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Gladston Mamede Direito Empresarial Brasileiro Empresa e Atuação Empresarial Volume 1 4a Edição SÃO PAULO EDITORA ATLAS SA. - 2010

gladston mamede - direito empresarial brasileiro - volume 1 - 4º edição - empresa e atuação empresaria - ano 2010

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  • Gladston Mamede

    Direito Empresarial Brasileiro

    Empresa e Atuao Empresarial

    Volume 1

    4a Edio

    SO PAULO EDITORA ATLAS S A. - 2010

  • 2003 by Editora Atlas S.A.

    1. ed. 2004; 2. ed. 2007; 3. ed. 2009; 4. ed. 2010

    Composio: Formato Servios de Editorao Ltda

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Mamede, GladstonDireito empresarial brasileiro : empresa e atuao empresarial, volume 1 / Gladston Mamede. - 4. ed. - So Paulo: Atlas, 2010.

    Bibliografia.ISBN 978-85-224-5677-2

    1. Direito empresarial - Brasil L Ttulo.

    04-0033 CDU-34:338.93(81)

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Brasil: Direito empresarial 34:338.93(81)

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - proibida a reproduo total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violao dos direitos de autor (Lei n2 9.610/98) crime estabelecido pelo artigo 184 do Cdigo Penal.

    Depsito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto na 1.825, de 20 de dezembro de 1907.

    Impresso no Brasil/Printe in Brazil

    Editora Atlas S.A.Rua Conselheiro Nbias, 1384 (Campos Elsios) 01203-904 So Paulo (SP)Tel.: (0___11) 3357-9144 (PABX)www.EditoraAtlas.com.br

  • Aos meus pais, Antnio e Elma Mamede, e meus filhos, Filipe, Roberta e Fernanda Mamede.

    Eu tenho um tesouro valioso que no posso esconder dos outros:meus pais e meus filhos.

    A minha esposa, Eduarda Cotta Mamede, Wise men say onlyfools rush in

    But I cart helpfalling in love withyou. Shall I stay? Would. it be a sin

    I f l cart helpfalling in love withyou? Like a riverflows surely to the seq,

    Darlingso itgoes: some things are meant to be. Take my hand, take my whole life too,

    For I cart helpfalling in love withyou. (George Weiss - Hugo Peretti - Luigi Creatore)

    Deus nos d - a toda a humanidade - Paz, Luz e Sabedoria,

    Sade, Felicidade e Amor.

  • Trabalhos do AutorLivros1. Manual prtico do inquilino. Belo Horizonte: Edio dos Amores, 1994. 68 p. (em co-autoria com Renato

    Barbosa Dias).2. Semiologia do direito: tpicos para um debate referendado pela animalidade e pela cultura. 2. ed. Porto

    Alegre: Sntese, 2000.240 p.3. Contrato de locao em shopping center: abusos e ilegalidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.173 p.4. O trabalho acadmico em direito: monografias, dissertaes e teses. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001.

    192 p.5. Direito do turismo: legislao especfica aplicada. So Paulo: Atlas, 2002.152 p.6. 1PVA: imposto sobre a propriedade de veculos automotores. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

    183 p.7. Manuai de direito para administrao hoteleira: incluindo anlise dos problemas e dvidas jurdicas, si

    tuaes estranhas e as solues previstas no Direito. So Paulo: Atlas, 2002.173 p.S. Fundamentos da legislao do advogado: para o curso de tica profissional e o exame da OAB. So Paulo:

    Atlas, 2002.174 p.9. Agncias, viagem e excurses: regras jurdicas, problemas e solues. So Paulo: Manole, 2003. 178 p.10. Cdigo Civil comentado: penhor, hipoteca e anticrese: artigos 1.419 a 1.510. So Paulo: Atlas, 2003. v. 14,

    490 p. (Coleo coordenada por lvaro Vllaa Azevedo).11. Frias frustradas: manual de autoajuda para o turista. So Paulo: Abril, 2003. 98 p.12. Direito do consumidor no turismo. So Paulo: Atlas, 2004. 198 p.13. Comentrios ao Estatuto Nacional da Mkroempresa e da Empresa de Pequeno Porte. So Paulo: Atlas, 2007.

    445 p. (outros autores: Hugo de Brito Machado Segundo, Irene Patrcia Nohara, Sergio Pinto Martins).14. A advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. 3. ed. So Paulo: Atlas, 2008. 402 p.15. Direito empresarial brasileiro: volume 1: empresa e atuao empresarial. 3. ed. So Paulo: Atlas, 2009.

    436 p.16. Direito empresarial brasileiro: volume 2: sociedades simples e empresrias. 3. ed. So Paulo: Atlas, 2008.

    701 p.17. Direito empresarial brasileiro: volume 3: ttulos de crdito. 5. ed. So Paulo: Atlas, 2009. 481 p.18. Direito empresarial brasileiro: volume 4: falncia e recuperao de empresas. 3. ed. So Paulo: Atlas, 2009.

    638 p.19. Manual de direito empresarial. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2009. 504 p.

    Publicaes digitais1. . A advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. In: Unisntese. Porto Alegre: Sntese: Sonopress, 1999.

    CD-ROM.2. Coleo Direito Empresarial Brasileiro: material de apoio. So Paulo: Atlas: Kitmais, 2008. CD-ROM.3. A execuo no STJ: dicionrio de jurisprudncia. Disponvel em: .

    Artigos em revistas acadmicas1. Eidos: a ideia de justia em Plato. Revista de Julgados do Tribunal de Alada de Minas Gerais, Belo Horizonte,

    v. 42, p. 43-50, abr./jun. 1990.2. As normas no escritas no direito brasileiro: estudo do direito de trnsito. Revista Jurdica Mineira, n2 80,

    p. 261-274, maio/jun. 1991.3. Ermchtigung: Proposta de Leitura da Hermenutica na Teoria Pura do Direito. Revista de Informao

    Legislativa, Braslia, na 109, p. 223-234, jan./mar. 1991.4. A incidncia da correo monetria nos mtuos rurais segundo o Tribunal de Alada de Minas Gerais como

    estudo hermenutico jurdico. Revista Jurdica Mineira, Belo Horizonte, nE 85/86, p. 261-274, maio/jun. 1991.

    5. Gramtica translingustica do processo. Revista de Processo, So Paulo, na 63, p. 164-173, jul./set. 1991.6. Gramtica translingustica do processo. Revista de Informao Legislativa, Braslia, na 113, p. 447-460, jan./

    mat 1992.7. Trasmaco: a sofistica grega conceitua a justia. Revista Jurdica Mineira, Belo Horizonte, na 97, p. 65-72,

    set./out. 1992.8. Aplicabilidade da multa por embargos de declarao protelatrios no mbito do juzo de admissibilidade

    dos recursos excepcionais. Revista de Julgados do Tribunal de Alada de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 53, p. 27-42, out./nov. 1993.

  • 9. Direito e jurstica. Revista da AMAG1S, Belo Horizonte, tf 23, p. 167-178, jun. 1994.10. Era defesa da terceirizao. LTr - Suplemento Trabalhista, So Paulo, t f 136, p. 757-759, 1994.11. Neoliberalismo e desadministrativizao. Revista de Informao Legislativa, Braslia, tf 127, p. IS 1-159,

    jul./set. 1995.12. Da teoria prtica no direito. Revista Acadmica do Curso de Direito da UN1MONTES. Montes Claros: Uni-

    montes, tf 1, p. 12-17, 1996.13. A incidncia de ICMS sobre o servio de transporte Internacional de cargas. Revista Jurdica da Procuradoria

    Geral da Fazenda Estadual, Belo Horizonte, tf 18, p. 29-33, abr./maio/jun. 1996.14. Regime especial de controle e fiscalizao. Eficaz - Boletim Tributrio, Belo Horizonte, na 5/97, p. 3-6,4a

    semana jun. 1997.15. Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil. Revista do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes

    Claros, Montes Claros: Universidade Estadual de Montes Claros, t f 16, p. 23-49, 2a semestre de 1997.16. Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil. Revista de Informao Legislativa, Braslia, tf 134, p. 219-229,

    abr./jun. 1997.17. Aes contra a Fazenda Estadual: foro competente. Eficaz - Boletim Tributrio, Belo Horizonte, tf 5/98,

    notas e comentrio, p. 1-4, 2a semana fev. 1998.18. Da teoria prtica no direito. Revista Jurdica UNUUS, Uberaba: Ministrio Pblico do Estado de Minas

    Gerais: Universidade de Uberaba, tf 1, p. 67-73,1998.19. Texto, significao, sociedade e justia. Brevirio. Passos: Faculdade de Direito/UEMG: Centro de Memria

    de Passos, tf 2, p. 47-62,1998.20. Huitzilopochti: criar, recriar, trair e esquartejar (o humano universo da significao). Caderno de Filosofia

    e Cincias Humanas, Belo Horizonte: Faculdade de Cincias Humanas e Letras ~ FAHL: Unicentro Newton &iva, ano 6, tf 11, p. 91-98, out. 1998.

    21. Da teoria prtica no direito. Revista do Curso de Direito da UNIVALE, Governador Valadares: UNIVALE, tf2, p. 55-68,1998.

    22. Huitzilopochti: criar, recriar, trair e esquartejar (o humano universo da significao). Revista do Curso de Direito da Faculdade de Cincias Humanas - FUMEC, Porto Alegre: Sntese, tf 1, p. 45-54,1999.

    23. A ordem natural (e a cultural) da desigualdade. Plural, Belo Horizonte: Faculdade de Cincias Humanas- FUMEC, tf 12, p. 40-50, out. 1999.

    24. Ampla liberdade de imprensa: o direito de informar e de opinar pela mdia impressa e eletrnica. Revista de Informao Legislativa, Braslia, nB 144, p. 55-69, out./dez. 1999.

    25. Cobrana de ICMS sobre fornecimento de energia eltrica em contratos de demanda reservada. Revista Jurdica da Procuradoria Geral da Fazenda Estadual, Belo Horizonte, n1132, p. 27-32, out./dez. 1998.

    26. Reflexes sobre a tica. Oficina, Belo Horizonte: Faculdade de Cindas Humanas - FUMEC, tf 10, p. 33*42, out. 1999.

    27. A ordem natural (e a cultural) da desigualdade. Revista da Faculdade de Direito do Oeste de Minas ~ Fadom, Belo Horizonte: Del Rey, tf 9, p. 55-80, Ia trimestre 2000.

    28. A Supremacia das verdades manufaturadas. Revista do Curso de Direito da Faculdade de Cincias Humanas- Fumec, Poito Alegre: Sntese, tf 2, p. 97-106, 2000.

    29. A supremacia das verdades manufaturadas. Cademo de Filosofia e Cincias Humanas, Belo Horizonte: Faculdade de Cincias Humanas e Letras - FAHL - Unicentro Newton Paiva, ano 8, na 14, p. 92-96, abr. 2000.

    30. Direito e razo: entre a biologia e a psicologia. Plural, Belo Horizonte: Faculdade de Cindas Humanas- FUMEC, tf 13, p. 64-75, mar. 2000.

    31. Shopping centers: a imposio econmica de um varejo de massa e suas consequntas jurdicas. Vanguarda Econmica, Belo Horizonte: Faculdade de Cindas Sociais Aplicadas - FACISA do Unicentro Newton Paiva, tf 8, p. 57-80, set. 2000.

    32. A base de clculo do IPVA. Revista Dialtica de Direito Tributrio, So Paulo, tf 70, p. 72-86, jul. 2001.33. Novas rotinas para a administrao das serventias judidais. Jurisprudncia Mineira, Belo Horizonte: Tribunal

    de Justia do Estado de Minas Gerais, ano 51, v. 154, p. 47-68, out./dez. 2000.34. Cobrana de ICMS sobre fornecimento de energia eltrica em contratos de demanda reservada. Revista

    do Curso de Direito da Faculdade de Cincias Humanas ~ FUMEC, Porto Alegre: Sntese, tf 3, p. 129-138, 2001.

    35. A misso do advogado. Revista do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros: Universidade Estadual de Montes Claros, tf 22, p. 33-44, 2a semestre 2000.

    36. O terror pelo avesso: mdia e preconceito. Revista Mediao, Belo Horizonte: Centro Universitrio FUMEC, ano 1, tf 1, p. 29-43; out. 2001.

    37. A alquota no imposto sobre a propriedade de veculos automotores. Revista de Informao Legislativa, Braslia, tf 151, p. 191-206, jul./set. 2001 (era coautoria com Eduarda CottaMamede).

  • 38. O instituto da inviolabilidade jurdica. Revista de Estudos e Informaes, Belo Horizonte: Justia Militar do Estado de Minas Gerais, na 9, p. 26-35, mau 2002.

    39. O terror pelo avesso: mdia e preconceito. .Revista do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros: Universidade Estadual de Montes Claros, n2 23, p. 89-100, Ia semestre 2001.

    40. Cobrana de IPTU sobre tmulos e similares. Revista do Curso de Direito da Faculdade de Cincias Humanas- FUMEC, Porto Alegre: Sntese, na 4, p. 135-146, 2002.

    41. Agentes e agncias de viagem e turismo. Revista da Faculdade de Direito do Oeste de Minas - FADOM, Divi- npolis: FADOM, na 12, p. 15-31, l2 trimestre 2002.

    42. Defensor de seres humanos, da justia e do direito. Revista de Estudos e Informaes, Belo Horizonte: Justia Militar do Estado de Minas Gerais, n 12, p. 39-46, nov. 2003.

    43. Teoria gerai do direito empresarial segundo o novo Cdigo Civil brasileiro. Revista da OAB Cear, Fortaleza, ano 30/31, na 8/9, p. 142-154, jul./dez. 2002, jan/jun. 2003.

    44. Alcance judicial dos poderes resultantes do endosso-mandato. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. Porto Alegre, v. 1, p. 92-106, jul./ago. 2004.

    45. Letra de crdito imobilirio e cdula de crdito imobilirio segundo a Lei 10.931, de 2 de agosto de 2004. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v. 1, p. 47-63, fev./mar. 2005.

    46. Cobrana de IPTU sobre tmulos e similares. Opinio Jurdica, Fbrtaleza: Faculdade Christus, ano II, na 4, p. 106-119, 2004.2.

    47. Venda direta de veculos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrncia vertical entre concedente e rede concessionria. Opinio Jurdica, Fortaleza: Faculdade Christus, ano m, na 6, p. 47-91,2005.2.

    48. O novo processo de abertura e fechamento de empresas. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor. Porto Alegre, v. 13, p. 68-87, fev./mar. 2007.

    49. Abertura e encerramento de contas bancrias. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor. Porto Alegre, v. 15, p. 5-30, jun./jul. 2007.

  • Sumario

    Nota do autor, xix

    1 HISTRICO, 1

    1 A inveno do comrcio e do mercado, 1

    2 Antiguidade, 5

    3 Idade mdia e moderna, 17

    3.1 Direito comercial no Brasil, 19

    4 Unificao do direito privado, 21

    5 A valorizao da empresa, 24

    2 TEORIA GERAL DO DIREITO EMPRESARIAL, 26

    1 Base constitucional, 26

    2 Atuao econmica organizada, 28

    3 O direito de empresa, 30

    4 Coletividade de bens, 36

    5 Empresrio, 38

  • xii Direito Empresarial Brasileiro

    3 PRINCPIOS GERAIS DO DIREITO EMPRESARIAL, 401 Princpios jurdicos, 402 Livre iniciativa, 41

    2.1 Livre movimentao interna de capitais, 432.2 Livre empreendimento, 45

    3 Liberdade de contratar, 464 Regime jurdico privado, 485 Livre concorrncia, 506 Funo social da empresa, 53

    6.1 Institucionalismo, 557 Preservao da empresa, 578 Outros nveis principiolgicos, 59

    4 REGISTRO PBLICO DE EMPRESAS E ATIVIDADES AFINS, 621 O registro, 622 Departamento nacional de registro do comrcio, 643 Juntas comerciais, 654 Estrutura da junta comercial, 675 Atos do registro empresarial, 70

    5.1 Registro da empresa e outros atos, 716 Processo decisrio, 747 Processo revisional, 778 Assentamento dos usos ou prticas mercantis, 799 Redesim, 80

    5 EMPRESRIO INDIVIDUAL, 881 Inscrio, 88

    1.1 Qualificao, 891.2 Firma e assinatura, 901.3 Capital, 91

    1.3.1 Capital social e patrimnio empresarial, 921.3.2 Princpios jurdicos que orientam o capital social, 94

    1.4 Objeto e sede da empresa, 99

    2 Capacidade, 992.1 Incapacidade do empresrio, 1012.2 Incapacidade do scio, 103

  • Sumrio xiii

    2.3 Falecimento do empresrio individual, 1043 Impedimento, 1064 Empresrio casado, 109

    4.1 Aspectos cogentes, 1115 Estabelecimento secundrio, 1126 Empresrio rural, 1137 Transformao em sociedade, 115

    6 MICRO E PEQUENA EMPRESA, 1171 Tratamento especial, 1172 Definies, 1183 Empresrio e sociedade (simples ou empresria), 1234 Constituio, 1265 Benefcios do regime especial, 128

    7 NOME EMPRESARIAL, 133

    1 Nome, 1331.1 Firma, 1351.2 Denominao, 137

    2 Nome e tipo empresarial, 1383 Natureza jurdica, 1414 Proteo ao nome empresarial, 142

    4.1 Tutela do nome empresarial, 1434.2 Proteo razo empresarial, 145

    4.3 Proteo denominao, 1465 Nome, marca e ttulo de estabelecimento, 1486 Extino, 150

    8 ESCRITURAO EMPRESARIAL, 1521 Expresso contbil da empresa, 1522 Princpios aplicveis escriturao, 1543 Forma da escriturao, 157

    3.1 Requisitos extrnsecos, 1583.2 Requisitos intrnsecos, 1593.3 Guarda e conservao da escriturao, 160

    4 Valor probante da escriturao empresarial, 161

  • xiv Direito Empresarial Brasileiro

    4.1 Sigilo escriturai, 1634.2 Exibio parcial da escriturao, 1664.3 Fiscalizao fazendria, 166

    5 Sistema Pblico de Escriturao Digital (Sped), 168

    9 O DIRIO, 1701 livro dirio, 1702 Balano patrimonial, 172

    2.1 Ativo, 1742.2 Passivo exigvel, 176

    2.3 Patrimnio lquido, 177

    2.4 Outras rubricas de segurana, 1782.5 Inventrio, 180

    2.5.1 Outros valores do ativo, 1842.6 Exemplo de balano, 186

    3 Micro e pequenos empresrios, 187

    10 ESCRITURAO EMPRESARIAL COMPLEMENTAR, 1891 Resultado econmico da empresa, 1892 Demonstrao do Resultado do Exerccio (DRE), 1903 Demonstrao de Lucros e Prejuzos Acumulados (DLPA), 1924 Demonstrao das Mutaes do Patrimnio Lquido (DMPL), 1955 Demonstrao dos fluxos de caixa, 1976 Demonstrao do valor adicionado, 1997 Outros livros obrigatrios, 1998 Livros facultativos, 202

    11 ESTABELECIMENTO, 2051 Estabelecimento, 2052 Individualizao do estabelecimento, 2073 Objetivao jurdica do estabelecimento, 2114 Aviamento, 212

    4.1 Expresso isolada do aviamento ou benefcio de mercado, 2144.2 Outros tratamentos isolados do aviamento, 216

    5 Trespasse, 2175.1 Contratos no trespasse, 220

  • Sumrio XV

    5.2 Crditos no trespasse, 2225.3 Restabelecimento, 2235.4 Nome empresarial no trespasse, 226

    6 Penhor do estabelecimento, 227

    6.1 Anticrese do estabelecimento empresarial, 2296.2 Penhora do estabelecimento empresarial, 233

    12 TECNOLOGIA, 2341 Bens intelectuais, 2342 Patentes, 236

    2.1 Excees, 2373 Pedido de patente, 240

    3.1 Requisitos do pedido, 2414 Carta de patente, 2435 Nulidade da patente, 2446 Emprego da patente, 2457 Extino da patente, 2478 Desenho industrial, 2499 Software, 251

    13 MARCA, 2561 Signos e empresas, 2562 Registro de marca, 2593 Marcas registrveis, 262

    3.1 Marcas no registrveis, 2654 Relaes entre marcas, 268

    4.1 Relaes entre marca, nome e ttulo de estabelecimento, 2734.2 Relaes entre marca e nome da pessoa natural, 276

    5 Direitos sobre a marca, 2786 Perda do direito de marca, 2837 Material publicitrio, 285

    14 CLIENTELA E FREGUESIA, 2901 Clientela, 2902 Freguesia, 2923 Ponto empresarial, 293

  • xvi Direito Empresarial Brasileiro

    3.1 Ponto empresarial eletrnico, 2954 Ponto empresarial locado, 296

    4.1. Requisitos para a renovao, 2984.2 Ao renovatria, 303

    4.2.1 Legitimidade para ao, 3054.3 Contestao, 307

    4.3.1 Exceo de retomada, 3094.3.2 Presuno de sinceridade, 3124.3.3 Retomada insincera ou desidiosa, 313

    4.4 Improcedncia da renovao, 3155 Identidade visual (trade dress e product dress), 316

    15 SHOPPING CENTERS, 3181 Shopping centers, 318

    1.1 Sujeitos da relao, 3192 Locao em shopping center, 321

    2.1 Reserva de localizao, 3213 Locao, 325

    3.1 Ponto empresarial locado, 3273.2 Despesas com reas comuns, 328

    4 Prestao de servios de administrao de shopping center, 3304.1 Auditoria da contabilidade, 3324.2 Inexistncia de condomnio e sndico, 333

    5 Contrato de adeso ao empreendimento, 3345.1 Limitao da concorrncia e da liberdade de agir, 337

    6 Regimento intemo, 3387 Fundo de promoo e publicidade, 3398 Associao de lojistas, 3409 Responsabilidade pelo empreendimento, 343

    9.1 Segurana, 345

    16 FRANQUIA EMPRESARIAL, 3471 Histrico, 3472 Lei 8.955/94, 350

    2.1 As partes e suas relaes, 3512.1.1 Subfranqueamento, 355

  • Sumrio xvii

    2.1.2 Fornecedores e prestadores de servios do sistema, 3562.2 Identidade empresarial, 3562.3 Distribuio exclusiva, 359

    3 Circular de oferta de franquia, 3604 Contrato de franquia, 3695 Extino da franquia, 370

    17 PREPOSTOS, 3721 Aspectos genricos, 3722 Responsabilidade civil por ato do preposto, 3743 Substabelecimento, 3764 Exclusividade, 3775 Gerncia, 3786 Representao em juzo, 3817 Contabilistas, 3838 Terceirizao, 385

    18 REPRESENTAO COMERCIAL, 3891 Base legal, 3892 Elementos do contrato de representao, 3923 Desempenho da atividade, 3944 Comisses, 3965 Resciso do contrato, 400

    5.1 Resciso motivada pelo representado, 4035.2 Resciso motivada pelo representante, 405

    6 Foro para controvrsias, 406

    Bibliografia, 409

    ndice remissivo, 417

  • Nota do Autor

    A relao entre a Arte e o Direito mais prxima do que se pode imaginar. Basta recordar o jurista romano Celso, a afirmar que o Direito a arte do bom e do justo: ius est ars boni et aequi. Arte (ars), na afirmativa, torna-se menos por sua conotao moderna, intimamente ligada ideia - seno com ela identificada - de criatividade: o artista, em nossos dias, precisa apenas ser criativo, podendo mesmo legar a construo, a materializao de sua arte - a obra, na qualidade de fazer (poiesis) - a outrem. Criar, em nossos dias, tem a marca da idealidade, o artista pensa e no precisa, obrigatoriamente, manejar; uma soluo que agradaria muito aos antigos, gregos e romanos, ou mesmo aos portugueses do perodo colonial, diante de uma certa averso ao trabalho manual.

    Mas no criatividade que Celso remete o Direito, embora no me parea ser razovel exclu-la de tudo. Ars, na afirmativa, toma-se por sua acepo clssica, na qual prevalece a ideia de tcnica, a superar ~ e muito ~ a importncia da criatividade. Mais do que o arroubo criativo de quem faz ou destri (e a destruio, como expresso esttica, um assunto da mais elevada importncia, embora muitos a desprezem, manifestando-se tanto na reao artstica, a exemplo do dadasmo, como pela eliminao artstica: o desprezo que conduz simples eliminao da obra artstica, sua demolio), o Direito se expressa artisticamente por seu fazer (por sua poiesis), no ato de colher o fato, natural ou humano, e dar-lhe uma expresso jurdica. claip que se pode argumentar que a doutrina do Direito uma expresso de tcnica hipottica, sem trabalhar sobre o spero material dos fatos

  • XX Direito Empresarial Brasileiro

    concretos, historicamente dados. No tenho como neg-lo: o doutrinador tem, na teoria, o conforto da hiptese, ao passo que o jurista que trabalha sobre o litgio (o advogado, o parecerista, o promotor ou o juiz) assume o encargo da vida, do real.

    Compreende-se, por tais caminhos, a identificao do Direito como expresso de uma arte poltica, uma tcnica social, tida no mbito da plis, isto , da comunidade e, enfim, do Estado. Abre-se um enfoque esttico do agir jurisdicional, considerado em sentido estrito, identificando-se om a atuao judiciria, ou em sentido largo, a abranger todo e qualquer dizer do Direito ( iurisdictio), seja apurado em concreto - sobre fatos pretensamente havidos e, ento, submetidos avaliao dos que operam com o Direito seja apurado em abstrato, o que prprio dos esforos tericos. Dessa forma, possvel explorar o agir jurdico por sua qualidade de expresso e compreenso estticas: o jurista, o bom jurista, ~ e pode e deve ser - um artista que trabalha com os fatos, com os conflitos, incrustando-lhes normas e princpios jurdicos para, assim, ter por obra uma soluo boa, equnime, justa.

    O mais fascinante nessa proposio so as referncias estticas propostas por Celso: bonnus e aequi, ou seja, o bem (e, via de conseqncia, o bom: o substantivo e o adjetivo) e a justia (o justo, compreendido por sua relao direta com a equidade, com o equilbrio, a afastar uma busca geometrizada das relaes humanas). A incluso da justia como material dessa tcnica, dessa arte, humaniza a atuao do jurista, afastando-o da automao: indispensvel conhecer - e bem - a tcnica, as normas, os princpios e o modo de atuar do Direito; mas igualmente indispensvel permitir que as discusses ecoem na conscincia e no corao. H uma necessidade de justia no agir jurdico. E justia tomada pelo equilbrio, sabendo dar a cada um o que seu (suum cuique tribuendi), como afirmado pelo mesmo Celso. Ora, mais do que a tcnica e a criatividade do ser justo e equnime, essa habilidade de dar a cada um o que seu, indispensvel afirmar uma virtude correspondente, emparelhando a esttica do bom e do justo (e equilibrado) com a virtude daqueles que se mostram aptos a essa - ou hbeis nessa - arte. Virtude, friso, e no virtuosismo (a aret sofistica): o suave jeito ponderado dos que fazem o mundo melhor.

    Como se s no bastasse, a proposio de uma esttica jurdica nos remete s relaes entre o belo e o justo, como apontado por Mrio Moacir Porto, compreendidos - no sem algum exagero - como binmio eterno e meta finais de todas as aspiraes humanas, a permitir-lhe dizer que o Direito essencialmente uma obra de arte, submetendo-se chamada lei do belo jurdico.1 Exagero, porque o ser humano est submetido a aspiraes mais concretas e prximas, nem sempre

    1 Os fundamentos estticos do Direito. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 203, ano 60, p. 371, jul./set. 1963. Segundo o autor, No plano do Direito, o Justo se constata atravs da satisfatria adequao da regra s realidades humanas, do mesmo modo que no territrio da Esttica o belo se revela na eleio da forma que fomea a medida do Justo na interpretao da natureza.

  • Nota do Autor xxi

    atentas contemplao dos mais elevados valores do esprito e sua exteriorizao sobre a realidade social. A lei, o ato administrativo e a sentena - e mesmo as anlises doutrinrias, por que no? - nem sempre so justos e, mais, comumente no respeitam a lei do belo jurdico. Desprezam-na, desconsideram-na. O Direito positivado pela norma, pelo ato administrativo ou pela deciso judicial, infelizmente, pode identificar-se com a marreta que destri, com o fogo que queima, com o horror; pode ser - e habitualmente ~ uma simples expresso de poder, uma afirmao da prevalncia individual - ou de certo grupo - sobre outrem, um autobeneficiar-se.2

    preciso uma evoluo de esprito, um refinamento de carter, para se abandonar a utilizao do Direito como mera expresso do poder para, ento, conseguir exercit-lo como uma busca pelo justo e, destarte, pelo belo. No fim dos clculos, v-se, mostro~me assustadoramente platnico: a Justia uma eidos, uma ideia eterna, cuja compreenso absoluta privilgio divino. Aos seres humanos cumpre o esforo dialtico constante de afastar os enganos e buscar compreend-la adequadamente, embora atrelados inexorabilidade do erro, que prprio da humanidade (errare humanum est). Se errar humano, humano errar. Mas no s; humano (no sentido nobre da palavra) lembrar-se, sempre, que se erra, e se esforar para no errar, bem como preocupar-se com seus erros possveis e suas conseqncias: quantas monstruosidades poderiam ter sido evitadas se calculssemos a mera possibilidade de estarmos errados. Talvez no sejamos julgados - aceitando um foro transcendente, com seu nus de f - pelo resultado, mas pelo esforo, pela boa vontade, por sermos ou tentarmos ser compreensivos: a maleabilidade de esprito dos que compreendem que o mistrio divino se espraia sobre a realidade, independentemente de qualquer religio e suas dogmticas, e que necessrio candura para se fazer Direito.

    preciso duvidar da pretenso a uma verdade e aceitar a possibilidade da existncia de verdades que se colocam no dilogo da sociedade. Poderia algum perguntar se a verdade no um valor humano e que, em contraste, um mal em si a inverdade, como tal compreendido o erro, a confuso, a mentira, a falsidade, a omisso do verdadeiro, e todas as demais figuras que traduzem um desrespeito, maior ou menor, verdade. Indubitavelmente, a verdade um bem humano. Quem o duvidaria? Basta lembrar que a verdade uma pilastra sobre a qual se sustenta a confiana. E a confiana, sabemos todos ns, o piso necessrio das relaes amistosas (as amizades, a famlia, os negcios, amores e tantas outras). Portanto, se falta a verdade (no todo ou em uma parte), como se sustentaria a prpria relao? O problema que, a partir dessa premissa correta, partem hordas na defesa intransigente da Verdade, aquela na qual creem e que, por ser um bem supremo, justifica a eliminao dos que dela discordam, o que nos traz o cheiro da morte e

    2 Conferir MAMEDE, Gladston. Semiologia do direito: tpicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura. 2. ed. Porto Alegre: Sntese, 2000.

  • xxii Direito Empresarial Brasileiro

    do horror. A verdade ume no o bem. A vida construda peia ateno e respeito a diversos bens e no me parece ser tranqilo hierarquiz-los: o que vale mais, perguntaria: a verdade ou a justia ou a vida ou a compreenso ou a bondade ou a compaixo, entre outros? No raro, os valores humanos conflitam-se. -lhes implcita a necessidade da ponderao, do juzo humano que sabe dar-lhes vida, equilibr-los, no com a sapincia (a epistme) dos doutos, mas com a sabedoria (phronesis) dos sbios. preciso prudncia para ser justo; compreender, com o corao, os atos humanos.

    Muitos de ns, seres humanos, se sentem confortveis com essas viseiras que se colocam nas mulas, para que s vejam sua frente. Muitos de ns no ouvem e no querem ouvir para alm das suas prprias verdades (sim! H muitas verdades) e a tudo interpretaram como sendo uma confirmao do que querem ouvir, ou, se assim no for, como mentira. Mas a pior mentira aquela que contamos para ns mesmos.

    Preciso alertar os que lem esses livros que escrevi sobre um aspecto essencial de minha obra. No escrevo como um magister, como um jurisconsulto ou jurisprudente, nos moldes em que posto pelas Institutos de Justiniano: Jurisprudncia est divinarum atque kumanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scien- tia, ou seja, a jurisprudncia [a jurstica, a disciplina jurdica] o conhecimento das coisas divinas e humanas, a cincia do justo e do injusto. Definitivamente, no tenho o conhecimento, nem a autoridade para tanto - e, para ser sincero, no acredito que qualquer pessoa o tenha: j tive ocasies reiteradas de criticar o Direito (e a Teoria Jurdica) como afirmaes de uma verdade ou como expresso de uma autoridade.3 H uma passagem de Bemard Shaw, em seu ensaio Socialismo para milionrios, que merece ser aqui repetida: Toda a nossa teoria da liberdade de palavra e opinio para todos os cidados repousa no na assero de que todo mundo tem razo, mas na certeza de que todo o mundo est errado nalgum ponto em que um outro tem razo, de modo que h um perigo para a coletividade em no deixar que todos sejam ouvidos.4 Escrevo sabendo que tambm posso ter razo, e na certeza de que estou tambm errado, como toda a humanidade. Meus livros so exerccio de ao comunicativa, de um jeito prximo ao explicitado por Habermas,5 ou seja, como uma proposio para a constituio e para o aperfeioamento do Estado Democrtico de Direito, para a melhoria da plis.

    3 Conferir MAMEDE, Gladston. Semiologia do direito: tpicos para um debate referendado pela animalidade e pela cultura. 2. ed. Porto Alegre: Sntese, 2000. Tambm em O trabalho acadmico no direito: monografias, dissertaes e teses. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001.

    4 SHAW, George Bemard. Socialismo para milionrios. Traduo de Paulo Rnai. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]; p. 95.

    5 Apud MAMEDE, Gladston. Semiologia do direito: tpicos para um debate referendado pela animalidade e pela cultura. 2. ed. Porto Alegre: Sntese, 2000. p. 134.

  • Nota do Autor xxiii

    Somos, todos, partcipes de uma responsabilidade jurdica. Como disse Prto, a lei no esgota o Direito como a partitura no exaure a msica. Interpretar recriar, pois as notas musicais, como os textos da lei, so processos tcnicos de expresso e no meios inextensveis de exprimir. H virtuoses do piano que so verdadeiros datilgrafos do teclado. Infiis msica, por excessiva fidelidade s notas, so instrumentistas para serem escutados e no intrpretes para serem entendidos. O mesmo acontece com a exegese da lei jurdica. Aplic-la exprimi- la, no como uma disciplina limitada em si mesma, mas como uma direo que se flexiona s sugestes da vida. O que necessrio, portanto, dar vida e calor humano ao ordenamento jurdico da nossa poca.6

    Este trabalho , como produo jurdica, uma pequena pea de artesanato. Embora tenha sido extremamente ousada a pretenso de o escrever, foi mui simples a meta fixada. No , portanto, a expresso da excelncia do douto, j que no estou em condies de manifestar tal excelncia. Prefiro compreend-lo como mais um esforo de compreenso jurdica a implicar, pela prpria natureza do Direito, num esforo de criao e recriao jurdicas, constitudo no como expresso arbitrria, mas como culto ao Direito. Pretende-se como uma simples contribuio para o dilogo social que pode, entre ns, criar uma sociedade melhor. Sei que ningum est inequivocamente certo ou errado em Direito (ou qualquer outro assunto); mas todos deveriam estar inexoravelmente comprometidos com a vida, que talvez no se alcance pela certeza, mas pela dvida, no pelo apego raiz, que nos d o radicalismo, mas pela contemplao das flores e dos frutos que alimentam o esprito e o corpo, sem discriminaes.

    Com Deus,Com Carinho,

    Gladston Mamede

    Para sugestes, crticas e comentrios, fale com o autor: [email protected]

    6 Os fundamentos estticos do direito. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 203, ano 60, p. 374, juL/set. 1963.

  • 1Histrico

    1 A INVENO DO COMRCIO E DO MERCADO

    A histria da humanidade pode ser contada como a histria do desenvolvimento econmico ou, preferindo-se, como a histria das iniciativas de desenvolvimento econmico, esforos individuais para auferir riqueza, benefcios pessoais, que acabaram beneficiando toda a humanidade, dando-lhe desenvolvimento e prosperidade. O esforo de incontveis indivduos pela riqueza conduziu a sociedade criao da ideia e da prtica de mercado - do espao de negociao (e negdo um ato jurdico por excelncia) - e, neste espao de negciao, a busca obstinada por vantagens de mercado (goodwill oftrad). A livre iniciativa, mesmo tendo por motor o comportamento egostico, agomstico, produziu resultados que, com o passar dos anos, aproveitaram-se para toda a humanidade: o contrato, a matemtica, o arado, os diques e a irrigao, a siderurgia, a navegao comercial etc. Em suma, possvel contar a histria da humanidade pela tica da empresa (da organizao dos meios e processos de produo), sob a tica do comrcio.

    O comrcio e o mercado so fenmenos humanos vitais: ideias e prticas que, a partir do momento em que foram desenvolvidas, permitiram o estabelecimento de um dclo de prosperidade, fruto da superao da dimenso egostica da existncia dos grupos isolados, superada pela dimenso universalista do intercmbio, com as mltiplas vantagens dele decorrentes, permitindo no s a circulao de recursos necessrios para a subsistncia mnima; permitindo, para alm, a circulao de

  • 2 Direito Empresarial Brasileiro

    recursos teis para o estabelecimento de uma existncia confortvel, que vence a mera sobrevivncia. A qualidade material de vida do ser humano contemporneo uma prova eloqente da importncia do comrcio na histria da humanidade: um amplo mercado mundializado fornece aos seres humanos toda a sorte de benefcios: alimentos, roupas, medicamentos, educao, entretenimento etc. O estudo da historiografia, no entanto, deixa claro que esta situao fruto de um longo processo evolutivo ao qual serviu o Direito como fator de viabilizao e otimizao das prticas mercantis.

    Houve, sim, momentos na histria em que os grupos humanos viveram o imediatismo da sobrevivncia, buscando a cada instante os elementos necessrios para manterem-se vivos. Mais de um milho de anos nos separam desses instantes em que no se poderia distinguir o comportamento cotidiano de um ser humano daquele que mantinham os demais animais. Basta recordar haver uma controvrsia entre os historiadores em relao aos primeiros homindios - australopitecos (Australopithecus africanus), Homo habilis, depois, Homo erectus, este ltimo h cerca de 1,5 milho de anos -, questionando se foram caadores ou ladres de carcaas, ou seja, se praticavam caa ativa ou roubavam presas de outros predadores; ambos, mui provavelmente, com uma tendncia de, a cada nova fase historiogrfica, ampliar-se a importncia da caa ativa: animais de grande porte- ursos, rinocerontes, elefantes - no paleoltico mdio (200.000 a 40.000 a.C.)> caa especializada de manadas de renas, cavalos, bises, auroques ou mamutes, no paleoltico superior (40.000 a 10.000 a.C.), depois caa de animais menores- cervos, javalis, lebres, pssaros - no mesoltico.1 No se perca de vista, neste contexto, a importncia do advento do fogo: o maior avano tcnico e cultural do Homo erectus foi aprender a lidar com o fogo, o que permitiu no apenas ampliar a defesa do grupo, mas igualmente as possibilidades de intervenes manufatureiras, a principiar pelo elementar: cozinhar poupa tempo, permitindo que o alimento seja consumido mais rapidamente, por amad-io, alm de induir na dieta alimentos que, sem o fogo - e o cozimento - no poderiam ser consumidos,2 do que so um grande exemplo os cereais.

    Neste primeiro momento da histria, o aspecto jurdico relevante o disdpli- namento dos trabalhos de extrao vegetal e animal, bem como o regramento do acesso aos recursos que se apresentem ao grupo. So ordenamentos simplificados, por vezes tdtos (sem expresso verbal explicitada), mas reconheddos, aceitos e praticados pelos membros da mesma comunidade;3 mas entre os grupos no h

    1 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. Histria da alimentao. Traduo de Luciano Vieira Machado. So Paulo: Estao liberdade, 1998. p. 27.

    2 ROBERTS, J. M. O livro de ouro da histria do mundo. Traduo de Laura Alves e Aurlio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 32-33.

    3 Conferir MAMEDE, Gladston. Semiologia do direito: tpicos para um debate referendado pela animalidade e pela cultura. 2. ed. Porto Alegre: Sntese, 2000.

  • Histrico 3

    norma vigendo um amplo espao agonstico de disputa fsica, no qual mesmo o canibalismo no pode ser excludo. De outra face, ainda neste momento da evoluo histrica da humanidade, j se verifica o instituto da propriedade, ainda que comunitria. Nos stios arqueolgicos mais antigos, no Desfiladeiro de Olduvai (frica, atual territrio da Tanznia), nos quais se encontram homindeos do tipo Australopithecus africanus, h indcios de habitao dos mesmos lugares por longos perodos, alm de utenslios como diferentes tipos de pedras, muitas provindas de outras regies, deixando claro que foram escolhidas e trazidas para aquele lugar, alm de pedras lascadas para ficarem com pontas aguadas.4 No perodo neoltico, no Oriente Mdio, registram-se as primeiras criaes de animais para corte - bovinos, ovinos, caprinos e sunos alm das primeiras manifestaes de agricultura.5 Essa revoluo agropecuria instaura um tempo de previdncia, de autocontrole e perseverana, tomando o ser humano um scio ativo da natureza, em vez de continuar como parasita, alm de exigir uma diviso de trabalho; a revoluo seguinte ser o estabelecimento de tcnicas otimizadoras da produo, alm de tcnicas de armazenamento de recursos materiais de alimentos, permitindo o surgimento de atividades espedalssimas, exercidas por pessoas que eram sustentadas por tais excedentes, a exemplo dos mineradores, fundidores, carreteiros e, com eles, uma revoluo tecnolgica: metalurgia, roda, carro de boi, o navio, a vela etc.6 O palco geogrfico e historiogrfico dessa revoluo tecnolgica da humanidade foi a regio entre os rios Tigre e Eufrates, regio qual os gregos atriburam o nome de terra (7cotajj., ou seja, potams) do meio (jj.eoo, isto , meso), ou seja, Mesopotmia (MeooJtoTOCfia). Mais precisamente, trata-se da civilizao sumrica (de Sumer), onde o ser humano aprendeu a controlar os cursos de gua por meio de canais e diques, permitindo tirar proveito do potencial- econmico das terras; a produo de excedentes e a capacidade de armazen-los foi o vetor de superao dos limites da mera subsistncia, viabilizando a formao de conglomerados organizados de pessoas - as cidades - 7 cuja estrutura evoluda o Estado, inicialmente manifestado sob a forma de ddade-Estado (plis - rcki - para os gregos).

    Apenas se pode supor o instante em que a humanidade, por alguns de seus tantos seres de vida efmera, rompeu o isolamento das economias grupais, de produo coletiva, para realizar o primeiro ato de comrcio. Quando teria ocor

    4 ROBERTS, J. M. O livro de ouro da histria do mundo. Traduo de Laura Alves e Aurlio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 23-24,

    5 FLANDRIN, Jean-Louis; MON1ANAR1, Massimo. Histria da alimentao. Traduo de Luciano Vieira Machado. So Paulo: Estao Liberdade, 1998. p. 27.

    6 TOYNBEE, Amold Joseph. Um estudo da histria. Traduo de Isa Silveira Leal e Mroel Silveira. Braslia: Editora Universidade de Braslia; So Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 51.

    7 LEICK, Gwendolyn. Mesopotmia: a inveno da cidade. Traduo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 2003. p. 14. Alm da cidade (e do urbanismo), a civilizao sumrica tambm a criadora da burocracia (estatal, governamental), da escrita, da matemtica e da astrologia.

  • 4 Direito Empresarial Brasileiro

    rido? H 10 mil anos passados? H 15 mil? Antes? Apenas se pode supor. Certo, porm, que esse instante ocorreu e, embora perdido como um simples gro na areia do tempo, representou uma das maiores revolues da histria da humanidade. O senso histrico que o desenvolvimento da historiografia criou entre ns tem esse efeito colateral amargo: sabemos que a cada elemento da cultura humana corresponde um momento o qual foi criado por uma ou mais pessoas. Mas muitas dessas criaes esto enterradas em perodos desconhecidos, no da- tveis. No h memria para dizer quando, onde, como e com quem ocorreram; a nica lembrana a que guardamos: a cultura o registro contemporneo de milnios de nossa evoluo, onde cada um de nossos conceitos e prticas sociais foram engendrados, aprendidos e, depois, transmitidos a outros seres humanos que mantiveram o registro correspondente.8

    Embora no seja possvel asseverar que os sumrios sejam os criadores do comrcio e, com ele, do mercado (sua ideia e sua prtica social), a precedncia histo- riogrfica dos documentos jurdicos encontrados na Mesopotmia (Mecron:oTap.a) toma-a ponto de partida obrigatrio da Histria do Direito, o fim de sua pr-histria e, alis, o prprio ambiente de sua proto-histria: a fase ainda anterior escrita, mas da qual h relatos e vestgios que permitem alguma compreenso do que se passou como parte da evoluo jurdica e mercantil da humanidade. Os efeitos benficos das atividades produtivas, incluindo os das prticas comerciais, foram facilmente percebidos pela sociedade em geral e, certamente, por aqueles que detinham o poder de Estado. Isto explica a importncia que o tema desperta nos primeiros registros jurdicos de que se tem conhecimento.

    De qualquer sorte, claro que o comrcio nasce pelo escambo, pela troca de necessidades. Com o passar do tempo, j h bens - as chamadas commodities, mercadorias primrias de circulao mais fcil - que so utilizados como matria intermediadora das relaes: cereais (designadamente trigo e cevada) e metais (destacando-se a prata) so usados para permitir a fixao de um preo, como fica claro nos mais antigos documentos legais hoje conhecidos: as Leis de Ur-Nammu (c. 2.100 a.C.), Leis de Lipt-Ishtar (c. 1.930 a.C.), Leis de Eshnunna (c. 1.770 a.C.) e Leis de Hamurbi (c. 1.750 a.C.}, todas da Mesopotmia;? esses metais eram pesados para definir a prata necessria para um pagamento; a unidade habitual era o siclo (shekel; correspondente a aproximadamente 8 gramas), sendo que 60 gramas correspondiam a uma mina de prata. Alis, como deixam claro as Leis de Hamurbi, um outro conceito e prtica jurdica j haviam sido assimilados por esse tempo, com importantes reflexos sobre o comrcio: o crdito. Isso, porm, sem que se possa falar ainda em ttulo de crdito, em sentido estrito. Por fim, sabe-se

    8 Conferir MAMEDE, Gladston. Semiologia do direito: tpicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura. 2. ed. Porto Alegre: Sntese, 2000.

    9 Conferir ROTH, Martha T. Law collections from Mesopotama and Asia Minor. 2. ed. Gergia: Scholars Press, 2000.

  • Histrico 5

    hoje que, no sculo VII a.C., os Ldios (reino existente na Anatlia, ou seja, no planalto central do que hoje a Turquia) inventaram a cunhagem de moedas, primeiro em eletro (liga de ouro e prata), depois, durante o reinado de Creso (c. 560 a 546 a.C.) de ouro puro: lingotes padronizados de peso, com smbolos reais que lhe atestavam a qualidade.10

    2 ANTIGUIDADE

    A cidade e, depois, a cidade-Estado so invenes sumrias,11 ficando claro ter sido aquela regio mesopotmica (MscoTtoxajia, terra do meio, entre dois rios: Trigre e Eufrates), hoje ocupada pelo Iraque, o bero da ciso definitiva entre Direito e Moral; aquele como instrumento do exerccio do poder de Estado, esta como dimenso normativa da prpria sociedade, desprovida da coercitividade estatal. Os registros mais antigos informam da existncia, nos alvores do V milnio a.C., de comunidades dispersas, verdadeiras aldeias constitudas entre regies alagadias e zonas desrticas, governadas por um conselho de ancios cujo poder era limitado pela assembleia popular (composta por todos os homens adultos livres), onde vigiam amplamente as prerrogativas da voxpopuli.12 o que se pode apurar em diversos documentos, como o poema pico sumeriano Gilgamesh e Agga.13 Neste contexto, especial ateno se d, na modernidade, ao stio arqueolgico de Eridu, ateno essa que um eco tardio de um reconhecimento antigo, certo que, para os babilnicos (povo tardio na regio, chegando no princpio do II milnio a.C., ali a histria comeou, por interveno de Marduk,14 deus supremo do panteo sumrio:15

    10 Conferir DAVES, Glyn. A history ofmoney: from ancient times to the presente day. Cardiff (Great Britam): Universit of Wales, 1994.

    11 LEICKY, Gwendolyn. Mesopotmia: a inveno da cidade. Traduo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 2003. p. 14.

    12 EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 11.

    13 Datada provavelmente de 2.500 a.C., tida como a verso sumeriana para o dilvio, repetida depois entre babilnios, assrios e outros povos da Mesopotmia. Conferir ALEXANDER, Pat (Org.). Enciclopdia ilustrada da Bblia. Traduo de Edwno Royer. So Paulo: Paulinas, 1987.

    14 LEICKY, Gwendolyn. Mesopotmia: a inveno da cidade. Traduo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 2003. p. 23.

    15 Deus da cidade de Babel. Era considerado filho de Enki ou Ea, senhor da gua subterrnea. Desde os tempos sumerianos era o deus supremo do panteo acdico. Possua a realeza eterna sobre todos os mortais. Foi o nico que enfrentou Tiamat, personificao do caos, segundo a epopeia Enuma Elish. Seu templo principal era E-sag-ila (casa que ergue a cabea) com a clebre torre E-temen-na-ki (casa do fundamento do cu e da terra). [...] Criador e rei do universo, professava-se que Marduc

  • 6 Direito Empresarial Brasileiro

    Uma casa sagrada, uma casa dos deuses num lugar sagrado, no tinha sido feita, juntos no tinham crescido, uma rvore no fora criada,

    Um tijolo no fora assentado, um molde para tijolo no fora construdo,

    Uma casa no tinha sido feita, uma cidade no fora construda,Uma cidade no tinha sido feita, uma criatura vivente no fora colo

    cada [a].

    Todas as terras eram mar.A fonte no mar era um cano de gua.Ento Eridu foi feita, Esagila foi construda,Esagila cujos alicerces Lugaldukuga assentou dentro do Apsu.16

    Enquanto outros stios arqueolgicos no eram encontrados, pode-se dizer principiar-se por Eridu, na qual se encontraram fragmentos de cermicas datados de 3.800 a.C., alm de uma capela ritual datada de 4.900 a.C., a tendncia mesopotmica de valorizar a cidade como espao social e sagrado, cujo primeiro edifcio um templo.17 A cidade mantinha-se como estrutura de apoio para uma populao que, entre o aluvio, o deserto e os pntanos, mantinha um controle sobre o seu ecossistema, explorando-o por lavoura, pastoreio nmade e pesca, mas centrada no templo que foi reconstrudo diversas vezes (foram encontradas mais de 18 nveis de ocupao), at tomar-se uma requintada construo, mais de mil anos aps a construo da pequena capela inicial.18 Esse desenvolvimento social, atestado pela evoluo arquitetnica do templo, se reflete nos cemitrios, nos quais a descoberta de uma cermica mais elaborada, produto de elite, imprpria para um modo nmade de viver, bem como outros bens de prestgio, como joias, tecidos mais elaborados, o que pode sinalizar para a constituio de uma hierarquia social, mas certamente demonstra a existncia de um comrcio, pois alguns objetos (como contas de pedra) eram de origem estrangeira.19 A presena de alimentos e outros indcios de libaes ritualsticas a bem dos mortos tambm um indcio de

    marcava a sorte dos deuses e dos homens. (SCHELBSINGER, Hugo. Dicionrio enciclopdico das religies. Petrpolis: Vozes, 1995. v. II, p. 1685).

    16 Apud LEICKY, Gwendolyn. Mesopotmia: a inveno da cidade. Traduo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 2003. p. 23. Esclarece a autora que o texto provm de uma tablita de argila, grafada com escrita cuneiforme, datada do I milnio a.C., embora a tradio nela inscrita remonte aos primeiros textos escritos, no final do IV milnio a.C.

    17 LEICKY, Gwendolyn. Mesopotmia: a inveno da cidade. Traduo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 2003. p. 24 e 27-28.

    18 Idem, ibidem. p. 24-25,27-28.

    19 Idem, ibidem. p. 32-35.

  • Histrico 7

    preferncias sociais, a indicar que as pessoas enterradas naquele cemitrio eram de algum modo especiais, j que os comuns no se encontraram, podendo ter sido cremados ou deixados no deserto, entre outras prticas fnebres igualmente utilizadas na antiguidade; somem-se a descobertas de sinetes que permitem concluir que algumas pessoas tinham a prerrogativa (o poder ou a responsabilidade) de concluir as transaes comerciais.20

    Hinos religiosos narram ser a justia uma virtude a qual se dava elevada importncia, personificada no s em Utu, deus-sol e deus da justia que rege a ordem universal, mas tambm em Nansche, deusa da cidade de Lagash, descrita como sensvel opresso do homem pelo homem e que bsca justia para os pobres, amparando fracos, rfos e vivas. De acordo com Conteneau, na ideologia sumria, o deus o verdadeiro rei das cidades; os chefes humanos apenas se proclamam seus vigrios, representantes de sua vontade entre os humanos, denominando-se patesi, Quando se passa a ver no rei a condio de soberano, ainda que escolhidos pela divindade (o que por eles sempre frisado), os patesi passaram a ser to somente prepostos que recebiam autoridade do rei, passando a funcionar como intermedirios do Poder Estatal, remetendo administrao central uma contribuio regular.21 De qualquer sorte, preciso no incidir no erro de achar que a aplicao do Direito era simples, primitiva, arbitrria. Pelo contrrio, os sumrios, como ns, hoje em dia, compreendiam o Direito como uma tcnica, que era estudada e cultivada pelos escribas, ao ponto de comportar discusses jurisprudenciais; prova-o a descoberta de duas verses de um mesmo documento - o que atesta ter sido objeto de estudos -, narrando um caso judicirio celebrizado como a mulher silenciosa: Nin-dada fora condenada morte por no ter noticiado s autoridades que seu marido fora assassinado; o tribunal (a Assembleia de Nipur22), no entanto, acolheu a tese de defesa, reconhecendo que a mulher tinha motivos para manter-se calada, concluindo que a justia seria satisfeita se os assassinos fossem executados.23

    20 LEICKY; Gwendolyn. Mesopotmia: a inveno da cidade. Traduo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 2003. p. 35-37.

    21 CONTENAU, Georges. A vida quotidiana na Babilnia e na Assria. Traduo Leonor de Almeida et. al. Lisboa: Livros do Brasil, [s.d.]. p. 343 e 356.

    22 Cidade que se localizava s duas margens do rio Eufrates, ao norte de Sumer, dedicada ao deus Enlil; seu templo, Ekur, foi sucessivamente reformado e mantido at a poca neobabilnica (I milnio a.C.) (Grande enciclopdia Delta Larousse. Rio de Janeiro: Delta: Larousse, 1976. p. 4611).

    33 EPSZTEIN, Lon. A justia soal no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 12.

  • 8 Direito Empresarial Brasileiro

    Por volta de 2.400 a.C., Ur-Uinim-Enmgina ou, como se disse no passado, Urukagina, soberano (ensi) de Lagash,24 inicia um conjunto de reformas,25 todas narradas em documento que chegou at ns. Num primeiro momento, so narrados os abusos que precederam seu reinado e no segundo os editos que promulgou para remediar os males vividos pela sociedade. Entre as medidas narradas, listam-se diversas que visam eliminar abusos cometidos por credores contra devedores, alm da produo dos operrios (se um pobre constri um tanque, seu peixe no lhe ser retirado); arremata o documento: Ur-Uinim-Enmgina baniu dos habitantes de Lagash tudo o que era usura, monoplio, fome, roubos e assaltos e instaurou-lhes a liberade.26

    Em aproximadamente 2.340 a.C., toda a regio submetida ao poder de um nico soberano: Sargo (ou Sargon, para os que preferem o galicismo) constitui o primeiro imprio de que se tem notcia, submetendo todo o crescente frtil, do que hoje o Golfo Prsico at bem prximo do litoral do Mediterrneo (se no o alcanou). D-se incio ao que se chamou de perodo acadiano (Acad ou Acau, foi a cidade construda por Sargo para ser a capital de seu imprio), fase em que se misturaram elementos culturais das culturas sumria e semtica.27 Esse imprio dura aproximadamente dois sculos, desmantelando-se. As cidades-Es- tado da regio voltam a fragmentar-se at que, no sculo 21 a.C., surge um novo imprio, ainda que bem menor que o anterior, liderado pelos caldeus, da cidade de Ur. Conhecida como C/r dos Caldeus, essa cidade-Estado foi um importante centro urbano da Sumria; basta lembrar que mesmo antes da l dinastia (cerca de 2.500 a.C.) j era um centro comercial de destaque.28 Situava-se junto antiga

    24 Cidade-Estado localizada no sudeste da Sumria e que teve grande importncia no perodo entre 2.300 a 1450 a.C. (EPSZTEIN, Lon. A justia saciai no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 13).

    25 Alis, ele se autointitula o primeiro reformador da histria; segundo Epsztein, com razo (A justia social no antigo onente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 13).

    26 EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo onente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 13-14. Epsztein narra diversas teorias que se esforam por explicar as causas motivadoras da reforma levada a cabo pelo ensi de Lagash. Lee- mans cogita ter sido Urukagina um usurpador dos domnios estatais que, muito mal recebido pelas classes superiores, teria buscado a simpatia e o apoio da massa popular para melhor enfrentar seus poderosos inimigos; prxima a posio de Diakonoff, que acredita na ocorrncia de hostilidades entre o clero e a aristocracia, a conduzir o ensi a reforar sua posio poltica e econmica na mesma proporo em que enfraquecia a situao do Templo. Deimel acredita que as medidas justificaram-se pela necessidade de manter a adeso militar de camponeses, pescadores e pastores, que em grande parte compunham o grosso do exrcito (Idem, p. 23). Essas medidas, porm, no teriam conseguido marcar a vida de Lagash, vez que foram editadas dois anos antes da queda de Ur-Uinim-Enmgina, tendo, ento, sido levadas pelo vento (Idem, p. 26).

    27 The Columbia encydopedia. 5. ed. Columbia University Press, 1993. Disponvel em: < http://www. infoplease.com >.

    28 Idem.

  • Histrico 9

    foz do do Eufrates, que era distante cerca de 16 quilmetros da atual, a cerca de 225 quilmetros de onde se construir, sculos depois, a Babilnia, sendo que sua fundao remontaria ao quarto milnio a.C., quando ali se instalaram camponeses vindos do norte da Mesopotmia.29

    Em 1952, urna inscrio pertencente ao Museu de Istambul foi identificada como um fragmento de um Cdigo Legal institudo por Ur-Nammu, revelando um contedo que certamente influenciou o Cdigo de Hamurabi, estabelecido cerca de trs sculos depois.30 Ur~Nammu, em cujo reinado foi erguido o grande zigurate de Sin, iniciou a chamada 3 dinastia, que vigeu entre os sculos XXII a XXI a.C.,31 havendo controvrsias sobre a data deste incio: se em cerca de 2.060 a.C.32 ou 2.112 a.C.33 Considera-se o Cdigo de Ur-Nammu um elo entre as reformas sumerianas, instauradas em Lagash por Ur-Uinim~Enmgina e, depois, Gudea, e os diplomas legais de Eshnunna, de Lipt-shtar e, at mesmo, de Hamurabi] alis, o prlogo do Cdigo de Ur-Nammu lembra muito o texto das reformas daqueles prncipes-pontfices:34 Ur-Nammu dedara-se soberano (ensi) pela vontade dos deuses e, sob a proteo do deus Nanna, afirma o restabelecimento da equidade e da justia.35 Alinha-se, assim, numa tradio de prevalnda do Direito Pblico sobre os interesses e acordos privados que Klima, dtando Epsztein, acredita compor uma tradio Sumria (ou mesopotmica, privilegiando a regio em sua sucesso de povos e Estados), repetida na legislao de Lipit-Ishtar, tanto quanto por Hamurabi, alguns sculos depois; isso apontaria para a provvel existncia de uma linhagem de escribas, formados por uma mesma pedagogia que se manteve no tempo, e prestando seus servios s diversas Administraes Pblicas:36

    Eu estabeleci liberdade para os acadianos e estrangeiros em Sumer e Akad, para aqueles conduzindo trocas martimas no exterior (livres) dos capites martimos, para os pastores (livres) daqueles que apropriam (?) touros, ovelhas e Burros. [...] Naquele tempo, [eu regulei] o trfego de

    29 Nova enciclopdia Barsa. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica do Brasil, [s.d.J. p. 256.

    30 The Columbia encyclopedia. 5. ed. Columbia University Press, 1993. Disponvel em: < http://www. infoplease.com>.

    31 Nova encidopdia Barsa. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicaes, [s.d.]. p. 256.

    32 The Columbia encyclopedia. 5. ed. Columbia University Press, 1993. Disponvel em: < http://www. nfoplease.com> .

    33 EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 14.

    34 Idem, ibidem. p. 14-15.

    35 Idem, ibidem. p. 15.

    36 Idem, ibidem. p. 24.

  • 10 Direito Empresarial Brasileiro

    barcos no banco do rio Tigris, nos bancos do rio Euphrates, nos bancos de todos os rios.37

    O Cdigo de UrNammu fixa relaes estveis entre diversas unidades monetrias (como a prata e o bronze), afastando fraudulentos e prevaricadores; mais, atesta ter garantido que o homem de um siclo no fosse explorado pelo homem de uma mina?8 protegendo tambm os rfos e as vivas.39 Sobre este ltimo aspecto, porm, Klima reala que o princpio da proteo s vivas e aos rfos, assim como aos pobres, parece repetir-se de um modo estereotipado nas legislaes mesopotmicas, talvez a indicar uma enunciao vazia, visando agradar a opinio pblica.40 Sobre a padronizao das medidas, l-se:

    Eu fiz a medida-bariga para cobre e a padronizei em 60 silas. Eu fz a medida-seah para cobre, e a padronizei em 10 silas, eu fz a medida-seah normal do rei para cobre e a padronizei em 5 silas. Eu padronizei (todos) os pesos de pedra (daqueles?) Puros(?) X-sido (peso) para o 1-mina (peso). Eu fiz 1-sila medida do bronze e a padronizei em 1-mina.41

    Segundo Szlechter, a grande inovao do Cdigo de Ur-Nammu seria a instituio de um sistema de composio legal para a soluo de litgios fundados em ilcitos penais, preferindo-a ao talio, que seria utilizado quatro sculos depois no Cdigo de Hamurbi.42 Importa observar, neste contexto, a proteo que dada s fontes de produo, ento designadamente agrrias, deixando daro que o Estado, por seus detentores, preocupa-se com a preservao das fontes que abastecem e garantem o mercado; vejam-se os seguintes fragmentos do Cdigo de Ur-Nammu:

    30. Se um homem violar os direitos de outro e cultivar o campo de outro homem, e ele processar [para assegurar os direitos de fazer a colhei

    37 Apud ROTH, Martha T. Law collecons from Mesopotamia and Asia Minor. 2. ed. Traduo de Filipe Regne Mamede. Gergia: Sholars Press, 2000. p. 15-16.

    38 Ambos so medidas de peso, sendo que uma mina (aproximadamente 500 gramas) contm 60 sidos.

    39 EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 15.

    40 Apud EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 26.

    41 Apud ROTH, Martha T. Law coections from Mesopotamia and Asia Minr. 2. ed. Traduo de Filipe Regne Mamede. Gergia: Shoiars Press, 2000. p. 16.

    42 Apud EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 14-15.

  • Histrico 11

    ta, alegando que] ele [o proprietrio] abandonou [o campo] [...] aquele homem deve ser privado de suas despesas.

    31. Se um homem inundar [?] o campo de outro homem, ele dever medir e entregar 900 silas de gro por 100 sars de campo.

    32. Se um homem der um campo para outro homem cultivar, mas este no cultiva e permite o terreno se tomar uma rea devastada, ele dever medir 900 silas de gro por 100 sars.43

    A segunda legislao mais antiga que se conhece o chamado Cdigo de Lipt-shtar, que antecederia as Leis de Hamurbi em cerca de 150 anos,44 sendo datada por volta de 1930 a.C. A autoridade real por trs dessa coleo de leis Lipit-Ishtar (r. 1938-1924), quinto governante da primeira dinastia de Isin (fundada aps o colapso da terceira dinastia de Ur).45 Isin (ou Issin) localizava-se na baixa Mesopotmia. Seu stio arqueolgico, na diviso geopoltica hodiema, localiza-se no Iraque, ao sul da cidade de A/a;,46 Ali, no sculo XIX a.C.,47 teria vivido Lipt-shtar, quinto rei da dinastia de Isin, e autor de um Cdigo de leis que leva o seu nome: o Cdigo de Lipt-shtar.48 Documentos outros descrevem o pai de Lipit-Ishtar, chamado Ismedagan, como o propagador do direito e da justia. Do denominado Cdigo de Lipt-shtar tem-se atualmente nove tablitas, num total de 43 artigos, aos quais se acrescentam um prlogo e um eplogo, enunciando a origem do poder real e princpios sobre o seu exerccio. Alis, o prembulo anuncia que Lipt-shtar, pastor obediente, foi chamado por Nunamnir para estabelecer no pas a imparcialidade, para extirpar pela palavra a corrupo, para desmantelar pela fora a maldade e a animosidade.49 O Cdigo de Lipt-shtar consagra toda uma seo de sua primeira parte aos escravos, cuidando de sua fuga, das contestaes relativas ao estado de escravatura, casamento de escrava e emancipao de filhos nascidos de relaes entre senhor e uma escrava que seja sua concubina; em uma

    43 Apud ROTH, Martha T. Law collections from Mesopotamia and Asia Minor. 2. ed. Traduo de Filipe Regne Mamede. Gergia: Sholars Press, 2000. p. 20-21.

    44 CONTENAU, Georges. A vida quotidiana na Babilnia e na Assria. Traduo de Leonor de Almeida et ai. Lisboa: Livros do Brasil, [s.d.]. p. 357.

    45 ROTH, Martha T. Law collections from Mesopotamia and Asia. Minor. 2. ed. Gergia: Sholars Press, 2000. p. 23.

    40 Grande enciclopdia Delta Larousse. Rio de Janeiro: Delta: Larousse, 1976. p. 3600.

    47 Consta que entre c. 1969 a 1735 a.C. teria a cidade-Estado vivido sobre o comando de uma dinastia de origem amorrita (Grande enciclopdia Delta Larousse. Rio de Janeiro: Delta: Larousse, 1976. p. 3600).

    48 EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Cecliade M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 15.

    49 Apud EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 16.

  • 12 Direito Empresarial Brasileiro

    de suas disposies, prev que, mesmo considerando o escravo um bem patrimonial, faculta-se comparecer em juzo nos processos relativos sua liberdade.50 A reunio dos fragmentos at encontrados da codificao de Lipt-Isditar permite supor que ela continha cerca de uma centena de artigos.51

    Outro importante documento dessa poca so as Leis de Eshununna, que alguns chamam de Cdigo de Bilalama, cuja data objeto de alguma controvrsia, havendo quem a fixe por volta de 1.950 a. C.,52 mas tambm quem a situe cerca de 1790 a.C,53 e que vigeu em Eshrmnna, cidade-Estado situada ao norte do que hoje Bagd, no vale do rio Diyla, um afluente do rio Tigre; a regio hoje chamada de Tell Ashmar,54 localizada mais prxima do Ir do que do Golfo Prsico. Sua autoria tambm objeto de controvrsia, afirmando Szlechter ser autor Ipiq AddadII ou Dadusha, filho desse. As Leis de Eshnunna constam de um prlogo e de 60 artigos, trazendo elementos do Direito sumrio (i. e., dos Cdigos de Ur-Nammu e Lipt-Ishtar),55 junto com elementos que lhe parecem estranhos.56 So distingui- das, na legislao, trs classes sociais. Uma classe superior, os awilu, era formada pelos patrcios que gozam de plena liberdade e de plenos direitos civis. Segue-se uma classe intermediria, os mushkenu, que eram homens livres (provavelmente escravos alforriados e pessoas de origem estrangeira), mas que no gozavam da plenitude dos direitos. Constituem uma classe inferior aos awilu, mas eram dela livres e independentes, gozando para tanto de proteo do poder central. Exemplificam-no alguns dispositivos; assim, l-se o artigo 35 garantir-lhes a faculdade de manter crianas que tenham recebido de uma escrava do palcio, bastando indenizar o palcio; j o art. 50 d ao soberano poder de perseguir, mesmo fora das fronteiras do Estado, escravos (wardu) fugitivos, bem como os animais desgarrados que pertenam ao palcio, aos awilu e aos mushkenu. H tambm norma a garantir que no poderia o palcio agregar mushkenu ao seu servio (seja como servos, seja como funcionrios assalariados). Por fim, estavam os wardu, ou seja, os

    50 Idem, ibidem.

    51 CONTENAU, Georges. A vida quotidiana na Babilnia e na Assria. Traduo de Leonor de Almeida et al. Lisboa: Livros do Brasil, [s.d.j. p. 357.

    52 Enciclopdia Mirador Internacional. So Paulo, Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica do Brasil, [s.d.]. p. 5655.

    53 Szlechter apud EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 16.

    54 gps2TEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 16.

    ss Supondo-se, na grande controvrsia sobre datas, ser esse anterior; do contrrio, a influncia seria das Leis de Eshnunna sobre o Cd. de Lipt-Ishtar.

    56 EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 17.

  • Histrico 13

    escravos.57 Como usual nas legislaes desse tempo e lugar, verifica-se nas Leis de Eshnunna uma vigorosa interveno do Estado no domnio econmico. H normas fixando preos de gneros de primeira necessidade, preos para os servios mais comuns, preos para os servios de transportes (especialmente dos barqueiros), regulamentao de emprstimos e do pagamento de dvidas, alm da fixao de uma relao estvel entre os metais utilizados para trocas e gros habitualmente comercializados:58

    Um gur59 de cereais [gros] por um siclo60 de prata.

    Trs ca61 de leo de ungir por um siclo de prata.

    Um sut62 e dois ca de leo de ssamo por um siclo de prata.

    Um sut e cinco ca, de gordura de porco por um siclo de prata.

    Quatro sat63 de leo do rio [betume] por um siclo de prata.

    Seis minas64 de l por um siclo de prata.

    Dois gur de sal por um siclo de prata.

    Um gur de potassa por um siclo de prata.

    Trs minas de cobre por um siclo de prata.

    Duas minas de cobre trabalhado por um siclo de prata.65

    No norma nica. O segundo artigo da legislao prossegue com essa interveno pblica no domnio privado, tabelando o preo de leo de ssamo, gordura de porco, betume; e os artigos seguintes definem preo para os servios de transporte com carro de bois e seu condutor (por um dia inteiro), barco e barqueiro (incluindo a responsabilidade civil do barqueiro, que dever restituir tudo

    57 Idem, ibidem.

    58 EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Traduo de M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 17.

    59 Nesse tempo, provavelmente, cerca de 300 ca, ou seja, 300 litros.

    60 Nesse tempo, pouco mais de 8 gramas.

    61 Nesse tempo, cerca de 1 litro.

    62 Nesse tempo, o sut -ou sutum eqivalia a aproximadamente 10 litros. Um sut e dois ca so,portanto, cerca de 12 litros.

    63 Plural de sut. 4 sat so iguais a 40 litros.

    64 Uma mina valia 60 siclos, portanto, cerca de 500 gramas. Seis minas correspondem a cerca de3 quilogramas.

    65 Apud BOUZON, Emanuel. Uma coleo de direito babilnico pr-hamurabiano: leis do reino de Enunna. Petrpois: Vozes, 2001. p. 62-63.

  • 14 Direito Empresarial Brasileiro

    que afundou, se foi negligente na conduo do barco). So definidos, ainda, limites de juros para os emprstimos:

    18a - Por um sido de prata deve-se acrescentar um sexto de sido e seis gros [she]66 como juros; por um gur de cevada deve-se acrescentar um pan e quatro sat de cevada como juros.67

    Fica claro, fazendo as contas, que os juros permitidos para o emprstimo de metais eram de 20% ao ano, ao passo que os juros permitidos para o emprstimo de cereais eram de 33,3% ao ano. Estipula-se a poca e o lugar de pagamento, garantias para os emprstimos, contrato de depsito, entre outras normas para a regulamentao do comrcio.

    Cito, ainda, as Leis de Hamurbi, famoso edito princeps que, por dcadas, se considerou, equivocadamente, a primeira legislao escrita da histria da humanidade. Hamurbi foi o sexto soberano da primeira dinastia babilnica, que unificou sua soberania sobre toda a Mesopotmia, atravs de guerras e alianas polticas com os reinos vizinhos,68 fazendo daquela cidade uma espde de capital poltica, religiosa, econmica e intelectual da sia anterior,69 e por isso considerado um dos mais importantes monarcas que governaram a Mesopotmia.70 A localizao de seu reinado no tempo oferece uma grande dificuldade para pesquisadores, no obstante a engenhosidade de arquelogos e historigrafos: inicialmente, os inddos sugeriam algo em tomo dos sculos XX e XIX a.C.; porm, um documento legal do 10a ano de seu reinado mendona um rei assrio (Shamshi-Adad), o que poderia localizar seu reinado dois sculos antes; o prosseguimento dos estudos sanou essa dvida, mas no superou outras, levando a trs dataes distintas: o assirlogo Weidner estimou entre 1955 e 1913 a.C.; o arquelogo norteamericano Albright sugeriu 1868 a 1828 a.C.; o alemo Ungnad apostou em 1801 a 1759 a.C.; por fim, o professor francs Parrot obteve relativo consenso na comunidade internadonal, fixando o reinado entre 1728 e 1686 a.C.71 Epsztein, em edio

    66 Um she (ou se) traduz-se por um gro; cada sido divide-se em 180 gros.

    67 Apud BOUZON, Emanuel. Uma coleo de direito babilnico pr-hamurabiano: leis do reino de Esnunna. Petrpolis: Vozes, 2001. p. 92.

    68 LIMA, Joo Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 1.

    69 EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Trad. M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 18.

    70 CERAM, C. W. O segredo dos hititas. 5. ed. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1973. p. 169; a exemplo de outros, o autor denomina Hamurbi de o rei legislador.

    71 CERAM, C. W. O segredo dos hititas. 5. ed. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1973. p. 169 ss.

  • Histrico 15

    mais recente,72 discorda; aps narrar um impasse entre uma cronologia longa (1848 a 1806 a.C.), uma mdia (1792 a 1750 a.C.) e uma curta (1728 a 1686 a.C.), afirma um consenso em tomo da cronologia mdia, ou seja, 1792 a 1750 a.C,73 sendo provvel que as Leis de Hamurbi sejam de 1752 a.C., ou seja, de dois anos antes de sua morte.

    O denominado Cdigo de Hamurbi foi descoberto a partir de uma esteia de diorito negro (que se encontra no Museu do Louvre, em Paris) de 2,25 m de altura, 1,6 m de circunferncia e 2 m de base, onde encontram-se gravadas suas normas, descoberta por Jaques Morgan nas runas da cidade de Susa, na Prsia.74 Na parte superior do monumento, v-se Shamash, o deus Sol e deus da justia,75 entregando o cdigo a Hamurbi, representado de forma sria, reverente e contemplativa. Na parte inferior esto as normas, dispostas em 46 colunas e 3.600 linhas, contendo 18 captulos e 282 artigos, muitos mutilados e ilegveis.76 Entre esses artigos, citam- se normas sobre contratos agrcolas (artigos 35 e seguintes), incluindo medidas de proteo ao agricultor, arrendante de terras, permitindo-lhe a prorrogao unilateral do contrato para conseguir recuperar o seu investimento:

    Artigo 47. Se o agricultor, porque no tirou seu investimento do ano anterior e disse: eu quero cultivar o campo, o proprietrio do campo no o impedir; o agricultor cultivar seu campo e na colheira ele levar o gro conforme os juros daquele ano.77

    Somem-se normas sobre emprstimos e juros, sobre o contrato de sociedade, a exemplo do artigo 106:

    Artigo 106. Se um comissionado recebeu prata de um mercador e contestou seu mercador, esse mercador diante de deus e de testemunhas

    72 A edio original, francesa, de 1983.

    73 EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Trad. M. Ceclia de M. Duprat. So Paulo: Paulinas, 1990. p. 18.

    74 LIMA, Joo Batista de Souza. As mais antigas normas de Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 1.

    75 EPSZTEIN, Lon. A justia social no antigo oriente mdio e o povo da Bblia. Trad. M. Ceclia de M. Duprat. So Pauo: Paulinas, 1990. p. 19.

    76 LIMA, Joo Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 2.

    77 Apud LIMA, Joo Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 8.

  • 16 Direito Empresarial Brasileiro

    comprovar que o comissionado recebeu prata e o comissionado dar ao mercador at trs vezes mais toda a prata que recebeu.78

    Mesmo normas que apontam para tuna primitiva proteo ao consumidor podem ser identificadas, sendo exemplo o artigo 108, como se verifica:

    Artigo 108. Se uma tabemeira no recebeu gro como pagamento de cerveja, mas recebeu prata em peso grande ou diminuiu o equivalente de cerveja em relao ao equivalente de gro, comprovaro isso contra a tabemeira e a lanaro ngua.79

    Como se s no bastasse, tambm nas Leis de Hamurbi se leem tabelamento de preos e regras sobre a responsabilidade civil dos mais diversos profissionais, incluindo mdicos, barbeiros, construtores, barqueiros etc.

    Adiante, para o primeiro milnio a.C., Bulgarelli e Requio destacam a importncia da atuao mercantil de fencios, gregos e romanos, lembrando, porm, que no tiveram um conjunto de normas especialmente destinadas ao comrcio, embora faam meno Lex Rhodia de lactu, lei romana de inspirao fencia, que cuidava do alijamento, ou seja, do lanamento da carga (ou parte desta) ao mar para evitar o naufrgio, chamado pelo Cdigo Comercial de avaria grossa, ou o instituto da foenus nauticum, relativo ao cmbio martimo.80 Os fencios, alis, possuam um comrcio variado, incluindo madeira, tecidos tingidos de prpura, alm da distribuio dos mais diversos e, no raro, exticos produtos trazidos pelas caravanas, bem como bens de primeira necessidade; no possuam um governo nacional, organizando-se em cidades-Estado, sendo comum a administrao pelos comerciantes mais prsperos,81 a permitir caracteriz-los como uma talassocracia (governo de marinheiros) ou mesmo uma plutocracia (governo de ricos).

    Roma, citada acima pela influncia fencia, no teve, efetivamente, um Direito do Comrcio, sendo certo que sua jurisprudncia no criou mais do que algumas normas dispersas; alis, sequer uma palavra especfica para comrcio tinha o latim: commercium o ato de troca entre vivos; negotiatio o exerccio de qualquer ato de indstria; mercatura o trfico de mercadorias, em sentido.estrito, como afirma Alfredo Rocco, destacando, em acrscimo, que os romanos no foram um povo de comrcio, atividade que era vista com certo preconceito, exercida por escravos e

    78 Apud LIMA, Joo Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 12.

    79 Apud UMA, Joo Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Fbrense, 1983. p. 13.

    80 REQUIO, Rubens. Curso de direito comercial 15, ed. So Paulo: Saraiva, 1985. v. 1, p. 8-9. BULGARELLI, Waldirio. Direito comercial 16. ed. So Paulo: Atlas, 2001. p. 26-28.

    81 PETIT, Paul. Histria antiga. Trad. Moacyr Campos. 4. ed. So Paulo: Rio de Janeiro: Difel, 1979. p. 55.

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    servos ou, ainda, por estrangeiros (gentios). Ainda assim, o corpus iuris registra normas sobre barqueiros, estalajadeiros etc.82

    3 IDADE MDIA E MODERNA

    O comrcio internacional conhece um grande impulso ao final da Idade Mdia, com a liberao do monoplio rabe sobre o mediterrneo, e, da em diante, ao longo da Idade Moderna, onde a busca pela mercancia mais lucrativa levou, inclusive, aos chamados descobrimentos. Bulgarelli chama a ateno para o papel essencial desempenhado pelas associaes de comerciantes, constitudas para resistir aos achaques de senhores feudais, e que assumem um papel predominante na nova ordem, transformando os Municpios em verdadeiras confederaes comerciais, a exemplo de Gnova, Pisa, Florena e Veneza; foi esse o perodo de formao de um Direito do Comrcio (ou Direito Comercial), um conjunto de normas geis que se contrapunham ao formalismo das normas do Direito Cannico, valorizando os costumes empresariais, redigindo seus prprios estatutos (o que explica a utilizao do termo Direito Estaturo), bem como juntas de julgamento prprias para o arbitramento de controvrsias entre comerciantes. O autor, citando Carvalho de Mendona, d exemplos de consolidaes de costumes mercantis que tiveram importncia destacada na antiguidade, quando alcanaram uma autoridade prxima da lei: o Consulato delMare (Espanha, sculo X), as Consuetudines (Gnova, 1056), o Constitutum usus (Pisa, 1161), o Liber consuetudinum (Milo, 1216), as decises da Rota Genovesa sobre comrcio martimo, o Capitulare Nauticum (Veneza, 1255), a Tabula Amalfitana, tambm chamada de Capitula et Ordinationes Curiae Maritimae Nobilis Civitatis Amalphe (Amalfi, sculo XIII), Ordinamenta et Consuetudo Maris Edita per Cnsules Civitatis Trani (Trani, sculo XIV) e Guidon de la Mer (Rouen, sculo XVI).83

    Assim, forjaram-se as condies histricas para a constituio de um direito de classe, ocupado especificamente do fenmeno mercantil. Essas autonomias disciplinares, no Direito, nem sempre atendem a aspectos epistemolgicos mais profundos, nem sempre apontam para a necessidade de regimes jurdicos distintos, ao contrrio da percepo, j entre os romanos, da distino entre o regime jurdico do Direito Pblico e o regime jurdico do Direito Privado. Em muitas ocasies, dentro do mesmo regime jurdico toma-se relevante a criao de um direito de classe, de um conjunto de princpios jurdicos, teorias e normas que deem suporte a determinado fenmeno humano, em face de sua importncia, significncia e repercusso. A criao do Direito Financeiro e do Direito Tributrio, no mbito

    82 ROCCO, Alfredo. Princpios de direito comercial. Traduo de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003. p. 10-12.

    83 BULGARELLI, Waldirio. Direito comercial. 16. ed. So Paulo: Atlas, 2001. p. 29-33.

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    do Direito Administrativo, um exemplo. A criao de um direito para a mer- cancia, no plano do Direito Privado, destacando-se da grande massa do que se entende por Direito Civil, um outro exemplo. Em alguns casos, devo frisar, esse seccionamento pode, sim, conduzir a regimes prprios ou, no mnimo, a regimes intermedirios, do que exemplo, acredito, o Direito do Trabalho, assentado tanto sobre bases privatsticas (o contrato e as obrigaes convencionais) e publicistas (a interveno estatal na liberdade de contratar o trabalho, como meio de proteo ao trabalhador); exemplo, tambm, o Direito do Consumo, igualmente revelando bases privatsticas (o Direito Empresarial, o Direito Obrigacional e, no mbito deste, o Direito Contratual) e bases publicistas (o Direito Econmico), a traduzir, no mbito das relaes contratuais de consumo, uma interveno estatal no domnio econmico que pode revelar-se tpica (uma relao jurdica singular, a exemplo da relao entre Joo e a loja de sapatos) ou sistmica (todo um conjunto difuso de relaes havidas ou por haver, a exemplo do ajuizamento de aes civis pblicas).

    Neste contexto, h quem pretenda ser italiano o surgimento do Direito do Comrcio, como um ramo jurdico autnomo, afirmando ter sido ali que se deu o passo essencial para a afirmao e desenvolvimento da disciplina, pela valorizao da reserva normativa da sociedade, os costumes mercantis assentados, hbeis a melhor traduzir a efetividade das operaes efetivamente estabelecidas entre os agentes econmicos, bem como sua evoluo, cuja valorizao acabou por determinar o reconhecimento de um direito consuetudinrio mercantil, um consuetudo mercatorum ou stylus mercatorum.84 Outros chamam a ateno para o fato de que a codificao do Direito Comercial surge na Frana com duas ordenanas de Luiz XTM datadas de 1673 (sobre comrcio terrestre) e 1681 (sobre comrcio martimo), normas que seriam a base do Cdigo Comercial de 1808.85

    Foi esse o cadinho no qual se fundiram os elementos que constituram as bases para que, na modernidade - e seu apego aos purismos disciplinares s pudesse afirmar a existncia autnoma de um Direito Comercial, quero dizer, de um Direito para o Comrcio ou Direito para as atividades dos Comerciantes. Um Direito, alis, que tinha por elemento fundamental o ato de comrcio, elevado qualidade de elemento epistemolgico capaz de distinguir, no plano do Direito Privado, uma cincia jurdica do comrcio de uma cincia jurdica civil. Nesse sentido, Rubens Requio destaca a afirmao histrica do Direito Comercial como disciplina dos atos de comrcio, ou seja, da valorizao de uma identidade acadmica fundada num elemento objetivo (o ato) e no num elemento subjetivo (o comerciante), tendncia que teria sido inaugurada pelo Cdigo de Savay (1673), sendo repetido pelo Cdigo Civil francs de 1807, dito Cdigo Napolenico, a quem serviu como

    84 ROCCO, Alfredo. Princpios de direito comercial. Traduo de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003. p. 12-15.

    85 DUARTE, Ronnie Press. Teoria da empresa luz do novo Cdigo Civil brasileiro. So Paulo: Mtodo, 2004. p. 36.

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    elemento hbil a garantir a ideia de igualdade, j que evitava distines fundadas na pessoa.86 Alis, uma vez extintas as corporaes de ofcio pela Revoluo Francesa, a prpria definio de comerciante se tomava difcil, sendo mais fcil adotar a definio do ato de comrcio, a partir de listas elaboradas pelos tribunais de comrcio - o que levou Delamare e Le Poitvin a denunciar que nada mais se fez do que definir como comerciais alguns atos civis.87 Entretanto, assim foi feito: um Cdigo Civil e um Cdigo Comercial, estrutura jurdica que se expandiu, sendo copiada e reafirmada pelas legislaes dos mais diversos pases ao longo do sculo XIX.

    3.1 Direito comercial no Brasil

    Seguindo essa tendncia, editou-se no Brasil, em 1850, a Lei 556, criando o Cdigo Comercial Brasileiro e, assim, adotando a Teoria dos Atos de Comrcio, nos moldes do Cdigo Comercial francs. Estabeleceu-se assim, tambm no Direito Brasileiro, uma dicotomia no Direito Privado, entre Direito Civil e Direito Comercial. O prestgio dos comerciantes brasileiros est na raiz da edio do Cdigo Comercial, em 1850, bem como a constituio de um Tribunal do Comrcio, composto por magistrados togados (bacharis em Direito) e por comerciantes, com existncia entre 1850 e 1875. Basta lembrar que o Direito Civil foi basicamente regido, at 1917, pelas Ordenaes Filipinas do Reino de Portugal, editadas por volta de 1600, e que j haviam sido revogadas na Europa, com edio do Cdigo Civil portugus de 1868.

    Com efeito, ao longo do Imprio, os grandes comerciantes diversificaram suas atividades por vrios negcios, inclusive o crdito, definindo-se como um estrato social prprio: uma elite urbana composta por capitalistas e financistas (chamados de homens de negcio) e por atacadistas (grossistas ou negociantes do grosso ou mercadores de grosso trato), distnguindo-se dos comerciantes menores ( retalhistas ou comerciantes de retalho ou mercadores de sobrado). Esse patriciado mercantil aproximou-se da Coroa, chegando, em muitos casos, a transformar suas riquezas em bens de raiz, adquirindo terras e, at, ttulos nobilirquicos. Essa elite comercial, ao tempo da chegada da famlia real, denominava-se Corpo de Comrcio, assumindo, no incio do Imprio, a forma de Sociedade de Assinantes da Praa e, enfim, Associao Comercial do Rio de Janeiro, sendo que seus esforos para

    86 REQUIO, Rubens. Curso de direito comercial. 15. ed. So Paulo: Saraiva, 1985. v. 1, p. 11.

    87 MENDONA, Jos Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial. 5. ed. Rio de Janeiro, So Paulo: Freitas Bastos, 1953. v. 1, p. 67.

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    se incorporar aristocracia agrria, at por meio de laos matrimoniais entre os descendentes, tinham por objetivo facilitar o acesso ao governo.88

    Explica-se, assim, a convivncia entre um Gdigo Comercial moderno e uma legislao civil arcaica, fundada nomeadamente nas Ordenaes. O atendimento da demanda desses negociantes implicava a montagem de uma ordem jurdica abalizada no avano do capitalismo mundial. Contudo, interessava garantir os reclames da ordem anterior, o que gerou uma produo jurdica original no Brasil, articulando os interesses de setores tradicionais, pautados nas Ordenaes Filipinas, com os pautados nos mais avanados cdigos existentes nos pases europeus civilizados. Para a insero do imprio brasileiro no mercado internacional capitalista, tomava-se cmcial a montagem jurdica e poltica da sociedade para acompanhar as transformaes que ocorriam nas economias centrais.89

    Ainda em Edson Alvisi Neves, aprende-se que o modelo hbrido chancelado por Napoleo Bonaparte, constituindo uma estrutura judiciria mercantil composta no s por bacharis, mas tambm por comerciantes, garantindo a assimilao das novidades nos costumes e prticas mercantis, descambou, no Brasil, por uma disputa entre negociantes e bacharis (poder econmico versus poder burocrtico), ao final vencida por esses ltimos, com a extino do Tribunal do Comrcio, em 1875. Alis, uma disputa que se repetiu entre juizes de paz (leigos) e juizes togados (bacharis), tambm vencida pelos diplomados. Em fato, como magistralmente ensina Edson Alvisi Neves, os bacharis em Direito desempenharam, tanto no Estado portugus, quanto no Estado brasileiro, a importante funo de dar sustentao do poder, estruturando o aparato burocrtico que d base ao Direito racional, no qual funes permanentes (organizacionais) so exercidas conforme normas positivadas e por meio de rgos de autoridade que se estruturam em cadeia hierrquica, com competncias definidas. Os bacharis predominavam na estrutura estatal e viabilizavam as aes estatais, sendo que sua importncia facilmente se demonstra pela preocupao com a criao de cursos jurdicos no Brasil.90

    De outra face, a legitimao oferecida pelo recurso burocracia jurdica racional, d ao poder central um mecanismo eficaz de controle ideolgico poltico e social. A escolha dos novos juizes dava-se por indicao, de forma que o curso de Direito, conquanto necessrio, no era suficiente para se candidatar ao cargo de juiz. Como a nomeao dava~se por intermdio do Ministro da Justia, necessa

    88 NEVES, Edson Alvisi. Magistrados e negociantes na corte do Imprio do Brasil: o Tribunal do Comrcio. Rio de Janeiro: Jurdica do Rio de Janeiro: Fapeij, 2008. p. 7, 20-23, 42-43, 53-55.

    89 NEVES, Edson Alvisi. Magistrados e negociantes na corte do Imprio do Brasil: o Tribunal do Comrcio. Rio de Janeiro: Jurdica do Rio de Janeiro: Fapeij, 2008. p. 46.

    90 NEVES, Edson Alvisi. Magistrados e negociantes na corte do Imprio do Brasil: o Tribunal do Comrcio. Rio de Janeiro: Jurdica do Rio de Janeiro: Fapeij, 2008. p. 14,17-19, 27, 31-35.

  • Histrico 21

    riamente um bacharel, mormente um magistrado, tambm nesse processo estava garantida a autopeipetuao e o controle ideolgico.91

    A vitria dos bacharis sobre os comerciantes, ainda no sculo XIX, acaba com o Tribunal do Comrcio, mas no foi suficiente para extinguir a dicotomia que se estabelecera no Direito Privado, artificialmente dividido em Direito Civil e Direito Comercial. Esforos houve, no Brasil, para faz-lo, ainda na dcada de 50 do sculo XIX, mas coube aos italianos, como se estudar na seqncia.

    4 UNIFICAO DO DIREITO PRIVADO

    Ainda nos bancos da vetusta Casa do Conselheiro Afonso Augusto Moreira Pena, a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, com o jeito e os professores que tinha na dcada de 1980, ouvi que no dia do Juzo Final a luta dos justos contra os pecadores no seria a nica; estariam se golpeando, igualmente, os civilistas e os comercialistas. Geraes foram criadas assim: embora nas varas cveis do Forum juizes cveis julgassem causas comerciais e cveis, e embora a maioria dos advogados trabalhasse constantemente tanto com o Cdigo Comercial, quanto com o Cdigo Civil, pensvamos que eram reas incompatveis. Porm, essa distino fora sustentada, por longos anos, apenas numa t