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Caderno CRH ISSN: 0103-4979 [email protected] Universidade Federal da Bahia Brasil Ivo, Anete B. L. GEORG SIMMEL E A “SOCIOLOGIA DA POBREZA” Caderno CRH, vol. 21, núm. 52, enero-abril, 2008, pp. 171-181 Universidade Federal da Bahia Salvador, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=347632174013 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

GEORG SIMMEL E A “SOCIOLOGIA DA POBREZA” ADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 52, p. 171-180, Jan./Abr. 2008 172172 GEORG SIMMEL E A “SOCIOLOGIA DA POBREZA” as relações entre

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Caderno CRH

ISSN: 0103-4979

[email protected]

Universidade Federal da Bahia

Brasil

Ivo, Anete B. L.

GEORG SIMMEL E A “SOCIOLOGIA DA POBREZA”

Caderno CRH, vol. 21, núm. 52, enero-abril, 2008, pp. 171-181

Universidade Federal da Bahia

Salvador, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=347632174013

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ALGUNS ELEMENTOS SOBRE A OBRA E OAUTOR

Este texto busca trazer para os leitores umavisão sintética do livro de Georg Simmel – LesPauvres1 (1907) –, editado pela primeira vez emlíngua francesa, em 1998, precedido de uma longaapresentação de Serge Paugam e Franz Shultheis,sob o título Naissance d´une sociologie de lapauvrété. Ele tem uma extraordinária atualidade,não só por um conjunto de análises que auxiliam

GEORG SIMMEL E A “SOCIOLOGIA DA POBREZA”

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Os pobres, como categoria social, não são aquelesque sofrem carências ou privações específicas, mas

os que recebem assistência ou deveriam recebê-la se-gundo as normas sociais. Por conseguinte, a pobrezanão pode ser definida como um estado quantitativo emsi mesma. (Simmel,[1907], 1998, p.96-97)

na definição de princípios gerais de novos dese-nhos de programas de “renda mínima de cidada-nia”,2 como encaminha, no plano teórico e analíti-co, uma fecunda análise sobre a estruturação soci-al. É um texto clássico do início do século XX, es-crito num contexto em que começaram a surgir, naAlemanha, propostas de sistemas de proteção soci-al centrados no Seguro Social. Para Serge Paugam eFranz Shultheis, a partir de uma rigorosa e fecundaabordagem construtivista, Simmel rompe, nesse tex-to, com as concepções substancialistas, muito usa-das nos debates científicos e políticos sobre a po-breza, oferecendo uma contribuição sociológica aosestudos nessa área. Em vez de considerar a “socio-logia da pobreza” como um campo específico dasociologia, Simmel remete o seu estudo às questõesfundamentais da teoria social e do método, maisreferidas à constituição e à forma dos laços e víncu-los sociais na modernidade (p. 1).

Tomando como ponto de partida as rela-ções intersubjetivas da obrigação da dádiva, o au-tor extrai proposições teóricas mais amplas, como

*Doutora em Sociologia (UFPE). Professora do Programa dePós-graduação em Ciências Sociais da UFBA e pesquisa-dor sênior do Centro de Recursos Humanos (CRH/UFBA).Rua Caetano Moura, 99 – 1º sub-solo. Salvador, Bahia,Brasil. 40.210-340. [email protected]

1 Esse texto foi traduzido do original em alemão Der Arme,que está no singular. O tradutor, Bertrand Chrokrane,considerou adequado traduzi-lo no francês na forma plural- Les Pauvres. A primeira versão foi publicada numarevista sob o título Sociologie de la Pauvrété, de 1907,mas integrou a Grande Sociologia de Simmel, em 1908.O texto foi publicado em 1965, na revista americanaSocial Problems (v.13, n.2, p.117 et.), acompanhado deuma nota sobre o autor escrita por Everett C. Hughes ede um artigo de L.A. Loser sobre a sociologia da pobreza(Cf. Paugam; Schulteis, 1998). Em 1971, integrou o li-vro George Simmel. On individuality and social forms.Textos selecionados editados por D. Levine, Chicago,University of Chicago Press, p.172 com o título “ThePoor”. (Cf. Thomas, 1998). Não há versão em português.As referências aqui citadas foram traduzidas por mim.

2 Ver a respeito, para o Brasil, Suplicy (2002).

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as relações entre a ética, a moral e a sociedade, naconstrução da dádiva e da caridade; das relaçõesentre o indivíduo (pobre) e as coletividades (Esta-do nacional, municípios); da parte e do todo (deuma perspectiva metodológica); da generalidade(noção abstrata da pobreza) com as formasregulatórias (assistência) e sua objetivação da açãosocial (as formas concretas assumidas pelas insti-tuições públicas ou privadas da assistência). Ouseja, ele busca contribuir para uma teoria geral dasociedade, através de um objeto aparentemente“marginal”, como o estatuto do pobre frente à soci-edade em geral, num contexto de constituição doEstado moderno na Europa (e na Alemanha, emparticular) no início do século XX. Para ele, é aassistência que alguém recebe publicamente dacoletividade que determina a sua condiçãosociocultural de “ser pobre”. A condição de “serassistido”, portanto, constitui a marca identitáriada condição do “pobre” e o critério de seupertencimento como uma camada específica dasociedade inevitavelmente desvalorizada, vez quedefinida pela desigualdade e dependência dosdemais. Essa condição significa receber dos “ou-tros”, ou da coletividade, sem poder definir-se atra-vés de uma relação de complementaridade e dereciprocidade frente aos demais, em condições deigualdade. Mas, ao reconhecer a condição políticada cidadania, Simmel ultrapassa, na análise, essacondição estigmatizada do “assistido”. Assim, éno âmbito da política e da cidadania que ele con-cebe as saídas para os aspectos socioculturais dadependência de assistência. Assim, nesse livro, oque interessa a Simmel

... não é a pobreza em si nem a entidade dos po-bres em si mesmos, mas as formas institucionaisque eles assumem numa dada sociedade nummomento específico de sua história. Essa socio-logia da pobreza, em realidade, é uma sociologiados laços sociais (Simmel [1907], 1998).

Simmel assume, explicitamente, um esfor-ço analítico da sociologia nas interpretações do fe-nômeno da pobreza. “Aqui se manifesta uma opo-sição fundamental entre categorias sociológicas eéticas”, diz ele. Com traços claramente influencia-

dos por Max Weber e Emmanuel Kant,3 ele subli-nha certo número de tensões e significados numaanálise das instituições sociais regulatórias da po-breza. Assim, a partir do princípio de assistência,Simmel levanta um conjunto de tensões e parado-xos que ameaça o sistema social na sua globalidade,mas estabelece, ao mesmo tempo, formas deregulação que atenuam seus efeitos e permitem ainterdependência entre indivíduos e grupos deindivíduos, mesmo que resultem em relações de-siguais e às vezes conflituosas. “A pobreza [...] énão apenas relativa, mas construída socialmente.Seu sentido é aquele que a sociedade lhe atribui”(Paugam; Shultheis, 1998, p.15).

A passagem que ele faz entre uma sociolo-gia das formas associativas (no caso, a assistência)e o processo do conhecimento da realidade, queenvolve a passagem do particular ao global, dasrelações intersubjetivas da dádiva às formas cole-tivas do Estado, se constitui na natureza e noconstructum dessa obra.

Simmel não aborda diretamente [...] as experi-ências vividas da pobreza, sua análise o conduzde forma lógica a apresentar uma das dimensõesessenciais da situação dos pobres que decorremda situação da assistência (p.17-18).

Para ele, a sociedade não é constituída pe-los indivíduos, mas preexiste a eles e os constitui,socializando-os.4 Essa perspectiva o aproxima deMarcel Mauss,5 que supera o objetivismo deDurkheim,6 ao reintroduzir a contribuição da cons-

3 Kant, em sua obra Fondements de la Métaphysique desMoeurs distingue os julgamentos analíticos dos julga-mentos sintéticos. Simmel emprega os predicados deKant para esclarecer a dualidade das noções de “obriga-ção” e “direito”. (Simmel, 1998, p.40, N.T.)

4 No entanto, ele não reduz a sociabilidade àintersubjetividade, mas leva em conta explicitamente amediação da cultura e das instituições sociais.

5 Marcel Mauss, no Essai sur le Don [1924], mostrou queos “fatos sociais totais”, que mobilizam e colocam emmovimento a “totalidade da sociedade” ou, pelo menos,“um grande número de instituições”, deixam “percebero essencial, o movimento do todo, o aspecto vivo, oinstante fugidio em que a sociedade ou os homens to-mam consciência sentimental de si mesmos e de suasituação em face do outro” (Cf. Vandenberghe, 2005,p.19-20).

6 Durkheim manteve uma posição ambivalente em rela-ção à obra de Simmel: se, de um lado, o seu positivismocriticava as abordagens compreensivas da sociologia ale-mã, de outro, foi ele próprio quem denunciou a condi-

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ciência na constituição dos fatos sociais (Cf.Vandenberghe, 2005, p.19) e precede a teoria dasconfigurações sociais de Norbert Elias.

É considerado um autor polêmico pelosobjetos de estudo aparentemente díspares de quese ocupou (a moda, o estrangeiro, o dinheiro, apobreza, etc.) e pela herança multidisciplinar desua obra, que articula a sociologia das formas àfilosofia da moral e da cultura.7 No caso da pobre-za e dos pobres, ele associa as diversas concep-ções que governam a ação moral no ato de “dar ereceber” à forma empírica da assistência.

Na medida em que um ser é social, a cada umadas obrigações corresponde um direito associa-do ao outro. [...] Mas, uma vez que cada pessoaque tem uma obrigação, possui igualmente [...]direitos, forma-se uma rede de direitos e obriga-ções na qual o direito sempre é o primeiro e odecisivo elemento e em que a obrigação é apenaso seu correlativo... (Simmel [1907], 1998, p.39).

A “OBRIGAÇÃO SOCIALIZADA” DA SOCIEDA-DE EM RELAÇÃO AOS POBRES EM SIMMEL

O ponto de partida de Simmel é a tramados direitos e obrigações, na qual se constitui asocialidade humana, e que evolui do planointerativo interpessoal até formas associativas erelações cada vez mais amplas. Ele analisa a po-breza e a condição de ser pobre8 numa dada socie-dade, a partir da relação dos direitos e obrigaçõesdas prestações, revelando um paradoxo inscritonessa relação do ponto de vista ético-ideal: os “de-veres” (as prestações, as dádivas), como princípi-os morais, nada mais são do que imperativos

internalizados sobre nós mesmos, com toda auto-nomia do “Eu”, independentemente de qualquerelemento externo. No entanto, na medida em quea prestação deriva de um direito – no sentido am-plo do termo, incluindo, entre outros elementos,o direito legal –, a relação entre os indivíduos,impregnada dos seus valores morais, determina efundamenta o seu comportamento em relação aodireito do “outro” como elemento principal. Se-gundo Joseph (2003),

...do ponto de vista “moral” a motivação de um“dever” é subjetiva e autônoma e não se originada situação do outro. Somente no “direito”, querecobre tanto o domínio jurídico como as rela-ções de prestações, é que o “outro” aparece comofonte de “obrigação (p. 322).

A obrigação de dar não deriva de um direi-to do outro, mas de uma imposição moral daqueleque dá, determinada pela sua própria moralidadee responsabilidade. Só no campo do direito é queela se volta para “o outro”. Esse dualismo, quegoverna o desenvolvimento das ações morais, seexpressa empiricamente nas diversas concepçõesde assistência aos pobres nas instituições da soci-edade moderna: na forma como as coletividades(Estado, sindicatos, família, etc.) se dedicam aospobres. Para Simmel, no entanto, no âmbito da“obrigação” da dádiva, o pobre desaparece comofim da ação. Mesmo no plano das ações circuns-critas a universos restritos da caridade e (ou) daassistência, a exemplo das ajudas no seio familiarou na experiência sindical das caixas de desem-prego dos ingleses, Simmel mostra que o “pobre”não é o objeto da prestação, mas são outros finscoletivos e não o próprio pobre que mobilizam emotivam o ato da doação, a exemplo das eventuaispreocupações dos membros de uma família comsua reputação, no primeiro caso, ou a proteção dossalários de uma categoria de trabalhadores, no se-gundo (p.48-49). No caso da assistência públicado Estado, ela é imposta pela suposta idéia dosriscos da pobreza à ordem social:

... a fim de que os pobres não se tornem inimigosativos e perigosos da sociedade, para tornar suasreduzidas energias mais produtivas e, enfim, para

ção injusta de Simmel na posição de privatendozent naUniversidade alemã, de maneira pertinente, como a deum “proletariado acadêmico”, durante uma viagem quefez à Alemanha (Cf. Paugam; Shultheis, 1998, p.12).

7 Para entender sociologicamente as particularidades daobra de Simmel por fenômenos da marginalidade social,é preciso levar em conta o contexto histórico no qual eledesenvolveu os seus trabalhos, numa Alemanha marcadapor um anti-semitismo aberto e pela sua condição deintelectual judeu. Essa condição levou-o a perceber osestigmas e as violências simbólicas cometidas contraestrangeiros, possibilitado pelo seu estatuto de foreignelements – uma experiência constitutiva, ao mesmo tem-po, de uma espécie de habitus coletivo (Cf. Paugam;Shultheis, 1998, p.11).

8 Duas questões analiticamente diferentes.

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impedir a degeneração de sua progenitura. Ohomem pobre, enquanto pessoa com sua própriapercepção de sua posição [...] teve pouca impor-tância... (Simmel [1907], 1998, p.47).

É a partir dessa concepção de obrigação so-cializada9 que Simmel desenvolve sua crítica. Paraele, o paradoxo dessa obrigação, unificada na idéiado bem-comum, só pensa o interesse geral a partirde uma posição centralista e teleológica, ignoran-do o interesse daqueles a quem se assiste.

Esse sentido acaba por definir um carátermeramente mitigador para a política da assistênciaem relação aos pobres. Assim, Simmel critica eesclarece:

O fim da assistência é precisamente mitigar cer-tas manifestações extremas de diferenciação so-cial, a fim de que a estrutura possa continuar a sefundar sobre essa diferenciação. Se a assistênciase fundasse sobre os interesses do pobre, em prin-cípio, não haveria nenhum limite possível quan-to à transmissão, o que conduziria à igualdadede todos. Mas, uma vez que o objetivo é o todosocial – os círculos políticos, familiares ou socio-logicamente determinados –, não há qualquerrazão para ajudar ao pobre senão a manutençãodo status quo social (p.49).

Na sua crítica, ele reconhece que a assistên-cia se funda nos limites da própria estrutura soci-al e, dessa forma, contrapõe-se a quaisquer outrasaspirações, de caráter socialista ou comunista, jáque, por princípio, essas concepções implicariama superação mais radical de tal estrutura.

Essas dimensões (éticas e sociológicas) damoral e da estrutura social estão implícitas na na-tureza da ação do Estado e do direito do assistido,nas sociedades modernas.

Nós encontramos sempre o princípio segundo oqual o Estado tem obrigação de assistir os pobres,mas esta obrigação não corresponde a um direitoà assistência dos pobres. Como foi declarado cla-ramente na Inglaterra [...] o pobre não tem recur-so a nenhuma ação de compensação, quando ile-galmente recusam-se a ajudá-lo. Toda relação en-tre obrigações e direitos está [...] acima e além dopobre. O direito correspondente à obrigação doEstado de assistir ao pobre não é o direito do po-bre, mas aquele de qualquer cidadão, onde osimpostos gastos com os pobres sejam de tal mon-ta e aplicados de tal maneira, de forma a que os

objetivos públicos da assistência aos pobres se-jam verdadeiramente alcançados (p.50-51).

Ou seja, o direito do pobre é de ordem gerale diz respeito aos controles sobre os recursos pú-blicos, distinguindo-se do direito individual, quelhes permite requerer contra eventuais injustiçasna aplicação dos benefícios, diferentemente dostrabalhadores.

Por conseqüência, no caso de negligência da as-sistência aos pobres, estes não poderiam recor-rer contra o Estado, enquanto outros elementosque sofreram indiretamente de tal negligência opodem (Simmel [1907], 1998, p.51).10

Assim, ele faz uma crítica à “exclusão dopobre” na cadeia teleológica da ordem social, que,ao negar-lhe um estatuto de finalidade da ação so-cial, não lhe permitiria sequer representar-se poli-ticamente. Para ele, a assistência aos pobres, den-tro dessa significação, não passa de uma “aplica-ção de meios públicos para fins públicos” (p. 51),e continua sua crítica: “... cada vez que esse inte-resse centralista prevalece, a relação entre direito eobrigação pode ser modificada em nome de consi-derações utilitaristas” (p. 52). Essa dimensão pu-ramente utilitarista se expressa por ser a assistên-cia,11 àquela época, o único ramo da administraçãomoderna no qual os interessados não tinham qual-quer participação nas definições das políticas. As-sim, para Simmel, “... uma vez que os pobres seencontram excluídos dessa teleologia, [...] é lógicoque o princípio da autogestão [...] não se aplica nocaso dos pobres e de sua assistência” (p.51-52).

Simmel vai ultrapassar essa visão centralista(e utilitarista) do pobre em relação aos interessesgerais, considerando a sua condição de cidadania.Para ele, o pobre distingue-se de qualquer outrotipo de intervenção do Estado, pois:

9 Para usar uma expressão de Isaac Joseph (2003, p.323).

10 Em uma das passagens de sua análise, ele explicita cla-ramente a diferença entre o “direito à assistência” dospobres e os direitos sociais dos trabalhadores, juridica-mente regulados e que podem ser requeridos, quandoseja necessário.

11 No contexto analisado por Simmel, a condição da assis-tência o tornava excluído do direito político do voto. E éessa condição que o leva a desenvolver sua crítica, reafir-mando o direito dos assistidos no âmbito civil e políticoda cidadania.

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Os pobres não são apenas pobres,12 eles são tam-bém cidadãos. Enquanto tais, eles participam dosdireitos que a lei atribui à totalidade dos cida-dãos de acordo com a obrigação do Estado deprestar assistência aos pobres. Para utilizar amesma metáfora [da função de um canal para aos vizinhos], digamos que os pobres sejam, aomesmo tempo, o canal e os vizinhos, da mesmaforma como seriam os cidadãos mais ricos(Simmel [1907], 1998, p.55).13

Essa dimensão da cidadania resgatada porSimmel recoloca a discussão da pobreza no âmbi-to da política. Ele distingue o tratamento da pobre-za de uma questão puramente gestionária sobre oslimites da seguridade (os impostos), ou da lógicade regulação do mercado de trabalho na luta de clas-ses (o papel do excedente) e considera que, numcontexto republicano, o lugar do pobre está na co-munidade cívica, de um cidadão em relação a umEstado. Com base nesse entendimento, ele explicitaa posição particular e paradoxal do pobre na socie-dade moderna, do ponto de vista sociológico:

Sociologicamente, o importante é compreenderque a posição particular que os pobres assistidosocupam não impede sua integração no Estado,como membros de uma unidade política total.Apesar de sua situação em geral tornar sua con-dição individual um fim externo ao ato de assis-tência, e, por outro lado, um objeto inerte, desti-tuído de direitos nos objetivos gerais do Estado,[...] que parecem colocar os pobres fora do Esta-do, eles estão ordenados de forma orgânica nointerior deste. (p.55)

Ao esclarecer essa posição problemática dopobre “excluído” (da cadeia dos fins sociais) comosocialmente desqualificado, mas cidadão e mem-bro integrante da sociedade política, ele explicitaos limites e as ambigüidades conceituais da noçãode “exclusão social”, elemento que será posterior-mente objeto de crítica de outros autores.14

....como pobres, eles pertencem à realidade his-tórica da sociedade que vive neles e acima delese constituem um elemento sociológico formal,como o funcionário ou o contador [...]. Os pobresestão mais ou menos na posição do estrangeiroque se encontra [...] materialmente fora do grupono qual ele reside (p.55-56).

Mas, considerando, sobretudo, o princípioda reciprocidade inscrito na experiênciaintersubjetiva da dádiva, ponto de partida de suaanálise, e levando em conta, certamente, as críti-cas de liberais e mesmo dos marxistas sobre o ca-ráter da “dependência”, inerente à lei da assistên-cia, ele esclarece:

Em princípio, aquele que recebe uma esmola dátambém alguma coisa; há uma difusão de efeitosindo dele ao doador e é precisamente o que con-verte a doação em uma interação, em um aconte-cimento sociológico. [...] Mas se [...] o recebedorda esmola continua completamente excluído dacadeia teleológica do doador, se os pobres nãopreenchem outro papel senão o de servir de cai-xa coletora de esmola [...], a doação não é um fatosocial, mas um fato puramente individual.(Simmel [1907], 1998, p.56-57)

E, ultrapassando a dimensão puramenteindividualista, ele restabelece, mais adiante, o prin-cípio da troca entre os assistidos e a coletividade:

A coletividade social recupera indiretamente osfrutos de sua doação social, reabilitando sua ati-vidade econômica, preservando sua energia físi-ca, impedindo seus impulsos que conduzem aouso dos meios violentos com o fim de se enrique-cer. [...]A teleologia da coletividade pode tranqüilamen-te passar por cima do indivíduo e retornar sobreela mesma [coletividade], sem se deter sobre ele[o indivíduo assistido]. A partir do momento emque o indivíduo pertence ao todo, ele está, conse-qüentemente, colocado, desde o início, no pontofinal da ação e não [...] fora dela (p.57-58).

A partir desses desdobramentos lógicos, eleextrai os significados da exclusão dos pobres, res-gatando, ao mesmo tempo, sua condição de sujei-tos sociais:

A exclusão singular à qual os pobres são subme-tidos pela comunidade que os assiste é caracte-rística da função que eles preenchem na socie-dade, como membros dela, numa situação parti-cular. Se, tecnicamente, eles são objetos meno-res, num sentido sociológico mais amplo eles sãotambém sujeitos que, como outros, constituemuma realidade social (p.61).

12 Aqui ele dialoga possivelmente com a posição e situaçãodo pobre criticada por Tocqueville, como uma posiçãosocial desqualificadora.

13 Essa consideração o distancia da concepção desenvolvi-da por Tocqueville, cem anos antes, na Mémoire sur lePaupérisme, para quem a questão da assistência é fun-ção da caridade privada.

14 A exclusão social é uma categoria da ação pública emrelação à pobreza, na França. Os limites críticos dessacategoria foram analisados por inúmeros autores. RobertCastel (1995) critica o caráter estático da noção, mos-trando que ela é o resultado de um processo social e nãose constitui apenas de um estado.

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Considerando as incitações morais implíci-tas ao ato da dádiva, ele analisa as implicações deuma eventual interrupção do ato da assistência:

Se [...] todo altruísmo, toda boa ação, todo auto-sacrifício não é senão um dever e uma obrigação,no caso individual, este princípio pode ser mani-festado de tal forma, que toda assistência [...] re-presenta o cumprimento de um dever que não seesgota após o primeiro gesto, mas continua a exis-tir de fato [...]. Segundo tal princípio, a assistên-cia prestada a alguém seria o ratio cognoscendi,o sinal que nos mostra que uma das linhas ideaisda obrigação entre os homens [...] revela aqui seuaspecto intemporal nos efeitos contínuos do vín-culo estabelecido (Simmel [1907], 1998, p.65).

Por fim, encerrando a primeira parte do li-vro, Simmel vai mostrar duas dimensões impor-tantes. A primeira é o caráter relativo da pobreza,que se diferencia e se amplia, na medida em queela se manifesta numa sociedade mais diferencia-da e estratificada. No entanto, o caráter dessa rela-tividade nem sempre é visível. Joseph (2003), sin-tetizando a argumentação de Simmel, esclarece atensão existente na compreensão da dádiva:

A dádiva é uma prática pública cuja forma daesmola supõe maior distância social; ou uma prá-tica privada que na forma de socorro supõe maisintimidade. No entanto, segundo Simmel, a prá-tica da dádiva torna-se mais difícil quando a dis-tância social se restringe (no âmbito público); ouquando a distância social aumenta (no privado)(p.327).

Essa contradição entre a ação pública e pri-vada da assistência é discutida por Simmel a par-tir do papel e dos limites de ação dasmunicipalidades nessa matéria. Para Simmel, aassistência aos pobres tornou-se uma obrigaçãoabstrata do Estado, na qual a municipalidade nãoé mais o seu ponto de partida, mas apenas umponto onde se opera a transferência e a transmis-são da assistência.

Os funcionários (locais) se conduzem na relaçãocom os pobres como representantes da coletivi-dade (que lhes paga o salário), diferentementedos agentes do setor privado, que trabalham maiscomo seres humanos, pelo aspecto homem a ho-mem e menos pelo aspecto objetivo (p.68).

A segunda questão que ele apresenta diz

respeito ao limite mínimo da ação pública da as-sistência, que, ao envolver interesses amplos deuma coletividade, supõe limites mínimos relativosno seu encaminhamento. Essa dimensão “dosmínimos” de uma ação de natureza coletiva tomapor base o seguinte pressuposto relativo à dádiva:cada um quer dar o mínimo possível. E esse pres-suposto subjuga o princípio da lógica da necessi-dade no seu plano da ação empírica concreta:

O direito válido para todos é designado como ummínimo ético [...]. O direito ao trabalho reivindi-cado por todos só pode se aplicar àqueles queapresentem um mínimo em relação à sua digni-dade; o pertencimento a um partido exige [...]que se reconheça o mínimo de princípios. [...]Este mínimo social encontra sua expressão maisacabada no caráter negativo [...] dos interessesdas massas (Simmel [1907], 1998, p.70).15

Na terceira e última parte do livro, ele deta-lha em que consiste o mínimo da assistência aospobres, o que, em realidade, significa “salvar al-guém da falência física”. Ele analisa, então, quequaisquer ações de proteção mais abrangentes exi-giriam critérios menos unívocos. E, do ponto devista objetivo, “ao se colocar toda a assistência nasmãos do Estado, a medida normativa decorre nãosomente dos pobres, mas também do interesse doEstado. Assim, a medida da regulação deve se pre-ocupar seja com o excesso [o montante do benefí-cio em relação à coletividade], seja com sua falta[sobre a necessidade dos indivíduos]” (p.79-80).Com essas considerações ele esclarece dilemas nadefinição da assistência pública, que se referem àdefinição dos “mínimos sociais” das políticas deassistência social.

Por fim, Simmel define os significados dospobres na sociedade em geral:

A classe dos pobres, particularmente na socie-dade moderna, constitui uma síntese sociológicaúnica. Em relação à sua significação e seu lugar

15 A partir dessa consideração, Simmel, na segunda partedo seu texto, desenvolve uma análise de natureza lógicasobre os limites de uma ação coletiva assentada sobreprincípios gerais, o que significa um acordo e um limiterestrito sobre o qual não é possível transigir, não impe-dindo, no entanto, que se possam ampliar os benefícios.O caráter que une o grande círculo das coletividades sesobressai nas normas mínimas.

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no corpo social, ela possui grandehomogeneidade; no entanto, no que se refere àqualificação individual de seus elementos, elafalta completamente. É um fim comum dos des-tinos os mais diversos, um oceano no qual vidasderivadas das camadas sociais as mais diversasflutuam juntas. [...] O que há de mais terrível napobreza é o fato de que nela existem seres huma-nos cuja posição social é de pobres, e nada alémde pobres. [...] uma classe cuja unidade se fundanuma característica puramente passiva, a saber,pela maneira singular de a sociedade reagir e seconduzir em relação a ela (p.101).

Essa análise que ele faz da pobreza como“classe passiva” pode levar a considerá-la como uma“classe para o outro”,16 constrangida a formar suasubjetividade a partir da objetivação que lhe é atri-buída pelo “outro”, na luta política. Esses indiví-duos pobres são levados a se transformarem em“estrangeiros deles mesmos”, afrontados por umaobjetivação do “outro” que designa o que eles são,ou o que eles podem ser. Assim, a representaçãodominante está presente no âmbito do próprio dis-curso desses indivíduos considerados pobres pelacoletividade. Mas a saída, apenas esboçada, encon-tra-se na condição de cidadania desses sujeitos.

A abordagem que ele faz da assistência aospobres, em Les Pauvres, ultrapassa, portanto, apercepção das instituições da assistência comoentidades exclusivamente objetivadas da ordemsocial – na forma de programas sociais –, impostasde fora aos indivíduos, mas implica uma experi-ência intersubjetiva do significado da dádiva (acaridade) e das funções do Estado em relação àpobreza e às instituições modernas. Nesse senti-do, são, ao mesmo tempo, também coletivas, nãose limitando às experiências restritas e individu-ais de quem dá para quem recebe, ou vice-versa.

Ele desenvolve essas observações num mo-mento em que muitos sistemas de proteção contrariscos, em diversos países da Europa, foramimplementados, tornando-se a assistênciagradativamente uma política residual (Cf. Paugam;

Shultheis, 1998, p.20). Segundo esses autores, coma legislação pioneira de Bismarck (1883-1889) naAlemanha, voltada para proteger os trabalhadoresatravés de seguros sociais obrigatórios contra osriscos de acidentes de trabalho, doenças e a velhi-ce, uma parte significativa das populações anteri-ormente assistidas foram transferidas para as cate-gorias assumidas pelo seguro social. Entretanto,os assistidos representavam, ainda, um contingenteimportante daqueles excluídos do benefício doseguro, então restrito aos trabalhadores assalaria-dos. Tratava-se, particularmente, de mulheres ecrianças, mas também de famílias numerosas emonoparentais. As pessoas assistidas podiam pre-tender um direito formal ao auxílio, mas elas nãodispunham de meios jurídicos de fazê-lo, enquantoos trabalhadores segurados tinham acesso jurídi-co gratuito. A estigmatização desses indivíduos seagravava, já que, na condição de assistidos, elesperdiam, à época, seus direitos civis, do voto, sen-do relegados, assim, a cidadãos de segunda cate-goria (p.21).

Quando a pobreza é combatida e julgada intole-rável pela coletividade no seu conjunto, seu esta-tuto social é desvalorizado e estigmatizante. Ospobres, por conseguinte, são mais ou menos leva-dos a viver sua situação no isolamento. Eles bus-cam dissimular a inferioridade de seu estatutono seu ambiente e mantêm relações distantescom os que estão próximos de sua condição. Ahumilhação os impede de desenvolver o senti-mento de pertencimento a uma classe social(Paugam; Schulteis, 1998, p.18).

O fio da argumentação de Simmel é funda-mental no estabelecimento das relações entre soci-edade e política. Segundo Isaac Joseph (2003,p.325), Simmel considera que a política não é umaesfera à parte, mas, de alguma forma, uma catego-ria da experiência. Da mesma forma, a política nãose reduz ao social, mas implica os termos do en-tendimento ou do não-entendimento dos partici-pantes frente aos problemas. Assim, para Joseph,a questão da assistência, analisada por Simmel,exemplifica uma análise no campo político (comoteleologia contratualista ou utilitarista). É que o“pobre”, aquele indivíduo que se apresenta comoexcluído, pertence ao mais amplo dos círculos

16 Fazendo aqui referência à distinção feita por Marx entre“classe em si” e “classe para si”, Bourdieu analisa, noseu artigo “Une classe objet” (1977) a situação docampesinato que se impõe como um destino construídopelo outro. O campesinato, para ele, dentre todos osgrupos dominados, é, sem dúvida, aquele que nuncaconstruiu um contra-discurso capaz de se constituir emsujeito de sua verdade (p.4).

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políticos, ou seja, à coletividade do Estado.17

Esse texto de Simmel levanta questõescruciais na discussão do desenho de sistemas deassistência contemporâneos: a questão da defini-ção dos mínimos sociais; a diferenciação entre aobrigação da dádiva e da caridade em relação aagentes individuais privados e do Estado; o lugarda municipalidade na função das transferênciassociais; as implicações metodológicas da análisedo social, considerando variáveis políticas da ci-dadania e da cultura que estigmatizam o “lugar”desses sujeitos no corpo social, entre “úteis” e “inú-teis”. No entanto, é preciso relativizar a perspecti-va de passividade do “lugar” dos pobres nos tex-tos de Simmel. A perspectiva de mudança na rea-lidade social desses segmentos, por suas lutas emovimentos sociais, constitui expressão de umacidadania conquistada e da superação de “lugaresrígidos” no âmbito do corpo social. As lutas ope-rárias gradativamente foram ampliando, para oconjunto da sociedade, direitos sociais, ainda quea centralidade desses direitos se ordenasse a par-tir da matriz corporativista da classe operária, naAlemanha e na França. No Brasil, a organização demuitos segmentos da cidadania em movimentossociais, a exemplo da luta pela terra no Brasil, daluta por moradia, constituiu formas de superaçãodesse lugar de “subalternidade” de muitos segmen-tos das classes populares em condição de pobre-za, permitindo-lhes o acesso a várias políticas pú-blicas e a direitos sociais.

Efetivamente, desde o século XVII, frente àemergência de uma massa de trabalhadores empo-brecidos, a sociedade vem discutindo formas deassistência e reprodução social para as famíliastrabalhadoras, até se chegar à proposição de umamedida científica de uma renda familiar para aten-der às necessidades básicas, como no estudo deSeebohm Rowntree: Poverty. A Study of Town Life[1901], da mesma época. Nesse sentido, as análi-ses de Simmel, neste livro, contribuem para escla-recer alguns paradoxos entre a lógica daqueles que

concedem e o imperativo de um direito moral dopobre de receber, que acaba determinando umaobrigação da dádiva continuada, seja no planopúblico ou privado. Do mesmo modo, essa pers-pectiva de análise de Simmel pode auxiliar noentendimento das concepções liberais que limitama ação pública da assistência social aos “mínimos”e aos mais pobres.

SIMMEL E O PARADIGMA DA DÁDIVA: algu-mas considerações finais

A obra de Georg Simmel alicerça uma con-cepção que vem sendo retomada na discussão con-temporânea sobre programas de renda mínima ci-dadã, assentada num paradigma da dádiva. Simmelcontrapõe-se ao entendimento restrito dos pobrescomo “inúteis no mundo”, “populaçãoextranumerária”, “desqualificados” e “indesejá-veis”, situando-os em termos de direitos civis nocontexto político republicano, com propostas atu-ais de direitos mínimos de cidadania. Nesse caso,a questão diz respeito à redistribuição.

A sua contribuição, portanto, pode subsi-diar o debate atual sobre a natureza das proteçõessociais. Além das questões relativas à abrangênciade tais soluções, especialmente nas sociedadesperiféricas – em que a grandeza quantitativa do“excedente” da força de trabalho (o setor informal)torna ainda mais urgente e, ao mesmo tempo, maiscomplexa a ação do Estado –, essa colaboraçãorecoloca, no centro do debate, as relações intrínse-cas e contraditórias entre a proteção da cidadaniae o universo do trabalho e dos trabalhadores.

Essas são questões abertas e polêmicas pos-tas pelos encaminhamentos políticos contemporâ-neos. Chanial (2004), ao discutir propostas de rendamínima, identifica três paradigmas vigentes: oparadigma do contrato, o paradigma do direito e oparadigma da dádiva. Segundo Chanial, oparadigma do contrato é defendido atualmente porPierre Rosanvallon. Para esse autor, nenhuma ren-da pode estar desconectada de uma atividade detrabalho. O segundo refere-se a um paradigma do

17 Num contexto de globalização, o maior dos campospolíticos ultrapassaria a dimensão do Estado-nacional.

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direito, defendido especialmente por J. M. Ferry(1995, 1996), que justifica essa renda integrando-ana construção dos direitos democráticos. O tercei-ro e último paradigma, o da dádiva, refuta o mode-lo do contrato e do direito, rearticulando, ao mes-mo tempo, dádiva, incondicionalidade e cidada-nia (Caillé, 1987, 1992, 2000 apud Chanial, 2004).

Segundo Chanial,18 a perspectiva do contra-to entende a renda incondicional como se fosseum direito sem contrapartida, um direito sem de-ver. A crítica é que sua implantação poderia criarum sistema de proteção social puramenteindenizatório, na forma de um “Estado-Providên-cia-passivo” (Rosanvallon, 1995, p.122-125). Nabase da crítica do imaginário contratualista, está aidéia de equivalência, de que ninguém pode obternada sem oferecer algo em troca e que a integraçãosocial pressupõe, portanto, a “utilidade social” ouo compromisso com a coletividade. Segundo essaperspectiva, a cidadania estaria ameaçada sempreque a reciprocidade de direitos e de deveres fossequebrada, o que, para Rosanvallon, consiste nabase de todo laço cívico. Mesmo se os direitos ine-rentes à cidadania pudessem justificar um direitoà renda, um direito à vida, como analisa Simmel,esse direito não poderia estar separado de obriga-ções positivas. Todo direito à renda, paraRosanvallon (1995), supõe o direito ao trabalho,ou, utilizando os seus termos, supõe um dever deinserção ou de utilidade social.19

O paradigma da dádiva, para os autores doM.A.U.S.S. (Mouvement Anti-Utilitariste dans lesSciences Sociales, na França),20 rompe, de formaradical, com o imaginário contratualista (uma vezque, para esses autores, tem caráter econômico eutilitarista) e reafirma um duplo princípio da

incondicionalidade: a incondicionalidade do va-lor das pessoas e aquela da própria cidadania de-mocrática, como afirmou Simmel no seu livro Lespauvres [1907].

Para os adeptos do M.A.U.S.S, como AlainCaillé e Phillipe Chanial, a atribuição de uma ren-da desconectada da prestação de trabalho, hoje,consiste, primeiramente, em reconhecer igual dig-nidade a todos, independentemente de sua situa-ção profissional, possibilitando a cada um escaparda miséria e dos estigmas identitários, como tam-bém da servidão e da humilhação próprias da as-sistência.

Para Chanial (2004), por exemplo, afirmarque o pacto democrático tem um valor intrínsecojá significa sugerir que ele não seja cogitado sob afigura do contrato, e que a cidadania não seja en-caminhada pelo cálculo dos direitos e das obriga-ções. Uma pessoa é legitima, porque, primeiramen-te, a fazemos cidadã. Em seguida é que podemosexigir dela qualquer civismo, e não o contrário.Nesse sentido, a cidadania distingue-se do regis-tro do contrato, que obedece ao princípio inscritona relação “é dando que se recebe”. Ela não é paga.Ela deve ser incondicionalmente reconhecida, paraque o indivíduo, autônomo, possa, de retorno, agircomo cidadão. Tal é o sentido do desafio da rendaincondicional da cidadania.

O esforço da busca de alternativas não é ta-refa simples, por várias razões. Primeiramente,porque estamos falando de uma realidade subme-tida a mudanças radicais, na qual algumas dessascategorias ainda não foram suficientemente sub-metidas à crítica. E, por outro lado, porque, nocampo dessas mudanças, patinamos sobre novosprincípios e novas categorias de análise que, mui-tas vezes, aproximam tradições de pensamentoopostas, como o liberalismo e o socialismo, comoindica Lo Vuolo (2004) a respeito da renda míni-ma de cidadania. Essa zona cinzenta21 gerapolissemia conceitual e pouca clareza quanto àdireção da ação prática.

18 Sobre a teoria da dádiva, ver Caillé, 1998, 2002a; 2002b;Chanial, 1996, 2004; Laville; Caillé, 2001; Martins, 2002;Carvalho; Laville, 2004; Laville, 2004.

19 Este registro da equivalência do contrato, segundoChanial, é também o de Rawls. O imposto negativo, quecomplementa uma renda, supõe uma prestação de tra-balho.

20 No Brasil, o M. A. U. S. S. (Mouvement Anti-Utilitaristedans les Sciences Sociales) vem sendo divulgado pelosociólogo Paulo Henrique Martins, professor Titular deSociologia da UFPE, atual Vice-Presidente desse Movi-mento. Ver a respeito o site: www.jornaldomauss.org

21 Refiro-me ao caráter nebuloso e ainda pouco claro, por-que subordinado a contextos conceituais e valorativosdistintos.

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Como vimos, a contribuição do texto deSimmel, escrito no início do século XX, repercutesobre proposições analíticas, no presente, a res-peito dos regimes de bem-estar e da idéia de cria-ção de uma renda mínima de cidadania. Nessesentido, algumas dimensões levantadas pelo au-tor podem auxiliar na avaliação crítica de proposi-ções em curso, que expressem a necessidade de seultrapassar uma abordagem puramenteeconomicista, resgatando também dimensões po-líticas e culturais na compreensão dos processosde proteção e direitos sociais.

(Recebido para publicação em novembro de 2007)(Aceito em abril de 2008)

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RESUMOS, ABSTRACTS, RÉSUMÉS

GEORG SIMMEL E A “SOCIOLOGIA DAPOBREZA”

Anete B. L. Ivo

O artigo apresenta os principais as-pectos tratados no livro Les Pauvres[1907], de Georg Simmel, sobre os po-bres e apobreza. O autor parte das rela-

GEORG SIMMEL AND THE “SOCIOLOGYOF POVERTY”

Anete B. L. Ivo

The article presents the mainaspects treated in the book Les Pauvres[1907], by Georg Simmel, on the poorand poverty. The author starts from the

GEORG SIMMEL ET LA “SOCIOLOGIE DELA PAUVRETÉ”

Anete B. L. Ivo

L’article présente les principauxaspects abordés dans le livre Les Pauvres[1907], de Georg Simmel, concernantles pauvres et la pauvreté. L’auteur part

ções intersubjetivas da obrigação dadádiva, no ato de dar/receber, avançan-do em proposições teóricas mais am-plas, como: as relações entre a ética, amoral e a sociedade; a articulação entreo particular e o geral com base na posi-ção de dependência dos pobres frente àcoletividade; a passagem da noção abs-trata da pobreza às formas regulatóriasda assistência e sua objetivação socialna forma de instituições públicas e/ouprivadas da assistência. Ao final o autorestabelece algumas conexões entre aanálise de Simmel e a perspectiva con-temporânea da teoria da dádiva em rela-ção à proteção social, especialmente so-bre a renda mínima de cidadania. Aoanalisar a situação da pobreza, Simmelencaminha, no plano teórico e analíti-co, uma fecunda análise sobre aestruturação social.

PALAVRAS-CHAVE: teoria social, GeorgSimmel, pobreza, teoria da dádiva, cida-dania.

intersubjective relations of the obligationof giving, in the action of giving/receiving,advancing in ampler theoreticalpropositions, such as: the relationsbetween ethics, morals and society; thearticulation between the particular andthe general, based in the dependenceposition of the poor regarding thecollectivity; the passage from the abstractnotion of poverty to the regulatoryforms of the assistance and its socialobjectivation in the form of public and/or private institutions of assistance. Atthe end the author establishes someconnections between Simmel’s analysisand the contemporary perspective oftheory of giving in relation to socialprotection, especially on the minimumcitizenship income. When analyzingthe situation of poverty, Simmel directs,in the theoretical and analytical plan, afertile analysis about social structuring.

KEYWORDS: social theory, Georg Simmel,poverty, theory of the giving, citizenship.

des relations intersubjectives del’obligation des dons dans l’acte dedonner et de recevoir et avance despropositions théoriques amples tellesque : les relations entre l’éthique, lamorale et la société, l’articulation entrele particulier et le général sur la based’une position de dépendance despauvres face à la collectivité ; le passagede la notion abstraite de pauvreté auxformes régulatrices de l’assistance et deson objectivation sociale sous formed’institutions publiques et/ou privéesde l’assistance. Pour finir, l’auteur établitdes liens entre l’analyse de Simmel et laperspective contemporaine de la théoriedes dons par rapport à la protectionsociale, tout spécialement en ce quiconcerne le revenu minimum de lacitoyenneté. En analysant la situationde la pauvreté, Simmel mène, autantsur le plan théorique que sur le plananalytique, une analyse féconde de lastructuration sociale.

MOTS-CLÉS: théorie sociale, GeorgSimmel, pauvreté, théorie du don,citoyenneté.