas em todos os seus aspectos a partir de

uma minuciosa investigação extraída da própria natureza das coisas. Isto não nos dá e nem

nos pode dar a prática, que somente vale para traduzir em imagem, por meio da facilidade dos

instrumentos e das cores, o que a teoria primeiro lhe estabeleceu como modelo, e tanto

Trattato, Lomazzo atribui às sete partes da pintura a função de qualificação e diferenciação da pintura em relação às outras artes plásticas (escultura e arquitetura), aquilo que define a pintura. O gênero da pintura, sua essência, como explica o autor no Trattato, é a arte, e as partes da pintura são aquilo que caracteriza e qualifica a pintura (as diferenças): "E perchè le differenze che fanno che la pittura sia arte particolare e sia differente da tutte le altre arti del mondo sono cinque, cioè, proporzione, moto, colore, lume, perspettiva (...) e così il primo libro contenerà un tratatto de la proporzione che è la prima differenza de la pittura, (...)". O uso alternado de "parte" e "gênero" é um pouco confuso ao longo do Trattato e do Idea, e não existe uma diferenciação precisa e constante entre ambos, utilizados com significados diferentes em casos pontuais dentro de ambas as obras. 330 Aqui, Lomazzo ressalta a integração das partes da pintura. Segundo Robert Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 651) e Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 246), desde Leon Battista Alberti, era comum a ideia de que todas as partes da pintura eram subordinadas à Storia ou invenção, que é denominada forma por Lomazzo, a sétima e última parte da pintura. Contudo, a integração de todas as partes da pintura será realizada, na teoria apresentada pelo Idea, através do discernimento, que tem o papel de "determinar toda a obra através da invenção". O discernimento será tratado mais adiante, no capítulo 3. Na minha opinião, Lomazzo aponta, neste trecho, para o conceito de euritmia, que será explicitado mais adiante, que diz respeito à harmonia das proporções entre todas as partes. 331 Esta é uma declaração um pouco estranha, já que sabe-se que Lomazzo não pôde ilustrar seu tratado por ter ficado cego, fato que foi previamente mencionado por ele neste mesmo capítulo. 332 Cfr. capítulo 2 (seção 1), um dos trechos que produz um contrassenso.

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exprime conforme a verdade quanto mais é orientada pela arte, como provam aqueles que,

desprovidos de ciência e de arte, somente operam através da prática 333. Estes, após muitos

anos de esforço contínuo, longe de alcançarem melhores resultados, acabam mais grosseiros

que antes, realizando figuras de nenhum valor e de má qualidade 334. Em contrapartida, os que

possuíram a ciência de algum dos gêneros da pintura, tornaram-se mais excelentes neste

gênero que nos demais, o que será demonstrado através de exemplos quando tratarmos dos

governantes de cada um dos gêneros da pintura335.

Esta arte sempre foi muito variada em suas partes, mas sem união e coerência

entre elas. Contudo, não se pode negar que, em todas as épocas, ela não tivesse todos os seus

membros, mas é preciso também admitir que eles não eram reunidos e compostos em

333 O sentido de arte talvez possa ser melhor compreendido a partir do cap. 1 do primeiro livro do Trattato: "una ragione retta e regolata de le cose che si hanno da fare"; cfr. Varchi, p.9; Borghini, p. 9. Esta definição está fundamentada no princípio da Tékne aristotélica. Ainda, existe aqui uma crítica direcionada aos pintores que aprendem uma determinada fórmula de pintura no ateliê e passam a reproduzi-la repetidamente. 334 Robert Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 652 ) destaca esta oposição de Lomazzo à pura prática (repetição de fórmulas), um topos que se tornou quase obrigatório nos tratados do período. Ciardi (op. cit., n.t., vol I, p. 247) afirma que esta questão está presente em todo o Trattato. Ainda, segundo Klein, Lomazzo mescla duas concepções distintas de prática, a prática como aplicação cega das regras não compreendidas, repetição de fórmulas ("como provam aqueles que, privados da ciência e da arte, somente operam através da prática") e a prática como facilidade, a concessão, a imitação ("que somente vale para traduzir em imagem, por meio da facilidade dos instrumentos e das cores"). Quando Lomazzo rejeita a "facilidade dos instrumentos”, ele se refere aos moldes e modelos que frequentemente eram combatidos pelos teóricos que defendiam a ideia de que o pintor deveria saber construir cientificamente o espaço cênico e as sombras (característica academicista do período). Klein, em seguida, aponta para o empréstimo de Vasari (nas "Vidas") na afirmação que Lomazzo faz sobre o enfraquecimento dos pintores que operam somente através da prática na medida em que envelhecem. Porém, tal empréstimo foi reinterpretado: aqueles que voltam as costas à sua natureza e contentam-se em apenas repetir as fórmulas aprendidas de memória e pintam di maniera, acabam se tornando incapazes de sustentar a concorrência com os jovens, e, assim, fazem obras cada vez mais pobres e morrem desconsiderados (reincidência dessa ideia no capítulo seguinte). 335 De acordo com o sistema astrológico adotado por Lomazzo, existem sete mestres da pintura, cada um ligado a um dos sete planetas do Cosmos, o que será esclarecido a partir do capítulo nove. O artista deve conhecer seu próprio temperamento, pois é ele que determina a sua expressão pessoal, a maneira como ele vai trabalhar cada uma das sete partes da pintura. Este temperamento é determinado pelo horóscopo, ou seja, pelas influências astrais do planeta ligado ao qual o artista foi submetido. Contudo, ao longo dos anos de aprendizado, este artista incipiente deve procurar seguir o exemplo do governante da pintura que possui o temperamento correspondente ao seu, para saber guiar-se a partir da maneira deste mestre antes de tornar-se um artista autônomo. Desta forma, o pintor aprendiz saberia identificar sua própria natureza, sua inclinação pessoal, sem, contudo, perder-se no aprendizado do métier ou ignorar o exemplum da tradição pictórica, fixada horizonte do artista como paradigma para atingir a perfeição. Neste trecho, no entanto, Lomazzo afirma que cada um dos governantes da pintura apresenta maior perfeição em alguns gêneros da pintura que em outros. Isto será melhor esclarecido ao leitor no capítulo 37, no qual Lomazzo explana sobre a euritmia. A euritmia, que em Vitrúvio (De Architectura, VI, 2) corresponde à harmonia do conjunto da obra que agrada a visão, não necessariamente seguindo as regras gerais, de acordo com Lomazzo, pode ser inserida na obra de arte através da parte da pintura em que onde o pintor possui maior excelência ou facilidade, e a partir desta, é transbordada para o restante da obra. Isto garantiria a variedade de estilos perfeitos e harmônicos na pintura. Aqui, mais uma vez, Lomazzo caracteriza sua teoria artística pautado pela variedade, pela pluralidade, expandindo as possibilidades de estilos e expressões, sem contudo afirmar uma total liberdade expressiva para o artista. Em sua obra Rime (1587, pp. 91-95), L. relaciona cada um dos sete mestres modernos aos sete mestres da Antiguidade, e, logo em seguida, atribui a eles sua respectiva área de excelência na pintura.

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conjunto, de tal forma que se poderia dizer que toda a arte estava ali, porém desmembrada em

partes, pois não podia ser apreciada e nem apresentada unida, já que todas as suas partes não

eram conhecidas enquanto conjunto. É isso que advém a todas as coisas: sem a junção e

conexão de seus membros (ou partes, se assim desejar-lhes denominar) não se pode dizer que

algo exista. Nada existe por si só, mas através das partes que formam o todo. Neste tratado,

são apresentadas através do metódo 336 a composição e a conexão de todos os componentes da

pintura, acompanhadas de uma exposição sobre as forças e a natureza de cada um.

No primeiro livro, versa-se sobre o discernimento337, a preparação e a teoria

Universal, já que nele se discorre sumariamente sobre todas as partes da pintura, que serão

336 "ordine di dottrina" (contrapondo-se à "ordine di natura", método indutivo), explicada no proêmio do Trattato, é o método dedutivo, que parte do universal ao particular, e, portanto, do discernimento e da proporção à forma. 337 Este primeiro livro, que trata do discernimento, não existe na versão final da obra teórica de Lomazzo. Ele provavelmente havia sido pensando antes da publicação do Trattato. Foi identificado na estrutura do Idea del tempio pela primeira vez por Klein (1959), chamado de libro della discrezione, que corresponde aos capítulos 3,18 e 26-32. Cfr. Klein, 1974, vol. II (introdução), 1974, pp 473-47; Klein, La forme et l'inteligible, 1970, pp. 161 ss.; Ackerman, The structure of Lomazzo's treatise on painting, 1964). O termo discrezione é traduzido para o Francês por "discernment" (Tr.R.K.) e para o Inglês por "discerniment" (Tr.J.J.C). De acordo com V. A. Crusca, a palavra discrezione apresenta duas definições: a primeira, “Quel distinguimento, che usano gli huomini ben costumati, nel procedere, dando a ciascuno amorevolmente quel che gli si conviene, nè più volendo per se”, associada a aequitas (igualdade de proporções, equidade), aequum (equidade) e bonum, prudentia, providentia, como parte da Prudência. E “La discrezione è madre, e guardiana, e temperatrice di tutte le virtude". Ela também é a faculdade que permite distinguir o certo do errado, o mal do bom:

“Qual malvagia fortuna, qual malvagio destino t'ha nel presente deserto condotto? Dove è il tuo avvedimento fuggito, dove la tua discrezione? Se tu hai sentimento quanto solevi, non discerni tu che questo è luogo di corporal morte e di perdimento d'anima, che è molto peggio? Come ci se' tui venuto, qual tracutanza t'ha qui guidato?” (Boccaccio, Il Corbaccio, 1365 - ex. citado pelo V. A.Crusca)

A segunda definição dada pelo V. A. Crusca é ”Per divisione, e distinzione”, do latim discretio (Separação; escolha; discernimento; seleção), distinctio (Divisão, partilha; ação de distinguir, de diferenciar, ordem, método, distinção, diferença); Discretionis significa separação, discernimento, escolha ou seleção, e o verbo discernere equivale a separar, dividir ou distinguir (Ex. em Virgílio: discernere litem arvis – partilhar as propriedades herdadas evitando contestação; em Cícero: Discernere alba et atra - distinguir o preto do branco -, ligado à percepção dos sentidos; em Plínio: discernere pantheras a pardis - diferenciar as panteras dos leopardos. Cfr: Saraiva). Na raiz de discernere encontra-se o verbo latino cernere, que significa seccionar, separar, distinguir, compreender, entender; Discretionis equivale à palavra grega Krinein, que foi traduzida como iudicium nas edições latinas do De Anima (426b) de Aristóteles (Cfr. Summers, op. cit., pp. 21-28). De modo geral, tanto o juízo quanto o discernimento possuem fundamentalmente o mesmo significado: distinguir, discriminar, diferenciar. Em Il Cortegiano (Turim: ed. Einaudi, 1965, cap. II, p.4), Baltassare Castiglione, ao falar de Boccaccio, utiliza o termo discrezione como um cuidado e uma prudência que leva o escritor a podar seu engenho e seu estilo pessoal, tratando o termo de forma um pouco negativa. Mais adiante (op. cit., cap. VIII, p.103), discrezione é utilizada para descrever a habilidade de um homem da corte em saber agir em diferentes situações adequadamente, de acordo com seu interlocutor. Ou seja, é um podar-se em razão do decoro, moldar-se a cada situação convenientemene, característica necessária ao modelo perfeito do cortesão. No cap. XIII (op. cit., p.109), discrezione mantém esta última característica: saber portar-se em determinadas situação de forma conveniente, ter uma adequada percepção de si e de seus interlocutores, moldando suas ações e produzindo efeitos belos, o cálculo das ações e dos efeitos:

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discutidas individualmente mais adiante, cada uma em seu respectivo livro338. Somam-se sete

livros no total: cinco referentes à teoria e dois relacionados à prática. As partes teóricas são a

proporção, o movimento, a cor, a luz e a perspectiva, pois é de conhecimento de todos que

não se pode representar figura alguma sem que estas cinco partes cooperem entre si

conjuntamente, já que não se pode dar proporção sem perspectiva, nem dar movimento sem a

cor (que tudo represente) e sem a luz devidamente distribuída. Assim, todas as cinco partes

teóricas se introduzem na pintura de uma vez. As outras duas são a composição, que ensina a

aplicar as partes supracitadas e situá-las todas em seus lugares apropriados, e, finalmente, a

compor tudo o que possa ocorrer na mente humana; E a forma, que mostra como representar

tudo o que pode ser apresentado ao sentido dos olhos humanos, começando por Deus e

descendo até o Inferno. Por isso, neste livro, os pintores encontrarão sem dificuldade a

reunião de tudo o que talvez não tenham encontrado em outros livros ou nas pinturas, mesmo

depois de muita dedicação e estudo. E estas serão as partes circulares que, como sete paredes,

formam todo o nosso templo da pintura. As primeiras cinco foram colocadas na base do

templo, e as duas últimas no topo (a composição abaixo da forma). Nele, toda a pintura em

sua totalidade e beleza, composta em conjunto por todos os seus elementos, poderá ser notada

"perché in effetto saria impossibile imaginar tutti i casi che occorrono; e se il cortegiano sará giusto giudice di se stesso, s'accommoerà bene ai tempi e conoscerà quando gli animi degli auditori saranno disposti ad udire, e quando no; (...)". (op.cit., loc. cit.)

De acordo com o Dizionario di Arti (Grassi, L.; Pepe, M: 1995), discrezione foi utilizada na literatura artística do século XVI e XVII variavelmente como prudência ou medida; Ou, ainda, um modo de esconder as imperfeições da natureza ao retratar uma pessoa, ou seja, a conveniência. Isto aparece realcionado à questão do ut pictura poesis em Varchi, 1547, e está presente na discussão da paragone entre pintura e escultura. A anedota de Plínio sobre Apeles e Antígono é citada como exemplo de discernimento/prudência do artista. Em Paolo Pino (1548), Giorgio Vasari (1550) e Lodovico Dolce (1557), discrezione é equacionada com o buon giudizio do pintor: “(...) Ma qui ci concorre la discrezione, ch'è intesa da me per buon giudicio" (Paolo Pino, Dialogo di pittura...,1548, A. della Crusca e F. Memofonte); "Bisogna poi ch'il pittore abbia risguardo a farle con proporzione sminuire con la dolcezza de' colori, la qual è nello artefici una retta discrezione et un giudizio buono" (Vasari, Le Vite ...,1550, A. della Crusca e F. Memofonte, cap. XVI); “Avviene anco che le figure, o tutte o alcuna parte di esse, scortino. La qual cosa non si può far senza gran giudicio e discrezione" (Dolce, Dialogo della pittura...1557, A. della Crusca e F. Memofonte). Contudo, apesar das diversas fontes que puderam ter influenciado Lomazzo a adotar o termo, é em Marsilio Ficino e nos autores da tradição neoplatônica que encontraremos as origens semânticas do conceito de Lomazzo. No Theologia Platonica, Marsilio Ficino utiliza o termo como o movimento mental, que tem lugar na fantasia, que parte do geral para o particular (método dedutivo), separando as imagens recebidas pelos sentidos (Theologia Platonica de Immortalitate Animorum, 1482, Livro 8, Cap. 1 ). Ficino o considera como um processo intermediário não racional. Sobre esta questão, cfr. Chai, Giovanni Paolo Lomazzo and The Art of Expression, Cambridge, 1990, pp. 47-8. O discernimento foi incorporado na obra de Lomazzo e utilizado pela primeira vez no Libro dei sogni (c.1563), adquirindo mais tarde um papel fundamental no Idea del Tempio dela Pittura. No L.S., o discernimento é um dos caminhos para a representação do movimento, permitindo ao artista criar formas de coisas invisíveis através de sua capacidade inventiva (ingegno). O verbo discernere e a palavra discrezione aparecem na obra de Cornelio Agrippa. Ainda, Ramon Llull, autor associado ao pensamento platônico agostiniano, em Liber ad memoriam confirmandam, utiliza o termo discretio para denominar a parte da memória que auxilia o julgamentos dos conteúdos armazenados nela, como um modo de ascender e descender na hieraquia do ser. Cfr. YATES. op. cit., p. 244. 338 Divisão que diz respeito ao Trattato, composto pelos sete livros sobre as sete partes da pintura.

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por todo aquele que, movido pelo ardente desejo de conhecê-la, contempla este templo e,

diligentemente, nota toda sua estrutura, parte por parte 339.

Pode-se observar, com deleite e sem nenhum esforço, o que eu pude reunir e

representar aos olhos do mundo neste templo, empregando um enorme tempo e com árdua e

ininterrupta observação, voando como uma laboriosa e prestativa abelha em torno de todas as

mais louváveis obras de pintura e de todos os livros no quais congecturasse que se pudesse

encontrar alguma coisa pertinente à arte. Ainda, ao mesmo tempo, é possível notar com

quanta honestidade, sem invejar os elogios merecidos por outros, fiz menção a todos que

ilustraram esta arte, indicando em qual parte cada um teve maior valor e excelência. Com

igual honestidade almejo que minha obra seja lida e julgada, e que ela não seja privada dos

modestos encômios que sei que só lhe são devidos em virtude da minha dedicação e do meu

desejo de ser útil, com todas as minhas forças, aos amantes da pintura.

Capítulo II

Da força da instrução artística e da diversidade dos gênios.

A enorme dificuldade que se encontra na arte da pintura, e particularmente em

sua primeira introdução, deve-se ao fato de que ela é muito menos acessível do que poderia

ser, se ela não se mostrasse tão difícil no princípio. Ainda assim, é tão necessário o seu

conhecimento - que é como o espírito e a alma da prática340 - que, sem ele, não é possível

alcançar um resultado louvável na prática. Visto que uma se relaciona com a outra da mesma

maneira que a alma se relaciona com o corpo, e desta relação resultam efeitos tais que

parecem maravilhas a quem os vê. E é bastante certo que quanto mais a prática é regulada

pela arte mais perfeita ela é.

Na realidade, ao fim e ao cabo, a prática não é outra coisa senão um

preenchimento de espaço necessariamente mediado pela regra e sob a tutela da ciência 341.

Esta permite aguçar e afinar o juízo de tal maneira que seguramente é possível dizer que nem

339 Muito parecido com os diagramas da arte combinatória de Ramon Llull, nos quais, diferentemente da Arte da Memória clássica e escolástica, não utilizam-se imagens, mas palavras. Cfr. YATES. op. cit., capítulo 8. 340 Complementariedade entre teoria e prática presente em Vitrúvio. Da mesma forma que o Idea del Tempio é o "espírito e a luz" do Trattato, a teoria ou instrução artística é o "espírito e a alma" da prática. Cfr. também o comentário da Barocchi, op. cit., pp. 1595 ss. 341 O sentido de prática aqui (exercício prático a partir do conhecimento teórico) é bastante diverso do sentido utilizado no capítulo anterior (repetição de modelos, aplicação cega de regras, facilidade dos instrumentos).

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mesmo a própria natureza é capaz de dar tanta excelência e beleza a um tema e nem

proporcionar tanto deleite, aproximando-nos da contemplação da maravilhosa máquina criada

primeiramente por Deus, e fazendo-nos ver a Sua maestria nele, através das partes

harmonicamente unidas e compostas, como se pode ver no homem342. Tendo em si todas as

adequações e proporções do mundo, o homem parece ter sido feito mais belo, melhor e mais

maravilhoso aos nossos olhos que o próprio mundo343.

Uma vez que foi determinado que quanto mais as coisas são

proporcionalmente traçadas com um juízo regulado, fugindo dos exageros e do prazer

grosseiro, tanto mais perfeitas e excelentes resultam, e maior deleite dão ao espectador344.

Aquele que deseja observar exemplos disso na pintura, olhe as obras acabadas (apesar de

poucas) de Leonardo da Vinci, como a Leda nua e o retrato da Monalisa napolitana, que se

encontram em Fontainebleau na França345. Assim, tomará conhecimento da superioridade da

342 Neste trecho, é possível observar algumas questões recorrentes na literatura artística do período: o tema da arte como rival da natureza, que, por sua vez, conecta-se ao tema do refinamento do juízo através do estudo teórico e do exercício prático; E a noção da beleza fenomênica ciceroniana a partir da harmonia das partes, também presente em Santo Agostinho (De civ. Dei, XXII, 19). A natureza heurística da visão remonta a uma longa tradição fundamentada em Platão (Timaeus, 47 a.c.), Aristóteles, Methaphysics (980a), e em Cícero, De Officiis, I, IV. Contudo, pode-se observar neste trecho que, para além da natureza heurística da visão, existe uma noção herdada de Leonardo referente ao caráter heurístico da própria pintura (Cfr. Leonardo, Trattato della pittura, cap 15 "Come la pittura avanza tutte l'opere umane per sottile speculazioni appartenente a quella" in Barocchi, op.cit., pp. 238 ss.). Ainda, é possível perceber a presença de uma componente agostiniana, fundamentada na noção ciceroniana e também neoplatônica da "harmonia dos sentidos", na qual a experiência visual da beleza não possui um fim em si mesma, mas leva à contemplação de sua fonte primordial, Deus. Cfr. Panofsky, op. cit., pp. 53-54 e p. 197, nota 123 (sobre a beleza fenomênica clássica difundida por Alberti); pp. 58-60 (sobre a necessidade do exercício para a aquisição da faculdade de percepção da beleza em Alberti); pp. 60-61 e p. 204, nota 143 (o julgamento que se origina no exercício do desenho em Vasari); p.176 (sobre a Beleza em Santo Agostinho, nota 68); Summers, op. cit., pp.32-9, pp. 50-1, pp. 54-70. 343 O corpo humano como síntese da harmonia e da proporção do mundo (ideia vitruviana) é um topos da literatura artística do período ( Alberti, Leonardo, Galluci, Durer). Ainda, esta ideia também está presente em Marsílio Ficino (o homem reúne toda a beleza da criação divina), cfr. Ossola, L'Autunno del Rinascimento, pp. 243-44.

344 Segundo Robert Klein (op. cit., 1974, Vol. II, pp. 499-500, introd.), os critérios principais da crítica de Lomazzo eram aqueles da Contrarreforma: a conveniência, a verdade e a expressão. O princípio da conveniência (ou decoro) e da verdade foram bastante utilizados pelos críticos do "Juízo Final" de Miquelângelo, como Gilio da Fabriano (Dialogo degli errori e degli abusi de' pittori circa l'historie, Camerino, 1564). Lomazzo, assim como muitos outros teóricos do contexto contrarreformista, condenava a atitude de pintores "pesquisadores da dificuldade" ou "desejosos de mostrar arte". Klein explica que Lomazzo adota a conveniência na medida em que defende a clareza narrativa, gradação dos efeitos e a etiqueta. Em relação à verdade, devido à influência de Horácio, era comum uma relativização desta ideia em função da verossimilhança. Lomazzo não se opunha à fantasia, sendo ele próprio o líder de uma academia milanesa burlesca, a Academia do Vale Blênio (sobre Lomazzo e a Academia bleniense, cfr. cap. 1 desta dissertação). No que diz respeito à expressão, a influência da crítica literária, dos retóricos latinos (elocutio) e as discussões em torno das poéticas de Horácio e Aristóteles, somada à necessidade de convencimento e comoção do espectador geradas pela Contrarreforma, contribuiu para que questão da expressão, da eloquência, dos gestos, das ações, e da força narrativa fossem inseridas na economia da obra de arte. Sobre esta questão, cfr. Lee, Ut Pictura Poesis, 1940, pp. 39 e ss.. 345 A Monalisa é mencionada no Trattato (op. cit, vol. II, p.378), onde é distinguida da Gioconda; Esta afirmação sobre a "Monalisa napolitana" gerou um debate em torno da identidade do retrato: Adolfo Venturi, diante disto -

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arte em relação à própria natureza e de sua maior potência em atrair para si os olhos dos

conhecedores. Também, isto pode ser observado da mesma maneira nas obras dos demais

governantes da arte, como será demonstrado mais adiante. E, paralelamente, será possível

perceber que as excelências variam de acordo com os gênios destinados a cada um, os quais

tanto mais operam em nós e nos conduzem a um maior grau de perfeição, quanto mais

sabemos reconhecê-los e, favorecendo-lhes, adicionar-lhes a arte e a instrução adequadas346.

somado ao fato da imprecisão da descrição de Vasari (que nunca viu a obra), ao relato de Antonio de Beatis (secretário do Cardeal Luigi d'Aragona) sobre um retrato de "certa donna fiorentina", visto na ocasião do encontro com Leonardo no castelo de Cloux em 10 de outrubro de 1517, o qual, segundo de Beatis, parafraseando o próprio Leonardo, havia sido realizado para Giuliano de' Medici, duque de Nemours, e ao poema do parmense Enea Irpino louvando um retrato feito por Leonardo, identificado com Costanza d'Avalos por Benedetto Croce (1903) -, lançou a hipótese de que talvez a Monalisa fosse Costanza d'Avalos, duquesa de Francavilla, recém enviuvada e possível amante de Giuliano de' Medici (cfr. Venturi, A. Storia dell'arte italiana, Milão:Ulrico Hoepli, 1901-1938, IX, I, pp.37-42). Esta identificação da Monalisa com a duquesa di Francavilla foi refutada por Carlo Pedretti, que, baseando-se no mesmo relato de de Beatis, identifica a Monalisa com Pacifica Brandano, florentina, favorita de Giuliano de' Medici, cujo retrato poderia ter sido executado pelo mestre entre 1514-1516, pouco tempo antes de sua partida para a França (A primeira reflexão de Pedretti encontra-se em Gioconda o Costanza?, "Sapere", Milão, fascículo fora de série, p.74, abril. 1952; cfr. Pedretti, Storia della 'Gioconda' di Leonardo da Vinci, "Bibli. d'Human. et Renaiss.", Genebra, XVIII, 2, pp. 171-182, janeiro. 1956 e Uno 'studio' per la Gioconda. "L'Arte", Milão, XXIV, 3, pp.155-223, (Ano LVIII) julho- setembro. 1959). Em 1525, consta no inventário de Salaì, pupilo de Leonardo, uma referência à Gioconda, e também à Leda (cfr. Shell, J. Salaì and the Royal Collection at the Louvre. in Ata do congresso internacional "Entre Raccolta Vinciana - L'opera grafica e la fortuna critica di Leonardo da Vinci" ( Paris, Museu do Louvre, 16-17 maio 2003), Florença: Giunti, 2006, pp.37-50). Em 1625, tanto a Leda quanto a Monalisa são vistas por Cassiano dal Pozzo em Fontainebleau. Sobre a identidade da Monalisa, existe uma extensa bibliografia; Cito aqui algumas das mais recentes: Hatfield, Rab. The three Mona Lisas. Milão: Officina libraria, 2014; Woods- Marsden, Joanna. Leonardo da Vinci's Mona Lisa: a portrait without a Commissioner? In Illuminating Leonardo: a festschrift for Carlo Pedretti celebrating his 70 years of scholarship (1944-2014). Leiden: BRILL, 2016, pp. 169-182; Giontella, M.; Fubini, R. La Gioconda di Leonardo: il divenire esterno ed interno di un ritratto. "Atti e memorie dell'accademia toscana di scienze e lettere", Florença, LXXVII, série LXIII, pp. 235- 264, 2012. A Leda Nua de Leonardo também é descrita por Lomazzo no Trattato (scritti sulle arti, vol.II, p. 144) e no Rime (p. 290), testemunhos que também fomentaram discussões sobre esta outra obra vinciana. A Leda de Leonardo, atualmente perdida, chegou ao nosso conhecimento apenas através de desenhos (Chatsworth e Rotterdam) e cópias (Spiridon, Wilton House, Galleria Borghese, Rafael, Pontormo, escola de Andrea del Sarto). Para maior aprofundamento sobre o debate em torno desta questão, cfr. Pedretti, C. A ghost Leda, "Raccolta Vinciana", XX, pp. 379-383. 1964; Leonardo. A study in Chronology and Style. Londres, 1973, pp. 97-139; Allison, A.H. Antique Sources of Leonardo's Leda, "Art Bulletin", 3, LVI, pp. 375-384. 1974; Kemp, M. Leonardo da Vinci. The Marvellous Work Of Nature and Man, Londres-Melbourne-Toronto, 1981, pp. 270 ss.; Calvesi, M. Leda, in Leornardo. La Pittura, pp. 137-153; Leonardo e il leonardismo a Napoli e a Roma, "Catalogo della mostra a cura di A. Vezzosi". Florença, 1983, pp. 90 ss; Regoli, G.D. Mito e scienza nella 'Leda' di Leonardo, "Lettura Vinciana", XXX, Vinci, 15 de abril 1990; Progetti di Leonardo per una Leda. Sulle tracce di un'opera perduta. in Ata do congresso internacional "Entre Raccolta Vinciana - L'opera grafica e la fortuna critica di Leonardo da Vinci" ( Paris, Museu do Louvre, 16-17 maio 2003), Florença: Giunti, 2006, pp.67-84; Malmanger, A. L. The legacy of Leonardo da Vinci's Leda in Cinquecento Art. in Early Modern and Modern Studies (Eriksen, R; Tschudi, V.P (ed.)). Roma: Edizione dell'Ateneo, 2006, pp.103-124; Monaco, M.C; Nanni, R. Leda. Storia di un mito dalle orgini a Leonardo. Florença: Zeta Scorpii, 2007. 346 Sobre esta relação do artista com seu temperamento, Klein afirma que a teoria musical já ligava as diversas formas musicais a temperamentos determinados e que tanto a oratória antiga quanto os críticos de poesia e de arte da Antiguidade também reconheciam a diversidade de inclinações naturais. Ainda, pode-se encontrar tanto em Plínio quanto em Alberti, a ideia de que o pintor realizava melhor uma obra dentro do gênero com o qual se identificava (cfr. Klein, op. cit., vol II, p. 493). O que Lomazzo traz de inovador, para além de uma visão completamente positiva sobre a questão (Em Leonardo, encontra-se a advertência ao pintor contra a expressão pessoal na obra, por ex. nos capp. 102, 105; Dolce foi o primeiro teórico a defender a diversidade de

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Assim é que, para dizer a verdade, diante da dificuldade de conhecer a si

mesmo, os pintores, em sua maioria, não compreendendo a sua disposição, seu gênio e sua

inclinação, estão muito distantes de alcançar alguma glorificação, mesmo que totalmente

dedicados à pintura e empregando nela todo o esforço que podem. Aquele que conhece seu

gênio e o segue, facilmente atinge o ápice de excelência na parte em que reside sua inclinação

pessoal, como se pôde observar em Rafael Sanzio. E foi por isso que, em tão pouco tempo,

este fez o que nenhum outro jamais havia feito no decorrer de muitos e muitos anos, e sendo

ele, entretanto, universal em todas as outras partes, alcançou tamanha perfeição ao fim de sua

vida, aos trinta e sete anos, que seria impossível atingir um mais sublime patamar.347

Também, Polidoro da Caravaggio reconheceu seu gênio com um olhar tão agudo que, tendo

iniciado seus estudos de pintura aos vinte anos, ao fim de quatro ou cinco anos superou

qualquer pintor antigo e moderno em força do desenho, em invenção e em todas as partes de

claro-escuro universal348. Em seguida, após preencher e adornar toda Roma e o reino de

Nápoles com obras miraculosas nas fachadas, tendo apenas completado a idade de quarenta e

quatro anos, foi assassinado349. Igualmente, em parte, partilham desse conhecimento Camillo

Boccacino, Cesare da Sesto350 e outros artífices louvados, os quais, tendo seguido seu gênio e

sua natureza no sentido em que eram impulsionados desde a juventude, neles progrediram e

ativeram-se a eles até o fim da vida. Mas, os que seguiram seu gênio em seus primeiros anos e

abandonaram-no depois, tornaram-se meros imitadores dos outros. Distantes de seu gênio,

trabalhando somente por meio da força da arte, primeiramente realizaram obras digníssimas

temperamentos artísticos), foi tornar requisito necessário e imprescindível ao artista conhecer e seguir sua inclinação pessoal. 347 Klein (op. cit., n.t., vol II, pp. 654) sublinha o fato de que Rafael jamais buscou a individualidade artística. Mais adiante, Lomazzo dá a Rafael a característica da graça ou da "venustidade" (artista ligado ao planeta Vênus no quadro esquemático do Templo). No Libro dei Sogni, "ragionamento quinto", (scritti.., vol. I, pp.111-112), Lomazzo faz uma longa citação da "Vida de Rafael" de Vasari, dialogando com o presente trecho. Lomazzo, em geral, sempre faz uso de Vasari quando se refere à biografia sobre os artistas (quando estes estão presentes nas "Vidas"). 348 Não é possível saber com precisão o que L. quer dizer com "claro-escuro universal" neste trecho; Pode-se pensar nas obras de Polidoro, nas quais ele imita baixo-relevos em frisos e métopes em fachadas romanas (conhecidos através de gravuras e desenhos), trabalhando com os contrastes de claro-escuro para criar a impressão dos relevos. Neste sentido, seu domínio no uso da luz e da sombra poderia ser considerado universal/total. Contudo, trata-se de uma suposição. 349 Cfr. Libro dei Sogni, "ragionamento quinto", (scritti..., vol. I, pp. 112 -113). Referência biográfica está em Vasari. 350 Klein afirma (op. cit, vol. II, p. 502, introdução) que Lomazzo teve uma influência direta de Cesare da Sesto (um dos poucos integrantes da escola de Leonardo citados por Lomazzo em sua obra). cfr. L.S., "ragionamento quinto", (scritti..., vol. I, p. 115). Tanto Boccacino (1505-1546, pintor da escola de cremona, influenciando pela escola veneziana de Tiziano), quanto da Sesto (1477-1523) são representantes das escolas lombardas e suas biografias não são realizadas por Vasari nas "Vidas" (apenas em relação a Cesare da Sesto, Vasari faz duas breves menções na ed. de 1568).

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de elogios, mas, perdendo a sua primeira maneira e adquirindo outra, desgastaram-se ao longo

do tempo e suas obras foram se tornando cada vez piores. Dentre estes, muitos poder-se-ia

nomear, tanto do passado como do presente351. A causa deste problema, no entanto, não se

pode atribuir à avareza dos príncipes ou às demandas impostas à maioria dos pintores, que os

obrigam a seguir esta via mais rápida e menos trabalhosa, já que isso lhes acaba sendo mais

custoso, pois, ao se voltarem completamente para a imitação dos outros, não compreendem

seu próprio gênio, que é a origem de toda a facilidade e da graça do operar. Assim, nunca

sabem quando suspender a mão da tela e muito menos conseguem concluir o acabamento das

obras, que ao fim resultam desprovidas de qualquer força, como bem se pode atestar e

perceber352.

Em contrapartida, muitos são aqueles que na juventude, apesar do esforço, não

conseguem jamais conquistar a graça da arte e, anos mais tarde, de uma só vez a adquirem.

Isto acontece por dois motivos: primeiro porque, algumas vezes, desviados durante algum

tempo da estrada que conduz à sua inclinação natural, não podendo fazer nada que os

contentasse, em um certo momento conseguem acidentalmente realizar uma obra de seu

gosto, estando ela em consonância com seu gênio pessoal. E, então, de repente o sentem,

como o corpo que recebe seu espírito, clareando seu intelecto e as faculdades antes

mentalmente perturbadas pelos desvios passados. Assim, reconhecendo e superando sua

timidez e seu desespero, e dando-se conta de suas forças, fazem brilhar os dons e as virtudes

que há tanto tempo estiveram ocultos, como se estivessem enterrados dentro deles,

351 Segundo Klein (op. cit., n.t., vol II, pp.654-5), é possível subentender nesta passagem uma crítica dirigida ao maneirismo romano-toscano michelangelesco, em defesa da espontaneidade na arte. Klein não identifica uma oposição declarada de Lomazzo a esses pintores, contudo, pode-se entrever um certo tom de monotonia nas análises que L. faz das obras de Michelangelo, demasiadas esquemáticas em sua opinião. De acordo com Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 250), esta oposição ao maneirismo tosco-romano talvez seja mais perceptível no Trattato. Acredito que exista, ainda, uma crítica velada ao seu maior rival, o pintor cremonês Bernardino Campi, e também ao seu ex-pupilo Ambrogio Figino. Sobre esta rivalidade e seu desentendimento com Figino, cfr. cap. 3 (seção 1.4). 352 Palavras de Apeles em relação a Protógenes (Plínio, XXXV, 80). Vasari, no proêmio da terceira parte das Vidas, repreende os mestres que escolhem caminhos dificultosos e não encontram o caminho da graça e da facilidade. Ainda, L. empresta de Vasari o exemplo de Pontormo para ilustrar o pintor que volta as costas à sua inclinação pessoal para imitar a maneira de outros, e a impossibilidade de completar uma obra:

" (...) fatte con modo tanto diverso dalle prime, che si vede apertamente che quel cervello andava sempre investigando nuovi concetti e stravaganti modi di fare, non si contentando e non si fermando in alcuno. (...) Per che, essendo morto il Francia Bigio et Andrea del Sarto, ne fu data interamente la cura al Puntormo, il quale, fatti fare i palchi e le turate, cominciò a fare i cartoni; ma perciò che se n'andava in ghiribizzi e considerazioni, non mise mai mano altrimenti all'opera". (Vita di Jacopo da Puntormo, 1568).

Cfr. Klein, op. cit., vol. II, p. 655.

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maravilhando o mundo e realizando obras que lhes trazem não apenas satisfação e

contentamento, mas grandíssimos louvores dos entendedores.

A segunda causa, mais potente que a primeira, é porque, conhecendo seu

instinto natural desde cedo, passam toda sua juventude somente trabalhando à sombra dele,

sem acrescentar-lhe nenhum estudo e esforço, assim como Parmigianino353, que precisava ser

forçado a praticar o desenho, pois pensava que possuía a arte em suas veias354, e, no fim,

morreu completamente imerso no estudo de Alquimia. Mas, outros artistas do tipo, ao

amadurecerem, reconhecem em si esta dádiva do divino intelecto, e, para não desprezar o

talento que lhes fora concedido e para encontrar plena satisfação em seu exercitar,

aperfeiçoam por meio do estudo, da razão e da arte o que fora negligenciado e abandonado

por muito tempo, de tal modo que a razão e a natureza devidamente harmonizam-se, uma

mutuamente correspondendo à outra, como ocorrera aos sete governantes supracitados355. E,

assim, todos os que, aprimorando a natureza através da arte, trabalharam desta maneira,

tornaram-se excelentes e universalmente conhecidos. Dentre muitos outros, que nomearei

conforme a ocasião ao longo deste livro, pode-se citar o já mencionado Parmigianino,

Antonio da Correggio, Andrea del Sarto, Perino del Vaga, Rosso Fiorentino, Maturino,

Giorgione, Sebastiano del Piombo, Bernardino Luini, Marco Pino da Siena, Giulio Romano,

Pellegrino Tibaldi, Tintoretto, Lorenzo Lotto, Luca Cambiaso, e muitos outros pintores de

perspectiva356.

353 No texto em Italiano está escrito "Mazzolino", possível derivação de seu nome, Girolamo Francesco Maria Mazzola. É assim também que L. se refere a Parmigianino em alguns trechos do Trattato (Scritti..., vol. II, (liv. I, cap.2) p. 36; (liv. I, cap. 9) p. 50; (l. II, cap. 21) p. 158; (l. III, cap. 10) p. 176, (l. VI, cap. 3) p. 250; (l. VI, cap. 19) p. 289; (l. VI, cap. 56) p. 394; (l. VII, cap. 13), p. 504 ). Reiterando que a fonte de Lomazzo sobre a vida de Parmigianino também é Vasari. 354 No texto em Italiano: "aver l'arte per li capelli...". Tr.R.K.: "...car il croyait posséder l'art par coer..". Tr.J.J.C.: "convinced of possessing art in his fingertips...". 355 Pela primeira vez no texto do Idea, L. afirma que existem sete governantes da pintura. Até então, não havia determinado este número. 356 Ciardi (op. cit., n.t., vol I, p. 251) e Klein (op. cit., n.t., vol II, pp. 655-656) apontam para a mesma lista citada por Lomazzo no Trattato (VI, cap. 55, "composizione delle forme nella idea") sobre os pintores que primeiramente fazem a composição das formas na ideia (imaginação, cfr. Panofsky, op. cit., pp. 62-3), que "si ha da fare di continuo in solitudine e silenzio, senza che non è possibile che alcuno possa bene specular giamai", os quais ele compara aos poetas (sobre a comparação do pintor com o poeta em Lomazzo, cfr. Lee, op. cit., p. 5; p. 74.; e apêndice 3; e Trattato, II, 2, p. 98 ) . Nesta lista faltam Maturino, Giulio Romano, Marco Pino da Siena, imitador de Michelangelo, do qual herdara a figura serpentinada de acordo com L. (cfr. Tratt., cit., I, cap. 1. Ao que tudo indica, L. conhecia Marco Pino e visitou-o em Nápoles, de acordo com os versos do Rabisch, 1589, II, 25, pp. 132-33), os venezianos e os pintores ligados ao círculo do Escorial, presentes aí sobretudo devido ao fato de o livro ter sido dedicado a Felipe II ( Klein, op. cit., loc. cit.).

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Ainda, existe uma outra maneira racional de se proceder, que se divide em dois

modos: um é por meio do estudo357 e outro por meio da imitação. Procede-se através do

estudo quando o artista, após ter adquirido uma sólida concepção da arte, devido a uma longa

familiaridade com ela, decide exercitá-la, e, como o desejo de aprender a arte foi gerado aos

poucos ao longo do tempo, ele se deleita em satisfazê-lo por meio do estudo e do trabalho

intenso. Sendo assim, ele se empenha em saber todas as ciências relacionadas à arte, e, ao

apreendê-las, avança com segurança, operando racionalmente, mas de modo lento, faltando-

lhe certa graça, pois ainda não possui completamente a disposição natural necessária, sem a

qual não se pode dar graça alguma às obras, como já foi ressaltado.

Por meio da imitação, procede-se quando o artista não possui um perfeito

conhecimento dos limites e preceitos da arte, necessários para que se possa operar com

liberdade e autonomia, e, por isso, segue a maneira de alguns excelentes pintores, primeiro

apenas observando as obras para depois imitá-las, como Daniele da Volterra e Sebastiano del

Piombo que imitaram Michelangelo, e Bernardo Soiaro, Giulio Campi e Ercole Procaccini

que imitaram Antonio da Correggio, entre outros artistas que imitaram a maneira dos outros

governantes da arte, que muito tempo levaria para nomear358. Mas, entres os imitadores,

também é possível encontrar os que tiveram uma outra sorte, possuindo espírito menos

refinado e inteligência mais obtusa. Até uma certa idade, estes fazem obras razoáveis graças

ao esforço dos outros, reunindo aquilo que vêem, sem de fato conhecer a excelência daqueles

que imita, e chegando até a desprezá-la, como costumam fazer as pessoas de visão limitada e

de juízo imperfeito. Contudo, anos depois, quando as forças do corpo começam naturalmente

a diminuir e não podem mais suportar o trabalho, tornam-se de uma só vez velhos, pois se

encontram enfraquecidos, e ignorantes, pois perdem, consequentemente, a faculdade que

357 A palavra "studio" (lat. studium; diligentia; industria) pode ser entendida relacionada ao verbo "studiare" ou no sentido de diligência/ indústria, segundo o V. A. Crusca. De acordo com o Dizionario di Arti (GRASSI; PEPE: 1995), S. pode ser entendido como "exercício e aplicação assídua de um jovem aprendiz". Ex. do emprego da palavra neste sentido em B. Varchi (F. Memofonte e Acc. della Crusca, p. 26 ): "Perché come la dottrina acuisce o vero assottiglia la mente, così l'esercitazione fa perfetta la mano, dove si ricerca no meno tempo che studio". 358 Nota-se aqui a presença de Correggio no "hall" dos governantes da arte. Ao longo do Trattato é possível perceber que Lomazzo não havia decidido qual representante do colorismo iria coroar, Correggio ou Tiziano. Para Robert Klein (op. cit., vol. II, p. 478, intro.), sua decisão final por Tiziano se explica também pela ligação de L. com a tradição teórica veneziana, que é um dos alicerces de seu pensamento. Ainda, T. possui uma relação estreita com a corte imperial habsburga espanhola (que se iniciou com o imperador Carlos V, estendendo-se a Felipe II), o que era bastante significante para L., diante das condições políticas de Milão, sob domínio espanhol desde 1525. Seria interessante, no entanto, a eleição de Correggio, o que sublinharia um cruzamento entre as escolas de Parma e de Milão. Contudo, K. nos lembra que talvez seja possível que a aversão de Lomazzo à escola de Cremona [observe a citação de Giulio Campi e Procaccini], que reivindicava ascendência parmesã, tenha sido decisiva para Lomazzo.

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permite imitar. Deste modo, ao morrerem, caem no esquecimento, tornando mais célebres o

outro tipo de pintor que, dotado pela natureza e instruído pela arte, mesmo quando lhe falta as

forças do corpo, necessárias para a prática rudimentar e desprovida de arte, jamais perde a

beleza de espírito e a sutileza do juízo que serve à arte e à prática sutil regulada pela teoria.

Portanto, que cada um atente para isto e peça ajuda a Deus, já que, de outro modo, sem

conhecer os preceitos e as regras da arte que com dedicação reuni neste livro, de forma mais

cuidadosamente possível, por mais esforço que se empregue, jamais poderá realizar uma obra

com o mínimo de qualidade se quer.

Ainda, uma última coisa deve ser advertida. Mesmo entre aqueles que

souberam ao mesmo tempo reconhecer o seu talento natural e o cultivaram em seguida com

esforço contínuo e diligente, e alcançaram o ápice da excelência sob a segura orientação da

arte aprendida, não se pode divisar a mesma maneira, sendo todas variadas e distintas entre si.

O que não se origina de outra coisa senão da diversidade de maneiras359 e disposições que

cada um reconhece dentro de si, e às quais adapta sua formação, o que faz com que em uma

mesma arte se encontre homens todos excelentíssimos, mas diferentes uns dos outros,

perfeitos cada um em uma parte da pintura, como se pode perceber sobretudo nas sete

luminares da arte. Todos diferem-se em suas maneiras, de tal forma que não se poderia

desejar maior excelência na parte para a qual foram naturalmente inclinados, nela

concentrando toda sua arte e energia. Aliás, atingiram um tão alto nível que eliminaram

qualquer esperança que, algum dia, outros possam alcançá-los em seu gênero.

O mesmo pode ser observado nos pintores da Antiguidade, pois, não obstante

houvesse em Apeles um gênio de grandeza e venustidade, da qual ele mesmo costumava se

vangloriar, ainda assim confessava reconhecer a superioridade de muitos em outros aspectos:

Anfion tinha a habilidade de dispor as figuras com magnitude; Protógenes possuía grande

maestria; Asclepiodorus, a arte de situar as figuras em relação ao nosso ponto de vista;

Parrhasius ocultava as linhas dos contornos para fazer suas figuras parecerem maiores;

Aristides possuía a arte de distribuir todos os movimentos e afetos; E Timanthes, a habilidade

de demonstrar piedade e fé360. Não é somente a pintura que compreende esta diversidade de

359 Lomazzo utiliza duas vezes a palavra maniera. Klein (op. cit., n.t, vol. II, p. 656.) chama atenção para o lapso lógico do autor: a origem da diversidade de maneiras está na diversidade de maneiras. Isto, de acordo com o autor, indica a possibilidade do uso dúbio da palavra maniera, podendo significar tanto a forma de pintar de uma determinada escola ou de um artista, como o temperamento subjetivo, o gosto pessoal do artista, como será entendida no século XVII. 360 A fonte é Plínio (Klein, op. cit., vol II, pp. 656-7; Ciardi, op. cit., n.t., p. 253): Apeles (XXXV, 79 e 80), "praecipua eius in arte venustas fuit", "verum et omnes prius genitos futurosque postea superavit", " fuit autem

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gênios, mas também a escultura e todas as artes relacionadas a elas, como claramente se pode

constatar na grande variedade de arquitetos e nos seus diversos modos de operar.

Sendo, então, de grande importância que o pintor e todos os outros artistas

conheçam seu gênio e a direção para onde tende sua aptidão e disposição para operar mais

facilmente e de modo satisfatório, todos devem empregar suma diligência nesta questão. Após

tomar conhecimento disto, deve-se dedicar a imitar à maneira daqueles cujo estilo esteja em

concordância com o seu, tomando muito cuidado para não esbarrar em seus opostos361. Pois é

por isto que muitos ficam confusos e assim permanecem, perdendo o pouco de bom que lhes

foi dado pela natureza, enquanto que os que sabem judiciosamente unir o estudo e a imitação

apropriada aos seus dons naturais, aprendendo as disciplinas necessárias a esta arte,

plenamente discutidas nos livros sobre a pintura, em pouco tempo conquistam ilustre fama

entre os mais louvados e célebres.

Capítulo III

Da necessidade do discernimento

Ainda que muitos artistas tenham conquistado todas as coisas desejadas na

pintura através da ciência e da prática, não as puderam realizar perfeitamente sem a ajuda do

discernimento, ou seja, sem a preparação e a ordenação da pintura no todo 362. Porque é

non minoris simplicitatis quam artis", e logo em seguida fala de Melanthio (Anfion, equivocadamente nomeado desta forma por L., e corrigido por Klein, op. cit., vol. II, nota ao texto, pp. 751-752 ) e Asclepiodorus "[Apelles] Melanthio dispositione cedebat, Asclepiodoro de mensuris, hoc est quanto quid a quoque distare deberete". No que se refere a Protógenes e Parrhasios, Lomazzo realiza uma interpretação livre do texto de Plínio (Klein, op.cit., loc. cit.): para o primeiro (XXXV, 102-3), e o segundo (XXXV, 68). Para Aristides, (Plínio, XXXV, 98): " is omnium primus animum pinxit et sensus hominis expressit, quae vocant Graeci èthè, item perturbationes". Em relação a Timanthes, Klein (op. cit., loc. cit.) afirma que os testemunhos existentes não dão base para afirmação de Lomazzo, e que talvez a passagem interpretada por Lomazzo seja Plinio (XXXV, 74). A necessidade de um mestre entre os antigos que pudesse ser identificado com Gaudenzio Ferrari poderia explicar esta interpretação. Cfr. Idea del tempio della pittura, cap. 37, no qual L. relaciona cada governante a um pintor da Antiguidade. No Rime, pp. 91-95 (Conferenza de i pittori antichi e moderni), L. também faz a associação entre os pintores da Antiguidade e os mestres modernos. 361 Mais adiante, no capítulo dez, ao descrever o "Templo dos Governantes", L. coloca na base das estátuas de cada um dos sete governantes a representação dos vícios referentes ao temperamento do governante como uma espécie de advertência ao pintor. 362 Acredito que a "ordinazione di lei nell tutto" trata-se de saber relacionar todas as sete partes da pintura corretamente, ou seja, conectá-las de forma adequada. De acordo com Klein, o discernimento é a parte que concerne a tudo aquilo que permite um "juízo teórico bem fundamentado" (Klein, op. cit., n.t., vol II, p.658); É a capacidade de correlacionar as partes da pintura e as ciências úteis ao pintor, unir a teoria e a prática, utilizá-las em sua ordem justa e da forma correta, trata-se da "acepção mais técnica e didática do decorum pictórico de tipo contrarreformista" (Ciardi, op. cit., n.t., vol. I, p. 254). Por meio dele, atingi-se a Idea Divina, a Causa Primeira, dentro de uma visão neoplatônica (Ackerman, op. cit., p.74). Cfr. comentário da Barocchi, op. cit., pp. 1605 ss.

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somente através dele que se pode conhecer bem a fundo aquilo que fazemos, e de seu

conhecimento resultam a pureza do intelecto, a estabilidade do juízo, e, finalmente, a

verdadeira e racional maneira de operar. Ao exercitar o discernimento, entendemos o valor da

nossa capacidade de conhecer a nós mesmos, e, além disso, a dimensão da autoridade e da

grandeza da perfeição da arte 363, permitindo-nos, através das faculdades que nos foram

concedidas por Deus, fazer surgir a beleza e a complexidade das ideias que lá chegaram por

meio de canais diretos a partir da Suprema Idea, que se mostra de forma mais clara para nós

quanto mais puros e limpos penetrarmos em sua morada, livres das sombras escuras da

ignorância 364.

O discernimento somente confere elogio e glória ao pintor quando este o

conhece perfeitamente e o aplica na prática. Sem ele não seria possível realizar nada digno de

elogio, independente da quantidade de ciência e arte empregadas, mas se veria certa desordem

em toda obra feita por suas mãos: a quantidade de erros nas obras varia de acordo com o grau

de discernimento do pintor. Desta forma, sua necessidade se justifica, pois é praticamente o

fundamento e o fim da arte, e não diz respeito a apenas uma ou mais partes dela, mas a todas

as partes de maniera universal, fazendo resplandecer toda a obra em cada uma de suas partes e

dando ao artista honra e grandíssima utilidade, assim como o Sol que, iluminando todas as

partes do hemisfério a partir de um único ponto, com sua luz e seu calor, faz surgir flores e

frutos na Terra. Portanto, o pintor deve investir todo seu esforço no cuidado e no estudo do

discernimento, pois, caso o esqueça, mesmo que se empenhe em todas as outras partes

devidamente, tornaria esse empenho vão e não produziria fruto algum.

363 Lomazzo, neste trecho, discorre sobre duas ideias (opostas), que vão ao encontro de sua teoria: a dimensão pessoal de cada pintor ("la podestà che abbiamo di conoscere noi medesimi") e a tradição, seja ela pautada na regra da arte ou nos grandes modelos, os mestres (respectivamente, "grandezza che è nella perfezione dell'arte"; "autorrità"), como aponta Klein (op. cit., n.t., vol II, p.659). Para Ciardi (op. cit., n.t., vol I, p. 255), a primeira equivale à inspiração do pintor e a segunda, da "retta via", ou seja, as regras e preceitos, em sintonia com os ideais contrarreformísticos. 364 Neste trecho, a matriz neoplatônica da teoria artística de Lomazzo fica clara: o artista, através do discernimento, depura seu intelecto, e, assim, consegue captar as faces da Ideia Suprema, que chegam ao seu intelecto através da cadeia dos seres neoplatônica. Klein (op.cit., vol II, pp. 658-9) também aponta para a orientação Neoplatônica deste trecho: as ideias que encontram-se em nosso intelecto, reflexos da Ideia Suprema (Beleza), são as imagens universais, arquétipos das coisas a serem pintadas e modelos para o artista. Neste sentido, Lomazzo formula uma concepção cuja importância para o Maneirismo foi abordada por Panofsky (op. cit). Lee (op. cit, p.21, n. 48) identificou neste trecho a enunciação da função da "discrezione", do que Ciardi discorda (op. cit., n.t, vol I, p. 254-5), já que "a função de retornar ao arquétipo e à Idea não pertence ao discernimento, que é somentem sua condição primeira" ("permitindo-nos, através das faculdades que nos foram concedidas por Deus, fazer surgir a beleza...") sendo que essa função é reservada ao juízo (cfr. Idea del Tempio, cap. II). V. comentário, no capítulo 4 desta dissertação.

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O discernimento, além disso, evoca e representa em nossa memória as obras de

arte louvadas e excelentes, de onde nos é permitido não somente extrair a maneira de imitar,

mas também de inventar os elementos e os temas das nossas pinturas. E, a partir desta

representação, acende-se em nós, com grande intensidade, o desejo de operar e de dar às

nossas obras a maior excelência possível com toda arte e máximo esforço que o intelecto

humano possa oferecer, da mesma maneira que os soldados que, apesar das descrições da arte

da guerra, tornam-se mais estimulados para combater e realizar empresas gloriosas ao lerem

os gloriosos feitos bélicos realizados por César, Cipião e Aníbal, como ocorrera com

Alexandre ao ler sobre os feitos de Aquiles, e com César ao ver a estátua de Alexandre no

Egito.

É através do discernimento, também, que se demonstra a razão e a finalidade

da redescoberta desta arte, fazendo-nos conhecer sua dignidade e sua potência, ensinando-nos

em que ela consiste, as partes que a compõem, o critério de sua divisão, e como todos que a

queiram praticar com sucesso devem necessariamente conhecer todas as suas partes, pois elas

são como as almas invisíveis que, ao se vincularem aos corpos visíveis, dão-lhes luz e

conhecimento, sendo que todos que operam somente com certa prática superficial, suando e

esgotando-se em vão, nunca poderão obter a palma da arte sem a ajuda do discernimento,

assim como fizeram os artistas modernos, para não citar os antigos, os quais menciono em

diversos lugares para esclarecer e confirmar através dos exemplos de suas obras, os preceitos

e advertências assinalados em relação a essa arte. Já que eles, exercitando constantemente o

discernimento e combinando a verdadeira ciência com a prática ordenada, avançaram tanto na

arte da pintura que duvido ser possível elevá-la a um nível mais alto, ou mesmo mantê-la no

mesmo patamar, já que está por degradar-se e regredir um tanto365. Isto ocorre em nosso

tempo não porque não haja intelectos tão bem aventurados quanto em outros tempos, ou

naturezas tão resistentes ao esforço e ao estudo, necessários em todas as disciplinas, mas pela

má condição da presente idade que baniu todas as virtudes de si, fazendo com que os bons

intelectos, ao verem a pouca estima dada aos homens virtuosos e a pequena recompensa paga

pelo seu trabalho, esmorecessem, não mais aplicando estudo e esforço em suas obras, sem os

quais não se pode alcançar excelência366. Diante disso, maior elogio merecem aqueles que, se

365 Um topos na literatura artística pós vasariana (Cfr. Ciardi, op. cit., n.t., vol I, p. 255). 366 Pode-se fazer um paralelo com o texto de Vasari (Uma afirmação parecida pode ser encontrada no L.S. Ver nota 120 desta dissertação):

"Ma se tanto sono da noi ammirati que' famosissimi [os antigos], che provocati con sí eccessivi premii e con tanta felicità, diedero vita alle opere loro, quanto doviamo noi maggiormente celebrare e mettere in cielo questi rarissimi ingegni, che non solo

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ainda de fato resta algum, em um século assim tão degenerado, não abandonaram seu ardor e

nem sua indústria, tornando-se excelentes nas artes da profissão escolhida.

Capítulo IV

Dos escritores da arte antigos e modernos.

Ninguém, nem entre os antigos, nem entre os modernos, escreveu ou tratou da

pintura notavelmente sem também ter sido excelente em exercitá-la. Contudo, não se pode

negar que exista os que, mesmo ignorantes ou pouco entendidos, não somente na prática da

arte bem como na própria teoria, atrevem-se a fazer discursos e diálogos em suas mentes367.

Mas, em se tratando do primeiro caso, os quais a souberam praticar e ensinar aos outros

através de suas palavras, pode-se mencionar Policleto entre todos os mais antigos, escultor

muitíssimo ilustre, que expressou com seu modelo ideal todas as proporções e medidas que

pudessem servir para todas as figuras de qualquer forma que se desejasse, do qual todos os

pintores e escultores de seu tempo e das futuras gerações extraíram a norma e a regra para se

operar racionalmente368. Discuti sobre essas proporções ao longo do primeiro e do sexto livro

do meu subsequente tratado369.

Está escrito que, depois de Policleto, trataram de arte Menecmo370 e o grande

escultor Lisipo, que esculpiu, entre outras obras, um Alexandre Macedônico ferido muito

maior que o tamanho natural, do qual atualmente se encontram apenas alguns fragmentos,

como parte do busto, do braço e da cabeça. Nesta estátua, ele expressou, com singular

senza premii, ma in una povertà miserabile fanno fruti sí preziosi? Credasi e affermisi adunque che se in questo nostro secolo fusse la giusta remunerazione, si farebbono senza dubbio cose più grandi e molto migliori che non fecero mai gli antichi. Ma lo avere a combattere più con la fame che con la fama, tien sotterrati i miseri ingegni, né gli lascia (colpa e vergogna di chi sollevare gli potrebbe e non se ne cura) farsi conoscere." (Vasari, Le Vite (...), 1550, 1568, proêmio da terceira parte).

367 Neste trecho, o alvo da crítica de Lomazzo, segundo Ciardi (op. cit., n.t, vol I, p. 256), é literatura artística cinquecentesca florentina, principalmente as exposições acadêmicas em forma de diálogos. Cfr. Barocchi, Scritti del Cinquecento, p. 34 ss., no qual encontra-se a reproposição do tema "entendedores" versus "não entendedores" (Varchi, p. 34; Sangallo, p. 74; Pino, p. 101 e p. 115; Danti, p. 209; Sorte, p. 296; Vasari [torentiniana], pp.20, 224); Barocchi aponta para a orientação diferente de Vasari a propósito dos requisitos da Storia (Proêmio de toda a obra e o Proemio da segunda parte, 1550). 368 Segundo Robert Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 659), as fontes do cânone de Policleto são o De Temperamentis, I, 9 e o De placitis Hippocratis et Platonis, V, 425,14, do médico e filósofo antigo Cláudio Galeno; Outras fontes: Luciano, De saltatione, 75; Plutarco, De profectione in virtute, 17, 86a. Cfr. Libro dei Sogni, ragionamento sesto, p. 126. 369 "nel primo e nel sesto del mio seguente trattato" - no texto em italiano, a palavra utilizada é "seguente" para referir-se ao Trattato, indicando o antigo caráter introdutório destes primeiros capítulos do Idea del Tempio. 370 Sobre Menecmo (Menaichmos): Plínio, XXXIV, 80 (Sobre as referências na obra de Plínio, guiei-me através de Klein, op. cit. e Ciardi, op. cit., sempre verificando as indicações desses autores no texto pliniano).

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maestria a grande concavidade dos olhos, a quadratura do nariz e de todos os outros membros

com suma harmonia e consonância entre eles, que foram imitadas depois pelos artistas

modernos, como Polidoro, Michelangelo e Rafael, embelezando a nossa maneira moderna e

rivalizando com a antiga. E isto com grandíssimo juízo, já que, além da excelência de todas as

suas outras partes, a cabeça é particularmente estimada pelos entendedores como a mais

excepcional e artificiosa que até agora se pôde encontrar no mundo. Em seu tratado, Lisipo

demonstrou o caminho para se observar as quadraturas dos membros dos corpos, para fazer os

braços e as mãos longas, e os pés e a cabeça pequenos, que antes era feita por outros

escultores grande como o natural, e esta redução foi considerada pelos maiores artistas como a

mais bela invenção que alguma vez fora realizada371.

Na sequência, sabemos que Praxíteles escreveu cinco volumes sobre as nobres

obras de pintura, escultura e estatuária de todo o mundo, e Eufránor de Istmo sobre as cores.

Igualmente, Antígono escreveu sobre arte, e, segundo Diógenes Laércio, Xenócrates, que

exaltou sobretudo o príncipe da arte, descendente de Apolo e Hércules, Parrásio de Éfeso.

Este foi o primeiro a introduzir a proporção na pintura, a vivacidade nas feições, a elegância

nos cabelos, a graça na boca, e finalmente a arte de suprimir os contornos das figuras com as

cores, o que antes era desconhecido. Também, o único e famoso Apeles escreveu sobre arte,

realizando um copioso tratado, que foi comentado pelo filósofo Demétrio372. Porém, nenhum

deles chegou às nossas mãos devido às injúrias do tempo. Somente as obras do antiquíssimo

ótico e matemático árabe Alhazen foram conservadas e foram comentadas por Vitelo, quem

adicionou três livros próprios aos sete livros originais373. Da mesma forma, Vitrúvio em sua

371 Cfr. Plínio, XXXIV, 65; Também, Trattato, VI, 14, p. 277. Sobre a cabeça de um Alexandre ferido, é possível afirmar sua presença na coleção do card. de' Carpi, cfr. ALDROVANDI, Ulisse. Le statue di Roma, Veneza, 1558, p. 205. De acordo com Ciardi (op. cit., n.t., vol I, p. 256) e Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 659), a coleção do cardeal de' Carpi era uma das mais belas e famosas de Roma, e como Lomazzo dá a entender que a peça era conhecida pelos artistas de sua época e utilizada para o estudo de proporção, a identificação desta cabeça citada por Aldrovandi com a obra de Lisipo, único escultor ao qual era permitido retratar Alexandre, parece plausível. 372 Praxíteles: Plínio, XXXVI, 39; Eufránor de Istmo: ibid., XXXV, 129; Antígono: ibid., XXXIV, 84 e XXXV, 68; Xenócrates: ibid., XXXIV, 83 e XXXV, 68; e Diógenes Laércio, IV ; Parrásio de Éfeso: Plínio, XXXV, 67- 8 e 71 e Romano Alberti, pp.220 ss (Apud Ciardi, op. cit., n.t., vol. I, pp. 256-7, quem afirma que R. Alberti talvez tenha sido uma fonte mais direta de Lomazzo); Apeles: ibid, XXXV, 79; Demétrio (filósofo e pintor): Diógenes Laércio, V, que, contudo, não menciona um comentário a Apeles.

373 1- Alhazen (Ibn al-Haytham, Baçorá 965 - ? 1040) foi um filósofo, físico, astrônomo e matemático nascido no atual Iraque, cujo extenso tratado de óptica composto por sete livros foi escrito um pouco antes de 1030, traduzido pela primeira vez para o latim por volta de 1200. A primeira edição impressa de sua obra foi feita por Friedrich Risner, discípulo de Ramus, publicada na Basiléia em 1572 em um Opticae Thesaurus (uma das mais importantes obras sobre o assunto, utilizada por Brahe, Kepler e Descartes em seus estudos) que também incluía os dez livros sobre perspectiva de Witelo. 2- "Vitelo" trata-se de Witelo Thuringopolonis, matemático, físico e

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De Architectura tratou desta arte, descrevendo em seu terceiro livro todas as proporções do

corpo humano, das quais todas as ordens da arquitetura derivam, e junto a ele o matemático

que vivera também nos tempos de Augusto e que escrevera sobre ótica374. Finalmente, cito

Euclides, Arquimedes, o grego Gemino e outros matemáticos que escreveram sobre ótica, dos

quais falo em outros lugares do meu Tratado, e assim continua até os tempos do Constantino

filósofo polonês do século XIII. Seu tratado sobre perspectiva, escrito por volta de 1270-73, teve sua primeira edição publicada em Nurembergue em 1535. 3- Lomazzo afirma que Witelo teria comentado Alhazen e adicionado três livros seus, quando na verdade, o Perspectiva de Witelo trata-se mais precisamente de uma adaptação dos conteúdos do tratado de Alhazen (e não de um comentário) somada a três livros com conteúdos novos. De acordo com Gérald Péoux (Opticae thesaurus" (1572): la renaissance par l’imprimé de l’optique médiévale. "Mise en forme des savoirs à la Renaissance"; sous la dir. de Isabelle Pantin et Gérald Péoux, Paris, 2013, p. 43), a diferença essencial entre o tratado de Witelo (Perspectiva) e o de Alhazen (De aspectibus) reside no livro I de Witelo sobre matemática, que retoma a matemática euclidiana e a teoria dos cones atribuída a Apollonius de Perge. 4 - Klein (op. cit., vol II, p. 660) julga que Lomazzo possuia um conhecimento superficial sobre o Opticae Thesaurus, pois "Witelo não havia adicionado três livros aos sete de Alhazen, mas escrito um outro em dez livros", e Ciardi (op. cit., n.t., vol II, p. 257), por sua vez, afirma que é inexata a notícia de que Witelo havia comentado Alhazen e que o Opticae Thesaurus, no entanto, apresentava os sete livros de Alhazen e mais três livros de Witelo. Ambos cometem equívocos em seus comentários: Lomazzo afirma que Witelo comentou Alhazen e "adicionou três livros próprios aos sete livros originais", mas não fala explicitamente do Opticae Thesaurus. Ao meu ver, L. está se referindo ao Perspectiva de Witelo neste trecho, e, ainda, demonstra ter um conhecimento substancial do Thesaurus, pois esta obra apresenta a reorganização da estrutura de ambos os tratados matemáticos de Witelo e Alhazen, evidenciando a relação entre seus conteúdos, o que fora perfeitamente compreendido por Lomazzo, já que ele reconhece na obra de Witelo os conteúdos de Alhazen e os três livros com conteúdos inéditos do próprio Witelo. Sobre o Opticae Thesaurus, Alhazen e Witelo: Poudra, M. Histoire de la perspective ancienne et moderne. L'analyse d1un trè-grand nombre d'ouvrages sur la Perspective et la description des procédes divers qu'on y trouve. Paris: J. Corréard, 1864. p. 32; Vescovini, G. F., "La dottrina ottico-gnoseologica di Alhazen", Studi sulla prospettiva medievale, Truim, Giapichelli, 1965; Idem. "La fortune de l'optique d'Ibn al-Haytham: le livre De aspectibus (Kitab al-Manazir) dans le Moyen Âge latin", Archives internationales d'histoire des sciences, 125. vol. 40/1990, p. 220-238; Sabra, A.I (trad). The optics of Ibn al-Haytham. 2 vol. Londres: The Warburg Institute, 1989; Simon, G. Archéologie de la vision. L'optique, le corps, la peinture. Paris: Éditions du Seuil, 2003; Péoux, Gérard. "Opticae thesaurus (1572): la renaissance par l'imprimé de l'optique médiévale". In Mise en forme des savoirs à la Renaissance. À la Croisée des idées, des techniques et des publics. Paris: Armand Colin, 2013. pp.41-62.

374 1 - Trattato..., V, 3, p. 224: "e un certo Osteo al tempo di Augusto, come racconta Celio." Ciardi (op. cit., n.t.) aponta para este trecho do tratado da pintura. Celio Rodigino é o pseudônimo do humanista Ludovico Ricchièri (Rovigo, 1469 - 1525), autor dos Lectionum Antiquarum libri, que teve sua primeira edição milanesa publicada em dezesseis livros em 1516 e uma segunda edição em vinte livros publicada postumamemente na Basiléia em 1542 (e outras depois desta), enciclopédia bastante conhecida e referenciada no período. No entanto, não há menção a Osteo na obra de Celio [verifiquei esta ausência]. Contudo, Ciardi encontra o seguinte trecho na obra de Agrippa (De incertitudine et vanitate omnium scientiarum et artium liberalium , Hagae Comitum, 1533. Trad. italiana. Della vanità delle scienze, per L. Domenichi, Veneza, 1547, cap. XXVII (Dell'arti de gli Specchi), p. 39): "(...) Cosí leggiamo, come racconta Celio nelle lezioni antiche, ch'al tempo di Augusto un certo chiamato Hostio (...)". 2 - Barrochi, op. cit., p. 36, afirma que talvez pudesse se tratar de C. Giulio Igino (60a.c - 10 d.c.), bibliotecario de Augusto. 3 - Sobre Celio: Marangoni, M. L'armonia del sapere. I 'Lectionum Antiquarum Libri' di Celio Rodigino. Veneza: Inst. Veneto di Scienze, Lettere ed Arti, 1997; Céard, J. Érasme e Coelius Rhodiginus. " Bibliothèque d’humanisme et renaissance", Genebra, p.7-17, n. 74, 2012.

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o grande375. Desde então até o tempo de Michelangelo Buonarroti, todas as artes

permaneceram como que sepultadas.

Começaram, então, a ressurgir e em nossa arte o primeiro foi Donato, cujo

sobrenome era Bramante, de Castelo Durante376, que desenhou as ordens e as medidas das

antiguidades de Roma e grande parte desses desenhos feitos à mão pode ser encontrada em

diversos lugares. Através de Bramante foram redescobertas as quadraturas do corpo humano,

invenção rara e admirável para o mundo, e, também, as quadraturas dos membros do cavalo,

que permitiram fazer comodamente os modelos daquilo que se bem quisesse377. Em seguida,

essas foram dadas por ele a Rafael de Urbino, seu parente, e usadas por Gaudenzio Ferrari e

por outros homens excelentes. Despois dele, vieram o milanês Bartolomeu, conhecido como

Bramantino, seu discípulo, que compôs diversos livros sobre antiguidades de uma maneira

belíssima e racional378, Vicenzo Foppa, que escreveu sobre as quadraturas dos membros do

375 Cfr. Barocchi, op. cit., p. 36. 1- Euclides de Megara (c.450 a.c - c.380 a.c.): A primeira trad. vulgarizada foi realizada por Nicolo Tartaglia (Lomazzo o menciona no cap. 19, cfr. 273), publicada em Veneza por Venturino Roffinelli em 1543, com uma segunda edição publicada em Veneza por Troiano em 1565. Também, existe uma trad. comentada por A. Cajani, I quindici libri degli elementi. Roma: Blado, 1545 e F. Commandino. De gli elementi d'Euclide libri quindici con gli scholli antichii. Urbino: Domenico Frisolino, 1575. 2 - Arquimedes de Siracusa (287 a.c - 212 a.c): Tartaglia publicou a primeira ed. latina de Arquimedes também em 1543, Opera Archimedis Syracusani philosohpi et mathematici ingeniosissimi; F. Commandino (Trad.). Archimedis l'opera nonnulla. Venezia: Paulo Manuzio, 1558. 3) Gemino de Rodes viveu no primeiro século a.c., e de suas obras só sobraram apenas fragmentos (Ciardi, op. cit., n.t., vol I, p. 257). 376 Donato Bramante ( Fermignano, 1444 - Roma, 1514). Seu local de nascimento é um falso dado emprestado de Vasari (Vita di Donato Bramante da Urbino, 1550, 1568). Klein (op. cit, vol II, p. 660) defende a ideia de que a utilização da figura de Bramante para marcar a transição para a Modernidade sinaliza o esforço de Lomazzo em colocar os artistas Lombardos em evidência dentro de uma tradição artística ocidental, fazendo, desta forma, um contraponto a Vasari, opinião que também compartilho. 377 Em relação aos escritos de Bramante perdidos, estes são recordados por Doni no Libraria seconda, Veneza, 1551, p. 31 e 1555, p. 44. Cfr. Schlosser, op. cit., pp. 176-7, e 182. L. também cita os manuscritos de Bramante no Rime, p. 344 e p. 238, e, neste último, parece reivindicar o método de aplicação da perspectiva de Dürer a Bramante (Klein, op. cit., vol II, p. 661; Ciardi. op. cit, vol I, p.258; Schlosser, op. cit., loc. cit.). Sobre Bramante arquiteto e teórico, indico algumas bibliografias: Bruschi, A. Bramante Architetto. Bari: Ed Laterza, 1969; Schofield, R. V. Bramante Studies: The Milanese period. Londres: Courtald Inst. of Art, 1979; Bruschi, A. Maltese, C. Tafuri, M. Bonelli, R. Scritti Rinscimentali di Architettura. Milano: Ed. Il Polifilo, 1978 (aqui é possível encontrar uma boa bibliografia sobre o Bramante teórico); Moretti, M. Il genio conteso. Mito e fortuna di Donato Bramante nel suo territorio di origine. Fermignano: Centro di Studi Mazzini, 2014. Ainda, pode-se encontrar bibliografias nas páginas citadas de Schlosser. 378 1 - Referência sobre a parentela entre Bramante e Rafael está em Vasari (Vita di Raffaello Sanzio da Urbino): "E questo avvenne perché Bramante da Urbino, essendo a' servigi di Giulio II, per un poco di parentela che avevano insieme e per essere di un paese medesimo". Ainda, sobre este trecho, cfr. Schlosser, op. cit., pp. 175-6 e Tratt., VI, 14, p. 277:

"Or quanto alle figure quadrate ne disegnò assai Vincenzo Foppa, il quale forsi dovea aver letto di quelle che in tal modo squadrava Lisippo statovara antico, con quella simmetria che in latino non ha nome alcuno. E seguendo lui ne disegnò por Bramanete un libro, da cui Rafaello, Polidoro e Gaudenzio ne cavarono grandissimo giovamento; e secondo che si dice è pervenuto poi nelle mani di Luca Cangiaso pozzeverasco...".

Sobre esta questão entre Foppa e Luca Cambiaso, cfr. nota 467 desta tradução.

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corpo humano e do cavalo, das quais inventou algumas próprias; o sienense Baldassare

Peruzzi, autor da grandíssima obra que fora publicada sob o nome de outro, intitulada I

Cinque Libri d'Architettura di Sebastiano Serlio; E Andrea Mantegna, que realizou alguns

estudos de perspectiva, nos quais delineou figuras colocadas de acordo com seu ponto de

vista, das quais vi algumas com suas notas manuscritas na casa de Andrea Gallarato, um

grande apreciador desta arte. Quase ao mesmo tempo, Bernardo Zenale escreveu um tratado

de perspectiva a seu filho, no ano da peste de 1524, discorrendo sobre o método de se edificar

casas, templos e outros edifícios. Butinone também escreveu um livro, e Marco Pino da Siena

escreveu um grandíssimo volume sobre arquitetura379.

2- Sobre Bramantino, cfr. Tratt, V, 21, p. 239. Em relação aos escritos de Bramantino, Suida, em 1906-7, (Bramante pittore e il Bramantino, Milão, 1953, pp. 93, 129, 131) lançou a hipótese da atribuição a Bramantino do volume das Antiquarie prospetiche Romane Composte per prospettivo Melanese depictore [Roma?, c. 1496], uma obra de oito pranchas não numeradas, publicada sem autoria, local ou datação. Contudo, havia uma objeção a esta hipótese pois se sabia-se, até então, que Bramantino apenas viera a Roma em 1508. Mais tarde, Longhi supõe uma primeira temporada romana do artista, entre 1495 e 1503 ("Paragone", 63, 1955, pp. 57-61), o que poderia validar a hipótese de Suida. Em 1966, G. de Angelis D'Ossat (Preludio Romano al Bramante, in "Palladio", n.s., XVI, 1966, pp.92-94) propõe Bramante como autor das Antiquarie. Ainda não se chegou a uma solução para a questão em torno da autoria desta obra. Para mais infor., cfr. Schlosser, op. cit., pp. 177 e 182; Aldovini, L. "Cat. 21. Anonimo Lombardo della fine del XV secolo (Bartolomeo Suardi, detto il Bramantino?)" In Bramantino. L'arte nuova del Rinascimento Lombardo (a cura di Mauro Natale). Milão: Skira, 2014, pp. 168- 171, quem nos dá uma síntese bastante consistente sobre os percursos da fortuna crítica desta obra. 379 1 - Vicenzo Foppa (Bagnolo Mella, 1427 - 1515). Cfr. nota 88 desta dissertação. Citação de Foppa também no Tratt., cit., VI, 14, p.277; No Tratt., cit., V, 21, p.240, Lomazzo promete editar os manuscritos ilustrados de Foppa (sobre esta questão, cfr. Schlosser, op. cit., pp. 175-6 e 182).

2 - Sebastiano Serlio (Bolonha 1475 - 1552); Klein (op. cit., loc. cit.) nos informa que a acusação de plágio sofrida por Serlio era uma opinião corrente na época (cfr. Vasari, "Vida de Baldassare Peruzzi"). Serlio, no entanto, jamais escondeu a sua dívida com seu meste, Peruzzi: no quarto livro (Utilizei a ed. de Vicenza, por Giacomo de' Franceschi, 1618, p.126), Serlio avisa o leitor sobre as transcrições do texto de Peruzzi que estava em sua posse desde a morte deste: "Di tutto quello, che voi trovarete in questo libro che vi piaccia, no darete già laude a me: ma si bene ao precettor mio Baldassar Petruccio da Siena (...)". Cfr, Schlosser, op. cit., p. 410.

3 - Sobre os desenhos de Mantegna, Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 258) cita Kristeller, P. Andrea Mantegna, Londres-NY, 1901, p. 433; Schlosser, op. cit., pp.176 e 182; E. Tietze Conrat, Andrea Mantegna, Florença, 1955, p.20. Indico também: Martineau, J. Andrea Mategna. Londres/NY: Royal Academy of Arts and The Metrop. Museum of Art, 1992; Landau, M. Parshall, P. The Renaissance Print. New Haven: Yale Univ. Press, 1994; Lomartire, S. Andrea Mantegna e l'incisione del Rinascimento nelle collezioni dei Musei Civici di Pavia. Milão: Mondadori Electa S.p.A., 2003; Mauro, L. Mantegna. Milão: 24 ORE culture, 2013.

4 - Sobre o tratado de perspectiva de Bernardo Zenale (Treviglio, 1455-1460 - Milão, 1526), no Tratt., cit., V, 21, p 240, Lomazzo o cita afirmando que ainda não havia decidido se o publicaria ou não. Cfr. Schlosser, op. cit., p. 176; e nota 459 desta tradução para informações biográficas.

5 - Marco Pino da Siena (Siena, c. 1525 - Nápoles, c. 1583); O livro de arquitetura de Marco Pino da Siena é perdido ou não identificado. Sobre Marco Pino da Siena, cfr. Zezza, A. Marco Pino. L'opera completa. Nápoles: Electa Napoli, 2003. 6 - O tratado de Bernardino Butinone (Treviglio, c. 1450 - c. 1510) é desconhecido. Cfr. Schlosser, op. cit., pp. 176 e 182. 7 - É interessante notar este listamento que L. faz dos teóricos lombardos, colocando-os no centro da tradição teórica italiana, reforçando sua defesa da trad. lombarda ante a narrativa vasariana.

Neste trecho, Lomazzo cita os expoentes da cultura figurativa milanesa, que fundamentaram as técnicas de iluminação, de perspectiva, de contrafação e a construção de arquiteturas na pintura na lombardia do séc. XVI: Foppa, Zenale e Bramante. Cfr. nota 26 para uma bibliografia sobre a questão.

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Mas, mais que todos estes escritores é digno de memória Leonardo da Vinci,

que ensinou a anatomia dos corpos humanos e dos cavalos, que vi na casa de Francesco

Melzi, divinamente desenhada por suas mãos. Demonstrou ainda, através de desenhos, todas

as proporções dos membros do corpo humano, escreveu sobre a perspectiva das luzes, como

realizar figuras maiores que o natural, e muitos outros livros, nos quais ensinou como os

movimentos e os efeitos podem ser considerados matematicamente380. Também, mostrou a

arte de levantar pesos com facilidade. Esses escritos são conhecidos por toda Europa e são

tidos em altíssima estima pelos especialistas, pois julgam que não se pode fazer mais do que

ele fez. Além disso, ele descobriu a arte de girar as ovais, coisa digna de admiração, o que foi

ensinado mais tarde por um discípulo do supracitado Melzi a Dionigi, cujo irmão, Giovanni

Ambrogio Maggiore381, agora pratica com muito sucesso. Leonardo desenhou vários tipos de

moinhos movidos a cavalo, invenção que se espalhou por todo o mundo, junto com diversas

rodas para bombear água; Ensinou como fazer pássaros mecânicos voarem, leões andarem

sobre rodas e como fabricar animais monstruosos, e desenhou faces monstruosas com tanto

380 Cfr. Vasari, "Vida de Leonardo Da Vinci". Francesco Melzi, pupilo de Leonardo, herdou do mestre seus manuscritos e desenhos, junto com algumas pinturas que estavam em sua posse. Retorna, então, a Milão por volta de 1523, e mantém os manuscritos e desenhos de Leonardo até sua morte, em 1570. As folhas vistas por L. na casa de Melzi, também mencionadas pelo agente do Duque de Ferrara e por Vasari nas "Vidas" (1550), que as viu pessoalmente em 1566, e tratam-se de folhas que atualmente se encontram dispersas (Códice Arundel, Códice Trivulziano, Institu. de France, Madrid, Oxford, Turim, Foster, Leicester, Windsor, Madrid, Atlanticus, entre outros). Sobre as folhas em posse de Melzi, cfr. Popham, A.E. The drawings of Leonardo da Vinci. Compiled, Introduced and Annotated. Londres, 1949, pp. 26-7. Clarck, K. Leonardo da Vinci. An account of his developtment as an artisti. Cambrigde, 1952, pp. 55. Pedretti, C. Studi Vinciani. Documenti, Analisi e Inediti leonardeschi, Genebra: Librarie E. Droz, 1957, pp.171-187 e pp. 54-61; Clarck, K. Pedretti, C. Leonardo da Vinci Drawings at Windsor Castle. 1968, vol. I, pp. ix-x. Sobre os desenhos de anatomia e movimento dos cavalos: Pedretti, C. op. cit., pp. 171-187; Predretti, C. Taglialagambia, S. Leonardo. L'arte del disegno. Firenze: Giunti, 2014, pp.166-179. Sobre os desenhos demonstrando as proporções dos corpos humanos, estes podem ser encontrados na terceira parte do "Codice Urbinate" e nos desenhos de Windsor. Cfr. Richter, J.P. Perspective ancient, mediaeval and Renaissance, in "Scritti in onore di B. Nogara", Cidade do Vaticano, 1937, I, p.243; Pedretti, C. Taglialagambia, S. op. cit., pp. 180-189. Sobre a perspectiva das luzes: Richter, op. cit, I, 162 ss; Papa, R. La "scienza della pittura" di Leonardo. Analisi del "Libro di pittura". Milão: Medusa, 2005, pp. 81-96. Seguem algumas bibliografias mais recentes sobre os desenhos de Leonardo: Catálago da exposição "Léonard de Vinci. Dessin et manuscrits", Paris, 4 Maio - 14 Julho, 2003; Marani, P.C. Fiorio, M.T. Leonardo, dagli studi di proporzioni al Trattato della Pittura. Milão: Mondadori Electa S.p.A, 2007; Zöllner, F. Nathan, J. Leonardo da Vinci (1452-1519) - Vol. II, The Graphic Work. 2011; Catálogo da mostra Leonardo da Vinci (1452-1519). The Design of the World (ed. Marani e Fiori), Milão, Palazzo Reale, 16 Abril - 19 Julho, 2015. 381 O mestre Giovanni Ambrogio Maggiore foi um torneiro de mármore e madeira. Nasceu em Milão, em 1550. Possivelmente inspirados nos escritos de Leonardo, os irmãos Giovanni e Diogini foram famosos por terem criado um tipo de torno capaz de produzir efeitos giratórios não apenas circulares, como também oblíquos. Giovanni vai à Bavária na década de 1570 a convite do futuro duque William, onde ensina a técnica aos artistas locais, e, a partir disso, a novidade se espalha por toda a Europa. Lomazzo o menciona no Trattato, VI, 50, p.373 e no Rime (p.114), "le terzo è quel Maggior che trovò l'arte/ di far le forme ovate con il torno:/ cosa non mai intesa avanti à lui". Ciardi (op. cit., n.t., vol I, p. 259) supõe que Giov. Ambroggio deveria ter alguma relação íntima com o círculo de Lomazzo. Sobre Gio. Ambrogio Maggiore, cfr. Diemer, D. Giovanni Ambrogio Maggiore und die Anfänge der Kunstdrechslerei um 1570. "Jahrbuch des Zentralinstituts für Kunstgeschichte Zentralinstitut für Kunstgeschichte", Munique, pp. 295-342, 1, 1985. Sobre Diogini Maggiore, Cf. Predetti, Leonardo da Vinci on painting a lost book (libro A). Berkeley e Los Angeles, 1965, p. 29.

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engenho, que mesmo que muitos tenham sido excelentes nisto, nenhum jamais pôde a ele

igualar-se 382. Porém, apesar da quantidade de invenções, nenhuma pode ser encontrada

impressa, apenas manuscritas. Uma grande parte desses manuscritos chegou às mãos de

Pompeu Leoni, escultor do Católico Rei da Espanha, que as conseguiu através do filho de

Francesco Melzi e outra parte destes livros caíram nas mãos do senhor Guido Mazzenta,

doutor virtuosíssimo, que os mantém com muito cuidado 383.

Tomaria muito tempo, no entanto, nominar um por um aqueles que

escreveram ou desenharam à mão, e que estão se perdendo, e, portanto, falaremos somente

daqueles que tiveram suas obras publicadas, como Leon Battista Alberti que escreveu sobre

perspectiva, sobra arquitetura e pintura384, Pomponio Gaurico385, o frade Luca Pacioli dal

Borgo que tratou da divina proporção386, o flamengo que desenhou a anatomia de Andrea

Vesalius e Barozzi, conhecido por Campagnuolo, que escreveu sobre arquitetura, e muitos

382 Sobre os desenhos de cabeças grotescas de Leonardo: Taglialagamba, S. La rappresentazione del grottesco in Leonardo, ricapitulazione del problema. "Raccolta Vinciana", Milão, pp. 141-196, Fasc. XXXII, 2007; Franchi, L. Lo Zanni. Il corpo, il volto e l'anima del grottesco da Leonardo agli accademici bleniesi. "Studi di Storia dell'Arte", Todi, pp. 49-58, 25, 2015. Cfr. BORA, G (org.). Rabisch. Il grottesco nell'arte del Cinquecento. L'Accademia della Val di Blenio, Lomazzo e l'ambiente milanese. Milão: Skira, 1998. 383 Sobre o "Codice Vaticano (Urbinate) 1270" compilado por Francesco Melzi em meados do século XVI, e o tratado de pintura de Leonardo, cfr. Clarck, K. Leonardo da Vinci, cit., 1952, pp 69 e ss. Pedretti, C. A new chapter in the History of Leonardo's Treatise of Paiting. In Leonardo's Legacy. 1969, pp. 149 e ss; Nanni, R. Pedretti, C. Baratta, G. Leonardo e Il libro di pittura. Roma: Ed. Assoc. Editri. Intern. s.r.l., 1997. Também, indico a edição crítica organizada por Anna Sconza, Trattato della Pittura. Traitté de la Peinture (1651), Paris: Socie. d'édition Le Belles Lettres, 2012. A bibliografia sobre os escritos de Leonardo é bastante vasta. Sabe-se que, após a morte de F. Melzi, seu filho Orazio vendeu grande parte dos volumes (dez manuscritos segundo as Memorie de Mazenta) de Leonardo a Pompeo Leoni em 1582-1590. Outra parte deles foi parar nas mãos de Guido Mazenta, do Cardeal F. Borromeo e de artistas. Guido Mazenta foi um colecionador de arte do período. Klein (cit., vol II, pp. 664-5.) lista as seguintes bibliografias sobre Mazenta: Morigia, Nobilità di Milando, 1593, 1. V, 1, 277; Girol. Borsieri, Suppl. à Morigia, ed. 1619, p. 61; Picinelli, Ateneo di letterati milanesi, Mil. 1670, p. 375 (sobre a recepção de Maragarita de Áustria organizada por Mazenta em Milão em 1598); L'art. d'Ettore Verga, Arch. stor. lomb., sér. Vm t.5, 1918, pp. 266-95, com dois inventários sobre a coleção da Família Mazenta. Em relação aos manuscritos de Leonardo, cfr. Popham, A.E. The drawings of Leonardo da Vinci. Compiled, Introduced and Annotated. Londres: J. C.. 1949, pp. 26 ss; Clarck, K. Pedretti, C. cit.. 384 Cfr. Vasari (Vida de Leon Battista Alberti). Podem se tratar do De pictura (1435) e do De re aedificatoria (1450), nos quais Alberti discorre respectivamente sobre a perspectiva brunelleschiana e a pintura, e sobre arquitetura. Contudo, Klein (op. cit., vol II, p. 665) coloca a possibilidade de que se possa tratar de um tratado de perspectiva de Alberti desconhecido. Aquele que foi publicado por Bonucci no t. IV das obras italianas de Alberti (Florença, 1842-9) não possui nenhum título válido de autenticidade. Cfr. Michel,P. -H. La pensée de L- B. Alberti, Paris, 1930, p 24; Schlosser, op. cit., pp. 153 e ss.. 385 De sculptura (Florença, 1504). De acordo com Barocchi "dopo aver registrato i piú importanti voci dell'antichità e del Cinquecento lombardo il Lomazzo chiude la sua rassegna italiana in modo eterogeneo" (BAROCCHI. Scritti ..., p. 39 APUD Ciardi, op. cit., n.t., vol I, p.260). É importante a menção de Gaurico, geralmente ignorado pela literatura artística do período (cfr. Chastel e Klein, introdução da edição crítica do De sculptura apud Ciardi, op. cit., loc. cit.). Também, cfr. Schlosser, op. cit., pp. 259-262; Barocchi, op. cit., p. 39. 386 De divina proportione (1496); Cfr. Tratt., VI, 16; Schlosser, op. cit., pp. 174 e 181-182; Ciardi (op. cit., n.t.) afirma que a obra de Pacioli é bem conhecida por Lomazzo, utilizado por ele no Idea. Cfr. Schlosser, pp.174-75.

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outros italianos que por brevidade não são aqui mencionados387. Entre os alemães estão

Albrecht Dürer, que escreveu sobre geometria, arquitetura, perspectiva e sobre a proporção do

corpo humano388, Hans Sebald Beham389, que desenhou os cavalos situados em perspectiva, e

outro alemão que fez marcas para se colocar em perspectiva aquilo que se desejar390. Em

suma, existem muitos outros que serão nomeados oportunamente em diversos momentos

desta obra. Há muitos comentadores de Vitrúvio, como Cesare Cesariano de Como e o

patriarca de Aquiléia, que publicou A Perspectiva391. Ademais, temos O Desenho de Doni392,

O Diálogo de Dolce393, A Pintura de Biondo394, a obra de Paolo Pino395 e as disputas entre a

387 Segundo Vasari ("Vida de Marcantonio Bolognese", ed. 1568), o flamengo que desenhou a Anatomia de Vesalio foi Jan van Calcar (citado no Tratt., VII, cap. 23, p. 534 como Giovanni Fiammingo). Tanto Klein (cit., vol II, p. 665) como Ciardi (cit., n.t., vol. I, p. 260) apontam para a hipótese de que poderia se tratar de uma obra coletiva da qual participou Calcar, Dom. Campagnola e outros alunos de Tiziano, sob a supervisão de Vesalio (Cfr. Saunders, J.B de C.. O'Malley, D., The illustrations of the works of Andreas Vesalius of Brussels, Cleveland-NY 1950 e catálogo da exposição André Vésale, Renovateur de l'anatomie humaine, bruc. jul-set, 1957 apud Klein, cit.). Lomazzo, ao se referir a Campagnuolo como Barozzi, possivelmente se confundiu, já que o nome de Barozzi é Jacopo Barozzi da Vignola, que escreveu as Regole delle cinque ordini d'architettura, publicadas em 1562. (Klein, op. cit., loc. cit. e Ciardi, op. cit., n.t., vol II, p. 260) 388 Vier Bücher von Menschlicher Proportion, Nurembergue, 1528; Della simmetria dei corpi humani (trad. Galluci), Veneza, 1591. .Cfr. Schlosser, op. cit., pp. 285-99. 389 No texto em italiano, Hans Sebald Beham (Nurembergue1500 - Frankfurt c. 1550) é denominado Isibil Peum (e da mesma forma é chamado no Tratt.,VI, cap. 58 e cap. 62, e VII, cap. 32). Sabe-se que até pelo menos 1532, quando Beham se encontrava em Nurembergue, seu monograma era grafado HSP, sendo "p" referente a "Peham" devido à pronúncia de seu nome na região. Quando se muda para Frankfurt seu monograma muda para HSB. Isto talvez possa dar alguma pista para o nome "Peum" utilizado por L., no entanto, não há subsídios para se avançar essa hipótese. A obra de Beham mencionada por L. é o livro sobre as proporções do cavalo, escrito em 1528, acusado de ser um plágio do texto de Dürer. De fato, o manual de Beham é uma adaptação das ideias do mestre alemão. Sobre Beham, cfr. Dogson, C. Hans Sebald Beham and a new Catalogue of his works. "Burlington Magazine", 1 (1903), pp. 189-201; Hollstein, F.W.H. German engravings, etchings, and Woodcuts. Amsterdam, Vol. 3, 1957; Geisberg, M. Strauss, W.L. (ed.). The German Single-Leaf Woodcut: 1500-1550. NY, 1974, vol. I, p. xvi; Bartrum, G. German Renaissance Prints (1490-1550). Londres, 1995, p. 81 e pp. 99-112; Compostella, A. I piccoli Maestri di Norimberga. "Grafica d'arte. Rivista di storia dell'incisione antica e moderna (...)". Milão, pp. 3-11, N. 48, outubro-dez 2001; Stewart, A.G. Sebald Beham, entrepreneus, printmaker, painter. "Journal of Historians of Netherlandish Art", 4.2012, 2. 390 Pode se tratar do Eine aigentliche und grundtliche anweisung in die geometria, 1543 (citado por Schlosser, cit., p.298) atribuído a Augustin Hirschvogel por Schwarz, Augustin Hirschvogel, 1917, pp. 25-28 (Ciardi, op. cit., n.t., vol I, p. 260). No entanto, é mais provável que seja Hans Lencker, que, segundo Klein (op. cit., vol II, pp. 665-6), impressionou Lomazzo com as primeiras ilustrações de sua Perspectiva, onde ele reproduziu as ferramentas do desenhista e do perspectivista (citado no Tratt. VI, 14). 391 No texto original está escrito "Cesari Cesariano, il comasco". Cesariano (Milão, 1475/83-1543), cuja edição de Vitrúvio intitulada Di Lucio Vitruvio Pollione de architectura libri dece traducti de latino in vulgare affigurati: commentati et con mirando ordine insigniti(...) foi publicada em Como em 1521. O "patriarca de Aquiléia" é Daniele Barbaro (Veneza, 1514 - 1570), que publicou La prattica della prospettiva em 1569. 392 Trata-se do Disegno del Doni, partito in più ragionamenti, ne quali si tratta della scoltura et pittura; de colori, de getti, de modegli, con molte cose appartenenti a quest'arti: & si termina la nobiltà dell'una et dell'altra professione con historie, essempi, et sentenze & nel fine alcune lettere che trattano della medesima materia, Veneza, 1549, impresso por Gabriel Giolito di Ferrarii. Cfr. Schlosser, op. cit., pp. 266-268. 393 Trata-se do Dialogo della pittura, intitolato L'Aretino, nel quale si ragione della dignità di essa pittura, e di tutte le parti necessarie che a prefetto pittore si acconvengono. Con esempi di pittori antichi e moderni; E nel fine si fa menzione delle virtù e delle opere del divin Tiziano, Veneza, 1557, impresso por Gabriel Giolito di Ferrarii. Cfr. Schlosser, op. cit., pp. 393-95.

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pintura e a escultura de Benedetto Varchi, a quem Michelangelo escreveu aconselhando que

se conciliassem as artes, pois melhor se emprega o tempo fazendo figuras e não em disputas, e

porque ambas são a mesma coisa e possuem a mesma finalidade, mas por vias diferentes396.

Dentre os artistas mais modernos que escreveram sobre a arte da pintura e que

mereceram os maiores elogios, omitindo muitos para não tornar a lista muito longa, é preciso

citar o pintor aretino Giorgio Vasari, que escreveu sobre As Vidas dos mais excelentes

pintores, escultores e arquitetos, começando por Cimabue e avançando até chegar aos artistas

contemporâneos, apesar de somente ter se concentrado principalmente nos italianos, e

sobretudo nos toscanos. O que levou Michelangelo, em um soneto que se pode ler em sua

vida escrita por Vasari, a devolver-lhe os elogios com os quais ele havia honrado os pintores

toscanos397. E mesmo que não se possa negar que nisso ele se demonstrou parcial, ainda assim

não se deve destituí-lo da merecida glória, já que é preciso longas vigílias e trabalho árduo, e

também um grande engenho e juízo para ordenar uma história tão bela e diligente, embora

394 Trata-se do Della nobilissima pittura et della sua Arte, de Michelangelo Biondo (Veneza, 1500 - c. 1565), publicado em Veneza, em 1549. Ciardi (op. cit., n.t., vol I, p.261) destaca que a maior parte dos textos citados aqui provém do ambiente da Itália setentrional. Cfr. Schlosser, op. cit., p. 265 395 Trata-se do Dialogo di pittura di messer Paolo Pino Nuovamente Dato in Luce, publicado em Veneza, em 1548, e impresso por Paolo Gherardo. Cfr. Schlosser, op. cit., pp. 262-265. 396 Cfr. Barocchi, op. cit., p.524 (Qual sia più nobile, o la scultura o la pittura); Carta de Michelangelo a Varchi: Barocchi, cit., p. 522 (di Michelangelo, al molto magnifico et onorando M. Benedetto Varchi). 397 "Se con lo stile o coi colori avete Alla natura pareggiato l’arte, Anzi a quella scemato il pregio in parte, Ché ‘l bel di lei più bello a noi rendete,

Poi che con dotta man posto vi sete

A più degno lavoro, a vergar carte, Quel che vi manca a lei, di pregio parte, Nel dar vita ad altrui tutta togliete.

Che se secolo alcuno mai contese

In far bell’opre, almen cedale, poi Che convien ch’al prescritto fine arrive.

Or le memorie altrui, già spente, accese

Tornando, fate or che fien quelle e voi, Mal grado d’essa, eternalmente vive".

(Se com a pena ou com as cores haveis/ à natureza equiparada a arte,/ ou mesmo reduzido seu valor em parte,/ pois seu belo mais belo a nós fazeis,/ ora que com douta mão vos dedicastes/ a mais digno trabalho, a vergar letras/ o que vos faltava em face da natureza/ No dar vida a outrem, dela o arrebatais./ Se algum século pugnou com natureza/ em belas obras, que se lhe submeta,/ pois a tudo convém chegar ao fim prescrito,/ Ora reacesas as memórias de outros já extintas / tornando, fazei-as, a elas e a vós, / malgrado a natureza, eternamente vivos). Tradução: Marques, L. Vida de Michelangelo Buonarroti. Editora da Unicamp: Campinas, 2011, p. 137.

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haja alguns ignorantes ou invejosos que o maldigam. Mesmo que ele não tenha louvado com

tanto afinco Camillo Boccacino como fez Bernardino Campi na biografia do pintor escrita por

ele, Vasari não merece ser taxado de maligno e invejoso398. De fato, não é possível satisfazer

a todos universalmente, e raras vezes se recebe de todos o mesmo reconhecimento que se

espera por seu trabalho.

Não duvido que também a mim não aconteça a mesma coisa, e que muitos não

dilacerarão estes meus esforços, especialmente porque merecem ser valorizados não por outra

coisa senão pelo cuidado que empreguei na composição desta obra e por minha boa intenção,

ou seja, para o aproveitamento do leitor, e não por louvor próprio.

Capítulo V

Como os pintores podem representar todas as coisas.

Os antigos, ao constatarem que podiam encontrar na natureza todas as formas

das coisas criadas, e que cada coisa, de acordo com a sua qualidade, demonstrava por si

própria tudo o que se desejasse ver, conceberam a arte com intuito de imitar a Natureza, a fim

de que se visse, para a admiração de todos, que o homem, com seu engenho e com sua

indústria, podia realizar tanto quanto a própria natureza399. E, assim, conquistaram não

398 Lomazzo deixa aqui sua insatisfação em relação às Vidas, centradas sobretudo nos artistas toscanos. Segundo Robert Klein (op. cit, vol II, p. 666), esta reprovação direcionada a Vasari era corrente. Em sua biografia de Bernardino Campi, Discorso intorno alla scoltura et pittura, publicada em Cremona em 1584, Alessandro Lamo chama Vasari de "inimigo dos pintores Lombardos". No Tratt, III, 5, p. 170, Lomazzo menciona um tratado de cores de Bernardino Campi. Segundo Ciardi (op.cit., n.t., vol I, p. 261), trata-se do Parere sopra la pittura, feito para ser um anexo ao Discorso de Lamo. O tratado das cores de Campi, por sua vez, é desconhecido. Contudo, o anexo feito por Campi não é sobre Boccacino, e talvez Lomazzo possa ter confundido Bernardino Campi com seu biógrafo Lamo, que justamente introduziu em seu Discorso uma longa digressão sobre Boccacino e colocou- o acima de Michelangelo, atacando vivamente a parcialidade de Vasari (Klein, cit., vol II, pp. 666-7.; Ciardi, op. cit., loc. cit.). Ainda, Campi era conhecido por ser um defensor de Boccacino e um detrator de Michelangelo, o que pode ter levado Lomazzo a confundi-lo com o seu biógrafo. Ainda, é possível, como observa Klein, afirmar que Lomazzo acreditava que Campi se escondia por trás de Lamo: Rime, p. 124 (Orgoglio d'un pittore). Cfr. Barocchi, op. cit., p. 41. Sobre o tratado de Alessandro Lamo e o texto de autoria de B. Campi adicionado ao final desta obra, cfr. RAGAZZI. op. cit., pp. 131-133. 399 No proêmio do Trattato, L. justifica a invenção da pintura em um sentido diferente, a pintura como necessária ao intelecto por ser um artifício da memória, muito mais próxima da oratória clássica e da Arte da memória:

"Ma perché ancora questa memoria corporale non potrebbe capire tutte le cose (...) ha bisogno ella parimente d'altre cose e principalmente dell'arte nobilissima della pittura, la qual fu ritrovata dal medesimo intelletto per aiuto suo; perché (come si è detto) egli ha bisogno de la memoria per ritornare di nuovo ad intendere quello che già ha inteso; e la memoria, perciochè non può ricordarsi di tutto, ha bisogno di chi l'aitui e di chi la svegli: e tra gl'instromenti più atti et accomodati ad operar questo è principalissima la pittura" (Ciardi, Scritti (...), cit., vol. II, p. 12)

Ciardi (op. cit., vol I., p. 262) identifica nessa justificativa para a pintura uma alusão a sua capacidade catequizante, a ideia da biblia pauperum, ideia essa que havia sido afirmada com força pelo Concílio de Trento, e que está presente na tratadística pós trindentina, como em Paleotti (p. 138, 208, 213) e em Aldrovandi (p. 512), autores que possivelmente são os veículos mais diretos dessas ideias para Lomazzo. Ainda,

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somente honra em vida, mas também a eterna gloria entre os homens depois da morte, pois

preencheram seus espíritos por meio dos olhos com a doçura das formas e com as belezas

naturais. Primeiramente, adornaram templos e palácios com grande êxito, fazendo com que

essa arte crescesse gradualmente. Tanto que, com o passar do tempo, ela atingiu um nível

jamais antes visto em qualquer outra arte. Assim, percebendo cada vez mais que outras

ciências eram necessárias para a compreensão desta arte, sem as quais era perda de tempo

nutrir a esperança de que as obras fossem louvadas, dedicaram-se ao seu estudo, e, guiados

por elas, logo conquistaram o conhecimento perfeito e seguro400. Discorro sobre cada uma

destas ciências no meu Tratado da pintura, no qual elas aparecem de acordo com a ordem de

necessidade de uso para o pintor: primeiro aquelas necessárias para a formação das figuras, e,

em seguida, as outras sucessivamente401.

Se o pintor, por exemplo, quiser pintar um Júpiter perfeitamente, seguindo

passo a passo aquilo que é necessário, antes de tudo deve saber algo sobre Júpiter, quem ele é

e qual a finalidade de representá-lo. É sobre isso que discorro no primeiro livro402. Depois,

ocupa-se da sua proporção, que deve ser a principal entre todas as outras proporções e a

apropriada à sua natureza403. Em seguida, considera-se o movimento, ou seja, suas ações,

devendo ser repletas de majestade e de toda sacralidade venerável, qualquer que seja a ação

que ele assuma404, colocando o conjunto em perspectiva. A partir daqui, o artista passa para as

cores, que contornam e dão perfeição à forma, aplicando a cor apropriada na carne, assim

como nos olhos, na barba, na roupa e no restante, e, em seguida, trata da luz das cores,

iluminando o conjunto até às extremidades, fazendo com que a luz clara corra docemente

existe uma tradição fundamentada na retórica que liga a pintura à arte da memória através do sentido da visão, que passa para as discussões do Renascimento através de Alberti (Cfr. Summers, D. cit., pp. 39-40 e notas). Aqui, no entanto, L. utiliza a justificativa da pintura pautada num tema comum ao período, o da arte como rival da Natureza.

Cfr. comentário de Barocchi sobre este capítulo, op. cit., pp. 985 ss. 400 Ressalta-se aqui, mais uma vez, a grande relevância dada ao conhecimento teórico (a prática deve ser aperfeiçoada pela arte e pela ciência). Complementariedade entre teoria e prática discutida no cap. 2. 401 Sobre a "ordine di dottrina" de Lomazzo: Tratt.,cit., pp. 21-24. Klein (op. cit., introdução, pp. 489-90) chama atenção para a ordenação e o encadeamento das partes da pintura ao longo do Trattato, que refletem um processo de construção mental das etapas de criação de uma pintura, partindo do desenho abstrato, passando para a figura detalhada, iluminada, colocada em relação ao espectador, posicionada na tela e adornada com seus atributos. Esta forma de raciocínio dedutivo, partindo do geral para o particular, segundo Klein, pertence à Escola Lógica próxima à "dialética descendente" de Platão, mais do que a uma "ordem de doutrina", como reclama Lomazzo em seu Trattato. No próximo parágrafo, Lomazzo irá exemplificar este processo. 402 O primeiro livro sobre o discernimento, que foi excluído da edição final do Trattato. 403 Trattato, I, VI: proporção vitruviana das dez faces. 404 Qualquer que seja a "forma" que ele assuma (dentro da Mitologia, como por exemplo cisne, touro, etc) (klein, op. cit., vol. II, p. 668).

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sobre as superfícies contínuas. Desta forma, os músculos ganham visibilidade suavemente

evidenciados de acordo com sua grandeza e sua composição. A partir daqui, deve-se realizar o

seu escorço, através da perspectiva conveniente aos raios visuais, assim como será

demonstrado quando tratarmos dos movimentos. Em seguida, deve-se passar para a

composição, que ensina a colocá-lo no lugar apropriado e a compor os seus membros com a

atitude e com o decoro necessário, convenientes à história que se deseja representar, dando-

lhe o seu contexto, como o seu carro ou outro lugar onde o pintor queira posicioná-lo. Por

último, deve-se ocupar de sua figura, que fornece informações a seu respeito, utilizando o

relâmpago, a águia, o cetro, a indumentária e outros elementos que os poetas lhe atribuíram.

Igualmente, o escultor deve proceder, com a mesma atenção a todas as partes, exceto as cores,

parte que não lhe pertence, sendo isto a razão da inferioridade da escultura em relação à

pintura. Ademais, a escultura não pode realizar os escorços e os prolongamentos lineares que

a perspectiva confere à pintura405.

Ao se tratar nesta obra de todas as partes necessárias para ambas as artes e

daquelas que são dependentes delas, pode-se justamente afirmar que ela é uma figura que

contém em si todas as figuras, e uma pintura das pinturas406. E se ela for bem compreendida,

poderá gerar, como uma mãe, filhos similares a si, mesmo que por diversos caminhos,

contendo em si, como disse, não somente os preceitos necessários para a pintura, mas também

405Aqui fica clara a predileção de Lomazzo pela pintura dentro do paragone do Cinquecento. Em comparação ao discurso de Leonardo, o argumento de Lomazzo se modifica acentuando o fato da pintura ser mais artificiosa que a escultura, enquanto que Leonardo enfatiza as possibilidades da imitação e do discurso plástico (Klein, cit., vol II, p. 668). Ciardi (op. cit, vol I, p. 263) nos lembra que após a disputa varchiana, a questão da superioridade da pintura fica desgastada. Ainda, Lomazzo trata desta questão com maior aprofundamento no proêmio do Trattato (pp.16-21). 406 Existe aqui, mais uma vez, uma relação entre a pintura e a arte da memória, ideia que é apresentada por L. na justificativa da invenção da pintura no proêmio do Trattato (pp. 12-13):

"(...) e così fu imaginata l'artificiosissima invenzione de le lettere e caratteri co' quali si vengono a dichiarare a pieno tutti i concetti de la mente nostra e conservare ne i libri a beneficio de i posteri eterne et immortali tutte le scienze; se è vero, dico, che gl'inchiostri e le scritture fossero ritrovate per serbar memoria de le scienze, ne segue chiarissimamente che la pittura è instromento sotto il quale è rinchiuso il tesoro de la memoria, non essendo le scritture altro che pittura di chiaro e d'oscuro"

Esta questão está presente nos autores pós-tridentinos, como em Paleotti (pp. 140 ss) e Gilio da Fabriano (p. 25), como nos lembra Ciardi (cit., vol. II, p. 13, nota). Sobre a questão da pintura e da memória, cfr. Summers, op. cit., loc. cit. O mais importante estudo realizado sobre a arte da memória até o momento é o de F. Yates, The art of memory (1966). Este trecho também revela uma forte relação com o Teatro de Giulio Camillo, cuja elaboração foi exposta no Idea del Theatro (1550), obra que se circunscreve no campo da minemotécnica, mas sob um viés mágico-cabalista e neoplatônico-hermético, como bem demonstrou Yates na obra supracitada. Sobre a relação entre o Teatro da Memória de Camillo e o Templo de Lomazzo, cfr. comentário ao capítulo nove, cap. 4 desta dissertação. Para além disso, o Idea del Tempio é apresentado como uma espécie de arquétipo neoplatônico, a "Ideia" superior da plástica (escultura, pintura e, mesmo, a arquitetura), e que, portanto, sendo um universal, pode ser deduzido para o campo do particular, e aplicado em cada uma das três espécies da mesma arte.

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para a escultura e para a arquitetura, das quais trato em diversos lugares. Uma vez que as três

artes servem ao desenho e são tão unidas, ao se perder uma delas, todas as outras são

perdidas. Da mesma maneira, ao contrário, quando todas estão juntas acompanhadas por suas

partes, funcionam como um instrumento bem composto e bem afinado, apto a representar

tudo aquilo que se pode ver ou imaginar.

Capítulo VI

Da nobreza da pintura.

Quem ler a história perceberá quanta estima teve a pintura, não somente nos

tempos antigos, quando todas as artes eram mais valorizadas, mas também nos modernos.

Saberá, então, que o próprio Deus a empregou na criação do mundo, enquanto coloria de

forma tão variada e com tamanha graça todas as coisas criadas, fazendo o primeiro homem à

sua imagem407. E passando para a história dos homens, lerá que o filho de Seth descobriu, por

meio da pintura, um modo de representar as nossas imagens e figuras ao povo com o intuito

de gerar um espírito mais pio e pacífico em todos. Após o dilúvio, os babilônicos a utilizaram

novamente, e foi aproximadamente neste período que as estátuas de Bél, filho de Ninrode, de

Ninus e de Semíramis foram erguidas, como relata Diodoro Sículo408. Afirma este que

Semíramis, no perímetro de uma das duas cortes reais construídas na Babilônia, próxima à

ponte que atravessava o rio Eufrates, fez representar diversos animais, cada um de uma cor,

407 Sobre o "Deus pintor", ver o diálogo do pseudoluciano escrito por Alberti (cfr. Schlosser, Praeludien, Berlim, 1927, pp. 296 ss. apud Ciardi, op. cit., n.t., vol I, pp. 263-4). Ainda, L. utiliza este argumento da antiguidade das artes plásticas no proêmio do Trattato (p. 19). As informações contidas aqui também aparecem no quinto e sexto ragionamenti do L.S. Cfr. proêmio das "Vidas" de Vasari. 408 1- A partir daqui, L. retoma o proêmio do Trattato, pp. 19-20. Também, cfr. Trattato, VI, 51; Libro dei Sogni, p.121. Ciardi (op. cit., vol. II, p. 19, nota 25) aponta para o proêmio das "Vidas" de Vasari como fonte mais direta para L.: "poiché Belo figliolo del superbo Nembrot circa dugento anni dopo il diluvio fece fare la statua (...)".

2 - Sobre o filho de Seth, cfr. Flávio Josefo, Antiquitates Judaicae, ed. da Basiléia, 1524, p.7.

3 - Bél foi um lendário rei assírio, assim como Ninus, seu filho.

4 - Ninrode foi filho de Cuxe, filho de Cam, um dos filhos de Noé. Foi responsável por erigir a torre de Babel (gênesis, cap. 10; 1 crônicas, 1:10; Miquéias, 5:6; Flávio Josefo, Antiquitates Judaicae)

5 - Semíramis foi uma rainha babilônica.

6 - A obra do historiador do século I, Diodoro Sículo, à qual Lomazzo faz referência, possívelmente se trata da Biblioteca Storica. Sobre as muralhas babilônicas, Klein (op. cit., vol II, pp. 669) cita o capítulo II, pp 7-10 desta obra.

7 - Outas fontes: supplementum chronicarum de Giacomo Filippo da Bérgamo (Veneza, 1483), citado por L. no proêmio do Tratt. como sua fonte; as versões que Giovanni Annio da Viterbo realizou dos escritos do Pseudo- Beroso e outros; De deis gentium de Lilio Gregório Giraldi (Basiléia, 1548), de onde tirou informações sobre a estátua de Semíramis.

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que sem dúvida deviam ser infinitos considerando que este perímetro todo pintado continha

outro, que, por sua vez, cercava uma fortaleza cuja circunferência media trinta stadia409.

Razão pela qual se pode pensar que a pintura fosse talvez mais utilizada e mais estimada neste

momento do que veio a ser depois, assim como as estátuas desde os primórdios. Pois conta-se

que a estátua da própria Semíramis, localizada próxima ao jardim que ela construíra em

Média, havia sido esculpida em uma rocha de dezessete stadia, com a representação de cem

homens que lhe ofereciam tributos, além de muitas outras maravilhosas grandezas. Dentre

essas, Valério Máximo menciona uma de bronze de enorme tamanho que foi erigida na

Babilônia410.

Para não citar uma por uma todas as estátuas famosas da Antiguidade - dentre

as quais as mais célebres foram a do antigo Memnon, a de Imandis e a de Arsinoé411 - é

suficiente dizer que todas as nações adoraram seus deuses por meio delas, e, portanto,

devemos acreditar que investiram todo o seu esforço e cuidado para realizá-las com o maior

artifício e com a mais nobre e preciosa matéria prima, ainda mais se considerarmos que o

culto e a reverência que cada nação prestava aos seus respectivos deuses era extremamente

importante: como os damascenos, que cultuavam Rimmon; os amonitas, Milcom; os assírios,

Adramelech; os amorreus, Canaam, Phut, Selath e Desuat. Outros possuíam alguns deuses

que chamavam de santos e de ninfas. Os moabitas tinham Chemosh; os filisteus, Dagom; e

outros possuíam Baal e Asteroth412. Platão, no décimo primeiro livro das Leis ordenou que se

409 Stadium: unidade de medida grega que equivale a 600 pés gregos (cada stadium corresponderia a uma medida entre 157 metros e 209 metros). 410 A referência a Valério Máximo está no supplementum chronicarum, IX 3, 4b. Ciardi (op. cit., vol I, pp. 264) supõe que a fonte mais provável de Lomazzo tenha sido Diodoro Sícolo (cit., II, 8), que especifica que a estátua era de bronze. 411 Memnon foi um escultor antigo. Sobre a estátua de Memnon: Didoro Sículo, cit., I, 47; Pausânias, I, 42, 3; Estrabão, XVII, 816. Lomazzo pode ter tido contato com esta informação através da mediação de Alberti , De re aedif., VII, cap. XVI (Ciardi, op. cit., loc. cit.). Arsinoè foi uma rainha egípcia; Em relação à sua tumba: Plínio, XXXIV, p.138 e XXXVI, p.73. No que diz respeito à estátua de Imandis, rei egípcio: Estrabão, XVII. Trata-se de uma pirâmide que coroa o "Labirinto", a tumba de Amenemhet III (12a. dinastia); Ciardi (op. cit., loc. cit) indica Paleotti, Discorso intorno alle immagini sacre e profane (1582), F. Memofonte e Acc. della Crusca, p.187. 412 Cornélio Agrippa, De occulta philosophia, III, cap. XXVIII:

"Idolorum quoque et cacodaemonum nomina sunt, ut Remma simulacrum idoli Damasceni: Chamos, odulum Moab; Bel, idolum Babyloniorum: Adramelech, idolum Assyriorum: Dagon, idolum Allophylorum. Et narrat Philo fuisse Amorrhaesis septem simulacria aurea, quas vocabant sanctas nymphas (...) videlicet Chanaam, Phut, Selath, Nembrot, Abirion, Elath, Desuat"

Cornelio Agrippa utiliza fontes bíblicas: Rimmon (II reis, 5, 18); Milcom (Moloch) é deus dos amonitas; Adramelech (II, Reis, 17, 29-41); Chemosh (Números, 21, 29); Baal e Asteroth (Juízes, X, 6).

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honrassem as estátuas e as imagens dos ídolos, não por si próprias, mas apenas porque

representavam esses deuses413.

Mas, o que se pode dizer dos antigos hebreus, que não entendendo melhor de

escultura que de pintura, ainda assim veneravam fortemente as duas? E desta maneira, por

meio delas, seduziram o povo de Israel, fazendo com que se contemplasse e adorasse o santo

Tabernáculo, construído simultaneamente à arca para adornar e gerir o culto divino, enfeitado

com querubins na parte de sustentação do templo, castiçais, a mesa de cerimônias, um

pequeno altar de perfumes e o altar do sacrifício, com todas as franjas e ornamentos de

Arão414. E, portanto, com grandíssima razão dizia Trimegistus que a pintura nasceu com a

religião415. Além disso, pode-se supor que tal arte fosse muitíssimo valorizada naquele tempo

devido aos muitos ornamentos e obras encontrados no Templo de Salomão, sobretudo ao ler

que ele, ademais dos candelabros, vasos e outras obras com as quais adornara o templo,

colocou também querubins de pé, com asas de cinco côvados de comprimento, todos feitos de

ouro. Este foi o mais maravilhoso templo jamais construído em todo o mundo416.

Depois do Templo de Salomão, o segundo mais célebre foi o de Diana em

Éfeso, concluído após duzentos e vinte anos por trabalhadores de toda a Ásia, segundo o

desenho do arquiteto Tísifon, de acordo com Plínio, e segundo Estrabão, de acordo com

Arquifron, realizando o primeiro desejo das Amazonas de edificá-lo417. Este merece, então,

ser numerado entre as sete maravilhas do mundo devido ao seu comprimento de quatrocentos

e vinte e cinco pés, e à sua largura de duzentos e vinte pés. Suas colunas somavam o total de

cento e vinte e sete, cada uma feita por um rei, medindo sessenta pés de altura. Uma delas fora

esculpida por Escopas de Paros, e outras trinta e cinco esculpidas com maravilhoso

artifício418. Mas, não se pode descrever em tão poucas linhas todos os ornamentos e

maravilhas utilizados pelo arquiteto para embelezar e enriquecer este templo através da

nobreza de seu engenho, principalmente as extraordinárias pinturas e esculturas. Dentre estas,

413 Trata-se de uma interpretação livre feita L. ou por alguma fonte indireta (Ciardi, op. cit., loc. cit.). 414 Exôdo, XXV e XXVI. Cfr. proêmio das "Vidas" de Vasari. 415 Cfr. Trattato, VI, cap. 51, p. 375. Alberti (Della Pittura, trad. Tiraboschi, Milão, 1804, livro II, p.40 ), Michelangelo Biondo (Della Nobilissima Pittura, Veneza, 1549, cap. 5, p.9) e Romano Alberti (Trattato della nobilità della pittura, 1585, F. Memofonte e Acc. della Crusca, p.230) também citam esta afirmação de Trimegistus. 416 I Reis, 6, 22-30. 417 Nome do arquiteto pode ser encontrado no texto latino de Plínio, XXXVI, 95: Chersiphon. Também aparece em Estrabão, Georg., XIV. 418 Plínio, cit., XXXVI, cap. 21.

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estava a magnífica procissão do sacerdote do templo, Megabizo, feita por Apeles, junto com o

retrato de Alexandre Magno, no qual se via a mão com suas articulações e os raios com tal

relevo que de fato pareciam saltar para fora da tela419.

Interrompo agora a enumeração de diversos outros templos antigos famosos,

deixando isto para uma ocasião mais oportuna, na qual falarei também dos palácios, dos

arcos, dos teatros e dos jardins suspensos420. Aqueles que já foram citados provam

satisfatoriamente que a pintura tinha um altíssimo valor para os antigos, uma vez que com ela

se costumava ornamentar os templos para melhor honrar os deuses. Ainda, quando se observa

que não existe uma só igreja que não seja ornada com alguma nobre pintura em honra a Deus

ou aos santos, constata-se que ela também é estimada em nosso tempo. No entanto, não há

elogio maior que a afirmação de que o próprio Cristo utilizou a pintura para retratar seu rosto

no véu da virgem Santa Verônica421. Também, deixou a imagem de todo o seu corpo, de

frente e de costas, em uma mortalha que agora se encontra junto ao Sereníssimo Duque de

Savóia422. Ainda, é de conhecimento geral que São Lucas fora pintor e entalhador, executando

muitas obra de pintura e entalhe, das quais se faz menção no meu Tratado sobre a pintura423.

Lê-se, ainda, que Pitágoras, o primeiro filósofo, empregou-a, e também

Sócrates, considerado o mais sábio entre todos pelo Oráculo de Apolo, e Platão a

conheciam424. Os atenienses enviaram o filósofo e pintor Metrodoro a Paulo Emílio Romano,

que procurava o principal conhecedor de pintura e filosofia dentre os gregos para ser

professor de seus filhos425. Pode-se encontrar escrita a mesma coisa sobre muitos outros

homens famosos que exercitaram a pintura, como o grande príncipe da família dos Fabios,

que pintou o Templo de Salus, o poeta Pacúvio, sobrinho de Ênio, que pintou no Templo de

419 Plínio, cit., XXXV, 92. Trecho bastante citado na literatura artística do Cinquecento (Ciardi, op. cit., vol I, p. 265). 420 Lomazzo se refere ao Trattato, VI, 44-45. 421 Trattato, p. 380. Cfr. Ciardi, op. cit., vol. II, p. 380, nota 36. 422 Em posse da família Savóia desde pelo menos 1464. Foi transferido para a cidade de Turim, nova capital dos domínios da família Savoia, em 1578. Cfr. Wesselow, T. The sign: the Shroud of Turin and the secret of the Resurrection. Londres, 2012. 423 Trattato, pp. 14, 13 e 380. Cfr. Ciardi, op. cit., vol. II, p. 380, nota 37; Como referência visual, v. o afresco representando S. Lucas na igreja de San Maurizio al Monasterio Maggiore em Milão, pintado por Vincenzo Foppa (dec. 1510). 424 Em Plínio, XXXIV, 59 e 60: dois Pitágoras são citados, o primeiro Pitágoras de Rheggium, escultor, o segundo, Pitágoras de Samos pintor e escultor, ambos não correspondentes ao Pitágoras filósofo (Klein, op. cit., vol II, p.671; Ciardi, op. cit., n.t., vol I, pp. 265-6; Chai, cit., p.210). O exemplo de Sócrates e Platão pintores podem ser encontrados em Alberti (Della Pittura), Pino e Paleotti. (Ciardi, op.cit, loc. cit.). 425 Plínio, XXXV, 135. Também, citado por Alberti, Castiglione, Varchi, Dolce, Paleotti (Ciardi, op. cit., vol I, p. 266).

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Hércules, o cavaleiro romano Turpílio, Marcos Valério Máximo, o pretor e cônsul Titio

Lábeo, Quinto Pédio, Lúcio Múmio, os Cipiões, Júlio César, Paulo Emílio e seus filhos,

Domicio Nero, Alexandre Severo, Valenciano, e Marco Agrippa426. Nem faltaram mulheres

ilustres em diferentes períodos, das quais menciono algumas, como Timarete, que pintou a

Diana conservada por muito tempo em Éfeso, Irene, as virgens Calipso e Iaia de Cyzicus,

Olímpia, Márcia, filha de Varrão, que pintou nos foros públicos427.

Pode-se, além disso, demonstrar fortemente a nobreza da pintura através da

estima e reverência prestadas pelos grandes homens em todas as épocas aos mestres desta arte

e às suas obras. Pois os reis do Egito de certo modo os adoravam como os pais das imagens

sacras, os habitantes de Agrigento admiravam muito Zeuxis e tratavam-no com tanta

liberalidade que ele introduziu o hábito de doar as pinturas. O rei Átalo foi generoso com o

tebano Aristides e o ateniense Nícias, assim como o rei Candaules com Bularco, Demétrio

Faléreo com Protógenes, César com Timômaco, o rei da Lídia, Nicomedes, com Praxíteles e o

rei Felipe da Macedônia com Panfilo, que conseguiu, através do favor de Felipe e de outros

príncipes da Grécia, que as crianças nobres aprendessem a pintura antes de tudo, primeiro em

Sicion e depois em toda a Grécia, e que ela fosse considerada por todos entres as primeiras

das artes liberais. Por isso, ela passou a ser exercitada sempre com grandíssima diligência

pelos nobres, sendo proibida aos escravos. Dentre esses nobres está Alexandre, que, não

contente em doar infinitas riquezas a Apeles, discípulo de Panfilo, dá-lhe também Campaspe,

mulher que ele amava muito428. Pode-se mencionar Tibério, que tinha em tanta conta as coisas

de Parrásio, ou a divina Otávia, que preencheu sua escola com as mais importantes estátuas e

pinturas existentes no mundo429.

Contudo, deixarei de lado muitos outros para falar também dos modernos, que

amaram a pintura e a reverenciaram tanto quanto os antigos: Roberto, rei de Nápoles, que

amou sumamente e apreciou Giotto; Luís XI, rei da França, que admirou Giovanni Bellini;

Maomé, em relação ao irmão de Giovanni, Gentile Bellini; Ludovico, marquês de Mântua, a

426 Plínio, XXXV, 135, 19-26 . Estas citações de pintores e fatos da Antiguidade estão espalhadas por toda a literatura artística (podem ser encontradas, por ex., em Alberti e Pino), e, de acordo com Gerald Ackerman (op. cit.), fazem parte do esboço humanista que configura os capítulos introdutórios do tratado de L. 427 Plínio, XXXV, 147. Marcia, filha de Varrão é um mal entendido de Marci Varronis juventa no texto pliniano; Marzia está presente no Bocaccio, De claris mulieribus. (cfr. Ciardi, op. cit., vol I, p. 266) 428 Sobre Átalo, é mencionado por Pino e Dolce; Sobre Candaules, é mencionado por Pino e Gilio da Fabriano; Sobre Demetrio, é mencionado por Pino, Dolce e Gilio; Em relação aos demais, cfr. Plinio, XXXV passim; e VII, 126-7. Ainda, sobre Panfilo, cfr. Aristóteles, Política, V. Em relação a Apeles e Campaspe, Pino e Dolce mencionam a questão. (cfr. Ciardi, op. cit., loc. cit.) 429 Plínio XXXIV, 31 e XXXVI, 22. Sobre Tibério: XXXV, 70.

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Andrea Mantegna; Felipe Visconti e Francisco I Sforza, ambos duques de Milão, a Vincenzo

Foppa; Ludovico, o Mouro, duque de Milão, Giuliano de' Médici e Francisco de Valois, rei da

França, a Leonardo da Vinci; Júlio II e Leão X, a Rafael de Urbino, a Michelangelo e a

outros; o imperador Maximiliano, a Albrecht Dürer; e Alfonso, duque de Ferrara, Federico,

duque de Mântua, Francisco Maria, duque de Urbino e o imperador Carlos V, a Tiziano, tendo

este último não menos o amado e o reverenciado que Alexandre em relação a Apeles. Outros

exemplos de príncipes e homens ilustres, que sumamente honraram não somente a arte, mas

os artistas, podem ser encontrados nas Vidas dos pintores escritas por Giorgio Vasari.

Ademais, os grandes museus antigos e modernos de pinturas e esculturas dão testemunho da

nobreza e da reputação desta arte, das quais falo no sexto livro do meu Tratado430. No final

deste livro, tratarei apenas de um, que sozinho vale mais que todos os outros existentes, a

coleção do rei católico Felipe, localizada no famoso templo de São Lorenzo no Escorial431.

Para concluir este discurso, não existe povo ou nação no mundo que não

reverencie a pintura e a estime grandemente, já que todos ergueram templos aos seus deuses,

colocando suas imagens sobre os altares, consagrando-nas a eles e fazendo-lhes diversos

sacrifícios de diversas maneiras, como os beócios a Anfiarau, os africanos a Celeste e Mopso,

os egípcios a Osíris e Ísis, os árabes a Diafares, os citas a Minerva, os nóricos a Belenos, os

habitantes de Náucratis a Serápis, os assírios a Atargatis, os mouros a Iuba, os macedônios a

Cabirus, os cartaginenses a Urano, os latinos a Fauno, os romanos a Quirino, os sabinos a

430 Trattato, VI, 51.

1. Roberto I de Nápoles (Nápoles, 1278 -19 de janeiro de 1343), foi rei de Nápoles entre 1309-1343; 2. Luís XI da França (Bourges, 3 de julho de 1423 – La Riche, 30 de agosto de 1483), reinou entre 1461-1483; 3. Maomé é Mehemed II (30 de março de 1432 — 3 de maio de 1481), sultão do Império Otomano entre de 1444 a 1481; 4. Ludovico III Gonzaga (1412 –1478), marquês de Mântua entre 1444-1478; 5. Felipe Maria Visconti ( 22 de setembro de 1392 - 13 de agosto de 1447), ultimo governante da família Visconti em Milão; 5. Francisco I Sforza (San Miniato, Toscana, 23 de julho de 1401 – 8 de março de 1466), primeiro govenarnte de Milão da família Sforza, assumiu após a morte de Felipe Maria Visconti; 6. Ludovico Sforza ( 27 de julho de 1452 — 27 de maio de 1508), duque de Milão de 1476 a 1500, quando o ducado é dominado pela França; 7. Giuliano II de Medici (12 de março de 1479 – 17 de março de 1516), filho de Lourenço, o magnífico, governou Florença entre 1512 e 1516; 8. Francisco I da França (Cognac, 12 de setembro de 1494 – Rambouillet, 31 de março de 1547) foi rei da França entre 1515-1547; 9. O papa Júlio II foi Giuliano della Rovere (Savona, 5 de dezembro de 1443 - Roma, 21 de fevereiro de 1513), papa desde 1501 até sua morte; 10. Leão X foi Giovanni di Lorenzo di Medici (Florença, 11 de dezembro de 1475 – Roma, 1 de dezembro de 1521), sucessor de Júlio II; 11. Maximiliano I (Wiener Neustadt, 22 de março de 1459 – Wels, 12 de janeiro de 1519), imperador do Sacro Império Romano Germânico entre 1493 e 1519, quando é sucedido por seu neto, Carlos V; 12. Alfonso I d'Este (Ferrara, 21 de julho de 1476 – Ferrara, 31 outubro de 1534), terceiro duque de Ferrara; 13. Federico II (Mântua, 17 de maio deo 1500 – Marmirolo, 28 de junho de 1540), quinto marquês de Mântua; 14. Francisco Maria della Rovere (Senigallia, 25 de março de 1490 – Pesaro, 20 de outubro de 1538); 15. O imperador Carlos V de Habsburgo I (Gante, 24 de fevereiro de 1500 – Cuacos de Yuste, 21 de setembro de 1558), coroado rei da Espanha em 1516 e nomeado imperador após a morte de seu avô em junho de 1519. Foi coroado imperador por Clemente VII em Bolonha em 1530. 431 No cap. 38 do Idea, Lomazzo trata de mais museus, não apenas do Escorial.

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Sancus, e do mesmo modo, os etíopes, os tebanos, os tamanianos - próximos aos hircanianos -

e outros povos e seus deuses, que, para não mais me alongar nessa questão, encontram-se

descritos por Ovídio nos Fastos e nas histórias de Orígenes, Tertulliano, Apuleio, Diodoro,

Luciano, Leão Ebreu e outros432. Menciono alguns deles nas Formas dos deuses dos gentios

no último livro do Tratado433.

A principal homenagem à pintura, ilustre privilégio concedido pela nossa

Igreja, reside na possibilidade de representar Deus em toda a sua glória, os anjos, os santos e

seus milagres, obrigando-nos a honrar estas imagens e fazer-lhes reverências ajoelhados

diante delas, tantos nos templos como em outros locais434. Os antigos também possuíam esta

prática, como já foi dito, quando me referi ao décimo primeiro capítulo das Leis de Platão, no

qual ele ordena que se adorem as estátuas e imagens sagradas dos deuses. Elas eram

denominadas sagradas pois as dedicavam aos seus falsos deuses, assim como canta Orfeu no

hino a Vênus Lícia435.

Apesar de tudo, mesmo tendo eu escrito sobre uma arte tão nobre e conhecida,

como todos podem deduzir daquilo que até aqui foi dito, os maliciosos e invejosos, que

querem julgar todas as coisas, não deixarão de me acusar de homem de pouco juízo por ter

escolhido tratar e investir estudo e indústria em tal matéria, como se fosse resultar em pouco

benefício para os leitores. Contudo, tenho certeza de que os que se deleitam nesta arte irão

elogiar, senão os resultados, ao menos o esforço que fiz para ilustrar o melhor que pude uma

arte tão recôndita, deliciando-se ao lerem as muitas coisas que aqui se encontram observadas

por mim e coletadas de diversas fontes. Mesmo que, além das coisas honestas e louváveis,

seja possível representar coisas muito impróprias e obscenas através da pintura, acredito que

não exista razão nas censuras dirigidas a mim, pois não há uma só arte que não possa ser

utilizada por homens de mau espírito para finalidades degeneradas, como acontece com todas

as ciências436. Mas não escrevo para estes homens e sim para aqueles que desejam ser

432 Lomazzo copia o trecho de Cornelio Agrippa, De occulta Philosophia, III, 14. As fontes citadas foram: Tertulliano, De anima, c. 46 e Apologeticum, c.24; Lactâncio, Divinae Institutiones, I, 15; Orígenes, Contra Celsum, V, 34. Klein (op. cit, vol II, p. 672) afirma que essas fontes citadas por Lomazzo foram aleatoriamente escolhidas e retiradas também de Agrippa. 433 Trattato della pittura, VII, cap. 5-22 e 29-32. 434 Trattato, proêmio. A utilidade da pintura como instrumento didático e devocional é argumento da literatura artística da contrarreforma, cfr. Paleotti, cit., I, capp. 4-7 ; Armenini, cit., I, 3. 435 O hino à Vênus Lícia se encontra presente em Agrippa, III, 38, quem denomina "órfico" dois versos de Proclus (Hymn., V, ad lyciam venerem): "Nostri namque duces patriae divina tuentes/ Oppidulum propter sacrum statuere colossum" (cfr. Klein, op. cit., vol II, p. 673) 436 Cfr. Paleotti, cit., I, capp.1, 6,10:

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louvados, não apenas por seu mérito como artista, mas também pelas qualidades morais que

aplicam ao seu estudo. A esses bastará advertir que se abstenham de representar suas figuras

em atos voluptuosos e lascivos, visto que não somente com tal visão corrompem as almas e

incentivam a fazer aquilo que se vê representado, mas também instigam eventualmente a amar

apaixonadamente, como se lê sobre aquele que se apaixonou por um jovem pintado sob o

pórtico de Atenas; ou Alceta de Rodes que amou a obra de Praxíteles em Cnidos; e Pigmaleão

que, amando a sua figura de mármore, através de preces conseguiu que lhe fossem dados

espírito e vida para que pudesse gozar dela, como se conta437. Razão pela qual essas pinturas e

esculturas, apesar de serem excelentíssimas por outros motivos, causam escárnio e vitupério a

esses artistas, ao invés de glórias, além de ofenderem a Deus. Pelo contrário, se a arte é

utilizada para uma boa finalidade, e para sobretudo honrar a Deus e incitar os outros a

reverenciá-lo e adorá-lo, traz ao artista fama e glória.

Capítulo VII

Dos efeitos e a utilidade da pintura.

É possível dizer, razoavelmente, que os efeitos produzidos pela pintura e os

benefícios que ela nos traz são tantos quanto são inumeráveis as coisas criadas pela natureza.

Pois a pintura, ao representar aos nossos olhos todas as formas das coisas que preenchem e

adornam o mundo, instrui sobre a diversidade das formas através de suas partes da mais bela e

prazerosa maneira, como se fosse uma outra natureza (ou ao menos como sua imitadora e

emuladora racional). Ensina também como as formas podem ser melhor combinadas e com

qual artifício sutil e engenhoso, utilizando a projeção ortogonal, as linhas instituídas pelo olho

"sì come dai santi Padri nella settima Sinodo già fu avertito, dicendo: Quemadmodum in Babylone Ismaelitae organa et citharam et alia quaedam sicuti ipsi Babylonii habebant, et illi quidem ad laudem Dei, ii vero in ministerio daemonum; sic de imaginibus gentilium et christianorum censendum est: si quidem gentes ad cultum Diaboli, nos vero ad gloriam et recordationem Dei illas servamus. Di modo che la medesima imagine partorirà più differenze, secondo i varii concetti che di essa piglieranno i riguardanti, conforme assai a quel detto delle scuole, se bene in altro proposito: quod omne receptum habet se per modum recipientis et non recepti. Onde noi veggiamo che ancor del succo de’ fiori nati alla campagna le api ne fanno soave mele e le aragni ne cavano mortifero veneno. Il che accade similmente in molte altre cose, come ognuno può comprendere" (Paleotti, cit., I, 10)

Ainda, a ideia de que a pintura, assim como outras ciências, pode ser utilizada tanto para finalidades dignas, quanto para degeneradas, aparece também na República, no livro II, quando Platão trata da questão da educação e do discurso correto em torno da imagem de Deus.

437 Plínio, XXXVI, 17-8, 21-23. Também é mencionado por Varchi, Dolce, Bocchi, Comanini e Castiglione.

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e determinadas racionalmente podem ser conjugadas e dispostas de maneira regulada438. Isto

aparece muito bem expresso em uma coleção de vários exemplos ainda não publicada, onde

os autores, muito peritos na arte da pintura, exaustivamente se empenham em demonstrar os

escorços, as luzes, as sombras, as cores, e todos os seus maravilhosos e úteis efeitos, com os

quais a pintura atinge a perfeita imitação da natureza439. Isto pode ser realizado por duas vias:

uma seria a imitação dos membros dos corpos naturais próximos à realidade, e a outra,

desprezando a primeira, seria a imitação dos movimentos, afetos, gestos, atos e

posicionamentos existentes ou possíveis na natureza através da invenção440. Com esta última,

atingimos um ponto incalcançável para as demais artes, principalmente a escultura. Pois esta,

seguindo os esboços de uma imagem concebida na Ideia, não é capaz, com exceção do baixo

relevo, de representar um plano que se estenda até os limites da visão na superfície de um

objeto, ou mesmo os contornos das coisas, como faz a pintura. Isto ocorre devido às

limitações da arte e não do artista, uma vez que esta questão pode ser observada mesmo entre

os melhores escultores gregos e romanos, e também entre os melhores escultores modernos,

como Buonarroti, Bandinelli, Fontana, Giovanni Bologna, e etc. Assim, a pintura possibilita a

representação de tudo aquilo que o olho humano pode ver: as luzes, os raios do Sol, os

eclipses, a noite, o entardecer, a aurora, os relâmpagos, os trovões, a cor do céu, a fumaça, os

peixes sob a água, e no que se refere ao homem, praticamente seu espírito, sua própria voz e

seu semblante441. Portanto, ela é capaz de formar uma fisionomia que pode ser identificada

por todos, causando a máxima satisfação aos olhos e ao intelecto não apenas dos sábios, mas

também dos ignorantes, e representando as coisas de uma maneira agradável a todos442. É por

este motivo que os papas, os imperadores, os reis e todos aqueles de nobre e virtuoso espírito

tanto a estimam e deleitam-se com ela.

438 Dada a complexidade desta passagem devido a questões gramaticais, a interpretação de Robert Klein (c. 1974) foi adotada. O texto original é: "(...) c'insegna come ellane meglio si convengono insieme e con che sottile et ingegnoso artificio per la forma de i corpi perfetti si congiungono e collocano insieme regolatamente le linee intituite da occhio introdotto con ragione". Mais uma vez, o autor discorre sobre o tema leonardiano do caráter heurístico da pintura. 439 O texto não dá subsídios para identificar de que coletânea se trata. 440 Duas tradições são apontadas aqui, cfr. comentário ao cap. no cap. 4 desta dissertação. 441 Lomazzo, seguindo a tradição leonardesca, defende o primado da pintura sobre a escultura enfatizando sua maior capacidade de imitação e do discurso plástico. 442 Para Robert Klein (op. cit., vol II, p. 674) esta insistência na capacidade da pintura em agradar universalmente a todas as pessoas demonstra um afastamento da concepção humanista da arte e uma aproximação das exigências da contrarreforma: é a pintura como Biblia pauperum. Cfr. Paleotti, cit.; Ciardi, op. cit., n.t.; Summers (cit., pp.176-177), ao abordar a questão do juízo em L., enfatiza sua preocupação com a universalidade da pintura: o pintor deve se preocupar com um decoro mais elevado, já que a pintura será julgada por diversos espectadores, cada um com uma inclinação natural determinada que influencia diretamente sua maneira de apreciar um mesmo objeto.

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Além disso, a pintura constitui o principal ornamento de todas as coisas, já que

com ela se enfeitam os templos, os palácios e todos os lugares mais importantes e mais

valorizados. E, na medida em que ela é utilizada para adornar, ela produz também um outro

efeito bastante útil: ela estimula e eleva o espírito daquele que a vê à contemplação das coisas

representadas. Não posso deixar de mencionar aquilo que Leon Battista Alberti disse sobre a

pintura, que ela agrega valor aos metais, já que são muito mais apreciados quando são

entalhados e trabalhados com algum artifício gracioso443. Finalmente, Aristóteles lhe faz

menção no oitavo livro da Política, afirmando que é de grande utilidade para a diferenciação

dos objetos ao observar aquilo que se vê no comércio, já que se paga muito mais pelas coisas

que são adornadas com alguma pintura444. Pode-se, portanto, perceber claramente que aqueles

que não apreciam a pintura são privados de juízo445. Além disso, ela não é apenas benéfica e

necessária em tempos de paz, como foi dito até aqui, mas também na arte da guerra, para

desenhar os mapas, os lugares, os rios, as pontes, as fortalezas e outras coisas importantes

para o conhecimento do bom capitão e do soldado446. O arquiteto militar, e mesmo o arquiteto

civil, jamais seria digno do título de arquiteto sem o conhecimento da pintura. Isto nos deixou

escrito Vitrúvio, advertindo que antes de todas as coisas se ativesse ao estudo desta arte,

necessária ao entendimento da arquitetura, tudo lhe ensinando e demonstrando447.

Outra consequência causada pela pintura, não menos nobre e prazerosa, é o

aprendizado sobre a beleza que há em todas as coisas. Sem ela o cavaleiro não conseguiria

distinguir perfeitamente um cavalo bem estruturado, nem outros poderiam reconhecer as

belezas existentes em tudo aquilo que o homem vê e desfruta, nem a amenidade dos lugares

ou a beleza das espadas, das armas, das roupas, dos ornamentos, das jóias, das fontes, das

cidades, das fortalezas. E jamais conheceria, segundo os princípios dos quais nosso intelecto

se alimenta e se regozija acima de todas as coisas, a verdadeira beleza de uma mulher e de um

homem, retratada a partir da beleza do próprio Deus e que contém em si toda a proporção e a

443 Cfr. Alberti, Della pittura, II; Castiglione, Il cortegiano, I, 49. 444 Aristóteles, Política, V, 1338 a. Cfr. Cícero, De Inv., II, 1 e Castiglione (Il Cortegiano, I, 52). Cfr. Ciardi, op. cit., vol I, p. 270; Klein, op. cit., loc. cit.; Chai, op. cit, p. 211. 445 Ideia que provém de Filóstrato: "Quem não ama a pintura ofende a verdade, e ofende também a sabedoria", mas também está em Leonardo, Tratt. della pittura, cap. 8 ("come chi sprezza la pittura non ama la filosofia, né la natura"). 446 Frase encontrada com certa variação em Leonardo, Gaurico, Michelangelo Biondo, Francisco de Holanda, etc (Ciardi, op. cit., loc. cit..). Sobre a cartografia como um ponto de encontro entre arte e ciência, cfr. RAGAZZI. op. cit., p.126; Ainda, Cfr. Vitrúvio, cit., Proêmio. 447 Segundo Klein (op. cit, vol II, p. 675), a necessidade da pintura para a guerra era um lugar comum na literatura artística do período. Francisco de Hollanda explorou bastante o tema. Cfr. Vitruvio, I, 1.

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harmonia do mundo. O qual, segundo Castiglione em O Cortesão, não é outra coisa senão

uma pintura da natureza, que apresenta o amplo céu tão esplêndido com estrelas brilhantes, e,

no meio, a terra cercada por mares, e adornada por montes, vales, rios e uma infinita

variedade de árvores, de flores e de ervas. Além disso, sem a pintura ninguém saberia

discernir e separar o belo do disforme, assumindo a mesma condição dos próprios animais

irracionais que vêem com o mesmo olhar, regido e guiado apenas pelos sentidos, todas as

coisas uniformemente448.

E como lidar com a representação por meio da pintura das coisas que não podem

ser vistas, senão somente através da imaginação de quem compreende sua natureza e seu

significado? Ao adentrar sutilmente em tais considerações, as quais são melhor

compreendidas quanto maior o conhecimento que o artista possui das disciplinas necessárias,

como já afirmei e novamente afirmo, surge uma vasta matéria para o exercício da mente e da

força do engenho. Assim, transferindo a imaginação para a representação, temos como

resultado efeitos tais que são admirados universalmente, não somente despertando sumo

prazer, mas também extremo encantamento449. Como se fosse um fenômeno miraculoso,

vemos uma coisa sendo demonstrada através de outra, quando na verdade são a mesma coisa,

como se pode ver, por exemplo, em um retrato ao natural de qualquer pessoa: à primeira vista,

não sabemos direito do que se trata, e mesmo vendo uma cabeça com o resto do corpo,

todavia não é possível perceber que se trata de um retrato, a não ser com o auxílio da arte, que

associa a imaginação com a representação450. Realizei esta experiência inúmeras vezes para o

meu divertimento, maravilhando aqueles que estavam presentes. Desta maneira, utilizando um

modelo já bem formado e perfeito, posso fazer outras infinitas experiências através da arte

discutida em minha outra obra, na qual falo sobre perspectiva451. Esforço-me para beneficiar o

máximo possível os estudiosos desta arte, recordando o antigo dito daquele filósofo que todo

homem deveria ter sempre em mente: não nascemos somente para nós mesmos, mas pela

pátria e pelos amigos, e devemos buscar não tanto a nossa própria felicidade quanto a

felicidade dos outros.

448 Castiglione, cit., I, 49-52. Mais uma vez, a afirmação do caráter heurístico da pintura. 449 O tema da criatividade e imaginação na invenção das formas através do engenho do artista é um tema presente em Lodovico Dolce (1557). 450 Possível referência às pinturas enigmáticas, como aquelas de Arcimboldo (Ciardi, cit., vol I, p. 271); Klein, cit., vol II, p. 675.; Chai, cit., pp. 211-12). Contudo, é possível interpretar o fênomeno miraculoso como a transferência para a superfície bidimensional das coisas produzidas no intelecto através da invenção. 451 Aqui, parece que Lomazzo está se referindo às anamorfoses (Tratt, VI, 19 e 20, sobre as anamorfoses). Cfr. Ciardi, op. cit., loc. cit.

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VIII

Das ciências necessárias ao pintor

Há duas vias para se operar na pintura, uma é a da prática, e outra é a da teoria.

Por meio da prática opera quem possui somente uma habilidade específica, adquirida após um

longo período de exercício, ou quem se sustenta apenas por trás de um modelo, sem saber o

fundamento e a razão do que faz. Por meio da teoria opera quem sabe demonstrar

racionalmente os efeitos da diminuição das proporções e as torções dos corpos, e tudo o que

se pode fazer com o pincel, e, ademais, sabe colocar em palavras os princípios e ensiná-los

aos outros metodicamente, com clareza e com facilidade. No entanto, os pintores que sem esta

operam, mesmo que tenham por muitos anos e com muita dedicação exercitado a prática, por

mais energia e esforço que coloquem em suas obras, não podem alcançar um lugar entre os

mais célebres artistas. Os que procedem apenas com a teoria, apesar de operarem mais com

palavras claras e com vivas demonstrações do que com ornamento e graça, efeitos da prática,

no entanto parecem apresentar maior grandeza e suscitam maior admiração no mundo. Mas,

se acontece de alguém possuir tanto uma quanto outra, este sim, com segurança, correrá a

passos largos em direção à palma da vitória, e em pouco tempo a conquistará, deixando para

trás, com enorme vantagem, os puros teóricos e práticos, pois alcança tudo o que lhe vem à

mente com grande sucesso, sem hesitação e jamais se demonstra indeciso452.

Razão pela qual é possível perceber que, àqueles que desejam fazer desta arte sua

profissão, é necessário possuir um engenho apto a aprender as ciências imprenscindíveis para

isto alcançar, devendo ser dotados das duas partes - teoria e prática. Pois o pintor não pode

alcançar prestígio sem as ciências e somente com o engenho, e nem sem o engenho e apenas

através da arte ou do estudo, pode-se aprender as ciências453. É mister, portanto, que, se não

perfeito, tenha ao menos um conhecimento mediano de todas elas, sobretudo de seus aspectos

452 Novamente, L. retorna ao argumento da complementariedade entre prática e teoria. Cfr. Vitrúviu, I, cap. 1 (2); comentário de Barocchi ao capítulo, op. cit., pp. 1512 ss. 453 Ideia presente na Ars Poetica de Horácio (ego nec studium sine divite vena/ nec rude, quid possit, video ingenium). Ainda, cfr. Vitrúvio, I, 1, 3 (Ciardi, op. cit., n.t., vol I, p. 272). Robert Klein traduz ingegno primeiro por "aptitude naturelle", e depois por "esprit capable". Chai o traduz para o inglês como "natural aptitude" - Natural aptitude alone, without the sciences, cannot secure the prize for the painter, nor can these sciences be learned only through skill and study without aptitude -. O V.A. Crusca define ingegno como "pespicácia no inventar e fantasiar o que quer que seja sem um professor ou conselheiro", e dá como exemplo a sentença do Comento di M. Francesco da Buti, sopra il Poema di Dante, "Ingegno è una virtù interior d' animo, per la quale l' huomo da se truova quello, che da altri non ha imparato". Em português, a palavra "engenho" pode significar aptidão natural, talento, gênio, capacidade para discorrer ou inventar com prontidão, e, portanto, muito próximo em sentido de ingegno.

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mais essenciais454. Caso contrário, como disse Vitrúvio em outro contexto, é melhor que se

dedique a outra empresa, pois não será bem sucedido nesta455. E, no entanto, louco é aquele

que pensa que é possível se tornar pintor sem saber ao menos ler e escrever, sendo este o

fundamento de todas as ciências, porque é através da leitura e da escrita que é possível

conhecer as coisas que foram feitas e ditas. O pintor não pode ignorar as histórias sacras e os

assuntos referentes à teologia, devendo, ao menos, buscar informações sobre o assunto através

de frequentes conversações com teólogos456, para que saiba como se deve representar Deus,

os anjos, as almas, os demônios, os lugares onde se encontram, suas vestimentas e cores

conforme sua função, e, de forma geral, todos os santos e as histórias pias, da maneira mais

digna e excelente possível.

Sobretudo, como exercício geral e aplicação particular, é preciso que o pintor seja

um bom matemático (quer dizer que deve compreender as doutrinas e também saber aplicar a

disciplina) para que com a astrologia possa alcançar o conhecimento dos céus, dos signos, das

faces ascendentes e seus significados. Uma vez que conhecida a natureza dos corpos através

das imagens celestes e de seus influxos, entenderá que se deve representar um tipo marcial

cruel, um tipo venusiano amável, e assim por diante seguindo o mesmo raciocínio para os

demais tipos457. Sem este conhecimento é possível realmente afirmar que a pintura nada vale e

não possui vitalidade. Com a geometria virá a conhecer os corpos perfeitos e regulares, com

suas proporções e medidas, que são o fundamento para as trasposições geométricas458, da qual

depende toda a arte. Através da perspectiva, o coração da geometria, aprenderá sobre as

sombras, as luzes, os raios, os escorços, e finalmente sobre tudo que, enganando nossos olhos,

fazem ver aquilo que não existe. Com a aritmética, entenderá as proporções, as harmonias e as

adequações dos corpos através dos números e das quantidades, pois, ao relacionar

numericamente as partes mínimas e máximas, formam-se pinturas bem proporcionadas e

454 Cfr. Vitruvio, I, 1 (13-170). 455 Vitrúvio, VI, prefácio (Ciardi, op. cit., loc. cit.). 456 Klein (op. cit, vol II, p.677) afirma que a consulta teológica não era uma obrigatoriedade imposta ao pintor (que não deixa de ser incentivado a discutir o programa iconográfico com os teólogos), mas que havia na literatura artística uma preocupação em relação à ortodoxia das imagens que o comitente deveria ter, como se pode observar no já citado Discorso intorno alle imagini sacre e profane (Bolonha, 1582) do cardeal G. Paleotti. Ainda, cfr. Armenini, De' veri precetti della pittura, III, 15. 457 Vitrúvio, I, 1 (3): "astrologiam caelique rationes cognitas habeat". Sobre a lista de ciências necessárias ao artista, para além do texto de Vitrúvio, podemos encontrar uma matriz também em Agrippa, no cap. 2, livro I, no qual discorre sobre a as partes da Magia Natural (Física, Matemárica e Teologia). 458 O termo em utilizado é "trasferizioni" que designa as reduções de escala de perspectiva. Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 273) e Klein (op. cit., vol. II, p.677) apontam para o De divina proportione de Luca Pacioli, provavelmente lido por Lomazzo, e que apresenta as relações entre os corpos platônicos e os sólidos geométricos.

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belas, e não feitas aleatoriamente, como as obras daqueles homens privados deste

conhecimento tão importante.

Não basta que o pintor seja instruído apenas nestas ciências, mas é necessário,

para além disso, que tenha conhecimento sobre arquitetura, já que nossa arte é composta em

grande parte por esta ciência, e também sobre música, igualmente importante para que o

pintor seja perfeito. Porque a arquitetura, acima de todas as outras ciências, é aquela que o

pintor deve conhecer integralmente, e havendo nela uma grande diversidade, o que se pode

observar claramente na medida em que a colocamos em prática (como os pintores, os

escultores, os ourives e outros que igualmente a utilizam em seu trabalho), é necessário

conhecer a verdadeira regra para praticá-la. Esta, em suma, não pode ser extraída de uma

maneira melhor do que através da observação da forma das boas construções antigas. Entre

infinitas outras, há o Coliseu e o Pantheon de Roma, e também muitos prédios modernos,

como aqueles realizados por Bramante, Michelangelo Buonarroti, Peruzzi, Rafael459,

Zenale460, Bassi461, Giuseppe Meda462 (pintor e arquiteto, especialmente por causa do

459 No que diz respeito a Bramante, Michelangelo, Peruzzi e Rafael, não são necessários maiores comentários, a presença destes nomes nesta citação sobre grandes arquitetos modernos é evidente. 460 Bernardo Zenale (1455-1460, Treviglio-1526, Milão) foi um pintor e arquiteto lombardo, cujo vocabulário estilístico teve como referências Bramante, Leonardo e Vincenzo Foppa. Em seus primeiros anos de atividade, decorou, junto com seu conterrâneo Bernardino Butinone, as pilastras de Santa Maria delle Grazie em Milão (representando santos dominicados e beatos). Teve também participação em outros projetos decoraticos, assumindo, por volta de 1485, papel de proeminência, como por exemplo na execução do políptico de San Martino em Treviglio, e nos afrescos da Capela Grifi de San Pietro em Gessate, Milão (c. 1490), nos quais pintou as histórias de Santo Ambrósio. Assumiu posição de prestígio como pintor no cenário artístico lombardo nos anos finais de Ludovico, o Mouro, e durante o domínio francês. Após 1502 , atua como arquiteto na estrutura da Santa Maria presso San Celso (Milão), e em seus ultimos anos de vida, como arquiteto do Duomo de Milão (cf. NATALE, Mauro (ed). Foppa, Zenale and Luini. Lombard painters before and after leonardo, Robilant + Voena: Londres, 2012; FIORESE, G. Rivalutare Bernardo Zenale come architetto pittore. Anagke, 72, pp.138- 142, (maio) 2014).

461 Martino Bassi (Seregno, 1542 - Milão, 1591) foi um importante arquiteto e engenheiro civil no cenário milanês do segundo Cinquecento. Em 1567, encontra-se entre os jovens assitentes na edificação de San Vittore al Corpo em Milão, e como aspirante a arquiteto do Duomo. A partir de 1569, incia uma acirrada polêmica contra o então arquiteto titular da fabbrica do Duomo Pellegrino Tibaldi (Puria in Valsolda, 1527 - Milão, 1596) sobre a colocação da cripta e do coro nos projetos de edificação do Duomo, discussão que pode ser acompanhada em seu Dispareri in materia d'architettura et perspettiva... (Brescia, 1572). Em 1570, sucedeu Galeazzo Alessi nas obras de Santa Maria dei Miracoli presso San Celso, e, em 1573, trabalha nas obras de Santa Maria della Passione, adicionando as naves e a fachada. Dentre suas principais atuações como arquiteto em Milão está a reconstrução, em 1575, da basílica de San Lorenzo, cuja cúpula sofreu um desabamento em 1573. Em 1578, executa as obras no coro da cartuxa de Pavia, em 1579, as transformações de Santa Maria della Rosa em Milão, e em 1583, assume como conselheiro em San Gaudenzio di Novara. A partir de 1586, substitui Tibaldi (que parte para a Espanha devido aos inúmeros ataques e críticas) nas obras de Santa Maria alla Scala em San Fedele, e também como arquiteto titular na fabbrica do Duomo a partir de 1587. Até o ano de sua morte, em 1591, possui uma vida ativa enquanto arquiteto, engenheiro de guerra e hidráulico (trabalha junto com Giacomo Soldati nos

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belíssimo palácio do senhor Próspero Visconti em Milão, louvado pelos mais famosos poetas

de nossa época, cavaleiro não apenas por seu ilustre nascimento mas também por sua

intelectualidade), entre muitos outros valiosos arquitetos. Nestes edifícios, tanto nos

modernos quanto nos antigos, pode-se observar uma arquitetura pura e verdadeira, sem a

confusão de folhagens e quadraturas que sufocam todo o belo da arte, o qual, então,

conquista-se quando o arquiteto procede com a regra dos preceitos da arte, que são vários e

distintos, de acordo com a variedade das ordens da arquitetura, a toscana, a dórica, a jônica, a

coríntia e a compósita, descoberta pelos romanos e assim chamada porque participa de todas

as outras ordens. Adiciono uma sexta ordem, recém inventada por Giacomo Soldati, arquiteto

do Sereníssimo Duque de Savoia463, chamada de harmônica, cujo som pode ser demonstrado

projetos de canalização de água de Milão até pelo menos 1570), trabalhando tanto para comitentes civis quanto religiosos, e em obras oficiais de Milão. (cfr. VIGANÒ, M. Martino Bassi architetto luganese a Milano. Arte & Storia, Florença, 19, pp. 104-109, (mar-abr) 2004; PARODI, C. Martino Bassi e la riconstruzione della cupola di S. Lorenzo tra Cinque e Seicento. Arte Lombarda. Milão, 92/93, pp. 31-45, 1990).

462 Giuseppe Meda (1531/34 - 1599) foi um importante arquiteto, pintor e engenheiro civil milanês, amigo de Arcimboldo, Bassi e Giovanni Paolo Lomazzo. Iniciou seu aprendizado em pintura no ateliê de Bernardino Campi, contudo, desde cedo demonstrara maior interesse por engenharia hidráulica, apesar de seu grande talento para a pintura. Por isso, por intermédio de seu pai, Andrea Meda, que fora alertado por seu mestre Bernardino Campi sobre o interesse do rapaz por hidráulica, junto com Biagio Arcimboldo, pai do pintor Giuseppe Arcimboldo, alguns anos mais velho que Giuseppe Meda, começa a se relacionar com o pintor Arcimboldo, por quem passa a cultivar muita admiração, e, assim, retoma seu interesse por pintura. Ambos inciam um período de colaboração na década de 1550: executam os afrescos da casa Negroli (Santa Maria Segreta); Os ciclo de afrescos da abóbada e parede do fundo do transepto meridional do Duomo di Monza a partir de 28 de maio de 1556 (Passione degli Evangeliste e Albero di Jesse); Juntos executam a composição para o estandarte (gonfalone) do duomo de Milão, porém Arcimboldo é convidado a ir à corte imperial, e, então, parte para Viena, deixando a conclusão da composição do estandarte para Meda. Depois disso, Meda recebe inúmeras comitências e começa a se tornar um pintor reconhecido e prestigiado no círculo de comitentes milaneses e ao entorno de Milão. No início dos anos 1560, retoma seus interesses em engenharia hidráulica e passa a se relacionar com Martino Bassi. Ainda, é escolhido pelo barão Giovanni Tommaso Martirano, emissário de Felipe II, junto a Vincenzo Seregni e a Pellegrino Tibaldi, para fornecer ideias, desenhos, modelos e pareceres para a obra do Escorial. A colaboração com estes dois grandes arquitetos chancelou seu sucesso como arquiteto e engenheiro no circuito Milão-Madrid. Em 1580 é nomeado para solucionar a questão da navegabilidade do rio Adda desde o lago de Como até o canal de Martesana. Sobre o Palácio de Próspero Visconte, a atribuição do projeto arquitetônico a Meda,"um dos edifícios mais inovadores realizados em Milão na segunda metade do Cinquecento" (1589-91), vem sendo cada vez mais confirmada pelos estudiosos. Em 1597, é processado e preso devido ao desabamento das obras no canal de Paderno (acusado por seus inimigos). Morre em 1599 aos 65 anos, após sair da prisão, sem conseguir ver a obra do canal de Paderno concluída. (cfr. MALARA, Empio. Milano come opera d'arte: Giuseppe Meda (1534-1599) pittore, architetto, ingegnere. Milão: Ulrico Hoepli, 2011).

463 Giacomo Soldati (c.1540, Lugano (?) - 1600, Turim) foi um engenheiro hidráulico, civil e arquiteto, atuando em seus primeiros anos de atividade em Milão e na Lombardia. Data de 1566 sua primeira missão na corte de Emanuele Filiberto di Savoia (Turim). Em 1570, encontra-se de volta em Milão colaborando com Martino Bassi (projeto de reestruturação do sitema de canalização das águas dos canais de Milão). De acordo com Marino Viganò (2003), a grande concorrência no meio e as inimizades devido ao fato de Soldati ser um forasteiro dificultava sua atuação em Milão. Assim, em 1576 transfere-se para o Piemonte para ocupar o cargo de arquiteto na corte do duque Emanuel Filiberto de Savóia. Cfr. MAMINO, Sergio,"Scienziati e architetti alla corte di

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facilmente aos ouvidos, mas sua representação visual encontrou bastante dificuldade em ser

realizada. Soldati quis, com isso, imitar os antigos que, ao reproduzirem através do som, do

desenho e da construção suas cinco ordens, fizeram com que o mundo todo conhecesse a

harmonia de cada uma delas. Caso Giacomo Soldati seja bem sucedido, trará grandíssima

gloria a nossa Itália464.

Ora, para alcançar a verdadeira glória nesta arte, é necessário o conhecimento,

qualquer que seja ele, de tantas e tão difíceis ciências, bem se vê que não há tempo a perder e

que é preciso debruçar-se ininterruptamente sobre os estudos, pois quanto mais instruídos

formos, maior será nosso grau de excelência. Outrora, a matemática teve suma reputação por

conter em si tantas artes, não apenas muito estimada pelos caldeus e pelos árabes, seus

inventores, mas também por todos os outros povos, que denominavam aqueles que a

praticavam de diferentes maneiras: os caldeus e os árabes os chamavam de genetlíacos e

algébricos, de acordo com Vitrúvio no nono livro; os persas os chamavam de magos; os

gregos, de filósofos; os latinos, de sábios; os gauleses, de druidas; os egípcios, de profetas; os

indianos, de gnósticos; os assírios e outros povos se referiam a eles por outros nomes465. E

todos os que exercitavam a matemática como profissão eram também inteligentíssimos na

pintura, como aprendemos a partir de sua história, sendo eles próprios os criadores das

imagens de seus deuses e de tudo o que quisessem exprimir em figura e também das estatúas,

que eram movidas através de rodas e do vento, de acordo com o que está escrito sobre as

estátuas de Mercúrio no Egito466.

Emanuele Filiberto di Savoia: Giovan Battista Benedetti e Giacomo Soldati, Studi piemontesi, 18, pp.429-449, 1989 e VIGANÒ, Marino, "Giacomo Soldati da Neggio: un ingegnere nel Piemonte ducale sabaudo", Arte & storia, 18, pp. 106-117, (nov-dez) 2003. 464 Cfr. VIGANÒ, op. cit.; MAMINO, op. cit. Sobre a mistura sinéstesica discorrida por Lomazzo, Klein (op. cit., loc. cit.) ressalta que neste mesmo período, Arcimboldo apresentava seu teclado de cores para a corte de Praga, e aponta para esta reinterpretação e adaptação do pitagorismo na cultura do período. Ainda, afirma que terminologias musicais eram bastantes recorrentes no vocabulário arquitetônico, indicando o comentário de Cesariano a Vitrúvio. 465 No prefácio do nono livro do De Architectura, Vitrúvio faz um elogio aos geômetras e matemáticos. No capítulo 6 (2) do nono livro, há uma passagem sobre os matemáticos caldeus e os astrônomos e físicos gregos. No que diz respeito à lista de nomes dados aos matemáticos, talvez a fonte de Lomazzo tenha sido o De christiana religione, livro I, cap. 1, de Marsilio Ficino. Ainda, existem outros autores que poderia ter sido fontes mais diretas para Lomazzo: Cesare Cesariano, Commento a Vitruvio, Como,1521, f. CLVI ; Giambattista della Porta, De i miracoli et maravigliosi effetti dalla natura prodotti, Veneza, 1560, livro I, capítulo 1; Natale Conti, Mythol. Libri, Veneza, 1581, livro X, cap. I, p. 7. (Ciardi, op. cit., n.t., vol. II, p. 274). 466 L. menciona isto no "Ragionamento sesto" do Libro dei Sogni e no Trattato, II, 1. Parece que sua fonte mais provável seja Cornelio Agrippa, De Occulta Philosophia, II, 1, p. 174. Contudo, este relato é bastante comum nos textos da tradição hemética. O próprio Giulio Camillo comenta sobre estas estátuas, assim como M. Ficino. Cfr. YATES. op. cit. Sobre a existência de tais estátuas dos egípcios, cfr. Maspero, "Les satatues parlantes de l'Egypte antique". In: Causeries d'Égypte, 2a. edi., Paris, 1907, pp. 167 ss. (apud Klein, op. cit., vol. II, pp. 679- 80 ; Ciardi, op. cit., n.t., vol. I, p. 275).

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Porque a pintura, como afirmou Michelangelo, mostra mais relevo quanto mais se

acerca e aproxima-se do real, representado conforme as regras da arte, é necessário, para

facilitar a razão de operar apropriadamente, a aplicação prática, fabricando modelos de terra o

cera, para que ao menos se torne mais compreensível os lugares das sombras e das luzes nos

corpos, assim como o fizeram os mais excelentes nesta arte467. Entre estes, Albrecht Dürer,

com os cortes que realiza na cabeça e em todos os membros dos corpos, revelou os princípios

de seus membros a fim de expor com maior clareza e demonstrar as simetrias dos corpos,

como ele mesmo confessa. Mesmo que isto, sem este método, possa ser realizado mais

perfeitamente através da pura geometria e perspectiva, como se pode ver nas obras do próprio

Dürer, e como fizeram Vincenzo Foppa, Andrea Mantegna, Bernado Zenale e muitos

outros468.

Convém ainda, para que tenhamos invenções abundantes e copiosas, fazer um

estudo continuo das histórias de todos os tempos e de todas as nações, pois elas nos

apresentam as memórias dos fatos como ocorreram, de todos os modos e com todas as

circunstâncias, que quanto mais forem minuciosamente observados e compreendidos,

expressando-os em sua obra, mais aproximará sua pintura da verdade. Desta forma, então, a

pintura realiza-se totalmente, plena de majestade e da grandeza presentes no próprio fato. A

poesia, por sua vez, é tão benéfica ao pintor quanto a história, sendo tão intimamente

relacionada com a pintura, que se pode considerá-las quase a mesma coisa com a pintura,

devido a infinitas características em comum, especialmente a licença de fingir e de inventar.

Em todo caso, sempre que o pintor for acompanhando pela poesia, saberá representar os seus

conceitos e descobertas com tanta graça e vivacidade aos olhos utilizando o pincel e as cores,

quanto costumam fazer os poetas com a pena e a tinta469.

467 Interpretação de Lomazzo da frase de Michelangelo na carta a Benedetto Varchi in Barocchi, op. cit., p. 522. 468 Dürer, Vier Buecher (Nurembergue, 1528), no qual ele realiza estudos de proporção. L. cita importantes artistas do ambiente lombardo, aos quais reivindica a tradição do método da proporção por meio das quadraturas. No tratt., VI, cap. 14, p. 277, L. afirma que Foppa realizava as "figuras quadradas", método que talvez ele teria aprendido a partir das notícias sobre a técnica do escultor antigo Lisipo, e que, mais tarde, foi chancelado por Bramante em seu livro de teoria, e que foi a partir dele que Rafael, Polidoro e Gaudenzio se basearam, e depois Luca Cambiaso. Rafaelle Soprani, em suas Vite de' pittori, scultori e architetti genovesi... (1674), critica L. por esta "falsa" afirmação sobre o inventor do método, reinvindicando a "regola di delineare il corpo umano per via di cubi" ao pintor genovês Giovanni Cambiaso, pai de Luca Cambiaso. 469 Sobre a aproximação da poesia e da pintura (ut pictura poesis) nos teóricos do Cinquecento a partir de Dolce, presente na Ars Poetica de Horácio ( pictoribus atque poetis quidlibet audendi sempre fuit aequa potestas), mas também nos conselhos dos retóricos latinos (Cícero, De orat., I, 34 e Quintiliano, Inst. Orat., X, 1), cfr. Lee, op. cit., pp. 28-47, 70 e ss. e nota 73.; e Ossola, op. cit., pp. 4 e 31 e ss.; Ciardi, op. cit., Vol. I, p. 85, nota 10.

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Todavia, a ciência mais importante e necessária ao desenho, acima de todas as

outras, é a anatomia, que nos ensina a encadear os membros, as veias e os ossos, a ligar os

nervos nos corpos, e a construir os músculos de maneira correta, tomando como exemplo os

corpos mortos e vivos. E como prova, basta notar que aqueles que não possuem o

conhecimento de anatomia, mesmo que sejam peritos nas demais ciências e exercitem-nas,

nunca conseguem se aproximar ou atingir o natural, mas apenas provavelmente imitá-lo, já

que ignoram a composição e a ordenação dos membros e das outras partes escondidos sob a

pele, de onde se originam o movimento e os seus muitos e vários efeitos470. Necessário

também é o conhecimento do afeto e da diversidade de efeitos causados por ele, visivilmente

externados nos corpos, fundada sobre a diversidade dos elementos e compleições471. O pintor

deve ser bem entendido e perito no estudo desses efeitos, e deve sempre atentar nisto, se

deseja que se veja a verdade e o natural em suas obras. Com este conhecimento, é possível

representar cada personagem com uma aparência conveniente à ação e aos efeitos que lhe

foram atribuídos, expressando de maneira belíssima a união de todas as partes em um corpo e

as diferenças existentes entre os distintos corpos de acordo com as paixões da alma472. E se

considerarmos os corpos superiores, aos quais são submetidos os países, e sua variedade de

operações e influxos, é possível retratar distintamente os habitantes de cada região. Por isso,

470 Neste trecho, ao valorizar acima de tudo a anatomia e o desenho, L. deixa transparecer sua condição de artista-teórico, diferenciando-se de escritores eruditos que não possuíam o ponto de vista da experiência prática. De acordo com R. Lee (op. cit., p. 74), a valorização da Storia e da inventio presente em Dolce, a aproximação do artista com a figura do poeta e a erudição recomendada ao pintor são marcadas pela contaminação de sua teoria com a poética de Daniello (publicada em Veneza, em 1536). Lomazzo, em correspondência com Dolce e imerso no contexto da Contrarreforma, aconselha o pintor a ter conhecimento das histórias sacras e da poesia, contudo, Lee destaca que "nella sua qualità di pittore, egli pone l'accento sulla geometria e sulla prospettiva, cosa che il Dolce, colto intenditore ma no artista praticante, non fa". Ainda, Lee afirma que L. insere a poesia ao final da sua lista de ciências necessárias ao pintor e sem muita ênfase nisto, como prova de um "temporário eclipse humanista no final do Cinquecento", apesar de admitir a aproximação do pintor e do poeta na "licenza del fingere e inventare" e a importância da poesia para a invenção pictórica. No entanto, após tais concessões humanísticas, que para Lee parecem ser reflexo de uma recordação dos elogios humanísticos à pintura presentes no Trattato, L. retorna a Leonardo, afirmando a máxima importância da anatomia. Sobre este movimento em L., Lee conclui que, apesar de não se poder negar as exigências científicas feitas por Lomazzo (e seus constantes retornos a Alberti e Leonardo), é o seu programa como um todo que deve ser destacado, ou seja, a necessidade de que o artista seja instruído nos diversos campos do conhecimento, programa didático exigido pelos críticos do Cinquecento a partir de Dolce. Sobre esta questão, cfr. Lee, op. cit., pp. 70 e ss. 471 Sobre a teoria e a medicina elementar e humoral (na qual existem concordâncias na composição do universo, ou seja, a combinação dos elementos e das influências astrais determinam os temperamentos e afetos) presente em Lomazzo, derivada de Ramon Lull, cfr. ACKERMAN. op. cit., pp. 70-77. Para mais info. ver YATES. op. cit. 472 Robert Klein (cit., vol. II, p. 681) chama a atenção para o fato de que esta oração apenas poderia ser compreendida após a leitura dos capítulos nos quais ele fundamenta sua teoria astrológica (especialmente os capítulos 26, Del modo di conoscere e constituire le proporzioni secondo la belleza, e 36, Come s'infondano le proporzioni fra di loro e da quelli nascono gli affetti e moti nostri). Em relação à teoria da expressão em L., cfr. Lee, op. cit., pp. 39 e ss. e apêndice 3 ("Lomazzo e l'espressione"); e CHAI. Gian Paolo Lomazzo and The art of expression, cap. III. Em relação à questão da variedade em Lomazzo e sua relação com Leonardo, cfr. Ciardi, op. cit., vol. II, p. 244, nota 1.

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não há ninguém que não diferencie um francês de um espanhol, e este de um alemão, e este de

um italiano, e assim por diante. Isto é útil porque nos faz conhecer as qualidades das almas e

das compleições, e a partir disso aprende-se, então, a verdadeira razão na atribuição das

corretas proporções, contornos, cores, e outras partes a cada figura que lhes são convenientes

de acordo com a verdade473.

Finalmente, o genuíno pintor deve ser antes de tudo um filósofo para poder

realmente penetrar a natureza das coisas e, segundo a razão, dar a cada uma delas a

quantidade de luz que se deve474. Deste modo, todas as representações parecerão coisas reais,

e não representadas ou fictícias, e o criador (aquele que eu busco) saberia proporcionar, então,

a razão a cada um. Nisto propriamente consiste a autoridade da arte do pintor, e, além disso,

aprenderia com a filosofia a ser modesto, humano e circunspecto em todas as suas ações,

como se pôde observar no sábio Leonardo, no gnóstico Buonarroti, no matemático Mantegna,

nos dois filósofos Rafael e Gaudenzio, e no grande druida Dürer475, os quais não somente

conquistaram fama e glória pela excelência de sua arte, como também pela humanidade e

doçura nos hábitos, o que lhes tornavam amados e benquistos por todos com quem se

relacionavam, o que parece ser tão necessário e relevante ao pintor, quanto mais as pessoas

vulgares, que irracionalmente julgam sem nenhuma ponderação, considerarem-no caprichoso

e excêntrico, já que a maioria dos pintores é extravagante e frequentemente agitada ao se

relacionarem com os outros, dependendo de seu humor476. Não desejo, agora, especular se

isso procede de sua própria natureza ou de seu envolvimento nos meandros da arte, nos quais

continuamente mergulham enquanto investigam seus segredos e suas enormes dificuldades.

Além de todas as coisas que, até aqui, afirmei serem necessárias ao pintor, resta,

finalmente, acrescentar a parte mais importante que todas as outras: o homem tem que nascer

pintor, assim como dissemos do poeta, e é principalmente neste ponto que a pintura se

473 Esta noção já estava engendrada no L.S., sob o princípio de discrezione naturale (derivado da Filosofia natural de Agrippa): "Não seria talvez aquele pintor um grande grosseiro se tendo que fazer um espanhol ao natural, não o fizesse em ato arrogante e fanfarrão, e lhe atribuísse gestos festivos, o rosto erguido e vestes delicadas (....)", e continua descrevendo cada nacionalidade (L.S. In Ciardi, op. cit., vol. I, p. 233). 474 A relação entre a filosofia natural e a observação dos fênomenos ópticos demonstra mais uma vez a grande proximidade com o pensamento de Leonardo. 475 Cfr. Vitrúvio, I, 1 (7). As possíveis relações estabelecidas, de acordo com Ciardi, são: Leonardo, Rafael e Gaudenzio (formação clássica); Miquelângelo (poesia/gminosofista); Dürer (nórdico); Mategna (perspectiva/matemática). Cfr. Trattato, VI, 2; Ciardi, op. cit., vol I, pp. 275-278. 476 Sobre a discussão das excentricidades dos grandes artistas, cfr. Wittkower, R; Wittkower, M. Born under Saturn, Londres, 1963, pp. 67-93; Chastel, Marsile Ficin et l'art, 1954, 163-172; Chai, Idea of the Temple of Painting (trad.), loc. cit.

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aproxima da poesia477. Caso contrário, mesmo um trabalho árduo e contínuo, com um longo

estudo, agudeza de engenho, fundamento das letras, lições teológicas, auxílio da astrologia,

conhecimento das figuras geométricas, dos raios de perspectiva, da harmonia musical, das

proporções aritméticas, das medidas arquitetônicas, dos modelos plásticos, da memória

histórica, das ficções poéticas, dos exemplos anatômicos, das expressão dos afetos, e,

finalmente, o conhecimento e a demonstração filosóficos, jamais poderá fazer com que

alguém que não tenha nascido para ser pintor, alcance algum grau de excelência nesta arte, ou

seja, que não tenha carregado consigo do berço e de sua primeira infância a invenção e a

graça da arte. Esta última é aquela parte que liga e une com admirável facilidade todas as

partes supracitadas naquele que nasce com ela. De maneira oposta, aquele que nasce sem ela

nunca poderá realizar obras que não sejam catastróficas, causando aversão no espectador, por

mais mérito que tenha por sua potência artística e estudo. A verdade destes fatos pode ser

percebida com clareza naqueles que, não nascendo para a pintura, colocam-se a imitar a

maneira de outros por meio do estudo e do esforço, porém nunca conseguem igualar-se a eles

e, nem, ao menos, chegarem próximo deles. E os que, nascendo como que feitos para a

pintura e unindo, com a graça e a disposição natural, o estudo mediano ao conhecimento das

ciências já mencionadas, conseguem com suma felicidade tudo o que desejam, mesmo que

através de diferentes maneiras, conforme a diversidade de seu gênio, assim como já foi

exaustivamente discutido. Agora, é tempo de começar a construir o nosso templo e discorrer

sobre os seus governantes.

IX

A construção do templo da pintura e seus governantes 478.

477 Cfr. Lee, op. cit., pp. 4-5 e páginas indicadas na nota 165; Summers, cit., p. 177 (sobre o julgamento no olhar do artista, recuperando a frase de Michelângelo, que será citada mais adiante no cap. 11, "a proporção deve estar nos olhos do artista para que ele saiba imediatamente julgar aquilo que vê", que significa que o artista nasce artista, o que é afirmado também por Paolo Pino (1548). Esta ideia está relacionada ao comentário de Ficino ao Symposium de Platão. Cfr. Panofsky, op. cit, pp. 93 e ss. e apêndice nas pp. 125 e ss.). Ainda, cfr. Tratt., VI, II:

"E se pure in parte alcuna si vuol variare, si ha d'avvertire alla convenevoleza et anco all'accrescimento dell'effetto, ad imitazione de' poeti, a quali i pittori sono in molte parti simili, massime che cosí nel dipingere, come nel poetare, vi corre il furor di Apolline (...). Onde soleva dir alcuno che la poesia era una pittura parlante e la pittura era una poesia mutola".

478 Sobre o Templo da Pintura de Lomazzo, a obra teve como inspiração Idea del Theatro de Giulio Camillo (Florença, 1550), o que mais adiante será confirmado pelo próprio L. (KLEIN. op. cit., introdução, p.X). Tendo como baseado o teatro antigo vitruviano, Camillo dispôs imagens, dentro de um sistema mnemônico, representando todo o universo físico e moral de maneira simbólica. Ainda, Robert Klein aproxima o templo de L. das Poéticas do período, na medida em que L. reivindica a característica de repertório completo e universal da pintura. Sobre o diálogo com Camillo, cfr. Ackerman, op. cit., pp. 79-80; Chai, Gian Paolo Lomazzo and The art of expression, p. 70. Ver comentário ao capítulo, no capítulo 4 (seção 2-J) desta dissertação.

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Assim como o mundo é regido e governado por sete planetas, como se fossem

sete colunas, que, apreendendo suas luzes da luz primordial, Deus, em seguida a transmitem

para baixo separadamente, beneficiando todas as coisas criadas, também será este meu templo

da pintura sustentado e regido por sete governantes em forma de sete colunas479. E nisto imito

Giulio Camillo em sua Idea do Teatro, apesar de que se comparado à construção de Camillo,

o meu templo é muito mais humilde e grosseiro.

Primeiro escolhi os governantes do templo de acordo com o número de colunas e

de governantes que existem no Cosmos. Em seguida, organizei-os em uma disposição

circular, ocupando o lugar das colunas do templo, equidistantes entre si sobre seus respectivos

pedestais, e sobre elas estão a arquitrave, o friso e a cornija, também em forma circular, e

sobre estes está a cúpula, que termina em uma lanterna com sete aberturas, da qual descende

uma luz esplendorosa que ilumina uniformemente todo o templo. Este é circundado por sete

paredes que envolvem igualmente todo o entorno dos governantes e que terminam na cúpula,

na abertura da lanterna.

Estes governantes, que de si emanam uma luz resplandecente, nasceram todos na

Itália, mãe fecunda de homens ilustres em todas as artes em todas as épocas para o ornamento

eterno da arte da pintura. Esta jazia extinta, como se estivesse sepultada, desde o tempo do

grande imperador Constantino até os tempos dos imperadores Maximiliano e Carlos V,

quando nasceram aqueles que a fizeram ressurgir, mais bela do que jamais havia sido antes480.

479 1 - Sobre a questão da luz divina e de sua relação com a Beleza, cfr. FICINO. "Sopra lo amore o ver Convito di Platone", Florença, 1544, Or. V, cap. 3 e 6; PANOFSKY. op. cit., apêndice nas pp. 125 e ss; Também, cfr. Panofsky, op. cit., p. 93-98; e Summers, cit., p.177. Carlo Ossola (op. cit., p. 15) indica a Metafisica della luce do pseudo-Dionísio como fonte para a noção de Beleza como emanação divina no Renascimento. Porém, para além desta relação, a luz como emanação da fonte divina é um tema presente no Corpus Hermeticum. Inclusive, a relação do Sol com a trindade de Deus e da luz com o espírito de Cristo estão presentes aí. Este tipo de associação é bastante comum nos filósofos herméticos cristãos, como Marsilio Ficino (De vita coelitus comparanda) e Giulio Camillo (Idea del Theatro). Cfr. YATES, F. The art of memory. cit.

2 - O termo "governantes" (doikétés) também é utilizado no Corpus Hermeticum para se referir aos sete planetas, mais precisamente no primeiro livro do corpus, o Pimandro. Contudo, é possível que Lomazzo tenha tido contato com esta tradição através de de Cornelio Agrippa, De Occulta Philosophia, III, cap. 24: "(...): quos Trismegistus Mercurius iccirco uocat septem mundi gubernatores, qui per coelos tanquam per instrumenta, coaceruats omnium stellarum e signorum influentiis, eas in haec inferiora distribuunt". Em relação à eleição dos representantes canônicos da pintura, Klein também afirma que esta era uma prática antiga, porém era comum a escolha de um patrono para cada uma das artes, e não todos para uma mesma arte. Além disso, a associação dos mestres aos sete planetas, e, consequentemente, a sete temperamentos artísticos é algo sem precendentes na teoria artística. Cfr. Klein, Les sept gouverneurs de l'art In La forme et L'intelligible, c. 1970. Também, ver comentário ao capítulo, no capítulo 4 (seção 2-J) desta dissertação. 480 Após Vasari, esta afirmação torna-se popular: as artes renascem no tempo de Cimabue e Giotto. (Ciardi, op. cit., vol I, p. 278). Ainda, pode-se destacar a glorificação dos imperadores da dinastia Habsburga e de sua ação enquanto comitentes, tendo em vista que o "Ideia" é dedicado a Filipe II, e que L., sendo ele milanês, insere-se neste contexto político imperial.

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Elevaram-na ao mais alto nível possível, não somente através de uma única via, mas por

diversos e heterogêneos caminhos, pois a maneira de cada um deles, mesmo que todas

excelentes em si mesmas, nada ou pouco possuem em comum481. As honras e qualidades

próprias de cada um desses soberanos mestres da arte são bastante discutidas no meu livro

sobre o movimento, no capítulo onde trato dos movimentos dos sete governantes do mundo,

classificando-os de acordo com aquilo em que cada um demonstrou suma excelência482.

Ora, porque entre os mestres de uma mesma arte há sempre demasiada disputa e

inveja devido aos vícios da nossa natureza corrupta e à constante influência do antigo

adversário dos homens, e quanto mais alto alguém sobe, maior é o esforço de outrem para

rebaixá-lo e desencorajá-lo, serão entalhados nos supracitados pedestais, em baixo-relevo, o

que corresponde ao oposto da essência e da qualidade de cada governante da pintura. Cada

governante será representado em tamanho real, com o respectivo instrumento apropriado para

sua atividade em mãos. A matéria de que há de ser feita cada estátua acompanha a natureza e

a qualidade do planeta que rege cada um, conforme as afinidades existentes entre eles483.

No pavimento ou solo desse mesmo edifício, serão colocadas as espécies e partes

do primeira gênero do discernimento, que abraça todas as espécies e partes dos outros sete

gêneros, que serão explicados neste tratado, começando por enumerar, no capítulo seguinte,

as sete partes que são convenientes à natureza de cada um dos governantes. Nas paredes

circulares sobre o pavimento, serão colocadas as sete proporções convenientes a cada

governante, e mais acima, na mesma parede, os sete movimentos, e assim por diante serão

colocadas as sete cores, as sete luzes e as sete perspectivas, que se estenderão até a arquitrave

que está sobre a cabeça dos governantes. E estas são as cinco partes da teoria da pintura. As

partes da prática iniciam-se sobre a cornija, na cúpula, onde estão as sete partes da

481 Vemos aqui a afirmação da principal caractéristica de sua teoria artística: a diversidade de maneiras, todas distintas entre si e perfeitas. 482 Cfr. Tratatto, II, cap. 7. Robert Klein (op. cit., vol. II, introd., p.472) fala sobre o papel do livro do movimento na elaboração do livro dos governantes. O cerne da teoria do temperamento de Lomazzo já se encontrava no Livro II do Trattato: a classificação dos gestos convenientes a determinadas emoções. Sobre esta questão, também indico cfr. Chai, Gian Paolo Lomazzo and The art of expression, cap. III e capítulo 2 (seção 1) desta dissertação. 483 Sobre esta questão, Schlosser (op. cit, p. 397) aponta para velha figura retórica da "psychomachia" prudenciana, ou seja, a oposição vício-virtude, "mas é, ao mesmo tempo, a tentativa barroca de uma psicologia da arte através dos mais primitivos meios", enquanto Klein (cit., vol. II, p. 538, comentário ao capítulo), afirma que esta oposição não é necessariamente contraditória, mas uma ambivalência dos influxos planetários, ou seja, aspectos bons e ruins de uma mesma influência astral sobre o caráter, opinião da qual partilho. L. transcreve aqui os aspectos bons e ruins estabelecidos pelos astrólogos em relação às influências de cada planeta, sobretudo baseado em Agrippa (De Occulta Philosophia, III, cap. 38 e 39).

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composição aplicadas às partes anteriores484. E mais acima, no próprio teto, estarão as sete

partes da forma, que se estendem até a abertura da lanterna, de onde descende a luz que

ilumina todo o templo. Este, mesmo sendo bastante iluminado e claro, não pode ser visto

senão pelos que são dotados do dom divino, que acompanha somente quem nasce com esta

arte, ou seja, quem não a alcançou somente com estudo, mas que foi privilegiado pela própria

natureza. Contudo, não desejo afirmar que o prazer desta minha Ideia seja reservado a apenas

alguns, mas devo dizer, e sei que hão de concordar comigo, que apenas aqueles tais serão

capazes de penentrar completamente nela e de descobrir seus mistérios ocultos, assim como

os que possuem as mãos preparadas para o serviço de seu engenho485.

Agora, retornando à forma dos nossos governantes da pintura, que revelaram a

excelência da arte com seu claríssimo esplendor, sendo que muitos que seguiram e seguem

seus rastros tornaram-se famosos, dos quais alguns serão com louvores nomeados nesta minha

modesta, mas nobre Ideia, descoberta por mim, para a honra da Itália e da pintura. A primeira

estátua é feita de chumbo486, que revela a contemplação sóbria e estável do florentino

Michelangelo Buonarroti, que foi pintor, escultor, estatuário, arquiteto e poeta, imitador de

Dante, como se pode constatar em seus versos apresentados por Varchi487 e em alguns

conservados pelo cavalheiro aretino e escultor Leone Leoni. Em seu pedestal são esculpidos

os pintores e escultores opostos a ele, petulantes, ansiosos, entediados, melancólicos, tristes,

obstinados, rígidos, desesperados, mentirosos, invejosos, etc488.

A estátua do segundo governante é feita de estanho, cujo significado remete à

majestade de Gaudenzio Ferrari, que ele maravilhosamente expressou nas coisas divinas e nos

mistérios da nossa fé. Nascido em Valdúgia, foi pintor, modelador, arquiteto, ótico, filósofo

natural e poeta, tocador de lira e de alaúde. Os pintores contrários a ele, que, em parte, serão

484 A composição ensina como aplicar e unir as cinco partes teóricas convenientemente e de acordo com a storia : "...poiché ella è quella sola che, congiungendo tutte le altre parti insieme, riduce tutto il fascio dell'arte quasi per sé solo alla cognizione de i mortali" (Trattato, VI, cap. 1, pp. 242-3); E "...non essendo questa pratica altro che quella ragione con la quale le parti si compongono nelle opere di pittura..." (Tratt., VI, cap. 2, p. 244). 485 Cfr. comentário ao capítulo, capítulo 4 (seção 2-J) desta dissertação. 486 Este quadro de associações de planetas, metais e características de temperamento pode ser encontrado na tradição mágico-astrológica, e, no caso de L., sua fonte mais evidente é Agrippa (De Occulta Philosophia, II, cap. 22, e sobre os temperamentos, III, cap. 38). 487 Due lezioni sopra la pittura e la scoltura, Florença, 1546. 488 A descrição dos vícios dos governante pode ser encontrada em Cornelio Agrippa, De Occulta Philosophia, III, 39.

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nomeados junto com outros no terceiro capítulo depois deste, onde se trata do movimento, são

igualmente entalhados em baixo-relevo em seu pedestal, e são avaros, tiranos, vis e abjetos489.

A terceira estátua é de ferro, elemento que representa a grandíssima fúria e o

orgulho que Polidoro Caldara da Caravaggio dá às suas figuras. Os opostos a ele, também

esculpidos em seu pedestal, são os impetuosos, arrogantes, audaciosos e obstinados.

A estátua do quarto governante é feita de ouro, que demonstra o esplendor e a

harmonia das luzes do florentino Leonardo da Vinci, pintor, estatuário e modelador, muito

perito em todas as sete artes liberais, tocador de lira tão excelente que superou todos os

músicos de seu tempo e nobilíssimo poeta, que deixou escrito muitos livros de matemática e

de pintura, os quais mencionei em muitas ocasiões. Opostos a ele, esculpidos em seu pedestal,

são os imperiosos, ambiciosos e aqueles que se vangloriam.

A estátua do quinto governante é feita de cobre, que aponta para a gentileza, a

beleza, a graça e a amabilidade de Rafael Sanzio de Urbino, grandíssimo pintor e arquiteto.

Opostos a ele são os pintores enganadores, desleais, arrogantes e de maus hábitos, escolpidos

em seu pedestal.

A estátua do sexto governante é feita de mercúrio líquido congelado, que significa

a prudência sagaz do pintor mantovano Andrea Mantegna e seu contrário em seu pedestal, são

os fraudulentos, intrigueiros, e prontos para fazer maldades.

A estátua do último governante é feita de prata, que demonstra a singular

temperança de Tiziano Vecellio de Cadore, raríssimo pintor, e seus adversários, entalhados

em seu pedestal, são instáveis, incertos e distantes do verdadeiro conhecimento das coisas

naturais490.

Capítulo X

Do fundamento das sete principais partes sétuplas da pintura e sobre quem as

governam.

Até aqui, colocamos sete governantes em nosso templo, que quase como colunas

dão-lhe sustentanção. Ora, porque sete também são as principais partes da pintura, que já

dissemos serem a proporção, o movimento e as outras, e em cada uma delas existem sete

489 Nenhum pintor oposto a Gaudenzio é nomeado no capítulo 12. Ciardi (op. cit., vol. I., p. 280) afirma que é possível que Lomazzo tivesse um projeto de compor uma lista de pintores que não deveriam ser imitados, mas que, por prudência ou oportunidade, foi deixado de lado. 490 A descrição dos governantes também pode ser encontrada no Rime, 1587. Cfr. nota 334 desta tradução.

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maneiras, todas excelentes e dignas de imitação, assim como sete são os governantes, cada um

com uma maneira particular e própria de dar, por exemplo, proporção, movimento e cor,

discorrerei sobre todas estas sete partes, apontando os sete gêneros, ou melhor, maneiras de

cada uma delas, e relacionando-as com o seu respectivo governante. Mas, primeiramente,

devemos saber que o fundamento de tudo, ou seja, das partes principais e de seus gêneros, que

é a base que dá estabilidade a tudo e onde toda a beleza tem origem, corresponde ao que os

gregos chamavam de euritmia, e que nós chamamos de desenho. Pois ele entra e penetra em

tudo de acordo com as espécies e partes do discernimento, como explicarei, detalhe por

detalhe, nos próximos capítulos. E porque, embora cada um dos governantes tenha sua própria

maneira, que corresponde à natureza do planeta ao qual foi comparado e submetido, todavia

ele também participou, com maior ou menor intensidade, da maneira dos outros. Isto será

discutido, de certa maneira, no penúltimo capítulo desta Ideia, afim de demonstrar como que

tantos gêneros podem ser reduzidos a um só, e que nisto consiste toda a essência do

trabalho491.

491 Nete parágrafo, Lomazzo explica e sintetiza o núcleo de seu pensamento mágico-astrológico. A partir do capítulo nove, inicia-se a teoria dos Governantes, que compreende os capítulos 9-17, 33 e 37 (Klein, 1959; Ackerman, 1964). Sobre a teoria de L. e a euritmia, v. nota 334. O termo euritmia deriva de Vitrúvio (De. arch, I, 2 (3)), e este tema será aprofundado no cap. 37. J.J. Chai (Idea of the temple (...), 2013, p. 213) explica:

"cada governante incorpora outros estilos em diversos graus, da mesma maneira que o indivíduo é submetido a influencias astrais mais fortes ou mais fracas dos diferentes planetas. A perfeição em todos os estilos pode existir apenas em um temperamento neutro/universal, e este, por sua vez, é um ideal impossível, que segundo Michele Savonarola foi possível apenas em Cristo. É importante lembrar que L. foi mal interpretado e considerado um defensor do ecletismo pela crítica".

Esta questão também é abordada por Klein em sua introdução (vol II, pp. 491-502), na qual afirma que a universalidade é um ideal impossível em Lomazzo. Em relação ao disegno, na Tr.R.K., é traduzido por Harmonie Formelle. Em Tr.J.J.C., mantém-se a palavra disegno em italiano. Optei por traduzi-lo para a palavra em português "desenho". Ao dizer "e que nós chamamos de desenho", refere-se aos artistas e teóricos modernos. Sobre o desenho, em Vasari (Vidas, ed. giuntina (1568), cap. XV), encontramos a seguinte explicação:

"Perchè il disegno, padre delle tre arti nostre (...), procedendo dall’intelletto cava di molte cose un giudizio universale simile a una forma overo idea di tutte le cose della natura, la quale è singolarissima nelle sue misure, di qui è che non solo nei corpi umani e degl’animali, ma nelle piante ancora e nelle fabriche e sculture e pitture, cognosce la proporzione che ha il tutto con le parti e che hanno le parti fra loro e col tutto insieme; e perché da questa cognizione nasce un certo concetto e giudizio, che si forma nella mente quella tal cosa che poi espressa con le mani si chiama disegno, si può conchiudere che esso disegno altro non sia che una apparente espressione e dichiarazione del concetto che si ha nell’animo, e di quello che altri si è nella mente imaginato e fabricato nell’idea".

A simetria/euritmia, em Vitrúvio, ou o desenho, em Vasari, surge da experiência da visão, que, "escolhendo do multiplo o particular e reunindo as particularidades escolhidas numa totalidade nova, confere mais clareza e universalidade" (Panofsky, op. cit., p. 61). É uma ideia de beleza que se dá através do conhecimento empírico das formas visíveis, que passa para o intelecto do pintor, no qual as formas belas serão selecionadas. Em L., a euritimia é regulada pelo discernimento (preparação e ordenadação da pintura no todo), sendo o discernimento aquele que permite,"através das faculdades que nos foram concedidas por Deus, fazer surgir a beleza e a complexidade das ideias que lá chegaram por meio de canais diretos a partir da Suprema Idea". Ou seja, como afirma Ciardi (op. cit., vol. I, p. 282), o desenho para Lomazzo é tratado mais "como

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Começarei, então, primeiramente pela proporção, a primeira parte da pintura,

localizada na base das sete paredes circulares do templo, e seguirei está ordem para as demais

partes.

Capítulo XI

Das sete partes ou gêneros da proporção 492

Começando pela primeira parte da pintura, que é a proporção, qualquer um que

mediocremente entenda desta arte, facilmente perceberá o quão diferente ela é em cada um

destes grandes artistas. Pois Michelangelo deu às suas figuras as proporções de Saturno,

fazendo pequenos a cabeça e os pés, e longas as mãos. Compôs os membros com grandíssima

sapiência e os formou com amplitude e modelagem admiráveis, segundo o relevo dos

músculos descomunais, preservando a ordem do desenho e da anatomia493. Foi escrito que ele

costumava dizer que a proporção deveria estar nos olhos dos homens para que saibam julgar

corretamente aquilo que vêem494.

Gaudenzio Ferrari, o segundo governante, seguiu a proporção de Júpiter, dando

aos seus corpos graça e dignidade, formando-os com músculos delicados, convenientes à

natureza de Júpiter495.

Polidoro da Caravaggio, o terceiro governante, adotou a proporção de Marte, que

é grande, terrível e feroz, muito parecida com as principais figuras antigas que são vistas por

toda Roma e fora dela, e, em suma, conforme a natureza de Marte.

conceito ideal que, quase metafisicamente [por ser regulado pelo discernimento], equilibra todas as outras sete partes, sendo motivo inspirador e fundamento comum delas". A partir da leitura dos capítulos 33 e 37, poder-se-á notar a noção neoplatônica que Lomazzo adota para abordar a Harmonia das proporções (musical) e a euritmia. Portanto, neste sentido, nosso autor se difere dos autores precedentes, já que não fundamenta sua ideia de harmonia e beleza na experiência empírica do artista. Esta questão é discutida no cap. 4 (seção 2 - K) desta dissertação. Cfr. comentário da Barocchi, op. cit., pp. 2031 ss. 492 O Trattato, I, 29 e 31, e VI, 3 apresentam parcialmente conceitos expostos aqui. A conveniência entre uma proporção e um determinado tipo pode ser encontrada em Vitrúvio, I, 2: cada ordem deve se adaptar ao templo de uma divindade. Esta ideia vitruviana retomada por Filarete (estátua dórica, jônica e coríntia) e Dürer (proporções de Vênus, Apolo e Hércules). Cfr. Ciardi, op. cit., vol. I, p. 281; Ainda, ver o comentário da Barocchi, op. cit., pp. 1885 ss. 493 Tanto Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 282.) quanto Klein (op. cit., n.t., vol. II, p. 683) apontam para o fato de que a dedução que Lomazzo faz do tipo saturnino está baseada na crítica e na a observação das obras de Michelangelo, e não na usual tipologia literária de saturno (magro, lívido, triste). 494 cfr. nota 169; Barocchi, op. cit., p. 1824: trecho da carta enviada por Giorgio Vasari a Martino Bassi. 495 É importante observar que a descrição que Lomazzo dá ao estilo de cada um dos governantes surge de uma combinação de três fatores: ela é uma consequência de seu sistema astrológico-tipológico; ela também é derivada de sua própria atuação enquanto observador e crítico; e ela também é bastante influenciada pela crítica do período, sobretudo por Vasari. Sobre a questão da visão crítica de L. presente em seu sistema astrológico- tipológico, cfr. Annamaria Paris, Sistema e giudizi dell'Idea del Lomazzo, 1954.

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O quarto governante, Leonardo, manteve a proporção do Sol, e tão perfeitamente

a possuía que escreveu diversos livros sobre ela nos quais desenhou todas as ações de um

corpo. Além disso, desenhou a anatomia, a proporção dos cavalos e o esfolamento dos

membros humanos com tanta diligência e relevo que tenho por certo que ninguém possa

igualar-se a ele, com exceção do grande Apolo, deus e governante das ciências.

Rafael, o quinto governante, seguiu a proporção de Vênus, como a mais racional e

conveniente de todas as proporções. Os antigos matemáticos babilônicos, que atribuíram a

cada um dos planetas um animal compatível com sua natureza, como a Saturno o dragão

devido à "terribilidade", a Júpiter a águia devido à nobreza, a Marte o cavalo devido à altivez,

ao Sol o leão devido à força moral, a Mercúrio a serpente devido à prudência, e à Lua o boi

devido a sua humanidade, atribuíram a Vênus o homem, pois, tendo ele nascido animal

racional, deve reger e moderar todos os seus afetos.496. E, como cada um dos governantes de

nosso Templo corresponde a um governante do céu, igualmente se pode atribuir-lhes um

destes animais. Ora, Rafael alcançou tamanho patamar nesta proporção venérea que se pode

considerá-lo maravilhoso, especialmente por tê-la dado às suas figuras de acordo com a

qualidade e grau de cada uma com singular juízo e discernimento.

O sexto é Andrea Mantegna, que adquiriu a sutil proporção mercurial e foi

elegante, inteligente e profundo em sua maneira.

Em Tiziano, o último governante, encontra-se a proporção lunar, que varia de

acordo com os diversos temas da natureza representados por seu pincel.

Capítulo XII

Das sete partes ou gêneros do movimento.

Os grandes mestres, apesar de também terem se diferenciado nesta parte, tão

difícil quanto importante para o pintor, ainda assim tiveram uma semelhança na expressão do

movimento: a forma piramidal de fogo, fugindo dos ângulos agudos e das linhas retas, como

se pode ver principalmente em Michelangelo, sempre o primeiro entre todos, que jamais as

496 Segundo Ciardi (op. cit., loc. cit.), esta relação entre animais e planetas pode ser encontrada em manuais de mitologia (ex. Cartari; Valeriano). Ainda, a relação dragão/saturno não existe nas fontes literárias, contudo, é bastante presente na iconografia simbolizando o tempo. A serpente de mercúrio, por sua vez, aproxima-se da figura do caduceo. A identificação entre Venus e o Homem é um pouco mais enigmática, segundo Ciardi, mas que pode ser encontrada em Agrippa, De occ. phil., III, 49.

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utilizou497. Daí nasce toda a graça que se vê em suas figuras tão deleitosas aos olhos, que, no

entanto, não se alcança somente através da força do estudo e da arte, mas se obtém sobretudo

através de um dom da natureza. Razão pela qual ver-se-á que qualquer afeto, mesmo que

celerado e vicioso, que for necessário ser expresso pelo pintor nascido com este dom,

acompanhado pela arte, mesmo que de maneiras diversas, será sempre reconhecido como obra

de mãos mestras e excelentes devido a esta graça498. Contrariamente, aquele que não possui

tal dom, mesmo que tenha um profundo conhecimento de desenho, jamais poderá formar

movimentos graciosos, mas resultarão sempre rígidos e desagradáveis499.

Mas, assim como nisto foram os governantes parecidos entre si, da mesma forma

diferenciaram-se em todo o restante, como disse no princípio. Pois Buonarroti expressou os

movimentos da profunda contemplação, da inteligência, da graça, do juízo, da sólida

especulação, de propósito sábio e inabalável. Ferrari demonstrou os movimentos da majestade

religiosa, da prudência, da temperança, da piedade, da justiça, da graça, da fé, da equidade e

da clemência. Polidoro expressou a veracidade a força de ânimo500, a coragem de espírito, o

ardor da animosidade, a força de ação e a impetuosidade irrefreável da alma. O movimentos

de Leonardo da Vinci são os da nobreza de espírito, da facilidade, da clareza do imaginar, a

faculdade da sapiência501, pensar e fazer, do maduro conselho, resolução unida à beleza da

face502, da justiça, da razão, do juízo, da separação das coisas direitas das injustas503, da

497 Cfr. Trattato, I, 22; I, 31 (de onde nasce todas as proporções: a forma piramidal que deriva da deusa Vênus), e VI, 65; Schlosser, op. cit., pp. 449 ss.; Barocchi, La vita di M., IV, pp. 1978 s; Ciardi, op. cit., vol I, pp. 283-4). 498 Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 283) e Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 683) apontam para uma derivação de Aristóteles (Poetica, 1448b): é possível, através da perfeita representação mimética das coisas, encontrar prazer estético em coisas de natureza desprezível. 499 No trattato, II, cap. 2 (della necessità del moto), L. discorre sobre esta relação entre o movimento e o dom divino:

"Che sí come al poeta fa di mestiero ch'insieme con l'eccelenza dell'ingegno abbia certo desiderio et una inclinazione dell volontà, onde sia mosso a poetare, il che chiamavano gl'antichi furor d'Apollo e delle muse, cosí ancora al pittore conviene che, con le altre parti che si gli ricercano, abbi cognizione e forza d'esprimere i moti principali, quasi come ingenerata seco et accresciuta con lui sino dalle fascie (...)".

Sobre a importância do movimento para a constituição da teoria da pluralidade de maneiras de Lomazzo, cfr. Chai, The expression of Art, 1990, cap III. 500 No texto em italiano: "il non smarrito perdimento d'animo"; Tr.R.K: " la véracité impavide"; Tr.J.J.C: "invincible veracity". Klein (op. cit., p. 755, "note sur le texte") aponta para o texto de Agrippa (op. cit., III, 38), afirmando que a expressão de L. seria uma compreensão equivocada de imperterrita veritas. 501 No texto em italiano: "natura di sapere"; Na Tr.R.K: "La faculté de la sagesse"; Na Tr. J.J.C: "faculty of understanding"; Em Agrippa, III, cap. 38: Sciendi natura. 502 No texto em italiano: "del maturo consiglio"; Tr. R.K.: "la mûre delibération"; Tr. J.J.C: "mature reflection"; Agrippa (loc. cit): maturitas, consilium.

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nobreza da luz, da vulgaridade das sombras da ignorância504, da profunda glória da verdade e

da caridade, rainha de todas as virtudes. Rafael representou os movimentos do amor ardente,

da esperança, da suavidade505, da venustidade, da gentileza, do desejo, da ordem, da

concupiscência, da beleza universal, do desejo, da advertência, da grandeza do todo,

exprimindo a divindade em tudo, a majestade506. Em Mantegna, vê-se os movimentos da

prudência, da vivacidade da operação, da solidez, da clareza, do argumento, do vigor do

saber, da agudeza do engenho, do discurso da razão507, do choro e da mobilidade veloz e

restrita em si. Tiziano representou os movimentos da consonância universal, da fecundidade,

da força de operar e fazer grandes coisas, da temperança moderada com a expressão das

pessoas mais nobres508, e outros movimentos que, sendo menos marcantes, tanto nele quanto

nos demais governantes, não me parecem dignos de serem observados509.

503 No texto em italiano: " del giudizio, del separamento delle cose ingiuste delle rette"; Na Tr.R.K: "le jugement qui sépare ce qui est droit de ce qui est inique"; Na Tr. J.J.C: "judgment in distinguishing things unjust from just"; Em Agrippa (loc. cit.): iudicium recta ab iniquis disgregans. 504 No texto em italiano: "dell'altezza della luce, della basezza delle tenebre dell'ignoranza"; Na Tr.R.K.: "la hauteur de la lumière, la bassesse des ténèbres de l'ignorance"; Na Tr. J.J.C: "the height of light, the baseness of the darkness of ignorance"; Em Agrippa (loc. cit.): lucem ab ignorantiae tenebris purgans. 505 No texto em italiano: "della speranza, della soavità"; Na Tr.R.K.: "de la douceur, de l'espérance"; Na Tr. J.C.C: "hope, sweetness"; Em Agrippa (loc. cit.): suavissima spes. 506 No texto em italiano: "della venustà, della gentilezza, del desiderio, dell'ordine, della concupiscenza, della beltà universale, del desiderio, del'avvertimento, della grandezza del tutto, esprimendo in tutti la divinità, la maestà"; Na Tr.R.K.: "de la venusté, de la noblesse, du désir, de l'ordre, de la consupiscence, de la beauté universelle, du désir de propagation, de la grandeus du monde, et en y exprimant toujours la divinité, la majesté"; Na Tr. J.J.C: "loveliness, Kindness, disere, order, concupiscence, universal beauty, the desire to propagate, and the grandeur of the world"; Em Agrippa (loc. cit.): desiderii motus, ordo, concupiscentia, pulchritudo, suavitas, incrementi desideriu e suimet propagatio. 507 No texto em italiano: "dell'acutezza dell'ingegno, del discorso della ragione"; Na Tr.R.K.: "de la pénétration d'esprit, de la raison discusive"; Na Tr.J.J.C: "acute inventive genius, discursive reason"; Em Agrippa (loc. cit.): acuitas ingenii, discursus rationis. 508 No texto em italiano: "della consonanza del tutto, della facondia, della forza di operare e di far gran cose, della temperanza moderata, con le arie delle genti più nobili"; Na Tr.R.K.: "de la consonance universelle, de la fecondité, de la force d'agir et de réaliser des grandes choses, de la tempérance modéree dans l'expression des personnes les plus nobles"; Na Tr.J.J.C: "universal harmony, fecundity, the force to act and accomplish great things, moderate temperance with the beraing of the noblest men"; Em Agrippa (loc. cit.): pacifica consonantia, foecunditas, uis generandi e augendi, crescendi e decrescendi, e moderata temperantia. 509 Esta caracterização astrológica dos movimentos já estava presente no Tratado, no livro II, cap. 7 (De i moti de i sette governatori del mondo). Ainda, como foi apontado por Ciardi (op. cit., n. t., vol I, p. 284) e Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 684), este segundo parágrafo é praticamente uma tradução do cap. 38 ("Os dons divinos que o homem pode receber do alto de todas as ordens celestes e das inteligências") do livro III do De Occulta (...) de Agrippa, onde se descreve os dons e qualidades dos sete planetas:

"A fonte suprema dos bens derrama sobre os homens toda classe de dons e

virtudes através dos sete planetas, como mediante instrumentos: por Saturno, alta contemplação, profunda inteligência, grave juízo, raciocínio sólido, estabilidade e firmeza nas resoluções; por Júpiter, inquebrantável prudência, temperança, benignidade, piedade, modéstia, justiça, fé, graça, religião, equidade, clemância e realeza; por Marte, veraciade

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XIII

Das sete partes ou gêneros da cor.

Não se divisa menor diversidade entre estes grandes homens na terceira parte da

pintura, que é a cor, em relação ao que foi observado na proporção, e, entretanto, diante desta

diversidade, não falta excelência em nenhum deles. Primeiramente, Buonarroti subordinou o

colorir à fúria e à profundidade do desenho, esquecendo em parte a qualidade do colorir e

guiando-se apenas por suas fantasias e bizarrices. Por isso realizou de modo universal figuras

tão belas quanto robustas conforme sua intenção, de tal maneira que todo aquele que as vê,

por mais inteligente que seja, confessa que não se pode fazer mais do que ele fez em todas as

suas obras, nem no desenho nem no colorido, e principalmente na fachada do Juízo Final, que

quanto mais se contempla, mais se descobre sempre bela e maravilhosa, levando em

consideração, de maneira minuciosa, os escorços admiráveis e os artifícios diversos nela

encontrados, que lhe dão a reputação de mais nobre e excelente obra que existe sobre a terra

510.

Gaudenzio serviu ao ornamento e foi em todas as coisas, de modo geral, um

colorista elegantíssimo, embora tenha sido maravilhoso, através de um dom especial da

natureza, em exprimir todo o tipo de panejamento com graça, tanto de veludo, de tafetá e de

outros tecidos de seda, assim como de lona e de lã, com tanto desenho e fúria que jamais

intrépida, firmeza e força indomáveis, valentia ardorosa, força para atuar e executar, veemência invariável de espírito; pelo Sol, espírito nobre, limpa imaginação, gênio científico e resolução, maturidade, conselho, zelo, luz de justiça, razão e discernimento do justo para com o injusto, que separa a luz das trevas da ignorância, concorda a glória de ter falado a verdade, e a caridade que é a rainha de todas as virtudes; Por Vênus, amor fervente, belíssima esperança, impulsos do desejo, ordem, concupiscência, beleza, suavidade, desejo de desenvolvimento, opulência própria; Por Mercúrio, fé penetrante e crença, raciocínio claro e definido, força para interpretar e proclamar, nobreza de elocução, sutileza de espírito, riqueza de racicíonio e prontidão dos sentidos; Pela Lua, concórdia pacífica, fecundidade, força de produzir e aumentar, crescimento e descrescimento, temperança moderada e solicitude que, atuando tanto em segredo como em público, conduz a todas as coisas, preocupa-se com a terra enquanto modo de coordenar nossa vida e de procurar para si e para os demais desenvolvimento" (trad. livre).

510 Annamaria Paris (op. cit., p. 192), ao destacar a importância do juízo crítico pessoal de L. inserido na estrutura de sua teoria da arte, aponta para esta consideração do colorido de Michelangelo como sinal do entendimento de L. do estilo do grande mestre toscano. Ao afirmar a subordinação da cor ao desenho em Michelangelo, L. não fala de uma limitação do mestre em relação a esta parte da pintura, mas expressa seu entendimento em relação à forma como Michelangelo lida com o colorido, que faz parte de seu estilo pessoal, não sendo nem inferior nem superior, mas expressão da tipologia artística representada pelo artista. E assim L. fará em relação a todos os demais governantes. No que se refere à descrição do Juízo Final, para além da influência da crítica vasariana, parte desta percepção vem da obserção empírica do afresco de Michelangelo, já que Lomazzo esteve em Roma na década de 1560 (Cfr. cap. 1 desta dissertação). Sobre o impacto da crítica do Juízo Final na teoria de Lomazzo, cfr. Chai, Gian Paolo Lomazzo and The art of expression, cap. II.

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outro poderá igualar-se a ele. E nos diversos tecidos furta cor, nos panos nobres, e

especialmente nos panos flutuantes ou que envelopam os corpos, também imitou

afortunadamente o natural e o verdadeiro, exibindo e brincando caprichosamente de milhares

de maneiras, que quem não viu dificilmente acredita. Diversamente do que fez Buonarrotti,

que tinha o hábito de fazer os panejamentos parecendo colados aos músculos, apesar de ter

utilizado um outro caminho mais robusto e terrível no teto das sibilas e dos profetas, de forma

que os panos com duas dobras envolvessem toda a figura. Ademais, Gaudenzio teve

grandíssima graça ao compor cavalos, camelos e outros animais, de maneira que parecia ter

nascido propriamente para isto, e nos cabelos foi belíssimo 511.

Polidoro utilizou e introduziu o colorir claro-escuro primeiro que todos, como do

mármore, do bronze, do ouro e de outros metais, de pedras e de tudo o que, em suma, ocorre

ao pintor fazer. Nisto foi único no mundo, representado de todas as maneiras as características

e os gestos das principais antiguidades encontradas em Roma, e os jogos, os sacrifícios, os

triunfos, as batalhas e os troféus, escolhidos por ele por serem as coisas mais difíceis da arte.

Ainda, foi um inventor de grotescos muito bem sucedido, e expressou-os com tanta facilidade

que tenho como certo que nenhum outro possa se comparar a ele. Finalmente, na

indumentária, nas armas, nos escudos, nos brasões e em outros instrumentos pertencentes à

guerra, ocupou o primeiro grau de excelência512. Não desejo omitir que as pinturas sobre as

fachadas, como notavelmente realizou Polidoro, foram introduzidas primeiramente por César

Augusto, já que antes dele não é sabido que os pintores pintavam sobre as fachadas, mas

somente sobre a madeira. Por isso eles eram pagos com altíssimos valores e a arte tinha

grande reputação. Depois, pouco a pouco começou a se tornar vil, quando Augusto fez pintar

511 Ainda sobre o juízo crítico e a sensibilidade de Lomazzo ao lidar com as diferentes maneiras dos governantes, cfr. Paris, op. cit., p. 192:

"Certo el qualità sono riferite all'imitazione, canone invariabilie dell'estetica cinquecentesca, ma il Lomazzo coglie proprio gli aspetti più caraterristici del pittore (...) e cioè il panneggiare fantasioso, capriccioso e ostentato con compiacimento, i cangianti del colore, il colore che diviene essenzialmente decorazione rica e variata. Che queste siano qualità per il Lomazzo, lo mostra il confronto che egli fa fra il panneggiare immaginoso e libero del Ferrari e quello di Michelangelo, che abolisce e limita ogni panneggio per renderlo aderente all'energia plastica delle sue costruzione anatomica. Tutto ciò acquista ancor più significato quando osserviamo che il Lomazzo non si limita a considerare solo queste qualità di Gaudenzio, ma ne nota altre, come ad esempio la scelta dei suoi soggetti (...) cioè proprio in quei particolare descrittive che meglio si prestavanno a esprimere le forme del suo stile, e che il Lomazzo intende con sottile intelligenza".

512 A inserção de Polidoro no Hall dos governantes, segundo Annamaria Paris (op. cit., p. 191), demonstra um aspecto do gosto pessoal de Lomazzo, apesar de sua presença não ser algo tão inusitado, já que seu papel enquanto o representante da pintura mural e do gênero do grotesco é destacado por Vasari e por outros críticos.

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tanto as casas quanto os cavalos que portavam vestes, a tal ponto que agora se adornam com

pinturas até os banheiros públicos 513.

Leonardo coloriu quase todas as suas obras a óleo, cuja maneira de colorir foi

inventada primeiro por Jean de Bruges514, algo que os antigos não conheciam515. E é por isso

que se lê que o grande Protógenes de Kaunos refazia quatro vezes sua pintura para que, caso

caísse uma camada de tinta, restasse outra. O mesmo fez Apeles em sua tão louvada Vênus,

que durou até o tempo de Augusto e foi, depois, conservada por Nero danificada como era516.

Igualmente, se deixarmos os antigos e falarmos dos tempos modernos, vêem-se pinturas

coloridas à têmpera no tempo de Leonardo. Eu tive dois quadros, um de Mantegna e outro de

Bramante, coloridos desta forma de maneira que possuíam sobre sua extensão uma certa água

viscosa, os quais limpei e fiz parecer como se tivessem sido feitos agora. Ora, Leonardo foi

quem, deixando de utilizar a têmpera, passou ao óleo517, que costumava destilar no alambique,

razão pela qual todas as suas obras destacavam-se nas paredes, assim como, entre outras,

pode-se ver na maravilhosa batalha localizada no Conselho de Florença, e, em Milão, a Ceia

de Cristo em Santa Maria delle Grazie, danificadas pela preparação que ele empregou na

camada inferior518. Temos que lamentar profundamente que obras tão excelentes se percam,

restando-nos somente os desenhos, que certamente não serão vencidos jamais nem pelo

tempo, nem pela morte, nem por outro acidente, mas por seu grandíssimo louvor e gloria

viverão eternamente. Ele serviu à grandeza do desenho em seu colorido e plenamente a

alcançou, de tal modo que a forma dos homens, tanto os grandes quanto os pequenos, foi

representada com uma nobre fúria de colorido, nela exprimindo diligentemente seus ritmos,

513 Cfr. Plinio, XXXV, 116-9; Trattato, VI, 13 e VI, 27; Ciardi, op. cit., n.t., vol I, p.286; Klein, op. cit., vol. II, p.685. 514 Jan van Eyck. 515 A notícia da invenção da pintura a óleo encontra-se em Vasari, no cap. XXI ("del dipingere a olio, sul tavolo e sul tela"). 516 Cfr. Plinio, XXXV, 99-100; XXXV, 88. (Ciardi, op. cit., loc. cit.; Klein, op. cit., loc. cit.). 517 Não em um sentido absoluto, como bem destaca Ciardi (op. cit., loc. cit.), mas no caso da pintura mural. 518 Klein (op. cit., loc. cit.) e Ciardi (op. cit., loc. cit.) destacam o efeito confuso de toda esta passagem sobre a pintura a óleo, pois, em um primeiro moment, L. louva a durabilidade da ténica em Protógenes e Apeles, e, depois, passando aos modernos, faz uma crítica à durabilidade da têmpera sobre a tela no caso de Mantegna e Bramante, e, em seguida, passa para o caso de Leonardo, mas abordando dois exemplos em que a técnica empregada por Leonardo na pintura mural não foi bem sucedida, a Batalha d'Anghiari (revestimento da superfície com estuque e e preparação das cores com óleo), que neste momento já não mais existia, tendo se deteriorado e sido substituída por um afresco de Vasari em 1557, e o Cenacolo vinciano, copiado pelo próprio L. para o refeitório de Santa Maria della Pace em Milão (esta obra não existe mais) por volta de 1561(cfr. capítulo 1 desta dissertação), mas que já neste período encontrava-se em um estado de conservação complicado (fora utilizada uma mistura de têmpera com óleo). Sobre a questão do Cenacolo vinciano e L., cfr. Bossi, Del Cenacolo di Leonardo da Vinci, 1810.

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dando-lhes sombras e luzes de maneira variada, como camadas de véus sobrepostas. As outras

coisas menores como mechas de cabelos, cabeleiras, os pêlos, as flores, as ervas, as pedras e

os panos singularmente coloriu tão amavelmente e artificiosamente que o olho mortal nada

mais sabe desejar.

Rafael foi o mais racional na distribuição das cores e, particularmente, costumou

sempre fazer os panejamentos um pouco mais escuros que as carnes, dando, no entanto,

beleza e relevo tanto a um quanto a outro, e servindo sempre atentamente ao desenho; e por

isso ele compôs em suas figuras todos os membros com tanta majestade e proporção,

adornando-os com todas as belezas celebradas nas pinturas dos famosos antigos, que jamais

em nenhuma época ver-se-á nem superior e nem igual a ele. Além disso, louva-se e admira-se

nele principalmente a nobreza, beleza e graça, tanto nos cavalos quanto nos outros animais,

nos edifícios, nos tecidos, nas mechas de cabelo e nas cabeleiras espalhadas ou ajeitadas e

amarradas em diversas voltas.

Andrea Mantegna coloriu com diligência e acuidade de engenho, de tal forma que

nesta parte superou em grandes distâncias todos os outros519.

Tiziano, entre os demais, resplandece como o Sol entre as pequeninas estrelas,

não somente entre os italianos, mas entre todos os pintores do mundo, tanto nas figuras

quanto nas paisagens, igualando-se a Apeles, o primeiro inventor dos trovões, das chuvas, dos

ventos, do Sol, dos relâmpagos e das tempestades520. E Tiziano coloriu especialmente, com

uma maneira muito agradável, os montes, os tecidos, as árvores, os bosques, as sombras, as

luzes, as inundações do mar e dos rios, os terremotos, as rochas, os animais e todo o resto que

pertence às paisagens. E nas carnes possuiu tanta beleza e graça com suas misturas e matizes,

que parecem reais e vivas, e, principalmente, a adiposidade e maciez que naturalmente vemos

nelas. O mesmo êxito demonstrou no colorir os tecidos de seda, de veludo e brocados, as

couraças diversas, os elmos, os escudos e as cotas de malha, e outras coisas parecidas, com as

luzes tão vivazes que a verdade lhe é inferior. E nas mechas, no suor de homens e mulheres,

velhos e jovens, nos efeitos particularmente de alegria (como se vê em sua Vênus e Adônis e

519Parece-me que a crítica sobre o colorido de Mantegna está mais ligada à caracterização do temperamento dentro do sistema astrológico de L. Ainda, Annamaria Paris chama atenção para a concepção que L. tem da cor, em um sentido diferente do nosso, referindo-se à expressão do relevo. Mais adiante, ao abordar a questão da luz, esta noção fica mais clara. Mategna seria um "colorista" para L. na medida em que trabalha bem a passagem gradual do claro-escuro (Paris, op. cit., pp. 194-5). 520 Cfr. Plinio, XXXV, 96; Varchi, p.37, Pino, p. 110, Gilio, p. 22 e p. 42 (todos na F. Memofonte e Acc. della Crusca). Carta de Dom. Lampsonius a Tiz. (Gaye, Carteggio inedito d'artisti..., III, 1840). Cfr. Ciardi, op. cit., n.t., vol. I, p. 287.

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em sua Danae que recebe ouro do céu521) e finalmente em todas as coisas, com tanta

naturalidade que não é possível que mais se possa esperar da mão e da arte humana522.

XIV

Das sete partes ou gêneros da luz.

Os sete governadores observaram analogamente diversas maneiras de iluminar,

que é a quarta parte da pintura. Uma vez que Michelangelo deu às suas figuras luzes terríveis,

mas que com certa astúcia de sua arte terminam em seus contornos delicadamente, e faz

aparecer os músculos e seus reflexos, com tamanho artifício que se parecem contornados em

profundidade523.

Gaudenzio aplicou uma luz ampla e regulada, com a qual ensinou o modo, que

primeiramente não era conhecido, de exprimir nas figuras dos santos a contemplação das

coisas celestes e o afeto da alma todo voltado à reverência a Deus.

Polidoro, sempre parecido a si mesmo, possuiu uma maneira de iluminar aguda,

vivaz e marcial.

Leonardo demonstra na iluminação que sempre temeu não a aplicar

demasiadamente clara, isto reservando para o melhor local, e buscou fazer o escuro muito

intenso, para esconder os contornos. Por isso que com tal arte alcançou nas faces e nos corpos,

os quais realizou de maneira verdadeiramente admirável, tudo o que a natureza pode fazer. E

nesta parte foi superior a todos, de tal forma que em uma palavra se possa dizer que a luz de

Leonardo é divina.

Rafael deu uma iluminação delicada, amorosa e doce, e assim suas figuras são

vistas, belas, graciosas e bem conectadas aos contornos, e com um relevo tamanho que

parecem que se viram em torno de si, com uma graça própria dele e que jamais pôde ser

demonstrada por outro.

521 Pode ser a Danae do Prado (1554) feita para Felipe II e citada por Lodovico Dolce, ou, pode se tratar da Danae pintada em Roma, e que hoje encontra-se no Museo Nazionale di Capodimonte em Nápoles (1545). 522 Cfr. Pino, p. 104; Dolce, p.200 ss; (F. Mem. e Acc. della Crusca). Sobre a crítica do colorido em Tiziano, cfr. Paris, cit., p. 195. 523 No texto em italiano: "che si giudicano essere contornati di dietro"; Tr.R.K: "que'ils semblent tourner en pronfondeur"; Tr.J.J.C: "that they seemed modeled in depth". A luz de Michelangelo também é descrita por Lomazzo como pontecializadora do desenho, elemento que traduz a força de sua arte e que configura seu estilo. Cfr. Paris, A. op. cit., p. 192.

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Mantegna ligou-se a uma luz viva e minuciosa, mas de uma graça harmônica e

com suma melodia nos reflexos524.

Tiziano, finalmente, utilizou uma luz terrível e aguda, e é por isso que somente

ele, com sua fúria e grandeza, obteve a palma sobre os outros na execução das coisas de

relevo, apesar de ser bastante inferior no desenho e nos contornos525.

XV

Das sete partes ou gêneros das perspectiva.

Resta-nos a quinta e última parte teórica da pintura, onde Buonarroti foi

muitíssimo estupendo, formando por meio dela, entre outras coisas, os escorços das figuras

tão maravilhosos que enganam os olhos de quem deseja examinar os contornos, as sombras e

os reflexos, e seu artifício incompreensível.

Gaudenzio foi, assim como ele, singularmente dotado, mas de modo distinto,

exprimindo-a com tal facilidade e arte que suas coisas pareciam feitas sem nenhuma arte,

tanto que a natureza lhe era fecunda e favorável que embelezava o todo com uma nobre graça

e beleza526.

Polidoro demonstrou ter sido muitíssimo entendedor de perspectiva em todas as

suas obras, mas particularmente cuidou de representar as figuras de acordo com o ponto de

vista do espectador.

Leonardo, da mesma maneira como nas outras partes, foi tão singular quanto raro,

e bem a demonstrou através de tantos tratados e desenhos que deixou posteriormente. E

524 Cfr. nota 518. Sobre a terminologia musical utilizada para descrever um efeito visual plástico, Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 288) indica como paralelo o tratado de Comanini, Il Figino, no qual se descreve o cravo cromático de Arcimboldo. 525 As descrições da luz acompanham a tipologia astrológica e a caracterização psicológica de cada governante de forma geral, mescladas com juízos críticos pessoais de L., que, por sua vez, são muito influenciados pela crítica que lhe antecede, principalmente Vasari. Isto também se estende para as demais partes da pintura, como já foi observado nos capítulos anteriores referentes à proporção, ao movimento e à cor. Esta discussão é relizada por Annamaria Paris, no artigo citado. 526 Aqui se pode observar o argumento em torno do elogio da facilidade, comum na obra de Lomazzo (no cap. II, quando L. discorre sobre a importância do conhecimento do gênio pessoal e da inclinação natural do artista). É interessante notar, diante da descrição do estilo dos dois primeiros governantes, Michelangelo e Gaudenzio, uma oposição simétrica e bem destacada entre ambos, caracterizando duas concepções da expressão artística opostas: uma se dá através da dificuldade, da confusão óptica, da energia e da tensão; outra, através da leveza, do capricho, do ornamento, da aparente facilidade e da clareza compositiva. É possível detectar uma preferência de L. pelo estilo representado por Gaudenzio Ferrari, mestre da escola lombarda à qual pertence. Cfr. Klein, op. cit., vol II, p. 687.

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costumava dizer que, além da perspectiva e dos escorços, era necessário ainda que os claros

fossem a mais cara coisa que na pintura se pudesse ver.

Rafael foi grandíssimo em perspectiva, principalmente no que se refere à

colocação das coisas segundo sua ordem, como se vê em suas arquiteturas e na colocação das

figuras no ponto de vista conveniente. E da razão deste posicionamento, ele foi o nosso

verdadeiro mestre.

Mantegna foi o primeiro que em tal arte abriu-nos os olhos, pois compreendeu que

a arte da pintura sem isto é nula. Por isso nos fez ver o modo de fazer corresponder cada coisa

ao modo de ver, como se pode observar em suas obras, feitas com grandíssima diligência527.

Tiziano, nesta parte, guiava-se por modelos de madeira, de terra e de cera, e destes

extraía as posturas, mas com a distância muito curta e obtusa, e devido a isto as figuras se

tornavam muito grandes e terríveis, e as outras mais atrás muito curtas, fazendo quase um

ângulo não propriamente reto, mas um pouco menos que obtuso528.

XVI

Das sete partes ou gêneros da composição.

As partes teóricas são seguidas pelas duas partes práticas, que são a composição e

a forma. Na primeira parte da composição, vê-se que Michelangelo foi muitíssimo bem

ordenado nos corpos em todas as suas partes, de tal forma que ao ver uma de suas figuras, por

menor que ela seja, parecerá grande e bem proporcionada em suas medidas, como se vê no

céu onde estão os Profetas e as Sibilas, de uma maneira tão excelente que julgo ser a melhor

que se encontra no mundo todo atualmente, mesmo em relação às outras obras dele mesmo529.

527 L. destaca aqui o lugar de primazia da escola lombarda em relação à perspectiva, sendo Mantegna o representante desta tradição, na qual se encontram inseridos pintores lombardos como Bramante, Foppa e Zenale. Sobre a questão, cfr. cap. 4 desta dissertação. 528 Sobre a perspectiva, L. caracteriza-a de acordo com a observação das obras dos artistas e a crítica anterior a ele: Polidoro, cuja grande parte de seu trabalho foi a pintura de fachadas, pela natureza de seu trabalho, deveria calcular o ponto de vista do observador; Leonardo trabalha com a perspectiva atmosférica e com a variação das escalas de cinza e branco, sendo também um homem de investigação científica (temperamento apolíneo), autor de obras de teoria em torno da questão óptica; Em relação a Tiziano, Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 687) formula a hipótese de que este pintor poderia representar nesta passagem toda a pintura emílio-veneziana, Tintoretto (modelos de argila), Correggio (grande amplitude da pirâmide visual). 529 Klein (op. cit., vol. II, pp. 687-8) aponta para duas possibilidades de compreensão do termo composição quando L. trata de Michelangelo: pode dar-se num sentido de adequação dos membros dos corpos das figuras em seu conjunto ("vê-se que Michelangelo foi muitíssimo bem ordenado nos corpos em todas as suas partes"), ou, se considerarmos que L. elogia a composição do teto da Capela Sistina em detrimento dos afrescos do Juízo Final e da Capela Paulina, podemos compreender a composição como a união bem coordenada das cinco partes teóricas da pintura (proporção, movimento, cor, luz e perspectiva). Na minha opinião, esta última interpretação é a mais

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Pois no terrível Juízo ele utilizou uma segunda maneira menos bela, e na Capela Paulina

utilizou uma terceira maneira inferior a todas as outras. Isto ele fez para mostrar a todos a

grandíssima dificuldade desta arte, apesar de ter expressado em todas as suas figuras um ar

tão terrível, orgulhoso e pleno de gravidade nas faces que espanta qualquer um que as vê, e

quem as copia ou desenha é tomado por uma profunda admiração.

Em Gaudenzio ela se vê belíssima, especialmente nos ciganos, pintados por ele

em diversos modos, nas diademas entrelaçadas com uma caprichosa e bela maneira, nos

mouros, nos pastores, nos rapazes, nos velhos, nas pedras, nas cavernas, nos rochedos. E em

Deus, nos santos e nas santas que ele pintou, essa característica se distingue maravilhosa,

sobretudo na expressão da divindade, onde ele superou todos antes dele e os que estão por vir.

Diversas maneiras foram as suas também, e porque aquela que utilizou no sepulcro de Varallo

foi a principal, delicada e admirável, mesmo nos relevos de argila, inferiores são, portanto,

todas as outras maneiras utilizadas em outros lugares. Por isso que quem não viu este

sepulcro, não pode afirmar saber o que seja a pintura e qual a verdadeira excelência dela. Pois

aqui se vê como se podem representar vivamente os afetos, observando nos rostos dos Anjos

que choram a dor e a paixão, e nos meninos risonhos a comemoração e o júbilo, que de forma

mais viva não demonstra a natureza. E vê-se, ainda, a excelência da arquitetura antiga e a rica

variedade de folhagens capitéis e dos frisos das colunas, em que foi único no mundo530.

Polidoro a demonstra na terribilidade das figuras que pinta em suas fachadas em

Roma e em Nápoles, tendo não apenas expressado todos os esquemas que os antigos usavam,

mas também adicionado muitos outros mais, segundo as cenas que seu capricho e sua fantasia

lhe mostravam.

Leonardo a cultivou no exprimir singularmente a divindade de Cristo junto à

virgindade da Virgem, nas cabeças dos Anjos e, ainda, ao realizar os retratos, apesar de que

apenas três ou quatro podem ser encontrados com as cabeças finalizadas. Porém, estes são de

tal forma que qualquer outro retrato de qualquer pintor que seja lhes é inferior, da mesma

maneira que todas as suas obras superam todas as outras obras dos outros pintores, por mais

nobres e excelentes que sejam. Na composição dos movimentos não deixou de ser

coerente com as definições dadas por L. à composição em seu corpus teórico, sendo que a primeira corresponde ao que L. entende por porporção. 530 Trata-se da Cappella della Crocifissione em Sacro Monte em Varallo (1520-1526), o "gran teatro montano", considerada o capolavoro da pintura sacra gaudenziana, realizada em diversos tipos de suportes, como esculturas de madeira, terracota, pintura de afrescos. Rossana Sachi (1980) afirma que esta capela é unicamente recordada por L. e por Paolo Morigia (Historia dell'Antichità di Milano, 1592) no ambiente milanês. Cfr. Filippis, Elena de. Gaudenzio Ferrari. La crocifissione del Sacro Monte di Varallo. Varallo, 1980.

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maravilhoso, exprimindo-os nos rostos com tal eficácia, que são vistos rindo e chorando com

tanto artifício que não se pode nem decifrá-lo tampouco o alcançar. Ainda, A mesma

excelência demonstrou na composição de figuras feias e monstruosas, com um gesto

belíssimo e distinto, segundo o que imaginava com o seu gênio que na Divindade

continuamente observava. Tais figuras estão espalhadas por todo o mundo, além daquelas

desenhadas com lápis vermelho em posse do pintor milanês Aurelio Luini, entre as quais

existem algumas que riem tão forte, através da força de uma arte grandíssima, que custaria à

própria natureza fazer igual531. Finalmente, na composição dos membro dos cavalos, que ele

representou em todos os atos e afetos que naturalmente possam haver, foi tal que, sem dúvida,

superou os melhores antigos e modernos, tanto na pintura e desenho, quanto no relevo532.

Rafael foi um muitíssimo afortunado compositor de belas mulheres e de

penteados que se assemelham tanto ao real, tanto na beleza das cores quanto nos arranjos

artisticamente negligenciados, de forma que a própria natureza, não apenas a arte, não pode

alcançar este patamar. Demonstrou a arte de compor com sucesso singularmente nos diversos

Amores que pintou nas lógias papais, no Incêndio de Roma, no Monte Parnaso, onde fez ver

também o seu valor enquanto retratista, tendo retratado todos os poetas de todos os tempos, na

Guerra de Constantino e, em suma, em todas as coisas que saem de seu pincel. Teve particular

talento e graça ao exprimir nos rostos a beleza, a gentileza, a graça, e os devidos gestos nos

jovens, e de imprimir neles as verdadeiras ideias, de tal forma que não foi considerado um

semi-deus, mas um deus da arte em seu tempo, também pela beleza e nobreza de sua face que

se assemelhava àquela que todos os excelentes pintores representavam no Nosso Senhor.

Similarmente, expressou nos lugares divinamente a graça e a majestade, e nos meninos a

ternura, e onde era preciso, a lascívia e o encanto, como no copeiro Ganimedes533. E nas

vestes o gesto e a graça, de tal forma que nos parece que a figura não pode ser graciosamente

vestida de outro modo. Não foi menor que Da Vinci na composição dos cavalos e dos outros

animais, e por isso se pode dizer com razão que toda a grandeza e perfeição da arte fosse

reunida nele, e que Deus deu-o a nós como uma maravilha do mundo, a qual, então, tomou de

volta em um breve período de tempo, pois com 37 anos sua vida terminou, em um dia de

531 Tratam-se das sanguíneas com cabeças grotescas de Leonardo. Cfr. Trattato, II, cap. I; VI, cap. 32 e VII, cap. 27. Cfr. cap. 1 (seção 1), pp. 32-3 e n. 70. 532 Desenhos de Windsor, Biblioteca Reale di Torino, e o códice de Madrid. 533 Trata-se do Ganimedes da Loggia di Psiche da Villa Farnesina, cujos afrescos foram realizados para Agostino Chigi entre 1517-1518.

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sexta-feira santa, na qual também havia nascido534. Ele foi lamentado universalmente devido à

doçura de seus costumes e ao desejo que tinha de ensinar arte aos outros, e comunicar-lhes os

dons que havia obtido por natureza. Por isso era sempre rodeado por pintores, e assim

aconteceu que uma vez, confrontando-se com Michelangelo, que estava sozinho enquanto ele

era acompanhado por muitos, disse-lhe Michelangelo que acreditava haver encontrado o chefe

dos esbirros, e ele respondeu que acreditava ter encontrado o carrasco, pois andava sempre

sozinho como fazia Buonarroti535.

Mantegna, em seu Triunfo536 e em todas as suas obras que estão espalhadas pela

Itália e em muitas outras partes do mundo, demonstrou uma minuciosidade e diligência

requintada em seus membros, tanto nas figuras grandes quanto nas pequenas. E nisto foi

muito singular, parecendo ter sido feito e destinado pela natureza somente para isto. Mas não

foi menor no compor os afetos, como se vê na Virgem Maria que ele pintou lamentando seu

filho, e nas outras Virgens e no São João, em todos eles expressando a dor e o choro tão

naturalmente, que não é possível que outro faça melhor. Também nos tritões que vão pelo mar

representou os búzios na boca e aqueles que sopram dentro deles, com tanta força de arte, que

de forma mais viva não se pode representar o grande esforço que fazem no soprar com as

dobras das bochechas e a pequenez dos olhos, como fez também em seus bacanais e nos

sátiros que sopram nas flautas de Pan537.

Tiziano alcançou a glória na composição e na disposição nos retratos, dando-lhes

tanta majestade e beleza que em grande vantagem ultrapassam a natureza, como notaram

todos os especialistas. E daí também veio a vivacidade e aquele relevo que se vê em todas as

suas obras, as quais será preciso mencionar em muitos lugares.

XVII

534 Cfr. Vasari, Vida de Rafael. 535 No texto italiano, as palavras são, respectivamente, "bargello" e "Manigoldo"; Tr.R.K: "chef des sbires" e "bourreau"; Tr.J.J.C: "chef of police" e "executioner". Anedota citada por L. no Ragionamento Quinto do L.S. (Ciardi, op. cit., n.t., vol I, pp.289-91); Cfr. Barrocchi, La vita di M. (...), IV, p. 1866. 536 Triunfos de César realizados para Francesco Gonzaga entre 1485-1505, que se encontram atualmente na Royal Collection do Hapton Court na Inglaterra. 537 Cfr. Vasari, Vita di Andrea Mantegna, 1558. Sobre estas gravuras, Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p.291), indica o catálogo da mostra de Mategna em Mântua (1960). Sobre o papel de Mantegna como gravurista, indico algumas bibliografias recentes: Levenson, J.A. Mantegna and the emergence of engraving in Italy IN La corte di Mantova nell’età di Andrea Mantegna. 1997. Roma, 1997; Ortolani, T. Incisioni da Mantegna a Reverdino; catalogo della mostra. Milão, 1999; Oberhuber, K. Mantegna e il ruolo delle stampe IN Il Rinascimento a Venezia e la pittura del Nord ai tempi di Bellini, Dürer, Tiziano. Milão, 2ed, 1999; Lincoln, E. The invention of the Italian Renaissance printmaker. New Haven, 2000; Tomatis, F; Zunino, G. Dürer e i grandi incisori del ’400 e del ’500. Carmagnola, 2004; Marini, G. Mantegna, la grafica e la diffusione dei modelli tramite le stampe IN Mantegna e le arti a Verona 1450 - 1500. Veneza, 2006.

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Das sete partes ou gêneros da forma.

Resta a segunda parte da prática da pintura e última de todas as sete, que é a

forma, colocada por nós no teto do templo. Suponho poder demonstrar sua diversidade de

modo mais claro, dando a cada um dos governantes um animal de natureza conforme a

maneira da forma seguida por cada um deles, afim de que, conhecendo a natureza do animal,

saiba-se imediatamente qual é a forma do governante a quem foi dado538.

Ainda, porque se pode, através da razão matemática, como foi dito acima,

provavelmente concluir que a correspondência natural que tiveram os governantes com a

natureza destes animais tenha feito com que, em seu pintar, empregassem uma maneira de

formar as coisas ao pintar em conformidade com a natureza destes animais. Além disso,

também não creio ter procedência a ideia de que, entre os pintores, um siga a forma de um

governante e outro de outro, e, entre os homens, a um seja mais agradável uma maneira e a

outro, outra, a não ser através desta mesma correspondência natural539. E, contudo, se

encontrasse alguém no qual fossem reunidas todas as naturezas destes animais, este seria o

maior pintor que alguma vez existiu entre os mortais, e quanto mais participasse da natureza

de um maior número de animais, maior seria, como se vê nos governantes, os quais foram

mais ou menos excelentes de acordo com o grau de participação de cada um na natureza de

outros. Isto será tratado depois, no penúltimo capítulo, onde se discorre sobre a grandeza da

euritmia540.

538 Neste trecho, Lomazzo não trata da "Forma" no sentido em que ela é abordada no Trattato, como iconografia, expressão do conceito de um determinado tema, história ou invenção (Cfr. nota 8 ), mas no sentido da tipologia astrológica de cada governante, na qual as formas externas indicam características ligadas ao temperamento, uso comum nos tratados mitológicos, como destaca Ciardi (op. cit., n.t., vol I, p. 292), citando Cartari ( "Le immagini de i dei degli Antichi", editio princ. 1556; primeira ed. impressa ilustrada em 1571), e que serão refletidas no estilo de cada artista de acordo com a teoria mágico-astrológica de L. 539 Klein (op. cit., n.t., vol II, pp. 688-89) aponta para a cadeia platônica presente no "Íon" de Platão, que conecta a divindade inspiradora, o artista e seu público, noção também presente nos pensadores da magia natural, como Cornelio Agrippa. Esta passagem é extremamente importante para a compreensão da teoria da expressão e do gosto em Lomazzo, que têm origem na "Causa Primeira", ou seja, Deus. 540 Neste trecho, L. trabalha com um artifício retórico, o ideal do pintor universal, algo impraticável na realidade, já que cada artista possui suas inclinações pessoais individuais. Logo em seguida, traz a questão da euritmia, assunto do cap. 37, que explica a beleza da obra a partir da noção de harmonia do conjunto. Sobre esta questão, cfr. capítulo 4 (seção 2-K e 2-Q). Muitas vezes, a fortuna crítica do Idea não compreendeu com precisão os aspectos de sua teoria e de sua forma retórico-didática de exposição do ideal de universalidade, e, por isso, foi- lhe atribuído a alcunha do "ecletismo": Anthony Blunt (Artistic Theory in Italy 1450-1600, 1940) o classifica como eclético, o que mais tarde é problematizado e combatido por Denis Mahon (Ecletism and the Carracci. Further Reflections on the Validity of a Label, 1953). Paolo Pino, em seu Dialogo di pittura (1548), também faz alusão à união de Tiziano e Michelangelo no corpo de um mesmo artista, não sendo também uma defesa de um programa eclético (como afirma Schlosser, 1924), mas uma metáfora utilizada dentro do discurso crítico de Pino. Cfr. Klein em sua introdução (vol II, pp. 491-502).

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Portanto, a Michelangelo dei o Dragão, de natureza terrível, lenta e prudente, pois

ele deu às figuras uma forma terrível, originada dos profundos segredos da anatomia

compreendidos por pouquíssimos outros, lenta mas plena de dignidade e majestade, com o

espírito e os afetos melancólicos pertencentes aos homens dados ao estudo e à contemplação.

E porque também desta maneira ele era nos seus costumes que se pode dizer que tenha sido

como um Sócrates entre os pintores 541.

A Gaudenzio dei a águia, animal que por natureza voa muito mais alto que os

outros pássaros e de vista aguda, pois ele deu uma forma de beleza superior e excelente à

personalidade e a face de todas as suas figuras, e nisso penetrou com olho agudíssimo onde

ninguém antes dele jamais chegou. E porque de costume era modesto e afável, pode-se

compará-lo a Platão542.

A Polidoro dei o cavalo, animal feroz e terrível, como foi exatamente a forma por

ele seguida ao pintar todas as coisas antigas, a cujo estudo ele se dedicou por completo. Por

isso se pode dizer que somente ele foi um verdadeiro pintor das coisas antigas e que pudera

não apenas copiá-las, mas também superá-las. E porque ele tinha também uma aparência feroz

e terrível em seu rosto, pode-se aproximá-lo de um Hércules543.

A Leonardo da Vinci dei o Leão, já que na medida em que este animal é mais

nobre que todos os outros, mais nobre é a forma deste ilustre pintor, que aterroriza todos

quando se põem a contemplar as suas coisas e a querer imitá-las, exatamente assim como o

leão em relação a todos os outros animais. Tivera conhecimento das boas artes e possuíra a

541 Tipologia saturnina fundamentada em Agrippa; A relação com o dragão encontra-se também em Agrippa, cit., I, cap. 25 ("das coisas que dependem de Saturno"):

"animalia reptilia segretata, solitaria, nocturna, tristia, contemplativa uel penitus bruta, auara, timida, melancholica, multi laboris, tardi motus, immundi victus, e quae foetus suos devorant. Ex istis ergo sunt, talpa, asinus, lupus, lepus, mulus, catus, camelus, ursus, sus, simia, draco (...)"

Neste capítolo, L. cria uma cadeia de relações baseada na tipologia astrológica do artista, constituindo um sistema simbólico associativo próximo ao teatro de Camillo. Cfr. cap. 4 desta dissertação. 542 Tipologia jupiteriana presente em Agrippa; A relação com a águia pode ser encontrada em Agrippa, op. cit., I, cap. 26 ("do que depende de Júpiter"): "ei sacrata aquila, imperatorum insigne, ac iustitia cum clementia symbolum...". É possível encontrar esta relação em manuais de mitologia, como em Cartari, op. cit. (1550), Veneza, 1609, p.115, p. 126. No Trattato, L. cita a águia ligada à composição dos sacrifícios (livro VI, cap. 42); Ainda, no livro VII (composição), cap. 7, sobre as formas de júpiter, esta relação aparece, "Con la destra porgeva un’ aquila (...) per mostrare in qual modo egli è così superiore a tutta la gente del cielo, come è l’aquila a tutti gli uccelli (...)". 543 Tipologia Marcial também se encontra em Agrippa; A relação com o cavalo está em Agrippa, op. cit., I, cap. 27 ("o que se relaciona com Marte"): "animalia aute que sunt bellicosa, rapacia, audacia e perspicuae imaginationis, ut equus (...)".

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mistura de uma e de outra, assim como se vê em muitos livros escritos por ele e desenhados

com a mão esquerda. Tivera a face envolta por uma longa cabeleira, com os cílios e com a

barba tão longa, que parecia encarnar a verdadeira nobreza do estudo, que outras vezes foi já

encarnada no druida Hermes ou no antigo Prometeu. E foi caríssimo a muitos príncipes, mas

sumamente a Francisco I de Valois, rei da França, de tal forma que, estando moribundo, foi

por ele sustentado nos braços, morte verdadeiramente gloriosa, já que deu-se nos braços de tal

rei544.

A Rafael Sanzio dei o Homem, animal racional, pois em sua forma foi muitíssimo

racional e acima de todos considerado, exprimindo a majestade benigna e agradável própria

do homem em suas pinturas, e nos costumes teve a mesma humanidade e amabilidade,

deleitando-se também em escrever capitoli545 e estâncias de amor, de tal maneira que era

seguido pelos pintores de seu tempo como um oráculo. Possuía a face envolta por cabelos que

se espalhavam sobre as costas, e por isso parecia muito com o sapientíssimo Salomão, de

tanto que resplendia nele a beleza e a serenidade546.

A Mantegna dei a Serpente, animal prudente, pois precisamente em sua forma

demonstrou uma singular prudência. Tornou-se pintor depois de ter sido pastor e alcançou

tanta nobreza que foi feito cavalheiro pelo Marquês de Mântua. Tinha uma personalidade que

demonstrava a agudeza e a ambição em saber a verdade daquilo que demonstrava nas obras,

razão pela qual se assemelhava ao árabe Alhazen ou a Arquimedes de Siracusa.

A Tiziano, finalmente, dei o Boi, animal que se exercita continuamente no

trabalho, pois sua forma contém e demonstra a verdadeira prática e razão de operar, de tal

forma que na medida em que se olha para ela, vê-se tudo perfeitamente, da mesma forma que

o homem, ao se observar na água, vê-se completamente refletido nela. Ou, como já

demonstrou Giogione da Castelfranco, a pintura nua refletida na fonte que se encontra vista de

baixo para cima através da arte, e possui ao fundo um espelho que a mostra completamente de

544 Tipologia Solar encontrada em Agrippa. A relação com o Leão está em Agrippa, op. cit., cap. 23 ("como saber de que estrelas dependem as coisas naturais, e as que estão submetidas ao Sol"): "inter animalia vero solaria sunt magnanima, animosa, studiosa victoriae e gloriae: ut leo ferar rex (...)". A anedota sobre a morte de Leonardo pode ser encontrada em Vasari. Contudo, como afirma Ciardi (op. cit., n.t.), é do conhecimento de Lomazzo que a notícia dada por Vasari é falsa, como se pode ver no Rime (p. 93), no qual L. se baseia nos relatos de Melzi. 545 O termo não é traduzido nem por Klein nem por Chai. 546 Esta associação de Vênus com o homem está presente em Agrippa, De occ. phil., III, 49.

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costas e ao lado um corpete luzente que a reflete de perfil 547. Com isso, este engenhoso pintor

quer confundir aqueles que dizem que através da pintura não se pode ver senão de um ângulo,

fazendo-a ser vista de frente, de baixo para cima, de costas e de perfil, notando, todavia, que a

pintura oferece isso através de apenas uma vista e, também, considerando que a escultura

obriga a mudar de lugar se quiser mudar de ângulo548. Era Tiziano tal, que parecia

assemelhar-se a um Aristóteles 549, sendo que assim como este foi caríssimo a Alexandre o

Grande, também aquele foi caro ao imperador Carlos V 550.

Neste ponto, não deixarei de dizer que alguns pintores chamaram-me a atenção

para que eu colocasse Antonio da Correggio no lugar de Tiziano 551. Mas eles não entendem o

547 Para Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 690), esta associação boi/lua/prática é bastante pertinente do ponto de vista da crítica, já que é possível perceber o trabalho do artista ao observar uma obra de Tiziano, principalmente em suas obras tardias com suas rápidas pinceladas. Ainda, é possível observar uma relação entre o boi e a agricultura que aparece no livro VI do Trattato, no cap. 8, "Il bue che si adopera per lavorar la terra, significava agricoltura", e esta relação boi/agricultura pode associar-se à tipologia lunar, na medida em que esta tipologia traz a ideia de crescimento/descrescimento, do movimento cíclico da natureza, das quatro estações, do plantio e da colheita, etc. A pintura de Giorgione é mencionada por Vasari ("Vida de Giorgione da Castefranco", ed. 1568); L. interpreta a imagem como uma alegoria da pintura (Cfr. Klein, op. cit., n.t., vol II, p. 690). 548 Discussão a respeito das molte vedute da escultura em relação à pintura está presente na paragone: Leonardo, Bronzino, Tasso, Sangallo, Cellini a Varchi in Barocchi, cit., I, p. 487; pp.500-1; p.508; pp. 511-12; pp. 519-520; p. 540. Ainda, Paolo Pino, em seu Dialodo di Pittura, no contexto da discussão da paragone, menciona um

"San Georgio armato, in piedi, appostato sopra un tronco di lancia, con li piedi nelle istreme sponde d'una fonte limpida e chiara, nella qual tranverberava tutta la figura in scurzo sino alla cima del capo; poscia avea finto uno specchio appostato a un tronco, nel qual riflettava tutta la figura integra in schena et un franco (...)"

pintado por Giorgione para contradizer aqueles que utilizavam o argumento da limitação de visões possíveis na pintura (Barocchi, cit., I, pp. 552-3). 549 Sobre a escolha dos sete filósofos e sua associação com os governantes, Klein afirma que ela é um tanto obscura e que foi feita de acordo com critérios do próprio autor, que podem ser os seguintes:

"Michelange est Socrate à cause de sa vie de sage, Polidoro Hercule parce qu'il est martial, Léonard Hermès ou Prométhée parce que ces héros divins sont les patrons naturels des inventeurs d'arts et des sciences; Raphaël a la sagesse du juge Salomon, parce qu'il a réussi (...) à mettre toujours d'accord les artistes qui l'aidaient; Mategna, le perspectiviste, ressemble aux deux opticiens Archimède et Alhazen; Titen est Aristote pour la bonne raison que Charles-Quint est Alexandre. Le roi des philosophes, Platon, devait accompagner le peintre "jupitérien", Ferrari; Lomazzo se contente, pour les associer, de leur commune modestie et affabilité" (Klein, cit., p. 558, comentário ao cap. 17).

550 No que se refere à relação artista-comitente entre Tiziano e Carlos V, cfr. Tietze, H. Titian: the painting and drawings. Lodon: Phaidon, 1950; Battisti, E. Rinascimento e Barocco. Turin: Einaudi, 1960; Panofsky, E. Problems in Titian, Mostly Iconographic, c1969; Hope, C. Titian as a Court Painter. "Oxford Art Journal", Vol.2, Art and Society (Apr., 1979), pp. 7-10; Hope, C. Martineau, J. (ed). The Genius of Venice 1500-1600. London: Royal Academy of Arts. 1983; Whetey, H.E. Titian and his drawings: With reference to Giorgione and some close contemporaries, 1987; Checa, F. Tiziano y la monarquia hispânica: usos y funciones de la pintura veneciana en España (siglos XVI y XVII). Madrid, c. 1994; Freedman, L. Titian’s Portraits Through Aretino’ Lens, 1995; Maravall, J. A. Carlos V y el pensamiento politico del Renacimiento. Madrid: Boletin Oficial del Estado : Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 1999; Pedrocoo, Filippo. Titien. Paris: Liana Levi, c2000; Jaffe, D. (ed). Titian: essays. London. National Gallery, 2003; SEATTLE ART MUSEUM (EUA). Spain in the age of exploration 1492-1819. U of Nebraska Press, 2004. 551 Tanto Klein (op. cit., vol. II, pp. 689-90) quanto Ciardi (op. cit., vol. I, 294) afirmam que L. se refere aos Campi neste trecho, já que sua escola foi muito influenciada pela escola de Parma. A crítica que L. realiza a

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tamanho da força do saber, sendo todos eles inclinados somente ao fazer, que não pode ser,

porém, nem louvável nem bom, sem que primeiramente se entenda a força do saber. Não

compreendem também as regras e a forças matemáticas. Por isso que não me espanta que não

saibam discernir corretamente ao julgar a excelência dos artistas. Não tenho a presunção de

ser melhor em julgar que os outros e conhecer exatamente em que coisa principalmente seja

excelente cada um destes grandes artífices. Mas direi com convicção que, sob meu ponto de

vista, quem quisesse conceber dois quadros de suma perfeição, um de Adão e outro de Eva, os

corpos mais nobres do mundo, precisaria que o Adão fosse desenhado por Michelangelo,

colorido por Tiziano, retirando as proporções e adequações de Rafael, e que a Eva fosse

desenhada por Rafael e colorida por Antonio da Correggio: estes dois seriam os melhores

quadros que alguma vez foram feitos no mundo 552.

Retornando a minha primeira proposição, a forma assim colocada no topo da

cúpula do templo poderá ser transmitida àquelas que estão a baixo através da abertura que

ilumina todo o templo e suas partes, e aqueles que nasceram pintores, ou seja, aqueles dotados

naturalmente das partes necessárias para exercitar esta arte, poderão ver a verdadeira forma da

pintura553. Por isso somente a estes, e não a outros, será concedido, ao contemplar a ideia do

meu templo, compreender perfeitamente toda a arte e louvavelmente colocá-la em prática,

acrescentando o discernimento, sobre o qual discorrerei no capítulo seguinte, mostrando quais

são as suas partes e como todas elas devem contribuir para formar um bom pintor. O

discernimento foi colocado no pavimento do templo, no qual poderá claramente ser visto por

qualquer um que adentre com o desejo de compreender e olhe atentamente todos os

governantes que regem o templo, da mesma maneira que os governantes do mundo, e todos os

seus modos de fazer. Assim, descobrirá qual é a verdadeira arte de operar com artifício sem,

no entanto, demonstrá-lo, o que, por ser a coisa mais difícil, também é a mais bela e mais

louvável que existe em toda arte.

XVIII

Do discernimento da pintura e de suas partes.

esses pintores "práticos" nas frases seguintes pode reforçar esta hipótese. Contudo, não se pode afirmar com precisão, já que a influência de Correggio em toda Lombardia é bastante grande. 552 Foi devido a este trecho que lhe foi atribuído a alcunha do ecletismo em diversas ocasiões (Cfr. Blunt, op. cit.; Mahon, op. cit.). A crítica a esta ideia está presente na carta de Domenichino a Angeloni (1632) que se encontra em Bellori, Le vite (...), Roma, 1672, p. 359. Cfr. Klein, cit., II, p. 496 ss. (introd.); Capítulo III (seção 1.4) desta dissertação. 553 Summers (cit., p. 177) fala do papel da luz na transmissão da beleza espiritual presente no comentário ao banquete de Platão de Marsilio Ficino e incorporada por L. no Idea.

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O discernimento, a primeira e principal parte da pintura, colocado no pavimento

do templo, ensina a arte de dispor, do modo mais belo e racional, todos os outros gêneros,

segundo as exigências da ordem e da espécie de cada um, e, em suma, dá o modo e a

instrução universal de compô-los juntos e de dar-lhes unidade para que pareçam um corpo

completo, sem o qual toda obra resultaria desconexa. As suas partes são a disposição, a

instrução, a distribuição, a união do todo e a composição universal.554

A disposição não é outra coisa senão uma colocação adequada das coisas e um

efeito conveniente nas composições das obras, que são dispostas pelo pintor segundo a

natureza delas, as qualidades, a aparência, o efeito que devem produzir, a forma, a semelhança

que devem ter555. Esta consideração é tão necessária que sem ela jamais uma colocação

adequada seria feita, nem um efeito conveniente seria observado em alguma composição, mas

antes o conjunto estaria invertido556.

A instrução universal é, em todas as obras que se faz, a verdadeira e própria

segurança de não errar. As suas partes são a advertência, o exemplo, a comparação, a

diferença, o modo, o manejo e a história. A advertência é a virtude que não nos deixa incorrer

em erros quando operamos, pois ela os prevê e nos mostra como preveni-los, e esta não se faz

sem atenção e estudo contínuo nas obras. O exemplo é um certo guia que nos acompanha em

todas as operações, no qual nos asseguramos daquilo que fazemos. Esta segurança, sob a

tutela do exemplo, não se pode alcançar sem grandíssima paciência e resguardo do todo em

qualquer coisa que se faz, acompanhada pela memória das obras já perfeitamente feitas por

outros 557. A comparação é exatamente a prova e a experimentação, com a qual se adquire

segurança no operar e em não estar em nenhum momento cometendo ambiguidades. Pois

somente a prova torna o pintor certo e seguro quando opera, tanto no dispor quanto no

conduzir seu desenho com êxito, e quem procede por outra via, caminha, como se costuma

dizer, tentando a sorte na escuridão, esperando fazer uma coisa que depois se converte em

554 Cfr. proêmio do De Architettura do Vitruvio; comentário da Barocchi a este capítulo, op. cit., pp. 987 ss. 555 Cfr. Vitruvio, cit., I, 2: "Dispositio autem est rerum apta colocatio elegansque compositionibus effectus operis cum qualitate (...)".

556 Sobre a disposição, Paola Barocchi indica Pino, Dolce, Maranta (pp. 759, 792 ss., 872 ss. de seu Scritti d'arte (...), vol. I (Barocchi, Scritti..., I, p. 987). Ainda, pode equivaler a conveniência (como ocorre em R. Borghini, cfr. Barocchi, op. cit., p. 936). 557 Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 295) nos lembra que a advertência e o exemplo constituem o discernimento ou decorum no Trattato, a primeira ligada à conveniência dos elementos da obra, e o outro subordinado à storia, não circunscrevendo-se apenas no âmbito do exemplo pictórico, mas também literário. Cfr. Lee, Ut pictura poesis (...), pp. 28 e ss.. Sobre o exemplo, Barocchi, cit., p. 988, cita Aristóteles, Rhetorica, 1393a ss; Rhet. ad Her., IV, 62; Quintiliano, Inst. or., V, XI, 1 ss.

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outra. Para conquistar esta parte é necessário que o homem se persuada de saber senão aquilo

que sabe, e não vangloriar-se por ambição de reputar-se acima daquilo que realmente é 558. A

diferença é aquela através da qual se discerne e adverte a amizade e a inimizade das coisas,

pois algumas são concordantes e outras não, tanto por natureza quanto por beleza e efeitos. E

a esta é preciso estar atento para ter um claro conhecimento das coisas que se colocam na

obra, e um juízo puro e executivo, através do qual tudo devidamente se concilia e se une 559. O

modo, propriamente, é a estrada segura na qual deve-se caminhar em todas as operações, pois

ele nos guia nos caminhos e em todas as regras para alcançar a perfeição da instrução. Mas

por esta estrada não se pode andar sem antes ter conhecimento das coisas que se quer realizar,

e esta dá, então, a lei do fácil e do difícil, e o juízo de tirar partido do melhor. Assim, é

necessário ser muito exercitado e esperto nas observações das obras, pois, caso contrário, ele

não seria compreendido 560. Também o manejo coopera com o documento, sendo somente ele

que, de acordo com a razão, entende-o e, da mesma maneira, segundo o possível ou o

impossível. Pois ele não é outra coisa senão a experiência das coisas, e somente compreende o

possível das obras, e verifica-as com a prova segura de acordo com o modo de exercitação, e,

contudo, sem ele não se pode ser pintor 561. Este se origina do longo praticar e entender com

paciência e acuidade, e do desejo contínuo de conciliar a ciência e a prática. A história, por

último, é aquela que claramente faz ver e tatear a força da instrução, e torna seguro de

maneira exemplar o pintor, onde se deve fazer tanto em relação às invenções quanto a todas as

outras obras que possam ser submetidas à consideração e à imitação. E isto se faz através da

memória das coisas tanto pintadas quanto escritas 562.

558 Sobre a comparação, Barocchi (cit., loc. cit.) indica Arist., Rhet., 1406b; Rhet. ad Her., IV, 59-61; Cícero, De inv., I, XXX, 49; Quintiliano, Inst. or., V. XI, 22 ss. 559 Sobre a diferença, Barocchi (cit., loc. cit.) indica Quintiliano, Inst. or., VIII, III, 16; IX, III, 65, 82; X, I, 6-7. 560 Sobre o modo, Barocchi (cit., loc. cit.) indica Quintiliano, Insti. or., I, V, 41. X, V, 9-11. 561 Sobre a experiência, Barocchi (cit., loc. cit.) indica Varchi em Barocchi, cit., pp. 134, 146 ss., 150 ss. e Danti, pp. 209, 219 ss. 562 Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p.296) afirma que o livro VI do Trattato ( "da prática da pintura") se configura como a aplicação prática deste trecho.

"Não há nenhuma dúvida de que todas as coisas bem compostas e convenientes entre si - ou seja, que têm suas partes correspondentes unidas da forma que demonstrarei neste livro com a prática, onde precisamente se ensina a conjugar a prática com a teoria das coisas supratratadas nos livros precedentes - não causem sumo deleite, e não demonstrem completamente o intento daqueles que a compuseram; e, pelo contrário, as descordantes e desconcertadas, que são repugnantes à doçura natural e à clareza intelectual, não tragam consigo grandíssima desgraça, ofendendo igualmente tanto os olhos dos ignorantes, pelo sentido natural, quando os olhos dos doutos, pela inteligência." (Scritti..., II, p. 242)

É bastante coerente esta afirmação, já que o livro da prática é voltado para conselhos em torno do decoro formal, da realização de uma boa composição, da combinação adequada dos elementos na obra, da

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A terceira espécie é a distribuição, que se alcança quando o pintor busca o melhor

e o mais belo em suas pinturas, dispondo as suas partes do modo adequado, segundo a

natureza das coisas que se quer representar 563. As suas partes são quatro: a razão, a

moderação, a concessão e a adaptação. A razão é aquela que considera todas as coisas como

são, e, conhecidas, ela as distribui de acordo com o mérito de cada uma. E esta não se alcança

sem um perfeito conhecimento conquistado após uma longa experiência teórica e prática 564.

A moderação é aquilo que elimina as superabundâncias que podem complicar as obras, e

enriquece a partes pobres e incompletas quando necessário 565. Nisto se busca uma argúcia

grandíssima nas coisas que estão por vir, tanto para as que devem ser feitas quanto para as que

devem ser vistas. A concessão considera o valor daquilo que se faz, o local a que se destina, e

para quem se faz. Consequentemente, dispensa todas as partes submetidas à operação

conforme o decoro e de maneira conveniente 566. E isto não pode ser feito sem sagacidade e

longo discurso. A adaptação é uma escolha da melhor e mais correta via que conduz ao fim,

depois de considerar a natureza e a força das coisas a serem feitas, sem continuamente errar

conveniência, da adequação à história (tema), da atenção aos modelos (exemplo), etc., questões estas ligadas ao ambiente da Contrarreforma, e também das recentes publicações em língua vulgar e comentários da "Arte Poética" de Aristóteles, e do diálogo dos teóricos da arte com a crítica literária (Vida, Daniello, Robortello, Fracastoro, Minturno, Scaligero, Casteveltro, Tasso); Sobre esta questão, cfr. Lee, op. cit., pp. 17 ss. e nota 41. A instrução universal e suas partes - a advertência, o exemplo, a comparação, a diferença, o modo, o manejo e a história - caracterizam o ideal do pintor douto, bem instruído nas ciências, dedicado ao estudo teórico e à reflexão filosófica (Cfr. Ossola, L'autunno del Rinascimento, pp. 32 ss.). Sobre a história, Barocchi (op. cit., p. 989) indica Arist., Rhet. ad. Her., I, 13; Cícero, De Orat., II, 15, 62 ss., Quintiliano, Inst. or., III, VIII, 67 ss.; IV, II, 2-4, Dolce, Danti, Gilio em Barocchi, cit., pp. 792 ss., pp. 252 ss., pp. 14 ss., 24 ss., 86, pp. 311 ss. 563 Em relação à tradicional divisão da retórica latina - inventio, dispositio, elocutio -, fundamentada em Cícero e Quintiliano, é interessante notar neste capítulo, e também no Idea del Tempio de forma geral, que esta divisão não mais se aplica de forma delimitada em L.; Não existe um momento da inventio seguido pela dispositio, e, por fim, pela elocutio, pois, em L., o ápice da internalização do processo artístico é alcançado. As etapas da criação de uma obra de arte se dão de um modo predominantemente mental, da criação das formas na ideia do pintor, e, neste sentido, o discernimento e sua partes coincidem com este processo absolutamente internalizado e introspectivo de criação artística. Sobre isto, Ossola (op. cit., pp. 89 e ss. e nota 174) afirma que "(...) è superfluo parlare di un momento dell'invenzione, o di un primato della successiva disposizione, quando ciò che conta è soltanto l'incessante produzione di forme nell'idea". Ainda, existe uma "casuística da pintura" empregada no processo de criação (característica atribuída ao Trattato por Klein, cfr. Klein, La forme et l'inteligible, c. 1970, p. 176), uma avaliação do caso particular da obra ("segundo a natureza da obra que se quer representar"). Sobre a distribuição, Barocchi (op. cit., loc. cit.) indica Rhet. ad Her., I, 17, Cícero, De inv., I, XXII, 31 ss., Quintiliano, Inst. or., IV, V, I; VI, I, I; IX, I, 30; IX, II, 2. 564 Sobre a razão, Barocchi (cit., op. cit.) aponta para a Rhet. ad Her., I, 26; Cícero, De inv., I, XIII, 18, Quintiliano, Inst. or., II, III, 5 ss.; X, III, 15. 565 Mais uma vez, a crítica da dificuldade, contra os exageros, cfr. nota 43, 44 e 218. Sobre a moderação, Barocchi (op. cit., loc. cit.) indica Cícero, Or., XXVI, 91-XXVII, 96, Quintiliano, XII, X, 59. 566 Para Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p.296), as categorias principais, tanto no Trattato quanto no Idea, são o decoro e a conveniência. O restante é variação destes conceitos, que Lomazzo busca em fontes da retórica antiga, como a Institutio de Quintiliano (ou que lhe foram transmitidas através da teoria artística - Dolce - ou da crítica literária contemporânea - Daniello, Casteveltro - . Cfr. Ossola, op. cit., loc. cit.). Sobre a concessão, Barocchi (op. cit., loc. cit.) indica Quintiliano, Inst. or., III, III, 1ss.; VII, I, 1ss.

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fora de propósito e incomodando a si mesmo e aos outros. O desconhecimento desta explica o

fato de vermos tantas obras jamais terminadas, e outras que demoram tanto tempo, que a etapa

inicial é danificada antes de chegar à etapa final, o que não ocorreria se esta parte fosse bem

compreendida e conhecida 567.

A união do todo, a quarta espécie, que acompanha todas as coisas devidamente,

não se alcança sem conveniência, conhecimento, cautela e consideração. A conveniência é a

própria correspondência entre as partes diversamente proporcionadas e feitas segundo sua

natureza e efeito, que, por isso, adquirem unidade, como, por exemplo, quando um deseja

atacar o outro, este, percebendo isto, deve defender-se. Ou, quando um é ferido, deve

demonstrar sofrimento 568. E isto não se faz sem o conhecimento, que considera a essência dos

efeitos, e, assim, combina-os e os une. A cautela contribui também para isto, uma vez que ela

faz com que as uniões aconteçam nos graus apropriados sem deixar tropeçar nos efeitos

contrários, segundo a dignidade e majestade do tema, assim como, por exemplo, um servo que

abraça um rei envolvendo as costas deste com seus braços e o rei passando os braços sob as

axilas do servo, coisa que seria de fato repugnante para a união do conjunto. Finalmente, a

consideração entra em todas estas partes, e esta é tão importante que sem ela as demais partes

não poderiam ser exercitadas. Portanto é necessário constantemente pensar e refletir sobre

esta correspondência, que é a verdadeira harmonia da obra 569.

A última espécie deste gênero é a composição universal, e é ela que combina e

une todas as coisas do melhor modo possível. E esta se alcança através do decoro, da

possibilidade, do discurso e da reflexão. O decoro não deixa colocar as coisas nos lugares que

não lhes convém por natureza, e, em seguida, não permite atribuir a algo uma ação que

racionalmente não possa e não deva fazer. A possibilidade ensina a compor apenas aquilo que

o homem pode fazer sem confusão, uma vez que existem certas coisas na pintura que podem

ser esboçadas e parecem o mundo todo, que, quando são submetidas à operação, não podem

ser realizadas sem desordem. Portanto, é necessário combinar o possível das coisas sob sua

tutela, que é a perseverança em operar, e acompanhar a prática com as ciência, e, em seguida,

compreender as coisas segundo sua essência e de acordo com as possíveis disposições do

melhor e mais belo modo. O discurso é tão importante para a composição do conjunto que é

567 Para a adaptação, Barocchi (op. cit., loc. cit.) indica Cícero, Or., XXI, 71, De Orat., II, 4, 17. 568 Sobre a conveniência, Barocchi (op. cit., p. 990) indica Dolce, pp. 792 ss., 797 ss., Gilio, pp. 307 ss., Paleotti, pp. 907 ss. em seu Scritti d'arte (...), vol. I. 569 Sobre a união do todo, Barocchi (op. cit., loc. cit.) indica Pino e Dolce, pp. 764, 812 ss. em seu Scritti d'arte (...), vol. I.

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somente a partir dele que o pintor pode obter a esperança verdadeira e segura de que não deve

compor em sua imaginação senão aquilo que possa realizar na obra. Razão pela qual, sendo

ele aquilo que expõe discursivamente e entende o todo, todos devem familiarizar-se com ele,

para que a ciência e a prática tenham o devido acompanhamento, de tal maneira que uma não

ultrapasse a outra na obra, mas ambas floresçam juntas, fazendo com que as coisas pareçam

não terem sido feitas pela arte, mas pela própria natureza, e descobertas pela arte570. Por fim, a

reflexão é aquele enorme cuidado, esforço de indústria e de vigilância, acompanhado por uma

ardente vontade de alcançar tudo que o artista imaginou, sem a qual ninguém espere ser

possível algum dia fazer uma coisa boa e louvável, sobretudo nas composições universais. Já

que ela é justamente aquele fogo e desejo de honra que não deixa o homem fugir do cansaço

no intuito de poder alcançar o que se quer.

Ora, todas estas espécies e as suas partes formam, tanto pela teoria como pela

prática, todas as invenções da arte da pintura. Por isso, quem não possuir este gênero, com

todas as suas espécies e partes, perderá todo o tempo e o trabalho empregados para tornar-se

um bom pintor. E por isso, não sem razão, coloquei-o no pavimento do templo, para que os

sete gêneros já descritos e aplicados aos sete governadores sejam resguardados pelas espécies

e partes deste, afim de que se possa melhor penetrar, através de seu fundamento, na minha

ideia. Agora, a fim de proceder até o fim com número setenário, combiná-los-ei com as sete

partes que se seguem, começando pela proporção e suas partes, e, depois, continuando a

discutir sobre as demais, uma por uma.

XIX

Da primeira parte da pintura e de suas espécies.

A proporção, primeira e principal parte da pintura, divide-se em duas, chamadas

igualdade e desigualdade571, através das quais em todos os corpos faz resplandecer o desenho

ou euritmia.

570 "Ut natura pictura", a arte não é mais emuladora das formas da natureza, mas imita a natureza em sua potência criadora. Cfr. Ossola, L'autunno del Rinascimento, pp. 16-18; p. 24:

"L'Arte dunque imita ancora la natura, ma non più in un rapporto di subordinazione cercando di contraffarla nella fedele riproduzione formale, o di migliorarla astraendo il più proporzionato nella selezione, bensì con un processo genetico paralello emulandola nell'incessante creazione di nuove forme" (Ossola, cit., p. 18)

571 Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 298) afirma que essas duas classificações da proporção derivam do comentário de Cesariano a Vitrúvio (I, 12).

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273

Há igualdade quando uma parte não excede a outra, nem para menos e nem para

mais, e por isso elas são chamadas iguais. E desta se encontram três tipos, denominados de

acordo com os números utilizados para dar proporção às coisas: o primeiro tipo se chama

número ímpar, o segundo tipo, número par e o último, número fracionado. O número ímpar é

como o três, o cinco e os parecidos com eles, que jamais coincidem com os números pares. O

número par é como o dois, o quatro e os parecidos com eles, que aumentam e diminuem

somente por paridade. O número fracionado é como o um e meio, o dois e um quarto, o dois e

meio, o dois e dois terços, dois e três quartos, e os parecidos com eles, que jamais são pares

perfeitos ou ímpares perfeitos. Contudo, sob este gênero de igualdade, as coisas sempre serão

compreendidas, em todas as maneiras e para todos os números iguais, como, a título de

exemplo, no caso da distância do cotovelo ao pulso que é de uma face e meia, e do mesmo às

costas que é a mesma medida. Mesmo sendo este número fracionado, é, no entanto, igual, já

que ambas as partes são parecidas572.

O segundo gênero, conhecido como desigualdade, é aquele através do qual todos

os corpos do mundo podem ser medidos e reduzidos a proporções e a correspondências por

meio dos números e pelas conveniências das partes. Este se divide em cinco espécies: a

primeira chama-se multíplice, a segunda, sobreparcial, a terceira não tem denominação, a

quarta também não, mas a quinta e última se chama multíplice sobreparcial. A multíplice é

aquela em que o maior número possui em si o menor, duas, três, quatro, ou mais vezes, como,

por exemplo, o dois que possui o um e chama-se proporção dupla, o três que tem o um e

chama-se proporção tripla, e o quatro que possui o um e diz-se dele proporção quádrupla. A

segunda espécie, chamada de sobreparcial, é quando o maior número possui inteiramente o

menor e uma fração, seja a metade, como o 3/2, chamado proporção sesquialtera, seja a

terceira parte como no 4/3, chamado de proporção sesquiterça, seja a quarta parte como o 5/4,

chamado de proporção sesquiquarta. A terceira espécie ocorre quando o maior número

contém integralmente o menor e algumas frações dele. Se o maior avançar em duas frações o

menor, será chamado de proporção sobrebiparcial, como 5/3. Mas se avançar em três frações,

será chamada de sobretripacial, como 7/4. E se avançar em quatro frações será chamado

sobrequadriparcial. A quarta espécie é aquela composta da multíplice e da particular573, ou

572 Ciardi aponta Boécio, Arithmetica, (I, 21) como possível fonte de L. Para Ciardi (op. cit., n.t., vol. I, p. 299), ele não utiliza o tratado original de Boécio, mas um outro de música devido à falta da categoria de frações sub unitárias. 573 Em Boécio esta proporção não está dividida; Ela corresponderia à proportio multiplex superparticolaris : (ax+1)/x. (Cfr. Ciardi, op. cit, n.t., vol. I, p. 299 e Klein, op. cit., n.t., vol II, p. 692).

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seja, quando o maior número possui em si o menor duas ou três vezes, ou o quanto se desejar.

Se ele tiver duas vezes o menor mais um meia fração será chamado, então, duplo sesquiterço,

como no 7/3. Se tiver três vezes o menor e mais uma metade, será chamado proporção tripla

sesquialtera, como o 7/2. A última espécie, chamada de multíplice sobreparcial, ocorre

quando o maior número possui em si o menor mais de uma vez e mais de uma de suas

frações, como, por exemplo, se o maior número abarca o menor duas vezes e duas partes dele,

chama-se proporção sobre biparcial, como o 8/3. E se ele abarca três vezes e duas partes dele,

será chamado de proporção tripla sobre biparcial, como o 11/3. Mas se envolver três vezes e

três frações dele, será chamado de proporção tripla sobre triparcial, como o 15/4.

Estas são as espécies dos dois gêneros menores da proporção, através das quais se

origina a euritmia ou desenho em todos os corpos, que não é outra coisa senão a suma beleza

e graça que resulta em qualquer corpo que estiver de acordo com ela. Esta proporção é quem

introduz a beleza, o útil, a adaptação e o ornamento, primeiramente nos corpos naturais,

como, entre os animais racionais, nas mulheres e nas crianças, e entre os irracionais, no cavalo

e nos outros quadrúpedes, nos pássaros, nos dragões, nos monstros, como os cinocéfalos, os

antropófagos, os rinocerontes, os centauros e também os semideuses, como os sátiros, os

faunos, os pans, os silenos, e outros parecidos, e entre as coisas inanimadas como as árvores,

montes, as colinas, planícies, rios, mares, fontes e todo o resto que se encontra na natureza.

Em segundo lugar, demonstra também esta beleza nos corpos e nas coisas artificiais, como,

entre os edifícios, nos templos, nos palácios, nos teatros, e em todas as obras de arquitetura,

mesmo as militares, e é através dela que todas as construções, maiores ou menores, são feitas

racionalmente. Dela, igualmente, procede a proporção das roupas, das armas, dos

instrumentos, tanto de defesa como para o deleite, e de quantas outras coisas que podem os

nossos olhos agradar e deleitar. Esta proporção é a natural, encontrada nos corpos perfeitos

(sem escorços nem fugas formadas por suas partes) deduzidas racionalmente e não por acaso

com linhas perfeitas, demonstrando as proporções através das relações das partes dos

membros, a fim de que a coisa pareça bela e seja adaptada. Portanto, é por isto que o

antiquíssimo Apeles, seguindo Eupompo, grandíssimo pintor e matemático, e o seu mestre

Panfilo, dizia que ninguém poderia denominar-se pintor sem que tivesse o conhecimento da

geometria e da aritmética, das quais nascem quantas proporções e formas forem possíveis de

serem feitas574. E esta via foi seguida pelos maiores pintores da Antiguidade, como se vê nas

574 Em Plínio, o comentário é referente a Panfilo, não a Apeles, Cfr. Plinio, Hist. Nat., XXV, 76: "[Pamphilo] ipse Macedo natione, sed (...) primus in pictura omnibus litteris eruditus, praecipue arithmetica et geometria, sine quibus negabat artem perfici posse (...)". (Ciardi, op. cit., n. t., vol I, p.300)

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obras admiráveis deixadas por eles, e sobre eles escrevem e cantam os historiadores e os

poetas, tanto antigos como modernos, e em nosso tempo foi seguida por Leonardo,

Buonarroti, Rafael, Ferrari, Mantegna, Foppa, Bramante, Civerchio575, Zenale, Peruzzi e

Dürer. Estes, grandíssimos geômetras e aritméticos, proporcionaram de tal forma sua pintura

com razões iguais, que desvalorizaram e empobreceram todo o restante de obras feitas pelos

que não possuem estes fundamentos e que não sabem ao menos sua definição, nem muito

menos experimentá-las, e que tornaram-se pintores excelentes somente por causa da beleza

externa das cores576. Em razão disso que se pode dizer que nascem pintores espontaneamente,

como fazem os fungos, mas sem um grão de sal no cérebro577. Por isso, estes e todos os outros

que aspiram a verdadeiros elogios devem observar e seguir as proporções supracitadas em

suas plantas e formas, pois compreenderão todos os fundamentos da pintura matemática,

através dos pontos, linhas, superfícies e corpos. Contudo, chamando atenção para o que foi

dito por Vitrúvio em torno às ciências - que o arquiteto deve aprender e possuir - ou seja, que

não é preciso esgotar-se para entendê-las todas perfeitamente, mas basta que tenha um

conhecimento mediano578. Não faltar-lhes-ão tratados belíssimos e bastante claros dos

matemáticos modernos, através dos quais se possa estudar e conhecer as verdadeiras

proporções e todas as outras coisas, como os tratados de Torriano, de Ingolstadios,

Nostradamus, Cardano, Moleto, Ottonai, Tartaglia, Comandino, Benedetti, Pigliasco, Siglio,

575 Tanto Ciardi (op. cit., loc. cit.) quanto Klein (op. cit., n.t., vol II, p. 693) questionam a inclusão de Civerchio nesta enumeração, já que todos os artistas citados fazem parte da lista de artistas do cap. IV do Idea com exceção dele. Vincenzo Civerchio (Crema, c. 1470 - 1544) foi um representante da escola bresciana, muito influenciado por Vincenzo Foppa. Como referência visual, é possível fazer uma apoximação compositiva entre a "Madonna con Bambino, san Lorenzo e santo Stefano" executada por Civerchio em 1531, para igreja de Santa Marta em Crema, e a "Incoronazione della Vergine" feita por L. em c. 1570 para a Capella Foppa em S. Marco em Milão. Ind. bibliográficas sobre Civerchio: Caffi, M. Di Vincenzo Civerchio da Crema, pittore, architetto, intagliatore del secolo XV - XVI in "Archivio storico italiano". Florença, 4.Ser. 11.1883, 27 ; 8 ; Ferrari, E. L’ evoluzione artistica di Vincenzo Civerchio da Crema in "Archivio storico per la città e i comuni del territorio lodigiano e della diocesi di Lodi". Lodi, 37/38.1919, 26 ; 8 ; Peroni, A. Vincenzo Civerchio e la scultura lignea lombarda in "Arte lombarda". 7.1962, 2, 60-69; Marubbi, M. Vincenzo Civerchio. Contributo alla cultura figurativa cremasca nel primo Cinquecento. Milão: Il Vaglio Cultura Arte, 1986; Panazza, G. Vincenzo Civerchio in una recente monografia in "Commentari dell’Ateneo di Brescia". Brescia, 186.1987, 191- 202; Frangi, F. Vincenzo Civerchio. Un libro e qualche novità in margine in "Arte cristiana". Milão, 75.1987, 325-330; Marchi, A. Qualche spunto per Zenale e Civerchio in "Nuovi studi" . Milão, 2.1997, 4, 131-141 ; Cavallini, G. I protagonisti del Rinascimento cremasco. da Vincenzo Civerchio ad Aurelio Buso in Rinascimento cremasco, Milão, 2015, pp. 111-121; 576 Pode-se identificar aqui mais uma crítica aos Campi. 577 Expressão que significa "sem nenhum bom senso". No texto italiano: "ma senza Rquesto sal in zucca"; Tr. R.K: "mais sans un grain de sel dans leur tête" ; Tr. J.J.C. "without a grain of salt in their head". 578 Cfr. Vitruvio, I, 1 e Idea del Tempio, cap. VIII e nota 453 desta trad.

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Giutino e Baldini579. Estes irão abrir-lhes os olhos, e assim poderão caminhar seguramente,

sem tropeçar em equívocos. De outra maneira, seriam como cegos, fazendo pinturas mais ao

acaso, somente com a beleza das cores, do que com a firmeza pronta do juízo proporcionado

através da razão.

XX

Da segunda parte da pintura e de suas espécies.

O movimento, a segunda parte da pintura, divide-se igualmente em diversas

espécies, que são o humano, o proporcionado, o vegetal, o elementar, o irracional e o

acidental.

O humano é o que se dá aos corpos humanos conforme o movimento e a paixão

da alma, como, por exemplo, movimentos alegres, tristes, contidos, e finalmente todos os

outros, que são quase infinitos, dos quais se discorre longamente no segundo livro do meu

tratado.

O proporcionado é o que se dá comumente a todos os corpos, tanto dos homens

como dos cavalos e dos outros animais, conforme o que naturalmente o corpo pode fazer. Por

isso, aqui se proíbe fazer um membro que se estenda até onde não pode, e aqui se ensina a

forma regulada de não deformar os corpos.

O vegetal é o que se dá às folhas, às flores, às frutas, às árvores e às ervas, as

quais são ora envolvidas pelo ar que as fazem entortar, e ora agitadas pelo vento que

impetuosamente as golpeiam e oprimem.

579 1.Nostradamus (1503-1566) foi um médico e astrólogo francês bastante célebre que viveu na primeira metade do Cinquecento, em em seus últimos anos, esteve à serviço de Catarina dei Medici, na corte Francesa. Citado no Rime, p. 157;

2 - Niccolò Tartàglia foi um matemático nascido na Brescia (c. 1499 - 1557), a quem se deve a primeira edição italiana dos Elementi de Euclides. É citado por L. no Rime, p.473;

3- Girolamo Cardano (1507-1576) foi um matemático, astrólogo e físico, nascido em Pavia. Fez parte do círculo de intelectuais de L. Lomazzo. Citado no Rime, p. 156;

4- Giambattista Benedétti (1530-1590), nascido em Veneza, foi um matemático aluno de Tartàglia, serviu os duques de Savoia na corte em Turim. Foi amigo de Lomazzo, de acordo com o Rime, p. 158;

5- Iglo, Stadio ( nome dividido por vírgula na ed. de 1590) é Petrus Apianus (1495, Leisnig - 1552, Ingolstadt), astronomo, cosmógrafo e matematico na corte de Carlos V;

6 - Bernardino Baldini (1515-1600), filósofo, médico e matemático, nascido em Lago Maggiore, próximo a Milão, amigo de Lomazzo, citado no Rime, p.159.;

7- Francesco Ottonaio, citado no Rime, p. 158, médico, astrônomo e matemático, preceptor de Carlos Emanuele di Savoia. Os outros nomes não são identificaveis.

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O elementar é o que se dá na água, túrgida e flutuante por causa das ondas

agitadas pelos ventos, que regularmente sobem e descem, caindo do alto para baixo com

estrépito. No fogo e na chama é dilatado, agudo e resplendente. No ar corruscante, repentino,

escuro, assustador e inflado pelas agitações que lhe fazem os ventos, e pelas nuvens que o

congregam. E, finalmente, na terra é ruinoso, profundo e agitado.

O irracional é o que se dá a todas as coisas privadas de sentido, como as cordas, as

plumas, panos, véus, papéis, cabeleiras e outras coisas similares que se movem devido ao

vento ou a outra coisa. E destes alguns se chamam enrolados, como nas plumas, nos véus e

nos cabelos; agitados, como nas cordas e nos panos; e os móveis, como a poeira, as folhagens,

as palhas e coisas semelhantes e leves, que são levadas pelo vento acidentalmente.

A última espécie de todas é a que se dá às coisas maravilhosas acidentalmente,

como movimentos estrepitosos nas ocasiões de terríveis desabamentos, e pavorosos em

espetáculos de morte ou coisas semelhantes, todos muito diversos entre si, como demonstro

no meu livro dos movimentos.

Todas estas espécies de movimentos vêm a formar na pintura a animação, que

também é chamada pelos pintores de fúria ou terribilidade da arte. E é este que impulsiona os

observadores a se comoverem de diversas formas, e a se apaixonarem através do riso, da dor,

da audácia, do assombro, da maravilha, do terror, da lascívia, e de outros afetos da alma, e,

em suma, incita-lhes e lhes comove através de tudo aquilo que lhes é representado, com tão

maior força e efeito, quanto mais o pintor souber eleger os melhores e mais apropriados

movimentos ao efeito que se quer demonstrar na pintura580.

580 Aqui, é possível divisar e confirmar uma vez mais a centralidade que o movimento possui em sua teoria da expressão, aquele que veicula as emoções ao espectador, aquele que é a fúria do pintor, a fúria enquanto inspiração divina e expressão pessoal do pintor. O movimento, desde o L.S. é a parte que possui o papel da expressão do furor artístico. J. Chai (The art of expression, 1990, p. 9) considera o movimento, na teoria de L., como a dimensão irracional da mente criativa do pintor, uma extensão da alma do artista, uma questão do âmbito de sua subjetividade. Ainda, existe aqui uma noção mágica da pintura como talismã, cfr. Klein, 1959; Chai, op. cit., pp. 330, 348-9.