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ENTRE FOTOGRAMAS, SONS E CONCEITOS: AMOSTRAS DE FILOSOFIA NO CINEMA E NA MÚSICA Gerson Luís Trombetta * [email protected] Introdução O que nos motiva neste artigo é a possibilidade de apresentar um recorte dentro das relações entre arte (especificamente o cinema e a música), ciência e filosofia. Ainda que existam especificidades claras em cada uma dessas expressões do pensamento humano, interessa-nos enfocar mais os momentos de “partilha”, os momentos em que as fronteiras se tornam mais flexíveis e nos vemos diante de uma riqueza de conteúdo que atinge não somente a nossa capacidade de articular conceitos, fatos e experiências, mas também nossa capacidade de perceber e sentir. Neste particular, compartilhamos com a posição de Nelson Goodman que dilui qualquer hierarquia entre as diversas formas de conhecimento. Os traços gerais de sua epistemologia servirão de parâmetro tanto para sustentar o valor cognitivo comportado pela arte como para ver nela a exemplificação e a compreensão de conceitos e perspectivas filosóficas. Para realizar esse propósito, organizamos o trabalho em cinco momentos. Inicialmente (1) apresentamos os aspectos centrais da epistemologia de Goodman, dando destaque à visão construtivista e à idéia de que, no território do conhecimento, o que podemos dispor são versões simbólicas do mundo que adotamos conforme seu potencial explicativo. Em seguida (2), descrevemos rapidamente como a arte e o discurso científico (e por que não a própria filosofia) são sistemas simbólicos que realizam a mesma função, o que exigirá (3) um detalhamento de como a arte realiza sua função simbólica, * Doutor em Filosofia; professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós- Graduação em História da Universidade de Passo Fundo

Gerson Trombetta UPF

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ENTRE FOTOGRAMAS, SONS E CONCEITOS: AMOSTRAS DE FILOSOFIA NO CINEMA E NA MÚSICA

Gerson Luís Trombetta*

[email protected]

Introdução

O que nos motiva neste artigo é a possibilidade de apresentar

um recorte dentro das relações entre arte (especificamente o cinema

e a música), ciência e filosofia. Ainda que existam especificidades

claras em cada uma dessas expressões do pensamento humano,

interessa-nos enfocar mais os momentos de “partilha”, os momentos

em que as fronteiras se tornam mais flexíveis e nos vemos diante de

uma riqueza de conteúdo que atinge não somente a nossa capacidade

de articular conceitos, fatos e experiências, mas também nossa

capacidade de perceber e sentir. Neste particular, compartilhamos

com a posição de Nelson Goodman que dilui qualquer hierarquia

entre as diversas formas de conhecimento. Os traços gerais de sua

epistemologia servirão de parâmetro tanto para sustentar o valor

cognitivo comportado pela arte como para ver nela a exemplificação e

a compreensão de conceitos e perspectivas filosóficas.

Para realizar esse propósito, organizamos o trabalho em cinco

momentos. Inicialmente (1) apresentamos os aspectos centrais da

epistemologia de Goodman, dando destaque à visão construtivista e à

idéia de que, no território do conhecimento, o que podemos dispor

são versões simbólicas do mundo que adotamos conforme seu

potencial explicativo. Em seguida (2), descrevemos rapidamente

como a arte e o discurso científico (e por que não a própria filosofia)

são sistemas simbólicos que realizam a mesma função, o que exigirá

(3) um detalhamento de como a arte realiza sua função simbólica,

* Doutor em Filosofia; professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo

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destacando especialmente o conceito de exemplificação. No quarto

momento (4), pontuamos brevemente as características mais cruciais

dos sistemas simbólicos estéticos que garantem o valor da arte no

mesmo patamar dos demais discursos. (científico e filosófico) Por fim,

a título de “experimentar” a teoria delineada, apresentamos uma

breve análise do filme Laranja mecânica, de Stanley Kubrick,

enfatizando sua trilha sonora e como os efeitos conseguidos na

relação entre fotogramas e sons exemplificam conceitos filosóficos,

de modo especial os de racionalidade e irracionalidade. A idéia aqui

não é, evidentemente, esgotar uma interpretação do filme, mas tão

somente ressaltar como fotogramas e sons deixam ver e ouvir

propriedades dos conceitos filosóficos.

1. Compreender é construir mundos simbólicos

Nelson Goodman é um dos pensadores mais originais e

importantes para compreender as experiências que fazemos com a

arte. Nascido em 1906, no estado americano de Massachussetts e

falecido em 1998, Goodman acumulou uma rica biografia ligada às

artes que incluiu desde uma intensa produção teórica sobre o assunto

até a direção de uma galeria (Walker-Goodman Art Gallery) onde se

revelou um bem sucedido negociante. Em Harvard fundou o Project

Zero voltado à compreensão do pensamento criativo nas artes, nas

humanidades e nas ciências, tanto no campo individual quanto

institucional1. É um projeto alimentado pela idéia de que o

conhecimento das artes é uma importante atividade cognitiva. Em

Harvard também fundou e dirigiu o Harvard Dance Center, voltado à

criação de peças de dança. No campo da produção teórica destacam-

se as seguintes obras: The structure of appearance (1951), Fact,

Fiction and Forecast (1954), Languages of art (1968), Problems and

1 Detalhes sobre o Project Zero podem ser encontrados no site http: //www.pz.harvard.edu/index.htm.

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projects (1972), Ways of worldmaking (1978) e Of mind and other

matters (1984). Somam-se a esses livros inúmeros artigos que

abarcam vasta gama de temáticas filosóficas.

A compreensão da especificidade da arte, do seu valor ou

mérito estético, segundo Goodman, depende de uma complexa

epistemologia, cuja tese mais geral é a do construtivismo. O

construtivismo sustenta que tudo o que conhecemos do mundo são

versões, o que inviabiliza radicalmente a possibilidade de garantir a

existência e a descrição de um mundo fora de nós2. Se existe, esse

mundo fora de nós é tão somente inacessível. Portanto, nem o modo

como o mundo é dado, nem nenhum modo de ver ou figurar ou

descrever nos conduz ao modo como o mundo é. (GOODMAN, 1972)

O que existe são mundos construídos, versões-de-mundo que nos

permitem viver de forma significante. O que resulta disso é que nós

não podemos chegar a alguma coisa sobre o modo como o mundo é

perguntando sobre o modo mais realístico de representá-lo, pois, os

modos de ver e figurar são muitos e variados; alguns são fortes,

efetivos, úteis, intrigantes ou sensíveis; outros são fracos, cômicos,

desanimados, banais ou confusos. (GOODMAN, 1972) Uma versão-

de-mundo ou construção-de-mundo é um sistema que dá forma e

significatividade ao que julgamos ser nossa visão de um mundo

separado de nós.

Para Goodman, se o que temos são versões, não vale a pena

falar de um mundo em si. O que importa é por em discussão as

versões, suas vantagens e desvantagens e seus critérios de validade.

Não podemos encontrar propriedades puramente objetivas,

independentes dessas construções. Nesse particular, a posição de

Goodman compartilha a noção kantiana que não encontramos no

2 Goodman propõe uma crítica radical à teoria pictórica da linguagem do primeiro Wittgenstein. Segundo ele, nenhuma teoria defendida em anos recentes por filósofos do primeiro time parece mais obviamente errada do que a teoria pictórica da linguagem (GOODMAN, 1972). O problema de tal teoria residiria exatamente no postulado de um mundo cujo acesso seria garantido pela estrutura lógica da linguagem.

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mundo senão aquilo que antes lá tivemos posto. Há uma diferença,

porém: Goodman não postula a existência de uma coisa em si, uma

realidade, um mundo inacessível ao nosso conhecimento. Pensar ou

descrever um mundo só tem sentido quando tal gesto é relativizado a

uma forma de tal descrição. O resultado disso é que não podemos

chegar a alguma coisa sobre o modo como o mundo é perguntando

sobre o mais fiel ou realístico modo de vê-lo.

As versões são construídas de acordo com nossas necessidades,

ou seja, de acordo com a dinâmica dos problemas, demandas e

convenções que vão aparecendo num setor da vida, seja na ciência,

na arte ou na filosofia. Mesmo no nível mais elementar da sensação

já estamos nos colocando na direção de um sistema simbólico.

Quando percebemos algo, nosso olhar não é neutro e/ou

desinteressado; percebemos o que o sistema simbólico com o qual

estamos operando permite perceber. Esse é o motivo pelo qual a

epistemologia de Goodman, além de construtivista, é pluralista e

relativista. Pluralista porque sustenta que há uma riqueza de versões-

de-mundo as quais, sob o ponto de vista de sua validade, são

igualmente importantes. Tanto as teorias científicas, as teorias

filosóficas, os poemas, as composições musicais, os filmes, as demais

artes e mesmo a relação mais direta e sensível que temos com as

coisas, compõem essa gama de versões. A distinção entre elas se dá

pelas características internas e não pela sua função. Uma vez que

existe uma diversidade muito grande de símbolos também se pode

construir uma diversidade muito grande de sistemas simbólicos aptos

para gerarem versões diversas e até mesmo incompatíveis3. Quanto

ao relativismo, podemos dizer que aparece aqui de forma moderada.

Para Goodman, (1972) nenhuma versão é mais correta que a outra.

Nenhuma delas pode nos dizer como o mundo é, mas cada uma delas

nos diz um modo como o mundo é. Isso não significa que não possam

3 Veja-se, por exemplo, o caso das diferenças na idéia de mundo na física newtoniana e na física da relatividade.

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existir sistemas simbólicos incorretos, mas sim que, entre os

sistemas simbólicos corretos, nenhum é melhor que o outro: “Todas

as versões verdadeiras que se encontram em conflito são verdadeiras

em mundos diferentes. Estes, por sua vez, devem ser entendidos

como mundos reais e não como mundos possíveis”. (D’OREY, 1995,

p. 10. Grifos do autor.) Os sistemas simbólicos são corretos na

medida em que desenvolvem programas de correção interna. Tal

correção depende de três fatores: consistência, constância e sucesso

continuado das suas categorias.

2. Os sistemas simbólicos da arte e da ciência

Um sistema simbólico consiste num esquema (conjunto de

símbolos) aplicado a um campo de referência. (conjunto de

referentes) Ser um símbolo é assumir uma função dentro de um

sistema; não é, portanto, uma propriedade intrínseca de um objeto.

Tal função é de referir, estar por algo. Os símbolos não podem ser

tomados isoladamente. Só existem símbolos enquanto existem

sistemas simbólicos. A rigor, tudo pode funcionar como símbolo,

embora existam certos objetos como as palavras, os sons (de uma

escala musical, por exemplo) e as imagens, que, com mais

freqüência, desempenham essa função. Uma nota musical ou uma

palavra funcionam bem mais frequentemente como símbolos do que

montanhas ou rios que, por sua vez, funcionam mais frequentemente

como referentes. Entretanto, para um alpinista, uma montanha

também pode simbolizar um desafio ou uma conquista.

Não existem símbolos em si mesmos. Um símbolo é, por assim

dizer, uma capacidade, cujos limites e propriedades são inteiramente

determinados pelo sistema no qual se encontra funcionando4.

Simbolização e referência se constituem nos termos básicos a partir 4 Assim como nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein o significado de uma palavra só podia ser compreendido num jogo de linguagem específico, aqui também o símbolo só pode ser compreendido num contexto bem determinado.

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dos quais Goodman apresenta a sua noção de mundo. Tais termos

são usados com um sentido bastante amplo, abrangendo a relação

entre um símbolo e aquilo pelo qual está. (seja de qual forma for) A

referência de um símbolo pode aparecer de duas maneiras: por

denotação ou por exemplificação5. A denotação ocorre quando o

símbolo se aplica a algo diretamente, quando se refere diretamente a

um objeto. O objeto, aqui, é a sua extensão, e o símbolo poderia

levar o nome de etiqueta. Um exemplo de denotação ocorre no uso

dos nomes próprios: quando afirmamos que o nome “Arthur” refere o

Arthur, fica estabelecida uma relação de denotação entre uma

etiqueta, a palavra “Arthur”, e um referente, o Arthur propriamente

dito. A exemplificação, por sua vez, ocorre quando o símbolo é uma

amostra da etiqueta, um caso de alguma coisa. Fica evidente que,

para haver uma exemplificação, tem de ter ocorrido uma denotação

anterior. Uma palavra como “filho” pode denotar um filho específico,

o meu filho, por exemplo; por isso, posso apresentar o meu filho

como uma amostra de “filho”.

Outra distinção importante no pensamento de Goodman é a que

existe entre esquema e domínio. Tal distinção é particularmente

importante para delinear as diferenças/semelhanças entre os

sistemas simbólicos da arte e da ciência. O esquema é o conjunto dos

símbolos, enquanto o domínio é o conjunto dos referentes. Um

sistema denotativo usa um esquema formado por etiquetas cujo

domínio é um conjunto de objetos. Num sistema exemplificativo o

esquema é composto por um conjunto de objetos que funcionam

como símbolos e o domínio por um conjunto de etiquetas.

Quando se admite a idéia que a compreensão designa um

processo cognitivo através do qual construímos mundo de qualquer

5 Outras relações de simbolização, tais como a representação, a descrição e a citação são formas de denotação; já a expressão é uma forma de exemplificação. Em outros casos, como na alusão, intervêm tanto a denotação como a exemplificação. Essa tipologia das relações de simbolização é detalhada em Linguagens da arte, principalmente nos capítulos II e IV.

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espécie – bem como os resultados obtidos dessas construções -, fica

sem fundamento a concepção que opõe arte e ciência6. Construir

mundos através de sistemas simbólicos é uma tarefa comum entre

esses dois territórios da compreensão humana: “Ambas podem ser

corretas ou incorretas de diferentes maneiras; ambas podem ter um

domínio de aplicação universal: para ambas existem critérios de

aceitabilidade, e testes e experiências a que podem ser submetidas;

em nenhum caso há garantias definitivas.” (D’OREY, 1995, p. 17)

Das semelhanças apontadas não se pode depreender que arte e

ciência sejam a mesma coisa, apenas se está dizendo que a

dicotomia tradicional que põe, do lado da arte, a beleza, a intuição e

a emoção e, do lado da ciência, a verdade, a racionalidade e a lógica,

não pode mais ser sustentada. Onde reside a diferença, então? Trata-

se de uma diferença que pode ser localizada nos processos símbolos

que constituem cada um dos sistemas. Os sistemas da ciência são,

geralmente, construídos por processos denotativos, lingüísticos e

literais, onde os símbolos possuem um referente direto e único. Na

arte, os sistemas são mais ricos, através de meios não literais e de

processos exemplificativos. No caso da pintura, da arquitetura, da

música e da dança os sistemas são construídos através de símbolos

não-verbais, que são densos e saturados e onde o referente é

indireto e múltiplo. No entender de Goodman, todas as outras

diferenças entre arte e ciência decorrer destas.

A ciência só aceita sistemas que permitem segurança na

determinação dos resultados experimentais e a busca de consenso na

comunidade científica, daí decorre sua preferência por sistemas

denotativos e verbais. Já a arte tende a tomar a sério a ambigüidade

e as diferenças das sensibilidades como características que

enriquecem sua interpretação. A arte privilegia a densidade, a

saturação, a exemplificação e a referência múltipla e complexa,

6 Poderíamos acrescentar também a própria filosofia como outro discurso que, seguidamente, é definido a partir de critérios opostos aos da arte.

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características que são denominadas por Goodman como “sintomas

do estético”7. Tais características opõem-se à articulação, atenuação,

denotação e referência simples e direta, que são “sintomas do não-

estético”, ou seja, da linguagem científica.

3. Arte e exemplificação

A exemplificação talvez seja o traço mais fundamental dos

mundos construídos pela arte. A exemplificação é um tipo de relação

simbólica em que o objeto refere algumas das propriedades que

possui. Ela permite compreender, segundo Goodman, a função

referencial presente em todas as obras de arte, inclusive as mais

minimalistas e abstratas. Quando observamos um quadro de

Kandinsky – como, por exemplo, o Amarelo, vermelho, azul, de 1925

-, mesmo na falta de uma referência denotativa, podemos encontrar

exemplificações de cores e de formações geométricas. A função

exemplificativa da arte permitiria assegurar que todas as obras são

símbolos e referem algo, mesmo quando não denotam nada.

No capítulo IV de Modos de fazer mundo, sob o título de

“Quando há arte?”, Goodman expõe mais detalhes sobre a dinâmica

da função simbólica da arte. A construção do argumento segue um

itinerário tipicamente socrático. Primeiro concede a palavra aos seus

“inimigos teóricos”, os formalistas ou puristas, para depois

demonstrar seu ponto de vista. Segundo os formalistas, o que

importa numa obra de arte são suas propriedades em si mesmas e,

exatamente por isso, a arte pura deveria evitar a simbolização. A

simbolização desviaria a atenção de suas propriedades intrínsecas. O

que Goodman propõe, na seqüência do argumento, é que a posição

purista está errada ao julgar que a simbolização significa sempre uma

referência a algo exterior às obras de arte. Considerando o exemplo 7 Uma explicação mais detalhada dos “sintomas do estético” pode ser encontrada em Linguagens da Arte, no capítulo VI, seção 5 e, de maneira breve, em Modos de fazer mundos, capítulo IV.

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de uma pintura “verdadeiramente pura”, Goodman demonstra que,

por mais que procuremos, não vamos encontrar nela uma

propriedade interna totalmente específica. Propriedades como cores e

formas não são exclusivas da obra de arte supostamente “pura”; elas

põem a obra sempre em contato com o exterior e com outras obras.

Para ilustrar seu argumento, Goodman propõe uma análise do

que acontece quando nos vemos diante de uma amostra de tecido:

Considere-se de novo uma vulgar amostra de tecido no catálogo de amostras de um alfaiate ou de um estofador. É improvável que seja uma obra de arte, que represente pictoricamente ou exprima alguma coisa. É simplesmente uma amostra – uma simples amostra. Mas de que ela é uma amostra? Da textura, da cor, da tecedura, da grossura, das fibras de que é feita...; tudo o que importa nesta amostra, somos tentados a dizer, é que ela foi cortada de uma peça de tecido e tem as mesmas propriedades do resto do material. Mas isso seria demasiado precipitado. (GOODMAN, 1995, p. 109)

O exemplo serve para visualizar que uma amostra de tecido é

amostra (ou exemplo) de apenas algumas propriedades e não de

outras. Amostras de tecido exemplificam cores, textura e padrão,

mas não exemplificam forma e tamanho. Ou seja, exemplificam

apenas aquelas propriedades que possuem e referem naquela

circunstância específica. Se expandirmos as conclusões para o

domínio das artes, verificamos que algumas obras de arte – de modo

especial as mais abstratas - também exibem suas próprias

propriedades, selecionando algumas para despertar nossa atenção.

Porém, não há, ao contrário das amostras de tecido, critérios e

procedimentos seguros para determinar o que uma obra de arte

exatamente exemplifica ou representa. É ao trabalho reflexivo e

crítico que compete tal tarefa, que, como conditio sine qua non,

precisa conhecer o sistema a que ela pertence. O próprio Goodman

(1995, p. 110) conta uma anedota sobre o que pode ocasionar o

desconhecimento de um sistema simbólico mesmo na ocasião banal

de escolher tecidos por intermédio de uma amostra:

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A Sra. Mary Tricias analisou um catálogo de amostras, fez a sua seleção e encomendou da sua loja de tecidos favorita material suficiente para o seu sofá e cadeira estofados – insistindo que esse material deveria ser exatamente igual à amostra. Quando a encomenda chegou ela abriu-a avidamente e ficou consternada quando várias centenas de peças com 6 cm x 10 cm, com lados cortados em ziguezague exatamente como a mostra, esvoaçaram pelo chão. Quando telefonou para a loja, protestando ruidosamente, o proprietário replicou, magoado e aborrecido: “Mas, Sra, Tricias, a senhora disse que o material devia ser exatamente como a amostra. Quando ele chegou ontem da fábrica, mantive aqui os meus empregados metade da noite a cortá-lo para ficar exatamente como a amostra”.

Como a exemplificação é uma forma de simbolização, fica

assegurado que mesmo no caso de uma pintura “pura” ainda existe

uma função simbólica. Uma função simbólica, de qualquer forma que

seja – como representação, exemplificação, expressão ou outra –, é

algo que se encontra em todas as obras de arte e é a condição

necessária para que algo funcione como arte.

4. O valor cognitivo da arte

Uma vez delineados os traços mais gerais da epistemologia de

Goodman, cuja conseqüência mais importante – para o interesse

desse trabalho – é que as obras de arte são sistemas simbólicos

específicos, a questão do valor da arte fica mais simples de ser

demonstrada. A questão do valor da arte é tratada de forma breve na

seção 6 do capítulo “A arte e a compreensão”, de Linguagens da arte.

A primeira possibilidade sugerida por Goodman para explicar o

valor da arte é a satisfação. Tal possibilidade, porém, se mostra

inútil, já que não esclarece nada: a idéia que a arte é boa porque é

satisfatória é simplesmente redundante. No caso da arte, ser boa e

ser satisfatória são sinônimos. Afirmar que uma obra de arte é

satisfatória ou boa é também admitir nela certa capacidade de

realizar uma função: “[...] ser satisfatório é, em geral, relativo a uma

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função de propósito.” (GOODMAN, 2006, p. 269) Mas qual seria,

então, este propósito? Como já mencionamos anteriormente, as

obras de arte são sistemas simbólicos e, como tais, sua função é a

mesma de todos os sistemas simbólicos, ou seja, “[...] as obras de

arte ou os seus exemplares desempenham uma ou mais de entre um

conjunto de certas funções referenciais: representação, descrição,

exemplificação, expressão”.(GOODMAN, 2006, p. 269) A questão é

saber a que propósito serve tal simbolização.

Para apresentar uma resposta precisa à questão da função da

simbolização, Goodman analisa três possibilidades. A primeira é que a

simbolização exercita e desenvolve competências para enfrentar

futuras contingências, tornando-nos mais aptos para sobreviver,

conquistar e ganhar. A experiência estética “[...] torna-se um

exercício de ginásio, sendo as imagens e sinfonias os halteres e sacos

de boxe que usamos para fortalecer os músculos

intelectuais”.(GOODMAN, 2006, p. 269) A arte teria, por decorrência,

o reconfortante poder de canalizar a energia em excesso afastando-

nos do que é destrutivo. A segunda possibilidade é quase oposta e

bem mais simplista: a simbolização é uma propensão natural, tal

como é o jogo. Jogar e simbolizar são empreendimentos divertidos e

isso atrai naturalmente o homem. Uma terceira possibilidade, para

além da oposição entre o prático e o divertido, seria a comunicação.

Simbolizamos através da arte para comunicar fatos, pensamentos, e

sentimentos.

No entender de Goodman, cada uma destas explicações – seja

exercício (ginástica), brincadeira (jogo) ou comunicação (conversa) -,

embora estejam ligadas à atividade simbólica, são apenas verdades

parciais. O que as três ignoram é que a motivação maior da atividade

simbólica é a curiosidade e o objetivo é a compreensão e o

esclarecimento. Em outras palavras, a função última da simbolização

é o conhecimento:

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O uso de símbolos para além da necessidade imediata faz-se em nome da compreensão e não da prática; o que compele é a ânsia de conhecer, o que delicia é a descoberta e a comunicação é secundária relativamente à apreensão e formulação do que comunica. O objetivo principal é a cognição em si e para si; o caráter prático, o prazer, a compulsão e a utilidade comunicativa dependem todas deste objetivo (GOODMAN, 2006, p. 271).

As obras de arte, do mesmo modo que as teorias científicas,

possibilitam fazer associações, distinções e categorizações,

contribuindo para a organização da nossa experiência com as coisas,

conosco mesmos e com os outros. Se for por causa de sua função

cognitiva que a arte adquire valor, não é nem mais nem menos

valiosa que a ciência ou qualquer outra forma de criar mundos. O que

a epistemologia de Goodman propõe é que a arte, apesar de ter

especificidades internas, não tem um valor específico.

Qual seria, então, a especificidade (ou excelência) dos objetos

estéticos? Para responder tal questão, em primeiro lugar é preciso

registrar que a subsunção do estético sob a função cognitiva não

implica em descartar o sensorial e o emotivo: “[...] o que

conhecemos através da arte tanto se sente nos ossos, nervos e

músculos como é apreendido pela mente, que toda a sensibilidade e

resposta do organismo participa na invenção e interpretação de

símbolos”.(GOODMAN, 2006, p. 272) Em segundo lugar, é preciso

recordar que os sistemas simbólicos têm modos específicos de

organizar o mundo e que as características internas que nos fazem

preferir um sistema são denominadas de critérios de correção. De

fato, ainda no capítulo “Sobre a correção da apresentação”, de Modos

de fazer mundos, Goodman examina detalhadamente o tema da

verdade propondo que tal conceito é uma questão de ajustamento

entre versões, numa referência facilmente aplicável às teorias

científicas. Tal idéia de verdade, no entanto, pode ser prescindida

quando se avalia os sistemas da arte, onde o critério de qualidade

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passa a ser a correção da amostra (ou do exemplo)8. Assim,

procurando agora formalizar a resposta à questão formulada no início

do parágrafo, se levarmos em conta que um dos sintomas do estético

é a exemplificação, relação em que o símbolo funciona como

amostra, (exemplo) podemos concluir que símbolos estéticos são tão

mais corretos quanto mais projetáveis ou representativos.

(GOODMAN, 1995) A projetabilidade ou representatividade é a

capacidade de exemplificar predicados (etiquetas) que podem aplicar-

se a novos casos. Uma amostra é correta, prossegue Goodman

(1995, p. 190) quando pode ser “[...] projetada para o padrão,

mistura, ou outra característica relevante do todo ou de amostras

posteriores”.

Um aspecto importante a destacar, aqui, é que

representatividade ou projetabilidade requer a boa prática de

interpretação de amostras, que, por sua vez, depende do hábito, da

revisão contínua, da atenção ao contexto e da convivência com a

invenção e a frustração. Quando há densidade – um dos sintomas do

estético – num sistema de símbolos, “[...] a familiaridade nunca é

completa e final; outro olhar pode sempre desvelar novas sutilezas

significativas. Além disso, o que lemos num símbolo e através dele

varia com o que trazemos conosco”. (GOODMAN, 2006, p. 272)

Através dos símbolos em geral e talvez mais acentuadamente com os

símbolos estéticos, não só compreendemos melhor o mundo como

compreendemos e reavaliamos os símbolos que trazemos conosco.

Quando isso acontece, novas associações são possíveis e novas

separações ficam claras alargando o nosso potencial cognitivo.

5. E, para finalizar, uma amostra de conceitos em som e imagem

8 Além dos critérios de ajustamento entre sistemas e correção de amostras, podem aparecer outros quando se avalia um sistema simbólico. No caso de sistemas lingüísticos podemos destacar a validade dedutiva e indutiva como um dos critérios mais importantes.

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Partimos agora para o momento um momento de

“experimentação” das idéias postas até aqui. A análise esboçada a

seguir não pretende, de forma nenhuma, esgotar a riqueza semântica

do filme ou de sua trilha sonora. Quer apenas demonstrar como

conceitos filosóficos podem ser “exemplificados” em imagens

(fotogramas, no caso) e sons, como forma de enriquecer o mundo

simbólico em que participam. Ampara-nos a convicção que tais

expressões humanas, quando compreendidas também como

referentes dos sistemas simbólicos filosóficos, podem nutrir e

revigorar alternativas didáticas para o ensino de filosofia. Passemos

ao experimento, então.

O filme Laranja Mecânica9 é uma daquelas obras capazes de

articular e congregar uma série de elementos estéticos (fotografia,

trilha sonora, performances dos atores, diálogos, cenários, figurinos,

etc.) levando o espectador a inserir-se numa atmosfera

aparentemente distante e surreal. A rigor, o roteiro é bastante

simples, sem nada de extraordinário ou impressionante. É a saga de

um jovem (Alex, vivido por Malcolm McDowel) e seus seguidores

(drugues), empenhados em desfrutar prazer às custas de sexo e

ultra-violência. Preso e submetido a um tratamento experimental

(técnica Ludovico) o jovem é dado como tecnicamente curado.

(institucionalizado) Após a cura, o jovem se torna o pivô de um briga

política que envolve altos quadros do governo. Dada a repercussão

negativa do tratamento, Alex acaba sendo submetido a um novo

tratamento, visando recuperar sua personalidade original. Nesse

ponto o círculo se fecha. Como já disse, em termos de roteiro, nada

muito impressionante; já vimos isso em muitas outras películas. O

que faz de Laranja Mecânica, então, um filme que marcou época?

É claro que as seqüências de fotogramas podem exemplificar

um sem número de conceitos filosóficos. Questões sobre o limite da

9 Filme de 1971, dirigido por Stanley Kubrick. O filme é uma adaptação do romance homônimo de Anthony Burgess (1962).

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liberdade, sobre a relação entre indivíduo e sociedade, sobre a

relação entre prazer e violência, sobre a relação entre desejo e

alteridade podem, muito bem, ser enriquecidas pelas cenas e

diálogos. Gostaríamos, entretanto, de provocar um olhar um pouco

diferente; um olhar na direção do tema sonoro que atravessa o filme

e que se constitui, ao mesmo tempo, naquilo que parece ser o último

reduto de sensibilidade de Alex: a música de Beethoven. Gostaríamos

de explorar, de modo especial, a cena em que, ao som do quarto

movimento da Nona Sinfonia, irrompem na tela imagens da Segunda

Guerra Mundial nas quais se vê, além de soldados nazistas perfilados

e em marcha, maravilhas da tecnologia, como aviões e bombas, em

ação.

Uma pergunta, então, poderia ser formalizada: por que

Beethoven? O que Beethoven tem a ver com cenas tão dramáticas e

tão aparentemente distantes dos sentimentos e idéias que suas

composições suscitam? Existe alguma raiz comum desconhecida

entre a música organizada de acordo com as regras do sistema tonal

e os acontecimentos mais drásticos do século XX?

Para desenhar uma possível resposta a tais questões, é preciso

esclarecer alguns elementos filosóficos que subjazem ao som da Nona

Sinfonia. Beethoven representa, ao menos em parte, o auge de um

movimento musical que teve início no Renascimento. A música, a

partir de então, passou a ser um espaço de expressão da

subjetividade. A relação dessa subjetividade com o material sonoro

se dá tendo como protagonista à vontade racional do sujeito; ou seja,

é o sujeito que, como base em um tema, estrutura o material sonoro

para compor a música. O modo como o material sonoro é organizado

se ampara no seguimento de regras fornecidas pelo sistema musical

conhecido como tonalismo. O sujeito, nesse contexto, estabelece com

o material uma relação de domínio quase absoluto; cada nota se

encaixa perfeitamente no plano de expectativas definido pelo sujeito.

O funcionamento da composição musical, apesar dos importantes

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acréscimos de genialidade e sensibilidade do sujeito-compositor, fica

bastante próximo do ato científico. Assim como na ciência o objetivo

é criar um mundo que elimine o mistério a partir do domínio total do

suposto objeto, na composição tonal, o objetivo é estruturar o som

aos temas conforme as regras do sistema. Uma das provas desse

elemento científico estruturante que marca a composição é que a

Nona Sinfonia não foi ouvida, não foi experimentada esteticamente

por Beethoven. Como se sabe, nessa época, Beethoven encontrava-

se num estado de surdez bastante avançado. Beethoven não precisa

experimentar esteticamente aquilo que já está dominado e conhecido

na experiência mental.

A música de Beethoven é, por decorrência, mais que simples

som. É também uma exemplificação do estado geral da racionalidade

gestada pela modernidade. (artística e científica) Tal razão parece ter

simplesmente perdido a medida

de si mesma. Mergulhada na

tentativa de objetificar e

dominar o que se encontra ao

seu redor e marcando sua

posição apenas num movimento

auto-referente, tal razão perdeu

o conteúdo, perdeu a noção do seu próprio limite, entregou-se a

exercícios formais de esquadrinhamento dos espaços. (sejam eles

estéticos ou científicos) A decorrência disso é que suas “maravilhas”

passaram a gerar o perigo do aniquilamento. Expliquemos melhor:

nas cenas destacadas no filme, o que se vê, não obstante os efeitos

catastróficos da Segunda Guerra, são exemplares do que a razão é

capaz: soldados enfileirados e bombas são produtos do

desenvolvimento de uma razão que não se deu conta dos absurdos

irracionais que se escondem por trás de sua forma de proceder

baseada na dominação. A razão moderna produziu Beethoven, mas,

paradoxalmente, o mesmo princípio produziu a bomba atômica. A

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“Ode à alegria” ("Ode an die Freude", poema de Schiller cantado na

Nona Sinfonia e que valorizava valores humanistas como

fraternidade, liberdade e igualdade) poderia ser substituída por “Ode

à razão”. A mesma razão que se sente bem ouvindo Beethoven já

não consegue mais se orgulhar por inteiro dos seus atos. Alex não

compreendeu a dimensão disso ao dizer: “É um pecado, é um

pecado!!! [...] Usar Ludwig Van assim!! Ele nunca fez mal a

ninguém!”. Sim, Beethoven tem algo a ver com isso, sim.

Bibliografia

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mundos. Porto: ASA, 1995. p. 5-29. GOODMAN, Nelson. Languages of art: an approach to a theory of

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símbolos. Lisboa: Gradiva, 2006. _____. Modos de fazer mundos. Porto: ASA, 1995. _____. Problems and projects. Indianápolis/New York: The Bobbs-

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