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1 A DIVISÃO DO TRABALHO COMO CAUSA DA DIFERENCIAÇÃO DA CULTURA SUBJETIVA E OBJETIVA (1900) Georg Simmel Quando designamos os refinamentos, as formas espiritualizadas da vida e os resultados do trabalho interior e exterior da vida como cultura, ordenamos, com isso, esses valores em uma perspectiva, segundo a qual eles ainda não se sustentam por meio da sua significação própria e objetiva. Para nós, eles são conteúdos da cultura na medida em que os vemos como desdobramentos eleva- dos de germes e tendências naturais - elevados além da medida do desenvolvimento, da plenitude e da diferenciação que seriam alcançáveis pela sua mera natureza. Uma energia ou indicação dada pela natureza - que decerto precisa apenas existir para estar por trás do desenvolvimento verdadeiro - forma o pré-requisito para o conceito de cultura, pois, da perspectiva deste, os valores da vida são justamente natureza cultivada. Eles não têm aqui a significação isolada que a partir do alto se compara ao ideal da fortuna, da inteligência e da beleza, antes, eles se manifestam como desenvolvimento de um fundamento, que denominamos natureza e cujas forças e conteúdo de idéias elas ultrapassam, na medida em que são justamente cultura. Se, portanto, uma fruta de pomar e uma estátua são igualmente produtos da cultura, a língua explicita, entretanto, com muita precisão, esta relação, ao designar cultivada aquela árvore frutífera, enquanto o mármore bruto de nenhum modo é cultivado em estátua, pois, no primeiro caso, há uma força motriz e uma característica naturais da árvore em direção àquela fruta, que por meio da influencia inteligente é levada a ultrapassar suas fronteiras naturais, enquanto, em relação ao bloco de mármore, não temos como pré-requisito uma tendência correspondente em direção à estátua; a cultura nela realizada significa a elevação e o refinamento de certas energias humanas, cujas manifestações originais designamos "naturais". Em primeiro lugar, parece evidente que coisas impessoais só podem ser comparativamente designadas enquanto cultivadas, posto que aquele

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A DIVISÃO DO TRABALHO COMO CAUSA DA DIFERENCIAÇÃO

DA CULTURA SUBJETIVA E OBJETIVA (1900)

Georg Simmel

Quando designamos os refinamentos, as formas espiritualizadas da vida

e os resultados do trabalho interior e exterior da vida como cultura, ordenamos,

com isso, esses valores em uma perspectiva, segundo a qual eles ainda não se

sustentam por meio da sua significação própria e objetiva. Para nós, eles são

conteúdos da cultura na medida em que os vemos como desdobramentos eleva-

dos de germes e tendências naturais - elevados além da medida do

desenvolvimento, da plenitude e da diferenciação que seriam alcançáveis pela

sua mera natureza. Uma energia ou indicação dada pela natureza - que decerto

precisa apenas existir para estar por trás do desenvolvimento verdadeiro - forma

o pré-requisito para o conceito de cultura, pois, da perspectiva deste, os valores

da vida são justamente natureza cultivada.

Eles não têm aqui a significação isolada que a partir do alto se compara

ao ideal da fortuna, da inteligência e da beleza, antes, eles se manifestam como

desenvolvimento de um fundamento, que denominamos natureza e cujas forças

e conteúdo de idéias elas ultrapassam, na medida em que são justamente

cultura. Se, portanto, uma fruta de pomar e uma estátua são igualmente

produtos da cultura, a língua explicita, entretanto, com muita precisão, esta

relação, ao designar cultivada aquela árvore frutífera, enquanto o mármore bruto

de nenhum modo é cultivado em estátua, pois, no primeiro caso, há uma força

motriz e uma característica naturais da árvore em direção àquela fruta, que por

meio da influencia inteligente é levada a ultrapassar suas fronteiras naturais,

enquanto, em relação ao bloco de mármore, não temos como pré-requisito uma

tendência correspondente em direção à estátua; a cultura nela realizada

significa a elevação e o refinamento de certas energias humanas, cujas

manifestações originais designamos "naturais".

Em primeiro lugar, parece evidente que coisas impessoais só podem ser

comparativamente designadas enquanto cultivadas, posto que aquele

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desdobramento do dado para além da fronteira de sua mera vida natural,

realizado mediante a vontade e o intelecto, compete finalmente apenas a nós

mesmos ou àquelas coisas cujo desenvolvimento se liga a nosso impulso e que

retroativamente estimula nosso sentimento. Os bens materiais de cultura -

móveis e plantas de cultura, obras de arte e máquinas, aparelhos e livros, em

cujas formas as matérias naturais podem, de fato, se desenvolver, mas nunca

pelas suas próprias forças - são a nossa própria vontade e sentimento

desdobrados por idéias. Vontade e sentimento que englobam em si as

possibilidades de desenvolvimento das coisas - desde que estas sejam dadas; e

este procedimento não é distinto daquele que forma a relação do homem com

seus semelhantes e consigo próprio - língua, costume, religião, direito. Na

medida em que esses valores são vistos como culturais, nós os diferenciamos

dos degraus de formação das energias neles vivas, que eles, por assim dizer,

podem alcançar por si e que para o processo de cultivação constituem apenas o

material, como a madeira e o metal, as plantas e a eletricidade.

Na medida em que cultivamos as coisas, isto é, elevamos sua medida de

valores para além do que foi realizado por seus mecanismos naturais,

cultivamos a nós mesmos: é o mesmo processo que sai de nós e a nós retoma -

de elevação de valores que alcança a natureza fora de nós ou a natureza em

nós. A arte plástica mostra esse conceito de cultura da maneira mais pura,

porque o mostra na maior tensão dos contrastes, pois aqui parece, inicialmente,

que a formação do objeto se esquiva inteiramente àquela inserção no processo

de nossa subjetividade. A obra de arte interpreta para nós exatamente o sentido

do próprio fenômeno, pouco importando se, nela, o sentido está na configuração

do espaço, na relação das cores, ou no que é próprio do plano da alma que vive

tanto dentro como atrás do que é visível. Mas sempre se trata de ouvir das

coisas sua significação e seu segredo, para apresentá-los de uma forma mais

pura e clara do que aquela à qual seu desenvolvimento natural a trouxe - mas

não no sentido da tecnologia química ou física, que estuda as leis das coisas

para inseri-las em nossas próprias finalidades, as quais se situam fora delas;

antes, o processo artístico estará concluído assim que houver desenvolvido o

objeto à sua mais própria significação. De fato, satisfaz-se com isso também ao

ideal meramente artístico, posto que para este a perfeição da obra enquanto tal

é um valor objetivo, inteiramente independente do seu resultado em nossa

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sensação subjetiva: o lema da l'art pour l'art indica bem a auto-suficiência das

tendências puramente artísticas.

Da posição do ideal da cultura o caso é diferente. O essencial deste é

justamente que ele anula a valorização própria da realização estética, científica,

moral, eudemonista e mesmo religiosa, para inseri-las todas como elementos ou

tijolos no desenvolvimento da essência humana para além de sua situação

natural; ou mais precisamente: elas são os trechos do caminho que este desen-

volvimento percorre. Sem dúvida, em cada instante ele se encontra em um

desses caminhos; ele não pode nunca percorrê-lo de um modo puramente

formal, sem conteúdo e em si mesmo. Isso já basta para afirmar que ele não é

ainda idêntico a este conteúdo. Os conteúdos da cultura são constituídos por

aquelas formações, a cada uma das quais está submetido um ideal autônomo.

Isto, no entanto, observado da perspectiva do desenvolvimento de nossas forças

- sustentado por essas formações e que adquire movimento por meio delas -

para além do que consideramos meramente natural. Na medida em que o

homem cultiva os objetos, faz deles imagens: na medida em que o

desdobramento transnatural das energias destes objetos é válido como

processo de cultura, este constitui apenas o lado visível ou o corpo para o

mesmo desdobramento de nossas energias.

A esta discussão do conceito geral de cultura contraponho agora uma

relação especial no âmbito da cultura da atualidade. Comparando, por exemplo,

com a situação de cem anos atrás, pode-se dizer - reservadas muitas exceções

individuais - que as coisas que envolvem e preenchem objetivamente nossa

vida, como aparelhos, meios de transporte, produtos da ciência, da técnica e da

arte, são incrivelmente cultivadas, mas a cultura dos indivíduos, pelo menos nas

classes mais altas, de maneira alguma progrediu, em muitos casos até regrediu.

Esta é uma relação que não carece de comprovação específica. Saliento,

portanto, apenas alguns aspectos. As possibilidades de expressão lingüística,

tanto no alemão como no francês, enriqueceram-se e ganharam nuances nos

últimos cem anos; não apenas a linguagem de Goethe nos foi presenteada,

como houve ainda o acréscimo de uma grande quantidade de refinamentos,

matizações e individualizações da expressão. Não obstante, observando a fala e

a escrita dos indivíduos, percebe-se que no todo ela se toma sempre mais

incorreta, mais indigna e mais trivial. E no que diz respeito ao conteúdo, apesar

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de o horizonte, do qual a conversação cria seus temas, ter se expandido

objetivamente de um modo considerável no mesmo período - pelo avanço da

teoria e da práxis -, tem-se a impressão de que a conversação - tanto a social

como a íntima ou a troca de correspondência - seria agora muito mais

superficial, desinteressante e menos séria que ao final do século XVIII. A esta

categoria pertence o fato de a máquina ter se tomado muito mais inteligente que

o trabalhador. Quantos trabalhadores - mesmo excetuando-se aqueles da

grande indústria propriamente dita - poderiam, hoje, entender a máquina na qual

eles trabalham, isto é, entender o espírito investido na máquina? Nada diferente

disso se encontra na cultura militar. O que cada soldado tem a realizar

permanece, há muito tempo, essencialmente inalterado, e, por intermédio da for-

ma moderna da estratégia de guerra, chegou mesmo a diminuir. Por outro lado,

houve o aperfeiçoamento incessante, não apenas dos instrumentos desta

estratégia moderna de guerra, mas especialmente de tudo o que é oposto à

organização de tropa baseada nos indivíduos, de modo que estes se tomaram

um verdadeiro triunfo da cultura objetiva. E, no âmbito puramente espiritual, os

homens mais eruditos e mais dados à reflexão também operam assim, com

respeito a um número sempre crescente de representações, conceitos e

proposições cujo sentido e teor eles conhecem apenas parcialmente. A

monstruosa expansão da matéria do saber objetivamente dada permite, e

mesmo obriga, o uso de expressões que realmente passam de mão em mão

como receptáculos fechados, sem que o conteúdo de pensamento neles de fato

condensado se abra para cada usuário. Assim como nossa vida exterior é

envolta por um número crescente de objetos, cujo espírito objetivo empregado

em seus processos de produção não examinamos a fundo, de uma maneira

distanciada, também a nossa vida íntima e social é preenchida por construções

tomadas simbólicas, nas quais uma espiritualidade abrangente é armazenada -

o espírito individual, no entanto, aproveita-se apenas minimamente delas. Esta

discrepância entre a cultura tomada objetiva e a subjetiva parece expandir-se

permanentemente. O acervo da cultura objetiva é aumentado diariamente e de

todos os lados, enquanto o espírito individual somente pode estender as formas

e conteúdos de sua constituição em uma aceleração contida, seguindo apenas

de longe a cultura objetiva.

Como esclarecer este fenômeno? Se toda cultura das coisas, como

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vimos, é apenas uma cultura do homem, de modo que nos formamos ao

formarmos as coisas, que significa aquele desenvolvimento, aperfeiçoamento e

espiritualização dos objetos, executados como que a partir de suas próprias

forças e normas e sem que almas específicas se desenvolvessem

correspondentemente neles ou em contato com eles? Aqui temos um

acirramento da relação enigmática que existe entre a vida e os produtos de vida

da sociedade, por um lado, e os conteúdos fragmentários da existência dos

indivíduos, por outro. Nas línguas e nos costumes, nas constituições políticas e

nas doutrinas religiosas, na literatura e na técnica, é acumulado o trabalho de

incontáveis gerações, enquanto espírito tomado objetivo. Deste trabalho

acumulado cada um leva o quanto quiser ou puder, mas nenhum indivíduo é

capaz de esgotá-lo; entre a dimensão deste acervo e a do que dele é retirado

temos as relações mais variadas e casuais. E a futilidade ou a irracionalidade da

parcela individual deixa o conteúdo e a dignidade pessoal daquele patrimônio da

espécie praticamente intocados, do mesmo modo como um ente corpóreo

existe, quer seja percebido ou não. Assim como o conteúdo e a significação de

um livro dado são indiferentes ao seu círculo de leitores - que pode ser grande

ou pequeno, que pode compreendê-los ou não -, também qualquer outro pro-

duto da cultura se relaciona da mesma maneira perante o círculo cultural.

Apesar de estar pronta para ser entendida por qualquer um, esta disposição

encontra apenas uma recepção esporádica. Este trabalho espiritual condensado

da comunidade relaciona-se, pois, com sua vivacidade nos espíritos individuais

da mesma maneira como a extensa plenitude da possibilidade se relaciona com

a limitação da realidade. A compreensão do modo de existência de tais

conteúdos objetivos do espírito exige sua inserção em uma organização peculiar

de nossas categorias mundi-abrangentes. Dentro dela, a relação discrepante da

cultura objetiva e subjetiva, que constitui nosso verdadeiro problema, também

encontrará seu lugar.

Se o mito platônico deixa a alma ver a essência pura, a significação

absoluta das coisas em sua preexistência, de tal modo que seu saber posterior

seria apenas a rememorização daquela verdade, que ocasionalmente faria

emergir na alma estímulos sensitivos, então temos, decerto, como

conseqüência, a perplexidade a respeito de onde poderia advir nosso

conhecimento, se lhe for recusada, à guisa de Platão, a origem na experiência.

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Mesmo desconsiderando a causa eventual de sua origem, naquela especulação

metafísica é sugeri da - em seu sentido profundo - uma atitude da nossa alma

com respeito à teoria do conhecimento. Independente de considerarmos nosso

conhecimento efeito imediato de objetos externos ou um processo puramente

interior, dentro do qual todo exterior é uma forma imanente ou uma relação de

elementos da alma, sempre perceberemos nosso pensamento, na medida em

que o consideramos verdadeiro, como realização de uma exigência objetiva,

como cópia de um modelo ideal. Mesmo se um reflexo exato das coisas, como

elas são em si, constituísse nossa representação, a unidade, a correção e a

perfeição - das quais o conhecimento se aproxima assintoticamente,

conquistando uma parte após outra - não alcançariam, no entanto, os próprios

objetos.

Antes, o ideal do nosso conhecimento almejaria apenas o conteúdo das

coisas na forma da representação, pois até mesmo o realismo mais extremado

não quer alcançar as coisas, mas sim o conhecimento das coisas. Se

qualificamos a soma de fragmentos, que em cada momento dado constitui

nosso acervo de saber em relação ao desenvolvimento pelo qual este anseia e

que constitui um parâmetro no qual cada fase presente mede sua significação,

só podemos fazê-lo mediante o pré-requisito que fundamenta aquela doutrina:

que existe um reino ideal dos valores teóricos, do sentido e do contexto

intelectuais perfeitos, que não coincide com os objetos - urna vez que esses são

justamente apenas seus objetos nem com o conhecer psicológico real,

respectivamente alcançado. Este último busca, antes, abrigar-se paulatina e

sempre imperfeitamente naquele, que encerra toda a verdade possível. O

conhecer psicológico real é verdadeiro na medida em que consegue isso. O fato

fundamental da sensação de que nosso conhecimento é, em cada instante, a

parte de um complexo dos conhecimentos apenas idealmente existente,

oferecido à nossa realização psíquica e a promovendo, pareceu a Platão ter

existido; apenas ele o expressou como urna queda do conhecer real com

respeito à antiga posse desta totalidade, enquanto um não mais, o que hoje

devemos conceber como um ainda não. Mas a relação em si pode manifesta-

mente estar na base de ambas as interpretações, como algo que é sentido de

maneira idêntica - do mesmo modo, uma soma idêntica se deixa produzir tanto

pela subtração de um valor mais alto, como pela adição a um valor mais baixo.

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O modo de existência próprio deste ideal de conhecimento, que se

contrapõe ao nosso conhecimento real como norma ou totalidade, é o mesmo

da totalidade dos valores e das prescrições morais que vêm a se contrapor às

ações efetivas dos indivíduos. Aqui, no âmbito da ética, nos é corrente a

consciência de que nossa atividade realiza, inteira ou parcialmente, uma norma

válida em si. Esta norma - cujo conteúdo de resto pode variar para cada pessoa

e para cada época de sua vida - não é encontrável no tempo e no espaço e nem

coincide com a consciência ética, que é, antes, sentida como dependente dela.

E isto é afinal a fórmula da nossa vida, da práxis cotidiana banal ao mais alto

cume da espiritualidade: em cada realização temos sobre nós urna norma, um

padrão de referência, uma totalidade ideal pré-formada que, justamente por

meio desta realização, é transportada para a forma da realidade - com o que

não afirmamos apenas o lugar comum de que qualquer vontade é dirigida por

um ideal. Antes, está em questão um caráter determinado de nossa ação, mais

ou menos claro, que só se deixa expressar nos termos de que com essa ação -

e tanto faz se ela for, com respeito a seus valores, deveras anti-ideal -

realizamos uma possibilidade de algum modo previamente desenhada, algo

como um programa ideal. Nossa existência prática, insuficiente e fragmentária

como ela é, obtém uma certa significação e coerência pelo fato de ser uma

realização parcial de uma totalidade. Nossa ação, mesmo a totalidade de nosso

ser, incluindo tanto o bonito como o feio, o certo como o errado, o grande como

o pequeno, parece provir de um acervo de possibilidades, de modo que ela se

relaciona, em cada instante, com o conteúdo determinado de seu ideal da

mesma maneira como as coisas específicas concretas se relacionam com seu

conceito, que expressa a sua lei interior e a sua essência lógica, sem que a

significação deste conteúdo dependa do se, como e quão freqüente ocorre sua

realização. Só podemos pensar o conhecer como realização, na consciência,

daquelas representações que estiveram justamente esperando tais realizações

nos lugares por assim dizer incertos. O fato de designarmos nossos

conhecimentos como necessários, ou seja, o fato de eles, segundo o seu

conteúdo, só poderem existir de uma única maneira, constitui apenas uma outra

expressão para aquele aspecto do qual temos consciência: nós os percebemos

como realização psíquica daquele conteúdo já ideal mente decidido. Esta única

maneira não significa de nenhum modo que para toda diversidade dos espíritos

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exista apenas uma verdade. Antes, se de um lado é dado um determinado

intelecto e de outro uma determinada objetividade, então, aquilo que justamente

para aquele espírito é verdade é objetivamente pré-formado, como o é o

resultado de uma operação no caso de seus fatores serem dados; a cada

alteração da estrutura espiritual dada, altera-se o conteúdo dessa verdade, sem

que com isso ela fique menos objetiva e menos independente de toda

conscientização ocorrida nesse espírito. Toda esta indicação, que retiramos de

determinados fatos do saber, de que outros fatos do saber determinados devem

também ser considerados, representa a causa eventual que torna visível aquela

essência do nosso conhecimento: cada um desses conhecimentos constitui uma

conscientização de algo já previamente válido e consolidado no contexto

objetivamente determinado dos conteúdos do conhecimento.

Visto, finalmente, pelo lado psicológico, isto faz parte da teoria segundo a

qual considerar algo verdadeiro constitui um certo sentimento, que acompanha

os conteúdos de representação; o que denominamos comprovar não é outra

coisa senão a realização de uma constelação psicológica na qual aquele

sentimento entra em jogo. Nenhuma percepção sensitiva ou conseqüência

lógica constitui imediatamente a convicção de ser uma realidade; elas são,

antes, apenas condições que suscitam o sentimento suprateorético da

afirmação, da concordância, ou como queiram nomear este sentimento da

realidade, que é, em verdade, indescritível. Este sentimento constitui a

mediação entre as duas categorias da teoria do conhecimento: o sentido do

conteúdo das coisas que é válido, sustentado por sua coerência interna e que

indica a cada elemento o seu lugar; e a nossa representação das coisas, que

significa sua realidade em um sujeito.

Esta relação geral e fundamental encontra uma analogia, em escala

reduzida, com aquela relação que se estabelece entre o espírito e a cultura

objetificados e o sujeito individual. Assim como nós - da perspectiva da teoria do

conhecimento - retiramos os conteúdos de nossa vida do reino do que é

objetivamente válido, de um ponto de vista histórico, recebemos uma parte

preponderante dos conteúdos de nossa vida daquela provisão de trabalho

espiritual da espécie já acumulada; aqui também existem conteúdos pré-

formados que se oferecem à realização nos espíritos individuais, mas que, no

lado oposto a tais realizações, mantém sua decisão que não pode

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absolutamente ser confundida com aquela de um objeto material, pois mesmo

se o espírito está ligado à matéria, como em aparelhos. obras de arte e livros,

ele nunca coincide com o que nessas coisas é sensitivamente perceptível. Ele

as habita de uma forma potencial - que não se deixa definir mais precisamente -

a partir da qual a consciência individual pode atualizá-lo. A cultura objetiva é a

representação ou a condensação - perfeita ou imperfeita - daquela verdade

objetivamente válida, da qual nosso conhecimento é uma cópia. Se podemos

dizer que a lei da gravidade teria sido válida antes que Newton a expressasse,

então temos que a lei .enquanto tal não se fundamenta na massa real da

matéria, uma vez que ela significa apenas a maneira na qual se representam

suas relações em um determinado espírito organizado, e uma vez que a

validade desta lei de modo algum depende que haja matéria na realidade. Deste

modo ela não está nem nas próprias coisas objetivas nem no espírito subjetivo,

mas sim naquela esfera do espírito objetivo, da qual nossa consciência da

verdade condensa um segmento após o outro da realidade neste espírito

objetivo. Se isto, entretanto, é consumado por Newton na lei em questão, então

ela é inserida no espírito histórico objetivo, e sua significação ideal no âmbito

deste independe agora, em princípio, de sua repetição em cada indivíduo.

Na medida em que alcançamos esta categoria do espírito objetivo como

representação histórica do conteúdo espiritual das coisas - que é válido -, toma-

se visível por que o processo cultural, que reconhecemos como um

desenvolvimento subjetivo – a cultura das coisas como uma cultura do homem -,

pode separar-se de seu conteúdo; esse conteúdo recebe, ao entrar naquela

categoria, um outro status, e com isso é criado o fundamento para o fenômeno

que se nos apresenta como desenvolvimento diferenciado da cultura objetiva e

da cultura pessoal. Com a objetificação do espírito é alcançada a forma que

permite uma conservação e acumulação do trabalho da consciência; ela é,

dentre as categorias históricas da humanidade, a mais significativa e a mais

prenhe em conseqüências, porque ela toma fato histórico o que é tão duvidoso

como fato biológico: a hereditariedade de fatores adquiridos. Se a preeminência

dos homens em relação aos animais se deve ao fato de ele ser herdeiro e não

mero descendente, então a objetificação do espírito em palavras e obras,

organizações e tradições constitui o sustentáculo dessa diferenciação, que

confere ao homem um mundo, o seu mundo.

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Se este espírito objetivo da sociedade histórica constitui o conteúdo

cultural desta no sentido mais amplo, então a significação prática da cultura de

cada um de seus elementos se mede, não obstante, pela proporção na qual eles

se tomam momento de desenvolvimento dos indivíduos, pois, aceitando a

suposição de que aquela descoberta de Newton estivesse apenas em um livro

que ninguém conhecesse, ela ainda assim seria um espírito tomado objetivo e

uma propriedade potencial da sociedade, porém já não configuraria um valor

cultural. Da possibilidade de ocorrência deste caso extremo em incontáveis

gradações decorre imediatamente que, em uma sociedade mais complexa,

apenas uma certa parte dos valores culturais objetivos toma-se subjetiva.

Observe-se a sociedade como um todo, ou seja, ordene-se a espiritualidade que

nela se toma objetiva em um complexo temporal-objetivo e teremos que a

totalidade do desenvolvimento cultural - para a qual se simulou um único

portador - é mais rica em conteúdo que o desenvolvimento cultural de cada um

de seus elementos, pois a realização de cada elemento se soma àquela

propriedade total, mas esta não chega até cada elemento. Todo o estilo de vida

de uma comunidade depende da relação da cultura tomada objetiva com a cultu-

ra dos sujeitos. Já indiquei a significação das determinações numéricas. Em um

povo pequeno, de cultura inferior, aquela relação será aproximadamente uma

das garantias de que as possibilidades objetivas da cultura não excederam

muito as realidades culturais subjetivas. Uma elevação cultural - especialmente

quando é simultaneamente acompanhada de um aumento demográfico -

favorecerá a separação de ambas: o que constituiu a situação incomparável de

Atenas ao tempo de seu apogeu foi ter sabido evitar isso - à exceção do

movimento filosófico mais elevado. Mas o tamanho do círculo não toma ainda

compreensível em si e por si a diferenciação dos fatores subjetivo e objetivo.

Trata-se, antes, de buscar agora as causas concretas e efetivas deste último

fenômeno.

Querendo concentrar este fenômeno e a força de sua aparição atual em

um único conceito, este atenderá por: divisão do trabalho; e tanto em sua

significação no âmbito da produção como no âmbito do consumo. Do ponto de

vista do primeiro, já foi suficientemente acentuado como a conclusão do produto

se realiza em detrimento ao desenvolvimento do produtor. A elevação da

energia e da habilidade físico-psíquica, que comparece na atividade parcial,

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colabora na eliminação da personalidade total unitária que, nela, é de pouco

proveito: a atividade especializada deixa-a mesmo freqüentemente atrofiar-se,

ao retirar dela uma quantidade de força imprescindível à configuração

harmônica do eu; em outros casos, o desenvolvimento da atividade

especializada implica um estrangulamento do núcleo da personalidade, ao

constituir-se como uma província com autonomia ilimitada, cujos produtos não

afluem ao centro. A experiência parece mostrar que a totalidade interior do eu se

produz essencialmente na atuação recíproca com a coerência e com o

acabamento dos afazeres da vida.

Assim como a unidade de um objeto se realiza para nós de um modo no

qual transportamos para o objeto a maneira como sentimos nosso "eu", e o

formamos segundo nossa imagem, na qual a multiplicidade das determinações

do ''tu'' se amalgamam, também a unidade do objeto que criamos e a sua falta

atuam, num sentido prático-psicológico, na correspondente formação de nossa

personalidade. Onde nossa força não produz uma totalidade na qual ela possa

se desenvolver segundo sua unidade peculiar, inexiste a verdadeira relação

entre o objeto e a personalidade do sujeito. Neste caso, as tendências internas

da realização atraem esta força às demais, formando com elas uma totalidade

de realizações de pessoas distintas. Destarte, estas forças não remetem mais

aos produtores. Em conseqüência do que, no caso de grande especialização -

que implica o surgimento de inadequações entre a forma de existência do

trabalhador e a de seus produtos -, o segundo se desliga fácil e profundamente

do primeiro, uma vez que seu sentido não aflui da alma deste trabalhador, mas

de sua relação com produtos advindos de outras partes. A este produto falta, em

função de seu caráter fragmentário, a essência do que é próprio do plano da

alma, que de outro modo é facilmente perceptível no produto do trabalho,

quando este aparece inteiramente como obra de um único homem. Deste modo,

não se deve buscar sua significação nem como reflexo de uma subjetividade,

nem no reflexo que ele, como expressão da alma criadora, lança de volta a ela.

Antes, sua significação pode finalmente ser definida como realização objetiva,

em seu afastamento do sujeito.

Esta relação pode também ser encontrada em seu extremo oposto: a

obra de arte. A essência desta é absolutamente intransigente com a repartição

do trabalho por uma plural idade de trabalhadores, que não realizam

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individualmente algo completo. Dentre todas as obras humanas - não excluído

sequer o Estado -, a obra de arte apresenta a unidade mais coerente, a

totalidade mais auto-suficiente, pois conquanto este possa, sob circunstâncias

especiais, bastar a si mesmo, ele não absorve inteiramente seus elementos em

si, impedindo que cada um tenha ainda uma vida particular, com interesses

particulares: nos vinculamos ao Estado apenas com uma parte de nossa

personalidade, outras partes desta se voltam para outros centros. A arte, ao

contrário, não permite a nenhum elemento acolhido uma significação externa à

moldura na qual ela o insere. A obra de arte específica destrói a pluralidade de

sentido das palavras e dos sons, das cores e das formas, para deixar existir,

para a consciência, somente aquele lado destes voltados a ela. A coerência da

obra de arte significa, pois, que, nela, uma unidade anímica subjetiva encontra

expressão; a obra de arte exige um único homem, mas o exige inteiro, em sua

intimidade mais central: ela retribui isto pelo fato de sua forma lhe permitir ser o

mais puro espelho e a mais pura expressão do sujeito. A recusa completa da

divisão do trabalho é assim tanto causa como sintoma da relação existente entre

a totalidade da obra, em si conclusa, e a unidade anímica. Ao contrário, onde

predomina a divisão do trabalho, tem-se como efeito uma incomensurabilidade

da realização com o realizador. Este não se vê mais no seu feito, que apresenta

uma forma distinta daquela forma pessoal-anímica e aparece apenas como uma

parcialidade de nossa essência toda unilateralmente desenvolvida. Parcialidade

esta que é indiferente à totalidade unitária desta mesma essência. A produção

realizada com base numa profunda divisão do trabalho - que adquire

consciência desta característica já penetra por si na categoria da objetividade. A

percepção - assim como a atuação - dela como algo puramente objetivo e

anônimo torna-se cada vez mais plausível, mesmo ao próprio trabalhador, que

não a sente mais como algo ligado à raiz de seu sistema integral de vida.

Aventei há pouco que o produto muito especializado tem seu conceito

vinculado a outros produtos, só encontrando sua significação própria na relação

com eles. Daí segue, portanto, que a unidade que a obra perfeita possui, e cuja

falta nós sentimos em cada um de seus elementos que são produzidos

separadamente, existe apenas na junção de todos os elementos. E esta junção

é simplesmente objetiva, pois a unidade cuja fonte é o sujeito pessoal é vedada

à obra completa para a qual o sujeito contribui apenas parcialmente. Assim

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como qualidades e energias específicas, que são determinadas de maneira

puramente objetiva - sendo cada uma encontrável nas mais diversas

combinações - produzem, mediante sua fusão e influência recíproca, a unidade

misteriosa da alma individual, no sentido inverso, uma totalidade produz-se fre-

qüentemente pela soma de realizações pessoais diferenciadas, uma totalidade

que, como tal, é de natureza objetiva. Também aqui o segredo da forma enlaça

os elementos em uma unidade, cuja essência é inteiramente distinta daquela de

cada elemento. Isto não é menos válido para produções científicas, estatais ou

industriais. Independente do desempenho proveniente de um único sujeito

aplicado a uma produção qualquer, sua capacidade de atuar como parte de um

todo está além desta gênese subjetiva. E assim que aquela capacidade é

realizada, desaparece a referência à subjetividade. Pode-se dizer: quanto mais

perfeitamente uma totalidade formada por contribuições subjetivas absorver em

si a parte, quanto mais o caráter de cada parte realmente valer e atuar apenas

como parte de uma totalidade, mais ela viverá uma vida oposta a todos os

sujeitos que a produziram.

Finalmente, o processo denominado separação do trabalhador de seus

meios de produção - que não deixa de ser uma forma de divisão do trabalho -

atua manifestamente no mesmo sentido. Na medida em que adquirir, organizar

e distribuir os meios de produção é agora função do capitalista, estes meios de

produção passam a ter para o trabalhador uma objetividade completamente

distinta daquela que eles tiveram para aqueles que trabalharam com material e

ferramentas próprias. Esta diferenciação capitalista separa profundamente as

condições subjetivas do trabalho das objetivas - separação para a qual não

existia nenhuma motivação psicológica enquanto ambas ainda estavam

reunidas em uma única mão. Na medida em que o próprio trabalho e seu objeto

imediato pertencem a pessoas distintas, o caráter objetivo destes objetos é

extraordinária e agudamente acentuado na consciência do trabalhador. E ainda

mais agudamente acentuado na medida em que o trabalho e sua matéria

constituem, por outro lado, novamente uma unidade; exatamente essa

proximidade entre eles toma mais perceptível seus atuais caminhos opostos. E

isto encontra sua continuação e seu par no fato de que, além dos meios de

produção, também o próprio trabalho se separa do trabalhador: pois é este o

significado da transformação da força de trabalho em mercadoria. Onde o traba-

Page 14: Georg Simmel - A Divisão do Trabalho como causa da Diferenciação da Cultura Subjetiva e Objetiva

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lhador produz com material próprio, seu trabalho permanece no âmbito de sua

personalidade, e somente a obra concluída desvincula-se dele por ocasião de

sua venda. Na impossibilidade de aproveitar seu trabalho desta maneira, o

trabalhador o coloca à disposição de um outro ao preço de mercado, separando-

se assim dele a partir do instante em que este deixa sua fonte. O fato de o

trabalho partilhar agora com todas as demais mercadorias seu caráter, seu

modo de valorização e seu desenvolvimento significa exatamente que, em

relação ao próprio trabalhador, o trabalho tomou-se algo objetivo, não apenas

algo que ele não é mais, mas, com efeito, algo que ele não tem mais, pois assim

que uma quantidade potencial de trabalho é aplicada em uma atividade

produtiva, ela não mais pertence ao trabalhador, cabendo-lhe apenas seu

equivalente em dinheiro, enquanto o trabalho propriamente dito pertence a um

outro, ou mais precisamente: a uma organização objetiva do trabalho. O fato de

o trabalho tomar-se mercadoria constitui apenas um lado do abrangente

processo de diferenciação, que separa da personalidade seus conteúdos

específicos, para lhe antepô-los como objetos com determinação e movimento

autônomos. Finalmente o resultado deste destino dos meios de produção e das

forças produtivas mostra-se em seu produto. O produto da época capitalista é

um objeto autocentrado, com leis de movimento próprias, cujo caráter é

estranho ao próprio sujeito produtor. Este fato adquire sua representação mais

reveladora no momento em que o trabalhador tem a necessidade de comprar o

produto de seu próprio trabalho, caso ele deseje tê-lo.

Isto é apenas um esquema geral do desenvolvimento, cuja validade

excede muito a esfera do trabalhador assalariado. A monstruosa divisão do

trabalho acarreta, por exemplo, na ciência, o fato de raríssimos pesquisadores

poderem criar eles próprios as pré-condições de seu trabalho; é mister acolher

de fora incontáveis fatos e métodos simplesmente como material objetivo, como

uma propriedade espiritual de outros, na qual o trabalho próprio se perfaz. Para

a área da técnica, é bom ressaltar que, ainda no começo do século - quando,

especialmente na indústria têxtil e siderúrgica, as mais grandiosas invenções

sucediam-se rapidamente -, os inventores precisavam construir, com as próprias

mãos e sem ajuda de outras máquinas, não apenas as máquinas que eles

conceberam, mas, na maioria das vezes, ainda imaginar e fabricar eles mesmos

as ferramentas necessárias para tal construção. A situação na ciência pode ser

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15

designada como uma separação do trabalhador de seus meios de produção

num sentiu amplo, e, em todo caso, no sentido aqui em questão, pois, no próprio

processo da produção científica, separa-se agora um material que é objetivo em

relação ao produtor do processo subjetivo do trabalho deste. Quando a atividade

da ciência era ainda muito indiferenciada, quando o pesquisador precisava ainda

produzir pessoalmente todos os pré-requisitos e materiais de seu trabalho, a

oposição entre sua produção subjetiva e um mundo de dados científicos seguros

e objetivos era, para ele, menos explícita. Nestes termos, isto se estende tam-

bém ao produto do trabalho: o próprio resultado - não importando que ele seja,

como tal, o fruto do esforço subjetivo - precisa ser elevado à categoria de um

fato objetivo, independente do produtor; e isto será tão mais urgente quanto

mais produtos do trabalho de outras pessoas já estiverem de antemão reunidos

nesse resultado, sendo nele atuantes. Por isso, na ciência que apresenta a

menor divisão do trabalho, isto é, na filosofia - especialmente em seu sentido

metafísico -, observamos que, por um lado, o material objetivo recebido

desempenha um papel de todo secundário, e, por outro, que o produto desta se

desligou minimamente de sua origem subjetiva e comparece inteiramente como

produção dessa única personalidade.

Algo semelhante à divisão do trabalho - aqui entendida no seu sentido

mais amplo, incluindo a parcelização da produção, a separação do trabalho e a

especialização -, que separa a personalidade criadora da obra criada e deixa

esta última alcançar uma autonomia objetiva, comparece também na relação

entre a produção baseada na divisão do trabalho e os consumidores. Aqui se

trata do que se deriva das conseqüências internas dos já conhecidos fatos

externos. O trabalho destinado ao freguês, que dominou a oficina medieval e

que apenas no último século experimentou seu rápido declínio, permitia ao

consumidor ter uma relação pessoal com a mercadoria. Uma vez que ela era

especialmente preparada para ele, uma vez que ela representava, por assim

dizer, uma influência recíproca entre ele e o produtor, ela intimamente lhe

pertencia também, em alguma medida, de um modo semelhante como pertencia

ao produtor. A oposição aguda entre sujeito e objeto que foi reconciliada na

teoria pela possibilidade de este existir naquele como sua representação - não

alcança tal desdobramento na práxis, pelo fato de que o objeto surgiria mediante

o trabalho de um único sujeito, ou pela vontade de um único sujeito. Na medida

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em que a divisão do trabalho destrói a produção destinada ao freguês - pelo

simples fato de que o comprador pode se colocar em contato com um produtor,

mas não com uma dúzia de operários que realizam apenas uma parte do

produto - desaparece a coloração subjetiva do produto também no lado do

consumidor, pois o produto surge agora independentemente do consumidor. A

mercadoria é agora um dado objetivo, no qual ele penetra de fora e cuja

existência e maneira de ser se lhe antepõem como algo autônomo. A diferença,

por exemplo, entre o moderno magazine de roupas, organizado segundo a mais

extrema especialização, e o trabalho do costureiro que se recebia em casa

caracteriza, da maneira mais clara, a elevação da objetividade do universo

econômico, a sua autonomia suprapessoal em relação ao sujeito consumidor, a

quem ele estava originalmente ligado.

A esta autonomia da produção em relação ao comprador está ligado um

fenômeno da divisão do trabalho que é tão cotidiano quanto pouco reconhecido

em sua significação. A partir da configuração anterior da produção, predomina,

em geral, a concepção simplista de que as camadas inferiores da sociedade

trabalham para as superiores. A idéia segundo a qual as plantas vivem do chão,

os animais das plantas e os homens dos animais é aplicada automaticamente

na organização- da sociedade - independente de ser julgada moralmente correta

ou incorreta. Destarte, quanto mais alto, social e espiritualmente, estão os

indivíduos, tanto mais sua existência se fundamenta sobre o trabalho dos

inferiores, o qual é retribuído não com trabalho para estes, mas apenas com

dinheiro. Esta concepção tornou-se completamente inexata desde que as

necessidades das massas inferiores passaram a ser cobertas pela grande

indústria, que coloca a seu serviço incontáveis energias científicas, técnicas e

organizatórias das camadas superiores. O grande químico, que em seu

laboratório medita sobre a apresentação das cores dos animais, trabalha para a

camponesa que junto ao vendedor escolhe para si o chale mais colorido; se o

grande comerciante, em uma especulação de abrangência mundial, importa

cereais americanos para a Alemanha, ele se converte num servidor dos mais

pobres proletários; a empresa de fiação de algodão, na qual estão engajadas

pessoas de alto nível de inteligência, depende de compradores das camadas

sociais mais baixas. Esta retroatividade do serviço, na qual as classes inferiores

compram para si o trabalho das superiores, encontra-se em inumeráveis

Page 17: Georg Simmel - A Divisão do Trabalho como causa da Diferenciação da Cultura Subjetiva e Objetiva

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exemplos, os quais são determinantes para a totalidade de nossa vida cultural.

Este fenômeno, no entanto, só é possível pela objetificação que a produção

alcançou tanto em relação ao sujeito produtor como em relação ao sujeito

consumidor. E é ainda por meio desta objetificação que este fenômeno se

posiciona no lado oposto das diferenças sociais - ou de qualquer outro tipo -

porventura existentes entre produtores e consumidores. Esta tomada do serviço

dos mais altos produtores de cultura pelos consumidores inferiores significa

exatamente que não existe nenhuma relação entre eles, mas sim que um objeto

é colocado entre eles - no qual, de um lado, uns trabalham, enquanto os outros

consomem -, objeto este que os separa ao vinculá-los.

A técnica de produção é tão especializada que o manejo de suas diversas

partes é confiado não apenas a mais pessoas, mas especialmente a pessoas

diferentes - até que chegue afinal justamente no ponto em que uma parte do

trabalho nos mais inferiores artigos de primeira necessidade seja realizada pelos

indivíduos de mais alta posição, enquanto, inversamente, numa objetificação

correspondente, a parcelização técnica e mecânica do trabalho possibilita a

participação das pessoas menos cultivadas na elaboração dos produtos mais

refinados da cultura de elite (pense-se, por exemplo, nas gráficas hodiernas em

contraposição à produção de livros antes da invenção da imprensa).

Nesta inversão das relações tidas como típicas entre as altas e baixas

camadas da sociedade, explicita-se o fato de que a divisão do trabalho tem

como efeito que aqueles passam a trabalhar para estes. Mas a completa

objetificação da própria produção, em relação tanto a uma como a outra camada

como sujeitos, constitui a única forma na qual isto pode acontecer. Aquela

inversão não é nada mais que uma conseqüência extrema da relação que existe

entre a divisão do trabalho e a objetivação dos conteúdos da cultura.

Até aqui a divisão do trabalho foi tratada como uma especialização das

atividades pessoais. Mas a especialização não atua menos no sentido de

colocar os objetos a uma tal distância dos sujeitos, que implique a autonomia do

objeto e a incapacidade do sujeito de assimilá-lo e submetê-la a seu próprio

ritmo. Isto vale em primeiro lugar para os meios de produção. Quanto mais estes

forem diferenciados e montados a partir de uma pluralidade de partes

especializadas, menos a personalidade daquele que neles trabalha poderá se

expressar por eles, menos a sua mão será reconhecível no produto.

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18

Comparativamente, as ferramentas com as quais a arte trabalha são

completamente indiferenciadas, e dão, portanto, o mais amplo espaço para a

personalidade desenvolver-se por meio delas; elas não se contrapõem à

personalidade como as máquinas industriais, que, pela sua própria

especialização complexa, têm uma forma pessoal e delimitada, de modo que o

trabalhador não pode penetrá-las com sua personalidade, como até então havia

feito com as ferramentas em si indeterminadas. O desenvolvimento das

ferramentas do escultor - no decurso de milênios nunca logrou ultrapassar sua

completa não-especialização. E no meio artístico onde isto, no entanto,

aconteceu, como na fabricação do piano, podemos perceber seu caráter

deveras objetivo, autocentrado, que impõe, portanto, um limite muito mais rígido

à expressão da subjetividade, do que por exemplo o violino, cuja fabricação é

em si tecnicamente muito menos diferenciada.

O caráter automático das máquinas modernas é o resultado de um

fracionamento e de uma especialização extremados de matérias e forças. Da

mesma maneira, o caráter semelhante de uma administração estatal

desenvolvida só pode ser erigido sobre a base de uma refinada divisão do

trabalho entre seus membros. Na medida em que a máquina se toma uma

totalidade e responsável por uma parte cada vez maior do trabalho, ela se

dispõe perante o trabalhador como uma potência autônoma, ao passo que este

atua nela não como personalidade individualizada, mas apenas como executor

de uma produção objetivamente prescrita. Compare-se, por exemplo, o operário

na fábrica de sapatos com o sapateiro para se ver quanto a especialização da

ferramenta paralisa a eficiência das qualidades pessoais - tanto da destreza

como da inaptidão - e deixa objeto e sujeito se desenvolverem como potências

independentes uma da outra, com respeito à sua essência. Enquanto a

ferramenta não-diferenciada é realmente um mero prolongamento do braço, a

ferramenta especializada sobe à categoria pura do objeto. De uma maneira

assaz reveladora e evidente, este processo perfaz-se ainda nos instrumentos de

guerra; o vaso de guerra constitui seu ponto culminante como instrumento de

guerra mais especializado e como máquina mais perfeita: nele a objetivação

alcançou tal progresso que, em uma batalha naval moderna, a mera proporção

numérica de navios de qualidade semelhante constitui, praticamente, o único

fator decisivo.

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19

O processo de objetivação dos conteúdos da cultura, que, apoiado na

especialização destes conteúdos, funda uma estranheza sempre crescente

entre o sujeito e suas criações, desce finalmente à intimidade da vida cotidiana.

A decoração da moradia, assim como os objetos de uso e enfeite que nos

rodeiam, era, até as primeiras décadas do século XIX - abrangendo desde os

desejos e necessidades das camadas baixas até aqueles das camadas de

cultura superior - comparativamente de grande simplicidade e durabilidade.

Surgiu então, por intermédio disso, aquela imbricação das personalidades com

os objetos ao seu redor, que hoje as novas gerações vêem como uma

extravagância dos avós. A diferenciação dos objetos interrompeu este processo

em três dimensões distintas, e sempre com o mesmo resultado. Em primeiro

lugar, já a mera pluralidade de objetos muito especificamente enformados

dificulta uma relação estreita, por assim dizer pessoal, com cada objeto: um

número reduzido de aparelhos simples é mais facilmente assimilável à

personalidade, enquanto uma profusão de aparelhos complexos, inversamente,

se contrapõe ao eu. Isto encontra sua expressão nas reclamações das donas de

casa, de que equipar a casa exige uma formalidade fetichista, e nas eventuais

irrupções de ódio de natureza séria e profunda contra os incontáveis utensílios,

com os quais guarnecemos nossa vida. O primeiro caso é culturalmente deveras

expressivo, pois as atividades da dona de casa de cuidar e manter a mesma

eram antes mais abrangentes e fatigantes que ago. ra. Àquele sentimento de

falta de liberdade com relação ao objeto não se chegou apenas porque eles

estavam mais estreitamente ligados à personalidade. Antes, a personalidade

pôde prevalecer sobre um número reduzido de objetos não-diferenciados. Estes

não contrapõem a ela a autonomia, como o faz um monte de coisas

especializadas. Nós só percebemos essa autonomia como uma potência inimiga

a partir do momento em que devemos servi-Ia. Assim como a liberdade não é

algo negativo, mas o prolongamento do eu sobre o objeto transigente a esta

individualidade, o objeto é para nós apenas aquilo em que nossa liberdade

diminui de atividade, isto é, aquilo com que nos relacionamos sem, no entanto,

poder assimilá-lo ao nosso eu. O sentimento - com. o qual a vida moderna nos

rodeia - de vir a ser sufocado pelas exterioridades não constitui apenas a

conseqüência, mas também a causa dessas exterioridades se nos contraporem

como objetos autônomos. O que é incômodo é o fato de essa variedade de

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coisas que nos circundam nos ser, no fundo, indiferente, em razão - em termos

especificamente financeiros - de sua gênese impessoal e de sua fácil subs-

tituição. O fato de a grande indústria nutrir o pensamento socialista baseia-se

não apenas nas relações entre seus trabalhadores, mas também na condição

objetiva de seus produtos: o homem moderno é de tal modo rodeado por coisas

impessoais que a concepção de uma ordenação da vida absolutamente anti-

individual se aproxima cada vez mais dele - o que certamente também é válido

para a concepção oposta a tal ordenação da vida. Os objetos da cultura tendem

cada vez mais a um mundo coerente em si, que se liga a um número cada vez

menor de pontos na alma.subjetiva, com sua vontade e sentimento. E esta

coerência é sustentada por uma certa mobilidade própria dos objetos. Já se

salientou que o comerciante, o artífice e o letrado têm hoje menos mobilidade

que, por exemplo, ao tempo da Reforma. Objetos materiais e espirituais movem-

se agora autonomamente, sem o recurso de um portador ou de um

transportador pessoal. Coisas e homens estão separados. O pensamento, o

esforço do trabalho e a habilidade alcançaram, pelo seu crescente investimento

em formações, livros e mercadorias objetivos, a possibilidade de um movimento

próprio, para o qual o progresso moderno dos meios de transporte constitui

apenas a execução ou a expressão. Somente pela sua própria mobilidade

impessoal, a diferenciação entre objetos e o homem se perfaz em um

encadeamento auto-suficiente. A máquina automática corporifica o exemplo

cabal deste caráter mecânico da economia moderna; com ela, agora também no

comércio miúdo, no qual a venda ainda se fazia por uma relação de pessoa para

pessoa, a mediação humana é inteiramente descartada e o equivalente em

dinheiro é trocado mecanicamente pela mercadoria. Em um outro nível, o

mesmo princípio já atua também nos sacolões e nas lojas do tipo, nas quais o

processo econômico-psicológico não parte da mercadoria, ao preço, mas do

preço à mercadoria, pois, neste caso, em função da igualdade prévia do preço

de todos os objetos, são eliminadas toda sorte de reflexões e ponderações da

parte do comprador e toda espécie de esforços e explicações da parte do

vendedor, de modo que o ato econômico percorre rápida e indife-, rentemente

suas instâncias pessoais.

A diferenciação sucessiva leva aos mesmos resultados desta

diferenciação paralela. A mudança da moda interrompe aquele processo interno

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de apropriação e enraizamento entre sujeito e objeto, que evita a discrepância

entre ambos. A moda é uma daquelas formações sociais que unificam a

sedução da diferença e da mudança com a sedução da igualdade e da união em

uma proporção especial. Toda moda é, por sua própria essência, moda de uma

classe, isto é, ela especifica - pela igualdade de sua aparência uma camada

social, que ela tanto unifica internamente, como diferencia, externamente, dos

outros estratos. Assim que a camada inferior - que busca imitar a superior -

tenha por seu lado acolhido a nova moda, ela é abandonada pela última, e uma

nova é criada. Por isso, sem dúvida houve modas em todos os lugares onde a

diferença social procurou para si uma expressão na aparência. O movimento

social dos últimos cem anos imprimiu-lhe apenas um ritmo todo especial, o que

se deveu, por um lado, ao fato de os limites de classe terem se tornado fluidos e

ainda às diversas ascensões individuais - e algumas vezes de todo um grupo -

de uma camada à superior e, por outro, ao predomínio do terceiro estado. A

primeira circunstância tem como efeito que as modas das camadas dirigentes

têm que mudar com extrema rapidez, uma vez que a irrupção dos inferiores, que

rouba o sentido e a sedução da moda do momento, ocorre agora prontamente.

O segundo momento torna-se ativo na medida em que a classe média e a

população urbana, em oposição ao conservadorismo dos estratos superiores e

rurais, configuram a própria variabilidade. Inquietos e perseguindo a mudança,

classes e indivíduos reencontram na moda, isto é, na forma da mudança e das

contradições da vida, o ritmo de seu próprio movimento psicológico. O fato de as

modas atuais já não serem mais tão caras e extravagantes como no século

anterior, tendo em compensação uma duração muito menor, dá-se em função

de elas atraírem agora em seu encanto um círculo muito mais extenso, em

função de as camadas inferiores poderem apropriar-se muito mais facilmente

dela agora e ainda em função de ela ter seu lugar entre a burguesia abastada. O

resultado desta abrangência da moda, tanto com respeito à extensão como com

respeito ao seu ritmo, é que ela aparece como um movimento autônomo, como

uma potência objetiva, desenvolvida por meio de suas próprias forças, que

percorre seu caminho independente de qualquer indivíduo. Enquanto as modas -

e não se trata aqui de modo algum apenas de moda de vestuário - ainda

mantinham uma duração relativamente longa e um círculo relativamente restrito,

havia, por assim dizer, uma relação pessoal entre o sujeito e o conteúdo

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específico da moda. A velocidade de sua mudança - ou seja, sua diferenciação

sucessiva - e a abrangência de sua expansão desligam essa conexão. E como

acontece com alguns outros paládios sociais na modernidade, também neste

caso a moda se refere menos a cada indivíduo e cada indivíduo interfere menos

na moda, cujos conteúdos se desenvolvem como se esta fosse um mundo

evolucionista autocentrado.

Vimos anteriormente que a diferenciação dos conteúdos de cultura

propagados - segundo os aspectos formais sucessivos e paralelos - ajuda a

moda a configurar-se como uma objetividade autônoma. Gostaria de mencionar,

ainda em terceiro lugar, um único momento dentre aqueles que são atuantes na

constituição destes conteúdos. Refiro-me à multiplicidade de estilos, com a qual

os objetos cotidianos visíveis se nos apresentam - da construção de casas até a

apresentação do livro, das artes plásticas à jardinagem e decoração de

interiores, nas quais renascença e orientalismo, barroco e neo-cIassicismo, pré-

rafaelismo e praticidade realista são cultivados lado a lado. Esta multiplicidade

de estilos advém da expansão de nosso conhecimento histórico, que se en-

contra numa relação de influência recíproca com aquela destacada variabilidade

do homem moderno. Toda compreensão histórica pressupõe uma transigência

da alma, uma capacidade de se colocar na disposição anímica mais distanciada

de sua própria situação, e de reconstruí-la como tal em si - pois toda história,

mesmo que se trate de acontecimentos testemunhados, só terá sentido e só

será compreendida como história fundamentada em interesses, sentimentos e

esforços: mesmo o materialismo histórico não é nada mais que uma hipótese

psicológica. Para que o conteúdo da história passe a ser propriedade de uma

pessoa, é necessária uma maleabilidade da alma que compreende, é

necessário que ela possa ser remodelada, que ocorra uma sublimação interna

da variabilidade. A tendência historicista de nosso século, sua incomparável

capacidade de reproduzir e tomar vivo o acontecimento mais distante tanto no

sentido temporal como no espacial - é apenas o lado interno da elevação geral

de sua capacidade de adaptação e de sua mobilidade. Daí a desconcertante

multiplicidade de estilos que são recebidos, representados e assimilados por

nossa cultura.

Se cada estilo é como uma língua para si, que tem sons especiais,

flexões especiais, uma sintaxe especial para expressar a vida, ele

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manifestamente não se coloca perante nossa consciência como uma potência

autônoma, que vive uma vida própria como se conhecêssemos apenas um único

estilo no qual nos configuramos e configuramos nosso ambiente. Ninguém

percebe em sua língua materna - desde que a fale ingenuamente - algo em

conformidade com uma lei objetiva, à qual ele se dirige como a uma instância

oposta à sua subjetividade, para requisitar dela possibilidades de expressão

cunhadas segundo normas independentes de sua interioridade. Antes, o que é

expresso e a expressão constituem, neste caso, uma unidade imediata, e só

percebemos não somente a língua materna, mas a língua em geral, como uma

entidade autônoma a nós contraposta, a partir do momento em que conhecemos

uma língua estrangeira. Do mesmo modo, as pessoas que têm um estilo

unitário, que abarcam a totalidade de suas vidas, também conceberão este

estilo e os conteúdos do mesmo como uma unidade nãoquestionada. Uma vez

que tudo que elas formam ou vêem se expressa naturalmente neste estilo, não

há qualquer motivação psicológica para separá-lo em pensamento da matéria

dessas formações e visões e contrapô-lo ao eu, como uma formação de

proveniência própria. Somente uma multiplicidade de estilos ofertados desliga o

estilo específico de seu conteúdo, de tal modo que sua autonomia e significação

- que independem de nós - são antepostas à nossa liberdade de optar por ele ou

por um outro estilo. Pela da diferenciação dos estilos, cada estilo específico – e

com isso o estilo em geral - toma-se algo objetivo com interesse, eficiência,

agrado ou desagrado independentes e cuja validade independe do sujeito. O

fato de o conjunto dos conteúdos das visões de nossa vida cultural ter se

separado em uma multiplicidade de estilos quebra aquela relação original com

eles, na qual sujeito e objeto ainda estavam unidos, e nos contrapõe a um

mundo de possibilidades de expressão desenvolvidas a partir de normas

próprias e de formas de expressar a vida. Esta contraposição dá-se de tal modo

que estas formas, por um lado, e nossa subjetividade, por outro, constituem

duas partes distintas, entre as quais predomina uma relação puramente casual

de contatos, harmonias e desarmonias.

Este é aproximadamente o círculo no qual a divisão do trabalho e a

especialização - tanto no sentido pessoal como no objetivo - sustentam o grande

processo de objetivação da cultura mais moderna. A partir de todos esses

fenômenos é composta a formação total, na qual o conteúdo da cultura se toma

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cada vez mais, e com consciência crescente, um espírito objetivo, perante não

somente aqueles que o recebem, mas também perante aqueles que o

produzem. No ritmo em que essa objetivação progride, toma-se cada vez mais

compreensível o fenômeno maravilhoso, do qual nós partimos: a elevação

cultural dos indivíduos pode manifestamente ficar abaixo da elevação cultural

das coisas - em termos concretos, funcionais e espirituais.

O fato de, eventualmente, ocorrer também o inverso comprova a

autonomização recíproca de ambas as formas do espírito. De uma maneira um

tanto oculta e transformada, isto é, encontrável no seguinte fenômeno: a

economia camponesa no norte da Alemanha parece poder manter-se, a longo

prazo, apenas por meio de um tipo de morgadio, isto é, no caso de apenas um

dentre os herdeiros assumir a fazenda e indenizar os demais com quotas

diminutas, estabelecidas segundo o valor de venda da terra. Calculando-se o

preço das cotas segundo os valores de venda recentes - que ultrapassam de

longe o valor da produção -, a fazenda ficará de tal modo sobrecarregada de

hipotecas no ato da indenização que apenas um empreendimento de somenos

valor permanecerá possível. Não obstante, a consciência jurídica moderna, que

é individualista, requer o direito eqüitativo de todos os herdeiros - expresso em

um montante em dinheiro mecanicamente estabelecido - e não concede o

privilégio a um único filho. Privilégio que constituiria ao mesmo tempo a

condição para a exploração objetiva perfeita. Sem dúvida, por meio de tais

casos, foram freqüentemente alcançadas elevações culturais de sujeitos

específicos, ao passo que a cultura do objeto teve um desenvolvimento

comparativamente menor. Uma discrepância deste tipo comparece com vigor

naquelas instituições sociais cuja evolução apresenta um ritmo mais lento e

conservador que a evolução do indivíduo.

A esse esquema pertencem aqueles casos nos quais as relações de

produção - depois de terem atravessado uma época determinada - são

superadas pelas forças produtivas que elas mesmas desenvolveram. Deste

modo, elas não asseguram mais a estas forças produtivas expressão e emprego

adequados. Estas forças têm em grande parte uma essência pessoal: o que as

personalidades são capazes de realizar ou de justificadamente querer não

encontra mais nenhum lugar nas formas objetivas das empresas. A necessária

modificação destas forças produtivas ocorre somente quando do acúmulo em

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massa dos impulsos neste sentido. Até que esse ponto seja atingido, as

energias econômicas individuais suplantam a organização objetiva da produção.

Deste esquema decorrem muitas motivações para o movimento feminista. Os

progressos da técnica industrial moderna deslocaram um número

extraordinariamente grande de atividades da economia doméstica - que antes

cumpria às mulheres realizar - para fora da casa, onde seus objetos são

produzidos de maneira mais barata e mais cômoda. Com isso, o conteúdo ativo

da vida de militas mulheres da classe média foi retirado, sem que outras

atividades e objetivos tivessem preenchido tão prontamente o espaço que se

tornou vazio; a freqüente "insatisfação" das mulheres modernas, o não-

aproveitamento de suas forças, que causa retroativamente toda sorte de

distúrbios e destruições, sua procura - em parte saudável, em parte doentia - em

demonstrar competência fora de casa - tudo isso é resultado de a técnica em

sua objetividade ter adquirido uma marcha própria, mais veloz que a

possibilidade de desenvolvimento das pessoas.

O caráter muitas vezes insatisfatório dos casamentos modernos é

conseqüência de uma relação correspondente à anteriormente citada. Às formas

e hábitos de vida matrimoniais - rígidos e limitadores do indivíduo - contrapõe-se

um desenvolvimento pessoal dos consortes, especialmente da mulher, que

ultrapassa de longe o desenvolvimento daquelas formas e hábitos do matrimô-

nio. Os indivíduos estariam agora desejosos de uma liberdade, de uma

compreensão e de uma igualdade de direito e educação, aos quais a vida

conjugal - como ela tradicional e objetivamente se cristalizou - não daria o

espaço necessário. O espírito objetivo do matrimônio, assim poderia ser

formulado, não acompanhou o desenvolvimento do espírito subjetivo. Da mesma

forma o direito: desenvolvido logicamente a partir de certos fatos básicos, fixado

em um código de leis e sustentado por um estamento especial, ele alcança a

perspectiva oposta, na qual as relações e necessidades da vida sentidas pelas

pessoas se contrapõem àquela rigidez, pela qual ele se transmite como uma

doença eterna, transformando a razão em contra-senso, o benefício em praga.

Na medida em que os impulsos religiosos se cristalizaram em um acervo de

determinados dogmas, e estes são sustentados por uma corporação

especializada, separada do conjunto dos fiéis, a situação da religião não é

melhor.

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Preste-se atenção a esta relativa autonomia de vida, com a qual as

formações culturais tomadas objetivas contrapõem ao sujeito a derrota dos

movimentos históricos elementares, e a questão do progresso na história

perderá muito de sua perplexidade. O fato de a prova e a contraprova ligarem-

na a cada resposta a esta questão com a mesma plausibilidade deve-se a elas

terem, freqüentemente, objetos distintos. Assim, por exemplo, pode-se afirmar,

com o mesmo direito, tanto o progresso como a imutabilidade na constituição

moral, caso se mire, por um lado, os princípios cristalizados, as organizações e

os imperativos que se elevaram à consciência da coletividade ou, por outro, a

relação dos indivíduos com esses ideais objetivos, a suficiência ou insuficiência -

com respeito à moral - do comportamento do sujeito. Progresso e estagnação

podem assim encontrar-se imediatamente emparelhados - e não apenas em

distintas províncias da vida histórica, mas em uma mesma província -,

dependendo de se ter em vista a evolução dos sujeitos ou a das formações.

Formações que em verdade surgiram das contribuições dos indivíduos, mas que

alcançaram uma vida espiritual própria, objetiva.

Ao lado da possibilidade de o espírito objetivo superar o desenvolvimento

do espírito subjetivo foi colocada a possibilidade inversa. Isto posto, retomo

agora a questão da significação da divisão do trabalho para a formação da

primeira possibilidade. Aquela dupla possibilidade se dá, resumidamente, da

seguinte maneira: o fato de o espírito objetificado em produções de qualquer tipo

ser superior ao indivíduo baseia-se na complexidade dos modos de produção,

que pressupõe um número extraordinário de condições históricas e objetivas e

de administradores e trabalhadores. Em função disso, o produto pode reunir em

si energias, qualidades e elevações que são completamente alheias a cada

produtor. Mas isso ocorre especialmente na técnica moderna, como resultado da

divisão do trabalho. Enquanto o produto era essencialmente fabricado por um

único produtor ou por intermédio de uma cooperação pouco especializada, o

conteúdo de espírito e de força nele objetivado não podia exceder

consideravelmente o conteúdo do sujeito. Somente a partir de uma divisão do

trabalho refinada, o produto específico transforma-se em uma junção de forças

selecionadas de uma diversidade de indivíduos. E esta junção dá-se de tal modo

que o produto deve ser visto como uma unidade e comparado a qualquer

indivíduo específico, excedendo-o, não obstante, em vários aspectos. Além

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disso, esse acúmulo de qualidades e perfeições no objeto, que forma sua

síntese, é ilimitado, enquanto o aprimoramento das individualidades encontra -

em cada corte temporal dado - um limite irremovível em sua própria natureza.

Mas se o fato de a obra objetiva assimilar em si aspectos específicos de várias

personalidades concede-lhe uma possibilidade de desenvolvimento

objetivamente superior, ele também lhe nega, por outro lado, perfeições que

justamente só se realizam pela síntese de energias em um único sujeito.

O Estado, especialmente o Estado moderno, constitui o exemplo mais

abrangente deste caso. Quando o racionalismo rotulou de logicamente

contraditório o fato de o monarca - que seria apenas um único homem - reinar

sobre uma quantidade enorme de outros homens, ele não levou em

consideração que os últimos não são absolutamente "homens" no mesmo

sentido que o monarca o é, na medida em que eles justamente constituem esse

Estado sob o monarca. Eles alocam apenas uma certa fração de seu ser e de

suas forças no Estado, outras eles estendem a outros círculos, de modo que a

totalidade de sua personalidade não é açambarcada por nenhum círculo. Já o

monarca emprega a totalidade de sua personalidade na relação com o Estado,

estando, portanto, mais vinculado a ele que cada um de seus súditos por si.

Enquanto o regime for ilimitado, no sentido de o mandatário poder dispor

imediatamente sobre as pessoas em toda abrangência de seu ser, existirá

aquela desproporcionalidade. O moderno Estado de direito, ao contrário,

delimita exatamente a circunscrição na qual as pessoas penetram na esfera do

Estado. Ele diferencia aquela esfera do poder, para constituir-se a partir de

certos elementos retirados dela. Quão mais decisiva for essa diferenciação,

mais o Estado se colocará perante o indivíduo como uma formação objetiva,

desligada da forma do que é próprio do plano da alma individual. O fato de ele

ser uma síntese de elementos diferenciados dos sujeitos o toma algo cuja

essência é tanto sub como suprapessoal.

Uma relação idêntica a esta que observamos com respeito ao Estado dá-

se com todas as formações do espírito objetivo, que surgem mediante a junção

de realizações individuais diferenciadas, pois, não obstante essas formações do

espírito objetivo excederem cada intelecto individual em conteúdo espiritual

objetivo e em capacidade de desenvolvimento, nós as percebemos - na medida

em que aumentam a diferenciação e o número de elementos oriundos da divisão

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do trabalho -, como mero mecanismo desprovido de alma. Neste ponto, a

diferença entre espírito e alma é claramente explicitada. Espírito é o conteúdo

objetivo daquilo que na alma se toma consciente em uma função viva; a alma é

a forma na qual o espírito, ou seja, o conteúdo lógico-objetivo do pensamento,

vive para nós. O espírito assim entendido não está portanto ligado à

configuração da unidade, sem a qual não há alma. É como se os conteúdos

espirituais lá estivessem espalhados de qualquer maneira e somente a alma os

reunisse unitariamente em si, aproximadamente como as matérias inorgânicas

são incluídas no organismo e compreendidas na unidade de sua vida. Aqui

temos tanto a grandeza como o limite da alma em relação aos conteúdos

específicos de sua consciência, observados em sua validade autônoma e em

sua significação objetiva. Pode Platão desenhar o reino das idéias como

perfeição luminosa e auto-suficiência absoluta - idéias que nada mais são que

os conteúdos objetivos do pensamento, desligados de toda casualidade da

representação - e parecer-lhe imperfeita, condicionada e crepuscular a alma do

homem, com seu reflexo pálido, confuso e quase imperceptível daquela

significação pura - para nós aquela claridade plástica e aquela precisão de

forma lógica não constituem a única escala de valor da idealidade e da

realidade. Para nós, a forma da unidade pessoal, na qual a consciência reúne o

sentido espiritual objetivo das coisas, tem um valor incomparável: somente nela

as coisas alcançam o contato uma com as outras, que constitui a vida e a força,

somente nela se desenvolvem aquelas radiações quentes e escuras das

faculdades afetivas, para as quais a perfeição clara de idéias determinadas de

modo puramente objetivo não tem lugar e não tem coração. Procedimento

análogo dá-se com o espírito, que, mediante a objetificação da nossa

inteligência, se contrapõe como objeto à alma. E a distância entre ambos

aumenta manifestamente à medida que o objeto é produzido pela atuação

conjunta - baseada na divisão do trabalho - de um número crescente de

personalidades; pois justamente em tal circunstância se toma impossível

trabalhar e avivar na obra a unidade da personalidade, na qual se ligam

exatamente o valor, o calor e a peculiaridade da alma para nós.

O fato de faltar ao espírito objetivo, em função da diferenciação moderna

de sua realização, justamente essa forma do que é próprio do plano da alma -.

fato que possui uma correlação estreita com a essência mecânica de nossos

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produtos culturais pode constituir a razão última da hostilidade com a qual

pessoas de natureza muito individualista e aprofundada se contrapõem agora,

tão amiúde, ao "progresso da cultura". E tanto mais, na medida em que este

determinado desenvolvimento da cultura objetiva - operado via divisão do

trabalho - constitui um lado ou uma conseqüência deste fenômeno geral: os

acontecimentos significativos do presente não ocorrem mais por intermédio dos

indivíduos, mas pelas massas. De fato, a divisão do trabalho acarreta que o

objeto específico já é um produto da massa; a decomposição dos indivíduos em

suas energias específicas - que determina nossa organização do trabalho - e a

reunião do que foi assim diferenciado em um produto cultural objetivo têm como

conseqüência que a presença de alma neste produto específico será

inversamente proporcional ao número de almas que participaram de sua

produção. O fausto e a grandeza da cultura moderna apresentam assim algu-

mas analogias com aquele radiante reino das idéias de Platão, no qual o espírito

objetivo das coisas, em sua perfeição imaculada, constitui o ser real, mas ao

qual faltam os valores da verdadeira personalidade, que não são diluíveis em

objetividades - uma carência que toda consciência do caráter fragmentário,

irracional e efêmero da personalidade não pode tomar imperceptível. O que é

próprio do plano da alma individual possui - como mera forma - um valor

específico que se afirma ao lado de toda inferioridade de valor e de toda contra-

idealidade de seu conteúdo; aquilo que é próprio do plano da alma permanece

como significação própria da existência, contraposto a toda objetividade desta,

mesmo naqueles casos - dos quais nós partimos - em que a cultura individual--

subjetiva mostra um retrocesso positivo, enquanto a cultura objetiva progride.

O dualismo dos valores, que se manifesta deste modo no des-

envolvimento da cultura, baseia-se, portanto, em um e no mesmo fato: a

separação e a especialização tanto dos fenômenos da alma como dos

fenômenos objetivos constituem o centro de rotação, ao redor do qual se

movimentam os dois valores. A diferenciação afasta cada vez mais a cultura

subjetiva da objetiva, de tal modo que, nesta movimentação paralela, o último

aparece como o elemento propriamente móvel enquanto o primeiro possui uma

estabilidade considerável; mas, na medida em que aquele movimento tem

simultaneamente duas direções - nos termos supracitados: a elevação do

espírito e o rebaixamento da alma - mesmo quando o elemento subjetivo

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permanece inalterado, ele modifica sua posição relativa com respeito ao

elemento objetivo, e aparece, por um lado, empurrado para baixo e, por outro,

deslocado para cima.

A relação que se estabelece entre o espírito tornado objetivo e seu

desenvolvimento, por um lado, e os espíritos subjetivos, por outro, é

manifestamente de extrema significação para cada comunidade cultural,

especialmente no que diz respeito a seu estilo de vida, pois se o estilo é uma

forma na qual distintos conteúdos se expressam na mesma medida, então a

relação entre o espírito objetivo e o subjetivo pode seguramente ser a mesma,

no que concerne à quantidade, altura e ritmo de desenvolvimento, mesmo na

eventualidade de conteúdos do espírito cultural assaz variados. Exatamente a

maneira geral como se passa a vida e a moldura que a cultura social oferece

aos indivíduos são circunscritas por perguntas que indagam se o sujeito tem sua

vida interior próxima ou estranha ao movimento objetivo da cultura de seu

tempo, se ele sente tal movimento como algo superior, do qual ele pode tocar

apenas a aba do vestido, ou se sente que seu valor pessoal é superior a todo

espírito rei ficado; se no interior de sua própria vida espiritual os elementos

objetivos, historicamente dados, constituem uma potência que obedece às suas

próprias leis, de tal modo que esta potência e o núcleo de sua personalidade

desenvolvem-se independentemente um do outro, ou se a alma, por assim dizer,

é senhora em sua própria casa, ou pelo menos pode supor uma harmonia - com

respeito à altura, sentido e ritmo - entre sua vida mais íntima e os conteúdos

impessoais que ela precisa acolher em sua vida interior. Essas formulações

abstratas indicam o esquema de incontáveis interesses concretos e disposições

cotidianas e da vida, e com isso indicam a medida na qual as relações entre a

cultura objetiva e a subjetiva determinam o estilo da existência.

A divisão do trabalho é responsável pela configuração atual desta

relação, mas esta é também uma descendente da economia monetária. Primeiro

porque a decomposição da produção em várias realizações parciais exige uma

organização que funcione com absoluta precisão e confiabilidade - o que, desde

a supressão do trabalho escravo, só é realizável mediante o pagamento em

dinheiro ao trabalhador. Toda relação entre empresário e trabalhador que fosse

mediada de outro modo incluiria elementos não passíveis de contabilização, em

parte porque uma remuneração natural não é tão facilmente arranjável, nem

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exatamente determinável, em parte porque somente a relação monetária pura

possui aquele caráter meramente objetivo e automático, sem o qual as

organizações muito diferenciadas e complexas não se sustentam. E, segundo,

porque o fundamento essencial do surgimento do dinheiro torna-se mais atuante

na medida em que a produção se especializa mais, pois, na circulação

econômica, um dá o que o outro deseja, desde que este outro faça o mesmo ao

primeiro. Aquela regra moral: faça ao próximo aquilo que gostaria que lhe

fizessem, encontra o mais abrangente exemplo de sua realização formal na

economia.

Se um produtor do objeto A, que ele quer trocar, encontra um freguês,

então ocorrerá que o objeto B, que este último está em condições de dar em

troca, freqüentemente não interessará ao primeiro. O fato de a diversidade dos

desejos de duas pessoas não coincidir sempre com a diversidade dos produtos

que ambos têm a oferecer exige, reconhecidamente, a inserção de um meio de

troca; de modo que, quando os proprietários dos produtos A e B não puderem

entrar em acordo quanto à troca direta, o primeiro entrega seu produto A em

troca de dinheiro, com o qual ele pode agora conseguir o produto C que

desejava, enquanto o proprietário de B arranja o dinheiro para a compra do

produto A, procedendo analogamente com seu produto B perante um terceiro.

Uma vez que é em função da diversidade dos produtos - ou dos desejos a ela

relacionados - que se cria a necessidade do dinheiro, o papel deste se toma

cada vez maior e mais imprescindível na medida em que a circulação envolve

uma variedade maior de objetos; ou, visto pelo outro lado: uma especificação

considerável da produção só é alcançada quando não se está mais vinculado à

troca imediata. A chance de que o comprador de um produto tenha um objeto

para oferecer, que justamente convenha àquele produtor, decresce na medida

em que a especificação dos produtos e dos desejos humanos se eleva. Neste

sentido, isso não configura um novo momento que vincula a diferenciação

moderna ao predomínio exclusivo do dinheiro; antes, a ligação entre ambos os

valores culturais já ocorre em suas raízes profundas, e o fato de as relações da

especialização - que descrevi - formarem, pela sua influência recíproca com a

economia monetária, uma unidade histórica perfeita constitui apenas a elevação

gradual de uma síntese da essência de ambas.

Na medida em que o estilo de vida depende da relação entre a cultura

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objetiva e a subjetiva, ele se vincula à circulação do dinheiro, por intermédio

dessa mediação. E com isso a essência da circulação do dinheiro é inteiramente

revelada, pela circunstância de ela ser responsável tanto pela preponderância

do espírito objetivo sobre o subjetivo, como pela reserva de elevação

independente e de desenvolvimento próprio do espírito subjetivo. Ambos, não

apenas porque a diferenciação na produção depende do dinheiro, e esta

diferencia concomitantemente a produção da personalidade, mas também por

meio da relação direta. O que permite à cultura das coisas se tomar uma

potência de tal modo superior à cultura das pessoas tomadas individualmente

são a unidade e a coerência autônoma alcançadas por aquela na modernidade.

A produção, com suas técnicas e seus resultados, aparece como um Cosmo -

com certezas e desenvolvimentos firmes e, por assim dizer lógicos - contraposto

ao indivíduo; à guisa do destino com respeito à inconstância e à irregularidade

de nossa vontade. Esta autonomia formal, essa necessidade interna que unifica

os conteúdos da cultura na categoria de par da ordem da natureza, toma-se real

somente por intermédio do dinheiro: o dinheiro funciona, por um lado, como o

sistema de articulação desse organismo; ele torna seus elementos móveis em

relação aos demais, ele produz uma relação de dependência e de continuidade

recíprocas de todos os impulsos entre esses elementos. Por outro lado, ele é

comparável ao sangue, cuja circulação contínua penetra todas as ramificações

dos membros, alimentando-as uniformemente e sustentando a unidade de suas

funções. E, no que toca ao segundo, na medida em que se coloca entre o

homem e as coisas, o dinheiro possibilita ao homem uma existência por assim

dizer abstrata, livre de considerações imediatas sobre as coisas f> de relações

imediatas com elas, sem prejuízo de uma certa probabilidade de

desenvolvimento de nossa interioridade; se o homem moderno, sob

circunstâncias favoráveis, conquista uma reserva de subjetividade, um mistério e

um isolamento do ser mais pessoal - que substitui algo do estilo de vida religioso

de tempos atrás -, isto é condicionado pelo fato de o dinheiro nos poupar, de um

modo sempre crescente, do contato imediato com as coisas, aliviando, ao

mesmo tempo, a dominação das coisas e facilitando infinitamente a escolha do

que nos convém. Em função disso, esses caminhos opostos, uma vez tomados,

aspiram a um ideal de separação absoluta, no qual todo conteúdo objetivo da

vida se toma cada vez mais objetivo e impessoal, para que o resto não rei ficado

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da mesma se tome mais pessoal, mais irrestritamente próprio do eu.

A máquina de escrever constitui um caso específico que exemplifica bem

este movimento: o escrever - uma atividade externa e objetiva que mantém para

cada caso uma forma individual característica - dispensa agora esta

característica individual em prol da conformidade mecânica. Mas, de outro lado,

com ela alcançou-se um duplo efeito: primeiramente, o texto atua agora

segundo seu conteúdo puro, sem receber apoio ou estorvo de sua plasticidade e

sem ostentar aquela revelação do que é mais pessoal, que a escrita à mão tão

amiúde comete, não importando se o conteúdo é íntimo ou não. Podem todas as

mecanizações deste tipo ter uma atuação socializante, elas elevam, no entanto,

a remanescente propriedade privada do eu espiritual a uma exclusividade

ciumenta. Sem dúvida, a expulsão do que é próprio do plano da alma de toda

exterioridade é contrária ao ideal estético de vida, do mesmo modo como ela

pode ser favorável ao ideal de vida da interioridade pura - combinação que

esclarece tanto o desespero atual de personalidades afinadas de modo

puramente estético como a leve tensão entre as almas deste tipo e aquelas

direcionadas apenas à felicidade interna, que cresce agora em formas como que

subterrâneas - totalmente distinta daquelas do tempo de Savonarola. Na medida

em que o dinheiro é tanto símbolo como causa da postura indiferente e da

exteriorização de tudo aquilo que se deixa tomar indiferente e exteriorizar, ele se

torna ainda guardião do que é mais íntimo, que agora pode se desenvolver nos

limites mais próprios.

Em que medida isto conduz agora àquele refinamento, àquela

peculiaridade e àquela interiorização do sujeito, ou, ao contrário, ao ponto onde

ao objeto rebaixado é permitido - justamente mediante a facilidade de sua

obtenção - tomar-se senhor sobre o homem - isto já não depende mais do

dinheiro, mas justamente do homem. A economia monetária mostra-se aqui

ainda em sua relação formal com as condições socialistas, pois a libertação da

luta individual pela existência, a asseguração dos bens econômicos

fundamentais e o fácil acesso aos demais puderam exercitar igualmente a

atuação diferenciadora, de modo que uma certa fração da sociedade se eleva a

um nível de espiritualidade até agora inaudito - nível este distante de todo

pensamento referente a questões mundanas -, enquanto uma outra fração se

afunda em um materialismo prático, igualmente inédito.

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Em uma perspectiva global, o dinheiro toma-se mais atuante naquele lado

de nossa vida cujo estilo é determinado pela preponderância da cultura objetiva

sobre a subjetiva. O fato de ele, no entanto, não se recusar a apoiar também o

caso inverso coloca o tipo e a abrangência de seu poder histórico sob a luz mais

clara. Poder-se-ia até compará-lo em alguns aspectos à língua, que se presta

igualmente a conduzir as mais divergentes direções do pensar e do sentir,

apoiando, elucidando e trabalhando. Ele é um daqueles poderes cuja

particularidade reside na ausência de particularidade, mas que, no entanto, pode

dar à vida colorações múltiplas, porque o aspecto meramente formal, funcional e

quantitativo que eles produzem vai ao encontro de conteúdos e direções da vida

qualitativamente determinados e os induz à geração ulterior de formações

qualitativamente novas. O fato de ele ajudar ambas as relações possíveis entre

o espírito objetivo e o subjetivo a alcançar a elevação e a maturação implica não

a anulação e sim o aumento, não a refutação e sim a comprovação de sua

significação para o estilo de vida.

Extraído de: Souza, Jessé e ÖELZE, Berthold. 1998. Simmel e a modernidade. Brasília:

UnB. p. 41-77.