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Dennis de Oliveira GLOBALIZAÇÃO E RACISMO NO BRASIL Estratégias políticas de combate ao racismo na sociedade capitalista contemporânea União de Negros pela Igualdade 2000

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Dennis de Oliveira

GLOBALIZAÇÃO E

RACISMO NO

BRASIL Estratégias políticas de combate ao racismo na

sociedade capitalista contemporânea

União de Negros pela Igualdade

2000

1

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Esta obra foi editada pela União de Negros pela

Igualdade de São Paulo

Endereço: Rua Basílio Alves Morango, 35 –

Jardim Brasil

CEP: 02220-000 – São Paulo (SP)

Tel: 11-6987-2080

E-mail: [email protected]

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2

Agradecimentos

Boa parte deste livro foi produzida durante minha militância política

na Unegro (União de Negros pela Igualdade) cujos militantes quero agradecer, em

especial os membros da coordenação geral de São Paulo na gestão 1998/2000 –

Salaciel Vilela, João Mendes dos Santos, Roberto Almeida de Oliveira e Esther

Francisco da Silva. Esta coordenação foi responsável pela sobrevivência e

reconstrução da Unegro em São Paulo que passou por um período difícil no final

dos anos 90 devido a uma série de problemas internos que culminaram com o

afastamento de alguns quadros da entidade, além do que foi abalada pelo

falecimento de duas grandes lideranças – Luiz Carlos Felipe, o popular Doido,

diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Água, Esgoto e Meio

Ambiente, responsável pela inserção da discussão do racismo no movimento

sindical; e Rosângela Ferreira, responsável pela construção do núcleo da Unegro

no bairro do Jardim Brasil e vítima da má qualidade da saúde pública neste país.

Somente a militância, embora importante, não seria possível

construir as reflexões que faço neste trabalho. Por isto, agradeço também aqueles

que me ajudaram e orientaram na trajetória acadêmica: as professoras Maria

Nazareth Ferreira, minha orientadora de mestrado e doutorado, e Liliane Trindade,

grande companheira de luta e todos os pesquisadores do Celacc (Centro de

Estudos Latino Americanos de Cultura e Comunicação).

Dedico este livro a pessoas do meu círculo familiar que estão sempre

do meu lado em todos os momentos: meus pais – Reinaldo de Oliveira (in

memorian) e Maria Elisa de Oliveira, minha companheira Conceição e minha linda

filha Camila.

Dennis de Oliveira

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SUMÁRIO

Introdução_______________________________________________________ 4

Cap. 1 - A exclusão racial como base da formação do capitalismo no Brasil 7

Cap. 2 - O caráter social e político dos projetos de desenvolvimento industrial _______________________________________________________ 18

Cap. 3 - O neoliberalismo no Brasil _________________________________ 29

Cap. 4 - Identidade e globalização neoliberal _________________________ 42

Cap. 5 - A exclusão ______________________________________________ 56

Considerações finais _____________________________________________ 74

BIBLIOGRAFIA __________________________________________________ 76

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Quando o Brasil aderiu de forma escancarada ao consenso da globalização

neoliberal, a maioria dos meios de comunicação de massa iludiu a sociedade de que estar-se-ia

abrindo uma nova fase de prosperidades para o povo. Finalmente, viveríamos no Primeiro Mundo:

computadores importados do último tipo, eletrodomésticos avançados, carrões, enfim, todos os

artigos de luxo existentes nas prateleiras dos shoppings dos países do centro do capitalismo

mundial estariam disponíveis para os consumidores brasileiros. Estaríamos livres das “carroças”

como o ex-presidente Fernando Collor, o governante que iniciou o processo de adesão ao

neoliberalismo, qualificou os carros fabricados no Brasil.

A classe média-alta foi às compras, da mesma forma que a personagem Rosalie,

do filme Rosalie vai às compras. Houve uma fúria de consumismo que, no início do Plano Real,

alavancou um certo crescimento da economia do país. Euforia: a moeda nacional – o real – valia

mais que o dólar norte-americano (a cotação chegou a 0,85 por US$1, em outubro de 1994,

durante a campanha eleitoral do presidente Fernando Henrique Cardoso).

Camelôs em praça pública ofereciam milhares de quinquilharias importadas – bichinhos virtuais,

CD’s de bandas de rock, canetas importadas, máquinas de cortar cabelo e fazer barba, chicletes

norte-americanos, inutilidades domésticas em geral. Lojas com nome até brasileiro, como Casas

Bahia estampam entre suas ofertas, geladeiras, freezers, lavadoras e secadoras, com comandos

em inglês (power, on/off, shuttle, warning, etc.) adquiridos por consumidores que estacionam seus

Citroens, Peugeots, Audis, e outras maravilhas da metrópole. Este é o mundo virtual do real que,

parece, os nossos governantes continuam vivendo tal é a falta de sensibilidade com os problemas

sociais do país.

Este mundo virtual do real era uma “tampa” em uma panela de

pressão. Dentro dela, ferviam os problemas estruturais originários desde a

formação do capitalismo brasileiro: um sistema formado sob uma acumulação de

riquezas predatória de gente, legitimado por ideologias de exclusão, entre as quais

o racismo é a mais articulada, mais disseminada e que, por estas razões, é a mais

eficaz.

Ideologia justificadora da escravidão até 1888, o racismo funcionou

como mecanismo de legitimação da exclusão e do Estado de “Mal Estar Social”

5

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que vigorou durante a maior parte do período republicano e, hoje, com o

capitalismo na sua fase da globalização neoliberal, o racismo serve como um

mecanismo de seleção daqueles que terão direito a integrar-se no restrito grupo

dos que podem usufruir as benesses do neoliberalismo dos que terão como única

perspectiva serem exterminados nas lixeiras humanas das periferias das grandes

cidades e do campo.

Entretanto, ao contrário dos países que adotaram sistemas explícitos

de segregação racial, como a África do Sul na época do apartheid e algumas

regiões dos Estados Unidos; o Brasil, por uma série de motivos históricos e

sociais, tem um racismo camuflado, subterrâneo e dissimulado, além de, em geral,

ser negado pela maior parte da sua população. O racismo age como um agente

invisível que vai determinando futuros de jovens, perspectivas de ascensão social

para trabalhadores, longevidade para adultos e graus de dificuldade para projetos

pessoais. De acordo com origens étnicas, pessoas têm chances diferentes e graus

de dificuldades distintos nas construções de suas vidas. Por esta razão, a

estratificação social do país interage diretamente com a questão étnica.

É evidente – e os dados mostram isto – que o Brasil viveu durante

quase 50 anos, entre 1930 e 1980, um crescimento econômico e industrial

significativo que trouxeram, consigo, uma relativa mobilidade social. Por esta

razão, a despeito da continuidade de inúmeras barreiras raciais, houve uma ligeira

melhora no padrão médio de vida da população negra: alguns poucos negros

conseguiram galgar alguns degraus na escada social, formando o que alguns

Institutos de Pesquisa, como o Grottera, chama de classe média negra

emergente.1 São em geral, pessoas negras com idade entre 30 e 40 anos, com

nível superior e empregos com remuneração razoável.

Porém, para pensarmos em consolidação de uma classe média é

preciso levar em consideração a capacidade desta classe proporcionar aos seus

descendentes condições de manter, ou elevar proporcionalmente ao aumento da

renda total do país, o padrão de vida. E isto significa ter condições de garantir uma 1 Segundo esta pesquisa, em 1997 existiam no Brasil cerca de 7 milhões de negros com renda pessoal acima

6

6

instrução de qualidade que, futuramente, proporcione um emprego qualificado e

de remuneração razoável, além dos padrões satisfatórios de saúde, moradia,

alimentação, entre outros.

Qual será a condição desta classe média negra emergente em garantir tudo isto

com um desemprego crescente que atinge todas as famílias, em especial negras,

o que força àqueles que continuam empregados a repartir as suas rendas

pessoais com mais pessoas da família que estão sem ocupação; com o

sucateamento e queda na qualidade da educação pública e o aumento vertiginoso

das mensalidades das escolas particulares; com a queda nos serviços públicos de

saúde e o aumento dos preços dos planos de saúde e da medicina privada em

geral; com a inexistência de financiamentos habitacionais compatíveis com a

renda assalariada?

Os dados mostram outra face: de 1980 para cá, o Brasil (e demais países latino-

americanos) passaram por um processo de mobilidade social descendente, isto é,

um processo de aumento da concentração de renda, o que significa uma minoria

cada vez mais minoria e cada vez mais rica; e uma maioria cada vez mais maioria

e cada vez mais pobre. E isto é fruto de políticas governamentais locais adotadas

de acordo com o receituário da globalização neoliberal.

Esta classe média negra emergente é um produto de uma fase de acumulação

capitalista que já terminou e não tem condições objetivas de retornar. Ela não

representa uma tendência linear de ascensão social do negro nas estruturas

sociais brasileiras, como acredita a reportagem da revista Veja.2 Nem tampouco

dela partirá a liderança de um movimento social dos negros contra o racismo.

Com base nos nossos estudos e nossa participação em entidades do movimento

negro, em especial a UNEGRO (União de Negros pela Igualdade), acreditamos

que é na população negra pobre, trabalhadora, moradora da periferia das grandes

cidades e que há mais 300 anos vem desenvolvendo um esforço sobre-humano

para sobreviver ante aos ataques genocidas das classes dominantes brasileiras

de R$2,3 mil reais mensais. 2 In: “A nova classe média negra”, Revista Veja de agosto de 1999.

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que brotará uma resistência popular ao projeto neoliberal e em defesa de uma

sociedade mais justa e igualitária.

Dennis de Oliveira

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Entender o fenômeno da exclusão na sociedade capitalista brasileira

é algo que remete, necessariamente, ao estudo dos pilares de sustentação da

estrutura social brasileira. O fenômeno da exclusão não é algo pontual e fruto de

políticas ocasionais de governos, embora estas possam intensificá-la ou não, mas

sim resultado do tipo de sociedade que as classes dominantes projetaram e

construíram ao longo da história.

O projeto de nação elaborado pelas elites brasileiras nas décadas

finais do século XIX e início deste tinha na exclusão de parcela da população

brasileira um dos pontos centrais. Se algum resquício do passado colonial e

escravista ficou presente no projeto republicano de nação foi justamente a

acumulação predatória de capital. Chamamos de acumulação predatória esta

forma do capital reproduzir-se via superexploração da mão de obra.

“No centro do projeto republicano de inspiração liberal estão a

grande propriedade agrícola, a diversificação da aplicação do capital e a formação

do mercado de trabalho com o imigrante europeu”, afirma Maria Stela Bresciani3.

A necessidade de se formar uma elite local que conduzisse o país a um

desenvolvimento firme e linear, rompendo com o atraso que era creditado às

características étnicas da população, levou a todo o projeto republicano de nação

8

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de então ao racismo praticado contra o próprio povo brasileiro. Em outras

palavras, a elite seria a regeneradora de um país atrasado não por fatores

políticos ou de estrutura social mas sim pelas próprias características do seu povo.

Esta idéia teve conseqüências drásticas. Os regeneradores do

rebanho brasileiro introjetaram práticas racistas e discriminatórias em todo o tecido

social do país que praticamente excluíram a maioria da população dos direitos

mínimos de cidadania e de bem estar social. Os projetos políticos que sinalizavam

para a constituição de um Estado de Bem Estar Social protagonizados pelos

movimentos sociais e populares e agremiações partidárias foram duramente

reprimidos. Por esta razão, o projeto regenerador republicano nunca vislumbrou a

constituição mínima de uma sociedade civil independente do Estado. As relações

entre Estado e população caracterizaram-se pelo misto de repressão e cooptação

no sentido clientelista-paternalista. A democracia burguesa travestiu-se de tal

modo que o funcionamento das instituições sempre foi precário, intermediado por

constantes golpes e períodos ditatoriais, responsabilizando-se sempre a rotina de

funcionamento democrático pela instabilidade e as crises constantes do país.

A idéia da incapacidade do povo brasileiro em se auto-organizar e

definir rumos próprios para a sua nação foi fundamentada com base no racismo. O

mesmo racismo que legitimou e justificou socialmente a brutalidade da escravidão

serviu para legitimar e justificar o autoritarismo das elites brasileiras na sociedade

republicana e de mão de obra assalariada. O Estado foi tomado de assalto pelas

elites e o sentido de coisa pública deixou de existir na sua acepção estrita do

termo. Grupos revezam-se no poder, na ocupação de cargos e nas negociatas

com dinheiro público. Os mecanismos institucionais de controle não funcionam.

Por isto, no desequilíbrio entre os três poderes republicanos, o Poder Executivo

sobressai-se em detrimento do Judiciário e do Legislativo, uma vez que este

último é o que mais se aproxima de um espaço público por ter nele representadas

as diversas correntes de pensamento, apesar de também estar corroído pelos

vícios do autoritarismo e práticas políticas corruptivas que dominam o cenário

nacional.

3 BRESCIANI, Maria Stela. “O cidadão da república” in Revista da USP, n. 17, mar/abr/mai 1993, p. 124

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Mas o mais sério de tudo isto é o tipo de sociedade que se construiu

ao longo dos anos. Uma sociedade que exclui sistematicamente parcela

significativa da população, parcela descendente dos africanos escravizados no

período colonial e que, em nenhum momento da história, contou com políticas

públicas de inserção no estatuto da cidadania. Pelo contrário, conforme já vimos, o

projeto republicano das elites concebia que o lugar de classe trabalhadora

organizada como tal no capitalismo caberia ao imigrante europeu que...

Cumpre nos projetos republicanos a função de referência para a elaboração da

imagem idealizada do homem enquanto trabalhador e cidadão. Essa estratégia

tem seu respaldo mais abrangente na intenção de acelerar o progresso e

assegurar a caminhada no sentido da civilização. Mais tarde, após 1889, o

governo republicano assume a tarefa de fazer com que esse modelo idealizado

coincida com a presença efetiva do imigrante e de suas aspirações.”4

Este foi o resultado da passagem de um sistema econômico

sustentado pelo escravismo para um capitalista, porém, dependente e voltado

para o atendimento das demandas externas. Neste sentido, este capitalismo

dependente reforçou uma posição já ocupada pelo país quando colônia e

sustentado pelo sistema escravista. Nelson Werneck Sodré escreve que “o

escravismo foi o elemento fundamental no processo de fluxo de renda para o

exterior que foi o traço mais claro da exploração colonial”.5

Mas Sodré vai além e ainda afirma com muita propriedade que o

“longo predomínio do escravismo respondeu pela degradação física e moral da

população trabalhadora, face a sua selvagem exploração, como pela estagnação

nas técnicas d produção com a utilização apenas de instrumentos de trabalho os

mais primitivos.”6 Ë importante ressaltar que esta herança do escravismo e do

período colonial e imperial não encontrou no projeto republicano das elites

nenhuma resposta que corrigisse os rumos do capitalismo brasileiro. Por esta

4 idem, p. 125 5 SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil, p. 80 6 idem, ibidem

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razão, ao cristalizar estes resquícios do período escravista, o capitalismo no Brasil

nasce com uma face extremamente conservadora e retrógrada que encontra na

associação de forma dependente ao capitalismo mundial a única via de

“desenvolvimento” enquanto sistema. Por isto, dependência, crise social,

autoritarismo, racismo e acumulação predatória são pilares de sustentação de um

sistema econômico que já nasce atrasado no país.

A formação do capitalismo pressupõe que haja uma acumulação de

riquezas que se transforme em capital e que haja uma acumulação de força de

trabalho separada dos meios de produção – a mão de obra assalariada.

A acumulação de riquezas que permitiu que estas se constituíssem

em capital foi obtida via a superexploração da mão de obra escrava e também via

relações de caráter mercantil com as potências econômicas mundiais, na época, a

Inglaterra. Percebe-se então que a associação dependente e a superexploração

foram fatores fundamentais para o tipo de acumulação primitiva de riquezas que

possibilitou a edificação do capitalismo no Brasil.

Estes dois fatores se complementam à medida que o atendimento às

demandas externas prioritariamente torna desnecessário a constituição de um

mercado interno de certa monta, o que demandaria uma acumulação menos

predatória e a garantia de condições mínimas de consumo por parte da classe

trabalhadora. Ora, o escravismo não permite, pela sua própria razão de ser, a

sustentação de um sistema produtivo voltado prioritariamente para a demanda

interna. A ruptura com o capitalismo central seria, então, condição fundamental

para se pensar em um sistema produtivo que atendesse prioritariamente o próprio

povo brasileiro, um sistema auto-sustentável. Mas isto não ocorreu, pelo contrário.

Ao disseminar a idéia da incapacidade do povo brasileiro ser dono do seu próprio

destino, as elites brasileiras justificavam a manutenção da dependência externa

como única forma de se desenvolver o país.

Desta forma, a crise social no país assume um caráter estrutural. A

sua resolução passa, necessariamente, pela mudança radical de orientação do

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desenvolvimento econômico do país. Mas perpetuou-se a forma de acumulação

de riquezas pela via da superexploração do trabalho, a acumulação predatória.

Resultou nisto um país com o décimo maior PIB (Produto Interno

Bruto) do mundo, mas com uma das piores distribuição de renda da América

Latina, comparável a nações mais miseráveis do planeta. Teses como a do ex-

ministro da Fazenda no regime militar, Delfim Neto, de que “é preciso primeiro

fazer o bolo crescer para depois dividi-lo” se foram duramente criticadas, explicam

a esmagadora maioria dos planos econômicos tocados por sucessivos governos.

Ao lado disto, tem-se uma criminalização constante do movimento social, tratando

qualquer manifestação reivindicatória como baderna merecedora de repressão

policial.

Onde entra o racismo nisto tudo? O racismo foi o mecanismo

ideológico que serviu para legitimar socialmente esta ascensão da burguesia ao

poder de forma conservadora. Aí que entra uma característica particular da

formação do capitalismo brasileiro: a classe que ascende ao poder – a burguesia –

se legitima socialmente utilizando um mesmo mecanismo ideológico que

legitimava o sistema social anterior, o escravismo, e o poder da classe

aristocrática. Por isto que a “revolução burguesa” brasileira foi conservadora,

manteve diversas estruturas sociais do sistema escravista e consubstanciou-se de

forma transitória e não por uma ruptura com o modelo antigo.

O sociólogo Clóvis Moura descreve o período de transição da mão

de obra escrava para a mão de obra assalariada como a fase do “escravismo

tardio”. Segundo ele:

“Chamamos de escravismo tardio, o período em que relações capitalistas

desenvolveram-se no seio da sociedade escravista, pondo em cheque o regime

anterior e criando bases para um novo modo de produção” ·····

Foi justamente neste período, que se inicia em 1850, que se criam

bases para a acumulação de riquezas no país transformasse em capital. A Lei

Eusébio de Queiroz, promulgada neste ano, proibiu o tráfico de escravos. Os

recursos que eram utilizados no tráfico foram redirecionados para outros

12

12

investimentos, entre eles, a criação de uma infra-estrutura no país que permitisse

certo desenvolvimento econômico. Exemplos: ferrovias, transportes, estradas e

serviços públicos urbanos. Além disto, há uma pequena diversificação dos

investimentos que deixam de ser exclusivamente voltados para a expansão das

lavouras para o nascedouro das indústrias. O Barão de Mauá é o maior exemplo

desta fase nascente da indústria brasileira.

Uma outra mudança, inclusive de caráter simbólico, foi a

transformação da terra em propriedade privada, pela Lei das Terras, também de

1850. Até então, a terra era uma concessão da Coroa e a riqueza media-se pela

posse de escravos. Com o fim do tráfico e a transformação da terra em

mercadoria, é a posse desta que se transforma no indicador de prestígio e

riqueza. Ao mesmo tempo, esta transformação da terra em mercadoria

praticamente cristalizou o latifúndio e impediu a democratização da estrutura

fundiária no país.

Do ponto de vista social, este período foi marcante por dois motivos:

a proibição do tráfico de escravos deu início a uma abolição lenta, gradual e

controlada da escravidão que resultou num processo brutal de exclusão e

genocídio contra os negros e seus descendentes. As leis que se seguiram – Lei do

Ventre Livre e Lei dos Sexagenários – ao contrário do que poderia se supor,

cristalizaram duas práticas que permearam toda a história republicana do país: o

descaso com as crianças e com os idosos. A Lei do Ventre Livre que libertava os

filhos de escravos nascidos a partir daquela data foi, na prática, uma forma de tirar

a responsabilidade dos senhores de escravos sobre as crianças que nasciam na

senzala. Acrescente-se a isto a inexistência de qualquer tipo de política social que

atendesse as demandas daquelas crianças. Data daí a marginalização de crianças

e adolescentes negros que hoje são chamados de “menores”.

O mesmo se pode dizer da Lei dos Sexagenários, que libertava os

escravos com mais de 60 anos de idade. Primeiro, era uma lei quase que inócua,

pois eram raros os escravos que chegavam àquela idade (os proponentes da

reforma da Previdência de hoje provavelmente inspiraram-se nos legisladores do

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13

século XIX – e ainda dizem-se modernos!). Segundo, que a lei libertava mas

também não garantia nenhum tipo de assistência que atendesse esta demanda

social.

Mas a maior perversidade foi o incentivo à imigração concomitante

com este processo de abolição controlada. Já a partir de 1850, ainda durante a

existência da mão de obra escrava, começam a chegar as primeiras levas de

imigrantes – particularmente os italianos – para trabalhar já como assalariados.

Esta perversidade atingiu também o próprio imigrante pois ele convivia com

métodos e relações de trabalho similares à do escravo, embora não fosse como

ele. De qualquer forma, o projeto conservador da burguesia que estava

ascendendo ao poder, construía as bases para o desenvolvimento de uma

sociedade capitalista, excludente e racista.

O aparato ideológico para este projeto foi disseminado por várias

instituições de pesquisa o que demonstra que houve um empenho de parcela da

intelectualidade brasileira para a sua elaboração. Entre estas instituições, estão os

Museus e os Institutos Históricos e Geográficos. O princípio das teorias estudadas

e debatidas nestes espaços era naturalizar as diferenças entre os vários povos

que compunham a população brasileira, transformando diferenças criadas

socialmente em características advindas de diferenças raciais. Assim, a negação

do trabalho assalariado ao ex-escravo era justificada por uma incapacidade

“natural” deste em adaptar-se a um regime mais moderno que seria o trabalho

assalariado.

“Delineia-se a partir de então certa reorientação intelectual, uma reação ao

Iluminismo em sua visão unitária da humanidade. Tratava-se de uma investida

contra os pressupostos igualitários das revoluções burguesas, cujo novo suporte

intelectual concentrava-se na idéia de raça, que em tal contexto cada vez mais se

aproximava da noção de povo. O discurso racial surgia, dessa maneira, como

variante do debate sobre a cidadania, já que no interior desses novos modelos

discorria-se mais sobre as determinações do grupo biológico do que sobre o

arbítrio do indivíduo entendido como um ‘resultado, uma reificação dos atributos

14

14

específicos da sua raça’”7

O conceito de raça é discutido, inicialmente, no Brasil, para

naturalizar – e, portanto, cristalizar – diferenças construídas social e

historicamente e também para tirar qualquer responsabilidade do sistema quanto a

redução destas diferenças.

Além disto, esta naturalização das diferenças teve um papel

fundamental nos processos de cooptação dos segmentos sociais colocados na

base da pirâmide social, ao reservar a estes qualidades desenvolvidas em papéis

secundários na estrutura do poder social. A exaltação das qualidades do negro

nas áreas lúdicas (como esporte e música), ao mesmo tempo que mascara o

racismo presente nas práticas sociais das classes dominantes brasileiras, coopta

determinados negros que, se conseguem ascensão social e econômica, ficam

subordinados a um sistema social e político dirigido exclusivamente pelos brancos.

Assim, se as escolas de samba exaltam a cultura negra, elas conseguem

visibilidade a medida que se sujeitam às condições impostas pela indústria cultural

dirigida pela classe dominante branca. Além disto, os lucros aferidos pela

disseminação desta cultura negra, são apropriados pela classe dominante branca.

O mesmo se pode dizer do futebol (tanto os dirigentes de futebol como os

patrocinadores dos clubes são brancos) e mesmo da música (as grandes

indústrias fonográficas são transnacionais norte-americanas). Assim, a exaltação

do negro no campo das artes e do esporte serve muito mais como mecanismo de

compensação e de limitação dos espaços sociais que este grupo social deve

ocupar que não são os essenciais na definição dos rumos do país.

A idéia de que a culpa da miséria é do próprio miserável e que, num sentido maior,

gerou um sentimento de inferioridade étnica no seio da própria sociedade

brasileira, foi um arcabouço ideológico que legitimou a idéia de que a única via

possível para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro seria a associação de

forma dependente ao capitalismo europeu. Schwartz ainda afirma que:

“... recém saída da desastrosa Guerra do Paraguai e vivendo, nos últimos anos do

7 SCHWARTZ, Lilian. O espetáculo das raças, p. 47

15

15

império, um período de relativa estabilidade econômica motivada pela produção

cafeeira, a monarquia brasileira tencionava diferenciar-se das demais repúblicas

latino-americanas aproximando-se dos modelos europeus de conhecimento e

civilidade.”8

Quando se fala da pequena integração cultural do Brasil com a

América Latina (é comum os brasileiros não se considerarem latino-americanos) a

resposta deste problema encontra-se neste período histórico. O mais importante

disto tudo é que tais idéias legitimaram práticas de dominação imperialista no país,

uma vez que disseminou-se socialmente a idéia da incapacidade da sociedade

brasileira construir autonomamente o seu próprio destino.

Os ideólogos da época culpavam a formação étnica do povo

brasileiro – composto por muitos negros, indígenas e mestiços e poucos brancos –

como a responsável pelo atraso do país e pela incapacidade deste construir um

projeto autônomo de nação. Era necessário o processo civilizador branco-europeu

para colocar o país nos eixos. A importação de mão de obra européia para tomar

o lugar dos ex-escravos era assim justificada. Da mesma forma que a importação

de teorias sociais formuladas no contexto europeu para “explicar” as causas do

atraso do país.

O branqueamento da população brasileira foi, então, um projeto

político e ideológico que estava diretamente colado ao modelo de

desenvolvimento capitalista de então. Não foi, portanto, algo isolado e descolado

da estruturação do sistema capitalista – foi, sim, um dos pilares de sua

sustentação, juntamente com o caráter antinacional e dependente e a vocação

autoritária. Uma nação composta por um povo incapaz e etnicamente inferior tanto

não poderia ser soberana como também não poderia funcionar se não fosse

conduzida pela mão dos poucos iluminados que levariam o Brasil à redenção.

Das idéias à prática. O branqueamento se articulou não somente

com a importação de mão de obra, mas também com o estabelecimento de

políticas voltadas ao extermínio da população não branca (negros, indígenas e

8 idem, p. 30

16

16

mestiços) da face do país.

No início deste século alguns governos estaduais proibiam a

matrícula em escolas públicas de pessoas portadoras de doenças e que fossem

negras. Nos cursos de Direito, vigorou uma disciplina chamada de Antropologia

Criminal. Vejamos um trecho de artigo da Revista da Faculdade de Direito do

Recife, citado por Lilian Schwartz, publicado em 1913 a respeito desta teoria:

“O indivíduo é uma soma das características físicas de sua raça, o resultado de

sua correlação com o meio (...) O fenótipo é entendido como o espelho d’alma, no

qual se refletiam virtudes e vícios.”9

Esta visão pode ser repudiada veementemente e estar fora dos

manuais atuais do Direito Criminal. Porém, as práticas policiais vigentes hoje, nas

quais vigoram os “tipos suspeitos” não ficam nada a dever a estas teorias. Quais

são os critérios para definição dos tipos suspeitos? Raciais, sem dúvida, da

mesma forma que as teses da antropologia criminal disseminadas nas faculdades

de direito do início do século.

A criminalização do ser negro levou a situação encontrada hoje de

que a maior parte dos assassinados por policiais serem negros ou descendentes e

que os mesmos são mais condenados que os brancos, apesar de que o número

de ocorrências policiais contra brancos ser muito maior. Em outras palavras, ser

negro implica em maiores chances de condenação que ser branco.

Os negros foram ainda criminalizados pelo fato de não estarem

inseridos no mercado formal de trabalho, apesar desta situação ter sido criada

pelo incentivo à imigração de mão de obra européia. Este processo significou, na

prática, na condenação dos ex-escravos. A Lei da Vadiagem, vigente no início do

século punia criminalmente quem estivesse desempregado. Vê-se aí a idéia de

que a situação social é responsabilidade do próprio indivíduo e não do sistema

que criou o problema.

Temos assim várias medidas que visavam apagar a digital negra da

9 idem, p. 166

17

17

face da história brasileira. A criminalização das religiões afro-brasileiras, a

mestiçagem vista como um processo de “branqueamento” e “melhoramento da

raça”, o impedimento ao acesso dos aparelhos públicos, transformaram a história

do negro brasileiro em duas etapas: a primeira como escravo, a segunda como

excluído. Em ambas, o que prevalece é a negação do direito de cidadania.

Com esta herança, os negros brasileiros enfrentam hoje um novo

desafio: a globalização neoliberal, chamada apropriadamente pelo professor

Milton Santos, de globalitarismo (combinação de globalização com totalitarismo).

Implantada numa nação que sequer concluiu reformas de caráter capitalista e que

conta com uma classe dominante nem um pouco preocupada com isto, o

globalitarismo significa um recrudescimento do racismo que pode custar a própria

existência física da população negra. Em outras palavras, estamos falando de um

processo de genocídio que se não for contido, resultará na mais completa barbárie

que se tem notícia na história do país.

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No dia 1º de maio de 1998, o jornal Folha de S. Paulo publicou um

caderno especial sobre o desemprego. Entre vários diagnósticos e teorias dos

economistas sobre a causa do desemprego moderno e as maneiras de combatê-

lo, uma das teses mais difundidas foi a necessidade de se retomar o crescimento

econômico para criar novos postos de trabalho. Assim, o desenvolvimento

econômico seria a solução principal para a geração de empregos.

O Brasil sempre conviveu com o problema do desemprego. Falar em

desemprego estrutural no país é quase uma tautologia pois o capitalismo brasileiro

já nasceu gerando um enorme contingente de desempregados e sub-empregados:

os negros libertos da escravidão e impedidos de trabalhar no regime assalariado.

O caráter conservador e excludente do capitalismo brasileiro desde a sua gênese

gerou este desemprego estrutural que, embora oscile conjunturalmente, permeia

toda a história do capitalismo brasileiro.

O muro racial que separa o ingresso no mercado formal de trabalho

do desemprego ou sub-emprego é evidente e perceptível inclusive pelos negros e

descendentes. Todos os indicadores mostram que a maior parte dos

desempregados é negra ou “parda” e que permanecem critérios racistas de

seleção para as vagas profissionais. Até a promulgação da Lei Afonso Arinos, os

anúncios de vagas explicitamente colocavam a preferência por pessoas brancas.

Com a proibição deste critério racista explícito, este travestiu-se e sob o manto da

exigência da “boa aparência” continuou a ser praticado pelas empresas.

O Brasil assinou a Convenção 111 da OIT (Organização

Internacional do Trabalho), instrumento que estabelece uma série de mecanismos

visando a eliminação do preconceito e da discriminação no mercado de trabalho a

ser adotada pelos países signatários. Entretanto, os sucessivos governos

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brasileiros não saíram da retórica, não implantando nenhuma medida eficaz de

combate ao preconceito e a discriminação no mercado profissional. Aos negros e

seus descendentes, bem como outros segmentos discriminados no mercado

profissional – como os homossexuais, as mulheres e os portadores de deficiências

físicas – restaram como únicas alternativas os empregos públicos que selecionam

os candidatos via concursos públicos onde o aspecto visual não é utilizado como

mecanismo selecionador. Ainda assim, pelo fato dos concursos públicos exigirem

determinado grau de escolaridade e esta, por vários motivos que veremos a

seguir, também é dificultada aos negros, grande parcela da população negra é

praticamente condenada a aceitar os piores trabalhos, de caráter insalubres ou

perigosos e com as mais baixas remunerações. Desnecessário dizer também que

as ascensões profissionais dentro das empresas são bem mais restritas aos

negros.

Por esta razão, o simples crescimento econômico no geral não basta

para resolver o problema do desemprego estrutural que atinge prioritariamente os

negros se não for acompanhado de medidas voltadas a redistribuição da renda e

de pagamento da enorme dívida social que se acumulou nesta história de quase

cinco séculos de exclusão social e racial.

O Brasil passou por vários projetos de desenvolvimento industrial,

mas centraremos nossa análise em três, por entender que foram marcos na

história mais recente do país: o projeto de Vargas nos anos 30; o projeto dos

militares nos anos 60 e 70 e o projeto neoliberal iniciado em 1990 com Collor e

tocado atualmente pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.

O projeto Vargas, dirigido por este político que dominou o cenário

brasileiro entre 1930 e 1954 (quando se suicidou), com breve interrupção no

período entre 1945 e 1951, foi marcado pela tentativa de se constituir um projeto

capitalista com maior autonomia em relação ao capital estrangeiro. Até 1930, a

economia brasileira se limitava a ser uma exportadora de produtos primários,

basicamente o café, e o cenário político era dominado pelos latifundiários ligados

a este produto. Foi o período da chamada “república do café com leite”, alcunha

20

20

que simbolizava a alternância de governo entre as oligarquias cafeeiras de São

Paulo e as ligadas a produção do leite de Minas Gerais. As eleições fraudulentas

eram apenas um jogo teatral para dar legitimidade a este pacto das oligarquias.

O modelo ruiu por problemas econômicos no capitalismo mundial. O

período Vargas coincide justamente com uma alteração na geopolítica

internacional que desenhava a decadência do capitalismo europeu (assolado por

duas grandes guerras – 1914/18 e 1938/45) e a emergência do capitalismo norte-

americano como a grande potência mundial. Por estar situado neste período de

transição de emergência de um imperialismo e a decadência de outro, o projeto de

desenvolvimento autônomo de Vargas foi possível, em grande parte, por que este

governante conseguiu aproveitar as contradições que surgiram da disputa destes

dois pólos que disputavam a hegemonia do capitalismo mundial.

Um exemplo claro disto foi a inspiração nazi-fascista do segundo

governo de Vargas – o “Estado Novo” – e o fato do Brasil ter entrado na Segunda

Guerra Mundial ao lado dos aliados, liderados pelos Estados Unidos, que

combatiam o bloco nazi-fascista. Fruto desta contradição foram os empréstimos

que Vargas obteve dos Estados Unidos para a construção da Companhia

Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, que proveu o país de um importante

produto para o desenvolvimento da indústria: o aço.

Além disto, é importante ressaltar que as guerras mundiais e a crise

da Bolsa de Nova York de 1929 que afetou todo o sistema financeiro internacional,

fez quebrar o modelo econômico sustentado quase que exclusivamente na

exportação de café. Impossibilitados de continuar mantendo as importações deste

produto brasileiro, as oligarquias ligadas a este setor perderam o controle da

economia do país que se viu obrigada a buscar alternativas de sobrevivência.

Estas foram as condições objetivas que facilitaram a subida do grupo de Vargas

ao poder com promessas de uma modernização nas estruturas capitalistas do

país. Mas este processo não foi de forma linear, nem tampouco sem conflitos

internos.

“O Brasil foi palco, de 1930 a 1945, de uma luta extrema entre o velho e o novo.

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Velhas foram, sob todos os aspectos, as relações feudais que aqui sempre

importaram em fragmentação e privilégio; novas eram as reformas que,

avançando aceleradamente às vezes, estagnando outras vezes procuravam

vencer os obstáculos ao desenvolvimento nacional. (...) o mercado interno, a

unificação do poder político, o rompimento de barreiras impostas à circulação da

produção traduziam o novo.”10

Porém, neste período, a correlação de forças foi favorável ao grupo

de Vargas em virtude do cenário internacional praticamente impedir a continuidade

do modelo anterior. Por isto, foi possível costurar uma aliança política forte o

suficiente para derrotar tanto a oposição de direita comandada pela oligarquia

cafeeira que tentou tomar o poder na chamada “revolução” constitucionalista de

1932, como a oposição de esquerda, liderada pelo Partido Comunista, que tentou,

sem sucesso, uma insurreição armada em 1935 (a Aliança Nacional Libertadora –

ANL). O golpe de Estado de 1937 que instituiu uma ditadura de caráter nazi-

fascista sob comando de Vargas foi a resultante desta correlação de forças

favorável, mas também foi o princípio da decadência do regime getulista.

É importante ressaltar que este projeto de desenvolvimento nacional

tocado por Vargas não tocava em duas questões estruturais da formação do

capitalismo brasileiro. Primeiro, a questão da terra. Não obstante a oposição

ferrenha que a oligarquia latifundiária, particularmente de São Paulo, lhe fazia,

Vargas manteve intacta a estrutura fundiária do país. Isto não é algo que deva ser

desconsiderado, pois o latifúndio combinava com um modelo de produção agrícola

voltado para a concentração de determinados produtos primários e ao

atendimento das demandas externas. Além disto, a posse da terra, muito mais que

um meio de produção, era uma reserva de valor, pois a sua manutenção enquanto

tal desconsiderava a sua produtividade.

A segunda questão não tocada a fundo por Vargas, pelo menos no

seu primeiro governo, foi a democratização das estruturas políticas do país que

permitisse a constituição de uma esfera pública independente do Estado. Na

10 SODRÉ, Nelson Werneck, op cit, p. 176

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22

verdade, a opção pelo golpe de Estado e a direção do projeto de desenvolvimento

via uma ditadura nazi-fascista corrobora aquela idéia de que o país para se

civilizar, precisa ser dirigido por mão de ferro por um redentor. Intitulando-se como

o “pai dos pobres”, Vargas praticamente destruiu o sistema político-partidário de

antes de 1930, mas não edificou outro. Perseguiu o Partido Comunista,

desmantelou o movimento sindical nascente dirigido pelos anarquistas e criou uma

série de mecanismos de cooptação popular para legitimar-se enquanto o único

dirigente nacional, como a criação dos sindicatos oficiais baseados no sistema

corporativista italiano, a desmantelação dos sistemas de mediação política por

meio de partidos preferindo o abuso da propaganda ideológica via comícios e

meios de comunicação (data desta época a entrada da Voz do Brasil, programa

oficial obrigatório nas emissoras de rádio brasileiras).

O caráter autoritário deste processo combinado com a manutenção

de estruturas conservadoras, como o latifúndio, não fez ir adiante o projeto

nacional e nem tampouco significar uma real ruptura com o modelo anterior.

Apesar de ter modernizado estruturas políticas capazes de se constituir um projeto

de capitalismo autônomo, Vargas não conseguiu debelar um temor quase que

intermitente nas classes dominantes brasileiras: uma aliança com a classe

proletária capaz de edificar um projeto nacional de capitalismo. Sem esta aliança,

o que se viu no período Vargas foi um projeto nacional ter relativo sucesso

enquanto a geopolítica internacional criava contradições propícias para tal – e que

foram bem aproveitadas pelo governo – e depois ter fracassado quando este

mesmo cenário geopolítico ser desfavorável para tanto. Foi por isto que houve a

rearticulação das elites conservadoras brasileiras na chamada “redemocratização”

de 1945 e na queda do segundo governo de Vargas em 1954. Nestes momentos,

o imperialismo norte-americano se consolidou e foi extremamente feroz contra

qualquer possibilidade de uma nação libertar-se dos seus domínios,

principalmente no continente latino-americano.

“A fúria com que a reação se lançou à luta para impedir que Getúlio Vargas

realizasse a sua política foi o traço denunciador da singular importância que lhe

emprestava. Em sua campanha presidencial, o candidato assumiu compromissos

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23

ligados às tarefas peculiares à questão nacional e continuou a articular o apoio

popular que o levaria novamente ao poder. O fato de, depois no poder, não ter tido

condições para dar andamento a tais compromissos não invalida a sua postura.

Ao prestar contas ao povo, em janeiro de 1954, das dificuldades que enfrentava e

o relato que então fez das variadas e sistemáticas ações da exploração

imperialista, mencionando cifras espantosas da retirada de lucros de capitais aqui

investidos apenas nas áreas decisivas da estrutura da produção, violentamente

majorados com os recursos captados no mercado interno de capitais – ao dizer a

verdade, estava cavando sua sepultura.”11

Foi uma determinada situação que a direção da burguesia revelou-se

incapaz de romper com o modelo dependente vigente então para edificar um

modelo capitalista autônomo. Isto porque, rompendo com qualquer possibilidade

de aliança com a burguesia transnacional e ainda tendo que enfrentá-la, a única

opção restante é uma aliança com o proletariado nacional, coisa que causa

temores à burguesia, uma vez que tal aliança só se viabilizaria se no projeto

reivindicações populares fossem atendidas. E tais reivindicações sinalizam,

necessariamente, para uma redistribuição da renda. O caráter conservador,

retrógrado e, por vezes, aristocrático, da burguesia nacional impediu a

consolidação de um modelo capitalista autônomo que incorporasse, na sua

gênese, políticas de inclusão social, aí entendidas também, a inclusão dos

segmentos marginalizados como a população negra.

O país construiu uma infra-estrutura própria para o desenvolvimento

industrial, isto é inegável. O período varguista foi importante neste sentido: a

criação da Petrobrás, das siderúrgicas e a regulamentação das relações

trabalhistas via CLT deram um ar de modernidade ao capitalismo brasileiro.

Entretanto, o caráter autoritário, conservador e dependente do mesmo não foi

rompido. Permaneceram imunes e permearam os projetos de desenvolvimento

industrial seguintes.

O projeto da ditadura militar 1964/85 tem em comum com o projeto

11 idem, p. 177

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varguista o fato de ter sido desenvolvido sob a batuta de um regime autoritário e,

por certo período, nazi-fascista. A infra-estrutura garantida pelas empresas

estatais – processo iniciado no governo Vargas – foi utilizada para a expansão, no

território nacional, do capital transnacional. Houve, então, uma mudança de

qualidade na ação do imperialismo que não se limitava apenas ao comércio

internacional, mas no investimento direto nos sistemas produtivos dos países

periféricos do capitalismo.

A entrada do capital transnacional na economia do país não se

iniciou com os militares, mas teve o seu maior impacto no governo Juscelino

Kubitscheck (1956/61). O curto período do governo de João Goulart (1961/64)

onde se tentou controlar, ainda que de forma limitada, as remessas de divisas por

parte das empresas transnacionais e modernizar outras estruturas sociais do país,

como a fundiária, foi abortado mais uma vez pela aliança do imperialismo norte-

americano com a grande burguesia nacional que resultou no golpe de 1º de abril

de 1964 e a ditadura militar que durou até 1985.

Este projeto de desenvolvimento econômico sustentava-se no tripé

capital transnacional, nacional e estatal. Ao primeiro coube a hegemonia no

departamento de produção de bens de consumo duráveis (automóveis,

eletrodomésticos) que teve a maior dinamização e crescimento neste período. A

opção pelo desenvolvimento deste setor industrial já demonstra a quem este tipo

de projeto de industrialização quer atingir: aqueles com potencial de consumo. Já

o capital nacional hegemonizou o departamento de produção de bens de consumo

não duráveis (alimentação, vestuário, têxtil) cujo consumo é feito majoritariamente

pela classe operária e que, devido a concentração de renda e empobrecimento

dos trabalhadores, teve um crescimento bem inferior ao departamento

hegemonizado pelas transnacionais.

Como compensação a este papel coadjuvante no processo de desenvolvimento

industrial, a burguesia nacional contou com a segurança do Estado militar no

sentido de reprimir violentamente qualquer tentativa de reivindicação de melhores

salários que, em última instância, significa uma luta por uma melhor distribuição de

25

25

renda.

O crescimento da economia do país foi notável particularmente no início dos anos

70, mas a custo de um brutal endividamento externo. As empresas estatais

serviram como alavanca para este crescimento a medida que forneciam os

insumos básicos para as indústrias nacionais e transnacionais a preços abaixo do

custo. Estes rombos nas estatais foram cobertos com empréstimos externos. Por

isto que se diz que, na prática, o Estado financiou o crescimento industrial sem

receber nenhuma contrapartida, pelo contrário: quando a conta foi apresentada, foi

a sociedade que teve que arcar com o ônus.

A repressão militar não foi a única causadora da concentração de

renda. Várias medidas foram tomadas no sentido de permitir que o capital

reproduzisse em larga escala via a super-exploração do trabalho, como o fim da

estabilidade do emprego (com a criação do sistema do FGTS), a manipulação dos

índices inflacionários utilizados para o cálculo dos reajustes salariais, a

intervenção nos sindicatos profissionais e, mais uma vez, a destruição de qualquer

tentativa de se constituir uma esfera pública autônoma.

Novamente volta a cena a tese da acumulação predatória como caminho para se

constituir um capital mínimo para o desenvolvimento econômico do país. É deste

período a famosa frase de Delfim Neto, de que ‘é primeiro preciso fazer o bolo

crescer para depois dividi-lo’. O bolo cresceu muito mas nunca foi dividido.

Foi novamente uma nova configuração do capitalismo internacional que pôs este

modelo em cheque. A abundância de crédito existente no início dos anos 70 deixa

de existir, particularmente com a crise do petróleo nos anos 80. A súbita elevação

dos preços do combustível fizeram com que parte dos investimentos dos países

capitalistas centrais deslocassem para os centros produtores de petróleo e

passassem a cobrar as faturas dos empréstimos concedidos aos países

dependentes no início dos anos 70, entre eles o Brasil.

O país deixa de ser um importador para ser um exportador de capitais. As

remessas de capital para o exterior praticamente descapitalizam o país que fica

incapaz de continuar mantendo o modelo de subsídio à produção industrial

26

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transnacional via as estatais. O governo fica então a mercê das vontades dos

credores. Assina acordos com o Fundo Monetário Internacional em 1983, toma

medidas no sentido de conter a expansão do consumo e direcionar a maior parte

da produção interna para a exportação e, assim, gerar divisas para o pagamento

da dívida externa. O governo militar já tinha esgotado o seu projeto e, por isto, não

interessava mais às classes dominantes, ainda mais porque se encontrava

desgastado junto às camadas populares.

De qualquer forma, as classes dominantes arquitetam mais uma vez, uma saída

conservadora, que mantém o modelo econômico capitalista dependente, para

transitar do regime autoritário para um de feições liberais. Por isto, a derrota da

emenda Dante de Oliveira foi sucedida da negociação que levou a chapa

Tancredo Neves – José Sarney à vitória na eleição indireta realizada no início de

1985.

Mas os vinte anos de regime militar transformaram o Brasil. A primeira

transformação evidente foi a urbanização da população. Entre 1960 e 1980, a

população urbana cresceu 118%. Mas esta urbanização não significou uma

melhoria nos padrões de vida da população, pelo contrário, foi uma transferência

da pobreza do campo para as cidades. Segundo dados do IEPS (Instituto de

Estudos e Pesquisas Sociais), o número de pessoas com renda per capita inferior

a 25% do salário mínimo aumentou de 17,7% em 1980 para 23,3% em 1987,

sendo que a zona urbana respondia por 36,6% em 1980 e 46,4% em 1987.

Estes indicadores sociais pioram após os anos 80, devido a falência do projeto do

regime militar. Entre os anos de 1968 e 1973, o PIB brasileiro cresceu em média

11,12% ao ano. Já entre 1974 e 1980, o crescimento foi médio anual foi menor:

7%. E entre 1981 e 1983, houve uma queda média anual do PIB da ordem de

1,6%. Mas é importante ressaltar que, mesmo nos períodos de grande

crescimento, houve uma concentração de renda: entre 1960 e 1976 (portanto

dentro do período do milagre brasileiro), os 20% mais ricos do país aumentaram

sua participação na renda nacional em 18%; enquanto que os 50% mais pobres

tiveram sua participação reduzida em 32%.

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Esta brutal concentração de renda que se intensifica nos anos de desaceleração

do crescimento e início da recessão, criou as condições objetivas para o

enfraquecimento da ditadura militar e a rearticulação dos movimentos sociais. No

caso específico do movimento negro, o grande evento é o lançamento do

Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU/CDR) em 1978,

nas escadarias da Praça Ramos em São Paulo. O MNU/CDR cumpriu dois papéis

importantíssimos na história do movimento negro pós-abolição: primeiro,

desmascarou o mito da “democracia racial brasileira”, denunciando os

mecanismos racistas que colocavam o negro como “cidadão de segunda

categoria”, segundo, articulando o povo afrodescendente brasileiro com o conjunto

de pessoas marginalizadas pelo sistema. Foi uma tentativa bem sucedida de se

organizar todo o exército de excluídos pelo sistema, contingente formado

historicamente pelo processo de abolição controlado pelas classes dominantes no

final do século XIX e intensificado pelos modelos econômicos dependentes e

concentradores de renda que hegemonizaram a história do capitalismo no país.

O projeto do MNU/CDR não foi levado adiante em função de diversos fatores

internos à história desta organização que, depois, mudou sua estratégia,

transformando-se simplesmente em Movimento Negro Unificado (MNU) e

deixando a estratégia de articular os negros com os demais excluídos do sistema.

Além disto, o objetivo do MNU/CDR foi cumprido: o mito da “democracia racial

brasileira” foi desmascarado, contando inclusive com estudos de diversos

intelectuais como os da Universidade de São Paulo: Oracy Nogueira, Fernando

Henrique Cardoso, Florestan Fernandes e Clóvis Moura. O esforço de elaboração

do movimento e destes intelectuais foi no sentido de caracterizar, de forma

diferenciada, os aspectos do racismo no Brasil em comparação com o dos

Estados Unidos. E, nisto, a análise mais brilhante foi de Clóvis Moura que lembra

as particularidades da sociedade colonial brasileira e o fato do capitalismo

brasileiro ter nascido no seio da sociedade escravista, enquanto que nos Estados

Unidos, a afirmação do capitalismo deu-se no combate às regiões onde

predominavam o sistema de mão de obra escrava (Guerra Civil americana que

opôs o norte desenvolvido e capitalista ao sul escravista, com vitória do primeiro).

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Além deste fator histórico, que opõe capitalismo a escravismo, é importante

lembrar as características demográficas diferentes dos dois países: nos EUA, os

negros são minoria (16%) e no Brasil, constituem a maioria da população.

O que pretende-se demonstrar com isto que se é possível estabelecer uma luta

conta a discriminação racial nos Estados Unidos por meio de um projeto de

minorias (lutas pontuais de inserção desta minoria à sociedade de consumo), no

Brasil, a luta contra o racismo passa, necessariamente, por um projeto de maioria,

o que significa uma ruptura com o modelo econômico vigente e, necessariamente,

uma articulação com todos os setores oprimidos por este modelo. É por isto que o

MNU/CDR fundado em 1978 perde seu caráter quando se transforma em MNU

que opta por uma estratégia de minoria, abandonando a política de se articular

com os demais segmentos excluídos e, assim, restringir barbaramente o seu

espectro de ação social.

De qualquer forma, os anos 90 prometem novos desafios para os movimentos

sociais, em especial o movimento anti-racista com o advento do neoliberalismo.

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Poderemos definir o neoliberalismo como uma nova forma de

acumulação do capitalismo baseado nas seguintes características:

Alteração no paradigma de produção - da padronização à flexibilização: O sistema

de produção fordista, vigente antes do neoliberalismo, é caracterizado como um

modo de produção que padroniza os produtos e os produz em larga escala. As

tarefas exercidas na linha de produção são especializadas no limite, facilitadas e

repetitivas. Há um controle rígido do ritmo de produção por meio de uma forte

hierarquia dentro da empresa. Com isto, o capital se reproduz via a economia

obtida na produção em larga escala e na queda dos rendimentos individuais

proporcionados pela baixa qualificação exigida dos operários. Além disto, a

necessidade de se ter esta pequena qualificação, uma vez que as tarefas são

simplificadas, permite ao capital economizar utilizando o mecanismo da

rotatividade de mão de obra. Por isto, no período em que este modelo de

produção foi hegemônico, o desemprego tinha um caráter marcadamente sazonal,

era fruto do uso do expediente da rotatividade como forma de rebaixar o custo da

mão de obra. Além disto, a exigência de baixa qualificação da mão de obra

permitiu que se implementassem políticas econômicas de crescimento industrial

sem a contrapartida de um incremento no sistema educacional. Este foi

justamente o centro das políticas desenvolvimentistas implantadas no Brasil,

particularmente durante o regime militar - o sistema educacional concentrou-se na

preparação técnica (adestramento) da mão de obra. O neoliberalismo traz uma

alteração profunda com relação a isto. O modelo de produção deixa de seguir os

parâmetros do fordismo e passa para o chamado “toyotismo”, que se caracteriza

pelo uso da tecnologia eletrônica (ou “tecnologia limpa”), a polivalência dos

ocupantes dos postos de trabalho (em lugar da especialização no limite, os

trabalhadores passam a executar várias tarefas e a se adaptar às mudanças

30

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conjunturais na produção) e produção em pequena escala e diversificada. A

economia que o capital consegue para se reproduzir, não se dá mais na larga

escala e sim no atendimento imediato de demandas específicas e segmentadas.

Por isto, no toyotismo, já não se trabalha mais com grandes estoques - o ritmo da

produção é flexibilizado, adaptando-se às conjunturas do mercado. O ingresso

neste sistema de produção exige do operário um conhecimento mais genérico,

capaz de se adaptar às mudanças conjunturais e seu contrato de trabalho fica

subordinado a estas mudanças conjunturais. Flexibilização é a palavra chave

deste novo paradigma de produção. Flexibilização na remuneração, na forma de

contratação, na remuneração, na jornada, nas funções exercidas e mesmo na

relação trabalhista. A resultante disto é uma restrição cada vez maior do mercado

de trabalho, excluindo todo aquele contingente de mão de obra que não possui as

qualificações necessárias para se adaptar a estas exigências deste modelo de

produção (transformando o desemprego resultante em permanente e não mais em

sazonal) e desregulamentando as relações trabalhistas, deixando-as à mercê da

conjuntura produtiva. A noção de direitos universais deixa de existir no contexto

neoliberal.

Alteração no paradigma de consumo - da padronização à segmentação: O

paradigma de consumo também se altera profundamente no neoliberalismo. Com

a transformação da produção de larga para pequena escala e diversificada, a

produção de mercadorias estrateja para segmentar mais e mais o mercado. Na

vigência hegemônica do neoliberalismo, a produção padronizada praticamente

criava padrões de consumo. A propaganda de massas foi um instrumento

importante para padronizar o consumo, ao impor modas, padrões estéticos e de

gosto popular. Hoje, a diversificação da produção alterou profundamente esta

estratégia: há uma tendência em se buscar a segmentação de mercado, ao

mesmo tempo que se sofistica este mercado consumidor uma vez que esta

produção é em pequena escala e, portanto, restrita a um contingente pequeno de

consumidores. Por isto, o consumo passa a ser organizado a partir de pequenos

“nichos” de mercado que, apesar da sua pequena dimensão, mobilizam quantias

fantásticas de dinheiro, já que são, antes de tudo, nichos de consumo sofisticado.

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Os meios de comunicação de massa que fazem o papel da propaganda e,

portanto, são os organizadores do mercado consumidor, adaptam a esta realidade

e segmentam sua ação: criam-se meios de comunicação segmentados

(impressos, radiofônicos e televisivos) e os meios de comunicação de alcance

genérico, como os jornais, buscam segmentar-se dentro de si (como, por exemplo,

a criação de cadernos específicos para jovens, mulheres, economia, informática,

etc.) para otimizar o discurso publicitário dirigido a estes nichos de mercado.

É importante ressaltar, porém, que se há uma

segmentação na produção e na distribuição, há uma forte tendência à

concentração da direção destes processos. Esta segmentação de mercado é

dirigida por um capital cada vez mais monopolizado, pois as novas tecnologias de

produção que permitem a adoção destes novos paradigmas produtivos e de

consumo exigem investimentos cada vez mais altos e há uma volatilidade cada

vez maior dos equipamentos instalados nas indústrias. Se uma máquina exigia um

investimento X e teria uma vida útil de Y anos no período anterior ao

neoliberalismo, hoje uma máquina mais moderna exige um investimento 2x e sua

vida útil é y/2 ou até menos. Por isto, nesta luta vão sobrevivendo os grandes

monopólios e as pequenas e médias empresas praticamente estão condenadas à

morte.

Esta nova configuração econômica do neoliberalismo

traz alterações profundas no campo social. A primeira delas é uma apartação

social entre aqueles que conseguem se incluir no mercado de trabalho e consumo

nestas novas bases e aqueles que ficam de fora. A segunda, decorrente da

primeira, é a total destruição do que se chamaria de espaço público e sociedade

civil, diante do aumento geométrico das disparidades sociais. A terceira é a

ineficácia de políticas públicas generalistas que desconsideram esta diferença

brutal que se gera no tecido social, transformando direitos em privilégios. E,

finalmente, a quarta alteração é a desvalorização da idéia de democracia (no

sentido lato do termo) e justiça social, conceitos iluministas que foram gestados na

ascendência da burguesia ao poder. Por isto, o neoliberalismo se difere do

liberalismo clássico, já que o segundo continha no seu projeto ideal (embora não

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fosse praticado) a idéia de igualdade, enquanto que o primeiro relativiza a idéia de

igualdade e democracia subordinando-a a de eficiência no sentido gerencial

capitalista. Com este processo contínuo de seleção e exclusão, afloram os

mecanismos raciais como critérios seletivos, primeiramente no mercado de

trabalho formal e, depois, como conseqüência, no exercício da cidadania. Por esta

razão, que o neoliberalismo intensifica os projetos racistas, inclusive os de caráter

político-partidário (como viu-se recentemente na Europa com o ressurgimento das

organizações nazi-fascistas na França, Alemanha, Itália, Rússia, entre outros).

É importante perceber que nestes tempos de neoliberalismo, mesmo

os mecanismos formais de democracia são relativizados: há uma campanha

sistemática contra o Congresso Nacional, por excelência o poder mais

democrático e plural porque abriga o conjunto das correntes políticas existentes na

sociedade; a penetração do marketing político nas disputas eleitorais

despolitizando este momento de debate social e transformando estas disputas em

meros jogos publicitários e de imagens construídas; a proposta de enxugamento

das normas legais (principalmente os tocantes às relações trabalhistas e sociais)

tirando qualquer forma de controle social sobre o funcionamento e a ação dos

ocupantes dos poderes governamentais, entre outros.

No caso específico do Brasil, um país que passou por

uma revolução burguesa de caráter conservador, que manteve estruturas

aristocráticas e escravistas quase que intactas, a adoção deste modelo neoliberal

aumenta um processo de exclusão que já existia, praticamente condenando ao

extermínio os ocupantes deste segmento populacional. Este aumento se dá de

duas formas:

a-) de forma extensiva, ao ampliar o número de pessoas que entram na zona da

exclusão social, num processo que podemos denominar de democratização da

senzala;

b-) de forma intensiva, ao intensificar os mecanismos de exclusão daquelas

pessoas que já estavam na zona dos excluídos, num processo complementar que

denominaremos de extermínio da senzala.

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Os dois processos - democratização e extermínio da

senzala - praticamente destroem a incipiente sociedade civil brasileira e

transforma a cidadania num privilégio cada vez mais inacessível a maioria. Os

direitos sociais, embora previstos legalmente, transformam-se em letra morta

diante da incapacidade dos poderes públicos garanti-los sem uma ruptura com

todo o sistema social.

Um exemplo simples que podemos dar é quanto ao

problema da fome. Pegando os dados do IBASE que foram utilizados na última

Campanha contra a Fome no país, existem 32 milhões de brasileiros passando

fome. Se cada um destes famélicos recebesse uma ajuda no valor de US$30,00

mensais (considerado como fronteira entre a miséria e a pobreza, segundo a

ONU), haveria um dispêndio mensal de 960 milhões de dólares ou 11,52 bilhões

de dólares anuais, menos de 2% do PIB brasileiro. É evidente que o país tem

condições de resolver este problema, mas isto exige uma radical inversão das

prioridades que colocam em cheque o atual modelo de acumulação capitalista.

Demonstra-se com isto o espaço cada vez mais

limitado de se buscar garantir direitos mínimos de cidadania dentro do campo

institucional. A tendência à concentração de renda faz agravar ainda mais os

problemas e, assim, a resolução destes exige cada vez mais investimentos

vultuosos que significariam uma mudança dos rumos do desenvolvimento

capitalista atual.

Os setores hegemônicos têm duas alternativas diante

disto. À direita, pregam simplesmente o extermínio físico destas populações, num

processo de faxina étnica. Ao centro, criar mecanismos de seleção para que

parcela destes excluídos desfrutem de uma rede mínima de proteção social - que,

com o passar dos tempos, torna-se cada vez mais mínima - controlando

inevitáveis explosões sociais nestes segmentos excluídos.

O projeto do centro tende a se esgotar, uma vez que o

segmento excluído vai crescendo - tanto extensiva como intensivamente -

transformando esta “rede de proteção social” em privilégios cada vez mais

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restritos e, portanto, ineficazes enquanto controladores das tensões sociais. Ë

neste campo que se situam as ONGs (Organizações Não Governamentais) que se

anteriormente praticavam políticas públicas complementares ao Estado, hoje

atuam como substitutas do Estado cada vez mais distante do social e, num futuro

não muito distante, agem como selecionadoras dos que terão o privilégio dentre

os excluídos de desfrutarem da rede mínima de proteção social.

Mesmo organizações populares clássicas, como os

sindicatos, pela sua forma de estruturação, acabam cumprindo este papel, uma

vez que ao representar apenas aquela parcela incluída no mercado de trabalho

formal, praticamente deixa sem qualquer tipo de representação os trabalhadores

do setor informal que hoje já são maioria (66%) e também os desempregados.

O atendimento às demandas sociais é restrito cada vez

mais e reforça-se uma tradição de tratar as políticas sociais como moeda de troca

no jogo político.

“Em termos de política social, tornam-se parâmetros fundamentais: a-) precisa ser

redistributiva e não apenas distributiva com se renda e poder fossem disponíveis

(...); b-) precisa ser equalizadora de oportunidades no sentido de instrumentar os

desiguais para que tenham chance histórica pelo menos mais aproximada (...); c-)

precisa ser emancipatória no sentido de reconhecer que, no confronto da

desigualdade social, somente pode haver mudança importante e sobretudo

radical, a partir dos desiguais, ninguém faz a emancipação do outro porque seria

estratégia de desmobilização; de modo geral, as políticas sociais tendem a

construir a cortina tutelar sobre a população pobre fazendo-a dependente dos

recursos públicos (...) d-) precisa ser preventiva no sentido de agir na raiz dos

problemas antes que eles surjam.”12

Esta concepção emancipatória de política social nunca

existiu no Brasil, mesmo antes do vendaval neoliberal. Mesmo no tempo de

Getúlio Vargas, quando se buscou integrar parcelas do operariado ao mercado de

consumo interno visando desenvolver um capitalismo autônomo no país, os

12 DEMO, Pedro. Cidadania menor, pp. 18/19

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direitos sociais foram concedidos de forma populista, na vigência de um regime

autoritário que praticamente cassou a voz da sociedade civil organizada. Assim,

cristalizou-se uma concepção de política social enquanto atendimento à carências,

de forma mercantilista, gestando vínculos de dependência permanente (e não de

autonomia) entre Estado e indivíduo. Ocorre, assim, o que Dreyffus chama de...

“...uma Sociedade Civil irrealizada e já absorvida pela Sociedade Política

dominante. Enfim, uma cidadania em gestação e truncada e uma individualização

anômica – sem leis, sem normas ou regras de organização – onde ‘cidadão’ não

passa de um apelativo sinônimo de ‘fulano’ ou ‘cara’.”13

Com a privatização dos direitos de cidadania, tornando-

os mercadorias destinadas aos privilegiados que ainda não caíram na ‘senzala’

social brasileira, esta absorção da sociedade civil pela sociedade política

dominante como afirma Dreyffus torna-se ainda mais dramática uma vez que as

esmolas oferecidas como moeda de troca no jogo político transformam-se em

alternativas de sobrevivência para os integrantes da massa de excluídos.

Assim, as organizações autômomas da população

encontram maiores dificuldades de ação junto a esta massa populacional que fica

entre a opção de se manter fiel a princípios ideológicos ou satisfazer necessidades

materiais imediatas que são oferecidas a conta-gotas e a preços políticos às vezes

inimaginados por estes segmentos populacionais pelos segmentos dominantes.

Em outras palavras, o último laço de integração da senzala à casa grande está

nesta cooptação baratíssima para as classes dominantes, mas aliviadora para os

excluídos.

Alguns projetos de reformulação institucional vão no

sentido de reduzir esta necessidade de atender estas demandas sociais mesmo

em períodos eleitorais. O fim do voto obrigatório, defendido até mesmo por

algumas correntes de esquerda, praticamente corta o único elo de ligação desta

massa de excluídos com a chamada ‘sociedade política hegemônica’. É a

institucionalização da exclusão. A reforma na estrutura sindical, implantando

13 DREYFFUS, Renée. O jogo da direita, pp. 17/18

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modelos de organização sindical vigentes nos países europeus também vai neste

sentido, uma vez que descartará a representação profissional daquelas categorias

não hegemônicas no mercado de trabalho, como alguns setores de serviços.

Enfim, a institucionalização política da exclusão cumprirá o papel de apagar

qualquer traço de visibilidade destes setores, facilitando, assim, projetos de faxina

étnica e de extermínio físico destas populações.

A preocupação com a instabilidade causada pela miserabilidade

preocupa uma importante fonte do Poder Mundial: o Banco Mundial que, no seu

relatório sobre a pobreza no mundo, chama a atenção dos governos dos países

em desenvolvimento que o não atendimento de demandas mínimas dos

miseráveis pode por em risco todo o processo de inserção das economias do

terceiro mundo no mundo globalizado neoliberal. O veredito do Banco Mundial é

taxativo: a miséria pode se transformar em uma guerra civil.

“La estabilidade social depende no sólo de níveles de desigualdad

tolerables sino que también requiere que los diversos grupos socioeconomicos,

como las agrupaciones étnicas o regionales mantengan la cohesion social haciendo

posible el funcionamento de la sociedade, las instituiciones y los mercados. La

estabilidad social es un activo intangible: mejora perspectivas de crescimiento y es

dificil de reemplanzar una vez perdida (...) La ruptura definitiva de la cohesion social

es la guerra civil...14

A preocupação do Banco Mundial com o aumento da miserabilidade

(mais que uma preocupação, mas um verdadeiro alerta de acordo com o seu

informe de 1999) não decorre de nenhum ataque altruísta dos detentores do novo

poder mundial. Decorre, unicamente, da preocupação com a instabilidade do

sistema; em outras palavras, a miséria pode chegar a níveis insuportáveis que põe

em risco todo o sistema em que o capitalismo neoliberal está assentado.

Mas o mesmo informe do Banco Mundial diz adiante:

14 Relatório do Banco Mundial sobre a pobreza, setembro/99

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"A chave para estes e outros planos não relacionados com o emprego é formulá-

los de tal maneira que mantenham sua função de representar uma segurança para

os mais pobres e não sejam utilizados por aqueles que não se encontram em uma

situação menos desesperada."

A ação social do Banco Mundial se desenvolve prioritariamente por cima dos

estados nacionais sob o argumento de que estes podem fazer um uso "político" e

"populista" de tais ações. Para isto, contam com as ONGs que passaram a

receber maiores parcelas dos projetos financiados pelo Banco Mundial. Segundo o

relatório Overview - NGO World Bank Collaboration (disponível no site do Banco

Mundial), "entre 1973 e 1988, somente 6% dos projetos financiados pelo Banco

Mundial envolviam ONGs. Em 1993, um terço dos projetos aprovados incluíam

ONGs e em 1994, este percentual chegou a 50%".

O sociólogo norte-americano James Petras afirma que "à medida que aumentou a

oposição ao neoliberalismo, o Banco Mundial incrementou os donativos às ONGs.

O ponto fundamental de convergência que une as ONGs e o Banco Mundial é o

rechaço de ambas entidades ao estatismo. Superficialmente, as ONGs criticavam

o Estado desde uma perspectiva de esquerda na qual defendiam a sociedade civil,

enquanto que o Banco Mundial o criticava em nome do mercado" (PETRAS, Las

dos caras de las ONGs, texto publicado no La Jornada, do México, em 8/8/2000, e

reproduzido no site Oficina de Informações)

Estas ações incrementaram não devido ao crescimento dos protestos políticos

mas também à falência social do projeto neoliberal que, segundo dados do próprio

Banco Mundial, da população global de 6 bilhões de habitantes, 2,8 bi (46,7%)

vivem com menos de dois dólares por dia e 1,2 bi (20%) com menos de um dólar

diário. O risco de total desestabilização do sistema é evidente e o Banco Mundial

tem se desdobrado para agir no sentido de garantir a estabilidade do sistema sem

questioná-lo. Esta é a perspectiva da corrente que denominamos de

administradora das tensões sociais.

Vejamos agora a intensidade dos mecanismos de extermínio impostos pela

globalização neoliberal. O relatório da ONU intitulado Perspectivas da População

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Mundial – Revisão 2000 divulgado no dia 28 de fevereiro último aponta que a

população mundial hoje está em torno de 6,1 bilhões de pessoas e cresce a uma

taxa anual de 1,2% - em números absolutos, isto significa 77 milhões de pessoas

a mais por ano. O mesmo relatório aponta que até o ano de 2025, os países mais

desenvolvidos tenderão a uma redução da população enquanto que os países

mais pobres continuarão crescendo até 2050. Dados:

Os seis países que mais crescem atualmente são: Índia (21%), China (12%),

Paquistão (5%), Nigéria (4%), Bangladesh (4%) e Indonésia (3%) – somente estes

países são responsáveis pela metade do crescimento anual da população

mundial.

A população de 39 países projetam uma redução nos próximos 50 anos. As

estimativas são de redução da população no Japão e Alemanha (14%), Itália e

Hungria (25%), Federação Russa, Geórgia e Ucrânia (de 28 a 40%).

Estes dados são importantes para uma reflexão das perspectivas do racismo a se

manter o atual padrão de acumulação de riquezas, pois sabe-se que os países

mais ricos concentram cerca de 80% da riqueza mundial. Isto significa que as

regiões mais pobres é que concentram e concentrarão ainda mais a população

mundial, uma conta que faz aumentar a concentração de riquezas.

Uma situação destas tende a intensificar os fluxos migratórios, pois com o

aumento da miserabilidade das regiões mais pobres, as populações destes locais

irão buscar meios de sobrevivência nos locais onde se concentram as riquezas – e

isto é grave a ponto de já se perceber fluxos migratórios em algumas regiões da

África em busca de água potável. Por sua vez, as nações mais ricas tenderão a

lançar mão de mecanismos racistas e xenófobos para controlar ou mesmo impedir

o acesso destas populações migrantes às riquezas de tais nações.

Um outro problema que preocupa as nações mais ricas é o esgotamento dos

recursos da biomassa que, hoje, se concentram justamente nas florestas tropicais

localizadas, na sua maior parte, nos países mais pobres, especificamente a

América Latina, África e Ásia. Estudos mostram que há um iminente esgotamento

das fontes energéticas tradicionais – petróleo e carvão mineral – e uma das

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alternativas é a biomassa, uma fonte de riquezas renovável e rica em tais

florestas. Por isto, os controles do crescimento populacional destes países bem

como o não reconhecimento da titularidade das terras de povos que

historicamente as ocupam, como os indígenas na América Latina, e ainda o

mecanismo das patentes que obrigam as nações mais pobres a pagarem pelo uso

industrial de medicamentos produzidos com matéria prima extraída do seu próprio

território.

É importante ainda colocar uma questão para se pensar a crueldade destes

mecanismos de extermínio. A Aids hoje é vista como um fator estratégico de

controle populacional de países do continente africano. O último relatório da ONU

já citado aponta que a expectativa média de vida nos países da África

Subsaariana caiu de 50 anos em 1990 para 49 anos em 2000, enquanto que no

mundo todo, a expectativa média de vida sobe constantemente. O relatório diz que

daqui a 15 anos, a expectativa média de vida nesta região deverá subir para, no

máximo, 52 anos. Recentemente, indústrias farmacêuticas transnacionais

entraram com ação contra o governo da África do Sul porque este decidiu adquirir

medicamentos produzidos no Brasil e na Índia de tratamento da Aids a preços

mais baixos que os oferecidos por estas indústrias. A alegação dos empresários:

Brasil e Índia não estariam respeitando a lei das patentes. O fato é que o governo

sul-africano não teria como manter um programa público de tratamento da Aids se

tivesse que pagar os preços impostos pelos laboratórios – mas isto não é nem

levado em consideração. Aliás, um dos argumentos de proprietários destes

laboratórios é que não adianta fornecer medicamentos aos africanos porque eles

são fracos, famintos e o medicamento nem faria reação – em outras palavras, eles

têm que morrer mesmo.

A realização da Conferência Mundial de

Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas

organizada pela ONU (Organização das Nações Unidas) em Durban, em setembro

de 2001 evidenciou como o racismo só pode ser enfrentado a partir de uma visão

estrutural da geopolítica internacional. Os países africanos reivindicaram, neste

encontro, dois tópicos que implicariam em uma revisão no atual padrão de

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acumulação de riquezas e de poder: as reparações pelo tráfico de escravos e pela

colonização e o cancelamento da dívida externa. A argumentação dos países

africanos era que a situação desfavorável deles devia-se à herança histórica da

escravidão e da colonização que transferiu riquezas e recursos humanos da África

para a Europa. Assim, a atual pirâmide econômica da geopolítica internacional foi

constituída historicamente a partir da espoliação dos povos da diáspora africana.

Sem este acerto de contas com este legado histórico articulado com um projeto

político de igualdade social, não há como reverter o processo de extermínio das

populações afrodescendentes. Não foi à toa que os Estados Unidos se retiraram

da Conferência, negando-se discutir a pauta dos africanos – claro, discuti-la

implicaria em abrir mão dos seus privilégios.

O movimento negro organizado brasileiro mais recente

é, hegemonicamente, centrista, ou seja, hegemonizado por ONGs ou por

entidades com perfil semelhante às ONGs. Isto por diversos fatores que

poderemos enumerar:

a-) A forte influência do movimento negro norte-americano, hegemonizado pela

política de direitos civis voltados a minorias, criando a ilusão entre os

afrodescendentes brasileiros da possibilidade de inclusão nos marcos do

capitalismo;

b-) O fato da direção do movimento negro organizado ser oriunda de uma

pequena burguesia negra urbana que está na franja do segmento dos incluídos,

fazendo com que esta pequena burguesia negra intelectualizada busque medidas

no sentido de garantir uma estabilidade para si nesta posição social;

c-) O fato da direção do movimento negro cultural e religioso atingir uma camada

de população excluída que, para sobreviver, depende de favores prestados pelo

Poder Público, fazendo com que estas organizações sejam facilmente cooptadas

pelos segmentos políticos dominantes em troca de favores.15

O mais sério de tudo isto é que, não obstante os afrodescendentes 15 Clóvis Moura chamou estes dois tipos de organização negra contemporânea de “movimento negro letrado” e “movimento negro plebeu”. Ver MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro, São Paulo, Editora

41

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estarem em uma situação de exclusão absoluta, com suas existências físicas

correndo sérios riscos, de estar em curso projetos de faxinas étnicas (como os

previstos documentalmente nos textos da Escola Superior de Guerra de 1988 e o

documento NSSM-2000 da CIA dos Estados Unidos, no ano de 1989) e que o

neoliberalismo no Brasil significará o mais bárbaro extermínio de população já

conhecido na história do país, o movimento negro (tanto o “letrado” como o

“plebeu”) organizado não tem conseguido dar resposta eficaz que mobilize o

conjunto das populações atingidas. Quais seriam os desafios que estão postos

para o movimento negro cumprir o seu papel? Um dos debates mais importantes é

o de construção de um projeto político de identidade, que veremos no próximo

capítulo.

Anita, 1995.

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A política de branqueamento da população e o racismo

dissimulado existente na sociedade brasileira conseguiu, entre suas maiores

vitórias, a desarticulação de um conceito de identidade da população negra

brasileira que dificultou a sua organização enquanto grupo específico. Embora isto

não tenha sido impeditivo da organização do movimento negro que sempre

questionou e denunciou o racismo no Brasil, é evidente que esta desarticulação

gerou uma situação que dificultou a constituição de uma visão de si para si.

Antes de mais nada, é preciso deixar nítido que partimos do

pressuposto que raça não é uma categoria biológica ou natural e sim socialmente

construída. As pesquisas do recente projeto Genoma que objetiva fazer um

mapeamento genético da espécie humana teve como uma das suas primeiras

conclusões a não existência de diferenças genéticas significativas entre

habitantes originários da África e da Europa, pelo contrário: em muitos casos,

pode haver mais semelhanças genéticas entre um tipo africano e um tipo europeu

que entre dois tipos africanos ou entre dois tipos europeus. Desta forma, toda a

teoria do racismo “científico”, da “eugenia” e outras propostas teóricas que

buscavam justificar políticas de segregação argumentando a existência de

diferenças naturais entre brancos e negros são desmentidas cientificamente.’”

Além disto, é um erro, conforme as mais modernas pesquisas

arqueológicas e antropológicas, considerar o continente africano como uno em

termos étnicos, culturais ou mesmo em características fenotípicas. As pesquisas

patrocinadas pela Unesco demonstraram a existência de milhares de etnias, com

traços culturais, cosmovisões, idiomas e formas de organização política totalmente

diferentes.

A unidade dos habitantes originários da África sob o conceito de

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“negros” ou “raça negra” foi construída pelos povos europeus com o objetivo de

legitimar a espoliação e escravização dos africanos. Assim, motivados por um

projeto político e econômico, os europeus constituíram uma identidade de si

enquanto brancos e civilizados em oposição aos africanos, negros e bárbaros. A

pigmentação da pele foi o traço utilizado como critério diferenciador para esconder

estas intenções políticas.

No Brasil, na época da escravidão, a Igreja Católica adicionou mais

um critério para defender a escravização: o fato dos africanos não serem cristãos

o que, juntamente com os nativos indígenas, os colocavam no grupo dos “sem

alma”, portanto, não humanos .

Com isto, consolidou-se uma identidade que atendia ao projeto

político e econômico da metrópole portuguesa: de um lado, os brancos, europeus,

civilizados e cristãos que, por esta condição, seriam os redentores do rebanho; e

de outro, os negros, africanos, bárbaros e sem alma que, por tudo isto, deveriam

servir aos redentores do rebanho e serem utilizados como coisas.

O que pretendemos com esta reflexão? Afirmar que construção de

identidades é algo socialmente criado, tem um objetivo político e não é, em

hipótese alguma, naturalmente dado. Por isto, os conceitos classificatórios dos

tipos humanos existentes são sempre passíveis de discussão e contestação e

cabe àqueles segmentos vítimas de discriminação e preconceito construir seus

próprios projetos de identidade que mais lhe interessam na sua luta pela

emancipação.

O projeto de branqueamento no Brasil reforçou a idéia de construção

das identidades pela tonalidade da pele. “Branquear”, “melhorar a raça” e outros

termos muito comuns principalmente quando se discute as relações sociais entre

pessoas de diferentes grupos étnicos são fruto desta política. Da mesma maneira,

aquelas lideranças negras aparentemente mais radicais que defendem a

manutenção da “raça pura”, “preto 100%”, “negrão mesmo”, “africano no sangue”

e outras coisas do tipo.

Recuperando a nossa noção histórica de que o racismo foi

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construído historicamente no Brasil pela forma predatória que as classes

dominantes acumularam suas riquezas e construíram o sistema capitalista,

percebemos que a população excluída socialmente da sociedade brasileira é

originária do contingente de negros que, no processo de abolição gradual e

controlada da escravidão no século XIX, passou da condição de escravo para

cidadão marginalizado. Toda esta população, independente da tonalidade da cor

da pele, é vítima direta ou indiretamente do racismo. Por isto, não obstante a

política de branqueamento da população brasileira defendida pelas elites na

passagem do século XIX para o XX tenha gerado uma diferenciação em termos de

tonalidade de pele da população brasileira; as condições sociais desta maioria

excluída permaneceram as mesmas.

O branqueamento serviu, principalmente, como um mecanismo de

cooptação: os mestiços foram seduzidos a abandonar a sua identidade com os

demais descendentes de africanos escravizados e construir uma identidade junto

a elite branca. Desta forma, disseminou-se a ideologia racista junto à população

construindo o consenso social16 necessário para legitimar o Estado de Mal Estar

Social.

Resultado: a elite constituiu uma identidade para si, distinguindo-se

do restante da população excluída, o que coadunava com o seu projeto de

constituir uma nação não voltada para si própria mas para os outros. Na verdade,

esta identidade que a elite constituiu continha, na sua essência, um certo grau de

frustração com o fato de estarem em um país formado majoritariamente por

pessoas não brancas. Por isto, em quase toda a curta história do capitalismo

brasileiro, as classes dominantes brasileiras funcionaram como gerenciadoras de

negócios lucrativos para a burguesia transnacional, não se importando de ocupar,

neste projeto de desenvolvimento associado, um lugar não hegemônico.

Exemplo: no projeto de desenvolvimento industrial do regime militar

de 1964/85, houve uma nítida divisão dos vários departamentos produtivos do

parque industrial: o de produção de bens de consumo duráveis foi hegemonizado 16 Adotamos o conceito de “consenso social” no sentido gramsciano da palavra, isto é, a disseminação da

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pelo capital transnacional; o de bens de consumo não duráveis pelo capital

nacional e o de infra-estrutura, pelo capital estatal. Os dados mostram que o

incremento mais considerável foi justamente o do departamento de produção de

bens de consumo duráveis. Apesar do governo Goulart, deposto pelos militares,

ter uma proposta de desenvolvimento autônomo do capitalismo, este não foi

defendido pela burguesia brasileira que sempre temeu qualquer aliança, por mais

pontual que seja, com as classes proletárias.

Mas deixemos de lado a identidade da elite. E a identidade da

população excluída, originária dos escravos libertos em 1888? Primeiramente, a

identidade desta população foi construída pelo seu opressor: era um grupo

diferenciado pela classe dominante por ser negro, bárbaro, não civilizado, não

cristão.

Diante disto, a estratégia de luta pela emancipação deste segmento

pode variar desde uma construção de identidade dentro dos referenciais

oferecidos pelas classes dominantes, ou seja, dentro dos marcos de um grupo

diferenciado, ou então a partir de um pressuposto novo, de reconstrução da sua

identidade enquanto classe explorada e com perspectiva de superar a condição de

explorado, o que significa atuar como um grupo específico.

Não consideramos estas duas perspectivas estratégicas como

estanques, mas dialeticamente como processos de construção de uma identidade.

É evidente que, historicamente, percebemos que o movimento negro transita entre

uma e outra posição, porém o que nos interessa aqui é apontar perspectivas de

superação do racismo.

Além disto, é preciso dizer que na sua luta pela sobrevivência, é

natural que a população negra seja forçada a assumir os referenciais da classe

dominante para ser minimamente aceita e poder receber ainda que seja as

migalhas que lhe reservam o sistema. Por esta razão, boa parte da população

descendente dos africanos escravizados não aceita a denominação de negros,

valorizam a assimilação dos elementos da civilização européia e a inserção nas

ideologia das classes dominantes como forma de manter a coesão da sociedade.

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religiões cristãs, condenando a prática das religiões de matriz africana. Acusar

simplesmente de racista os eventuais negros que fazem isto é desconhecer os

mecanismos de violência racial que agem surdamente nos subterrâneos da

realidade.

Entretanto, é preciso dizer também que tentar reafirmar estas

características nos dada pelas classes dominantes tentando apenas inverter os

sinais e caracterizá-las como positivas não resolve: continuamos dentro dos

marcos de uma sistematização de identidades que foi feita pelas elites. E é isto

que vem sendo feito muito atualmente no Brasil , aproveitando uma mudança

na estratégia de cooptação do sistema capitalista brasileiro.

Uma das características da atual fase de globalização neoliberal é a

intermediação das relações sociais por sistemas midiáticos. Graças ao

descomunal avanço nas tecnologias de comunicação, o capital pode ampliar seu

raio de ação globalizado de forma mais rápida e intensa. Construiu-se um espaço

virtual de infovias onde circulam montanhas de dinheiro digitalizadas em bytes,

idéias, informações e, principalmente, visões de mundo. Aliado a isto, há uma

flexibilização dos sistemas de produção industrial, inclusive de bens simbólicos,

que permite um mesmo centro de gestão de capital multiplicar suas formas em

variados produtos, adaptando-se a distintos mercados. É por isto que hoje têm-se

a impressão de que há uma oferta maior de produtos, escondendo-se que, por

trás desta maior variedade, há uma forte concentração dos centros de comando

destas produções. A globalização neoliberal permitiu uma centralização

diversificada, ao contrário da padronização centralizada que vigia durante a

hegemonia do método fordista de gerenciamento produtivo.

Isto permite ao neoliberalismo um discurso ideológico de que hoje há

mais oportunidades de expressar as diferenças em todos os sentidos: étnicos,

grupais, religiosos, entre outros. É a regra do livre mercado perpetrando todos os

sentidos da vida, são os benefícios da livre iniciativa invadindo outros terrenos da

vida social que não apenas a econômica.

O que aconteceu em termos da identidade racial no Brasil? Primeiro,

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que houve um aumento da visibilidade do negro na sociedade brasileira,

particularmente nos meios de comunicação. É claro que parte desta conquista

deve ser creditada ao movimento social dos negros que lutaram arduamente

contra a segregação que lhes foi (e ainda é) imposta pelas classes dominantes.

Mas é claro também que parte deste aumento de visibilidade foi possível em

função de uma mudança de estratégia das classes dominantes.

Durante muito tempo, o movimento social de negros denunciava o

racismo dos meios de comunicação que ignorava a figura do negro nos

comerciais, nas telenovelas (a não ser para desempenhar papel de subalterno,

como empregados, ou como marginais, bandidos, entre outros)17, nos programas

infantis e de auditório. Foi consenso nos anos 70 que a indústria cultural brasileira

privilegiava os bens simbólicos importados (filmes e seriados norte-americanos,

música estrangeira, entre outros) em detrimento da produção nacional. A situação

de hoje é outra.

Primeiro que, embora ainda minoritária, há um nítido crescimento do

aparecimento do negro nos meios de comunicação de massa, inclusive com

publicações assumidamente dirigidas ao público negro, como a revista Raça

Brasil, lançada em 1996 pela Edítora Símbolo (ironicamente, propriedade de uma

coreana). Segundo, que a música negra brasileira foi a principal responsável pela

quase que expulsão da música estrangeira das listas de discos mais vendidos e

das músicas mais tocadas em rádio. Segundo dados da indústria fonográfica, 71%

dos discos vendidos em 1998 no Brasil eram de cantores e compositores

nacionais, particularmente de pagode e axé music.

Uma análise apressada poderia concluir que há um relaxamento do

racismo no Brasil. Somos de opinião contrária: o racismo no Brasil está se

tornando até mais cruel que antes se levarmos em consideração a piora

vertiginosa dos indicadores sociais da maioria da população negra. Como se

explica esta aparente contradição? 17 Em um trabalho onde analisou a imagem dos negros nas telenovelas, a professora Solange Couceiro constatou que a mulher negra aparece sempre como um “elemento perturbador” da família: amante de homens casados ou uma empregada que seduz o patrão ou uma jovem cujo casamento era indesejado pela família do

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O que está acontecendo é uma mudança na estratégia dos

aparelhos de produção e difusão cultural que absorveram bens simbólicos da

cultura negra transformando-os em uma mercadoria rentável. Note-se que, apesar

do aumento da visibilidade do negro nos meios de comunicação de massa, o

controle destes meios não está nas mãos dos negros, continua com os mesmos

proprietários. Por isto uma coreana decide fazer uma revista voltada para os

negros. Não é porque ela está sensibilizada pela causa da população negra mas

sim porque, como empresária, percebeu que é possível constituir um nicho de

mercado segmentado entre esta população.

A segunda questão em relação ao problema contemporâneo da

identidade racial no Brasil refere-se ao fato da perda do referencial público,

conseqüência também do projeto neoliberal. Há uma condenação explícita e

implícita dos projetos de atuação coletiva e política, uma defesa exarcebada da

ação individual e do caminho da cidadania via a inserção no mercado de consumo

(cuja lógica, nos marcos do capitalismo, é individual e competitiva por excelência).

Esta segunda constatação articulada com a primeira – o aumento da visibilidade

do negro nos meios de comunicação de massa brasileiros – articulam um projeto

de identidade enquanto segmentação de mercado consumidor.

“O consumo, descentralizado e diversificado, enquanto único espaço de

construção de identidades, passa a ser o referencial dos agrupamentos sociais.

Estes agrupamentos sob a hegemonia do discurso burguês não se formam mais

como uma busca coletiva de interesses comuns, mas fundamentalmente como

formas de organização enquanto agrupamentos de consumidores.”18

A percepção desta mudança da estratégia de cooptação é importante

para entender a relação que determinadas organizações negras constróem com

aparelhos institucionais. Por exemplo, no ano de 1999, o prefeito de São Paulo,

Celso Pitta, negro, com uma política reacionária e aliado aos setores mais

retrógrados da política paulistana, enfrentou uma série de denúncias de

noivo. Ver COUCEIRO, Solange. O negro na televisão brasileira. S. Paulo: FFLCH/USP, 1985. 18 OLIVEIRA, Dennis. Comunicação sindical, globalização neoliberal e mundo do trabalho. São Paulo: ECA/USP, 1998 (tese de doutorado)

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escândalos de corrupção além da forte oposição do movimento popular (inclusive

entidades do movimento negro com perfil de esquerda).

Como forma de demonstrar que possuía apoio, o prefeito organizou uma

manifestação de setores favoráveis a sua administração – e ela foi construída

basicamente pelas grandes escolas de samba da capital paulista, organizações

que reúnem, na sua maioria, pessoas negras e pobres da periferia. O que motivou

estas escolas de samba a apoiarem o prefeito foi o fato delas ganharem inúmeras

vantagens na sua administração, o que viabilizou, inclusive, uma grande

comercialização do carnaval paulistano nunca antes visto.

O que queremos dizer com tudo isto é que a simples valorização de alguns traços

ultilizados pelas classes dominantes para tipificar população negra não significa o

fim ou mesmo a redução do racismo.Se antes o samba a capoeira, o carnaval, o

candomblé eram criminalizados; o fato de deixarem de o ser não implica

necessariamente a redução do racismo. Hoje, com a nova estratégia da indústria

de bens simbólicos de diversificar seus produtos para legitimar seu controle

monopolista, esta inversão de sinais fica muito mais fácil. É uma reivindicação dos

agentes destes grupos culturais (que é legítima, é importante frisar) muito mais

fácil de ser atendida e incorporada nas atuais formas de acumulação de riquezas

que a inserção total e completa do conjunto da população negra no estatuto da

cidadania. Por isto se visualiza hoje uma maior visibilidade do negro e suas

manifestações e, paralelamente, a um aumento da exclusão social da população

negra.

Mas há uma questão interessante que favorece a formação deste mercado

consumidor segmentado de negros que já falamos: o fato de que a valorização

das manifestações culturais negras promoverem socialmente os seus agentes.

Graças a isto, uma parcela significativa de agentes culturais negros vinculada a

estas manifestações valorizadas pelos mass media conseguem contratos bem

remunerados, ingressam no mercado de consumo, compram mercadorias caras e

transformam-se em novos olimpianos.19 Com base nestes novos ídolos negros, a

19 Conceito elaborado pelo sociólogo Edgar Morin para designar as pessoas do mundo artístico e de

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50

indústria de bens simbólicos pode construir uma fascinação junto ao mercado

segmentado de negros e mesmo ao mercado consumidor em geral, rompendo

com a invisibilidade do negro nos media mas mantendo o mesmo padrão de

produção de bens simbólicos da indústria cultural.

Toda relação de consumo enseja uma identidade entre o produtor e o consumidor.

Esta identidade pode ser construída por diversos mecanismos simbólicos e, em

um momento em que as relações sociais são cada vez mais intermediadas pelos

meios de comunicação de massa, o papel destes meios torna-se quase que

fundamental na construção destas identidades.

Por esta razão, com estas novas estratégias de organização da produção e do

consumo, o que se percebe nas relações raciais no Brasil de hoje é a constituição

de uma nova identidade racial por parte das classes dominantes que atendem os

seus interesses nesta nova etapa da acumulação capitalista. Esta nova identidade

racial pode ser resumida como uma recuperação das tipificações destinadas à

população negra anteriormente valoradas de forma negativa só que desta vez com

uma positivação nos seus aspectos formais. Desta maneira, este novo

pensamento burguês a respeito da questão racial aponta para uma

neodemocracia racial, onde as diferenças grupais não são mais tratadas como

algo negativo, mas sim positivo; e taxando de racista o pensamento mais antigo

de desvalorização das tipificações que distinguiam negros de brancos.

O que se percebe nesta mudança é que se mantém as diferenciações grupais

feitas pela burguesia branca, ocorrendo apenas uma troca dos sinais. Mas será

que esta caracterização feita pelos exploradores é a que mais interessa ao grupo

negro?

Para responder a esta pergunta, analisemos os limites que esta caracterização

reserva à população negra. Primeiro, que reforça a idéia de que o caminho para a

ascensão social do negro está no campo do lúdico e do entretenimento. Por mais

entretenimento em geral que tem sua vida pública amplamente divulgada pelos mass media causando fascinação junto ao grande público. O termo olimpiano vem de Olimpo, local de moradia dos deuses segundo a mitologia grega. Ver MORIN, Edgard. A cultura de massas no século XX (vols 1 e 2). S. Paulo: Graal, 1990.

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que existam alguns negros em várias posições de destaque no campo das

ciências, a esmagadora maioria dos negros que ocupa os degraus mais altos da

pirâmide social são artistas ou esportistas. Podemos definir que o sistema

reservou um espaço limitado à ocupação do negro, espaço este que também pode

render lucros à elite branca, haja vista que a maior parte dos empresários de

artistas e dirigentes de clubes de futebol são brancos.

Segundo, que os meios de comunicação de massa vem adotando

uma estratégia interessante ao retratar estes negros bem sucedidos no campo das

artes e do esporte: ressaltam a origem pobre destes negros e que todos eles não

estudaram. Este discurso, embora aparentemente pode demonstrar uma

vinculação social destes artistas negros, tem uma conseqüência desastrosa, em

especial para a juventude negra: de que é possível, mesmo sem melhorar as

condições sociais, subir na pirâmide social; e que é desnecessário estudar ou

compartilhar do saber articulado e acumulado para ter sucesso. Basta ter”’

talento”. (dom)

Com isto, desarma-se um discurso reivindicatório de melhoria nas condições

sociais da população negra e mesmo o discurso positivo de busca da ascensão

social via o aumento do grau de instrução que muitos negros faziam para os seus

filhos, principalmente nos anos 60 e 70, época de plena expansão do

desenvolvimento industrial no Brasil. Ainda que ingênuo, este segundo discurso

contribuiu decisivamente para que a juventude negra lutasse dentro dos meios

formalizados pelo direito à instrução e evidenciou os mecanismos racistas

existentes nos instrumentos públicos, ainda que estes fossem dissimulados.

Nossa experiência na UNEGRO demonstrou um pouco disto. Nos anos de 1998 e

1999, realizamos uma série de palestras e oficinas em escolas públicas dos

bairros periféricos de Itaquera e Artur Alvim, como parte do Projeto Negro

Cidadão.20 A nossa presença nas escolas foi bem vinda pelos diretores e docentes

que apresentaram uma demanda: de que nós convencêssemos os jovens negros

a se interessarem pelo estudo, porque a maioria entendia que o caminho era se 20 Este projeto foi idealizado pela UNEGRO em 1998 como forma de instituir entre a juventude negra a

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tornar cantor de pagode ou de rap ou jogador de futebol. Ter instrução ou estudo

deixou de significar alguma coisa para a maioria dos jovens negros pobres,

segundo constatou estes diretores.

A neodemocracia racial implica em uma divisão de papéis na sociedade: o saber

articulado que permite o comando e a elaboração de estratégias, direções e

controle da gestão compete ao branco que, segundo este discurso, reúne as

condições para isto. Já a atividade lúdica que demanda criatividade, talento e

todas as qualidades que prescindem de um saber articulado competem aos

negros e não brancos que teriam uma aptidão natural para tal. Este discurso

sempre existiu, o que o diferencia agora é que ele não é mais combinado com um

sinal valorativo (o primeiro positivo e o segundo, negativo) mas que ambos têm a

mesma importância para o mundo. É o mesmo discurso “moderno” que os

empresários fazem: os trabalhadores não formam uma classe inferior, mas sim

são parceiros seus na construção de um projeto comum. A neodemocracia racial

defende uma “parceria” entre brancos e negros, mesmo estes mantendo as suas

eventuais diferenças formais (não se fala mais em contradições ou antagonismos

de classe, isto está fora de moda!)

Isto é o que está por trás da idéia de racismo cordial que a Folha de S. Paulo

lançou em 1995, a partir de uma pesquisa quantitativa realizada naquele ano para

celebrar os 300 anos de Zumbi dos Palmares21. E também nas vária reportagens

que a revista Veja lançou para demonstrar a ascensão social dos negros

brasileiros. E, porque não dizer, está também no discurso da revista Raça Brasil

que aponta como uma vitória o fato dela ter descortinado para vários modelos

negros, oportunidades de aparecer em anúncios publicitários.

Não queremos aqui defender que todas as manifestações culturais negras voltem

à situação de clandestinidade e de criminalização que viviam. Nem tampouco

estamos condenando os artistas e atletas negros que conseguiram subir na escala

importância de, mantendo a sua diferença étnica, lutar pela igualdade de oportunidades enquanto cidadão. 21 O jornal Folha de S. Paulo fez uma extensa e minuciosa pesquisa sobre a questão racial com a população brasileira e concluiu que, embora exista um preconceito por parte dos brancos, estes não rejeitam a convivência com os negros, razão pela qual ela conceituou as relações raciais no Brasil de “racismo cordial”, porque utilizou como referência, a segregação racial existente nos EUA e África do Sul.

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social graças aos seus talentos. O que defendemos é que há um jogo malicioso de

cooptação do sistema que é preciso perceber e estar atento para não cairmos na

tentação de acabar defendendo um sistema político, econômico e social que nos

exclui. Para isto, é urgente e necessário construirmos o nosso projeto político de

identidade.

A primeira questão é o objetivo deste projeto político. O que se quer com um

projeto político de identidade? Garantir acesso social a alguns ou a totalidade da

população negra? Construir uma elite negra para contrabalançar o peso da elite

branca, ou acabar com qualquer tipo de exploração social e garantir a todos,

independente de qualquer caracterização étnica ou grupal, o acesso aos direitos

de cidadania?

Aqui fazemos nossa opção política pela constituição de uma sociedade igualitária

que garanta o direito de cidadania a todos, particularmente aos descendentes dos

africanos escravizados que tiveram sistematicamente negado o usufruto estrutural

desta condição. Isto implica em construir um projeto de identidade que abarque

todos aqueles que foram jogados na condição de excluídos pelos mecanismos

racistas existentes no período da escravidão e quando da passagem do sistema

de mão de obra escrava para o de mão de obra assalariada – ou seja, um projeto

de maioria que abarque todos os descendentes em qualquer grau dos africanos

escravizados.

Neste sentido, o conceito de negro por estar associado diretamente à cor da pele,

embora não deva ser descartado, não se consolida, principalmente porque está

associado a tipificações negativadas e vinculado historicamente ao processo de

branqueamento operado pelas classes dominantes brancas no início do século

XX. Defendemos o conceito de afrodescendente por abarcar todas as tipificações

desta população descendente dos africanos escravizados (negros, pardos, pretos,

morenos, mulatos, entre outros) e que mantém um laço histórico com a origem do

racismo: a segregação do continente africano por parte dos europeus como forma

estratégica de legitimar a espoliação dos povos daquele continente milenar.

Mas esta questão do termo empregado não é a central. O que nos interessa aqui

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são as tipificações que dão lastro a este conceito de identidade. E o que é mais

importante ressaltar, no nosso entendimento, é a situação de permanente

exclusão que esta população vive com o objetivo de sustentar os privilégios de

uma minoria. Que esta diferenciação grupal é fruto de uma forma de acumulação

de riquezas predatória de gente e recursos naturais, que se prima pela

desigualdade, pela exploração e pela negação do direito à vida digna.

Em relação às manifestações culturais negras, ainda que estas ganhem espaços

sociais, a necessidade do capitalismo brasileiro em manter esta hierarquia social

sempre vai considerar como música erudita (portanto, com toda a carga de saber

técnico, científico e racionalidade) a música branca clássica, enquanto que a

música negra, por melhor que seja, receberá a alcunha de popular (no sentido

pejorativo) ou folclórica; e as religiões de matriz africana nunca passarão de

cultos, enquanto que religião mesmo no sentido estrito da palavra ficará reservada

ás manifestações religiosas de matriz cristã.

Por se tratar de um projeto político de construção de identidades, defendemos a

idéia de que a sua construção passa, necessariamente, pela imediação das

entidades do movimento social de negros. Não obstante as organizações culturais

e religiosas cumprirem um papel importante na recuperação da auto-estima dos

negros e de recupararem elementos históricos desta população e também

mobilizarem parcelas consideráveis desta população em seus eventos, notamos

que o processo de cooptação do campo cultural é muito mais fácil pelo sistema,

por permitir uma incorporação sem questionamento do poder, que as

reivindicações políticas que, necessariamente, impliquem em uma redistribuição

do poder político e econômico. Por isto, os mass media ao mesmo tempo que dão

um espaço crescente para as manifestações culturais negras, não dispensam o

mesmo tratamento para as organizações políticas negras que continuam atuando

sem conseguir muita repercussão nos meios de comunicação.

Porém, não defendemos a simples exclusão das organizações negras do campo

religioso e cultural na construção deste projeto. Só entendemos que as tipificações

identitárias deste projeto de construção de identidades não são culturais ou

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religiosas, mas políticas e sociais. Trocando em miúdos, ser negro não significa

necessariamente e tão somente ser sambista ou do candomblé ou ainda usar

camisetas escrito Negro é lindo - ser negro é, essencialmente, ser participante de

uma população vitimada do processo de exclusão social existente desde a

escravidão, mantida na transição do trabalho escravo para o assalariado e

intensificada na construção do capitalismo e, particularmente, na etapa do

neoliberalismo.

Compete as organizações do movimento social de negros que têm feito, nos

últimos anos, esta reflexão com maior profundidade, liderar a construção deste

projeto alternativo de identidade

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5.1 - A motivação ideológica

O sociólogo Herbert de Souza, mais conhecido como Betinho,

notabilizou-se nos seus últimos anos de vida por denunciar a existência de um

grande contingente de pessoas passando fome no Brasil. Em uma cruzada cívica

por todo o país, por meio do movimento Ação da Cidadania contra a Fome e a

Miséria, Betinho difundiu na sociedade brasileira que existiam, pelo menos, 32

milhões de pessoas passando fome.

Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais apontava, em

1992, da necessidade do país gerar, até o ano 2.000, pelo menos 7 milhões de

novos empregos somente para absorver a população que ingressa ano a ano na

População em Idade Ativa (PIA), ou seja, em idade de trabalho.

E, finalmente, o Dieese em conjunto com a Fundação Seade,

calculou que, somente na Grande São Paulo, existiam em julho de 1999, cerca de

1,8 milhão de empregados.

Todos estes números - de famintos, de jovens sem perspectivas de

encontrar ocupação e de desempregados - apontam para um crescente processo

de exclusão social que o atual sistema capitalista brasileiro na sua etapa

neoliberal não tem condições de resolver a contento.

Não se pode dizer que a direita brasileira não previu isto. Previu e até

apontou soluções. No ano de 1990, a UNEGRO denunciou um documento

elaborado pela Escola Superior de Guerra (ver anexo) intitulado "Estrutura do

poder nacional para o século XXI", um extenso estudo que foi apresentado aos

candidatos às eleições presidenciais de 1989 situados no espectro do centro à

direita.

Era um momento de definição política do país, ou como dizia os

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documentos do Partido Comunista do Brasil (PC do B): a "encruzilhada histórica".

Após o governo de transição de Sarney, o Brasil se encontrava entre dois

caminhos: ou construía um projeto democrático e popular, rompendo com as

estruturas de capitalismo dependente e excludente, ou aprofundava-se no novo

receituário imposto pelo imperialismo: o neoliberalismo. Com um maciço apoio do

poder econômico e manipulação descarada dos meios de comunicação de

massa22, venceu a segunda alternativa que foi conduzida por um arrivista

chamado Fernando Collor23.

Era evidente que a opção pelo neoliberalismo significaria uma

intensificação dos mecanismos de exclusão social existentes na gênese do

capitalismo brasileiro desde os seus primórdios, conforme já tratamos. Isto porque

o neoliberalismo implicaria, necessariamente, em um desmonte dos já parcos

sistemas públicos de seguridade social, um aumento vertiginoso do desemprego

causado pela abertura da economia nacional às importações e pela prioridade a

ser dada nos gastos governamentais ao pagamento dos serviços da dívida

externa e interna.

O documento da Escola Superior de Guerra, no capítulo que trata

dos problemas sociais, aponta dois possíveis focos de desestabilização do

sistema: os cinturões de miséria e os menores abandonados.

Os cinturões de miséria existentes nas grandes cidades foi fruto,

principalmente, pela política de expansão industrial nos anos 60 e 70, que

incentivou uma migração rural sem precedentes na história brasileira, agravada

ainda pela manutenção da estrutura agrária concentrada. Trabalhadores saíram

do campo, onde não tinham qualquer perspectiva de encontrar terra e/ou

ocupação e vieram para as cidades na esperança de conseguirem empregos no

setor industrial crescente. Parte desta população conseguiu integrar-se no

22 Ficou famosa a edição do último debate presidencial entre Lula e Collor, às vésperas do segundo turno das eleições, feito pelo Jornal Nacional; manipulação que causou a saída do diretor e fundador do telejornal Armando Nogueira, após mais de 30 anos de serviços prestados à Globo. 23 O presidente Fernando Collor veio com um discurso moralista, de ser contra os políticos e prometendo construir um "Brasil Novo". O falso caráter oposicionista do seu discurso encantou o eleitorado e isto, aliado ao apoio explícito da Globo, o levou à vitória, apesar de pertencer a uma legenda de aluguel (o PRN - Partido da Reconstrução Nacional)

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trabalho industrial, outro, entrou nos trabalhos informais prestados à classe média

urbana (trabalhos domésticos, prestação de serviços não qualificados, entre

outros) mantendo uma integração pela franja do sistema. Por isto, nos anos 70 e

80, as grandes metrópoles vivenciaram uma situação de exclusão integrada, onde

a periferia mantinha uma tênue ligação com o sistema formal de trabalho e

consumo.

Esta ligação tênue se rompe com a adesão do país ao

neoliberalismo. A abertura do mercado nacional às importações reduziu

drasticamente a produção industrial local, quebrando uma série de empresas

nacionais e reduzindo o nível de produção das transnacionais aqui instaladas.

Com isto, há um desemprego crescente, atingindo as mais diversas faixas, uma

precarização das regras de contratação de trabalho que atingiu diretamente a

classe operária urbana. Por tabela, a queda no nível de vida da classe operária e

das classes médias urbanas restringiu o mercado na área de serviços, atingindo aí

aquelas populações integradas na franja pelo setor de serviços não qualificados.

A periferia das grandes cidades se transformou, assim, em uma

verdadeira lixeira humana, com os seus habitantes sendo dizimados pela miséria

e pela violência. Por isto, a ESG apontou esta situação como um foco de

desestabilização.

Junto a este foco, a ESG apontou também o contingente de menores

abandonados, segmento social que cresceu vertiginosamente nos últimos anos,

sendo alvo de denúncias de entidades internacionais de direitos humanos. A ESG,

em seu documento, previa que este contingente, a manter a projeção de

crescimento, teria um efeito superior ao das Forças Armadas, sendo, por isto,

necessário tomar ações preventivas no sentido de conter o seu crescimento -

trocando em miúdos, a ESG defendia abertamente o extermínio físico desta

população, via ação dos esquadrões da morte, das Polícias Militares e, em último

caso, das próprias Forças Armadas.

A UNEGRO divulgou este documento entre o movimento negro e

social, entre os partidos de esquerda e até mesmo mandou para órgãos da grande

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imprensa, mas poucos foram os que o levaram a sério. Na grande imprensa, o

único jornal que deu certo destaque a este fato foi o Jornal do Brasil. O PC do B

(Partido Comunista do Brasil) denunciou o documento em seu programa de

televisão em 1998 e o seu deputado estadual Jamil Murad pediu a abertura de

uma CPI na Assembléia Legislativa de São Paulo para investigar o extermínio de

crianças e adolescentes. O grande jornalista José Louzeiro denunciou que boa

parte dos membros dos grupos de extermínio eram oriundos dos aparelhos

repressivos existentes na época da ditadura militar.

Por diversas vezes, ouvimos resposta como "vocês estão delirando",

"vocês são loucos", entre outros, mesmo entre militantes de movimentos sociais.

Gostaríamos de que isto fosse verdade. Infelizmente, os fatos mostraram que

estávamos certos.

A necessidade do extermínio físico das populações miseráveis no

Brasil também foi apontada como estratégia de poder por um outro documento,

desta vez produzido pela CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA) intitulado

NSM-2000. Na época, o presidente da CIA era George Bush. Este documento

apontava a necessidade de se controlar o crescimento da população não branca

por dois motivos: a-) manutenção dos recursos energéticos existentes na

biomassa das florestas tropicais localizadas, na sua maior parte, nos países do

Sul; b-) manutenção da hegemonia das populações de origem anglo-saxã.

" Os novos teólogos da competitividade global, junto

com os malthusianos modernos, chegam a concluir que, no quadro atual, três

quartos da humanidade são dispensáveis. Dispensáveis para que? Para a

concentração de ganhos e poder nas mãos de poucos? Como o homem sem

trabalho pode virar um desesperado em potencial, cria-se uma crescente

instabilidade social que passa a oferecer perigos para os beneficiados com a

guerra da competitividade. Surge então, como meta para os defensores da

ideologia predominante o veredito dos donos do mundo: é necessário, para não

correr riscos, exterminar estes três quartos da humanidade."24

24 VIDAL, J. W. Bautista. A reconquista do Brasil. Rio: Espaço e Tempo, 1997, p. 55

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A preocupação com a instabilidade causada pela miserabilidade

preocupa outra fonte do Poder Mundial: o Banco Mundial que, no seu relatório

sobre a pobreza no mundo, chama a atenção dos governos dos países em

desenvolvimento que o não atendimento de demandas mínimas dos miseráveis

pode por em risco todo o processo de inserção das economias do terceiro mundo

no mundo globalizado neoliberal. O veredito do Banco Mundial é taxativo: a

miséria pode se transformar em uma guerra civil.

“La estabilidade social depende no sólo de níveles de desigualdad

tolerables sino que también requiere que los diversos grupos socioeconomicos,

como las agrupaciones étnicas o regionales mantengan la cohesion social

haciendo posible el funcionamento de la sociedade, las instituiciones y los

mercados. La estabilidad social es un activo intangible: mejora perspectivas de

crescimiento y es dificil de reemplanzar una vez perdida (...) La ruptura definitiva

de la cohesion social es la guerra civil...25

A preocupação do Banco Mundial com o aumento da miserabilidade

(mais que uma preocupação, mas um verdadeiro alerta de acordo com o seu

informe de 1999) não decorre de nenhum ataque altruísta dos detentores do novo

poder mundial. Decorre, unicamente, da preocupação com a instabilidade do

sistema; em outras palavras, a miséria pode chegar a níveis insuportáveis que põe

em risco todo o sistema em que o capitalismo neoliberal está assentado.

A única diferença da proposição do Banco Mundial dos ideólogos da

Escola Superior de Guerra e mesmo da CIA é que enquanto as duas últimas

organizações propõem a adoção de mecanismos de extermínios físicos para

controlar numericamente o número de pobres; o primeiro, de face mais “humana”

defende que os Estados, sem abrir mão das políticas neoliberais, desenvolvam

projetos mínimos de combate à miséria para manter estas populações sob

controle. Na passagem seguinte do relatório, o Banco Mundial deixa explícito o

caráter pontual e emergencial das propostas de combate à miséria:

“La clave para éstos y otros planes no relacionados com el empleo

25 Relatório do Banco Mundial sobre a pobreza, setembro/99

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es formulalos de tal manera que mantengan su función de representar una

seguridad para los más pobres y no sean acaparados por quienes se encuentran

en una situacion menos desesperada” (grifos meus)26

Observa-se que o objetivo da proposta do Banco Mundial de

combate à pobreza é evitar que a miséria chegue ao desespero, evitar a quebra

da “coesão social”. Não é criar um sistema que erradique definitivamente a

pobreza. São as tais “políticas compensatórias” decorrentes do reconhecimento

dos pensadores neoliberais de que o projeto que defendem criam vulnerabilidades

sociais que precisam ser controladas.

Concluindo, o que temos de percepção e propostas no tocante ao

problema da pobreza no campo do neoliberalismo podem ser agrupadas nestas

duas perspectivas: uma, à direita, do extermínio físico; outra, pelo “centro”, de

administração das vulnerabilidades sociais. A tendência mais recente aponta para

um crescimento desta segunda perspectiva como forma de conter o avanço de

uma proposta política de ruptura com o sistema,embora consideremo-la de fôlego

curto.Os neoliberais centristas apresentam como alternativas as chamadas

parcerias do Estado com as organizações não governamentais, deixando para

estas a responsabilidade de gestão dos problemas sociais.

Há um problema de fundo nesta proposta: o aumento geométrico da

miséria reduz cada vez mais a capacidade de administração dos problemas

sociais. Daí há uma restrição cada vez maior na ação social tanto de Estado como

das Organizações Não Governamentais e as políticas públicas desenvolvidas

passam a ser cada vez mais seletivas e restritivas e não mais universais. Por

exemplo, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso afirma que para

melhorar as políticas sociais é necessário cortar os gastos da Previdência,

indiretamente ele considera que os aposentados da economia formalizada formam

um grupo de privilegiados que deve, portanto, dar sua cota de sacrifício para

melhorar a assistência aos mais miseráveis. É uma redistribuição da pobreza.

Os projetos de ação social das ONGs cada vez mais atingem um

26 Relatório do Banco Mundial sobre pobreza de 1999.

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número menor de pessoas proporcionalmente ao universo da miséria. Mesmo

projetos governamentais, como a experiência da Secretaria do Menor no estado

de São Paulo durante o governo Fleury (1990/1994) atingiram um número bem

pequeno perto do contingente de crianças que deveriam ser atendidas por este

projeto.27

A pobreza e a miséria são estruturais. A erradicação delas passa,

necessariamente, por medidas de transformação profundas no padrão de

acumulação de riquezas do país. Sem tocar nisto, qualquer projeto, por mais bem

intencionado que seja, será sempre um paliativo e, pior, um selecionador daqueles

que escaparão da exclusão absoluta.

5.2 – Os formatos do extermínio da população negra

A população negra e pobre brasileira é atingida por um processo

estrutural de exclusão por meio de cinco formas de extermínio que agem de forma

combinada:

a-) extermínio de crianças e adolescentes;

b-) disseminação de doenças incuráveis, particularmente a Aids;

c-) violência policial e de grupos de justiceiros

d-) aumento da miserabilidade;

e-) esterilização indiscriminada de mulheres pobres e negras.

5.2.1- O extermínio de crianças e adolescentes

Segundo pesquisa realizada pelo jornalista Gilberto Dimenstein, no

Brasil há um nítido alvo dos grupos de extermínio de crianças e adolescentes:

sexo masculino, idade de 15 a 18 anos, provenientes de família com renda per

capita inferior a meio salário mínimo, moradores das periferias das grandes

cidades, migrantes e negros e pardos. As crianças e adolescentes do sexo

27 Esta situação ficou explícita a partir de um levantamento sobre o número de crianças de rua feito pela própria Secretaria em 1992, pesquisa esta que teve apoio de várias entidades entre elas a Unegro.

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feminino são “poupadas” do extermínio físico para serem prostituídas na indústria

do sexo e do turismo sexual.28

No ano de 1992, fruto de uma mobilização da sociedade civil, foi

aprovado o Estatuto da Criança e Adolescente, considerado como a legislação

mais avançada no tocante à proteção aos direitos das crianças.

Os dispositivos considerados de grande avanço presentes no

Estatuto são os seguintes:

A filosofia de que a responsabilidade pelo bem estar da criança é social e não

privativo da família, há uma responsabilização desta pela garantia do bem estar da

criança;

A criação de mecanismos de participação da sociedade civil no tocante à

elaboração e fiscalização de políticas públicas voltadas à criança e adolescente,

através de conselhos tutelares e os Conselhos de Direitos a nível municipal,

estadual e federal.

O Estatuto despertou a “ira” dos setores mais conservadores, particularmente

aqueles agregados às fileiras policiais. Argumentou-se que o Estatuto transformou

a criança em um ser “intocável’’.

O grande problema do Estatuto é que ele foi promulgado em uma conjuntura que

o país inseria-se no projeto neoliberal que, devido ao crescimento das

vulnerabilidades sociais, contribuiu decisivamente para a desmobilização da

sociedade civil. Assim, boa parte do Estatuto não foi aplicada, principalmente os

mecanismos de controle da sociedade das políticas públicas. Houve casos em que

membros de grupos de extermínio foram eleitos para “representar” a sociedade

nos conselhos previstos no Estatuto, legitimando a ação repressiva como

mecanismo de solução do problema das crianças abandonadas.

Instituições com estruturas arcaicas, totalmente contrárias à filosofia do Estatuto,

como a Febem continuaram funcionando e sendo o único local de atendimento de 28 Ver as obras de DIMENSTEIN, Gilberto. A guerra dos meninos e Meninas da noite.

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crianças e adolescentes abandonados ou infratores.

Este vácuo – existência de uma legislação avançada mas não totalmente

implementada pela ausência de condições estruturais e de uma mobilização

significativa da sociedade civil por tais transformações – aliado ao

recrudescimento da miséria fez crescer a violência praticada pelos adolescentes.

A situação fortaleceu os argumentos mais reacionários. Propostas como redução

da idade penal para 16 anos, intensificar os mecanismos repressivos contra as

crianças e adolescentes, revogar o Estatuto (que nem foi totalmente implantado)

por ele ser “ineficaz” para resolver o problema passaram a ganhar corpo.

Paralelamente, grupos de extermínio intensificaram sua ação, passando a praticar

assassinatos múltiplos (chacinas) nas periferias das metrópoles. Não são apenas

os infratores ou suspeitos de o serem que são executados; eventuais testemunhas

das chacinas são também executados. Impõe-se, pelo terror, a lei do silêncio nos

bairros periféricos.

5.2.2 – Disseminação de doenças incuráveis como a Aids

A expansão da Aids nos anos 80 pôs a nu todos os preconceitos e

limitações das estruturas sociais e mesmo das justificativas ideológicas dos

mesmos. Tida, primeiramente, como doença de homossexuais, a moléstia serviu

como um argumento para reforçar o moralismo mais conservador e tacanho. A

idéia de “grupo de risco” (segmentos sociais que teoricamente seriam os únicos

afetados pela doença) serviu para, além de reforçar preconceitos, impedir uma

discussão mais ampla e pública sobre a situação da saúde pública no Brasil,

particularmente as medidas preventivas.

A comoção aumentou quando a doença passou a atingir artistas

famosos. Mas a doença evidenciou a falência do sistema de saúde pública quando

muitas pessoas infectaram-se em transfusões de sangue, por agulhas de injeção,

na manipulação de instrumentos médico-hospitalares, entre outros. Os irmãos

Henfil e Betinho, hemofílicos e vitimados por este tipo de contaminação, deram

repercussão pública a este problema.

Enquanto isto, a doença continuou crescendo e, somente com a sua

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evolução, percebeu-se que não havia grupos de risco: todas as pessoas

sexualmente ativas estavam arriscadas a se contaminar. Demonstrando o

machismo que ainda vigora firme e forte na sociedade brasileira, as mulheres se

transformaram no grupo social em que a Aids mais cresceu. Mulheres, na maioria

jovens. Jovens, na maioria pobres. Pobres, na maioria negras.

A desinformação aliada a campanhas absurdas que a Igreja Católica

dissemina junto à população mais pobre recria uma noção de grupos de risco: a

doença estaria vinculada a um tipo de comportamento sexual promíscuo, isto é,

fora dos padrões da moral cristã. Assim, o uso do preservativo só é aceito nas

relações sexuais com parceiros ocasionais ou fora das relações afetivas não

estáveis (casamentos, namoros duradouros, etc.). Criou-se uma idéia que associa

a Aids à promiscuidade, razão pela qual impede-se uma discussão pública do

comportamento sexual em todas as instâncias, inclusive nas relações estáveis e

aceitas socialmente, 29 O padrão de relacionamento monogâmico disseminado

pela moral cristã e incorporado à lógica da propriedade privada capitalista, ante ao

risco do seu desmascaramento, se reforça criando um mecanismo de

discriminação com o advento da Aids.

Além deste mecanismo ideológico, a Aids desempenha uma outra

função que muitas outras doenças, também incuráveis e igualmente problemáticas

e em crescimento, não cumprem com a mesma eficiência: a idéia de

responsabilizar o próprio infectado, em virtude do seu comportamento sexual não

permitido, deslocando o problema do terreno de uma discussão do atual estágio

da saúde pública para o domínio do privado. Em outras palavras: o governo

fornece gratuitamente as “camisinhas”, distribui folhetos de esclarecimento, agora

se o “povo” não quer usar e se infecta, é problema dele; nossa parte já foi feita.

A pesquisa sobre comportamento sexual do brasileiro realizada pelo

Ministério da Saúde em 1999 chegou a uma conclusão aparentemente

esquizofrênica: o brasileiro está informado dos perigos da Aids, dos mecanismos

29 Esta discriminação acontece, inclusive, nos questionários aplicados aos voluntários que doam sangue em alguns hemocentros. De acordo com o comportamento sexual do voluntário, ele é descartado como doador por supostamente pertencer ao “grupo de risco” da Aids.

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de prevenção, mas continua se recusando a usar camisinha. Diante disto, o

governo federal optou por dar uma outra linha para a campanha: “reduzir o

número de parceiros sexuais como forma de evitar a contaminação”. Em outras

palavras, há um retrocesso evidente à noção de “grupos de risco” que,

certamente, irá fortalecer os preconceitos já existentes contra aqueles que tem um

comportamento sexual fora dos padrões aceitáveis pelo sistema.

Algumas propostas tomadas por algumas instituições

governamentais, embora paliativas, tiveram o mérito de desnudar as hipocrisias

sociais que ainda reinam no tocante a alguns comportamentos fora dos padrões

que são negados pela “moral”.

Em Santos, o então secretário de Saúde David Capistrano durante a gestão da

prefeita Telma de Souza (1988/1992) elaborou um plano de combate à Aids que

envolvia, entre outras coisas, a distribuição de seringas descartáveis para usuários

de drogas injetáveis. O projeto foi suspenso por um juiz estadual alegando que tal

programa “incentivava” o vício em drogas injetáveis. Veja só: a concepção latente

neste discurso é que a Aids seria uma forma de “repressão” aos viciados,

desestimulando aqueles que pretendem ser.

Do lado contrário: algumas ONGs ligadas a causa da mulher, particularmente nos

estados do Nordeste brasileiro, ao detectar que muitas mulheres casadas e

monogâmicas se contaminaram com os maridos que, por sua vez, se infectaram

em relações extraconjugais, disseminaram uma campanha de distribuição de

preservativos a estas mulheres para que elas “convencessem” os maridos a usar

preservativos nas suas relações extraconjugais. Fora alguns protestos tímidos da

Igreja Católica que considerou tal iniciativa um incitamento a desobediência à

monogamia pregada pela moral cristã, poucos levantaram a voz contra isto –

porque se trata de uma contravenção comportamental consentida. Seria bem

diferente se a campanha fosse para os maridos distribuírem preservativos para

suas esposas utilizarem em eventuais relações extraconjugais...

A disseminação praticamente descontrolada da Aids nos presídios é a

manifestação mais visível de como esta doença tem sido um mecanismo eficaz de

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faxina humana e étnica. Simbolicamente, a Aids manifesta uma situação de

exclusão: o portador de vírus HIV é, dentro desta ideologia, componente de uma

população transgressora. Transgressora de costumes socialmente aceitos, de

comportamentos ditados pela Igreja Católica, de uso de substâncias proscritas.

5.2.3-violência dos policiais e dos grupos de justiceiros

Policiais e justiceiros (muitos deles policiais em folga) são os

protagonistas da terceira forma de extermínio: o assassinato das populações das

periferias. Formada sob uma concepção militarista – a corporação policial recebe

treinamento militar, é aquartelada e toda a sua hierarquia interna segue os

princípios de um Exército em combate – a corporação policial enxerga a

população a quem deveria servir como um “inimigo” a ser derrotado.

“Ela (a polícia) é preparada precariamente para combater os crimes

cometidos principalmente pelas pessoas pobres. Agora, os crimes dos ricos, como

por exemplo, a sonegação fiscal, a fraude bancária, em geral a polícia não é

preparada para combater. A nossa polícia, além de ter um monte de defeitos, é

elitista por exigência dos próprios governos e da idéia que a forma .”30

Esta declaração de Elói Pietá demonstra que a hierarquia existente na Polícia

Militar passa pela estrutura militar interna da corporação (com os níveis de

comando se assemelhando à estrutura militar, como capitão, tenente, sargento,

cabo, soldado, entre outros) e desemboca na população pobre como o estrato

mais inferiorizado, como se fossem pessoas de uma nação ocupada por outras

forças. Assim, o autoritarismo latente da estrutura militar interna na Polícia se

transfigura para a relação polícia/população, fazendo com que a sociedade, ao

invés de ser servida pela corporação seja agredida por ela. A forma da Polícia

impor este seu poder sobre os mais pobres é através do terror: o discurso

autoritário, a forma ostensiva em que são demonstradas as armas portadas, o

estardalhaço nas ações policiais, como prisões, revistas, perseguições, entre

outros, têm como objetivo demonstrar a existência de uma instituição que está

preparada para reprimir a qualquer momento e que todos lhe devem obediência

30 Entrevista de Elói Pietá a revista Painel nº18, novembro de 1997

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cega.

Não se pode, porém, considerar que o autoritarismo da Polícia é decorrente única

e exclusivamente da formação dos policiais ou por uma ausência de comando. É

evidente que tais fatores influenciam e reforçam este viés elitista da corporação,

mas é preciso considerar que esta relação de hierarquia da Polícia com a

população mais pobre é decorrente da formatação da sociedade brasileira, em

que as estruturas constituídas são apropriadas privadamente pelas elites,

desaparecendo qualquer noção de público e cidadania. Esta idéia, disseminada

socialmente, faz com que a própria população defenda a forma que a Polícia age

atualmente, considerando ser necessário existir um poder repressor e despótico

para manter a ordem.

No ano de 1992, a Polícia Militar de São Paulo bateu o seu recorde histórico de

assassinatos: 1.470 pessoas foram mortas pela PM, uma média de 4,01 pessoas

por dia. O jornalista Caco Barcellos elaborou um ranking com os maiores

matadores da Polícia Militar de Sã o Paulo. Neste ranking, estavam o então

sargento Gílson Lopes, o capitão Conte Lopes e o coronel Edson Ferrarini. Depois

desta divulgação, aconteceu o seguinte: o sargento Gílson Lopes continuou na

corporação e chegou a ser promovido a tenente, fazendo um trabalho de

esclarecimento de medidas de segurança para moradores de condomínios

fechados; Conte Lopes e Edson Ferrarini foram eleitos, com as maiores votações,

para as cadeiras de deputado estadual na Assembléia Legislativa de São Paulo.

Os estudiosos do Núcleo de Estudos de Violência da USP detectaram que a

política de segurança pública existente nas corporações policiais foi gestada

durante o período de repressão política nos anos 70. A chamada “transição

democrática” via acordos de cúpula em 1985 manteve intacta não só esta política

de repressão, mas seus agentes que continuaram em comandos de aparelhos

repressivos. Mesmo iniciativas de governos liberais, como Franco Montoro

(1982/86) e Mário Covas (a partir de 1990) que implantaram medidas visando

proteger os direitos humanos nas ações policiais revelaram-se tímidas. Os

comandantes policiais identificados com a política de repressão, mesmo afastados

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das corporações, continuaram gozando de prestígio e até mesmo de uma

ascendência maior sobre as tropas policias que até mesmo os ocupantes do poder

civil a quem, legalmente, as corporações policiais estariam subordinadas.31

Quanto aos grupos de extermínio, pesquisas realizadas pelo jornalista José

Louzeiro demonstraram que boa parte dos seus integrantes são “qualificados” nas

próprias fileiras policiais ou outros oriundos dos grupos de repressão política dos

anos 70. A “anistia” aos torturadores e carrascos da ditadura militar propiciou a

formação de uma “mão de obra especializada” em repressão que passou a agir

extra-oficialmente em uma ação complementar à da Polícia. Se os policiais agem

com uma certa limitação imposta pelas normas legais e institucionais, os grupos

de justiceiros agem sem qualquer tipo de controle e, pior, subordinados

unicamente aos interesses daqueles que o pagam. É a privatização da segurança.

Pequenos comerciantes de bairros periféricos, moradores de condomínios

fechados, coronéis da política, latifundiários, enfim todo este setor que sente suas

conquistas materiais serem ameaçadas pela proximidade dos pobres lançam mão

deste instrumento privado de segurança.

Graças a esta ação, instituiu-se no Brasil a pena de morte extra-oficial. Policiais e

justiceiros cumprem o papel de acusadores, julgadores e executores, tudo em rito

sumário. Em alguns bairros de São Paulo, grupos de matadores impõem toque de

recolher aos moradores. Vive-se um verdadeiro estado de sítio na periferia.

Perfil da vitima da Polícia Militar, segundo pesquisa de Caco Barcellos: homem,

negro, renda inferior a um salário mínimo, maioria sem nenhuma passagem pela

polícia ou pela Justiça.32

O relatório da Ouvidoria da Policia divulgado em outubro de 1999 demonstrou que

os assassinados pela Pm são negros (62%),homens (97%)jovens de 18 a 25 anos

(70%) e sem antecedentes criminais(57,14%).

5.2.4 – Aumento da miserabilidade

31 O deputado Conte Lopes, mesmo afastado da corporação, costumava comandar extra-oficialmente, “batidas” com policiais, tudo com grande estardalhaço para mostrar sua ascendência sobre a tropa e desmoralizar os outros comandantes que não fossem identificados com a sua filosofia de ação policial. 32 BARCELLOS, Caco. Rota 66: a história da polícia que mata.

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70

O neoliberalismo acaba com a idéia da universalização dos direitos.

Estes passam a ser restritos cada vez mais a uma minoria que consegue

continuar vinculada a uma estrutura formal de trabalho e consumo.

A reforma da Previdência aprovada em 1999 trocou a exigência de

tempo de serviço para tempo de contribuição. Esta mudança, apoiada

inexplicavelmente pelo presidente da CUT, Vicente de Paulo da Silva, consagra a

exclusão da maioria do único sistema universal de proteção social ainda existente

no Brasil. Ao mesmo tempo em que se aprova a exigência de comprovação de

contribuição à Previdência, prolifera no país (com apoio explícito do governo de

Fernando Henrique Cardoso) o trabalho sem registro. Bicos, camelôs, ambulantes,

contratos temporários, empresas que simplesmente não registram os

empregados, são responsáveis pelo índice de 67% de trabalhadores ocupados

sem registro em Carteira – isto é, totalmente excluídos dos direitos previstos na

Constituição Federal e na Consolidação das Leis do Trabalho e, agora, sem poder

contar este tempo de serviço para fins de direito à aposentadoria.

A gritaria dos empresários contra os encargos sociais deu a

justificativa para este crescimento da ilegalidade nas relações de trabalho. Apenas

1/3 dos trabalhadores brasileiros desfrutam dos direitos trabalhistas e

previdenciários. A se manter este quadro, a maioria da atual geração de

trabalhadores será condenada a nunca se aposentar. Na prática, o governo está

paulatinamente acabando com os direitos trabalhistas a medida que eles cada vez

mais beneficiam uma minoria.

Esta quebra da única rede de proteção social existente no Brasil

acontece em um momento de brutal concentração de renda e aumento do

desemprego. Pesquisa realizada pelo economista Márcio Pochmann, da Unicamp,

dá conta que o Brasil é responsável por 5% do total de desempregados do mundo,

apesar de contribuir com apenas 3% da População Economicamente Ativa do

planeta, ocupando a quarta colocação neste ranking mundial. Em 1988, o Brasil

ocupava apenas a 13ª colocação. Com isto, houve um aumento da concentração

de renda que foi demonstrada pelos últimos dados do Seade:

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a-) Houve um aumento significativo na renda média dos moradores da região

metropolitana de São Paulo entre 1994 e 1998: cerca de 32%. Entretanto,

paralelamente a este aumento de renda nos quatro anos de vigência do Plano

Real, houve um aumento da concentração. Em 1994, os 5% mais ricos detinham

23% do total de rendimentos e passaram a abocanhar 26% em 1998. O

coeficiente de Gini33 que mede a desigualdade foi, em 1998, de 0,584.

b-) Aumentou o número de pessoas que residem em moradias ocupadas de 6,2%

em 1994 para 9,1% em 1998; ao mesmo tempo que caiu o número de pessoas

residentes em moradias próprias (56% para 55%), alugadas (24% para 22%) e

cedidas (12,8% para 12,6%) . Também aumentaram as pessoas que moram em

habitações precárias (cortiços e barracos) de 10,8% para 14,1% da população da

Grande São Paulo.

c-) Aumentou a escolaridade da população da Grande São Paulo mas ainda em

grau insuficiente para atender as exigências feitas pelo mercado formal de

trabalho. A inserção no mercado formal de trabalho, segundo esta pesquisa do

Seade, é garantida preferencialmente a quem tem o ensino médio (que implica

em, no mínimo, onze anos de estudo), o domínio do manejo de

microcomputadores e a capacidade de trabalho em equipes. Entretanto, a

escolaridade média da população da Grande São Paulo mal atinge o primeiro grau

completo (7,5 anos de estudo em média). Isto significa que a baixa escolaridade

média compromete uma geração inteira de jovens na sua inserção no mercado

formal de trabalho.

Os dados sobre a renda do trabalhador negro comprovam que estes

mecanismos de aumento da miserabilidade têm um corte racial e de gênero: o

desemprego em São Paulo atinge 17% dos negros contra 12% dos brancos em

1998; a pirâmide salarial aponta no topo os homens brancos (renda média de

R$881,00), seguidos das mulheres brancas (R$579,00), depois, os homens

negros (R$423,00) e, na base, as mulheres negras (R$266,00). Quanto à

33 Este coeficiente é um índice que mede a relação entre a renda apropriada pelos 20% mais ricos e a apropriada pelos 20% mais pobres. Quanto mais próximo de zero, maior é a igualdade; quanto mais próximo de 1, maior é a desigualdade e a concentração de renda.

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escolaridade, os negros (homens e mulheres) tem cinco anos em média de

estudos, contra 9 dos brancos e 11 dos amarelos.

A miséria transformou as periferias metropolitanas em cenários de

total barbárie. Junto com ela, atuam outros mecanismos de exclusão que

comprovam a nossa tese de que a globalização neoliberal gerou verdadeiras

“lixeiras humanas”, matadouros de gente, variando apenas na forma, na

intensidade ou na velocidade deste extermínio.

5.2.5 – A esterilização indiscriminada de mulheres e feminização da pobreza

O quinto mecanismo de exclusão é a esterilização de mulheres, em

especial as negras e as pobres. Embora não haja indicadores com perfil étnico, os

dados mostram que é nos estados onde há uma maior concentração de negros

que os índices de esterilização são os mais altos, como Maranhão, Goiás e

Pernambuco; ao passo que os estados do Sul, onde há uma menor concentração

de negros, estes indicadores são os mais baixos.

A taxa de esterilização no Brasil é absurdamente alta: quase 30%

das mulheres em idade fértil estão esterilizadas. A esterilização é, de longe, o

“método contraceptivo” mais utilizado no Brasil: em torno de 45%. Graças a isto,

há um decréscimo vertiginoso na taxa de fecundidade do país. Segundo dados da

Fundação Seade, o número de filhos por mulher caiu de 4,7 em 1970 para 2,3 em

1995 na Grande São Paulo. A Pesquisa de Condições de Vida de 1998 mostrou

que as famílias da região reduziram seu tamanho médio de 3,65 pessoas para

3,45 entre 1994 e 1998.

O discurso de que uma das causas do aumento da pobreza é a alta

taxa de fecundidade entre as mulheres mais pobres foi cruelmente desmentida

pelos números. Não obstante esta queda vertiginosa do número de filhos por

mulher, resultante de políticas autoritárias de controle da natalidade como a

esterilização indiscriminada, a miséria continuou aumentando e muito.

Esta queda das taxas de fecundidade foi acompanhada também da inserção

precária da mulher no mercado profissional, devido a grande parte delas

chefiarem sozinhas as famílias ou para complementar a renda dos companheiros

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que foram vitimados pelo desemprego ou sub-emprego. Assim, temos um quadro

de uma mulher pobre, destituída do exercício de cidadania de planejar quando e

quantos filhos deseja ter, inserida de forma precária no mercado profissional e

ficando responsável sozinha pela manutenção da família. Todos estes fatores

apontam para uma feminização afrodescendente da pobreza, que tem um fator

multiplicador: os filhos destas mulheres são obrigados a ingressarem mais cedo

no mercado profissional para ajudar no sustento familiar, com isto abandonam os

estudos ou os concluem de forma precária e, por estas razões, serão potenciais

novos excluídos do sistema.

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Tentamos mostrar, neste ensaio, como o processo de globalização

neoliberal implicou em uma radicalização da exclusão racial no Brasil. Esta talvez

seja uma das particularidades do impacto da globalização no país: o fato dela

acontecer em uma sociedade que sequer estruturou uma sociedade civil nos

parâmetros de uma democracia burguesa. Ao contrário de outras experiências, o

capitalismo brasileiro não foi acompanhado de um projeto político de igualdade na

acepção iluminista do termo – ele foi constituído sob uma base arcaica,

estamental e gestou-se sobre uma acumulação predatória de recursos materiais e

humanos. A ideologia do racismo no Brasil cumpre uma função primordial ao

legitimar este modelo, justificando os abismos sociais pelas distinções de caráter

racial.

Percebe-se que esta ideologia do racismo manteve a sua estrutura

fundamental, só alterando as formas da sua manifestação. No período da

escravidão, os negros eram sem-alma, eram não humanos, portanto passíveis de

serem tratados de forma desumana; na transição da escravidão para o salariato,

os negros eram incompetentes para trabalhar no novo sistema de contratação,

portanto, passíveis de serem excluídos do mercado formal de trabalho; em

seguida, os negros tinham como alternativa de inserção social a assimilação dos

valores brancos (o que implicaria na destruição da sua auto-identificação e dos

seus valores) inclusive pelo mascaramento de características visíveis da sua

origem via a miscigenação; e, finalmente, na etapa da globalização neoliberal, a

alternativa apresentada aos negros para superação do racismo é a sua inserção

no mercado de consumo, tendo como referência os olimpianos afrodescendentes

que usufruíram o único espaço permitido para a ascensão social dos não brancos

– o campo das atividades lúdicas.

Paralelamente a estes movimentos formais da ideologia do racismo,

vemos o sistema sofisticar e ampliar os mecanismos de exclusão racial. Os

indicadores sociais pioram, há uma clara lógica de concentração de riquezas no

projeto neoliberal e uma tendência de se constituir uma sociedade gerida pela lei

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do “salve-se quem puder”.

Como conseqüência disto, percebemos que um programa clássico

democrático e popular encontra resistências profundas de ser implantado sem

uma ruptura radical com a estrutura social, econômica e política. Em outras

palavras, aspectos não resolvidos na transição do sistema escravista para o

capitalista, passam a fazer parte não de um programa revolucionário burguês, mas

de um programa revolucionário anti-capitalista. Isto significa que as reivindicações

pontuais do movimento social de negros esbarram em aspectos estruturais que só

podem ser removidos a partir do momento em que este mesmo movimento tenha

capacidade articular junto aos setores excluídos um projeto de maioria.

Este corte político é importante para definirmos os parceiros

estratégicos na luta contra o racismo brasileiro: os movimentos sociais de um

modo geral, que representem o conjunto de proletários que sejam direta ou

indiretamente vitimados pelo projeto neoliberal. Para tal, entendemos que é

necessário a construção de formações simbólicas que retomem os ideais de

espaço público, universalidade de direitos, respeito às diferenças, igualdade social

hoje relativizados com o predomínio da ideologia da sociedade de consumo. O

projeto Negro Cidadão, desenvolvido pela UNEGRO a partir de 1998 é um dos

caminhos para se constituir estas formações simbólicas alternativas que

galvanizem a população excluída do Brasil para um projeto de transformação

social profunda. Assim como varias as tentativas de se constituir uma articulação

nacional unitária do movimento social de negros (os Encontros Nacionais de

Entidades Negras realizados em 1990 e 1999; o Congresso Continental do Povos

Negros das Américas 1995 ; e a Coordenação Nacional de Entidades Negras,

CONEN , fruto destes encontros).

Consideramos esta a estratégia adequada para a luta contra o

racismo no Brasil.

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