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GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO ESTADO DO CEARÁ - BRASIL Suely Salgueiro CHACON Economista. Mestre em Economia Rural. Doutoranda do Centro de Desenvolvimentos Sustentável – CDS/UnB. Professora do Curso de Economia e do Mestrado em Negócios Internacionais da Universidade de Fortaleza – UNIFOR. E-mails: [email protected] [email protected] RESUMO Esse trabalho discute o papel da gestão dos Recursos Hídricos no Ceará na promoção de uma melhor qualidade de vida para a população do semi-árido. Descreve as principais características econômicas, sociais e ambientais do estado do Ceará e a trajetória das ações implementadas para se definir a sua atual política de gestão de RH, com ênfase à utilização do instrumento de cobrança pelo uso da água e na organização da gestão através dos comitês de bacia hidrográfica. Analisa-se o papel da gestão dos recursos hídricos para o alcance do desenvolvimento sustentável. Constata-se que a política de Recursos Hídricos aqui vista, apesar de demonstrar a preocupação essencial com o meio ambiente, tem na verdade como principal preocupação a água como fator econômico. Ou seja, a gestão ambiental vem a reboque da utilidade que o recurso possa ter. Por outro lado, a organização dos usuários nos Comitês de Bacia levou a uma inversão, despertando nos usuários e nos próprios técnicos, ao longo do processo de aprendizado da gerência compartilhada, a noção cada vez mais forte de que a gestão do ambiente tem que anteceder à gestão econômica. Conclui-se que os alicerces para uma boa gestão dos recursos hídricos são o planejamento e o controle, subsidiados pelo arcabouço legal referente, por um bom sistema de informação e ainda pelo respaldo da participação e conscientização dos usuários. Assim, a racionalidade dos instrumentos econômicos deve estar fortemente aliada à participação efetiva de todos os usuários no processo de tomada de decisão, o que vem sendo, aos poucos, viabilizado pelos Comitês de Bacias. PALAVRAS CHAVE Gestão ambiental; gestão dos recursos hídricos; desenvolvimento sustentável; Brasil.

GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO ESTADO DO … · se melhoraria a qualidade de vida no planeta (Capra, 1997), havendo uma melhor distribuição dos recursos existentes e desaparecendo,

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GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO ESTADO DO CEARÁ - BRASIL

Suely Salgueiro CHACON

Economista. Mestre em Economia Rural. Doutoranda do Centro de Desenvolvimentos Sustentável – CDS/UnB. Professora do Curso de Economia e do Mestrado em Negócios Internacionais da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

E-mails: [email protected] [email protected]

RESUMO

Esse trabalho discute o papel da gestão dos Recursos Hídricos no Ceará na promoção de uma melhor qualidade de vida para a população do semi-árido. Descreve as principais características econômicas, sociais e ambientais do estado do Ceará e a trajetória das ações implementadas para se definir a sua atual política de gestão de RH, com ênfase à utilização do instrumento de cobrança pelo uso da água e na organização da gestão através dos comitês de bacia hidrográfica. Analisa-se o papel da gestão dos recursos hídricos para o alcance do desenvolvimento sustentável. Constata-se que a política de Recursos Hídricos aqui vista, apesar de demonstrar a preocupação essencial com o meio ambiente, tem na verdade como principal preocupação a água como fator econômico. Ou seja, a gestão ambiental vem a reboque da utilidade que o recurso possa ter. Por outro lado, a organização dos usuários nos Comitês de Bacia levou a uma inversão, despertando nos usuários e nos próprios técnicos, ao longo do processo de aprendizado da gerência compartilhada, a noção cada vez mais forte de que a gestão do ambiente tem que anteceder à gestão econômica. Conclui-se que os alicerces para uma boa gestão dos recursos hídricos são o planejamento e o controle, subsidiados pelo arcabouço legal referente, por um bom sistema de informação e ainda pelo respaldo da participação e conscientização dos usuários. Assim, a racionalidade dos instrumentos econômicos deve estar fortemente aliada à participação efetiva de todos os usuários no processo de tomada de decisão, o que vem sendo, aos poucos, viabilizado pelos Comitês de Bacias.

PALAVRAS CHAVE

Gestão ambiental; gestão dos recursos hídricos; desenvolvimento sustentável; Brasil.

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1. INTRODUÇÃO

O Estado do Ceará abriga um contingente expressivo da pobreza do país. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD (2000), o Ceará é o 4o pior colocado, dentre os 26 estados brasileiros, apresentando um Índice de Desenvolvimento Humano – IDH de apenas 0,506, além de abrigar em seu território o município de pior performance no IDH, Barroquinha.

A pobreza é agravada pelas próprias condições edafoclimáticas do Estado, que tem 93% de seu território incluído no Polígono das Secas, no Semi-árido nordestino, contando com precipitações que variam de 500 a 1800 mm por ano, durante as estações chuvosas que duram de 3 a 5 meses, e que são caracterizadas pela irregularidade temporal e espacial (Ceará, 1995).

O modo de vida do sertanejo baseia-se quase que exclusivamente na agricultura, de tal maneira que a terra e água são elementos fundamentais na conformação social do meio rural cearense. Em termos de posse, a terra sempre foi mais importante, a acumulação de outros bens é secundária. O modo de produção, em geral, é pré-capitalista, marginal ao sistema.

A população do Sertão cearense vive, via de regra, dos rendimentos da agricultura e de pequenas criações, que podem ser desenvolvidas em terra própria ou através de contratos com fazendeiros locais. As principais culturas são as culturas de sequeiro, arroz, milho, feijão e mandioca, dependentes exclusivamente das precipitações pluviométricas para produzir. Além da agricultura, as outras fontes de renda são raras e irregulares. (Chacon, 1994).

A água é fator de união e de permanência na terra. Ao entrar em contato com essa realidade o observador pode mensurar com clareza a importância desse bem na estruturação das comunidades rurais. Em épocas de estiagem prolongada as famílias desagregam-se na busca de locais propícios, desmantelando assim toda a comunidade e gerando uma série de problemas outros que terão reflexos não só no campo, como a desestruturação do sistema familiar e produtivo, e dos valores culturais; mas, também, no meio urbano, para onde normalmente se dirigem os movimentos migratórios, "inchando" as cidades e aumentando os índices de marginalização. E as cidades não têm estrutura para suportar esses fluxos cada vez maiores de pessoas.

Assim pareceu-me adequado analisar a política de gestão dos recursos hídricos no Estado, contrapondo seus resultados com a melhoria da qualidade de vida da sociedade e a obtenção das condições necessárias ao alcance do desenvolvimento sustentável.

2. GESTÃO AMBIENTAL E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A preocupação com o meio ambiente não é um modismo recente, ao contrário do que muitos pensam. É tão antiga quanto é a própria destruição ambiental. Ponting (1995: cap. 1) nos lembra da destruição da civilização que habitava a Ilha de Páscoa através da devastação dos seus recursos naturais, e nos fala que a preocupação com a preservação ambiental já povoava o imaginário mitológico, estando também presente nos debates dos filósofos gregos sobre a natureza e o uso desta pelo homem (Ponting, 1995: 238-239). Infelizmente, eles tinham, na sua maioria, uma visão antropocêntrica, a natureza existe para satisfazer as necessidades humanas, estando o homem acima dela, dominando-a.

Com o fim do Feudalismo e com os cercamentos dos campos, a ocupação urbana se intensificou e com ela surgem uma série de novos problemas gerados pela concentração populacional e pelas novas atividades produtivas. O advento da Revolução Industrial vem consolidar esse quadro,

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agravando a produção de resíduos. Contudo, é só após a II Guerra Mundial que os problemas ambientais se intensificam ao ponto de despertar reais preocupações com suas conseqüências.

No final dos anos 60 do século XX, a sociedade dos países desenvolvidos começa a se posicionar a favor do cuidado com a natureza. A pressão da sociedade e o alerta dos cientistas quanto ao aumento da escassez de recursos naturais faz chegar a preocupação com a natureza também à pauta dos governos e empresários, pois a produção começa a encarecer, dada a escassez relativa de alguns insumos e as novas imposições quanto à poluição. Porém, durante muito tempo essas preocupações ainda oscilaram entre o descaso com os “verdes”, o distanciamento dos acadêmicos, e a promulgação de leis nem sempre implementadas. (Brüseke In: Cavalcanti, 1998: Cap. 2)

Por outro lado, Leis (1996: 12) nos alerta que “(...) o meio ambiente, praticamente “invisível” para a política até pouco tempo atrás, passou a ser afetado por esta e também, por meio do ambientalismo, a condicioná-la fortemente, obrigando assim a pensar (ou repensar) seu lugar dentro de qualquer teorização política contemporânea.” De fato, os discursos políticos passaram a se utilizar cada vez mais das idéias do ambientalismo. De forma até irresponsável, no nosso entender, a ponto de saturar certos termos, como é o caso do desenvolvimento sustentável. Desde que foi lançado em 1987, pela World Commission on Environment and Development, o termo vem sendo utilizado para os mais diversos fins, não só científicos, mas especialmente discursos de cunho político e textos governamentais.

As preocupações com a gestão do meio ambiente, com a conscientização social e com o fortalecimento da participação de cada um na tomada de decisão são agora o foco de um modelo que busca um crescimento eficiente e racional, através de ações que possam suprir as necessidades de todos no presente, sem tirar das gerações futuras o direito de também terem supridas as suas.

Um momento de fortalecimento dessa idéia foi a ECO 92, realizada no Brasil, onde foi lançada a Declaração do Rio de Janeiro, que contém preceitos básicos para se alcançar o desenvolvimento sustentável. Kablin (1993), ao comentar este documento destaca os seguintes critérios, nele definidos: a proteção ambiental deve constituir-se em ponto fundamental para qualquer processo de desenvolvimento; e todos, nações e indivíduos, devem cooperar com o objetivo de erradicar a pobreza. A Agenda 21 foi outro documento originado da ECO 92 e determina as ações concernentes a diversos setores para se por em prática as idéias de sustentabilidade (Barbieri, 1998). O Capítulo 18 da Agenda 21 trata da proteção da qualidade e do abastecimento dos recursos hídricos e aplicação de critérios integrados no desenvolvimento, manejo e uso dos recursos hídricos.

O que se constata é que, por séculos, a humanidade utilizou e geriu os seus recursos naturais de maneira irresponsável, em favor das diferentes políticas de crescimento propostas ao longo de sua história e através da geração de tecnologias pouco comprometidas com a conservação do meio ambiente (Capra, 1991). Margulis (1990) coloca que a dicotomia entre o crescimento econômico e a preservação ambiental, ainda é um problema, e um problema de difícil solução, pois equacionar corretamente os aspectos ambientais ainda não foi totalmente possível. Nesse sentido, os aspectos social e ambiental mostram-se como essenciais, devendo, portanto, ser levados em conta por todos os modelos de desenvolvimento e incorporados ao processo de planejamento e avaliação de projetos1.

O desenvolvimento sustentável implica em um novo conceito de crescimento econômico, que levaria justiça e oportunidades a todos no mundo, sem continuar a destruir os recursos naturais, é o que defendem Pronk e Haq (1992). Percebe-se, assim, a amplitude desse processo, que deve abranger todas as facetas da vida humana, requerendo uma série de mudanças profundas nas formas de planejar a gerência dos recursos e, também, uma nova ética mundial (Boff, 1999), donde todos deveriam ter

1 Ver também: Alvater, 1995; May, 1995 e May & Mota, 1994.

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consciência da necessidade de cooperação mútua, para assim promover uma nova ordem social, quando se melhoraria a qualidade de vida no planeta (Capra, 1997), havendo uma melhor distribuição dos recursos existentes e desaparecendo, aos poucos, a concentração e má distribuição dos mesmos.

A participação é o elemento chave para se alcançar as metas da sustentabilidade. Em termos de planejamento, a participação dos futuros beneficiários das medidas em estudo é fundamental, pois são justamente eles os que mais sabem sobre suas carências. (Chacon, 2000)

3. GESTÃO AMBIENTAL E INSTRUMENTOS ECONÔMICOS

Ao longo da história, os diferentes modos de produção foram fortalecendo a exploração e a dominação da natureza pelo homem e do próprio homem pelo homem. (Ostrovitianov, et al, 1972) Aí está o cerne de toda a crise de valores que vivemos hoje. Se, de um lado, o homem evoluiu extraordinariamente em termos científicos e tecnológicos, de outro teve uma involução do ponto de vista social e ambiental. Nunca houve na história uma parcela tão grande da população mundial vivendo em tão grave estado de miséria, fome, humilhação e exclusão, sem perspectivas de encontrar uma forma digna de vida, ou mesmo de sobrevivência.

Centrou-se toda discussão sobre desenvolvimento na perspectiva econômica-financeira, deixando-se de lado a essência de tudo: o próprio ser humano e a natureza, responsável pela vida. É certo que o crescimento econômico, aliado a evolução científica e tecnológica, é um ponto chave para melhorar a qualidade de vida. Porém, um crescimento concentrado, direcionado para poucos, que deixa de fora a maior parte da população e destrói os recursos naturais não pode garantir um processo de desenvolvimento justo.

Desse modo a ciência e a sociedade enfrentam hoje uma crise social e ambiental sem precedentes. A pobreza e a degradação ambiental assolam o planeta e impedem que a maioria da população tenha acesso aos bens básicos para sua sobrevivência digna. Diante do agravamento das desigualdades sociais e do fracasso das políticas desenvolvimentistas, intensificaram-se as discussões à procura de soluções viáveis para reverter esse quadro, fortalecendo a idéia de um desenvolvimento sustentável.

Capra (1991: Cap. 7), quando fala do impasse da economia nos dias de hoje, coloca que, em busca de aceitação e respeitabilidade, os cientistas sociais, dentre eles os economistas, criaram modelos baseados em um paradigma cartesiano, que se mostraram fora da realidade por não terem uma visão mais dinâmica e sistêmica da sociedade, que deveria ser seu objeto de estudo primordial. Ao invés disso, pegaram-se a modelos quantitativos que deixaram de fora aquele que deveria ser o principal elemento: o homem e suas relações com seus semelhantes e com a natureza, ou seja, com o meio ambiente, sempre mutável, em que está inserido.

Os cientistas analisam uma pseudo-realidade a partir de modelos numéricos e encontram soluções matemáticas perfeitas para os problemas propostos. Contudo, por deixarem de fora o dinamismo das relações humanas e do meio ambiente, esses modelos mostram-se no presente cada vez mais ultrapassados, tendo em vista que os problemas que eles se propuseram resolver continuam e somam-se agora a outros já causados por esta falta de visão dinâmica e sistêmica.

A resposta a esse impasse não é retroceder ou negar os benefícios também gerados pela ciência. Deve-se, ao contrário, procurar meios para racionalizar o uso de todos os benefícios modernos e reverter o quadro negativo, evitando custos com as externalidades não previstas e, principalmente, levando a todos, sem distinção, a oportunidade de participar do resultado positivo do uso das novas tecnologias e dos modelos de desenvolvimento. Este é o grande desafio. E é baseado nisto que a idéia de sustentabilidade tem ganho impulso.

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Os estudos para determinar em que consiste esse desenvolvimento sustentável levaram a sérias constatações sobre o mau uso dos recursos ambientais disponíveis na Terra, o que promoveu sua depredação e ameaça o futuro do planeta, sendo urgente que se reverta tal situação. É consenso que, para se atingir esse objetivo, mudanças estruturais e políticas são fundamentais.

A busca de estratégias que viabilizem o desenvolvimento sustentável passa pela reestruturação da ciência e dos processos produtivos, assim como a reordenação do papel do poder público.

A necessidade de se promover a conscientização da sociedade para a prática de atividades que não degradem o meio ambiente, esbarra na falta de informação e de conhecimento da verdadeira importância do meio ambiente, assim como do seu atual estado de degradação. Além disso, a divulgação do cuidado com a natureza ainda é muito recente diante do tempo em que não se considerou devidamente o valor dos recursos naturais.

Assim como as demais ciências, a economia tem procurado se adequar ao paradigma do desenvolvimento sustentável, reformulando e adaptando conceitos e teorias na busca de melhor contribuir para a melhoria da qualidade de vida no planeta, afinal a economia é a ciência que estuda a escassez dos recursos e procura encontrar soluções para uma melhor alocação desses recursos escassos.

Entretanto, podemos afirmar que por muito tempo a ciência econômica contribuiu para a valoração inadequada dos recursos naturais. A teoria econômica nos ensina que os fatores de produção são capital, trabalho e recursos naturais. Tradicionalmente, estuda-se sobre como maximizar o uso do capital de diferentes formas, faz-se uma ligeira discussão sobre a economia do trabalho, mas passa-se ao largo da economia dos recursos naturais. Binswanger (In: Cavalcanti, 1999: cap. 2) expõe claramente essa preocupação, mostrando a importância de se reconciliar os interesses econômicos com a preservação do meio ambiente, sob o risco de condenarmos a Terra e os homens.

Repetto (1991:41), por sua vez, enfatiza que os planejadores por muito tempo basearam-se quase que exclusivamente nas idéias de Keynes, e a escassez dos recursos naturais era a menor de suas preocupações, assim como também ignoravam, em grande parte, o seu papel produtivo. Isto os levou a confundir a destruição de ativos valiosos, como a biodiversidade, com a geração de renda, promovendo assim a idéia de que um crescimento rápido e sustentado pode ser conseguido pela exploração da base dos recursos.

Essa maneira de planejar tem que ser modificada para levar em consideração o uso racional e eficiente dos recursos, para isso é essencial uma visão integrada e global de cada problema a ser solucionado, procurando-se prever as conseqüências futuras de cada ato, procurando não apenas resultados imediatos. Um planejamento a longo prazo é necessário.

Mas se a economia ajudou a promover a degradação ambiental, é também a própria economia que pode agora ajudar a conscientizar a sociedade para a mudança de atitude. Através do uso de instrumentos econômicos adaptados podemos valorar adequadamente os recursos naturais, e ao se repassar esse valor para os usuários eles irão necessariamente repensar o uso desses recursos. Ressalta-se, contudo, que essa é apenas uma das partes da estratégia de promoção do desenvolvimento sustentável. A outra parte está ligada ao esforço de informar e fomentar a participação de todos nesse processo, modificando comportamentos.

4. GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS

Depois dessas considerações mais amplas sobre o desenvolvimento sustentável e a gestão ambiental, entrarei agora na discussão específica sobre a gestão dos recursos hídricos.

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A compreensão e alcance do desenvolvimento sustentável passa pela gestão dos recursos hídricos. A diminuição da sua disponibilidade é algo por si só grave, mas quando contraposto ao fato de que os usos para esses recursos são múltiplos e cada vez maiores, o quadro se agrava e a preocupação de encontrar formas mais racionais de utilização e preservação desse bem mostra-se urgente (Mota, 1988: 3, 5-6)2.

Com o crescimento populacional e desenvolvimento tecnológico a necessidade de todos os recursos aumentou, e não foi diferente para os recursos hídricos, cuja demanda tem sofrido grandes acréscimos, relativamente à sua oferta limitada. O problema da oferta de água torna-se maior quando se considera não é só a questão da quantidade disponível, mas muito mais da qualidade adequada para cada uso. Nesse contexto a idéia de desenvolvimento sustentável tem levado a uma maior preocupação com a conservação dos recursos hídricos e a melhoria de sua qualidade, diminuindo as fontes de poluição e procurando formas adequadas de geri-los e distribui-los.

Um melhor e adequado programa de abastecimento de água potável e de saneamento, principalmente nos países em desenvolvimento, tornou-se uma prioridade para as instituições mundiais comprometidas com a melhoria da qualidade de vida no planeta. Em 1981 as Nações Unidas lançaram o Decênio Internacional de Água Potável e de Saneamento, para 1981-1990 (Notícias del IDE, 1991:1).

Esse programa tinha como preocupação especial o melhor provimento dos serviços de abastecimento de água e saneamento no meio rural, tendo em vista que os programas desenvolvidos pelos governos, normalmente, não priorizavam esse setor, mas sim a zona urbana. Isso ocorreu devido ao próprio enfoque institucional dado ao problema, ou seja, não havia diferenciação quando da promoção de programas desse tipo, as áreas rurais foram avaliadas da mesma forma que as urbanas, provocando com isso um desestímulo em se promover melhorias no campo. Estas além de requererem investimentos maiores, pelas distâncias e pouca infra-estrutura, apresentam poucos retornos, pois, via de regra, as populações rurais possuem rendas muito baixas, não havendo previsão de retorno adequado através de tarifas. Devido a essa falta de investimento nas zonas rurais, o que se verifica, ainda hoje, é uma piora constante da qualidade de vida dessas populações, tendo como principal efeito os problemas com saúde.

Mota (1988: 13-14), ao discorrer sobre as características da água, destaca a sua facilidade em servir como veículo de transmissão de doenças para o homem, são as chamadas "doenças de veiculação hídrica", que podem ocorrer por ingestão ou pelo contato da pele ou das mucosas. Das doenças transmitidas por ingestão de água contaminada, a diarréia é a mais devastadora. Mais de 900 milhões de casos de diarréia são registrados anualmente, em todo mundo, resultando na morte de mais de 3 milhões de crianças, sendo que cerca de 2 milhões dessas mortes poderiam ser evitadas se houvesse um adequado saneamento e acesso à água potável. Grande parte dessas mortes ocorre nos países em desenvolvimento onde, em média, 1 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável e 1,7 bilhão não desfruta de serviços adequados de saneamento (World Bank, 1992). No Brasil, 22,3% dos domicílios não são abastecidos com água potável e 57,1% não têm esgotamento sanitário, sendo que no meio rural a situação é bem mais grave, pois dos 67% da população que é atendida com água potável, 88% concentra-se no meio urbano. No total, apenas 37% da população tem acesso a esgotamento sanitário (Novaes, 2000: 83, 94).

Gerenciar e distribuir de forma adequada os recursos hídricos passa então a ser prioridade em qualquer programa de desenvolvimento. Essa constatação já estava presente no Relatório Meadows, de 1968. As Nações Unidas já promoveu diversos debates e encontros internacionais, que discutiram destacadamente a questão da água. Os mais recentes produziram os seguintes documentos: a Declaração de Dublin (1992), a Declaração de São José para América Latina e Caribe (1996), a

2 Ver também: Mota, 1999.

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Declaração de Paris (1998) e a Declaração de Haia (2000). Essas discussões e documentos subsidiaram uma série de decisões em todo o mundo, levando à consolidação de uma ampla legislação sobre os recursos hídricos.

A Declaração de Dublin define que “a escassez e o desperdício de água doce representa uma séria e crescente ameaça para o desenvolvimento sustentável e proteção do ambiente. A saúde e o bem-estar do homem, a garantia de alimentos, o desenvolvimento industrial e os ecossistemas dos quais eles dependem estarão todos em risco, se os recursos de água e solos não forem geridos, na presente década, de forma bem mais efetiva do que tem sido no passado.” (Muñoz, 2000: 15)

Em seus princípios a Declaração de Dublin lançou a base fundamental para toda política de águas posterior, definindo a água doce como um recurso finito e vulnerável, essencial para a sustentação da vida, do desenvolvimento e do ambiente, ressaltando a necessidade de uma gestão participativa dos recursos hídricos, enfatizando o papel da mulher nessa gestão e determinando que a água tem um valor econômico em todos seus usos competitivos e, portanto, deve ser reconhecida como um bem econômico. Ao analisarmos as leis brasileiras sobre recursos hídricos, veremos que esses princípios estão nelas consolidados, com exceção da ênfase ao papel da mulher. Contudo, na prática, a mulher é de fato a “guardiã” da água, especialmente em zonas rurais carentes como o Sertão nordestino.

O Brasil adotou, então, princípios gerais da gestão dos recursos hídricos que definem a água como bem escasso e de valor econômico, condição que leva à racionalização de seu uso, proporcionando a melhoria dos padrões de saúde e diminuição da pobreza rural e urbana. A Lei Federal 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos tem por base essa premissa. (Rodriguez, 1998)

Assim a Lei das Águas do Brasil, considerando a água como bem econômico, define como instrumentos de gestão, o Plano de RH, enquadramento segundo os usos, outorga, cobrança e sistema de informação sobre RH. Adota a Bacia Hidrográfica como unidade de gestão ambiental e determina a participação dos usuários como elemento fundamental para a gestão dos RH. As leis estaduais, aprovadas antes da Lei Federal, seguem também essa filosofia, inclusive a lei do Ceará, de 1992.

5. GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NO CEARÁ

Durante muito tempo a água foi considerada um bem livre e sua valoração pouco cogitada. Só há poucos anos, iniciou-se uma discussão séria e conseqüente sobre a escassez da água, que mesmo sendo um recurso renovável, vem diminuindo sua disponibilidade, pelos usos inadequados e pelo desperdício, comprometendo sua quantidade e qualidade.

Contudo, em locais onde esse bem sempre foi naturalmente escasso, como nas regiões áridas e semi-áridas, a consciência de sua essencialidade e de seu valor sempre esteve presente, permitindo que nesses lugares fossem antecipados debates e ações que hoje se generalizam pelo mundo.

O Ceará, cuja maior parte do seu território está na região semi-árida e, além disso, tem 70% de seu solo em terreno cristalino, é um exemplo dessa antecipação histórica. Podemos citar a criação de um mercado de águas na região do Cariri, no sul do Estado, ainda em 1854. (Campos, 1993b)

Mais recentemente o Estado partiu na frente, em termos nacionais, sancionando a Lei das Águas estadual, em 1992, cinco anos antes da lei federal de recursos hídricos, e foi o primeiro Estado a cobrar pelo uso da água bruta, a partir de 1996.

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A discussão para a definição da lei estadual começou no final da década de 80, quando o governo definiu como prioridade a elaboração de estratégias de convivência com a seca, priorizando as ações de cunho permanente. Assim, iniciou-se o desenvolvimento do Plano Estadual de Recursos Hídricos, pela Secretária de Recursos Hídricos – SRH, com apoio dos técnicos da Fundação Cearense de Meteorologia – FUNCEME, grande parte dos quais estão hoje no comando da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Estado, órgão responsável pela operacionalização da política estadual de RH.

É importante ressaltar o papel das Universidades, que através de seus professores e alunos, proporcionou um referencial teórico moderno e adequado para a constituição do Sistema Integrado de Gestão de Recursos Hídricos do Estado

5.1 Sistema Integrado de Gestão dos Recursos Hídricos (SIGERH)

Mostrarei nesse item como está organizada a gestão dos recursos hídricos no Ceará, relacionando a legislação básica e as principais informações sobre os sistema, oferecendo uma discussão mais detalhada das funções da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos – COGERH, principal órgão do sistema.

O Ceará definiu um projeto de ampliação da infra-estrutura hídrica, e estabeleceu um aparato jurídico - institucional para permitir a implantação do plano de gerenciamento da água para uso múltiplo no território estadual, visando com isso uma melhor distribuição dos recursos hídricos do Estado e melhor convivência com as estiagens, além de começar um novo processo de conscientização da importância da água para todos.

A política estadual de recursos hídricos baseia-se no Sistema Integrado de Gestão de Recursos Hídricos – SIGERH, que coordena e executa a Política Estadual de Recursos Hídricos. O SIGERH está respaldado pelas seguintes leis:

• LEI N° 11.996, DE 24 de JULHO DE 1992, DO ESTADO DO CEARÁ

Dispõe sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos, institui o Sistema Integrado de Gestão de Recursos Hídricos - SIGERH e dá outras providências.

• LEI Nº 12.217, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1993, DO ESTADO DO CEARÁ

Cria a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará – COGERH e dá outras providências

• LEI Nº 12.245, DE 30 DE JANEIRO DE 1993, DO ESTADO DO CEARÁ

Dispõe sobre o Fundo Estadual de Recursos Hídricos - FUNORH, revoga os Arts.. 17 e 22 da Lei nº 11.996, de 24/07 de 1992 e dá outras providências.

• DECRETO Nº 24.264, DE 12 DE NOVEMBRO DE 1996, DO ESTADO DO CEARÁ

Regulamenta o art. 7º da Lei Nº11.996, de 24 de julho de 1992, na parte referente à cobrança pela utilização dos recursos hídricos e da outras providências.

• DECRETO Nº 25.461, de 24 de maio de 1999, DO ESTADO DO CEARÁ Altera as alíneas "a" e "b" do art.7º do decreto nº 24.264, de 12 de abril de 1996 e dá outras providências.

• DECRETO Nº 25.721, de 30 de dezembro de 1999, DO ESTADO DO CEARÁ

Altera as alíneas "a" e "b" do art.7º do decreto nº 24.264, de 12 de abril de 1996 e dá outras providências.

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A Política Estadual de RH, definida pela Lei das Águas de 1992, tem como objetivos: compatibilizar a ação humana, em qualquer de suas manifestações, com a dinâmica do ciclo hidrológico no Estado do Ceará, de forma a assegurar as condições para o desenvolvimento econômico e social, com melhoria da qualidade de vida e em equilíbrio com o meio ambiente; assegurar que a água, recurso natural essencial à vida, ao desenvolvimento econômico e ao bem-estar social possa ser controlada e utilizada, em padrões de qualidade e quantidade satisfatórios, por seus usuários atuais e pelas gerações futuras, em todo o território do Estado do Ceará; e planejar e gerenciar, de forma integrada, descentralizada e participativa, o uso múltiplo, controle, conservação, proteção e preservação dos recursos hídricos.

Esses objetivos estão de acordo com os seguintes princípios fundamentais:

a) o gerenciamento dos Recursos Hídricos deve ser integrado, descentralizado e participativo sem a dissociação dos aspectos qualitativos e quantitativos, considerando as fases aérea, superficial e subterrânea do ciclo hidrológico;

b) a unidade básica a ser adotada para o gerenciamento dos potenciais hídricos é a bacia hidrográfica, com decorrência de condicionante natural que governa as interdependências entre as disponibilidades e demandas de recursos hídricos em cada região;

c) a água, como recursos limitado que desempenha importante papel no processo de desenvolvimento econômico e social, impõe custos crescentes para sua obtenção, tornando-se um bem econômico de expressivo valor, decorrendo que:

- a cobrança pelo uso da água é entendida como fundamental para a racionalização de seu uso e conservação e instrumento de viabilização da Política Estadual de Recursos Hídricos;

- uso da água para fins de diluição, transporte e assimilação de esgotos urbanos e industriais, por competir com outros usos, deve ser também objeto de cobrança.

d) sendo os Recursos Hídricos bens de uso múltiplo e competitivo, a outorga de direitos de seu uso é considerada instrumento essencial para o seu gerenciamento.” (Grifo nosso).

A lei preconiza a integração institucional, a descentralização das ações e decisões e a participação dos usuários na gestão dos Recursos Hídricos. A participação local (sensibilização da opinião pública em geral), é pretendida através da conscientização da sociedade para a necessidade de racionalização dos recursos, de modo que as mudanças sejam internalizadas, apoiadas e efetivadas.

A lei prevê como instrumentos de gestão o Plano Estadual de RH, a adoção da Bacia hidrográfica como unidade de gestão, a definição de Planos Diretores de Bacia, a exigência de Outorga para uso de água bruta, a cobrança pelo uso da água bruta, a licença para construção de obras hídricas e a participação dos usuários através dos comitês de Bacia.

A outorga é uma autorização concedida pela SRH que assegura ao usuário o direito de usar a água num determinado local, retirando-a de uma determinada fonte, numa quantidade definida, por um período estabelecido e para uma finalidade também definida. Desde 1994, a SRH, com o apoio técnico da COGERH, vem sensibilizando os usuários de água sobre a importância da outorga. O objetivo é que gradualmente, todo o processo de alocação de água no Estado seja legitimado com base na implementação da outorga. Atualmente, a Secretaria dos Recursos Hídricos dispõe de uma câmara técnica específica para análise das solicitações de outorga encaminhadas pelos usuários, composta por técnicos da própria SRH, e de suas vinculadas (COGERH, SOHIDRA e FUNCEME).

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A licença para obras hídricas se constitui numa autorização concedida pela Secretaria dos Recursos Hídricos, com vistas à execução de qualquer obra ou serviço de oferta de água que altere o regime, a quantidade ou a qualidade dos recursos hídricos (barragens, adutoras, canais, poços). Este instrumento de gestão já vem sendo exercitado pela SRH, desde 1995, quando foi criada uma câmara técnica para análise das solicitações de licenças para execução de obras hídricas. Tal como a câmara de outorgas, esta é composta por técnicos dos órgãos que compõem o SIGERH (SRH, COGERH, SOHIDRA e FUNCEME).

A cobrança pelo uso da água bruta, prevista na Lei Estadual de Recursos Hídricos, objetiva diminuir o desperdício, aumentar a eficiência no uso da água e como fonte arrecadadora de fundos para cobrir as despesas com a gestão, a operação e a manutenção das obras hídricas.

A organização e integração dos usuários de água bruta é realizada através da criação dos Comitês de Bacia. Participam desses Comitês os pescadores, vazanteiros, irrigantes e industrias, que se reúnem em assembléias para deliberarem sobre a forma e quantidade da distribuição da água, otimizando o uso dos recursos hídricos de acordo com as ofertas disponíveis e tipo de utilização ao longo do ano. Participam também das assembléias, representantes da sociedade civil organizada: sindicatos, associações, prefeituras, que atuam como moderadores dos conflitos inerentes ao processo.

Com a aprovação da Lei Federal 9.433, em 1997, a legislação estadual adequou-se a seus preceitos, porém não foram necessários grandes ajustes já que a lei nacional segue os mesmos princípios que a estadual.

O arranjo institucional do SIGERH define que sua gerência geral fica a cargo da Secretaria de Recursos Hídricos – SRH, que é o órgão que concede a outorga. A Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Estado do Ceará – COGERH é o órgão gestor, responsável pela gestão direta dos recursos hídricos, das informações, cobrança, monitoramento, gestão de conflitos e assistência técnica e social.

A COGERH é uma entidade da Administração Pública Indireta dotada de personalidade jurídica própria, que se organiza sob a forma de sociedade anônima, de capital autorizado. Segundo a Lei 12.217/93, de criação da COGERH, ela tem por finalidade “gerenciar a oferta dos recursos hídricos constantes dos corpos d'água superficiais e subterrâneos de domínio do Estado, visando a equacionar as questões referentes ao seu aproveitamento e controle, operando, para tanto, diretamente ou por subsidiária ou ainda por pessoa jurídica de direito privado, mediante contrato, realizado sob forma remunerada”.

A COGERH é responsável hoje pelo gerenciamento e disciplinamento de mais de 90% das águas acumuladas no Estado, estando sob a administração da Companhia 83 açudes públicos estaduais e federais, além de reservatórios, canais e adutoras da bacia metropolitana de Fortaleza. Gerencia assim a oferta de água superficial e subterrânea do Estado, compreendendo os aspectos de monitoramento dos reservatórios e poços artesianos, manutenção, operação de obras hídricas e organização de usuários nas 11 bacias hidrográficas do Ceará.

As funções da COGERH envolvem a cobrança pela água bruta, o monitoramento, manutenção e operação de obras hídricas, além da organização dos usuários.

Desde novembro de 1996, a COGERH vem cobrando pela utilização dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos de domínio do Estado. Na primeira etapa de implementação da cobrança, foram fixadas tarifas apenas para os usuários industriais e para as concessionárias de serviços de água potável. A cobrança de tarifa para irrigação vem sendo discutida nas comissões de usuários e comitês de bacias.

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O Monitoramento tem a função de realizar o acompanhamento dos aspectos qualitativos e quantitativos da água, no que diz respeito aos níveis do açude, vazões liberadas, consumo dos usuários, vazões nos rios perenizados e os níveis de contaminação química e biológica, servindo de informação para auxiliar a tomada de decisão da operação. A COGERH realiza o Monitoramento de 113 Reservatórios em conjunto com o DNOCS. Esse monitoramento é realizado através de telefones, cartas e visitas em campo. A COGERH disponibiliza o Boletim da Situação Atual de Vazão Liberada dos Açudes, Informações Técnicas dos Açudes Monitorados pela COGERH/DNOCS, dados históricos de Volume dos Açudes Monitorados dados Comparativos com o Início do Ano.

A atividade de operação objetiva principalmente no caso dos açudes, definir a liberação de águas de forma a atender à demanda, levando em consideração a oferta disponível e as características do próprio açude. Foram cadastrados pela SRH mais de 7.200 açudes no Ceará, com um potencial de acumulação estimado em 12 bilhões de metros cúbicos e uma reserva explorável estimada em 1,2 bilhão de metros cúbicos por ano. A SRH tem hoje também cadastrados mais de 13.000 poços. Mais recentemente vem-se promovendo o monitoramento qualitativo dos recursos hídricos das bacias do Médio e Baixo Jaguaribe, Banabuiú, Curu, Acaraú e Metropolitanas. Os parâmetros por enquanto analisados são: concentração de cloretos, condutividade elétrica, oxigênio dissolvido, ph e turbidez.

Quanto à organização dos usuários, a COGERH vem desenvolvendo um significativo trabalho de conscientização e educação para a gestão das águas dos açudes estratégicos dos municípios, dos vales perenizados e das bacias hidrográficas, em especial nas bacias hidrográficas do Curu, Alto, Médio e Baixo Jaguaribe, Banabuiu, Metropolitanas e mais recentemente do Salgado e Acaraú. Os canais de participação no processo de gestão das águas são garantidos em cada um dos níveis (açudes, municípios, vales perenizados e bacias hidrográficas) onde são constituídas comissões de usuários sendo que o Comitê de Bacia Hidrográfica, com poder consultivo e deliberativo é a instância mais importante de participação dos usuários e de integração do planejamento e das ações na área dos recursos hídricos.

5.2 Bacias Hidrográficas como unidade de gestão dos RH

Uma bacia hidrográfica é a área drenada parcial ou totalmente por vários cursos d’água. É o local geográfico que permite a gestão dos múltiplos usos dos recursos hídricos, garantindo a observância da dependência de todos os componentes do crescimento e desenvolvimento da sociedade. (BNDES, 1998)

A lei estadual, assim como a lei federal, institui a bacia hidrográfica como unidade de gestão dos RH, tendo-se como base o modelo francês de gestão de bacias.

O Brasil tem definidas, hoje, 8 bacias hidrográficas em seu território. Todo o território do Ceará está situado na Bacia do Atlântico Norte/Nordeste. Já no Estado foram definidas 11 Bacias (Alto Jaguaribe, Salgado, Banabuiú, Médio Jaguaribe, Baixo Jaguaribe, Acaraú, Coreaú, Curu, Parnaíba, Metropolitana e Litoral). Como seus rios não são perenes e há ocorrência freqüente de secas na região, a gestão dos recursos hídricos apresentam uma peculiaridade: a principal unidade física é o açude e não o rio. Apesar da definição e da denominação das bacias estarem ligadas aos principais rios, a realidade é que a gestão se orienta pelo comportamento dos açudes.

Contemplando a gestão por bacias, a formação de Comitês de Bacias é ponto fundamental, pois é através da participação dos usuários, deliberando livremente sobre a definição de políticas, preços e prioridades e sobre a gestão de interesses conflitantes, que se efetiva os objetivos da política de RH.

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5.3 Cobrança pelo uso da água

Por muito tempo a água, assim como outros recursos ambientais, foi considera um bem livre, ou seja, sem valor de mercado, não possuindo preço. Isso levou ao mau uso desses recursos, que foram desperdiçados e/ou degradados. No caso da água essa prática comprometeu a oferta hídrica tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo. Tal situação torna-se dramática quando estamos localizados em regiões onde a escassez natural da água agrava-se mais pelas externalidades geradas pelo uso ineficiente e depredatório do recurso, conseqüência da sua não valoração.

Ao determinar que a água é um bem econômico, tanto a legislação federal quanto a estadual, admitem a necessidade de se contabilizar essas externalidades, bem como conscientizar a sociedade para o uso adequado desse recurso. Os princípios da gestão por bacia, da unicidade da outorga, da adoção de plano de gestão e da cobrança respaldam a importância dos instrumentos econômicos para a gestão ambiental. Motta (1998) ressalta que “(...) a gestão por bacia reconhece que o uso da água é múltiplo, excludente e gera externalidades e, portanto, a bacia representa o mercado de água onde seus usuários interagem. A unicidade da outorga permite uma melhor definição e garantia de direitos de uso da água. O plano de gestão introduz os elementos de disponibilidade e demanda do recurso no tempo. E por fim, a cobrança que determina diretamente um preço para a água.”

A lei prevê que cobrança deve acontecer pelo uso da água bruta e pelo lançamento de dejetos nos cursos d’água, mediante a prévia outorga. Segundo Motta (1998) a cobrança da água deve atentar para dois objetivos, financiar a gestão de RH e reduzir as externalidades ambientais negativas produzidas pelo uso do recurso. O instrumento econômico de cobrança está baseado no Princípio Poluidor-Pagador, definido pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em 1972. Bursztyn (1994) diz que esse princípio combina exigência de eficácia (internalização dos efeitos externos) e eqüidade (imputação do custo ao responsável). Assim o custo ambiental é considerado da mesma maneira que outros custos. Não visa punir os agentes poluidores, mas modificar seu comportamento. Prevê o retorno do que se pagou em forma de incentivos para diminuir a poluição. É importante ressaltar esse aspecto de mudança de comportamento, pois muitas críticas são feitas à forma de determinar esse preço, que geralmente é considerado baixo. No entanto, as críticas que apontam nesse sentido, deixam de considerar que nesse momento de tomada de conscientização, o essencial é mostrar a importância do recurso e seu valor para o usuário.

Barraqué (1995: 274), por exemplo, ao apresentar a gestão dos recursos hídrico em Portugal, coloca que: “no conjunto, os serviços da água são vendidos abaixo do seu custo, em particular porque não integram a amortização dos investimentos, sendo estes maciçamente subvencionados.” Essa vem a ser uma crítica desenvolvida por Fernandez e Garrido (2000), que dizem que os preços da água no Ceará foram produzidos por meio de negociação entre os interessados, sem qualquer fundamentação econômica que leve a uma real eficiência. É verdade que a política de águas do Estado ainda não atingiu um estado de eficiência ideal, com o governo ainda subsidiando parte dos custos de manutenção do SIGERH e dos investimentos para expansão. O governo precisa assumir os gastos com infra-estrutura, recorrendo inclusive a empréstimos de fora.

Contudo, devemos lembrar que ainda assim o Estado é único no país a conseguir implementar com sucesso o sistema de cobrança de água, com base na gestão por bacias, contando com um nível de participação cada vez maior dos usuários nessa gestão, atingindo assim o primeiro objetivo que é a mudança de comportamento desse usuário, como colocou Bursztyn.

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6. CONCLUSÃO

A busca de uma convivência mais saudável e equilibrada do homem com meio ambiente está implícita na busca por uma forma de viver mais digna e ética, que não mais exclua, porém que permita que cada um exerça sua liberdade, numa “cidadania planetária”, como propõe Boff (1998: 38), nos mesmos moldes da “sociedade civil planetária” de Leis (In: Viola et al, 1998:39), que vai mais além e propõe um “Governo Mundial” (In: Viola et al, 1998: 39 e 1996: Cap. 1), que priorizaria ações de defesa à vida na Terra, em todas as suas expressões. Nessa mesma linha Reigota (1998:22) defende uma mudança radical da sociedade a partir da perspectiva ecológica.

Dando-nos uma visão ampla, Leis (In: Viola et al, 1998:26) coloca que “a crise ecológica global resulta da anarquia na exploração e gestão dos bens comuns da humanidade por parte de atores políticos e econômicos orientados por uma racionalidade individualista instrumental” e é enfático quando diz que o alcance de um futuro sustentável depende, acima de tudo, dos atos da sociedade civil planetária, consciente de seu papel transformador.

Com base nas discussões aqui desenvolvidas podemos concluir que os alicerces para uma boa gestão dos recursos hídricos são o planejamento e o controle, subsidiados pelo arcabouço legal referente, por um bom sistema de informação e ainda pelo respaldo da participação e conscientização dos usuários.

Apesar do sucesso da implantação do instrumento econômico de cobrança pelo uso da água no Ceará, temos que ressaltar o fato de que o chamado “Capital Natural” não é um fator de produção controlável e a “racionalidade” econômica pode promover destruição, se não levar em consideração as especificidades dos recursos naturais (Lima, 1999).

No caso do Ceará, sabemos que todo o trabalho de conscientização e implantação da política hídrica pode ser destruído pela ocorrência de um período de estiagem prolongado, quando a falta de água leva a atitudes extremas pelos usuários, como por exemplo, barramentos de rios e captação clandestina.

A minha análise aqui é localizada, contudo permite inferências pertinentes a problemas que atingem a todos e especialmente a outros locais, onde a população vive em um espaço semelhante, enfrentando impasses também semelhantes. Não se quer com isso generalizar soluções, mas sim esclarecer situações cada vez mais comuns.

É importante destacar que a política de RH aqui vista, apesar de demonstrar a preocupação essencial com o meio ambiente, tem na verdade como principal preocupação a água como fator econômico. Ou seja, a gestão ambiental vem a reboque da utilidade que o recurso possa ter. Por outro lado, a organização dos usuários nos Comitês de Bacia levou aos poucos a uma inversão, despertando nos usuários e nos próprios técnicos, ao longo do processo de aprendizado da gestão compartilhada, a noção cada vez mais forte de que a gestão do ambiente tem que anteceder à gestão econômica.

Assim, queremos ressaltar que o sucesso da gestão ambiental, com a implantação de instrumentos econômicos, como a cobrança pelo uso da água, por exemplo, repousa na verdadeira conscientização da população, e dos usuários em particular. A participação da sociedade não pode ser restrita, mas só se efetivará quando todos tiverem acesso a informações precisas sobre os recursos utilizados. Essas informações, geradas pelos órgãos responsáveis diretos pela gestão, permitirão não só o envolvimento de todos, como um processo de tomada de decisão mais maduro e responsável, garantindo que a gestão ambiental, e seus instrumentos, passem de fato a contribuir para a promoção do desenvolvimento sustentável.

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