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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA GILSON DAMASCENO LINHARES O PROBLEMA DA ABSTRAÇÃO EM TOMÁS DE AQUINO SALVADOR - BA 2017

GILSON DAMASCENO LINHARES O PROBLEMA DA ABSTRAÇÃO … · O PROBLEMA DA ABSTRAÇÃO EM TOMÁS DE AQUINO SALVADOR - BA 2017.1 Monografia apresentada ao curso de graduação em Filosofia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

GILSON DAMASCENO LINHARES

O PROBLEMA DA ABSTRAÇÃO EM TOMÁS DE AQUINO

SALVADOR - BA

2017

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GILSON DAMASCENO LINHARES

O PROBLEMA DA ABSTRAÇÃO EM TOMÁS DE AQUINO

SALVADOR - BA

2017.1

Monografia apresentada ao curso de

graduação em Filosofia da Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Federal da Bahia, como

requisito parcial para a obtenção do grau de

Licenciado em Filosofia.

Orientador: Profº. Drº. Marco Aurélio

Oliveira da Silva.

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GILSON DAMASCENO LINHARES

O PROBLEMA DA ABSTRAÇÃO EM TOMÁS DE AQUINO

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________

(Orientador) Prof. Dr. Marco Aurélio Oliveira da Silva

___________________________________________

(Examinador) Dr. Abel Lassalle Casanave

___________________________________________

(Examinadora) M.ª Camila de Souza Ezídio

Monografia apresentada ao curso de

graduação em Filosofia da Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Federal da Bahia, como

requisito parcial para a obtenção do grau de

Licenciado em Filosofia.

Orientador: Profº. Drº. Marco Aurélio

Oliveira da Silva.

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Para meus pais e todos aqueles (noiva, amigos, familiares) que

contribuíram e me apoiaram durante todo o processo de

caminhada e construção do meu pensamento.

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AGRADECIMENTOS

Os meus sinceros agradecimentos vão para aqueles que estiveram comigo

durante essa etapa da minha vida, aqueles que acreditaram que eu era capaz de superar

as dificuldades e me ajudaram a chegar até aqui. Sem o apoio e a confiança destes, a

conclusão do curso de Filosofia não seria possível.

Agradeço, com muita estima, ao meu orientador Profº. Drº. Marco Aurélio

Oliveira da Silva, pela paciência nos momentos em que mais precisei, pelas horas

dedicadas aos nossos encontros, pelo cuidado nas correções de cada trabalho que

escrevi, pela seleção das bibliografias adequadas, pelos email’s respondidos com tanta

atenção, pela disposição, boa vontade, incentivo, enfim, pela orientação constante.

Todas as palavras não seriam suficientes para dizer que esta monografia não seria

possível sem a orientação que tive. Com certeza esse fruto de muita dedicação e

trabalho que se deve mais a ela do que a mim.

Agradeço aos meus pais Alessandro Linhares de Carvalho e Alcimar Damasceno

Linhares que apesar das críticas sempre estiveram ao meu lado e me apoiaram na minha

escolha.

Agradeço enormemente a minha amada noiva Letícia Guimarães, por todo apoio

e compreensão nos momentos em que precisei ficar estudando e escrevendo este

trabalho.

Agradeço a toda minha família, em especial às minhas avós Maria Conceição

Damasceno e Maria Cecilia Rodrigues Linhares, minha tia Simara Damasceno Duarte e

Gilmar Damasceno.

Agradeço aos meus amigos Bruno Gaspar Silva, Jean Pantoja, Germano

Dasinger, Celeste Costa, que fizeram juntos comigo o curso e que sempre contribuíram

para a construção do meu pensamento, pelas discussões e pelas leituras e sugestões

referente aos meus textos, por nunca ter duvidado da minha capacidade e sempre ter me

incentivado a continuar esta caminhada.

Agradeço ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC),

programa ao qual estive vinculada durante um ano da minha formação e que me

possibilitou uma pesquisa comprometida como resultado contribuiu grandemente para

que eu pudesse aprofundar o meu estudo.

Agradeço à professora Almira do Colégio Estadual Rotary que, com os seus

anos de trabalho na educação básica, mantém a esperança em um futuro melhor. Por me

acolher em suas salas de aula, concedendo algumas horas de estágio supervisionado,

para que hoje, enfim, nos tornássemos colegas de profissão.

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O cara que anda tem que chegar em algum lugar,

O cara que trabalha, trabalha, trabalha deve se cansar,

O cara estuda tanto e ainda tem tanto pra aprender,

Passa o tempo e fica mais fácil esquecer.

E não há, o que lamentar,

Quando chega, o fim do dia.

Arnaldo Antunes

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a oposição entre conhecimento

sensível e conhecimento inteligível na teoria do conhecimento apresentado por Tomás

de Aquino ao longo de suas obras, e como problema central e norte de nossa

investigação como se dá o processo de formação de conceitos universais, se segundo a

filosofia de Tomás nós temos acesso apenas às coisas particulares? Para isso iremos

verificar a necessidade do fantasma para a realização do ato abstrativo, posteriormente

iremos verificar como se dá o processo abstrativo e por fim analisar os tipos de

abstração apresentados por Tomás, a saber, a abstração do todo legada a ciência da

física, a abstração da forma acidental da quantidade ligada à matemática e o ato da

separação atribuída a metafísica. Analisaremos também a famosa interpretação feita por

Geiger, que propõe uma oposição entre abstração e separação.

Palavras-chave: Abstração, Fantasma, Universais, Separação.

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Abstract

The present work aims at analyzing the opposition between sensible

knowledge and intelligible knowledge in the theory of knowledge presented by Thomas

Aquinas throughout his works, and as the central and northern problem of our

investigation as the process of formation of universal concepts, If according to the

philosophy of Thomas do we have access only to private things? For this we will verify

the necessity of the ghost for the accomplishment of the abstract act, later we will verify

how the abstract process occurs and finally analyze the types of abstraction presented by

Thomas, namely, the abstraction of the whole bequeath the science of physics, the

Abstraction of the accidental form of the quantity attached to mathematics and the act of

separation attributed to metaphysics. We will also analyze the famous interpretation

made by Geiger, who proposes an opposition between abstraction and separation.

Keywords: Abstraction, Ghost, Universals, Separation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------9

CAPÍTULO I – O processo abstrativo se dá sobre a coisa ou sobre o fantasma?--12

1.1 O fantasma como ponto de partida para o ato abstrativo. --------------------------12

1.2 Como se da à produção do fantasma. -------------------------------------------------22

CAPÍTULO II – Teoria da Abstração ---------------------------------------------------32

2.1 Abstração do Todo (universal) e abstração precisiva. -----------------------------37

2.2 Abstração da Forma sensível. ---------------------------------------------------------45

2.3 Separação --------------------------------------------------------------------------------46

2.4 Distinções entre os dois atos mentais que Tomás apresenta: Abstração e

Separação.--------------------------------------------------------------------------------49

CONCLUSÃO------------------------------------------------------------------------------52

REFERÊNCIAS----------------------------------------------------------------------------56

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INTRODUÇÃO

O século XIII tem como marca intelectual a recém-chegada das obras de

Aristóteles no ocidente, obras como, por exemplo: Organon, textos sobre ciência da

natureza, da Metafísica, Ética e Política. Acompanhado de comentários de alguns

pensadores árabes e judeus, dentre os mais destacados Avicena (980-1037) e Averróis

(1126-1198), este é o cenário que Tomás de Aquino (1224/25-1274) se encontra.

Fortemente influenciado pelo pensamento aristotélico, Tomás constrói sua

teoria do conhecimento ao longo de suas obras, não escrevendo propriamente uma obra

dedicada apenas com vista a este objetivo, algumas obras onde aparecem tais elementos

de como conhecemos são: Suma de Teológica, Sentença do livro Sobre a alma,

Comentário a Metafísica de Aristóteles, O ente e a essência, Comentário ao Tratado da

Trindade de Boécio. Tomando o partido do empirismo onde o intelecto é como uma

tábula rasa em que não há nada escrito e todo conhecimento só nos advém através da

experiência sensível, Tomás entende que o ser humano é uma substância composta, o

conceito aristotélico de substância composta é de que consiste numa substância

constituída por forma e matéria, assim no caso dos seres humanos podemos apontar

uma correspondência entre: a alma humana e a forma e o corpo e a matéria. Aquino faz

uma distinção ontológica do modo de apreender o ser inteligível tal como existe na

mente humana como universal e o modo que este ser existe nas coisas reais enquanto

individuais, veremos os impactos deste modo distinto mais a frente em sua teoria do

conhecimento.

Para Aquino a alma humana tem uma parte com uma espécie de potência

cognitiva, que chama de intelecto, esta é, segundo ele apresenta a parte mais nobre da

alma, já que através desta potência intelectiva podemos conhecer a nós mesmos e

também as coisas que nos transcendem e que estão ao nosso redor 1 . Duas são as

operações do intelecto conforme aparece no comentário ao De Trinitate, uma operação

é chamada de simples apreensão e a outra operação é chamada de composição/divisão-

o juízo, estas duas operações se dirigem as coisas que são inteligíveis, ou seja, que são

da mesma natureza do intelecto 2 . Nisto consiste a atividade própria do intelecto,

1 TOMÁS, Suma de Teologia 1º, Q. 79, a.1, c. 2 TOMÁS, Suma de Teologia, 1º, Q 84, a.1, resp.

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conhecer as coisas. Segundo a teoria do conhecimento tomista o objeto próprio do

intelecto humano é a apreensão das essências das coisas, chamada também de

“quididade”. Porém, podemos perceber que o intelecto que está na alma tem uma

natureza distinta em relação aos corpos que são materiais e sensíveis3, modo como

existem as essências no caso das substâncias compostas, singularizadas e unidas nas

matérias. Percebemos claramente a influência da filosofia aristotélica neste ponto, onde

o conhecimento humano se desenvolve também através da relação entre o que é

material com o imaterial, como é o caso das substâncias compostas. A consideração

tomista, contudo, propõe que todo conhecimento humano só nos é acessível através da

experiência sensível, onde tudo que nos afeta é material, como vimos o intelecto não

tem acesso direto a tais impressões sensíveis, pois o intelecto não faz uso de nenhum

órgão sensível, tais órgãos sensíveis são imprescindíveis para que o ser humano possa

captar a experiência sensível. Diante de tal circunstância Aquino nos oferece outra

potencialidade da alma chamada de faculdade sensitiva da alma ou sentidos internos da

alma, estes sentidos internos são divididos em quatro capacidades que veremos mais a

frente de maneira detalhada, neste momento nos basta o primeiro sentido interno que

Tomás apresenta a chamada de faculdade imaginativa (fantasma). Esta faculdade da

alma executa uma função fundamental para que seja possível o conhecimento, pois ela

produz o fantasma, que é uma imagem sensível, em uma descrição breve do processo

que faz e da função da faculdade imaginativa, ela reúne os dados captados pelos órgãos

dos sentidos que são ainda considerados brutos, e através de um processo de polimento

ela transforma estes dados sensíveis em uma representação da coisa e apresenta esta ao

intelecto, que agora a partir desta imagem que foi formada pela imaginação4, pode

captar a forma da coisa que se apresentou à mente. Porém, esta imagem sensível

(fantasma) que lhe é apresentado tem a pretensão de ser semelhante à coisa que afetou

os nossos sentidos, então o fantasma ainda compreende a coisa como substância

composta (forma/matéria). Sendo necessário ainda algo mais para que o intelecto seja

capaz de conhecer agora o fantasma. Faz-se necessário então uma operação chamada

por Tomás de abstração, e somente após esta operação abstrativa do intelecto sobre o

fantasma que se torna uma “espécie inteligível” que tem características universais, o

intelecto atinge a essência da espécie inteligida, após abstrair das condições materiais na

3 “O recebido está no recipiente ao modo do recipiente”.

4 TOMÁS, Suma de Teologia 1º, Q. 85, a.1.

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medida em que individualiza o que lhe é apresentado, considerando apenas a forma e

deixando a matéria indeterminada. É preciso ainda apontar para um detalhe deste

processo, Tomás divide o intelecto em duas partes, uma é chamada de intelecto agente e

a outra de intelecto possível. O intelecto agente é a parte do intelecto mais ativa e que

executa a operação abstrativa que nos referimos acima, o intelecto possível é uma parte

potencial do intelecto que após receber o seu objeto que são as espécies inteligíveis,

produz o conceito. Apenas após o intelecto agente abstrair a quididade a partir do

fantasma, o intelecto possível recebe a essência pura e entra em ato, pois recebe o objeto

que lhe é próprio, deste modo ele conhece a sua maneira as coisas sensíveis. Vimos,

portanto que o modo como conhecemos as coisas é distinto do modo como elas existem.

Segundo Nicola Abbagnano, Tomás faz uma redução do ato de conhecer à

operação abstrativa:

S. Tomás reduz o conhecimento intelectual à operação de abstrair:

abstrair a forma da matéria individual e assim extrair o universal do

particular, a espécie inteligível das imagens singulares. Assim como

podemos considerar a cor de um fruto prescindindo do fruto, sem por

isso afirmar que ela existe separadamente do fruto, também podemos

conhecer as formas ou as espécies universais do homem, do cavalo, da

pedra, etc., prescindindo dos princípios individuais a que estão unidas,

mas sem afirmar que existem separadamente destes. A abstração, por

isso, não falsifica a realidade, mas só possibilita a consideração

separada da forma e, com isso, o conhecimento intelectual humano (S.

Th., q.85, a.1). (ABBAGNANO, 2000, p.4)

Compreende-se então a grande importância da abstração que executa uma

função central para que seja possível o processo de conhecimento humano, e justamente

a investigação da teoria da abstração de Tomás de Aquino que este trabalho pretende se

dedicar, apresentando os tipos de abstração apresentados por Tomás ao longo de suas

obras, analisando as dificuldades que o autor se propõe a solucionar e apontar também

no decorrer do texto algum problema de sua teoria.

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CAPÍTULO I

O processo abstrativo se dá sobre a coisa ou sobre o fantasma?

1.1 O fantasma como ponto de partida para o ato abstrativo.

Iniciaremos este capítulo apresentando de maneira sucinta uma discussão que há

na interpretação da teoria do conhecimento de Aquino, no que diz respeito de como o

intelecto humano conhece a coisa sensível, para Tomás como veremos a realização do

conhecimento é efetivado pelo ato abstrativo e a discussão corrente é sobre se: o ato

abstrativo que o intelecto agente executa se dá diretamente sobre a coisa ou sobre uma

representação? No texto do Ente e a Essência, Tomás no terceiro capítulo começa a

falar propriamente do ato da abstração, contudo ele não apresenta o conceito de

fantasma ou qualquer representação, dessa maneira parece que o ato abstrativo se dá

diretamente sobre a coisa. Porém na Suma de Teologia nas questões 84 artigo 7 e

questão 85 artigo 1 como veremos mais a frente de maneira detalhada, Aquino afirma

que nós não podemos conhecer as coisas sensíveis a não ser que o intelecto se debruce

sobre o fantasma da coisa sensível. De modo geral aparecem duas interpretações uma

escola denominada de Realismo Direto que defende a primeira tese e a escola

Representacionista que defende a segunda tese explicitada.

Apresentaremos de maneira resumida, até por que não pretendemos analisar tal

tese, mas tomar partido da interpretação representacionista pelas razões que serão

apresentadas no decorrer do texto, a interpretação apresentada pelo Realismo Direto que

tem defensores mais destacados como: N. Kretzmann, D. Perler. A escola do Realismo

Direto na teoria tomista defende que a ideia de representação não é um conceito

fundamental na teoria do conhecimento de Tomás, segundo esta escola, há uma relação

de identidade entre o conceito que é a coisa pensada e a forma que existe na própria

coisa. O aspecto formal em Tomás é o princípio de inteligibilidade, deste modo quando

conhecemos a forma da coisa estamos inteligindo a essência da mesma. Assim o

conceito que é uma forma intencional, ou seja, é a forma que existe no intelecto do

sujeito, portanto, é o modo como acessamos ao mundo. Em seu artigo5 Kretzmann

5 KRETZMANN, Norman. Philosophy of Mind, in Cambidge Companion to Aquinas. Ed. Norman

Kretzmann and Eleonore Stump. Cambridge: Univ. Press, 2006, p.137-138.

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estabelece à identidade entre a forma presente no intelecto e a forma da coisa

argumentando que o intelecto tem acesso direto ao seu objeto de intelecção que é a

forma da coisa sensível, a identidade se dá no ato de conhecer, quando a forma está

atualmente sendo objeto de pensamento. A identidade ocorre então quando conhecedor

e conhecido estão em ato, o que permite esta identidade e unidade entre o intelecto e a

coisa é aquilo que Kretzmann chama de instâncias, este conceito quer significar que

quando a forma está instanciada (existe atualmente) de um modo unida a matéria na

realidade e está instanciada de modo imaterial em nosso intelecto, baseando-se em um

exemplo que Tomás dá na Questão 76 a.2, ad.4 de que a species da pedra que está na

alma e não a pedra, porém na Questão 85 a.2 Tomás diz que a species inteligível que é a

forma pela qual o intelecto intelige é a similitude da coisa. Todavia apesar de existirem

instanciados de modos distintos, o que as distingue não são os aspectos essências, mas

apenas este modo como estão instanciadas, mantendo assim a conformidade entre elas.

O aspecto intencional no âmbito mental se refere aqui ao modo como o intelecto recebe

os dados das coisas, como Aquino diz o recebido está no recipiente ao modo do

recipiente, os sentidos recebem as coisas imaterialmente como species sensível, porém,

conserva os aspectos individualizantes da coisa, contudo o intelecto intencionalmente

recebe ao seu modo completamente imaterial sem nada que possa individualizar esta

forma.

Outro ponto a ser destacado é que a escola do Realismo Direto parece confundir

os conceitos de identidade e similitude. Diferentemente de uma teoria

representacionista onde a representação é apenas uma semelhança da coisa, aqui nesta

teoria interpretativa o conceito é idêntico à coisa, podemos supor então que é possível

conhecer a coisa nela mesma, esta tese implica ainda que o intelecto que conhece já está

em ato, apenas por isso ele pode inteligir a coisa nela mesma, pelo fato de já estar em

ato ele pode agir e pensar a coisa. Não há nada intermediário entre o sujeito de

conhecimento e o objeto de conhecimento. Caso a similitude que é o conceito fosse uma

representação, estaríamos estabelecendo- o como um intermediário entre o sujeito

cognoscente e o objeto. Porém a similitude quer indicar a conformidade que há entre a

species intencional instanciada em nosso intelecto e a forma atualmente existente na

coisa. A similitude é uma semelhança nesse sentido, naquilo que há de comum entre as

duas instâncias.

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A interpretação representacionista por sua vez não discorda que haja uma

apreensão da forma intencional também denominada de species intencional, a que é

apreendida pelo intelecto e tem a intenção de se referir a espécie de algo, como por

exemplo, a espécie animal, pois o conhecimento humano se realiza através desta

species, contudo tal species é apenas uma semelhança da coisa, não é idêntica a própria

coisa. A species carrega então apenas a intenção de semelhança conforme Tomás diz

“pois a relação entre a coisa conhecida e aquele que conhece não deve ser entendida

pelo modo da identidade, mas pelo modo de representação”6. Na mesma obra Tomás

reforça ainda que representar é conter a similitude da coisa7, assim o conhecimento se

dá a partir das representações, dois são os modos de similitude que aparecem no De

Veritate: adequação na natureza este modo de similitude não é exigida na relação entre

aquele que conhece e o seu objeto de conhecimento e o segundo modo de similitude é a

representação, este é o modo que convém na relação entre conhecedor e conhecido8. A

representação aparece como uma produção do intelecto que tem como intenção se

referir a algo na realidade, a species inteligida na mente representa ao seu modo uma

conformidade com a coisa real. Porém esta species que está na mente não é

acompanhada de matéria individual, pois é a species inteligível, que é a forma enquanto

princípio de inteligibilidade, ou seja, está em plena imaterialidade.

O intelecto humano conhece as coisas materiais a partir da representação do

princípio formal das coisas. A species inteligível é fundamental para que se realize o ato

intelectivo, ou seja, para que o intelecto possível passe da potência para o ato, mas qual

é a sua relação com a species sensível, o conceito e com o fantasma? O que conhecemos

são as coisas, a species inteligível é apenas o modo através do qual conhecemos (Q.85,

a.2), tal species é universal, por isso não é acompanhada de matéria individual que a

tornaria singular, a species sensível é retida pelos sentidos, contudo, neste nível ainda

preserva as condições materiais e, por conseguinte se refere diretamente as coisas

singulares da realidade sensível. É preciso ainda distinguir brevemente species

inteligível e conceito, a species inteligível é a reunião das semelhanças dos indivíduos

numa forma e tem o papel de atualizar o intelecto possível, assim o intelecto possível

recebe as species inteligiveis. Ou seja, a species inteligível é a representação dos dados

que compõe e permite a produção do conceito. O conceito é a expressão mental

6 De Veritate Q.2 a.5 7 De Veritate Q.7 a.5 ad.2. 8 De Veritate Q.2 a.3 ad.9.

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resultante do ato intelectivo, ou seja, é uma entidade intencional que pretende se referir

às coisas, é aquilo que o intelecto concebe a respeito da coisa. De modo que os

conceitos aparecem como similitude 9 das coisas sendo assim o intermediário entre

conhecedor e objeto de conhecimento da leitura representacionista. Vejamos agora a sua

relação com o fantasma e a importância deste para o ato intelectivo.

No texto da Suma Teológica Q.85, A.1 Tomás se dedica a investigação de como

o intelecto apreende as species inteligíveis, que é o modo como intelecto conhece as

coisas, e extrai estas species a partir dos fantasmas. E diz que:

“Ora, conhecer o que está na matéria individual, não na medida em que está em tal

matéria, é abstrair a forma da matéria individual, que os fantasmas representam”.10

Já que a apreensão discutida se dá através de imagens sensíveis, sabemos que

são apreensões sempre particulares. Aquino inicia sua argumentação tomando como

princípio, o fato de que uma coisa, só pode ser conhecida por algo que tenha a

capacidade de conhecer, conhecer é tomado num sentido de uma operação da alma que

está para além do corpo, contudo a natureza corpórea é como que um instrumento pelo

qual a alma realiza certas operações. Tomás distingue três tipos de alma11 de acordo

com as operações que estas realizam os três tipos de alma são: a racional esta excede a

natureza corpórea, por exemplo, o ato de pensar, pois não se utiliza de nenhum órgão

sensível para realizar a atividade que lhe é própria, a alma sensitiva, este tipo de alma se

realiza através dos órgãos dos sentidos, por exemplo, o exercício da audição que se

realiza através do ouvido, e por fim, a alma vegetativa, que se realiza por meio dos

órgãos dos sentidos e por causa das qualidades das coisas sensíveis, no objetivo de se

nutrir um animal vai à busca de um alimento, utiliza os órgãos sensíveis para encontrar

o alimento e os procura pelas suas qualidades sensíveis que lhes são necessários. Ligado

a esta distinção dos tipos de alma, Aquino nos demonstra ainda que existem três modos

ou níveis de apreensão das coisas:

O 1º modo de apreensão, parece se identificar com a atividade própria da alma

sensitiva, que constitui aquilo que são os animais, tal atividade se realiza por meio dos

9 Suma de Teologia Iº Questão 13, artigo 1 respostas. A partir de agora irei me referir a obra Suma de

Teologia através da abreviatura ST seguido de Questão abreviada pela letra Q, e artigo pela letra A. 10 ST, Iº, q.85, a.1(ed.bras.,2006, p.133: grifo meu). Apesar do tradutor utilizar o termo “fantasia”, preferi

substituir pelo termo “fantasma”, pois o termo “fantasia” no português por vezes traz a noção de imagens

falsas, enquanto que Tomás quer indicar com o termo em questão, as imagens recebidas pelos sentidos. 11 ST, Iº, q.78, a.1.

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órgãos dos sentidos, este modo de apreensão se reduz a experiência sensível, sendo a

matéria o princípio individuação, este modo de apreender só nos permite conhecer os

particulares. Tomás diz ainda que este modo de apreensão é próprio dos animais, sendo

o sentido uma potência passiva, ela é alterada, ou seja, muda de estado quando sofre

uma ação das coisas sensíveis do mundo externo sobre os nossos órgãos, os sentidos são

ainda divididos entre; sentidos internos e sentidos externos12 , a estrutura externa é

constituída basicamente pelos órgãos dos sentidos: olhos (realiza o sentido da visão),

ouvido (realiza o sentido da audição), mão (realiza o sentido do tato), língua (realiza o

sentido do paladar), nariz (realiza o sentido do olfato), os sentidos externos são

distinguidos para Tomás por seus objetos, por serem sentidos passivos cada sentido

externo é afetado pelo seu objeto no mundo sensível, por exemplo, o objeto da visão

que se realiza através dos olhos é a imagem, o objeto do olfato é o odor.

Aquino faz uma espécie de hierarquia dos sentidos, do mais espiritual para o

mais corpóreo, o critério para estabelecer tal hierarquia diz Aquino é a alteração natural

sofrida pelo órgão do sentido, ou seja, quanto mais espiritual um sentido for menor é a

alteração que o órgão sofre do mundo sensível, sendo assim ele diz que a visão é o

sentido mais espiritual, seguido da audição e do olfato e posteriormente o tato e o gosto

(paladar). Os sentidos internos dos animais são: sentido comum é o princípio comum ou

a raiz dos sentidos externos, é a parte sensitiva da alma, este sentido é como um

intermediário entre os sentidos externos e os sentidos internos, cabe a esta faculdade da

alma discernir todas as apreensões dos sentidos, a imaginação que é a faculdade

responsável por reter e conservar uma espécie sensível; a estimativa que é a faculdade

capaz de distinguir aquilo que é conveniente ou nocivo, agradável ou repulsivo para os

sentidos, no animal é o instinto natural que faz com que ele perceba a intenção da

espécie sensível (conveniência ou nocividade), por exemplo, quando um pássaro

percebe a aproximação de um gato, seu instinto natural lhe traz a sensação de uma

situação de nocividade, já que o gato é um predador para os pássaros; a memória é

entendida como um armazém que cataloga as experiências associadas estas intenções

das espécies sensíveis. Deste modo cabe ao sentido interno da faculdade estimativa

definir algo como nocivo ou conveniente, no caso dos animais.

12 ST, Iº, q.78, a.4.

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Os seres humanos e os animais se assemelham no modo de operar dos sentidos

externos. Porém, alguns dos sentidos internos funcionam de modo distinto no homem

que é constituído como se segue: sentido comum é o princípio comum ou a raiz dos

sentidos externos, é a parte sensitiva da alma, cabe a esta faculdade da alma discernir

todas as apreensões dos sentidos, Tomás ainda faz uma breve distinção entre sentido

comum e sentido próprio que são os sentidos tomados particularmente como quando os

objetos exercem ações sobre os nossos sentidos externos isto pode ocorrer sobre um dos

órgãos do sentido a isto ele chama de sentido próprio; por exemplo, quando ouvimos

algum som, algo do mundo sensível está realizando uma ação sobre um dos nossos

órgãos dos sentidos neste caso o ouvido. O outro sentido interno é a imaginação assim

como nos animais é a faculdade responsável por reter e conservar uma espécie sensível,

no entanto no ser humano atribui-se ainda a capacidade de fazer composições e divisões

com as espécies sensíveis recebidas, cogitativo executa a função que a faculdade

estimativa realiza nos outros animais, contudo no homem a faculdade cogitativa percebe

as intenções através de um ato comparativo por causa da racionalidade humana, esta

racionalidade da faculdade cogitativa no entanto é capaz de conhecer os particulares, já

que tais comparações são de experiências sensíveis, tal faculdade é distinta da razão

intelectiva que conhece os universais, enquanto que no animal acontece por mero

instinto natural, a memória além de armazenar as experiências associadas às intenções

das espécies sensíveis possui também a virtude da reminiscência, que é a capacidade de

indagar a própria memória, segundo as espécies intencionais.

O 2º modo de apreensão, não tem uma conexão com nenhum órgão sensível

como o primeiro modo, este é o intelecto angélico, é um intelecto que existe separado

da matéria e pode acessar as essências diretamente, pois existe de modo semelhante a

elas, ou seja, imaterialmente. Tomás justifica este modo de apreender dizendo que a

nossa potência cognoscitiva, ou seja, a nossa capacidade de conhecer as coisas em um

primeiro momento tem relação direta com o nosso modo de existir no estado de vida

atual em relação à apreensão, podemos compreender, portanto que o modo imaterial de

existir dos anjos só os permite conhecer inicialmente as coisas tomadas num aspecto

imaterial, pelo fato de não possuírem um corpo e, portanto, órgãos sensíveis para

apreender as coisas do mundo sensível, deste modo os anjos conhecem as coisas

materiais de modo indireto, através de uma comparação com as substâncias imateriais.

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O 3º modo de apreensão é o intelecto humano, apesar de possuir a potência

intelectiva, a alma humana intelige em grau distinto do ato intelectivo dos anjos, pois a

alma humana faz parte de uma espécie que inclui o composto de alma e corpo, e o ato

intelectivo da alma humana depende do corpo, enquanto que o anjo existe como

substância simples e não depende de nenhum corpo. A alma humana é constituída desta

parte que lhe dá a capacidade de apreensão das coisas, Tomás diz ainda que o intelecto é

a forma do corpo humano13, justificando que as naturezas das coisas se revelam pelo

modo como elas operam assim, Aquino apresenta ainda o intelecto como possuindo

duas virtudes uma agente e outra passiva14, esta divisão de virtudes ocorre pelo fato da

operação intelectual se dar sobre o universal, ou seja, o intelecto humano só realiza a

sua potencialidade na medida em que conhece o universal, dessa maneira ele entra em

ato. Enquanto não está se relacionando com o universal, o intelecto se encontra apenas

em potência para exercer a atividade que lhe é própria, assim ele não conhece nada

ainda, a conclusão disto é que o intelecto é uma capacidade passiva em relação ao

universal, ficando apenas a disposição para conhecer apenas quando o universal se

apresentar a ele. Todavia Aquino argumenta que é fato que nós conhecemos as coisas,

porém devido a nossa constituição hilemórfica, o objeto de nosso conhecimento existe

de modo hilemórfico, assim o objeto do nosso intelecto está unido ao corpo, portanto, se

faz necessário uma ação do intelecto que extraia o princípio formal do fantasma da

coisa apreendida, assim entregando a species inteligível para o intelecto possível. Como

nada age senão na medida em que já se encontra em ato, é necessário admitir um

intelecto agente. A afirmação de que a atividade do intelecto humano é conhecer a

essências que estão unidas aos corpos, nos traz consequências como a contraposição

entre o que é o objeto de conhecimento do intelecto que é o universal e aquilo que nós

apreendemos que é o singular.

Contudo tal afirmação nos introduz a uma concepção hilemórfica do modo de

existência do ser humano, ou seja, um composto de forma (alma humana) e matéria

(corpo). A teoria do hilemorfismo é uma tentativa de explicar o devir material das

coisas, onde a forma é aquilo que determina o que alguma coisa é, a forma pode ser

ainda: substancial de modo a determinar a natureza da coisa ou pode ser acidental

determinando a qualidade ou modo da coisa. Partindo do princípio de que nada age

13 ST, Iº, q.76, a.1. 14 ST, Iº, q.79, a.2 e a.3.

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senão na medida em que está em ato, a forma é sempre forma de alguma matéria, assim

como a alma é alma de algum corpo. Sendo a forma concebida como aquilo que

determina o ser da coisa, em uma relação com a matéria como no caso das substâncias

compostas, a forma determina o modo de existir da matéria que está em potência. Se a

matéria é determinada pela forma, ela deve ser entendida como uma coisa que é em si

mesma indeterminada, em potência ela pode ser tudo, até ser determinada por alguma

forma que está sempre em ato. A forma não existe sem a matéria, nem esta última sem

aquela anterior. O princípio formal só possui realidade unida ao princípio material.

Aquino aponta que o objeto próprio do intelecto humano está unido ao corpo15, tal

objeto como foi apontado anteriormente é a quididade que existe na matéria corporal,

estas naturezas existem unidas aos indivíduos.

Pois, na medida em que a matéria é o princípio de individuação se a natureza

existe na matéria, passa a existir concretamente, ou seja, individualmente. Assim o

nosso intelecto não pode acessar diretamente a forma essencial das coisas, pois o modo

de existir (forma/matéria) de tais essências que são objetos de nosso intelecto humano

nos impede de acessar as partes imateriais das coisas do mundo externo diretamente,

assim as essências de tais coisas se realizam mediante a matéria e, portanto aquilo que é

material só pode ser conhecido diretamente por algo que seja capaz de ser afetado pelas

qualidades sensíveis das coisas e esta condição é própria dos sentidos que como vimos

se realizam através dos órgãos sensíveis. O modo de apreensão humano

(imaterial/material) aparece então como intermediário entre o modo de conhecer dos

anjos (inteiramente imaterial) e dos animais (inteiramente material).

Precisa-se destacar este modo de apreensão do ser humano, pois foi amplamente

discutido por Tomás com seus contemporâneos, na questão 84 e mais especificamente

nos artigos 1, 3, 4,6 e 7, nos quais ele se dedica a refutar os argumentos dos pensadores

antigos como Heráclito e Demócrito, além da filosofia neoplatônica de sua época, que

tentavam demonstrar a impossibilidade de conhecer os corpos, ou ainda a inutilidade do

corpo para o conhecimento.

O argumento da impossibilidade de conhecer os corpos aparece no primeiro

artigo da questão acima referida, Tomás entende os pensadores originários como

filósofos que compreendiam o mundo em uma perspectiva exclusivamente física,

15 ST. Iº, q.84, a.7.

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corpórea e buscavam apreender a essência das coisas no mundo a partir dos corpos.

Provavelmente este modo de interpretar lhe ocorre devido o acesso que teve ao

pensamento destes, baseado nos escritos de Aristóteles que os chamou de físicos. O

argumento que Tomás apresenta no mesmo artigo se refere ao modo como Heráclito diz

que a physis se apresenta, tal palavra é comumente traduzida por natureza, (contudo não

entraremos no mérito da discussão sobre a tradução do termo), o que nos interessa aqui

é a compreensão do argumento com o qual Aquino se depara no que diz respeito à

possibilidade do ser humano conhecer os corpos. O argumento é de que na investigação

acerca a natureza das coisas corpóreas, o que se percebe é uma mudança constante nos

corpos como pode ser bem entendido em um dos famosos fragmentos atribuídos a

Heráclito: “Descemos e não descemos nos mesmos rios, somos e não somos”16. O

contínuo movimento e mutação dos corpos nos impedem de conhecê-los tal como se

encontram atualmente, pois quando apreendêssemos algo dos corpos, já não haveria

correspondência, entre o que apreendemos e a coisa, pois o corpo já teria sofrido

modificações.

O segundo argumento que é o dos neoplatônicos, baseia-se na divisão do mundo

entre sensível e inteligível. Platão tenta solucionar o dilema que as resposta do

imobilismo do ser de Parmênides e o constante movimento dos corpos de Heráclito,

desta maneira, Platão teria entendido que a divisão de dois mundos, a saber, mundo

sensível e mundo inteligível, possibilitariam uma convergência destas duas filosofias,

podemos entender o mundo inteligível platônico que também é chamado de mundo das

ideias, das formas perfeitas, imutáveis, necessárias, universais, como correspondente ao

ser imóvel de Parmênides. O mundo sensível, onde tudo é material, particular,

contingente, mutável, podemos relacionar a constante mudança proposta por Heráclito.

O mundo das ideias é apresentado como um mundo separado do mundo sensível,

contudo é a origem, fundamento, modelo e condição de possibilidade da existência do

mundo sensível, este modo de pensar nos impõe uma base estrutural da realidade, isto

termina por implicar sobre o modo do ser humano inteligir a realidade para Platão,

assim os objetos do pensamento humano têm graus de ser, o intelecto pensa sempre as

formas das coisas, tais formas são universais, imutáveis e necessárias. Então para Platão

o intelecto não conhece os seres corpóreos, mas as formas separadas.

16 Tradução de Gerd Bonheim do livro. Os Pré-socráticos.

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Ao longo da questão 84, três tipos de argumentos platônicos aparecem na

discussão: o primeiro é que nós somos capazes de inteligir as formas separadas pelo fato

do nosso intelecto participar dos inteligíveis em ato, isto é, das formas sem matéria,

como as ideias nos advém de um mundo à parte onde estas formas reais estão separadas

dos corpos, o segundo decorre de que desse modo não extraímos nada dos corpos já que

o conhecimento é imaterial, assim o corpo torna-se inútil para o ato intelectivo, e o

último argumento é de que o intelecto não se utiliza de nenhum órgão corpóreo para

agir, como o que é sensível não pode modificar o que é imaterial, seguindo o princípio

de que o material não determina o que é imaterial, o intelecto não precisa dos sentidos

para conhecer.

Todavia, Tomás ainda aponta a necessidade do corpo para a realização do

intelecto como se segue:

Ora, parece sobretudo que o corpo é necessário à alma intelectiva

para a operação própria dela, que é o inteligir, pois, de acordo com o

seu ser, não depende do corpo. Se, porém, a alma, de acordo com sua

natureza, não fosse apta por nascença para receber as espécies

inteligíveis apenas por influência de certos princípios separados, e não

as recebesse dos sentidos, não teria precisão do corpo para inteligir.

Donde estaria unida ao corpo inutilmente.17

Ora, tal distinção ontológica da natureza do objeto de conhecimento do intelecto

humano (imaterial) e os órgãos do sentido (material), nos impõe certa dificuldade

quanto àquilo que nós podemos conhecer, já que o intelecto só conhece aquilo que é

imaterial e tal natureza imaterial pelo fato de existir unida a matéria corporal apenas nos

é acessível primariamente pelos órgãos sensíveis que apreendem apenas as coisas

materiais. Apesar do intelecto humano não fazer uso de nenhum órgão corporal para

executar sua atividade própria, ele depende de uma potência que faz uso dos órgãos

corporais, que é a faculdade imaginativa. Esta dificuldade exige que Aquino lapide sua

teoria do conhecimento introduzindo o conceito de “fantasma” que é uma representação

da coisa sensível, desta maneira a alma humana no estado presente de existência tem

acesso apenas àquilo que passou antes pela apreensão dos sentidos e do ato imaginativo,

portanto, abstraímos a forma sempre a partir da imagem que representa o singular, esta

forma é a essência da coisa, nosso intelecto conhece o que é imaterial (universal) a

partir daquilo que é material (singular), porém vimos que o intelecto humano não

17 ST Iº, q.84, a.4, Respondeo.

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abstrai diretamente a partir da coisa singular, mas da imagem sensível formada a partir

deste singular.

Conforme Tomás reforça:

Daí, para que o intelecto conheça em ato seu objeto próprio, é preciso que se

volte para as representações imaginárias a fim de considerar a natureza

universal existente no particular. – Se o objeto próprio de nosso intelecto

fosse uma forma separada; ou se as naturezas das coisas sensíveis

subsistissem não em coisas particulares, conforme os platônicos, não seria

necessário que nosso intelecto, ao conhecer, se voltasse sempre para as

representações imaginárias. (TOMAS, 2006, p.518).

Desta maneira é necessário ao intelecto que se volte para as representações

imaginárias, para conhecer a natureza das coisas sensíveis, que é o objeto próprio do

conhecimento do intelecto humano. Cabe dizer ainda que mesmo após a apreensão de

algum conceito já produzido e retido pelo intelecto possível, Tomás reforça que sempre

precisamos recorrer à representação imaginária para pensar algum conceito, tal

necessidade se da pelo fato de nosso objeto de conhecimento existir unido à matéria

corpórea.

1.2 Como se dá a produção do fantasma.

Apresentado de modo geral a discussão a respeito do processo abstrativo se dar

diretamente sobre a coisa ou sobre o fantasma produzido a partir da percepção da coisa,

entendemos que o conceito de fantasma aparece com um papel fundamental na teoria

abstrativa de Tomás. Analisaremos mais de perto agora qual é a concepção de fantasma,

como se dá a conversão das afecções sensíveis ao fantasma, qual a função que ela

exerce no processo abstrativo.

O fantasma é um modo de apreensão instantâneo do intelecto sobre as afecções

recebidas pelos sentidos. Segundo Tomás o ser humano não pode conhecer coisa

alguma sem recorrer aos fantasmas que pretendem representar às experiências sensíveis,

então a operação intelectiva depende simultaneamente dos sentidos como vimos na

seção anterior. Os fantasmas cumprem segundo Pasnau18 algumas funções fundamentais

para a formação do conhecimento humano, duas aparecem com destaques: 1- Fornecem

os elementos básicos que possibilitam a formação dos conceitos e 2- Fornecem os

18 (PASNAU, 2004, Part III. Phantasms, p.279).

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conteúdos atuais do pensamento. Assim a fonte natural de onde o intelecto obtém as

informações que precisa para conhecer as coisas são: Os fantasmas que são as

representações dos dados reunidos a partir da experiência sensível, são imagens

individuais que possuem certa semelhança com os corpos do mundo externo, são ainda

o resultado do modo como os corpos físicos afetaram os nossos órgãos dos sentidos.

Mas, o que é percebido pelos sentidos? As qualidades sensíveis das coisas. A afecção

recebida pelos sentidos das qualidades sensíveis ocorre uma ação das coisas sensíveis

sobre os nossos sentidos, o nosso intelecto se relaciona com o fantasma das coisas

sensíveis produzida pela faculdade da imaginação de duas formas conforme se segue.

Pelo fato de nossa investigação se dar sobre o ato abstrativo, nos remeteremos a

esta relação mais vezes do intelecto agente com a imaginação, como Tomás expressa

em ST Iº q.85 a.1 “o nosso intelecto abstrai as espécies inteligíveis dos fantasmas”.

Nesta relação a imaginação apresenta, ao intelecto agente uma representação da coisa

sensível, e este abstrai a espécie inteligível de tal representação, após isso o intelecto

agente para concretizar o processo de conhecimento, apresenta tal espécie no intelecto

possível e este ao ser enformado produz o conceito como resultado deste processo. A

outra relação é a do intelecto possível com a imaginação denominada por Tomás na ST

Iº q.84 a.7 “Daí para que o intelecto conheça em ato seu objeto próprio, é preciso que se

volte para as representações imaginárias a fim de considerar a natureza universal

existente no particular”; tal ato é o denominado de conversão ao fantasma.

Após o processo inicial de conhecimento que é a relação abstrativa vista acima,

o intelecto agente obteve o objeto próprio do intelecto possível que é a natureza

universal, que existe na coisa, após isto o intelecto possível produz o conceito, a

conversão ao fantasma se dá no momento de atualização desse conceito, quando o

intelecto possível exige da imaginação uma imagem atual da coisa que se refere ao

conceito, para que agora possamos atualizar o conceito e aplica-lo aos particulares. A

necessidade de se recorrer à imagem se dá pelo fato do nosso objeto de conhecimento

ser a quididade da coisa sensível e existir unido à matéria corpórea, individual. Por

exemplo, se em nosso intelecto possível temos atualmente o conceito do animal gato, o

nosso intelecto exige da imaginação uma imagem de gato para nos auxiliar no

pensamento atual. Voltemos agora ao processo do fantasma, sendo o fantasma um

resultado, ele é a reunião do que os sentidos lhe transmitiram, não sendo, portanto,

apenas o próprio ato da sensação visual, mas ele é o resultado de uma complexa

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atividade desenvolvida, que compreende vários estágios que fazem a transição entre os

dados sensíveis.

Como visto os órgãos dos sentidos atualizam a atividade da potência sensitiva da

alma, Pasnau19 destaca que a capacidade sensitiva da alma possui para Tomás, duas

estruturas, que diz respeito aos: sentidos internos e os sentidos externos, como

apresentados na seção anterior. Os sentidos internos já se encontram em ato de alguma

maneira, já os sentidos externos se encontram em potência em relação ao mundo

material, ou seja, eles são passivos e precisam sofrer uma ação dos objetos do mundo

externo para entrarem em ato. A parte externa dos sentidos é constituída basicamente

pelos nossos órgãos dos sentidos, esta parte dos sentidos recebe aquilo que Tomás

chama de espécie sensível ou a estrutura formal do objeto sensível. Apesar de captar a

matéria individual através dos sentidos externos tal species sensível que é uma

semelhança da coisa material que nos afetou é retida pelos sentidos internos ao modo de

semelhança da coisa sensível, pois é transformada numa imagem da coisa individual.

Os sentidos internos recebem estes dados percebidos pelos sentidos externos e

tem um papel bem definido como veremos a seguir, que é o de apresentar ao intelecto

uma representação da coisa sensível sobre a qual ele (o intelecto) poderá extrair a parte

species inteligível da coisa, isto é, a parte formal aquilo pelo qual o intelecto possível

pode conhecer. A estrutura dos sentidos internos está dividida em quatro faculdades

internas: o sentido comum, a imaginação, o poder cogitativo e memória. Estes sentidos

internos são necessários para que o intelecto humano possa acessar os dados sensíveis,

por que eles dão a capacidade ao ser humano de preservar as afecções sensíveis, dentre

os sentidos internos apresentados, três são as faculdades internas responsáveis por

preservar as afecções sensoriais: o sentido comum é responsável por recolher e preservar

inicialmente estas sensações, este sentido interno é como que um intermediário que

estabelece uma conexão entre os sentidos externos e internos, apresentando ainda a

conexão entre a sensação e o objeto que causou determinada sensação.

Tais dados são conduzidos para a segunda faculdade interna. A imaginação

(fantasma) que representa do modo mais semelhante possível o modo como os sentidos

foram afetados, é preciso destacar aqui, que apesar desta faculdade se chamar

imaginação ela não tem a mera função de transmitir imagens, mas representações de 19 (PASNAU, 2004, Part III. Phantasms, p.280).

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acordo com o órgão do sentido que foi afetado, então ao mesmo tempo em que ela

representa o cheiro percebido, também representa o som objeto do sentido auditivo e

assim sucessivamente. A terceira faculdade é a memória, esta preserva o que foi

apreendido pela faculdade do poder cogitativo uma espécie de razão particular, pois está

ligada a sensibilidade, o que foi preservado já carrega uma intenção, pois o poder

cogitativo distingue as sensações que nos foram afetadas como convenientes ou

inconvenientes, assim há uma descriminação ante a experiência a ser preservada na

memória e a sensação recebida, a conveniência de fugir ou de se aproximar dela.

Percebemos então que estas três faculdades o sentido comum, a imaginação e a

memória, tem como função a preservação das experiências sensíveis, contudo as

lembranças mais gerais se referem aos fantasmas produzidos pela imaginação, enquanto

que uma lembrança associada a alguma experiência particular passada se recorre à

memória. Portanto em Tomás as faculdades da memória e o poder cogitativo estão

conectados, já que o último discrimina as experiências como convenientes ou

inconvenientes.

Mas uma questão pode ser colocada, o que garante a semelhança dos fantasmas

com os objetos sensíveis? Como vimos o fantasma não é uma construção arbitrária, mas

que tem seu fundamento na coisa sensível e nos dados recolhidos de cada um dos

sentidos. Mas como abordamos anteriormente a relação entre o intelecto possível e a

imaginação podemos levantar uma questão no que diz respeito à conversão. Como

Tomás apresenta na ST Iº q.85 a.2 res.3, o intelecto possível tem a capacidade de

compor/dividir, podendo, portanto, produzir novos conceitos ainda que estes não

tenham sido apreendidos através da experiência sensível, formando então conceitos

fictícios e como vimos anteriormente, para pensar ou atualizar um conceito tal intelecto

solicita como apoio, em tal ação, uma imagem para representar tal conceito. Assim, a

imaginação executa, ainda que subordinada, neste caso, ao intelecto possível, outro

papel de composição/divisão de imagens, podendo produzir imagens diferentes das

coisas apreendidas através da experiência sensível. Contudo, esta operação nos permite

que sejamos capazes de formar imagens nunca vistas na realidade20, como um elefante

rosa, por exemplo, ou um centauro. Ora, sendo a imaginação esta faculdade capaz, neste

caso, de subordinação ao intelecto possível, de produzir imagens nunca vistas na

20 ST Iº, q.85, a.2 ad.3

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realidade, ela não poderia nos conduzir a experiências ilusórias? Para Tomás a

imaginação não desempenha o papel de produzir experiências sensíveis, distante disso

ela é apenas uma maneira que a alma humana utiliza para organizar e armazenar o modo

como os objetos sensíveis afetaram a nossa sensibilidade, assim a imaginação não é um

sentido de percepção. Todavia, segundo Pasnau comenta, Aquino em algum momento

se remete a um princípio sensível (sentido comum) da alma21 no seu livro Sentença

sobre a Alma III, lec. 3, que pode produzir tais experiências, denominado sentido

comum. Tal princípio pode produzir experiências sensíveis ilusórias, já que todas as

afecções sensitivas podem ocorrer através da mudança do nosso estado físico. Por

exemplo, quando estamos acordados e plenamente conscientes, conduzimos

espontaneamente as informações (espécies) apreendidas e preservadas internamente, ou

seja, uma lembrança. Obtemos nesse caso a lembrança diretamente dos tesouros

(sentidos internos) isto é, da imaginação e da memória, e tal princípio sensível produz

as experiências sensíveis ilusórias com base nestas experiências anteriores.

Somente após este movimento de passagem do que foi armazenado pela

imaginação e pela memória para o sentido comum (parte da alma que possibilita as

sensações) é que se torna possível a produção ilusória de alguma coisa. Ou ainda em um

estado de doença em que o sujeito perceba as coisas de modo confuso, aí com base no

que a imaginação recolhe dos sentidos ela irá produzir ilusões, não propriamente a

experiência falsa, já que a produção do fantasma ocorre somente após a experiência

sensível, porém ela fornece tal representação falsa para o sentido comum e este

reproduz a experiência. Mas, Tomás reforça ainda que em um estado saudável não

ocorrerá tais situações.

Após verificar as operações realizadas pelos sentidos internos e externos,

notamos que os nossos órgãos dos sentidos são passivos em relação às ações dos objetos

do mundo externo, que captam a espécie sensível da coisa, neste momento a apreensão

da coisa é tomada num aspecto material e individual este é o primeiro estágio da

apreensão humana. Depois que os sentidos são afetados pelos objetos sensíveis o

sentido comum conduz os dados recolhidos dos sentidos até a imaginação que recebe

tais sensações, reúne todos os dados numa representação (fantasma) que é semelhante à

coisa sensível e produz uma imagem da coisa, que ao contrário dos órgãos dos sentidos,

21 (PASNAU, 2004, Part III. Phantasms, p.282).

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esta faculdade sensível interna, representa a apreensão como uma substância composta,

portanto, o fantasma compreende tanto a forma quanto à matéria neste fantasma à coisa

é tomada no mesmo grau tanto forma quanto matéria. Portanto, a imaginação não é um

sentido interno totalmente passivo, mas tem uma capacidade ativa na formação de

imagens.

Pasnau entende que no processo de apreensão tal ato ocorre em diferentes graus,

os sentidos22, por exemplo, apreendem mais o aspecto material do que a forma da coisa,

na direção contrária, o intelecto apreende mais a parte formal do que a parte material da

coisa. O fantasma preserva os aspectos materiais, contudo sem dar tanta ênfase a esta

parte da coisa apreendida, como fazem os órgãos sensíveis, porém elas preservam

também em potência a essência da coisa que ela representa, sendo, portanto, algo que é

potencialmente cognoscível ao intelecto. De modo que o fantasma ao não dar destaque

nem a forma nem a matéria 23 , mantém as características de ambos ‘equilibradas’

enquanto substâncias compostas (forma/matéria), permanecendo sua constituição

hilemórfica. Após a formação do fantasma este é apresentado ao nosso intelecto agente,

porém, como vimos o fantasma preserva ainda os aspectos formais e materiais em graus

parelhos, de modo que o intelecto possível não tem acesso direto ao objeto que lhe é

próprio, ou seja, a essência das coisas. É preciso então que o intelecto agente abstraia a

natureza24 a partir do fantasma, esta estrutura da forma apreendida a partir do fantasma

é o que Tomás chama de espécie inteligível. Nesta operação inverte a prioridade que foi

dada nos sentidos, agora a forma é apreendida em um grau mais forte do que a matéria,

depois que o intelecto agente abstrai a forma do fantasma ele imprime tal natureza no

intelecto possível, que existe como uma tábula rasa, onde não traz nada escrito, assim o

intelecto possível que recebe aquilo que estava apenas em potência no fantasma, à sua

inteligibilidade e isto possibilita uma mudança de estado do intelecto possível à

passagem da potência para o ato, pois agora tem o objeto que lhe é próprio a disposição.

Contudo, Aquino não apresenta este tipo de distinção de graus na apreensão

humana do modo como Pasnau entende, todavia segue o princípio: “o recebido está no

recipiente ao modo do recipiente”. Portanto, parece que não há um jogo de menor ou

maior, materialidade ou imaterialidade, antes Tomás diz explicitamente:

22 PASNAU, 2004, Part III. Phantasms, p.283 23 WHITE, A. L. The Picture Theory of the Phantasm. Tópicos 29 (2005), p.132-133.

24 Essa essência é o que permite a universalidade.

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E, semelhantemente, o intelecto recebe, ao seu modo, imaterial e

imovelmente, as espécies móveis e materiais dos corpos; pois o

recebido está no recipiente ao modo deste. Logo, deve-se concluir que

a alma, pelo intelecto, conhece os corpos por um conhecimento

imaterial, universal e necessário. (TOMÁS, 2006, p. 83).

O fato é que a composição hilemórfica se apresenta ao sujeito que conhece,

porém cada parte do composto que é o ser humano que é capaz de apreender as coisas

que lhe aparecem, recebe aquilo que lhe concerne, o intelecto que é a parte formal

humana capta os aspectos formais da coisa, enquanto que os sentidos captam as

qualidades sensíveis. Na apreensão dos sentidos não há um grau menor do aspecto

formal, o que se apresenta é o composto, todavia Aquino diz que os sentidos só podem

conhecer os aspectos materiais. O mesmo ocorre com o intelecto que só conhece aquilo

que é imaterial, a imaterialidade é a condição da inteligibilidade25 segundo Aquino e

mesmo quando há alguma consideração da matéria diante da espécie inteligível, tal

matéria é abstrata, pois se trata de uma espécie imaterial e, portanto universal.

Podemos concluir então, que o intelecto apreende a coisa de modo distinto a

maneira como esta coisa existe na realidade 26 . Porém, vimos que o ato abstrativo

exercido pelo intelecto agente é necessário e o responsável pela realização do

conhecimento, ele transforma o que foi apreendido pelos sentidos, que era apenas

potencialmente inteligível para o intelecto, e após se debruçar sobre o fantasma e

abstrair a forma desta representação, transforma o que foi apreendido pelos sentidos em

algo atualmente inteligível. Parte do intelecto, a parte denominada intelecto possível,

que após o ato acima passa a produzir os conceitos, os conceitos são o modo da mente

expressar o que diz respeito à essência.

A faculdade imaginativa como nós vimos possui uma segunda operação, a de

apresentar a representação sensível para as outras faculdades, entre elas, o fantasma tem

como função apresentar imagens para o nosso intelecto. Em uma descrição operacional

a faculdade da imaginação (fantasma) imprime a representação construída a partir dos

dados sensíveis recebidos pelos órgãos para duas faculdades da alma, a saber: a razão e

o sentido comum. Façamos uma breve retomada das capacidades do fantasma, o que ele

é e a importância do seu papel mediador.

25 ST. Iº, q.84, a.2. 26 “O recebido está no recipiente ao modo do recipiente”.

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Os fantasmas são os dados recolhidos de cada um dos sentidos, como vimos ele

desempenha três atividades: organizar as informações que recebemos pelos sentidos,

representar de modo semelhante à coisa sensível e apresentar o fantasma ao intelecto

agente. Por que é necessário um intermediador entre o intelecto e os sentidos?

O sentido e a imaginação são os responsáveis pela apreensão das

coisas no particular, única maneira de o intelecto se deter sobre a qüididade

delas que é o seu objeto próprio de conhecimento. (TOMÁS, 2006, p.119) 27.

Aqui Tomás apresenta novamente a distinção de objetos que são apreendidos

entre o corpo (sentidos) e a alma (intelecto). Em outro momento ele reforça esta ideia

dizendo: “O intelecto diz respeito ao necessário e que se apresenta sempre do mesmo

modo. Ora, os corpos são mutáveis e não se apresentam sempre do mesmo modo.

Portanto, a alma não pode conhecer os corpos pelo intelecto.” (TOMÁS, 2006, p.77)28.

Assim percebemos que o corpo e o intelecto conhecem apenas coisas de naturezas

semelhantes a sua. O intelecto está em um extremo de apreensão: o ser inteligível29

portanto o intelecto apreende sempre de modo imaterial, universal, necessário, enquanto

que os objetos sensíveis tem um ser material, singular, contingente. Então se faz

necessária uma atividade que reúna aquilo que foi obtido pelos sentidos e apresente ao

intelecto de uma maneira que ele possa ter acesso, é preciso que a faculdade imaginativa

pegue estes dados sensíveis e os transforme numa imagem da coisa sensível (Forma da

coisa sensível), isto é entregue a imagem de um singular enquanto espécie sensível, ou

seja, apresente ao intelecto o singular de modo imaterial, para intermediar estas duas

naturezas, já que o fantasma não se apresenta num grau de materialidade tão forte

quanto os sentidos. Carlos Arthur Nascimento ainda fala sobre o fantasma como

intermediador:

(...) é o indivíduo humano quem por seu intelecto ativo e recipiente, não por

que se confronte com um intelecto transcendente ou se volte para ele, mas

por que se confronta com as imagens ou fantasias que os sentidos lhe

proporcionam. O acesso às realidades imateriais transcendentes tem de

passar necessariamente pelo trato com o mundo material; (...)

(NASCIMENTO, 2006, p.39)30.

27 ST Iº, q.84, a.7, Respondeo.

28ST Iº, q.84, a.1,arg. ini. 3.

29ST Iº, q.84, a.8, Respondeo. “ (...) o objeto próprio a nosso intelecto é a natureza da coisa sensível.” 30 Introdução: As questões da primeira parte da suma de teologia de Tomás de Aquino sobre o intelecto

humano.

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Este processo demonstra o porquê o intelecto não pode fazer um

julgamento perfeito se não for se debruçando o fantasma formado a partir das afeções

sensíveis, assim o ponto de partida para o julgamento do intelecto são sempre os

fantasmas.

Na Suma, Aquino ainda diz que o intelecto ficaria impedido de inteligir em caso

de deficiência de algum sentido31, censurando Platão, já que na teoria das ideias os

sentidos não são necessários para que se realize o ato intelectivo e alguém que não

possuísse a capacidade de ver não ficaria impedido de conhecer a qualidade sensível da

cor por exemplo.

Como vimos há uma clara oposição entre o conhecimento sensível e inteligível

na teoria do conhecimento de Tomás. A quididade da coisa sensível que é o objeto

próprio do intelecto humano existe unida a matéria corporal, ou seja, existe como

particular, vimos também que o intelecto por ser imaterial não pode conhecer

diretamente as coisas materiais e nem mesmo pode ser modificado por ela, pois aquilo

que é material não pode modificar o imaterial. Assim, recebemos as coisas materiais ao

modo de species sensível, ou seja, como semelhança da coisa material, vimos como tais

dados recolhidos das afecções sensíveis são transformados num fantasma pelo sentido

interno da imaginação, contudo por estar ligado aos sentidos este fantasma representa

algo particular, pois conserva os princípios individuais, assim permanece o composto de

forma e matéria assinalada. Se o nosso intelecto não é capaz de inteligir a forma que

existe atualmente na matéria que é o seu objeto próprio de conhecimento, então o que

nós inteligimos atualmente? Há um princípio na teoria hilemórfica que diz; o que está

em potência, no nosso caso o intelecto possível, só pode ser atualizado por algo que está

em ato atualmente na realidade, a saber, a forma inteligível da coisa. Assim como os

objetos sensíveis que estão em ato ao afetarem os nossos sentidos fazem com que

nossos sentidos passem da potência para o ato. Tomás apresenta de modo semelhante

como é possível que o intelecto humano conheça as coisas sensíveis apesar de sua

imaterialidade, desse modo para resolver tal problema se faz necessário que um

intelecto agente, ou seja, um intelecto que esteja em ato e atualize, ou torne inteligível a

forma do fantasma que lhe foi apresentado pela imaginação. O modo pelo qual o

intelecto agente atualiza tal forma é através do ato abstrativo, este faz com que

31 ST Iº, q.84 a.8.

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tenhamos acesso à natureza das coisas sensíveis. A abstração dessa natureza ocorre

sempre deixando de lado às condições materiais, e inteligindo a natureza universal da

coisa denominada por ele de species inteligível. Tomás diz ainda que o intelecto é capaz

de conhecer os objetos, portanto o intelecto tem uma função ativa na compreensão dos

objetos, abstrai da matéria que é o princípio de individuação e considera apenas a

species inteligível. Após tal ato o intelecto agente apresenta a species inteligível ao

intelecto possível e este entra em ato, a partir desta species então o intelecto possível

produzirá o conceito, concretizando o processo de conhecimento do universal. Então a

abstração tem o papel de tornar inteligível ao intelecto possível à forma presente na

coisa individual. Já vimos no capítulo anterior o porquê as formas que existem

atualmente na matéria não são inteligíveis, por que tais formas existentes na matéria são

particulares, assim como o intelecto conhece apenas coisas universais, os particulares

são inteligíveis apenas em potência. Agora vejamos qual é o processo abstrativo? E

quais são os tipos de abstração proposto por Tomás?

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CAPÍTULO II

Teoria da Abstração.

No presente capítulo iremos tomar como norte a obra do Comentário ao Tratado

da Trindade de Boécio Questão 5 Artigo 3, no qual Tomás de Aquino apresenta de

maneira mais elaborada dois tipos de abstração; a abstração do todo a partir do

particular e a abstração da forma acidental da quantidade, em contraposição a outro ato

mental que é o da separação. Ainda em nível de complementação utilizaremos mais

precisamente o segundo capítulo da obra O ente e a essência para apresentar outro tipo

de abstração denominada precisiva, que Aquino apresenta nesta obra como uma

abstração complementar a abstração do todo. O ente e a essência também serão

utilizados para compreender a articulação conceitual de Tomás ao fazer a distinção entre

matéria assinalada e matéria não assinalada, procurando solucionar o tipo de matéria

que faz parte da definição das espécies. Deteremos-nos particularmente aos tipos de

abstrações apresentadas por Aquino em sua obra (do que ao ato da separação), por

entender que o ato abstrativo é fundamental na articulação que pretende responder a

problemática que conduz nossa investigação que pode ser explicitada a partir da

seguinte questão: vimos o fantasma representa coisas particulares, de que modo então

chegamos aos conceitos universais a partir de uma imagem particular?

O artigo 3 da questão mencionada acima, de modo geral trata de uma exposição

que Boécio faz da divisão das ciências feitas por Aristóteles, são apresentadas três

ciências especulativas e os respectivos métodos apropriados de se raciocinar em cada

uma delas, as três ciências abordadas são: a física, a matemática e a metafísica. Vejamos

como Boécio define cada uma destas ciências e quais são os tipos de raciocínios

próprios de cada ciência para somente depois apresentaremos a classificação apontada

por Tomás em seu comentário, destacando os dois tipos de abstração que ele atribui a

cada ciência, além de apresentar a abstração precisiva, que apesar de não aparecer no

comentário, aparece como complementar à abstração do todo universal na obra do O

ente e a essência.

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Boécio define as três ciências da seguinte maneira: A física é a ciência que

estuda os seres em movimento não separados dos corpos, nesta ciência o raciocínio

empregado é o da abstração da matéria singular. A matemática é definida como a

ciência que estuda a forma que está unida aos corpos em movimento, mas sem

considerar a matéria, o raciocínio empregado nesta ciência é a abstração da matéria

sensível, não apenas a individual, mas toda matéria sensível. A metafísica é a ciência

que estuda os seres que existem independentes da matéria, assim não comporta nem

matéria nem movimento. Nesta ciência a desconsideração é ainda mais radical, não se

abstrai apenas da matéria sensível, mas de toda matéria. Com tais definições podemos

perceber que há uma hierarquia do grau de abstração da matéria em cada ciência. As

formas abordadas nas ciências da física e da matemática não podem existir sem estar

unidas a matérias, contudo podem ser pensadas sem a matéria sensível, no caso da

matemática e sem a matéria individual, no caso ciência da física. A diferença entre tais

ciências também parece ocorrer por certa independência das formas em relação à

matéria, exigindo um grau de abstração maior.

No terceiro artigo do comentário a questão 5 do Comentário ao Tratado da

Trindade de Boécio32, Tomás se dedica mais especificamente ao modo de proceder da

ciência da matemática. A matemática se debruça sobre certas formas que existem unidas

a matéria, porém considera tais formas sem considerar suas respectivas matérias

sensíveis através da qual se realiza, tal desconsideração ocorre no ato abstrativo. O

intelecto opera de dois modos, conforme aparece na ST I Q.85, a.1, o primeiro modo é a

apreensão dos indivisíveis que consiste em conhecer cada coisa pelo que ela é, ou seja,

conhecer o ser da coisa. O segundo modo de operar é o ato da composição e divisão,

este diz respeito aos enunciados afirmativos e negativos. Cada uma das operações diz

respeito a dois princípios: um é a natureza de cada coisa que determina o grau de ser, as

coisas existem como todos, partes e acidentes. A segunda operação, a saber, a separação

apenas consegue distinguir uma coisa da outra, compreendendo que um não está no

outro, através de um julgamento negativo, ao verificar que eles existem separados na

realidade e suas mútuas existências independem uma da outra, como por exemplo, carro

e vaca, afirmaria dizendo que carro não é vaca. A verdade é definida como uma

conformidade entre o intelecto e a coisa, na segunda operação o intelecto não pode

abstrair a verdade da coisa, por que a segunda operação ao se debruçar sobre uma coisa

32 Tal obra de agora em diante será referida como De Trinitate.

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consideraria como se existissem separadas na realidade coisas que existem unidas, como

por exemplo, ao separar homem e branco, estaria dizendo que o homem não é branco e

isto resultaria em uma falsidade, no caso em que tal qualidade existir unida ao homem

em questão.

A primeira operação do intelecto que é a abstração deve respeitar uma regra

geral segundo o que Tomás diz no De Trinitate:

Ora, a forma que pode ser abstraída de alguma matéria é aquela cuja noção de

essência não depende de tal matéria; mas, a forma não pode ser abstraída pelo

intelecto daquela matéria da qual depende de acordo com a noção de sua

essência; donde, como todos os acidentes se acrescentam à substância-sujeito

como a forma à matéria e a noção de qualquer acidente depende da

substância, é impossível que alguma forma deste tipo seja separada da

substância. (TOMÁS, 1998, p.120,121)

Portanto percebemos que a regra consiste que, existem algumas coisas que para

serem pensadas dependem da intelecção de outras coisas, temos o seguinte exemplo;

uma parte para ser inteligida depende da noção de todo. Então para compreender aquilo

que seja parte, é necessário ter a noção do que é todo, pois toda parte por definição é

parte de um todo, há uma relação de dependência entre coisas desta ordem, podemos,

portanto considerar o todo sem considerar a partes, assim como posso considerar

número sem considerar a parte 2, porém não podemos considerar o 2 sem considerar a

noção de número, já que é intrínseco ao 2 a noção de número. Tomás faz ainda uma

distinção acerca da noção de parte; existem dois tipos de parte, parte acidental e a parte

essencial. O todo pode ser abstraído da parte acidental, contudo as partes essenciais

constituem a definição daquilo que é o todo, de modo que o todo não pode ser abstraído

de nenhuma parte essencial. Não se pode, por exemplo, abstrair o homem de sua

racionalidade, pois esta faz parte da definição de homem. Vejamos agora qual o

processo geral da abstração e em seguida quais são os tipos de abstração propostos por

Tomás.

Mas, como nós apreendemos então a essência das coisas? Já que estas nos são

acessíveis sempre através da sensibilidade e, como vimos nos capítulo anterior, o

intelecto não apreende as coisas materiais. Este é um modo de se colocar o problema

que Tomás tenta resolver em sua teoria do conhecimento com o ato abstrativo.

Como visto, o intelecto tem acesso à realidade através do fantasma que é a

representação da coisa sensível, contudo o fantasma conserva os aspectos da coisa

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individual, o que impede o intelecto possível de inteligir atualmente a partir do

fantasma, já que o seu objeto de conhecimento são os universais. Assim o intelecto

agente recebe de modo imaterial aquilo que existe materialmente, sendo a matéria o que

torna possível a individualização o intelecto a desconsidera, apesar de receber a coisa de

modo diferente de como ela existe na realidade Tomás diz que não há falsidade no

modo como concebemos a coisa, pois a quididade da mesma permanece imutável33,

deste modo o intelecto conhece a quididade ao abstrair da matéria, chegando assim ao

conhecimento do universal. Outro motivo que impede o intelecto de inteligir atualmente

a partir do fantasma é que o intelecto não compartilha com o corpo sua operação.

Lembremo-nos do princípio: nada corporal pode criar algo incorporal, deste modo o

simples operar do intelecto não pode ter como causa as impressões sensíveis, se faz

necessário uma coisa superior e este é o intelecto agente, responsável por transformar os

fantasmas sensíveis em coisas inteligíveis (compreensíveis). O axioma estabelecido por

Tomás: “Nada corporal pode criar algo incorporal” torna impossível o conhecimento a

partir do fantasma, já que este é um produto da experiência sensível. Assim é preciso

transformar algo corpóreo em incorpóreo, o simples fantasma não é o suficiente, pois

conservam ainda os aspectos corporais, assim o intelecto agente parece exercer duas

atividades no processo de conhecimento abstrativo proposto por Tomás: a primeira é a

partir dos fantasmas sensíveis e individuais, ele chega a species inteligíveis e universais;

a segunda é abstrair as species incorpóreas a partir dos fantasmas, que conservam

aspectos corporais. Pasnau entende que tais atividades acabam evidenciando duas teses

apresentadas por Tomás no Comentário ao De Anima de Aristóteles, e apresenta em seu

artigo as duas teses: a primeira tese é a diferença entre o intelecto e a realidade que ele

tem acesso, a segunda é a impossibilidade da ação do corpóreo sobre o incorpóreo.

Portanto, como vimos, o conteúdo da representação que é o fantasma é transformado no

processo abstrativo, apenas na medida em que partindo da representação particular o

intelecto considera somente a natureza universal da espécie, deixando de lado os

princípios individualizantes. Por ser imaterial o intelecto agente consegue transformar

em uma coisa imaterial a coisa que é ligada as coisas materiais, apesar de já se

apresentar ao intelecto de modo imaterial, isto permite que o intelecto agente execute as

duas atividades que destacamos anteriormente. Portanto durante o processo abstrativo

33 ST I, q. 85, a.2

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transforma-se a representação particular em uma “representação” universal (species

inteligível).

Uma specie é inteligível na medida em que é representada por um conjunto de

propriedades imateriais compartilhadas por muitos, isto é, se for à reunião da

semelhança de algo que é compartilhado por muitos, se a specie pode ser representada

como imaterial então ela deve ser imaterial. Mas como o intelecto faz para considerar as

propriedades essências e deixar de lado as propriedades acidentais? Segundo Tomás o

intelecto agente vai diretamente à natureza comum das coisas, e se concentra sobre esta

natureza do objeto. A operação intelectual consiste na consideração de uma coisa

deixando de lado a outra. Abstrair o universal do particular é considerar a natureza da

espécie das coisas e deixar de lado os princípios individuais das mesmas. Assim parece

que o que é mais compartilhado entre os indivíduos também é o que é essencial, dessa

maneira o universal não seria uma mera criação mental, mas o universal é algo que

existe nos indivíduos concretos e que é potencialmente cognoscível para o intelecto no

estado atual da realidade e se torna atualmente cognoscível através do processo

abstrativo descrito acima.

Antes de apresentar os tipos de abstração faz-se importante para facilitar a

compreensão do texto distinguir de modo geral algumas noções de matéria apresentadas

por Tomás ao longo de suas obras. Dois tipos de matéria aparecem na filosofia tomista,

no Ente e Essência Tomás nos traz a noção de matéria sensível que é a matéria que se

refere aos entes corpóreos e mediante a qual se realizam as formas nos casos das

substâncias compostas, tal matéria é subdividida no capítulo dois da obra supracitada

em: matéria assinalada, esta matéria pode se resumir aos corpos físicos e, portanto

individuais, ela aparece como o resultado da união entre forma de uma espécie e a

matéria física, Tomás diz na mesma obra:

...Esta matéria, no entanto, não é posta na definição do homem na medida em

que é homem, mas seria posta na definição de Sócrates se Sócrates tivesse

definição. A matéria não assinalada é posta, no entanto, na definição de

homem. De fato não se põe esta carne e este osso, mas carne e osso de

maneira absoluta, os quais são a matéria não assinalada do homem.

(TOMÁS, 1995, p.20, grifos em negritos meu).

A outra matéria sensível que aparece é a não assinalada, como vimos na citação

acima ou matéria sensível comum, esta aparece como uma matéria sem dimensões

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determinadas na realidade, ela faz parte da definição da espécie, de modo que é uma

matéria abstrata.

No De Trinitate, porém, Aquino nos introduz a noção de matéria-prima

indeterminada que aparece como uma matéria que é ser em potência, tal matéria precisa

que uma forma que esteja em ato determine ela assim quando ainda sem uma forma que

a determine ela não possui qualidade alguma. É uma matéria absolutamente abstrata,

que ainda é nada. Só a forma atualizará esta matéria-prima (género) em matéria sensível

e inteligível (espécie). Esta continuará em potência para a formação do indivíduo,

substância individual.

Outro tipo de matéria que aparece é a matéria inteligível que se divide em duas:

matéria inteligível individual e comum. A individual é a forma que existe em um

indivíduo, unido ao corpo. Concebe-se tal matéria inteligível ao abstrair das qualidades

sensíveis encontrando-a no plano conceitual da espécie. Já a matéria inteligível comum

aparece como aquilo que torna possível as formas matemáticas. É uma matéria

totalmente abstrata, como por exemplo, tal matéria funciona como se fosse à superfície

do círculo. Aquilo que torna possível o círculo ser.

2.1 Abstrações do Todo (universal) e abstração precisiva.

Como vimos no capítulo anterior, para Aquino o objeto do intelecto são as

essências das coisas materiais, porém como todos os nossos objetos de conhecimento

advém pelos sentidos, precisamos abstrair tais essências a partir dos fantasmas. Com a

dificuldade do modo distinto de apreender às coisas, por terem naturezas diferentes, os

sentidos apreendem as species sensível e, portanto sempre particulares (material,

contingente e singular), e o intelecto apreende a species inteligível, (imaterial,

necessário e universal). Então precisamos agora distinguir as duas capacidades daquilo

que o intelecto pode alcançar em sua atividade, uma capacidade como vimos é a de

conhecer a essência das coisas e a outra de conhecer os universais a partir dos objetos

sensoriais, que é o ponto central do problema e objeto de investigação. O intelecto em

sua atividade apreende os universais a partir do fantasma de um objeto individual,

contudo ao invés de fixar sua atenção na essência individual (aqui estão incluídos os

acidentes, por exemplo; cor, matéria determinada) apreendida de um homem, o intelecto

é capaz através do ato abstrativo, de apreender aquilo que Tomás chama de natureza

humana, ou seja, uma natureza comum (semelhança), tal universal apreendido está

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presente em cada indivíduo e é compartilhado integralmente por todos os indivíduos.

Aquino diz ainda que o universal pode ser considerado de duas maneiras: como

natureza comum e de acordo consigo mesma34. O primeiro modo diz respeito à intenção

de universalidade, o segundo se refere ao modo como ela existe, tendo um duplo modo

de ser, singularizada na coisa material e universalizada no intelecto através do ato

abstrativo.

Torna-se importante demonstrar a diferença entre o ato de captar as quididades

das coisas e apreensão dos universais. O primeiro ato consiste em conhecer as essências

das coisas do mundo natural, esta é para Aquino a realização da função última do

intelecto35. Contudo, para Nascimento tal afirmação de que o objeto próprio do intelecto

são as naturezas (essências) das coisas do mundo natural (sensível) é problemática:

Um primeiro surge de sua comparação com outra afirmação não menos

clara e reiterada de Tomás de Aquino: a de que o ente se apresenta primeiro

na concepção do intelecto. Esta última afirmação é feita em um paralelismo

entre enunciados e conceitos. Assim como todos os enunciados supõem

estruturalmente ou na ordem lógica um primeiro enunciado, o princípio de

contradição, condição de possibilidade de todos os demais enunciados,

também todos os outros conceitos se reduzem a um primeiro – o ente. Sem o

qual, inclusive o primeiro enunciado é impossível, pois este supõe as noções

de ente e não ente, assim como o enunciado de que o todo é maior que as

partes supõem as noções de todo e de parte. (NASCIMENTO, 2006, pp.33-

34).

Tal afirmação sugere que aquilo com que o intelecto tem contato primeiro, é

também aquilo que é o seu objeto próprio, a essência. Pois, ele apenas pode inteligir,

aquilo que é inteligível. O segundo ato é o modo inevitável pelo qual o intelecto

conhece naturalmente as coisas (imaterial, necessário, universal) 36. Neste sentido o

intelecto é hierarquicamente superior aos sentidos em relação ao conhecimento das

coisas, pois o intelecto conhece sempre em uma esfera universal enquanto que os

sentidos apreendem as coisas sempre de modo singular. Contudo, Pasnau afirma que

para Tomás conhecemos primeiramente o universal e somente depois conhecemos os

menos universais, havendo ainda uma hierarquia dos intelectos existentes e da realidade

que estes podem conhecer37. O ser humano em sua condição finita para Aquino é aquele

34 Na tradução de um anexo do texto Sentença do livro sobre a alma, liv. II. Cap. XII. Pp. 115-116. Lins.

95-151, feita por Carlos A. Nascimento em sua: “Nota Sobre a questão dos universais em Tomás de

Aquino”. 35 Suma de Teologia Parte Iº, Q.84, a.8. 36 Suma de Teologia Parte Iº, Q. 85, a. 3.

37 PASNAU, 2004, Part III. Universals, p.320. Três são os intelectos existentes aqui considerados são: o

de Deus, o intelecto dos anjos e o humano.

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que dentre as criaturas que possuem intelecto, conseguem ter a compreensão mais

limitada da realidade, sendo incapaz de compreender o ser mais universal e que,

portanto existe no mais alto grau de realidade, a saber, Deus. Precisaríamos ser infinitos

para compreender totalmente ao Deus criador38.

Tomás se depara com a dificuldade de atingir essências universais a partir de

substâncias compostas (forma/matéria) já que o modo como estas substâncias se

apresentam ao intelecto humano, ocorre sempre através da sensibilidade e, portanto de

modo particular. Como chegar ao conceito de homem, se nós apenas temos acesso por

meio dos sentidos, a determinados homens (individuais)? O autor responde em O Ente e

a essência que a essência das substâncias compostas consiste na união entre forma e

matéria, no caso de entes particulares como, por exemplo: Platão, a essência deste

indivíduo consiste na união entre forma e matéria determinada. Quando falamos de um

nome que abrange um conjunto de indivíduos como a palavra homem, o intelecto

através de um processo abstrativo deixa de lado as matérias e formas individuais, das

quais ele tomou como ponto de partida e considera aquilo que há de comum nesses

indivíduos. Aquilo que há de comum entre os indivíduos é o que chamamos de

universal, passaremos a apresentar aquilo que Tomás chama de abstração do todo

(universal) a partir do particular. Uma substância composta é um todo composto de

partes: Forma e Matéria. Ou seja, estas duas partes que compõem o todo, devem fazer

parte de sua definição. A regra geral da abstração diz que só é possível abstrair o todo

das suas partes acidentais, pois estas não constituem a essência daquilo que é o todo.

Portanto, podemos deduzir que existem dois tipos de “parte”, uma que é acidental e a

outra essencial39. A palavra todo aparece com dois sentidos:

“Ora, pode ser assim conhecido tanto o todo universal, no qual as partes

estão contidas em potência, quanto o todo integral. Com efeito, ambos os

todos podem ser conhecidos numa certa confusão sem que as partes sejam

conhecidas distintamente.” (TOMÁS, 2006, ST Iº, Q. 85, a.3, p. 151).

Todo Universal é aquele que contém em potência suas partes, ou as contém de

modo indeterminado. Como por exemplo, temos o todo ser vivente e como partes

potenciais, os animais e as plantas. Podemos abstrair o conceito de ser vivente das

espécies animal e planta, pois a noção daquilo que é ser vivente não depende do

conceito de animal nem do conceito de planta. O todo integral por outro lado é um todo

38 PASNAU, 2004, Part III. Universals, p.321. 39 TOMÁS, De Trinitate, q.5, a.3, co.3,(ed. Bras., 1998, 121).

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constituído por partes intrínsecas, por exemplo, o caderno é um todo integral, e suas

partes integrais são suas páginas e capas, pois constituem aquilo que é o todo caderno,

ou seja, que não pode ser pensado sem estas partes, pois elas fazem parte da sua

definição.

Feitas tais distinções podemos retornar ao processo abstrativo, a abstração do

todo consiste no ato mental de considerar apenas os aspectos inteligíveis (formais) da

imagem sensível (fantasma) que se apresenta ao intelecto agente, deixando de lado os

princípios que individuam a coisa, a saber, a matéria determinada40. Cumpre ainda

dizer que Tomás apresenta dois sentidos de matéria sensível: determinada ou

assinalada e indeterminada ou não assinalada. A primeira é a matéria tal como ela

existe na realidade sensível de modo singular, a segunda é a matéria comum e abstrata,

esta é a matéria que é considerada na definição das espécies. Neste ato de abstrair o

universal do particular ocorre também a passagem do que era potencialmente inteligível

(imagem da coisa sensível) para o que é inteligível em ato no intelecto agente. Do

particular para o universal, do material para o inteligível. No De Trinitate, Aquino ainda

reforça “... estas partes [esta alma, este corpo] são certamente partes da essência de

Sócrates e de Platão, mas não são partes da essência de homem enquanto homem”.

(TOMÁS, 1998, p. 122). Os indivíduos são apenas partes materiais ou acidentais da

espécie que pertencem deste modo, às partes que são integrais (forma e matéria

assinalada) na constituição do indivíduo, essas são partes meramente acidentais em

relação ao todo que é a espécie. A abstração do todo é a consideração da coisa de modo

simples e absoluto (enquanto natureza comum), já a abstração da essência específica

(referente à espécie) de um singular sem considerar os princípios individuais. É possível

através de tal abstração chegar a conceitos cada vez mais gerais, a partir de conceitos

mais específicos. O universal abstraído é, portanto, indeterminado, indistinto, contendo

os indivíduos apenas em potência na definição da espécie. Assim como na definição da

espécie homem está contido em potência o indivíduo Sócrates. A relação entre a

essência de uma espécie e do individuo fica como se segue: ESPÉCIE: Forma e Matéria

indeterminada > INDIVÍDUO: Forma da espécie e matéria determinada.

Outro ponto que merece ser destacado é outro ato abstrativo apresentado por

Tomás no Ente e Essência. Ainda debruçado sobre a união entre forma e matéria que é

40 TOMÁS, O ente e a essência, cap.2. “... Por isso, cumpre saber que a matéria é princípio de

individuação, não tomada de qualquer maneira, mas apenas a matéria assinalada.” (ed. Bras., 1995, p.19).

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denominada pelo autor como um “todo” já que é uma substância composta de partes,

quando deste “todo” consideramos apenas, o aspecto formal de sua essência, tal ato

denomina-se abstração da “forma do todo”, nesta operação estamos excluindo do

conceito à propriedade da matéria individual e não deixando apenas ela indeterminada

como no processo intelectivo anterior, no exemplo de homem, o homem é uma

substância composta de alma (forma) e corpo (matéria), ao abstrair apenas a sua parte

formal, chegaria a sua humanidade uma parte do todo que é o homem. Esta é uma

abstração mais precisa, neste caso uma abstração da forma do todo (universal abstrato).

Segundo Raul Landim41 os conceitos são constituídos por dois tipos de componentes:

Precisivo- composto por dados abstratos, como os inteligíveis, Não precisivo- composto

por dados concretos, que incluem a matéria. No uso de termos abstratos há uma

exclusão completa da matéria assinalada. Tais termos como “humanidade” não podem

ser predicados dos indivíduos, pois eles pretendem se referir apenas aos princípios

formais das classes específicas.

O universal abstrato (espécie inteligível) compreende dois aspectos; a intenção

de universalidade e o conteúdo da essência, segundo Nascimento42 esta natureza que

reúne a semelhança dos indivíduos, quando pensada traz consigo uma característica de

universalidade. Porém, é a intenção de se referir a determinada propriedade inteligível

comum a diversos singulares, apreendida através do processo abstrativo, que dá tal

universalidade a natureza inteligida, e não o ser que foi apreendido pelo intelecto. A

universalidade é o que torna possível o ato predicativo, o predicado traz consigo a

universalidade como intenção, que é o conteúdo essencial. Ora a universalidade não é

atribuível aos singulares, mas apenas ao conteúdo quididativo e, este sim é atribuído ao

indivíduo. Mas por que a universalidade é a condição da predicação? Landim diz que

sendo o universal indeterminado, ele pode ser predicável de muitos43. Assim o universal

é obtido sempre por abstração, contudo não está excluída a possibilidade de receber

novas determinações (novos singulares), como o universal é um ente mental e

indeterminado, torna-se determinado quando é predicado de algo.

Sobre o processo predicativo iremos chegar à conclusão de que ele se direciona

para o caminho inverso, ou seja, vai do mais geral para o mais particular. O gênero é

41 Raul Landim, A questão dos universais segundo a teoria tomista da abstração. 2008, p.26. 42 Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. A querela dos universais revistada. 1983, p.50. 43 (LANDIM, 2008. p. 25).

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predicável da espécie, a espécie é predicável do indivíduo, o homem é predicável de

Sócrates. Estas determinações no processo intelectual aparecem conectadas numa leitura

decrescente, do universal > imagem sensível (fantasma), do fantasma > coisa singular

tal como existe na realidade. Deste modo no processo de predicação se fazem

necessárias duas etapas que tornam possíveis tal ato. A abstração é a primeira, já que

extrai de modo geral e indeterminado a essência das coisas. Tal essência da espécie é a

matéria prima da predicação. A segunda etapa é o próprio ato de Predicar, onde se

afirma o universal referente às coisas, tornando o universal que é abstrato numa coisa

concreta quando aponta para o singular. O movimento contrário das duas etapas é

notório, enquanto a abstração generaliza, o ato predicativo concretiza. Landim ainda diz

que se o universal pode ser predicado e se concretizar na coisa singular, isto nos mostra

que o conteúdo universal não exclui as propriedades dos particulares determinados, os

deixa apenas indeterminados44.

O universal é o resultado de uma operação mental que extrai a partir dos

indivíduos o que há de semelhante entre eles. Portanto, o universal é a intenção de se

referir a algo comum que se abstraiu dos singulares, de modo que a base do universal

são as coisas que existem concretamente.

Apresentado então o processo abstrativo pelo qual chegamos à concepção de

universal e o sentido predicativo que as palavras universais possuem, podemos

compreender o modo como o ser humano chega ao conhecimento das coisas neste

mundo para Tomás. Para compreender um objeto enquadramos o mesmo mentalmente

numa espécie que lhe corresponda, o fato é que conhecemos universalmente primeiro e,

portanto a natureza das espécies nos permite distinguir uma espécie da outra de modo

comparativo, por exemplo, quando comparamos o ser humano com os outros animais,

percebemos que pelo fato de possuir um intelecto, ele é capaz de conhecer e como

vimos o conhecimento é sempre conceitual (universal). Por outro lado os animais

limitados a conhecer pelos sentidos conhecem sempre de maneira pré-conceitual, pois

tem acesso apenas à matéria prima de todo conceito, a coisa particular. Tomás utiliza a

noção aristotélica de conhecimento para pensar o conhecimento universal como o mais

perfeito. O processo intelectivo para atingir algo universal, se inicia sempre a partir da

coisa particular45, há aí a implicação de que a apreensão dos singulares é anterior à

44 (LANDIM, 2008, p. 27). 45 TOMÁS, Suma de Teologia Iº, Q. 85, a.3.

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intelecção dos universais, porém segundo Pasnau 46 o intelecto conhece sempre o

universal primeiro e vamos então do mais geral para o mais particular, saindo da

ignorância para o conhecimento perfeito.

Partimos do conhecimento do universal que é confuso e impreciso, para

conhecer algo mais específico (particular), quando partimos do mais universal para o

menos universal temos uma ideia mais precisa, mais nítida, conhecer perfeitamente

então agora é entendido como conhecer os particulares, pois o conhecimento impreciso

dos universais nos permite fazer poucas distinções entre as coisas, o processo do

conhecimento vai das primeiras ideias que são apreendidas, a saber, as mais universais,

para a tentativa de compreensão mais precisa, a fim de poder distinguir os conteúdos

das ideias. Na ST q. 85 a.3 Aquino diz que a compreensão universal é confusa e as

partes não são totalmente conhecidas, desta maneira, conhecer universalmente seria uma

falha do modo operacional do nosso intelecto. Conhecer o universal aparece com dois

sentidos como vimos anteriormente, a natureza universal da coisa é conhecida (modo

impreciso) é o meio através do qual pensamos a coisa (mais perfeito), pois por meio dos

universais se chega aos particulares. O primeiro sentido, já vimos, é o universal obtido

através da abstração do universal a partir do singular, o segundo sentido é capaz de

conhecer particulares por meio de uma única representação mental (species inteligiblis),

a forma daquilo que conhecemos é sempre representada com universalidade, portanto,

inteligimos sempre com universalidade ainda que num grau mais baixo do que Deus. O

intelecto conhece de modo universal por que captura a natureza de vários objetos em um

único pensamento, os sentidos, porém, estão sempre limitados ao aqui e agora,

fornecidos pela experiência sensível.

O intelecto em Tomás aparece na leitura de Pasnau47 com duas capacidades, uma

é a de apreender essências dos objetos materiais e a outra é conhecer, em Aquino

alcançamos a verdade de dois modos, através da abstração quando conhecemos

universalmente, e através da composição, quando mentalmente conseguimos unir

elementos simples. Conforme Suma de Teologia Q.85 a.1 o intelecto opera através:

compreensão das ideias indivisíveis, composição e divisão, inferência racional, as duas

primeiras operações são utilizadas para compreender o mundo, já que não temos acesso

direto às essências como Deus e os anjos. Para conhecer as espécies inteligíveis,

46 PASNAU, 2004, Part III. Universals, p.322. 47 PASNAU, 2004, Parte III, Universals, p.323.

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precisamos de uma espécie para cada objeto, e é assim que conseguimos perceber

através da distinção entre elas suas principais características, a ideia (conteúdo de

pensamento) na razão humana para Tomás é um pensamento momentâneo que contém

poucas informações, sendo necessário o ato da composição para ganhar consistência de

um pensamento conceitual que vale apena ser expresso. Apenas após tal ato, o ser

humano é capaz de perceber alguma conexão entre as coisas. Por exemplo, a ideia de

animal é uma ideia genérica, imprecisa e com poucas informações, para a partir daí

compreender a espécie humana, por exemplo, precisamos pegar uma ideia que está à

parte que é a noção de racionalidade, e através do ato de composição unir as noções de

animal e de racional, para formar então o conceito da espécie humana como animal

racional. O que torna o intelecto algo especial é a sua capacidade de ter compreensões

universais, a parte do intelecto que executa estas apreensões universais, é chamada por

Tomás de intelecto agente.

Porém, Pasnau48 nos faz ainda uma objeção, a respeito do processo abstrativo,

que este não consegue nos demonstrar como alcançamos a natureza dos objetos, muito

menos como as ideias gerais e obscuras se tornam essências claras.

Por outro lado à abstração nos mostra como chegamos às conceitos gerais,

formando no intelecto uma forma que reúne os aspectos comuns da espécie, esta

capacidade do nosso intelecto de extrair ideias universais em conjunto com a inferência

racional nos permite pensar para além do momento presente, nos permitindo dar

continuidade temporal maior do que Pasnau apresenta. O raciocínio é o ato pelo qual

passamos de um conceito para outro, vimos que para conhecer as coisas utilizamos duas

operações mentais composição/divisão e o raciocínio (inferência cognitiva), nosso

intelecto apesar de apreender ideias universais e, portanto, confusas, é capaz de através

do ato intelectivo, a partir do intelecto possível, que é a parte do intelecto que forma os

conceitos tendo como base o que o intelecto agente lhe entregou, tornar mais clara a

ideia, quando a identifica no objeto singular, com um conceito. Nosso conhecimento

então é feito através da inferência dedutiva, quando do conceito universal eu apreendo o

objeto singular.

A abstração do Todo universal a partir do particular visto neste tópico, é o tipo

de raciocínio próprio da ciência da física, segundo Tomás apresenta no De Trinitate.

48 PASNAU, 2004, Parte III, Universals, p.323.

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2.2 Abstração da Forma Acidental da Quantidade.

A abstração da forma da matéria sensível é um tipo de abstração que considera

apenas as determinações formais quantitativas da coisa, deixando de lado, portanto a

matéria sensível. Mas, de modo mais abstrato em relação ao primeiro tipo de abstração

apresentado no tópico anterior, nesta forma de abstração, deixa-se de lado também a

matéria sensível considerada de modo geral, ou seja, a matéria sensível comum. O

termo “forma” se refere neste caso a uma forma acidental, em outras palavras, é um tipo

de propriedade que pode ser abstraído ou pode ser pensada sem se levar em

consideração a matéria sensível. Por exemplo, as noções de número, as formas

geométricas e etc. A quantidade e as qualidades sensíveis que são formas acidentais, se

dão sempre numa matéria sensível, contudo Tomás nos traz a seguinte questão no De

Trinitate, por que podemos pensar a quantidade sem pensar a qualidade? Seguindo a

regra da abstração, podemos abstrair a forma da matéria apenas se tal matéria é

acidental a tal noção, deste modo tal matéria não faz parte da essência da espécie. Assim

como os acidentes dependem da noção de substância para serem pensados49, de modo

que é impossível que um acidente advenha separado da noção de substância quando

tomada em sentido geral. Os acidentes advêm à substância em certa ordem, conforme

Tomás apresenta no Ente e Essência: quantidade, qualidade, paixões e o movimento.

Por isso podemos considerar as quantidades sem considerar as qualidades sensíveis, em

essência a quantidade depende da matéria inteligível (substância), contudo não depende

da matéria sensível, para ser inteligido. A substância sem os acidentes é acessível

apenas ao intelecto, pois este também é imaterial, portanto, a substância tomada de

modo geral não é apreensível aos sentidos. De modo análogo ao argumento da relação

entre substância e acidente apresentado agora, Tomás responde no De Trinitate, que

existe certas ordens no que se refere ao ato de pensar, sendo assim podemos pensar na

noção de quantidade por que tal noção não envolve a noção de qualidade. Porém a

noção de qualidade depende da noção de quantidade para ser pensada, pois a qualidade

se manifesta na matéria que existe sempre de modo geométrico, ou seja, de modo

quantitativo. Concluímos então que a forma acidental da quantidade determina a

matéria sensível e não pode existir separada dela, mas pode ser pensada sem tal matéria,

pelas razões que expomos.

49 De Trinitate q.5, a.3, p.148.

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Assim este modo de abstrair pretende alcançar por tal modo de proceder às

formas acidentais de quantidade, segundo o que Tomás diz no De Trinitate, tais formas

são os objetos próprios da ciência da matemática.

2.3 O ato da separação

Pretendo apresentar neste momento o segundo ato do intelecto citado por Tomás

no De Trinitate que é o ato da separação, como vimos é classificado como o modo de

proceder da ciência especulativa da Metafísica. O critério que é aplicado para se

distinguir o objeto de cada ciência é justamente a relação entre matéria e movimento,

Tomás diferencia desta maneira os objetos das ciências de acordo com os modos de ser

destas. Assim, o processo abstrativo não parece ser um ato diferente de um processo de

desmaterialização gradual do objeto apresentado para o intelecto, à imaterialidade do ser

já nos advém representada através do conceito, como resultado da abstração da física e

da matemática. A ciência da Metafisica aparece deste modo como a ciência mais

abstrata e que tem como objeto um ente que não depende da matéria sensível no que se

refere ao seu ser. Neste campo do conhecimento, há ainda uma subdivisão dos entes que

se realizam sem matéria: Deus e os anjos. E outros que às vezes se realizam na matéria

e, às vezes não como, por exemplo: a substância, a qualidade, o ente, a potência, o ato,

uno e o múltiplo. Tal ciência é denominada por Aquino de Metafísica, a ciência que têm

por objeto (sujeito) o ente enquanto ente. Mas, poderíamos então supor que existem

entes que não dependem da matéria? E como os conheceríamos se tudo que podemos

conhecer nos advém dos sentidos e não podemos conhecer através dos sentidos coisas

imateriais?

O objeto da metafísica é o resultado de uma abstração total da matéria sensível e

dos acidentes que esta comporta, assim esta ciência tem uma consideração distinta da

abstração das demais ciências, como vimos acima Tomás faz de modo preciso à

distinção entre os modos de abstrair das ciências da física e da matemática, para

Geiger50, o ato da separação que se realiza mediante um juízo negativo, tem um papel

de suma importância na ciência da metafisica, contudo o Motor Imóvel na leitura de

Geiger é um pressuposto que tem sua existência demonstrada na física de Tomás, além

de ser necessária para que se possa considerar o ente de modo geral. Porém esta

observação feita pelo Geiger não pode deixar de ter em consideração aquilo que Tomás

50 Geiger, L-B., “Abstraction et separation d´après S. Thomas. P. 98

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nos apresenta no De Trinitate q.5 a.3, que nós só conhecemos os entes imateriais de

modo indireto em comparação com os entes materiais. O ente aparece na metafísica de

Tomás com dois aspectos, o primeiro é a quididade, objeto do primeiro ato do intelecto:

a abstração; o segundo é a atualidade do modo de ser das coisas, que é objeto do

segundo ato do intelecto: a separação. O ente é algo que tem ser. Assim o juízo

produzido pelo segundo ato do intelecto, é um juízo de existência, pois se dá sobre o

modo de existir da coisa, concreta, particular, material, mutável. O juízo tem como uma

das funções a síntese, formando uma unidade entre o conceito e a coisa particular, daí

também o conceito de verdade apresentado por Tomás, de que a verdade é uma

conformidade entre o intelecto e a coisa. Os juízos existenciais são de afirmação ou

negação (composição/divisão), por serem existenciais tem por intenção afirmar que algo

é ou negar que algo é atualmente na realidade, com tais juízos nos referimos ao ser de

tais coisas. A abstração aparece como o primeiro ato do intelecto, pois como Tomás

afirma que o ponto de partida para conhecer os entes que existem independentes da

matéria sensível, são os entes sensíveis, parece então que os conhecimentos dos entes

sensíveis teriam a primazia no conhecimento humano em relação aos imateriais. E,

portanto, o ato abstrativo em relação ao ato da separação. E como Tomás diz que o

conhecimento humano dos entes imateriais ocorre de maneira indireta, por uma

remoção das condições materiais, através de juízos negativos conhecemos as coisas

imateriais. Tal juízo negativo é uma negação de que o ente comporte matéria e

movimento. Assim na teoria do conhecimento de Tomás nós não temos acesso direto a

“quididade em si” das coisas. Que seria o fundamento ontológico das coisas, então qual

é o papel do juízo negativo para a descoberta do objeto da Metafísica? O juízo é sempre

sobre o ser das coisas e, portanto tem a pretensão de chegar ao ser do ente tomado de

modo geral. Contudo tal conhecimento se dá apenas de modo indireto51.

Assim o modo de proceder da ciência especulativa da Metafísica, segundo

Tomás se utiliza da segunda operação para encontrar o seu objeto próprio de

investigação, e como vimos tal operação se realiza através de um julgamento negativo

no que diz respeito ao ser das coisas. Ficam apresentados então os dois atos do intelecto

humano segundo Tomás para conhecer a realidade e cada um destes atos são utilizados

por uma ciência especulativa a fim de investigar seus respectivos objetos de estudo. A

ciência da Física se utiliza da Abstração do Todo universal e da abstração denominada

51 ST q.87, a.1.

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de precisiva, a Matemática se utiliza da Abstração da Forma Acidental da Quantidade,

estas ciências se utilizam do primeiro modo de operar do intelecto, porém a ciência da

Metafísica se utiliza da segunda operação intelectual, a saber, o ato da separação.

Geiger tenta propor uma interpretação em seu famoso artigo 52 sobre a

implicação do modo como Tomás distingue os objetos das ciências que acabamos de

apresentar relacionando com os respectivos atos intelectuais. O problema proposto por

Geiger é o seguinte: Tomás pretende responder a respeito dos três modos de operar do

intelecto e a estrutura do real. Os três modos se referem aos tipos de raciocínios

utilizados pelas três ciências especulativas, a física, matemática e metafísica. Mas tal

distinção dos objetos de tais ciências corresponde também à estrutura do real?

Questiona Geiger. Ele entende ainda que o intelecto manipula os dados brutos da

realidade até que estes atinjam certa imaterialidade espiritual, assim as distinções dos

objetos das ciências nos conduzem a um afastamento das coisas materiais, tais coisas

materiais são distintas umas das outras por causa de seus acidentes que as tornam

particulares, mas possui a mesma forma, Geiger diz ainda que o nosso intelecto em seu

primeiro ato não procura distinguir nada, mas apenas apreender a inteligibilidade do

real, isto é a sua forma, o intelecto necessita apreender primeiramente este princípio

inteligível da realidade, para poder acessá-la, somente após fazer isto, poderá executar

as distinções que corresponde à segunda operação, havendo uma prioridade lógica entre

as operações intelectuais. Porém, o próprio Tomás no De Trinitate53 diz ao distinguir as

duas operações intelectuais que a primeira operação isto é a abstração também nos

permite distinguir as coisas, pelo que elas são, pois por tal ato conhecemos as essências,

o segundo ato, porém apenas nos conduz a distinção de uma independência metafísica

das coisas, isto é que elas existem de fato separadas na realidade. Contudo, ele (Geiger)

entende que o problema da necessidade da abstração se dá sobre uma questão

metafísica, isto é, sobre a estrutura do ser, no que se refere ao mundo material para

Tomás. Caso o processo abstrativo nos conduzisse a quididade da coisa individual e não

uma forma universal, o processo seria meramente subjetivo, contudo a abstração

cumpre o fundamental papel de unificar numa species inteligível o que existe como

múltiplo na realidade. Tais formas assim obtidas são próprias das ciências da física e da

matemática. Há assim uma complexidade na realidade sensível e certa independência,

52 Geiger, L-B., “Abstraction et separation d´après S. Thomas. P. 96 53 De Trinitate q.5, a.3, p.120

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pois a metafísica supõe a existência de entidades imateriais, através das quais se

estudam: as realidades imateriais e afirma certos conceitos que se verificam de um

modo material e imaterial, isto é, os conceitos são independentes da matéria corporal,

mas se referem às coisas materiais: a objetividade do produto da abstração repousa

sobre uma orientação da atenção, onde o intelecto dá um foco maior a determinados

aspectos complexos e renega outros. E só pode dar tal foco a estes aspectos por que

estes não dependem dos que foram deixados de lado para serem pensados, assim os que

foram deixados de lado são partes acidentais destes, como por exemplo, podemos

pensar a noção de cadeira sem pensar na cor azul da cadeira que lhe é acidental. O

objetivo da metafísica segundo Geiger é distinguir os objetos através do julgamento

negativo dos todos e apresentar uma independência do ser; tal independência consiste na

possibilidade do ser, da substância, do todo seres pensados sem a noção de matéria

corporal. O ato abstrativo só pode operar de modo limitado pela regra que já vimos, o

ato da separação tem o papel de fazer julgamentos acerca da estrutura do ser, portanto,

estaria mais próxima de tal estrutura, assim Geiger entende que temos de um lado as

operações intelectuais (abstração e separação) e do outro as estruturas objetivas (o todo

e suas partes acidentais, forma e sua matéria) que correspondem a cada um e uma

independência nos distintos modos de ser.

2.4 Abstrações x Separação.

As três ciências se referem a graus distintos de abstração, contudo o termo

abstração quando é tomado de modo genérico corresponde às duas operações

intelectuais, a saber, abstração e separação, conforme Tomás faz uso do termo neste

sentido na ST Iº q.85 a.1, a abstração propriamente dita, de um lado e de outro o ato da

separação, objetiva-se aqui distinguir as duas operações. A abstração cabe às ciências da

física e da matemática como vimos e a separação cabe ao modo de proceder da

metafísica. Tais operações surgem como ideias para solucionar o problema já visto

acima. Na primeira parte da ideia de semelhança entre inteligível e intelecto, uma

similitude entre os dois modos de ser, se concentram em certos aspectos, quando se diz

de Boécio que podemos separar algo para conhecê-lo, não estamos dizendo que os

separamos na realidade, pois tal ato resultaria numa falsidade, já que certos objetos

dependem de outros para serem conhecidos como a noção de homem depende da noção

de animal, em outros casos há ainda uma ordem de prioridade para conhecer,

conhecemos primeiro um para depois conhecer outro, mas não o inverso. Por exemplo,

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não podemos saber o que é animal sem ter a noção de ser vivente. O que é conhecido

primeiro é a forma, pois ela existe em ato, assim se distingue dois tipos de forma: como

Todo que é a essência da coisa e como parte que é uma parte do composto, no caso de

substâncias compostas de forma e matéria. Geiger parece entender que o que Tomás

procura é o motivo que impede o intelecto de distinguir o todo. No caso do objeto e no

caso do sujeito. No caso do objeto opta-se segundo ele por uma tripla divisão da

abstração: simultânea, anterior, posterior. Esta tripla divisão do momento abstrativo se

refere à tripla relação da coisa com outra essência, tem coisas que dependem de outra

para ser pensada essa é a relação de anterioridade, por exemplo, para pensar na noção de

animal preciso pensar primeiro na noção de ser vivente, tem coisas que são pensadas

simultaneamente como a noção de pai e filho não podemos pensa-las separadamente, e a

relação posterior, como a noção de acidente pode ser pensada depois da noção de

substância.

No primeiro caso que é o do objeto, há a inclusão de dois dados: homem e

animal, pois não podemos saber o que é o homem sem a noção de animal que este

presente na definição de homem. No caso dois que é o do sujeito é preciso de outros

dados, para serem distinguidos mesmo que não dependam um do outro. Como na

relação entre substância e acidente, o acidente não está incluso na definição de

substância, mas para conhecer a substância precisamos conhecer o acidente, o que está

em evidência é a impossibilidade da razão de distinguir que o que é conhecido não está

separado na realidade, o intelecto apreende a essência objetiva que existe individuada

em cada coisa. Como regra o intelecto não pode de maneira alguma apreender uma

essência e não considerar outra essência da qual a primeira depende, como homem não

pode ser apreendido sem a essência de animal, entre coisas de tais ordens, há uma

relação de dependência de ser, e um não pode ser pensado sem o outro. Podemos pensar

o conceito de animal sem pensar em homem, porém, não o contrário. A relação de

dependência da noção de homem para com a noção de animal é necessária e não

acidental, ou seja, não é possível ser de outro jeito, tal dificuldade do intelecto em

distinguir o que está separado ou não na realidade, tem como solução em Tomás a

distinção entre as duas operações intelectuais: a simples apreensão e a

composição/divisão (separação).

O objeto próprio do intelecto humano vale reforçar, nunca deixam de serem as

quididades das coisas sensíveis, no ato da simples apreensão, os elementos que

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constituem as essências das coisas são apreendidas como universais e, portanto,

inteligíveis. A simples apreensão que tem por objeto a essência das coisas, só pode

considerar uma essência e deixar de lado a outra quando não dependem uma da outra,

mas a independência delas não se dá pelo fato de não relacionarem-se entre si, mas por

que nós podemos pensar uma sem pensar a outra, não há uma ordem de intelecção entre

elas. Existem como vimos três tipos de relações entre as essências com as coisas: é

anterior a essência de outro, é posterior ou é simultânea. As três abstrações se referem a

estas três relações. A abstração da física seria a relação simultânea, a abstração da

matemática seria a relação anterior e a abstração metafísica seria posterior.

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CONCLUSÃO

A presente monografia objetivou investigar como é possível na teoria do

conhecimento de Tomás de Aquino a formação de conceitos universais a partir das

representações sensíveis (fantasma)? E analisar a contraposição entre os dois atos do

intelecto: Abstração x Separação. Para tanto, nos baseamos principalmente nas obras

Suma de Teologia, O Comentário ao tratado da trindade de Boécio e abordamos O ente

e a essência para esclarecer as distinções entre o conceito de matéria quando fora

necessário à nossa investigação.

Percebemos ao longo de nossa investigação as várias discussões que surgem em

todo o processo de conhecimento fornecido por Tomás, inclusive em suas próprias

obras, como apresentado no inicio no que diz respeito se o ato abstrativo se dá

diretamente sobre a coisa ou sobre a representação da coisa. Tentamos estabelecer uma

conexão interpretativa desta questão a uma questão mais recente da teoria do

conhecimento do Aquinate, que normalmente não envolve a primeira polêmica

apresentada, a saber, se a espécie inteligível é a essência mesma da coisa ou uma

representação desta, discussão amplamente discutida por duas escolas interpretativas da

obra de Tomás, o realismo direto que defende que a espécie inteligível é a própria

essência da coisa em nossa mente e o representacionismo que defende que a espécie

inteligível é uma representação mental que é semelhante à essência que se encontra na

coisa. Apresentamos de maneira breve tal discussão, pois neste trabalho não era o nosso

objeto de estudo, contudo é um tema muito interessante que deverá ser investigado em

outra oportunidade.

Desenvolvemos a primeira polêmica da abstração se dar sobre a coisa

diretamente ou sobre a representação dela, denominada por Tomás de fantasma.

Tomando como posição argumentativa que o ato da abstração se dá sobre o fantasma,

conforme Tomás dedica toda a questão 84 da Suma de Teologia. Como resultado da

investigação, ainda no primeiro capítulo vimos que o fantasma é o resultado da

experiência sensível, após os sentidos externos serem afetados pelos objetos do mundo

externo, cada órgão capta o seu objeto próprio de conhecimento, os olhos as cores, o

ouvido o som e assim por diante. Estes dados que cada órgão percebeu é transmitido

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para o sentido interno denominado por Tomás de sentido comum que é o princípio

sensitivo da alma e funciona como uma raiz intermediária entre os sentidos externos e

os sentidos internos, este sentido recebe tais dados chamados de species sensível e os

conserva entregando aos outros sentidos internos, o sentido interno da imaginação é o

sentido responsável por transformar estes dados brutos captados pelos sentidos numa

representação, uma imagem da coisa sensível, ou seja, num fantasma.

Um segundo momento ainda do primeiro capítulo, vimos à formação do

fantasma e qual a real necessidade dele para o ato abstrativo. Há uma clara oposição

entre o que é conhecido pelo intelecto e pelos sentidos, no que diz respeito à mesma

coisa, o intelecto como vimos conhece apenas através da specie inteligível dessa

maneira o intelecto conhece as coisas de modo imaterial e, portanto universal, os

sentidos por outro lado conhecem ao modo de species sensível, conhece as coisas de

modo material e desse modo seu conhecimento é sempre do particular. Então a primeira

dificuldade que foi a ser superada foi esta oposição que implica numa impossibilidade

do intelecto ter acesso e conhecer diretamente as coisas materiais, pois ele existe

imaterialmente e não pode ser afetado por algo material, pois não se realiza por meio de

nenhum órgão. O fantasma é apontado neste capítulo como a solução que Tomás utiliza

para intermediar as duas naturezas citadas, ao modo de imagem a representação

conserva os dados individuais da coisa, porém, não está em um grau de materialidade

tão forte quanto às coisas do mundo externo, assim o intelecto agente, que é o intelecto

que está em ato, pode exercer o ato da abstração sobre o fantasma e extrair dele a

species inteligível e, em seguida entregar ao intelecto possível tal species, ao receber

esta species o intelecto possível que estava em potência passa para o ato e concretiza o

processo do conhecimento formando o conceito de uma espécie. Após tal ato o intelecto

possível para pensar num conceito já adquirido recorre à faculdade da imaginação um

fantasma que corresponda ao conceito que é atualmente conteúdo de pensamento, para

auxiliá-lo no ato de pensar, tal ato de pensar o conceito auxiliado por uma imagem, é

denominado por Tomás de conversão ao fantasma, conforme vimos no capitulo

primeiro.

Após ver a necessidade do papel intermediador do fantasma para a realização da

teoria abstrativa de Aquino, concordando com Carlos Arthur Nascimento:

é o indivíduo humano quem por seu intelecto ativo e recipiente, não por que se

confronte com um intelecto transcendente ou se volte para ele, mas por que se

confronta com as imagens ou fantasias que os sentidos lhe proporcionam. O acesso

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às realidades imateriais transcendentes tem de passar necessariamente pelo trato com

o mundo material; (...) (NASCIMENTO, 2006, p.39)54.

Passamos então no segundo capítulo a fazer propriamente uma análise do

processo abstrativo que é um ato do intelecto agente, este intelecto ao se debruçar sobre

o fantasma que representa uma coisa sensível e individual, tem a função de extrair dela

uma natureza comum, algo que seja compartilhado por vários outros seres, Tomás

entende que aquilo que é essencial é o que é mais universal, o que for mais

compartilhado é o essencial e o menos compartilhado é o acidental, por isso a species

inteligível extraída pelo ato do intelecto agente tem como característica uma natureza

comum, ou seja, uma reunião das semelhanças entre as coisas de tal espécie. Como a

species inteligível resulta na formação do conceito, poderíamos dizer que o conceito é a

representação do universal. Como Tomás diz que nós não temos representações de

coisas imateriais porque não temos como formar imagens delas, o conceito é uma

expressão que pretende se referir a tal natureza comum que só existe instanciada como

universal na mente e singularizada nos indivíduos, daí a necessidade da conversão ao

fantasma para que se compreenda que o universal só existe na realidade instanciada de

modo singular nos indivíduos.

Então o ato da abstração é sempre um ato que busca deixar de lado a

materialidade da coisa individual e considera apenas os aspectos formais considerados

essenciais. Porém, Tomás se depara com a seguinte dificuldade, os conceitos das

espécies incluem a matéria e não só a forma das coisas, no Ente e Essência como vimos

Tomás apresenta uma distinção entre dois tipos de matéria: a matéria assinalada e a

matéria não assinalada. O segundo tipo de matéria é o que entra na definição e, portanto

esta é a matéria que acompanha a species inteligível, é uma matéria abstrata que não

determina algo num espaço-tempo, mas que contêm em potência as matérias

assinaladas, ou seja, as matérias das coisas individuais que existem. Assim quando

falamos de matéria não assinalada nos conceitos, nos referimos a todas as matérias da

espécie citada no momento sem nos deter sobre uma coisa individual. A abstração que

faz a consideração da matéria não assinalada, como vimos, é a abstração feita pela

ciência da física também denominada de Abstração do universal a partir do singular.

54 Introdução: As questões da primeira parte da suma de teologia de Tomás de Aquino sobre o intelecto

humano.

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Como nossa investigação se detinha sobre, como chegamos aos conceitos

universais a partir do fantasma que representa sempre as coisas particulares, a abstração

da física ganhou um desenvolvimento maior e entendemos que com ela chegamos a

uma conclusão satisfatória de tal problema com a articulação do conceito de matéria.

Considerando-se nessa abstração apenas aquilo que há de semelhante entre os entes,

abstraindo então uma forma comum, compartilhada por todos, e considerando apenas a

matéria não assinalada, chegaríamos ao conceito universal de uma espécie. Contudo,

vimos que o conhecimento dos universais é o conhecimento de coisas imateriais, e

Tomás admite como apresentamos no início, que o conhecimento humano no que diz

respeito às coisas imateriais é sempre indireto, assim chegamos ao conhecimento das

coisas universais que são imateriais de modo indireto e, portanto confuso e impreciso. O

ato intelectivo é inteiramente imaterial, e o ato intelectivo se dá sobre a forma abstraída

da matéria sensível, ou seja, sobre algo imaterial. As formas que se encontram na

matéria como vimos são formas individuais e, portanto o intelecto não as apreende

enquanto tais, assim toda substância intelectual é imaterial e universal. O próprio termo

imaterial já trás consigo esta ideia de negação da matéria. Podemos concluir que não

conhecemos as essências das espécies das coisas, mas que fazemos apenas distinções

acidentais destas, já que não temos acesso direto a elas e temos apenas um

conhecimento meramente negativo.

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