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A CATEGORIA "DOENÇA DE BRANCO": RUPTURA OU ADAPTAÇÃO DE UM MODELO ETIOLÓGICO INDÍGENA? Dominique TILKIN GALWIS(*) Introdução A análise que me proponho realizar neste artigo diz respeito ao estudo de um modelo indígena de interpretação das doenças e de sua cura, dentro de um contexto sócio-cultural específico. Abordo o caso dos Waiãpi do Amapá, há vários séculos em contato indireto com a sociedade regional, mas que dispõem há apenas 15 anos de serviços de saúde diretamente em suas aldeias, por agentes da FUNAI ou por missionários evangélicos. 1. O CONTEXTO ETNOGRÁFICO Os índios Waiãpi, falantes de uma língua Tupi-Guarani, habitam uma vasta extensão de floresta tropical de terra finne na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. A população total da etnia é de cerca de 800 indivídu- os, distribuídos entre diferentes grupos territoriais. O material analisado neste artigo foi coletado ao longo de vários anos entre os Waiãpi meridio- nais, que habitam a Área Indígena (AI) Waiãpi do Amapari. Nesta região, o contato inter-éblico é dominado pela questão do garimpo: nesse contexto, a concepção que os Waiãpi têm dos brancos - genericamen- (•) Antropóloga, Professora do Departamento de Antror,ologia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisaaora do projeto "Povos Indígenas no Brasil' do Centro Ecumênico de Documentação e Infonnação (CEDD de São Paulo. 175

GALLOIS-1991 a Categoria 'Doença de Branco'. Ruptura Ou Adaptaçao de Um Modelo Etiológico Ind

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GALLOIS-1991 A categoria 'doença de branco'. Ruptura ou adaptação de um modelo etiológico indígena?

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  • A CATEGORIA "DOENA DE BRANCO": RUPTURA OU ADAPTAO DE

    UM MODELO ETIOLGICO INDGENA? Dominique TILKIN GALWIS(*)

    Introduo

    A anlise que me proponho realizar neste artigo diz respeito ao estudo de um modelo indgena de interpretao das doenas e de sua cura, dentro de um contexto scio-cultural especfico. Abordo o caso dos Waipi do Amap, h vrios sculos em contato indireto com a sociedade regional, mas que dispem h apenas 15 anos de servios de sade diretamente em suas aldeias, por agentes da FUNAI ou por missionrios evanglicos.

    1. O CONTEXTO ETNOGRFICO Os ndios Waipi, falantes de uma lngua Tupi-Guarani, habitam uma

    vasta extenso de floresta tropical de terra finne na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. A populao total da etnia de cerca de 800 indivdu-os, distribudos entre diferentes grupos territoriais. O material analisado neste artigo foi coletado ao longo de vrios anos entre os Waipi meridio-nais, que habitam a rea Indgena (AI) Waipi do Amapari.

    Nesta regio, o contato inter-blico dominado pela questo do garimpo: nesse contexto, a concepo que os Waipi tm dos brancos - genericamen-

    () Antroploga, Professora do Departamento de Antror,ologia da Universidade de So Paulo (USP) e pesquisaaora do projeto "Povos Indgenas no Brasil' do Centro Ecumnico de Documentao e Infonnao (CEDD de So Paulo.

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  • te designados como karai-ku - est profundamente enraizada na interpreta-o cosmolgica das experincias recentes de confronto com garimpeiros: a destruio da floresta, a lama dos garimpos, a propagao de doenas antes desconhecidas, so sinais que reforam a identidade do branco como "des-truidor''. acelerador de cataclismos previstos pela tradio mtica (ver Gallois, 1990 e s.d.).

    As modalidades de enfrentamento adotadas por esta sociedade nas suas relaes com os brancos devem ser analisadas num quadro global que en-volve todas as relaes entre os Waipi e as outras etnias por eles conheci-das, especialmente aquelas que historicamente os confrontam com diferen-tes categorias de inimigos, que incluem hoje, tambm os brancos. Esses . contatos situam-se, por sua vez, numa taxionomia mais ampla de relaes entre esta sociedade e o resto do universo, que estabelece diferenas entre categorias humanas e naturais, sobre-humanas e sobrenaturais (ver Gallois, 1988).

    Nessa taxionomia global ntida a ambigidade dos karai-ku, que so s vezes integrados ao sistema (por exemplo, atravs do mito de criao da humanidade) e em outros momentos excludos. Os brancos so significati-vamente ausentes da classificao etiolgica que sustenta a atividade xama-nfstica. Como se ver adiante, extremamente raro que, por ocasio de um diagnstico, o xam acuse os brancos como causa direta de uma morte ou de uma doena. Todavia, isso no exclui a existncia de interpretaes que incorporam os efeitos do contato na degradao da sade das comunidades. So estas representaes etiolgicas relativas s doenas decorrentes do contato ou "doenas de branco" que me proponho analisar neste artigo.

    2. O ESTUDO DE SISTEMAS ETIOLGICOS EM SITUAES DE CONTATO INTER-TNICO

    O tema da doena tem sido abordado pela "antropologia da doena" como um objeto emprico distinto, mas que remete, fundamentalmente, a quest-es mais amplas relativas organizao social, cosmologia e histria da sociedade estudada. Tentarei mostrar como a lgica da doena se inscreve, efetivamente, no campo mais amplo da lgica social e, no caso especfico das "doenas de branco", procurarei evidenciar como a construo desta categoria s pode ser entendida dentro do contexto da histria de contato antiga e recente dos Waipi.

    A noo de "doena de branco" tem sido utilizada e assumida, tanto por antroplogos como por profissionais de sade, como urna categoria funcio-

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  • nalmente vlida, diferenciada das demais categorias etiolgicas tradicional-mente utilizadas pelos grupos indgenas, introduzindo-se assim a idia de urna ruptura nos esquemas cognitivos tradicionais .de interpretao das do-enas. De incio, parece-me importante registrar que a introduo de uma tal diferenciao interna nos esquemas interpretativos indgenas tem vrios efeitos negativos, que no podemos deixar de mencionar. A utilizao, sem restrio, deste conceito tanto na literatura antropolgica quanto mdico-sa-nitria tem desestimulado estudos mais aprofundados que levariam com-preenso do significado e da posio desta categoria dentro da lgica dos sistemas etiolgicos indgenas. A noo "doena de branco" carrega, em si, urna srie de pressupostos negativos relativos ao destino dos povos indge-nas, dentro de urna viso da inevitabilidade da deculturao, que afeta no s os padres de organizao scio-econmica mas tambm os modelos eti-olgicos dos grupos em contato.

    A diferenciao entre doenas tratadas pelas terapias tradicionais e "do-enas de branco" que remetem a prticas teraputicas no-indgenas , sem dvida, verbalizada pelos ndios, sobretudo quanto so solicitados a relatar os distrbios subseqentes ao contato. muito comum obter, por parte de informantes indgenas, uma histria epidemiolgica com referncias a uma categoria genrica de "doena de branco". tambm bvio que a maioria das comunidades indgenas em contato com representantes da sociedade nacional tenha associado a degradao de sua situao de sade com a in-tensificao das relaes com os brancos e, nesse contexto, se utilizem de uma categoria de carter relacional como esta (ver Buchillet, neste volume, pp. 161-173).

    Em funo disso, esta categoria passa a ser reforada pelos intermediri-os que atuam na rea da sade, que a utilizam como marco para delimitar fases pr e ps contato. O uso estratgico que esses profissionais fazem desta categoria muitas vezes justifica uma srie de intervenes drsticas na rea de sade, com o objetivo de "salvar" os grupos indgenas, alegan-do-se que estes se consideram impotentes diante das "doenas de branco".

    Em primeiro lugar, cabe nos perguntar se, por trs da aceitao e da pro-cura, pelos ndios, de terapias aliengenas, h realmente uma "desistncia" em relao aos padres etiolgicos e teraputicos tradicionais. preciso avaliar quais circunstnciais levaram criao e utilizao desta categoria por parte dos ndios e, em segundo lugar, as razes de sua valorizao por parte dos agentes de sade. Por parte destes ltimos, constaia-se, muitas ve-zes, um uso autojustificado da categoria "doena de branco", sem que se te-

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  • nham realizado estudos aprofundados sobre os significados - etiolgicos, sociolgicos e sobretudo polticos - deste conceito indgena.

    A utilizao de um esquema de interpretao evolutivo, que justifica a substituio. Finalmente, esta pola-

    (!)O tulo do estudo de Bmnelli "Des espriu aux microbes" (1987) um bom exemplo deste tipo de interpretao, corrente na etno-medicina contempornea.

    (2) Ver, por exemplo, Buchillet, 1990 e neste volume pp. 21-44; Chaumcil, 1983; Figueroa, 1984; Lobo-Guerrero & Herrera, 1989. (3) Para uma anlise crtica destas concepes tradicionais na literatura antropolgica, que orientou as

    reflciccs contidas nesta introduo, ver Buchillct, neste volume, pp. 21-44.

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  • rizao revela aspectos ainda vigentes de uma classificao evolucionista das sociedades humanas, uma vez que ela prioriza a dicotomia entre algo passado e algo que se configura como uma mudana necessria, a passa-gem do irracional para o cientfico.

    Diante dessas consideraes, parece-me que a categoria "doena de branco" deve ser analisada como parte integrante do sistema etiolgico da sociedade considerada, e no apenas como categoria de introduo recente, ou como excrescncia em relao ao sistema de explicao tradicional das doenas. De fato, cada sociedade possui um conjunto de explicaes etiol-gicas que passa por constantes transformaes que permitem abarcar a tota-lidade das doenas conhecidas pelo grupo; este conjunto forma sistema e inclui no s os diagnsticos como os tratamentos de cura e preveno que, por sua vez, se relacionam com determinada organizao social e um con-junto de valores culturais; a relao entre o sistema etiolgico e os demais aspectos scio-culturais depende, por sua vez, do conjunto de crenas sobre as causas da doena, que perpetuamente se atualiza atravs de novas expe-rincias patolgicas. Este sistema de representaes constitui, enfim, o qua-dro. de referncia bsico no qual deve ser compreendido o sistema etiolgi-co que vigora no presente da sociedade estudada.

    Gostaria ainda de fazer algumas observaes relativas conceituao te-rica e metodolgica de uma discusso sobre esta suposta categoria etiol-gica "doena de branco", que deve focalizar, prioritariamente, a questo do uso social da doena.

    Sabemos, de fato, que todas as medicinas so simultaneamente "artes de cura dos indivduos" e "artes de manipulao social das doenas" (Z.Cmplni, 1982). Assim, as representaes sobre as doenas devem ser en-tendidas como subordinando o destino do indivduo ao destino de seu gru-po. O diagnstico e o tratamento no tm como nica finalidade a cura do problema individual mas a converso de uma desordem biolgica em de-sordem social que, esta sim, altamente mobilizadora e que importa serre-parada. Trata-se ento de analisar o processo coletivo em jogo, que tem como meta modificar ou regular relaes polticas, econmicas ou scio-jurfdicas que unem ou opem grupos. Interessa enfim saber - de acordo com a orientao de Z.Cmplni (19~2) - como cada sociedade usa seus do-entes para assegurar sua reproduo ou fazer frente a mudanas internas, o que nos leva a analisar a eficcia social dos sistemas mdico-teraputicos em vigor dentro de cada sociedade. Nessa perspectiva, fundamental avali-ar o quadro cotidiano de vida do doente e todo o contexto social que o en-

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  • volve, especialmente no que diz respeito s tenses inter-micas, como se ver no caso Waipi.

    nesse sentido que o estudo da categoria "doena de branco" deve situ-ar-se num dos nveis mais abrangentes da definio antropolgica da doen-a, que diz respeito realidade scio-cultural na qual ela se manifesta. Focalizar este nvel no estudo das explicaes etiolgicas da doena consis-te em dar prioridade ao processo de socializao da doena em sintomas significativos do ponto de vista social. Esta socializao incorpora os ou-tros nveis da doena, relativos aos aspectos subjetivos e biofsicos do mal(4). Cada sociedade tem suas regras para traduzir a passagem dos nveis individual e biolgico para o nvel da representao social da doena.

    A funo adaptativa das prticas mdicas est, portanto. no nvel das suas representaes. No so nem o paciente nem o terapeuta - atravs de suas interpretaes - que produzem esta adaptao, mas a traduo scio-cul-tural coletiva da realidade subjetiva e biofsic" da doena que detm essa funo adaptativa. Isso significa que as prticas mdicas so prticas ideo-lgicas, e que os smbolos de tratamento so smbolos de poder {Young, 1982:27).

    De fato, por trs da manipulao de uma classificao de doenas que polariza categorias etiolgicas do tipo doenas "de ndio" ou "de branco" e de sua interpretao, por ndios e brancos, est presente, fundamentalmen-te, um jogo de poder.

    Sistema etiolgico Waipi

    Apresento a seguir, de fonna resumida, as principais caractersticas do sistema etiolgico Waipi, de que trato mais detalhadamente em outro tra-balho (1988). preciso deixar claro que, na descrio que segue, estarei tratando do sistema como um todo, que inclui, como um de seus compo-nentes, a cura xamanfstica. O foco de minha anlise no recai sobre a prti-ca teraputica dos xams e sim sobre a lgica interna do modelo etiolgico Waipi, que inclui a teoria da agresso xamanstica como um entre vrios modelos interpretativos da doena(5).

    (4) Esses diferentes nveis da definio antropolgica da doena costumam ser diferenciados a partir de trs conceitos: sck.ness, que se refere realidade scio-cultural da doena, dsease representando a experincia subjetiva e illness que corresponde realidade biofsica da doena; ver Young, 1982; Zemplni, 1985 e 1988.

    (5) O material levantado at o momento permite diferenciar trs modelos interpretativos, construdos a

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  • Cabe lembrar, neste ponto, que entre os Waipi como em numerosas sociedades, o universo da doena abrange, alm dos distrbios da pessoa biolgica, outros infortnios, individuais ou coletivos, que atingem ativida-des sociais, rituais e de subsistncia de uma comunidade (por exemplo, a infelicidade na caa, o apodrecimento das plantas na roa, o ataque de uma ona, etc.).

    1. TEORIA DA AGRESSO XAMANSTICA Os Waipi costumam atribuir a causa da maioria dos transtornos que se

    abatem sobre a comunidade aos aj. Esse conceito designa, de modo abran-gente, diversas entidades sobrenaturais e, ao mesmo tempo, seus comporta-mentos. o termo usado para se referir tanto a seres individualizados (como os -jar, donos de espcies naturais), como ao dos xams huma-nos; relaciona-se tanto a seres vivos como aos mortos; reporta tanto a uma modalidade de agresso quanto a uma ao teraputica.

    A doena sempre vista como resultado de um desequilbrio na ordem social, ecolgica e cosmolgica, envolvendo a relao entre a sociedade humana - idealmente, a sociedade Waipi, que representa a "verdadeira hu-manidade" - e o mundo dos "outros", uma srie de categorias de alteridade que inclui os animais, os inimigos, os mortos.

    Essa diversidade de situaes e de causalidades genricas representada pela categoria aj perpetuada pelo discurso etiolgico do dia a dia (a etio-logia "popular"), que literalmente "confunde" as diferentes manifestaes do "efeito-esprito" (ver Viveiros de Castro, 1986) que o princpio aj re-presenta. Por exemplo, no discurso dos no-especialistas, aj pode designar a entidade controladora do mundo aqutico (moju "cobra anaconda") ou o xam de uma comunidade inimiga, que se utilizou de sua relao privile-giada com essa entidade sobrenatural para perpetrar sua agresso; aj pode ainda designar o corpo estranho (ponta de flecha, pedra, etc .. ) que o xam inimigo - ou a entidade sobrenatural - enviou dentro do corpo do doente para mat-lo. No discurso dos especialistas, os xams, cuja funo justa-mente a de identificar o aj envolvido numa doena, numa morte, ou num infortnio especfico, essas entidades e suas manifestaes passam a rece-ber designaes e origens precisas.

    Circunscrever os mltiplos significados da categoria aj implica em dis-

    partir de associaes cognitivas distintas: a teoria da agresso xamanstica (que recobre vrias formas de agresso, canibais ou no), a teoria do contgio (que inclui vrias modalidades de contaminao) e, como explicao a-posleriori, a teoria dos pressgios.

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  • tinguirinos - para fins de anlise - entre duas sries indissociveis no pensa-mento Waipi: de um lado agresso, do outro reparao. Ambas esto em-butidas no "efeito-esprito" aj. A descrio das diferentes modalidades te-raputicas - que procuram no s identificar como atenuar ou mesmo elimi-nar os "efeitos" da agresso - presume uma compreenso inicial do sistema etiolgico deste povo.

    2. AS ETAPAS DO DIAGNSTICO As terapias praticadas pelos Waipi do Amapari envolvem uma Srie de

    atores, que intervem sucessivamente no processo de cura das doenas. A participao desses atores normalmente definida aps o aparecimento da doena e depende da persistncia dos primeiros sintomas, que exige, por parte dos familiares e do especialista consultado, uma tomada de deciso: identificar, para depois reparar a agresso. O diagnstico o momento cru-

    . cial na seqncia de aes e reaes provocadas pelo aparecimento de uma doena ou de outro infortnio.

    A etnologia sul-americana costuma abordar a questo da identificao das causas e/ou dos agentes da doena - isto , a etiologia - atravs de clas-sificaes que identificam, em primeira instncia, "quem" manda a doena. Distingue, por exemplo: "doenas de espritos", "doenas de animais", "do-enas de feitiaria", ou ainda "doenas de branco"(6).

    O material que levantei no Amapari sugere outra abordagem. Os dados recolhidos at o momento revelam a existncia de pelos menos dois mode-los de causalidade - a teoria da agresso canibal e a teoria do contgio - que devem ser diferenciados, pois configuram modalidades instrumentais da doena que remetem a processos mrbidos distintos. Essa distino permi-te, por sua vez, questionar a validade de uma categoria etiolgica "doena de branco" que discuto adiante.

    A entrada escolhida na minha investigao entre os Waipi procurou res-peitar a seqncia dos diagnsticos efeituados por diferentes atores: pelo prprio doente e/ou por sua famlia e, eventualmente, mas no obrigatoria-mente, por um xam. Procuro tambm ressaltar a constante atualizao dos diagnsticos, segundo a evoluo da doena e Inclusive aps a sua resolu-o - pela cura ou pela morte - em funo de interesses interpessoais~ Esta abordagem procura evidenciar no uma taxionomia mas, principalmente, a

    (6) Oassificaes deste po foram estabelecidas por Grenand, 1981/82 para os Waipi da Guiana Francesa; Albert, 1988 para os Y anomami; Buchillet, 1988 para os Desana.

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  • lgica dos esquemas de causalidade levados em conta pelos Waipi em seus diagnsticos: primeiro verificar "como" a doena atinge o indivduo, em seguida verificar "por que" este agredido, para ento procurar "quem" o agente da agresso. A seguir, abordarei sucessivamente estes diferentes nveis de apreenso da doena.

    3. COMO: ELEMENTOS DE NOSOLOGIA A identificao e a descrio dos sintomas, isto do "como" se processa

    a doena, j indica o tipo de agresso sofrida, orientando o diagnstico e a determinao do agente responsvel. Neste primeiro nvel de apreenso da doena, o diagnstico emprico, construdo a partir da observao dos sin-tomas, identifica apenas causas instrumentais e/ou agentes genricos: a do-ena atribuda agresso canibal dos aj, ou adquirida por contgio.

    A doena atribuda agresso canibal se processa a partir de dois tipos de intervenes, s vezes simultneas, em outros casos separadas: esvaziamento e/ou invaso do corpo. A entidade causadora retira o princpio vital (-) da pessoa e/ou insere um elemento estranho que destruir suas entranhas. Invaso e expulso so dois conceitos que reencontramos nas duas patologias mais temidas pelos Waipi: - Exemplo de processo de invaso: ay m'e: (literalmente "aquilo que -

    dor"); este processo quase sempre concebido como predao canibalfstica e, neste sentido, remete teoria da agresso xamanstica, que se processa atravs da injeo de substncias (as "armas" do xam) que destrem as entranhas do agredido. No entanto, a invaso tambm contm a

    i~ia do contgio, -jipy'e. Por esta razo, como se ver adiante, os Waipi passaram a associar o vocbulo nosolgico ay m'e gripe. No processo de contgio da gripe, como no caso da agresso xamanstica, substncias patognicas pentram no corpo para destru-lo. Mas agresso e contgio so diferenciados pelo "caminho da doena": o processo mrbido da agresso canibal age diretamente dentro do corpo, o contgio age por contigidade, processando-se de fora para dentro. - Exemplo de processo de esvaziamento: mano-mano, que se manifesta atravs de tontur~, perda dos sentidos e/ou comportamentos que os ndios traduzem hoje como "loucura". Mano-mano (de -mano "morrer") o estado do indivduo sem alma, isto , duplamente morto, uma vez que seu princpio vital, raptado por um inimigo, no segue ao "paraiso celeste" de

    (7) Ay ma'e passou a designar, entre os Waipi do Amapari, a gripe; sem dvida as afeces pulmonares foram as primeiras e mais graves doenas introduzidas pelo contato.

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  • jane raywer ("nossos mortos"), onde normalmente ascenderia imortali-dade.

    Existem portanto, na teoria etiolgica dos Waipi, trs processos distin-tos, se levarmos em conta a existncia de uma teoria do contgio, diferenci-ada dos processos de invaso e de esvaziamento. Discutirei a etiologia do contgio adiante, limitando-me por ora a descrever as fonnas de predao canibal representadas pelos dois outros processos mrbidos reconhecidos pelos Waipi. Como veremos, estas formas canibalsticas excluem total-mente a noo de "doena de branco".

    4. POR QUE: O CONTEXTO DA DOENA A identificao do "por que" de uma doena se realiza nonnalmente de

    acordo com a evoluo histrica da doena, a reao ou no ao tratamento escolhido, a associao com outros casos concomitantes do mesmo proble-ma, etc., atravs de diagnsticos proferidos sucessivamente pelo prprio doente, por seus parentes prximos, por parentes distantes e, finalmente, por um xam. Amplia-se, desta fonna, a rede de atores que - reconhecendo a agresso - participaro diretamente do processo de cura. De fato, a identi-ficao de uma agresso, assumida por essas vrias categorias de atores so-ciais, levar, impreterivelmente, a sua reparao.

    Para definir a causa do desequilbrio que originou a doena, os familiares do doente e/ou o xam realizam uma investigao que aplica critrios me-nos sintomticos que scio-culturais. Esses diagnsticos consistem em identificar relaes inadequadas entre um indivduo e/ou uma comunidade e um determinado domnio de alteridade (ver adiante, "quem") .. Os casos mais corriqueiros relacionam-se com a predao humana no domnio dos -jar, "donos" do universo terrestre e aqutico, e configuram retaliaes a uma srie de comportamentos inadequados. Por exemplo matar em excesso determinados animais, descuidar-se do destino das ossadas, que devem ser conservadas em casa ou nas roas, poluir a gua com sangue menstrual ou com sangue dos animais caados, etc. Outros casos dizem respeito mais di-retamente s relaes de conflito entre comunidades locais envolvidas em ciclos de agresso e retaliao, que da mesma forma que nas relaes com o mundo dos "donos" das espcies naturais, correspondem punio de um excesso: o consumo sem retribui.o, uma troca interrompida, um excesso de agresses verbais, etc.

    O veredito do xam identificar a "causa ltima" da doena, analisan-do o contexto em que ela se originou. Ele dir se a agresso configura a

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  • atualizao de um ciclo de vingana J identificado anteriormente pela co-munidade, ou se corresponde a algum "erro" recente que originou uma re-taliao predao excessiva dos homens em domnios controlados por "outros". Na concepo Waipi da agresso canibal, a doena vista como resultado da aproximao inadequada entre domnios csmicos - humanos e no~humanos - que precisam ser mantidos separados.

    A cura da doena - isto , sua resoluo - sempre uma retaliao. Como tal, est diretamente ligada ao xamanismo. No entanto, a interveno dos xams est normalmente condicil1um pedido dos parentes do doente, que s recorrem a este especialiSta quando no conseguiram resolver o pro-blema no mbito familiar. Os dois tipos de interveno no devem ser vis-tos 'como etapas rigidamente separadas. De fato, o xam pode intervir a qualquer momento do processo e, paralelamente, as terapias familiares no so necessariamente interrompidas com a interveno do especialista ritual. O mesmo pode ser dito em relao medicao dos "brancos", cuja aceita-o no invalida, nem elimina, as etapas subseqentes do processo de diag-nstico e cura.

    O uso da categoria ampla e aparentemente confusa de causalidade aj no discurso etiolgico do dia-a-dia no deve ser visto apenas como uma pri-meira etapa na identificao da causa de infortnios/doenas, ou do diag-nstico prof e rido por um no-especialista. Na verdade, o uso da categoria aj opera uma abertura permanente que possibilita novas interpretaes dos males que afetam os indivduos ou a sociedade como um todo. Ela

    . indicadora de situaes em que h "mistura" de domnios cosmolgicos normalmente separados, passando a representar o "outro". da sociedade: o animal, o inimigo, o morto.

    Quando h invaso de um domnio - natural, sobrenatural ou humano -por outro, esta invaso produz o efeito aj que representa a quebra do equilbrio. Pode-se conviver com a alteridade, mas distncia. A aproximao entre categorias distintas provoca predao e retaliao, que pem em ao o "efeito" aj.

    Tendo em vista que todo diagnstico , em si, uma acusao, interessa saber agora quem so os acusados e como se constri sua identidade de agressor, isto , de inimigo. Ora, a identificao desse "outro" depende essencialmente da posio de cada um na sociedade dos vivos, variando assim conforme interesses polticos, que devem ser identificados de acordo com o jogo das relaes concretas entre pessoas e/ou grupos humanos, e no apenas em funo das relaes entre estes e o mundo sobrenatural. O

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  • trabalho do xam consiste em apreender essa variao de interesses, atravs da determfriao das causas e da identidade do aj. Um determinismo menos sobrenatural e mais scio-poltico, que resulta na necessidade da vingana, da retaliao. Esta seria, em ltima instncia, o "efeito-esprito" materializado pelo aj.

    5. QUEM: IDENTIFICANDO OS AGENTES DA AGRESSO A descrio da cosmografia Waipi (ver Gallois, 1988) permite

    contextualizar a categoria genrica de causa-efeito aj em relao aos diferentes domnios de alteridade reconhecidos por este povo. Entre as identidades assumidas por aj, temos por um lado os donos das espcies naturais (-jar) e os espectros dos mortos (kwaray'a pore ou jurupari); ambos "so" aj. O mesmo pode ser dito dos inimigos humanos (da mesma ou de outra etnia).

    Os diagnsticos xamanfsticos levantados no Amapari, configuram assim quatro origens possveis para a agresso, definindo diferentes tipos de relaes entre os Waipi e o mundo dos "outros":

    a) os donos das espcies naturais (-jar) b) os espectros terrestres (kwaray'a pore) c) os (xams) inimigos, de etnias vizinhas (ap, banare-ku) d) os (xams) inimigos, de outros gnipos Waipi (am-ku)

    A relao entre essas quatro categorias merece alguns comentrios: - Todas elas esto relacionadas entre si, participando, atravs de um princ-pio de consubstanciao, da essncia do princpio aj. Todas partilham as substncias que caracterizam a fora xamanstica (-paie). Essa uma das razes pela qual considero que um modelo interpretativo binrio, que sepa-ra agresses humanas de agresses no-humanas, no se justifica no caso Waipi, mesmo que o leque de categorias de agressores envolvidos em pro-cessos de agresso possa ser,aparentemente,reduzido a esta oposio bsica. - Por outro lado, se consideramos a fluidez e a constante alterao dos diag-nsticos - que variam de acordo com a historicidade da doena, do apareci-mento de novos problemas na comunidade e se alteram tambm em funo dos atores envolvidos, modificando-se assim no tempo e no espao - essa distino entre agresses atribudas a agentes humanos e agresses atribu-das a agentes no-humanos, deixa de ser operacional(S). Assim, no caso de (8) A dicotomia humano/no humano tende a ocultar a existncia de vrios nveis ou momentos no

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  • doenas, observei que durante o desenrolar do aparecimento de sintomas, ou mesmo durante o processo de cura, o diagnstico vai se modificando significativamente, podendo mudar radicalmente o rumo da acusao. A modificao ocorre, inclusive, aps o restabelecimento do doente. No caso de bitos (diagnsticos terminais) essa variao pequena, o que permitiu construir um quadro indicando a causa mortis, diagnosticada no momento ou nas semanas que se seguiram ao bito. Mas isso no impede que, anos depois, o diagnstico de uma morte possa ser reinterpretado.

    O registro que influi primordialmente nestas modificaes segue o "fio da memria", a histria do grupo, quando os sucessivos diagnsticos se in-terpenetram conforme uma "espiral da vingana", formando ciclos de reta-liao que no tm comeo nem fim (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro, 1986).

    interessante notar que, quando chamado pelos parentes do doente, o xam normalmente ir confirmar o diagnstico proferido pela famlia, re-forando a orientao desta na retaliao que ele convidado a operar. Assim, a determinao das causas das doenas ou mortes est intimamente associada ao jogo poltico de alianas e dissenes entre grupos locais. Neste caso, quem melhor que a prpria famlia para identificar a relao inadequada, ou seja, o inimigo agressor?

    A constante reinterpretao dos diagnsticos condizente com a nature-za eminentemente poltica da atividade do xam Waipi, uma vez que -atravs dos diagnsticos - ele est na verdade orientando o rumo das rela-es intercomunitrias. Nesse sentido, o registro da mudana - ano aps ano - no diagnstico de uma mesma doena, ou de uma morte, foi extrema-mente interessante para a pesquisa, e permitiu atualizar e medir a orienta-o das tenses e rixas que afetavam as diferentes aldeias do Amapari e de outros grupos regionais Waipi (Oiapoque e Jari-Paru).

    Esta interpretao condizente com o conceito de "comunicao projeti-

    diagnstico. Cabe aqui lembrar alguns pontos definidos acima a partir da terminologia proposta por Sindzingre e Zemplni (1981) e retomada em :ZCmplni (1985), especialmente no que diz respeito diferena entre uma causa instrumental (meios instrumentais da agresso: "armas" do paie, ou planta venenosa, etc.) que remete ao processo mrbido; uma causa eficaz (agentes da agresso, que incorpora tanto as agresses humanas como as n-humanas) que remete s categorias de alteridade definidas pela cosmologia; e uma causa ltima (que seria a origem, o porqu da agresso) que remete ao contexto e situao de confronto eJoo tenses entre o indivduo e o grupo atingido e algum domnio de alteridade. Esses trs nveis de causalidade devem ser evidenciados para a compr.eenso de qualquer doena, mas cada um deles pode, ou no, ser levado em conta no momento do diagnstico. Diferentes diagnsticos sobre uma mesma doena podem enfatizar um ou ouiro desses nveis, considerado mais relevante para explicar o caso em pauta.

    187

  • va-persecutiva" definido por Zemplni como "a atribuio da desordem, tanto pelo doente como pelos outros, a uma inteno ou a uma fora exter-na socialmente situada" (1988: 1175). Neste contexto, fica claro que "a do-ena, sua interpretao e seu tratamento so necessariamente um processo intersubjetivo e social sustentado por outros interesses, desejos e estratgias que os do indivduo doente" (ibid: 1174).

    6. OS BRANCOS: MARGEM DO SISTEMA AJ Do levantamento realizado ao longo de vrios anos nas aldei~s do

    Amapari, surgiu uma constatao imponante: o diagnstico karaira'y, "doena de branco", apenas se , manifesta enquanto explicao para a opo teraputica, no correspondendo a uma categoria propriamente etiolgica, isto causal. De fato, nas acusaes proferidas pelos xams, os brancos nunca - ou em rarssimas excees - so identificados como agentes causadores de doena. mone ou infortnios.

    Entre os Waipi do Amapari, tudo indica que as intervenes dos brancos - amplamente registradas a nvel das tradies histricas e inclusive na mitologia - no foram integradas ao sistema de agresso/cura xamanfstica. Como evidenciei em outro trabalho (Gallois, 1988) as representaes sobre os brancos so marcadas pela temtica da guerra e da destruio, porm de uma violncia totalmente distinta do modelo de agresso canibal configurada pelo sistema aj. Os brancos se comportam "como aj", mas "no so aj". Isso porque eles no tem acesso ao repositrio da fora xamanfstica, o paie, nem s substncias -piwan que a materializam. Em decorrncia desta ausncia - explicada pelo compona-mento fundamentalmente excessivo dos brancos - eles no panicipam do complexo circuito de troca e partilha de foras vitais necessrias manu-teno da vida, perpetuao da "verdadeira humanidade", como os Waipi se auto-representam.

    Isso nos remete a outro aspecto importante do xamanismo Waipi. A funo dos xams consiste em dar continuidade descontinuidade, contro-lando as relaes entre diferentes domnios cosmolgicos e mantendo desta forma o equilbrio e a separao entre categorias de seres humanos e no-humanos e, tambm, entre grupos sociais. A sociedade Waipi, at hoje, se apresenta segmentada pelo confronto entre seus xams: cada grupo local se fecha sobre si, operando - atravs das acusaes formuladas por seus xams - constantes rupturas com o que ele considera "fora" do grupo. por esta razo que, pelos menos ao nvel da lgica do xamanismo, a noo de uma

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  • identidade tnica abrangente - "ns, os Waipi" - no faz sentido. Enquanto instituio, o xamanismo perpetua esta concepo particular da sociedade, embutida na sua cosmologia, que configura um mundo dividido entre ni-chos em conflito e perptuos ciclos de vingana.

    Nesse contexto, tambm compreensvel a atuao moderada dos xams nos conflitos que envolvem a etnia Waipi como um todo. Os xams no participam, enquanto tais, das manifestaes de resistncia ou confronto contra as invases e a presena de garimpeiros. Pela via xamanstica, no h armas contra os brancos. Com eles no h troca, no h compartilha de substncias do -paie, portanto no pode haver retaliao nem vingana pos-sveI(9).

    No entanto, os Waipi elaboraram uma srie de estratgias para contro-lar os brancos e os efeitos de sua presena, em particular as doenas ditas "de branco". So essas estratgias que pretendo abordar agora, tanto do ponto de vista cognitivo quanto propriamente operacional.

    A categoria "doena de branco"

    Reconsideraremos, no que segue, a'diferena tradicionalmente aceita pe-los profissionais de sade e pela maioria dos antroplogos que se voltaram para o estudo da convivncia de sistemas mdicos, entre doenas "de bran-co" e outras categorias de doenas, definidas apenas nos termos das etiolo-gias indgenas. Recoloca-se, neste ponto, a questo mencionada na introdu-o deste artigo, a saber se a categoria "doena de branco" introduz uma ruptura no sistema etiolgico indgena, ou se representa uma adaptao, uma abertura desse mesmo sistema situao de contato inter-tnico.

    Para iniciarmos esta anlise preciso indagarmos em qual nvel do siste-ma mdico tradicional se. opera o impacto representado pela introduo de

    (9) Muitas lideranas Waipi tm afirmado em seus discursos polticos, sob a forma de bowades o desejo de "matar garimpeiros atravs depajelana". E~sas declaraes cootm, embutidas em sua forma irnica, a prpria impossibilidade desta forma de luta. a exceo que confirma a regra. Isso no significa que os Waipi no tenham encontrado outras formas de luta que se sustentam atravs da incorporaco do branco em seu universo cosmolgico: basta mencionar um conjunto de discursos mtico-polticos construdos sobre o tema da putrefao da terra, tradicional na mitologia Tupi-Guarani, ao quaf os W aipi tm acrescentado um apndice que diz respeito perenidade do ouro, utilizando-se assim de elementos da cosmologia para acusar os brancos de contriburem para a destruio da terra (ver Gallois, 1990). Essas interpretaes so do tipo "profticas" e totalmente distintas das interpretaes relacionadas ao xamanismo, que, como sustento neste artigo, no incorporou em sua teoria formas de agresso especificamente atribudas e/ou destinadas aos brancos.

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  • prticas mdicas no-tradicionais. Numerosos estudos de etno-medicina demonstraram que a incorporao de prticas da medicina ocidental no afeta a integridade dos sistemas etiolgicos tradicionais, uma vez que estas prticas so habitualmente incorporadas ao nvel da "esfera (ou registro) dos efeitos" e no da "esfera (ou registro) das causas" (ver Buchillet, neste volume, pp. 28-29). Por isso, os xams no desapareceram. Por isso tambm, to freqente ouvirmos dos ndios afirmaes como esta: "os brancos tra-tam, o paj cura". Nesse contexto, necessrio avaliar se as "doenas de branco" no configurariam apenas uma categoria definida nos termos da opo teraputica Splementar representada pela medicina dos brancos.

    Como se ver a seguir, a associao entre uma origem - doenas atribu-das aos brancos - e uma terapia - recurso medicina dos brancos - funda-mental para explicar os diferentes usos que os ndios Waipi fazem desta categoria. No entanto, esta associao pragmtica tambm deve ser analisa-da enquanto construo cognitiva, envolvendo os nveis nosolgico (relacionado com a "esfera dos efeitos") quanto propriamente etiolgico (relacionado com a "esfera das causas").

    1. DOENA DE BRANCO COMO CATEGORIA PRAGMTICA Numa primeira aproximao, as exegeses dos Waipi demonstram qe a

    categoria "doena de branco" est sendo incorporada tanto no plano da transmisso do mal (nosologia), quanto na sua origem (etiologia), ou ainda no plano das opes teraputicas. Esses dados apontam para uma forma ex-tremamente pragmtica de integrao dos efeitos sanitrios do contato in-ter-tnico no sistema etiolgico tradicional.

    a) Doena de branco enquanto opo teraputica A terminologia Waipi das doenas possui vrios termos para designar as

    doenas atribudas "aos brancos", denominadas karaira'y ("a dor dos brancos") ou .karai-ku ra'yr ( o "produto (ou "filho") dos brancos"). O principal elemento da definio que os ndios do a essas doenas que, conseqentemente a sua origem, elas so susceptf veis de serem tratadas

    ""pelos brancos", com remdios "dos brancos". Elas se distinguem de outras \

    (10) Nos termos de uma "estratgia simblica", tal como proposta por Albert, que analisa a reinte~retao indgena das causas das doenas na perspectiva do "trabalho cognitivo de lgicas simblicas no cruzamento de conjwituras e de perspectivas sociais crticas". Ainda segwido o mesmo autor, "esui perspectiva permite chegar aos procedimentos de seleo e correlao dos eventos e mudanas a partir, dos quais se constri a relevncia cultural das situaes de contato" (1988: 87-88,

    ~~ . 190

  • patologias que, ao contrrio, no reagem a este tipo de interveno. Est tambm implcita.a idia de que essas doenas no so letais, ao contrrio das patologias provocadas por agresso xamanfstica:

    "Gripe, febre, no mata. Somente aj mata. Quando paie que mandou a doena, morre logo, no mesmo dia, remdio no funciona". Quando s6 gripe, a toma remdio e sar logo", etc.

    De acordo com essas explicaes, a diferena situa-se menos na identificao da origem da agresso ( ou no causada por aj) que no tipo de tratamento susceptfvel de curar o mal. O diagnstico essencialmente teraputico, pois depende basicamente da anlise da reao ao tratamento propiciado por agentes no-ndios. No est em causa, aqui, a determinao etiolgica da doena.

    b) Doena de branco enquanto categoria etiolgica Outras interpretaes - especialmente. aquelas que surgem na

    rememorao das primeiras fases do contato com a FUNAI - apontam para uma definio etiolgica da categoria karaira'y. De acordo com um dos xams mais prestigiados do Amapari:

    "Antes ns morramos pouco, s6 de -paie. Depois, vieram os garim-peiros e trouxeram a doena mesmo. Sarampo, gripe, tosse Karai-Ku ra'yr".

    Esta explicao se relaciona diretamente ao mito de origem da gripe, num dos episdios da histria do heri Jane-jar, no ciclo de criao e destruio do universo. Resumindo a narrativa de Tsir (aldeia Mariry, 1988), destacam-se uma srie de associaes interessantes:

    "Primeiro no tinha febre, no tinha nada, mas depois que os brasileiros mataram Jane-jar, todos apanh~ram a febre ... O filho de Jane-jar

    soprou na mo e na cabea do pai, que voltou a viver .. .Jane-jar vomitou e disse aos brancos: "vocs tero muita gripe, febre, tosse, dor de barriga. Gripe, muita gripe". Os brasileiros levaram o vmito de Jane-jar, espalharam o vmito, o jogaram por todo lado e por isso, que, agora, todos - os brasileiros e ns - apanhamos a

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  • gripe"

    O episdio final do mito indica como os brancos se tomaram "donos dos remdios" (mo-jar, como so designados hoje os profissionais de sade no-ndios) e tm a obrigao - por esta razo mtica - de propiciar a cura das doenas que eles propagaram no temp0 das origens.

    c) Doena de branco enquanto categoria nosolgica Alm de se referir origem das doenas provocadas pelos brancos, o epi-

    sdio mtico ilustra o processo primordial de contaminao por contigida-de, isto , se refere a uma modalidade de transmisso das doenas por con-tgio, tradicionalmente configurada pelo conceito - jipy'e. A categoria "do-enas de branco" corresponde assim a este tipo de processo mrbido: o que pode ser "apanhado", "transmitido" por contato direto(l 1). 0-mo-jipy'e sig-nifica "passar de um para outro" aquilo que se propaga de forma indiscri-minada, a epidemia, cujos efeitos so coletivos.

    A diferena entre individual/coletivo, que aparentemente poderia servir para demarcar doenas resultantes de agresso xamanstica (que normal-mente recaem sobre o indivduo e seu "grupo de substncia") e doenas re-sultantes de contgio (que atingem a coletividade), no se sustenta se levar-mos em conta a existncia de alguns procedimentos de agresso xamanfsti-ca que visam atingir a_ totalidade do grupo inimigo. A representao popu-lar desta forma de agresso, muito difundida entre os povos da regio das Guianas, o aremesso xamanstico de "bombas" - akuma'e em Waipi -que, quando explodem, propagam uma srie de doenas e de infortnios que rapidamente matam a todos os membros da aldeia.

    Por outro lado, como indica o mito, "todos" podem propagar as doenas que, originalmente, os brancos espalharam. Os Waipi obviamente reco-nhecem que o perigo das epidemias est relacionado com a presena dos

    brancos~ particularmente dos garimpeiros, mas tambm o atribuem ao con-tato entre aldeias. Por esta razo, os Waipi do Amapari, tin muito receio em receber visitantes de outras aglomeraes. Uma das primeiras perguntas endereadas aos recm-chegados consiste em saber se a pessoa "est carre-

    (11) No presente trabalho, utiliro as noes de "contgio" e "contaminao" como sinnimos, atendo-me definio corrente do contgio como "transmisso da doena de um indivduo a outro por contato direto ou mediato" (ver Perrin, 1985). Reconheo, porm, a necessidade de diferenciar, a panir das concepes indgenas, essas duas formas de transmisso da doena, que remetem a processos mrbidos distintos: o contgio resultaria de contato direto ao passo que a contaminao wn conceito mais amplo que induiria formas de contgio por contato indireto. Essa dferencia0, que apenas. esboo no presente artigo, dever ser confirmada atravs de uma anlise mais sistemtica' do material Waipi.

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  • gando doena", o que denota real preocupao com a possibilidade de con-tgio. A notcia de casos de gripe numa aldeia geralmente se traduz pela cessao imediata das visitas quele local, mantido em isolamento at que cesse a epidemia. A mesma preocupao levou os lderes da aldeia Aramir a proibir a visita de moradores da estrada Perimetral ao Posto, consideran-do o perigo de contgio.

    De acordo com esses exemplos, fica evidente que tanto os brancos, quan-, to os ndios, podem ser responsabilizados pela transmisso de doenas. A

    questo de saber se esta responsabilizao corresponde a um diagnstico etiolgico ou a uma modalidade de explicao apenas nosolgica, proces-sual, da transmisso do mal. Avaliar se este tipo de explicao remete ao "registro das causas" ou apenas ao "registro dos efeitos". Para tanto, pre-ciso analisar as diferentes situaes de contgio, acompanhando alguns ca-sos concretos e as respectivas explicaes fornecidas pelos Waipi do Amapari.

    2. DOENA DE BRANCO COMO CATEGORIA ETIOLGICA: CASOS DE CONTGIO Atualmente, a noo -jipy'e aplicada a uma srie de patologias

    especficas que correspondem basicamente ao uso da categoria "doena de branco". Quando indagados a este respeito, os Waipi costumam listar as "doenas" mais freqentes na rea, como: malria (kara'y), diarria hemorrgica (tewikay), dor de cabea (akga'y), vmito (we'e), sarampo (karasapa) e, principalmente, a gripe (ayma'e).

    Esta lista coloca vrios problemas, relativos traduo de um sistema eti-olgico nos termos de um outro. As patologias acima definidas como "do-enai;" seriam consideradas - em outras circun~tncias, especiahnente no contexto de um diagnstico xamanstico - como "simples" sintomas. Por exemplo: a diarria com perda de sangue tradicionahnente interpretada como sinal da presena de um elemento estranho no corpo, testemunhando um processo de agresso por invaso. Mas ela apenas uma das mltiplas manifestaes da agresso, e no corresponde, portanto, a uma "doena" propriamente dita. Nesse tipo de explicao, os ndios apenas selecionam os sintomas mais representativos de cada patologia para definir aquilo que, hoje, atribudo aos brancos. O fato de isolar sintomas especficos para tra-duzir "doenas de branco" consistiria numa adaptao do sistema Waipi ao sistema etiolgico ocidental, adaptao que surge como tentativa de co-municao entre a comunidade indgena e os agentes de sade que visitam

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  • ou residem em suas aldeias. Passando agora ao registro dos casos efetivamente identificados como

    karaira'y, vale notar que as doenas ou mortes diagnosticadas como resul-tado do contgio so significativamente raras. Os casos individuais ou cole-tivos que pude registrar ocorreram em circunstncias muito especficas. - Algumas entre as epidemias que atingiram os Waipi - mas no todas -foram interpretadas como resultantes do contgio porque evidenciaram uma reao ao tratamento dispensado pelos agentes de sade no-ndios. Por exemplo, a epidemia de sarampo que atingiu a comunidade do Aro em 1972/73, foi "transmitida" pelos garimpeiros. Nesta rememQrao, significativo que os Waipi associem a doena com o fato de que os garim-peiros se recusaram a fornecer remdios, ao contrrio da equipe de atrao da FUNAI que chegava na rea na mesma poca e hoje lembrada pela farta distribuio de medicamentos. O mesmo ocorreu com a epidemia de gripe que atingiu a comunidade de Mitiko em 1983, quando a Delegacia da FUNAI deslocou um avio e um mdico para a rea, conseguindo combater o surto em poucos dias. - Ao nvel coletivo, ainda, ocorre muitas vezes que as patologias que se apresentaram claramente como epidemias resultantes do contato com os brancos, numa primeira avaliao, sejam reinterpretadas, anos depois, como resultado de agresses xamanfsticas. Um exemplo evidente a expli-cao atualmente em vigor para a morte de mais de 30 indivf duos do grupo local de Wiririry, que se deslocaram no final dos anos 60 para o rio Pirawiri, onde teriam sido alvo de uma agresso dos xams daquela rea: "Todos pegaram caganeira, cagavam sangue: no foi contgio (nojipy'ej). Foram os xams dos Karamara-ku (grupo Waipi setentional)". Essas rein-terpretaes tambm atingem a todos os diagnsticos de mortes ocorridas na poca do conflito com o grupo de Moloko-pota: inicialmente atribudas ao lder daquele grupo, Sarap6, as acusaes foram recentemente recondu-zidas para categorias de inimigos mais prximas, especialmente os xams de grupos locais dissidentes dentro da rea do Amapari. - Exemplos de doenas contagiosas que afetam apenas indivduos so cla-ramente associados a diagnsticos feitos iniciaimente por agentes de sade no-ndios; esses agentes fornecem explicaes que acabam sendo aceitas pela famlia do paciente quando esta no recorreu - ou no teve a oportuni-dade de recorrer - a outro tipo de diagnstico. Como exemplo, cito o di-agnstico relativo ao falecimento de um adulto na aldeia Ytuwasu em

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  • maio de 1987. De acordo com seus familiares: "Foi contagiado (o-jipy'e), pegou a malria das estradas; ele s estava com malria e vomitava muito. Paje nojipejui ("nenhum paj assoprou", isto , no houve consulta a um xam), por isso no sabemos se foi outra coisa"(I2>. Note-se que o diag-nstico desta morte, inicialmente atribuda "aos brancos" por contgio de malria, foi reinterpretado pouco depois, em funo de outros elementos do contexto scio-poltico. Atendendo s presses de sua parentela, que exigia vingana nos moldes tradicionais, a morte desse adulto foi posterionnente atribu da agresso de um xam de um grupo local dissidente.

    Todos os casos acima levantados evidenciam a ambigidade na configu-rao dos casos de contgio, que podem ser, ou no, atribudos aos brancos. Nesse sentido, podemos questionar a validade de uma definio apenas "etiolgica" dacategoria "doena de branco". Se ela no se sustenta ao nvel do "registro das causas", preciso avaliar como ela se constri ao nvel do "registro dos efeitos", isto , como este tipo especfico de patologia se integra teoria indgena da contaminao.

    3. DOENA DE BRANCO COMO CATEGORIA NOSOLGICA: TEORIA INDGENA DA CONTAMINAO A noo de contgio, especialmente na fonna da epidemia atribuda "aos

    brancos", est representada no sistema nosolgico Waipi e diretamente relacionada com uma teoria, mais ampla, da contaminao, que explica a transmisso de toda uma srie de estados, mrbidos ou no. Para delinear esta teoria, preciso analisar o uso indgena dos diferentes conceitos ligados transmisso de substncias (patognicas ou no): os processos o-jipy, o-sar e o-mongy. Limito-me a mencionar, aqui, alguns pontos iniciais para uma anlise destas formas tradicionais de interpretao de processos de contaminao: ,

    No processo -jipy'e, o que 1est em jogo , claramente, a difuso de substncias - nonnalmente patognicas - que provocam a transmisso de "estados" semelhantes entre as pessoas atingidas. Vejamos alguns casos:

    (12) Observei,. no registro de .casos concretos, que quando no h xam na aldeia para fazer o diagnstico, maior a tendncia em atribuir doenas ao contgio de doenas "dos brancos". Porm, os mesmos registros mostram que no h desistncia em relao outras modalidadesde diagnstico, como o diagnstico xamanstico. Nem que a familiaridade crescente dos Waip com explicaes ocidentais de transmisso de doenas, explicitada por agentes de sade no-{ndios, resulte na priorizao dos diagnsticos aliengenas, criando-se uma diferenciao entre "doenas epidmicas", que proviriam do contato com os brancos, e "doenas que resultam da agresso xarnanstica".

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  • - O mito de origem da gripe estabelece a origem deste tipo de patologia contagiosa a partir da difuso de uma substncia patognica, no caso, o vmito do heri Jane-jar. - Os Waipi afirmam que "no bom se aproximar de cemitrios porque pode-se apanhar doenas" (o-jipy'e i-tekur). Em junho de 1987, todos os habitantes da aldeia Aramir se queixavam de dores intestinais. Corria a seguinte explicao:

    ''Talvez todos estejamos com dor de barriga esses dias devido presena do espectro (Kwaray'pore) de T.(uma mulher enterrada 6 anos antes, sob a oficina do Posto da FUNAI). Vem com o vento, transmite doena, faz caganeira, provoca gazes, provoca nijuruwei (inapetncia), vamos morrer".

    A contaminao pelos espectros terrestres dos mortos pode ser evitada colocando-se kurusa (cruzes de madeira) na entrada das aldeias, ou das habitaes.

    A mesma idia de difuso est presente na concepo do processo -sar, que diz respeito aos efeitos da contigidade por via sexual, expressando a noo de contaminao resultando de contato entre princpios opostos. diferena do processo anterior, este no se limita transmisso de princpios patognicos mas a de estados de infortnio. - O termo normalmente utilizado no caso das proibies que envolvem a preparao do veneno de pesca - quando a proibio recai sobre os homens - e a preparao do caxiri - quando atinge as mulheres. Assim, quando um homem responsvel pela coleta e processamento de timb tem relaes sexuais, diz-se que "o peixe no bebe, no fica -kao 'embriagado"', portanto no se deixa apanhar pelos pescadores. O mesmo se atribui s mulheres responsveis pela preparao da bebida: relaes sexuais interrompem a fermentao do caxiri (kasiri o-sar-pa "o caxiri. no fermentou" e no produziu os efeitos inebriantes desejados). - Encontramos ainda referncias ao perigo do -sar nas prescries de comportamentos para a famlia de um doente em tratamento. Uma das proibies atinge a esposa de um homem que est sendo tratado com aplicao e banhos de plantas medicinais: ela no pode ter relaes sexuais, sob pena de impedir a eficcia do tratamento e provocar a volta dos sintomas.

    Finalmente, preciso mencionar o processo de contaminao definido

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  • pelo tenno -mongy, que literalmente significa "pintar", "revestir". usado para se referir transmisso de estados mrbidos - como aqueles derivados do sarampo, da gripe e, inclusive, da malria - subseqentes ao contato direto. entre pessoas prximas. Mas, como o anterior, este processo no remete apenas transmisso de substncias patognicas, mas tambm propagao de estados de euforia, por exemplo, atravs da aplicao de deterniinados revestimentos corporais, associados a massagens. o caso das diferentes "resinas de cheiro" que a fitoterapia Waipi define como jane orykato po ("os remdios que nos tomam alegres") que so ditas "amansar'' as pessoas, uma vez que alteram os sentimentos e, portanto, as relaes interindividuais.

    Vista por esses exemplos, a noo de contgio que sustenta o uso, pelos Waipi, de uma categoria diferenciada para as "doenas de branco" parece-me estar totalmente condizente com o sistema interpretativo tradicional, evidenciando um excesso de proximidade entre pessoas e/ou categorias de alteridade, denotando um desequilbrio nas relaes e comportamentos en-tre indivduos ou entidades normalmente separados. O que est em jogo, no contgio, a imagem de uma contigidade excessiva, traduzida pela trans-misso de estados de morbidez e infortnio. Em decorrncia disto, mais fcil entender porque, tanto quanto no sistema de agresso xamanstica (correspondente ao sistema aj, acima descrito), o sistema do contgio tambm envolve a exigncia de reciprocidade, ou de retaliao, inclusive com os brancos, que devem - como explica o mito de origem da gripe -compensar a contaminao original por uma distribuio ininterrupta de re-mdios; ou devem - como exigem as reivindicaes dos Waipi - compen-sar a destruio que realizaram no territrio atravs de uma poltica de as-sistncia que enfatiza int~rvenes reparatrias.

    Se a categoria "doena de branco" perfeitamente congruente com a l-gica cognitiva tradicional - no s etiolgica mas tambm nosolgica -como explicar o uso diferencial que os Waipi fazem desta categoria? De fato, se esta categoria, em tennos de construo cognitiva, no se diferencia das demais nem pelo "registro das causas", nem pelo "registro dos efeitos", como ento definir sua especificidade?

    Voltamos agora nossa hiptese inicial, segundo a qual devemos analisar a funo desta categoria no contexto das opes teraputicas. Com isso, es-taremos passando do nvel "cdigo", isto , do sistema etiolgico propria-mente dito, que constitui uma grade de interpretao e de seleo para a anlise da manipulao social da classificao, ao nvel da "rede" social en-

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  • volvida no processo de identificao das doenas. Nesse contexto, fica evidente que o entendimento da categoria "doena

    de branco" assim como as razes que levam os Waipi a procurarem os brancos como detentores de alternativas teraputicas devem s~r investiga-das num nvel mais amplo que aquele delimitado pelas representaes etio-lgicas. preciso passar para outro tipo de representaes e, por conse-guinte, para outro nvel da realidade social e histrica do grupo. Lembrando que, como afirma Zemplni:

    "a doena muitas vezes apenas um prodroma: ela desencadeia uma experincia coletiva que permite explicitar, colocar em forma e, eventualmente, resolver, as desordens e as tenses mais amplas que afetam a vida do grupo" (1988:1175).

    A compreenso de sistemas etiolgicos e das opes teraputicas assu-midas por determinadas comunidades indgenas deve assim se voltar para a compreenso do contexto mais amplo, scio-poltico, caracterstico de uma situao de contato intertnico.

    Opes teraputicas como opes polticas

    O pluralismo teraputico vigente atualmente entre os Waipi inclui a aplicao de revestimentos corporais, a fitoterapia, a recitao de rezas, a prescrio de dietas, a cura xamanstica e a medicao dos brancos. Este pluralismo poderia ser analisado apenas no nvel da eficcia simblica as-sociada a cada uma dessas prticas (ver Gallois, 1988). Tendo em vista a problemtica levantada neste artigo, prefiro analis-lo no contexto da "pol-tica indgena", isto , de uma estratgia na qual a opo terapia "dos brancos" configura uma forma de controle dos brancos.

    Se admitimos que toda doena sinal de uma agresso, que esta se pro-cesse pela via xamanstica ou pela via do contgio, ento teremos que con-siderar que as prticas teraputicas, que envoh:em a reparao da agresso, no s confirmam como ampliam a compreenso da rede de comunicao e intercmbio com as diferentes categorias de alteridade que compem o uni-verso Waipi.

    1. DESEQUILBRIOS CSMICOS E INTER-TNICOS Quando analisado do ponto de vista da "rede" social envolvida - e no

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  • apenas do "cdigo" de interpretao etiolgica - o processo de identifica-o de certos eventos como "doenas de branco", e a conseqente opo pela terapia "dos brancos", confinnam o interesse desta abordagem.

    De acordo com a lgica do sistema etiolgico Waipi, apresentado aci-ma, o diagnstico e a explicao causal (anteriores opo teraputica) so orientados pela avaliao coletiva de situaes de desequilbrio, distinguin-do-se: - O desequilbrio entre domnios csmicos (caso do sistema de agresses xamansticas) que incluem tanto as agresses "humanas" como "no huma-nas", pois vimos que essa distino no se sustenta no caso Waipi, uma sendo transfonnadora da outra. - O desequilbrio entre domnios inter-tnicos (caso da identificao de epi-demias oriundas do contato com os brancos que fogem ao sistema anterior).

    H, obviamente, superposio lgica entre esses dois tipos de desequil-brios uma vez que, na cosmologia Waipi, as categorias de diferenciao inter-tnica so associadas a domnios csmicos especficos (ver Gallois, 1988). Razo pela qual, uma doena inicialmente diagnosticada como agresso de uma categoria especfica de inimigos humanos pode ser poste-riormente atribuda agresso de um, "dono" de espcie natural. Nesses ca-sos, a passagem de um nvel ao outro deve ser interpretada no contexto da pluralidade causal. Da mesma fonna, evidenciei ac.ima casos em que doen-as inicialmente atribudas ao contgio dos brancos foram reinterpretadas no contexto de agresso xamanstica. Nessas situaes, mais complexas, a alterao do diagnstico envolveu a manipulao scio-poltica dos nveis de tenso csmicos e inter-tnicos. Note-se ainda que esses ltimos casos so relativamente raros.

    Cabe lembrar que a posio dos brancos na cosmologia Waipi predo-minantemente ambga e, em funo disto, suas intervenes destrutivas so nonnalmente interpretadas fora do sistema de agresso xamanstica que rege o relacionamento entre domnios csmicos e categorias de alteridade tradicionalmente definidas a partir de trs categorias: animais, inimigos e mortos. Os brancos, na concepo dos Waipi, no se enquadram em ne-nhuma dessas categorias, que delimitam o sistema de transfonnao do efeito aj.

    O nmero de diagnsticos atribudos aos desequilbrios provocados pelos brancos cresce - espacial e historicamente - nos momentos de maiores ten-ses nas relaes intertnicas. Isto pode ser verificado seja no registro mi-tlogico, que pe em cena a origem da violncia dos brancos, seja na prti-

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  • ca atual, quando as "doenas de branco" aparecem associadas invaso de garimpeiros, contaminao provocada pelas freqentes visitas de bran-cos na aldeia do posto, etc. A interpretao dessas situaes de desequil-

    bri~ nas relaes inter-tnicas leva em considerao o encadeamento de eventos que se manifestam - seja a nvel individual, seja a nvel coletivo -configurando momentos em que esta sociedade, isto , "ns os Waipi", se sente ameaada pela presena dos brancos. Nestes momentos, a atuao dos xams passa a ser secundria. Como indicado acima, o xamanismo Waipi certamente representa um fator importante de coeso social, mas apenas na medida em que mantm a lgica tradicional da sociedade Waipi, que uma lgica de diferenciao interna. Ao contrrio, a formulao de acusaes aos brancos e a conseqente procura de terapias controladas pe-los brancos, configura momentos de congregao a nvel "tribal" e a pro-gressiva construo de uma identidade "tnica" Waipi.

    2. O CONTROLE DOS BRANCOS O que expressam as reivindicaes dos Waipi, quando reclamam trata-

    mentos mdico-sanitrios corretos que, raramente (ou apenas em algumas aldeias, ou pocas), lhes tm sido oferecidos?

    A persistncia da medicina tradicional e o acompanhamento dos itinerri-os teraputicos demonstram que a opo pela terapia dos brancos no ex-pressa a desistncia em relao ao saber e s tcnicas de cura tradicionais. Sabemos de fato que a assistncia mdico-sanitria no , em princpio, contradtria com a permanncia e a atuao das prticas tradicionais. O xamanismo no reticente prtica de outra medicina, havendo ao contr-rio complementaridade entre os dois sistemas. No caso Waipi, deve-se ain-da acrescentar a incorporao de smbolos de eficcia da medicina dos brancos: a verdadeira imagem do xam, invisvel aos homens comuns, composta, alm dos instrumentos e adornos tradicionais, por luvas, sapatos e equipamentos que constituem a marca dos mdicos no-ndios. Esta so-breposio de smbolos da fora eficaz no confunde, porm, os planos de interveno desta fora: o xam age ao nvel dos princpios csmicos que regem o aparecimento de uma doena, ao contrrio do mdico que atua apenas sobre os sintomas da doena.

    Como definirmos, ento, a exigncia de reparao presente na constru-o da categoria "doena de branco"? Tanto no sistema do xamanismo como no sistema do contgio primordial atribudo aos brancos (ver o mito), est posta uma exigncia de controle e reequilbrio, por parte da sociedade,

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  • da desordem social que a doena, enquanto evento, vem assinalar. Ficou evidenciado tambm que tanto no sistema de agresso xamanstica, como na lgica da contaminao por contato com os brancos, esto sempre em jogo as noes de predao e de excesso. A cosmologia Waipi se constri de fato sobre o princpio da circulao de substncias vitais (lembrandoque agresso e cura so duas facetas indissociveis dessas trocas) entre todos os seres que povoam o cosmos. Ora, com os brancos, no h troca nem reci-procidade.

    Darei a palavra aos Waipi, analisando suas crticas mais recorrentes com relao ao atendimento mdico-sanitrio que lhes tem sido oferecido. A queixa mais freqente se refere precariedade do atendimento. Os brancos, contaminados pelo vmito do .heri Jane-jar, se tomaram contagiosos. Pela vontade do mesmo heri, se tomaram donos dos remdios. Porque ento se furtam em distribu-los? A resposta habitualmente formulada por profissio-nais de sade para este tipo de problema remete questo da dependncia e da hipennedicao resultantes da difcil aproximao entre a demanda ind-gena e os servios de sade oferecidos nas aldeias. O teor da crtica formu-lada pelos Waipi mais profunda, remetendo a limitada eficcia da medi-cina dos brancos irregularidade desses servios (ver infra).

    Neste ponto, preciso questionarmos tambm a idia segundo a qual os ndios seriam incapazes de entender os princpios causais que regem a nos-sa prtica teraputica. Se, como dizem alguns agentes de sade, os ndios aceitam sem questionar a "magia da aspirina'', e s admitem a eficcia da medicina dos brancos. na medida em que esta possa ser transposta para o sistema tradicional, porque, na imensa maioria dos casos, no lhes foram apresentadas informaes que poderiam melhorar o nvel de aceitao e de eficcia das medicaes propostas por nossa medicina. A coexistncia de dois tipos de lgicas, indgena e ocidental, foi muitas vezes explicada pelo fato de que o sistema ocidental pode ser integrado pelos ndios, sob a for-ma apenas teraputica, sem que haja necessidade do conhecimento da lgi-ca etiolgica. Como no fornecemos explicaes, a eficcia de nossa medi-cina precisa ser aceita como "verdadeira" (ver, notadamente, Ales & Chiappino, 1985).

    Nesse contexto, normal que, em muitas ocasies, se aceitam sem questi-onar, sem saber o "porqu" e o "como" de nossas terapias, os ndios apenas atribuem "poder" aos brancos e a sua medicina. Em alguns casos, como j sabem que no surtir efeito, apenas aceitam se submeter a nossas prticas para manifestar sua "amabilidade" em relao aos brancos. preciso ques-

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  • tionar tanto a atribuio de poder aos brancos, que remete idia de sub-misso, quanto a distncia e o ceticismo subentendidos no segundo tipo de atitude. Certamente, a aceitao e a demanda indgena em relao a nossa medicina expressa outro nvel de preocupaes.

    Na seqncia, preciso nos perguntarmos porque os mdios apenas acei-tam a introduo de prticas mdicas quando estas podem .ser moldadas dentro do sistema conceptual preexistente. Esta problemtica est presente em vrias queixas formuladas pelos Waipi, que questioriam, com particu-lar acuidade, o teor da relao teraputica.

    Por exemplo, quando exigem a hospitalizao no apenas do doente, mas de seus familiares mais prximos (cnjuge e filhos pequenos), esto expli-citando a necessidade de ampliar o tratamento "comunidade de substn-cia". Quando exigem que o mdico fornea, alm de "remdios" indicaes sobre a dieta a ser seguida pelo paciente, expressam a sua concepo tradi-cional de doena, que no envolve apenas a cura dos sintomas, mas a ne-cessidade de um reequilbrio nas relaes entre o indivduo doente e outros domnios de alteridade, evitando-se comer aquilo que justamente provocou o desequilbrio. Quando os Waipi preferem serem tratados por homens, e no por enfermeiras, que podem estar mascarando seu estado, e agravar a situao do doente atravs do contato com sangue menstrual, etc.

    Considerando ainda que a "medicina dos brancos" muito mais imposta que efetivamente introduzida, ela no consegue fornecer uma explicao global, nem nos termos da origem da doena nem de sua cura. As exignci-as formuladas pelos Waipi evidenciam o grande vazio deixado por nossas prticas de sade, no que diz respeito dimenso teraputica. A medicina ocidental, tal como praticada em reas indgenas, absolutamente inca-paz de responder aos diagnsticos formulados pelos ndios, seja em ter-mos etiolgicos seja em termos de necessidades teraputicas. Diante deste vazio, os fndios tm, como nica alternativa, a tentativa de controlar - sob a forma da aceitao passiva ou da recusa radical - a introduo de tcnicas teraputicas que sero avaliadas em funo da lgica tradicional de relacio-namento com os brancos. Este relacionamento assume hoje entre os Waipi, a forma do confronto, ou pelo menos da estrategia poltica.

    neste cntexto que sugiro que as opes teraputicas dos Waipi confi-guram na verdade opes polticas. Diante do vazio de sentido e da precria eficcia que ela representa em termos de cura propriamente dita, a escolha pela terapia "dos brancos", sucessiva acusao feita "aos brancos", con-firma a dimenso estratgica desta opo. E isto em vrios nveis que refie-

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  • tem os padres tradicionais. Quando a comunidade opta pela terapia dos brancos, ela est exigindo que o agente de sade sirva ao grupo, da mesma fonna que a comunidade obriga e controla o xam a manifestar seu po-der em favor dela.

    Quando um grupo residencial, ou a comunidade mais ampla da aldeia, ou ainda a etnia Waipi, se manifesta a favor da terapia "pelos brancos", for-mula-se claramente uma exigncia de reciprocidade. Em qualquer um des-ses nveis, quem detennina a opo teraputica - cura xamanstica ou medi-cina dos brancos - a prpria comunidade, que se considera soberana para avaliar a causa ltima da doena.

    Na maioria dos casos, quando recorrem aos brancos, 9s Waipi sequei-xam de no serem corretamente atendidos. Ao contrrio, constataram que, quando no precisam deles, os brancos insistem - com "condescendncia" -em querer misturar os papis. Os Waipi tm criticado repetidas vezes a tentativa de transfonnar ,os xams em assistentes de enfenneiros, ou a de transfonnar os agentes de sade no-ndios em aprendizes de xams ou em fitoterapeutas. Ao criticarem essa confuso de papis, os Waipi reivindi-cam o respeito e a integridade de seu sistema interpretativo, atravs do qual eles estabelecem - ou desejam estabe!ecer - uma relao mais equilibrada -em tennos de reciprocidade - no contexto inter-tnico. Esse equilbrio visa, na lgica deste povo, manter separados domnios que, quando aproxima-dos, causam desequilbrios e, portanto, causam doena. Atravs disso, os Waipi reivindicam sua autonomia, social, cultural e territorial.

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