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  • 7/30/2019 GOMES; FERREIRA balano historiografico 1 rep 2

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    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 244-280.

    Primeira Repblica: um balano historiogrfico

    Angela de Castro Gomes

    Marieta de Moraes Ferreira*

    =====================================================================1. Como Introduo ecomo precauo

    Escrever um ensaio bibliogrfico discutindo a literatura sobre a Primeira Repblica no Brasil um empreendimento difcil e arriscado s justificvel neste ano do centenrio pelo desejo decontribuir com um pouco de nossa experincia de trabalho acumulada. Como todos os textos quediscutem produo bibliogrfica, este, em especial, exigiu critrios prvios, uma vez que sempre impossvel dar conta de tudo o que se escreveu sobre um determinado assunto. O

    problema se complica ainda mais quando este assunto a nossa primeira fase republicana, alvode muita ateno no momento em que o pas comemora cem anos de Repblica aps cerca detrinta anos sem eleies para presidente.

    A primeira escolha que fizemos foi, portanto, a de trabalhar com a Primeira Repblica. Isto ,trata-se de uma incurso s nossas "origens" como regime poltico. Em segundo lugar, optamos

    por incluir em nosso universo de anlise livros e artigos produzidos na rea das cincias sociais

    com este explcito enfoque histrico. Assim, escolhemos, de um lado, examinar textosconsiderados clssicos pelas contribuies e debates que desencadearam quando produzidos eque de certa forma permanecem como referncias obrigatrias at hoje, e, de outro, escolhemostambm discutir uma bibliografia mais atual que retoma estas interpretaes consagradas parasobre elas se debruar, propondo linhas de anlise renovadoras.

    Nossa preocupao foi tambm a de examinar trabalhos de fcil acesso ao pblico em geral,no incluindo - a no ser excepcionalmente - teses acadmicas ainda no publicadas. Estaestratgia reduz o campo de reflexo, mas a consideramos necessria paraa viabilizao desseensaio.

    Finalmente, optamos por no incluir os chamados textos de poca, produzidos no momento da

    Proclamao e contemporneos Primeira Repblica, entre os quais se destacam aqueles datadosda dcada de 20, quando um balano do experimento republicano se imps pela comemorao de

    Este trabalho contou com a colaborao da estagiria Beatriz Kushnir que nos auxiliou no levanmento

    bibliogrfico.

    ngela de Castro Gomes pesquisadora do Cpdoc, professora adjunta da Universidade Federal Fluminense eautora dos livros Burguesia e trabalho (Rio de Janeiro, Campus, 1979) e A inveno do trabalhismo (So Paulo,Vrtice, 1988).

    * Marieta de Moraes Ferreira pesquisadora do Cpdoc, professora assistente da Universidade Federal do Rio deJaneiro e coordenadora do livroA Repblica na velha Provncia (Rio de Janeiro, Rio Fundo Editora, 1989).

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    um outro centenrio: o da Independncia, em 1922. Sem dvida a mais importante traduo desteclima de reflexo crtica o livro margem da histria da Repblica, organizado por VicenteLicnio Cardoso. Contando com a colaborao de um "grupo muito representativo de intelectuaisda poca", o texto foi publicado em 1924 e s veio a ser reeditado pela Universidade de Braslia

    em sua coleo "Biblioteca do Pensamento Poltico Republicano" em 1981. Vale a pena atentarpara este longo espao de tempo e, naturalmente, considerar suas implicaes. Muitos outroslivros produzidos no mesmo perodo poderiam ser citados e comentados, mas consideramos queo exame desta numerosa e valiosa produo era empreendimento para outro ensaio bibliogrfico,o que seria esforo e pretenso excessivos para ns.

    Realizadas todas estas escolhas, restava ainda a definio da prpria estratgia de organizaoda bibliografia. Neste caso, algumas observaes so necessrias. Nosso objetivo aqui apenas ode produzir um certo mapeamento do terreno, apontando os caminhos mais percorridos, asveredas que cruzam estes caminhos e os espaos pouco investigados: os "sertes" ainda

    parcamente conhecidos aps cem anos. Desta forma, nossa preocupao assinalar o pesorelativo da produo bibliogrfica sobre certos temas e o vazio sobre outros.

    igualmente nosso objetivo realizar uma certa reflexo sobre o contexto poltico e intelectualem que boa parte desta produo emergiu. A vale destacar que praticamente aps 1964 que aPrimeira Repblica torna-se alvo privilegiado de ateno para historiadores, socilogos,cientistas polticos, economistas, pedagogos etc. tambm significativo chamar ateno para oimpacto que a presena dos chamados "brasilianistas" provocou neste contexto. Foi a partir demeados dos anos 60 que eles chegaram em grande nmero ao Brasil e, principalmente, que seustrabalhos comearam a ser publicados em portugus. As temticas da urbanizao, daindustrializao, do regionalismo e do federalismo so alguns destaques que precisam desde logoser assinalados. A aceitao e a influncia destes estudos e a desconfiana e as polmicas queeles criaram so tambm caractersticas que marcam a produo historiogrfica sobre a Primeira

    Repblica.Uma ltima escolha teve que ser realizada. Como apresentar um material bibliogrfico to

    vasto e heterogneo? Nossa opo mais ampla foi organiz-lo segundo a estratgia dos atorespolticos na Primeira Repblica, assinalando no s que este foi um momento chave no processode formao de atores coletivos em nosso pas, como tambm acompanhando a trajetriadaqueles que julgamos mais importantes, at mesmo pela ateno que lhes dispensa a literatura.Contudo, alguns temas no puderam ser tratados nesta perspectiva. Este o caso das questesque envolvem a economia do perodo -agricultura, indstria e finanas -, onde as reflexes acercada bibliografia tiveram que assumir um carter temtico.

    Finalmente gostaramos de esclarecer que uma fonte importante para nosso trabalho foi o

    Dicionrio histrico-biogrfico brasileiro 1930-1983. Como se trata de obra de referncia,preferimos registrar aqui sua contribuio. De resto, no temos iluses quanto ao fato de que umensaio desta natureza sempre contm omisses e falhas, em relao s quais somos inteiramenteresponsveis. Consideramos, assim, que corremos um risco desagradvel, mas de certa formainevitvel e, talvez impropriamente, solicitamos a complacncia dos leitores.

    =====================================================================2. Os "donos" de Primeira Repblica

    Fazer uma reflexo sobre a produo historiogrfica relativa s oligarquias na PrimeiraRepblica nos conduz de imediato a citar alguns trabalhos clssicos. Quer pelo pioneirismo de

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    suas contribuies, quer pela influncia que exerceram nos debates nas dcadas posteriores,merecem destaque as obras de Vitor Nunes Leal (1949), Jos Maria Belo (1952), Afonso Arinosde Melo Franco (1955), Lencio Basbaum (1957), Nelson Werneck Sodr (1958) e CelsoFurtado (1959), entre inmeros outros.

    Mas alm desse conjunto de trabalhos, deve-se observar que emerge tambm uma linha deinterpretao sobre o sistema poltico oligrquico brasileiro na Primeira Repblica que, adespeito de diferenas especficas, destaca a idia de que havia uma contradio fundamentalentre o setor agrrio-exportador e os setores urbano - industriais. Nessa luta, as classes mdiasteriam o papel de vanguarda das reivindicaes burguesas. Alguns dos trabalhos fundamentaisque ilustram esta perspectiva so Nelson Werneck Sodr (1962) e Hlio Jaguaribe (1962), entrevrios outros.

    Segundo este modelo de anlise, expresso de maneira clara especialmente na obra de WerneckSodr, Formao histrica do Brasil (1962), a Primeira Repblica pensada em termos de umsistema de dominao do latifndio, cuja dinmica se configura em trs fases: a da implantao,em que haveria um predomnio do poder da classe mdia atravs da atuao dos militares; a daconsolidao, em que o controle exclusivo estaria nas mos das oligarquias latifundirias; e a dodeclnio, marcada pela expanso da burguesia industrial e da classe mdia, e pela disputa dessessetores pelo controle do poder. Assim, a Revoluo de 30 representou um conflito entre o setorindustrial e agrrio ou, na expresso do autor, uma luta entre a burguesia e o latifndio.

    Este tipo de enfoque sobre a Primeira Repblica est inserido dentro de um modelo maisamplo de interpretao da realidade brasileira cuja tese central defende a existncia de doissetores scio-econmicos bsicos: o pr-capitalista, localizado no campo e expresso atravs dolatifndio, onde predominam relaes de tipo semi-feudal; e o urbano-capitalista, que deu origema uma burguesia industrial e s classes mdias urbanas. Um dos desdobramentos desta concepo a caracterizao dos conflitos de classe no pas como resultado do antagonismo entre o

    latifndio - aliado ao imperialismo - e as foras nacionais -constitudas de segmentos daburguesia nacional, da pequena burguesia e das classes populares.

    Este modelo de interpretao, defendido em linhas gerais e de forma significativa pelo PartidoComunista Brasileiro, ganhou novas foras nos anos 50 com a incorporao de algumas dessasteses pelo movimento nacionalista. Com o movimento militar de 64 e a conseqenteimpossibilidade de manuteno dessas teses, abriram-se espaos para interpretaes inovadorasacerca da realidade brasileira. Um trabalho pioneiro nesse quadro, ainda que sem ter relaoespecfica com a Primeira Repblica, foi a Revoluo brasileira de Caio Prado Jr. (1966).Voltada para a crtica das atividades polticas: da esquerda brasileira, em especial do PCB, a obraapontava os equvocos dessas teses e, em decorrncia, os erros cometidos na elaborao das

    estratgias de ao poltica.Os debates produzidos pelo livro de Prado Jr. produziram seus primeiros frutos, no que dizrespeito a uma reviso das interpretaes sobre a Primeira Repblica, com a publicao do artigode Paula Beiguelman, "A propsito de uma interpretao da histria da Repblica" (1967).

    Nesse, artigo, a autora se prope a analisar criticamente as teses de Werneck Sodr, defendendo aausncia de contradies fundamentais entre setor agrrio e setor urbano-industrial no Brasil.

    Tomando como referncia a prpria periodizao proposta pelo autor, Paula Beiguelmanafirma que a primeira fase republicana no representou uma dominncia dos setoresurbano-industriais, e que a poltica econmica implementada no perodo no foi uma respostadireta aos interesses urbanos. Acrescenta ainda que, pela prpria natureza do setor urbano deento, seu antagonismo com o setor exportador era apenas superficial. Em relao segunda

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    fase, que para Werneck Sodr representou o triunfo do latifndio sobre as demais classes, a au-tora faz igualmente uma crtica severa, apontando a simplificao da anlise.

    Finalmente, para os anos 20, Beiguelman afasta a idia de que a agitao da dcada e aRevoluo de 30 tivessemrepresentado uma luta entre burguesiae latifndio. No seu entender,

    uma explicao alternativa pode ser buscada na ecloso de uma crise institucional, referida transformao das bases estruturais que haviam dado sentido ao sistema poltico-administrativodescentralizado. Alm disso, uma vez criado um ncleo econmico voltado para o mercadointerno, passvel de transformar-se em componente dinmico, alterava-se a posio do setoragrrio exportador dentro da economia nacional. Finalmente, a crise instalada no setor cafeeirocontribuiu para pr em evidncia a necessidade de remediar o progressivo empobrecimento deoutras reas do pas. Um aprofundamento de algumas destas hipteses de Paula Beiguelman paraas primeiras dcadas republicanas foi realizado por Eduardo Kugelmas no artigo intitulado "APrimeira Repblica no perodo de 1891 a 1909" (1967).

    Um outro texto fundamental de crtica s teses dominantes nos anos 50 e 60 o trabalho deMaria do Carmo Campelo de Sousa publicado na coletnea organizada por Carlos GuilhermeMota, Brasil em perspectiva (1968). Integrado ao esprito da obra, que tinha como premissacolocar todo o passado brasileiro em questo, o artigo de Campelo de Sousa sobre a PrimeiraRepblica prope-se a avanar na reviso das teses tradicionais sobre o perodo. Tendo comoeixo central a anlise do processo poltico-partidrio, a autora conduz seu argumento no sentidode demonstrar que o desenvolvimento industrial no criou um antagonismo com o antigo setorexportador e que havia uma complementaridade de interesses das duas esferas econmicas.

    Partindo dessa perspectiva, a autora vai retomar a anlise das conjunturas classicamenteconsideradas como de expanso dos setores urbanos (governos Deodoro, Floriano Peixoto,Hermes da Fonseca e a dcada, de 20) para demonstrar que esses perodos no representaram

    perda para os interesses das oligarquias. Seu trabalho aborda ainda a caracterizao da

    organizao poltica republicana e traa um quadro evolutivo dos diferentes governos, dandonfase montagem do pacto oligrquico e da poltica dos governadores. Dentro dessa mesmalinha de interpretao, deve ser assinalado o artigo de Boris Fausto, "A Revoluo de 30",tambm publicado emBrasil em perspectiva.

    Ainda que no includos diretamente nesse debate, mas como uma contribuio importantepara o conhecimento da Primeira Repblica, devem ser lembrados os diversos trabalhos de EdgarCarone (1969, 1970, 1971), que propiciaram aos estudiosos do perodo o acesso a uma grandequantidade de valiosas informaes, alm do conhecimento de corpos documentais importantes.

    Retomando o debate a partir de seus prprios trabalhos e das contribuies de Beiguelman ede Campelo, Fausto, publicou, em 1970 o livro A Revoluo de 30: histria e historiografia.

    Nesse texto, o autor, atravs de uma anlise historiogrfica, aprofunda as crticas s concepesque interpretam os conflitos da Primeira Repblica como fruto das contradies antagnicasentre o setor agrrioexportador e setores urbano-industriais, e a Revoluo de 1930 como oresultado final desse embate. Em seguida, prope-se a precisar o significado desse movimento

    poltico, caracterizando-o como resultado de conflitos intra-oligrquicos fortalecidos pormovimentos militares dissidentes, que tinham como objetivogolpear a hegemonia da burguesiacafeeira. Contudo, em virtude da incapacidade das demais fraes de classe para assumir o poderde maneira exclusiva e, com o colapso poltico da burguesia do caf, abriu-se um vazio de poder.A resposta para essa situao foi o Estado de compromisso.

    Em 1972, corno um aprofundamento de seus trabalhos anteriores, Boris Fausto publicouPequenos ensaios de histria da Repblica. A inteno destes textos era apresentar as linhas

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    gerais da formao social brasileira e seu sistema poltico durante a Primeira Repblica. Uma dasidias centrais do autor que a concentrao das atividades econmicas em reas geogrficasdefinidas propiciou a formao no pas de uma estrumo regional de classes. As oposies entreos diferentes grupos regionais no interior da classe dominante ganharam mais importncia do que

    as divises setoriais (burguesia agrria, comercial, industrial).Com esta afirmao, Fausto no s aprofunda as crticas s interpretaes dualistas

    (contradies entre oligarquias agrrias e setores urbano-industriais), como oferece novascontribuies no sentido de melhor explicitar o papel da oligarquia cafeeira. Em suas palavras:"(...) sua capacidade de articulao permitiu que ela fosse mais que beneficiria da ao doEstado e que forjasse as instituies estatais e as transformasse no instrumento do seu interesse(1972, p. 5).

    Ainda nos anos 70, Boris Fausto assumiu a coordenao dos trabalhos da coleo "HistriaGeral da Civilizao Brasileira", at ento dirigida por Srgio Buarque de Holanda. Em 1975 a1976 foram publicados os dois volumes de O Brasil republicano dedicados A PrimeiraRepblica: Estrutura de poder e economia (vol. 8) e Sociedade e instituies (vol. 9). Aorientao adotada para a publicao desses volumes foi a pluralidade, com vistas a incorporar acolaborao de autores com diferentes orientaes terico-metodolgicas. A contribuio destestrabalhos, ao propiciar um painel dos principais temas do primeiro perodo republicano, foifundamental.

    Ainda no campo dos estudos sobre as oligarquias, deve ser enfatizada a contribuio dosbrasilianistas que se dedicaram aos estudos de corte regional, tais como Love (1975 e 1982),Wirth (1975) e Levine (1975). Estes autores desenvolveram juntos um projeto comparativo sobreas elites oligrquicas nos estados de So Paulo, Minas Gerais e Pernambuco, abarcando o

    perodo da Proclamao da Repblica ao Estado Novo. Love j havia anteriormente publicadoum estudo sobre o Rio Grande do Sul, e Etil Soo Pang publicou, em 1979, um estudo sobre a

    oligarquia baiana.Um balano acerca da produo bibliogrfica das dcadas de 60 e 70, a despeito de suas

    especificidades, demonstra que foi privilegiada a idia de que a hegemonia poltica da oligarquiapaulista, em aliana com a mineira, sustentava-se na preeminncia da economia exportadoracafeeira. Em decorrncia, o arranjo poltico oligrquico entre So Paulo e Minas ditava de formantida a orientao do governo federal.

    As bases de sustentao dessa perspectiva de anlise podem ser encontradas no texto clssicode Celso Furtado, Formao econmica do Brasil (1959). O ncleo central de seu argumento

    pautava-se no fato de que o Executivo sempre teria atuado no sentido de sustentar os planos devalorizao do caf, e que a poltica financeira sempre esteve voltada para beneficiar este setor.

    Celso Furtado defendia a idia de uma quase total subordinao da poltica econmica dogoverno federal aos desgnios do setor cafeeiro. Como desdobramento dessa tese, o autorelaborou o conceito de socializao de perdas, por entender que, atravs de mecanismos dedepreciao cambial, foram socializados os prejuzos das oligarquias, provenientes do declniodos preos do caf no mercado externo, em vrias conjunturas.

    Visando relativizar essas interpretaes que privilegiam a oligarquia cafeeira corno um atorfundamental e quase exclusivo na conduo da poltica do perodo, tem surgido um significativonmero de trabalhos. Neste caso, contribuies interessantes tm partido de economistasdedicados ao estudo da poltica econmica e financeira da Primeira Repblica.

    J na primeira metade dos anos 70 os trabalhos de Pelaez (1971) e Vilela e Suzigan (1973)apresentavam a idia de que a conduo da poltica econmica teria sido predominante e

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    constantemente influenciada pela utilizao de princpios ortodoxos de poltica monetria fiscal ecambial, e assim no seria um reflexo direto dos interesses cafeeiros. Estes trabalhos, embora notenham formulado explicitamente uma explicao do porqu da utilizao das doutrinasortodoxas pelos homens pblicos brasileiros, abriram caminhos para um questionamento das

    teses que interpretavam a poltica econmica da Primeira Repblica como decorrncia imediatados interesses do caf.

    Esta reviso assumiu novas dimenses com a publicao dos trabalhos de Winston Fritsch,"Aspectos da poltica econmica no Brasil: 1906-1914" (1980), "1924" (1980) e "Apogeu e crisena Primeira Repblica: 1900-1980" (1989). Neles o autor questiona o pressuposto de que a

    poltica econmica do governo federal teria consistentemente favorecido os interessescorporativos da oligarquia cafeeira. Sem negar a posio hegemnica desta oligarquia no Estado

    brasileiro, Fritsch relativiza as afirmaes de que o governo federal sempre se curvou s pressesda cafeicultura, no sentido de apoiar programas de valorizao do caf e de favorecer adepreciao cambial. Baseando suas anlises numa ampla pesquisa documental, sustenta que ogoverno federal ou negou seu apoio aos planos de valorizao, como em 1906 e 1929, ou apenasinterveio de maneira espordica e limitada.

    A explicao para essa forma de procedimento deve ser buscada, segundo Fritsch, naspresses contrrias provenientes de outros grupos oligrquicos regionais, bem como na oposiodos banqueiros internacionais. Nos momentos em que auxlios mais efetivos foram concedidos cafeicultura, essas iniciativas no significaram a inteno de dar um tratamento preferencial aosetor cafeeiro, mas antes de tudo, a de evitar que um declnio demasiado dos preos do caftrouxesse graves conseqncias para o desempenho da economia como um todo.

    Mais recentemente, este debate tem tido novos desdobramentos, sendo privilegiada comoconjuntura de anlise, principalmente, a fase de transio do Imprio para a Repblica. Nestecaso, vale citar os trabalhos de Barroso Franco (1983) (1989) e Steven Topik (1987).

    A principal contribuio de Barroso Franco apresentar explicaes acerca das origens dasmotivaes econmicas para a adoo de polticas ortodoxas em vrias conjunturas. De acordocom seu argumento, o enraizamento de uma orientao econmica ortodoxa se deveria generalizao da crena, nascida nos primrdios da Repblica, de que a desvalorizao cambialera um fruto do excessivo crescimento das emisses de moeda. Dessa forma, as reformas de1898/ 1900, ao permitirem a expanso monetria, teriam cumprido o vaticnio metalista:

    provocaram irremediavelmente a baixa do cmbio.A aceitao deste diagnstico teve, na poca, como conseqncias: 1) bloquear quaisquer

    possibilidades de avano posterior das reformas monetrias; 2) permitir a ascenso da ortodoxiafinanceira. Segundo Barroso Franco, a afirmao dessa perspectiva contribuiu grandemente para

    que fossem adotados pela elite poltica procedimentos econmicos ortodoxos, muitas vezescontrrios e prejudiciais aos interesses especficos da oligarquia cafeeira.No campo das anlises dos historiadores e cientistas polticos, essa tendncia para relativizar o

    papel e o peso de So Paulo e da oligarquia cafeeira tem se ampliado no decorrer dos anos 80. Naverdade, o surgimento de novos trabalhos que tm como foco de anlises seja a atuao dasdemais oligarquias regionais, seja a reviso do papel das oligarquias dominantes - So Paulo eMinas - tem contribudo no sentido de permitir um melhor desenho do sistema oligrquico daPrimeira Repblica e de apontar para as complexidades do pacto oligrquico.

    Tambm so contribuies importantes e que atendem aos dois ltimos objetivos acimaapontados, os trabalhos de Jos Murilo de Carvalho (1987 e 1989) e de Renato Lessa (1988). Osbestializados, ainda que tendo como objeto central de anlise a atuao das camadas populares

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    na primeira dcada republicana, proporciona ricos elementos para a compreenso das prticasoligrquicas; que visavam impedir a extenso da cidadania a contingentes mais amplos da

    populao brasileira. J o trabalho de Renato Lessa A inveno republicana, investiga a gnese ea implantao da ordem poltica republicana, concentrando sua ateno na anlise do papel da

    poltica dos governadores como fator de estabilidade da ordem oligrquica. Na mesma linha esto trabalho de Maria de Lourdes Janotti (1986) que, ao voltar-se para a atuao dos gruposmonarquistas aps a implantao da ordem republicana, oferece subsdios enriquecedores para oentendimento dos conflitos oligrquicos.

    Um outro conjunto de textos fundamental para o estudo das oligarquias na Primeira Repblica aquele que teve como questo principal a relao entre o pblico e o privado. A obra pioneira eque deu uma contribuio definitiva para esse debate Coronelismo, enxada e voto, de Vtor

    Nunes Leal. Publicado em 1949, o trabalho representou uma significativa inovao no campo dascincias sociais. Alm de apresentar uma consistente pesquisa como base de seus argumentos,rompeu com teses consagradas que apresentavam a sociedade brasileira a partir de modelosdicotmicos e opunham ordem privada a ordem pblica, do qual o trabalho de Nestor Duarte(1939) o melhor exemplo.

    Preocupado em estudar o fenmeno do coronelismo, o autor recuperou a evoluo domunicpio brasileiro da fase colonial at a Constituio de 1946, enfocando-as atribuiesmunicipais, a eletividade de suas administraes, sua receita, sua organizao policial e judiciriae sua legislao eleitoral. Partindo desse quadro geral, Vtor Nunes localizou o coronelismocomo um fenmeno especfico da Primeira Repblica e o definiu como "resultado dasuperposio deformas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econmica e so-cial inadequada" (p. 20). Assim, o coronelismo no era uma mera sobrevivncia do poder

    privado, cuja hipertrofia constituiu fenmeno tpico da histria colonial e imperial brasileiras,mas sim um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder pblico progressivamente

    fortalecido, e a decadente influncia dos chefes locais, notadamente os donos de terra. Trata-se,portanto, de uma rede complexa de relaes em que os remanescentes do poder privado soalimentados pelo poder pblico, em funo de suas necessidades eleitorais de controlar o voto dointerior. Dessa maneira, coronelismo no deve ser confundido com algumas de suascaractersticas secundrias, como mandonismo e clientelismo. Na verdade, contudo, ele pode serentendido como uma fase do mandonismo.

    Diferentemente de Vtor Nunes, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1969) e Eul Soo Pang(1979) identificaram coronelismo com mandonismo, o que permite que o conceito seja dilatado,

    perca sua preciso histrica e possa ser aplicado a qualquer conjuntura da histria brasileira.Maria Isaura tambm amplia a caracterizao do coronelismo para incorporar manifestaes

    urbanas, em que podem ser definidos como coronis comerciantes, mdicos, empresrios, muitasvezes desvinculados da propriedade da terra.Contudo, a primeira crtica mais profunda s teses de Vtor Nunes; foram produzidas pelo

    historiador ingls Paul Cammack (1979). O ponto de partida de Cammack o questionamentodoconceito de compromisso coronelista que seria "totalmente destitudo de validez" pois o sistema

    poltico oligrquico no deve ser entendido a partir da noo de clientelismo, e sim darepresentao de interesses das classes dominantes. Para este autor, o modelo de anlise de Vitor

    Nunes, ao privilegiar a ao poltica dos coronis baseada no clientelismo, no atribuiimportncia devida sua atuao scio-econmica. Um outro aspecto da crtica est baseado nanegativa de uma das premissas do compromisso, isto , a dependncia do governo estadual emre1ao ao coronel para a produo de votos. Segundo Cammack, o sistema eleitoral era

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    controlado pelo governo estadual, e estava em curso um processo de, centralizao do poderNesse quadro, o poder pblico estadual dominava completamente a situao poltica e nonecessitava de realizar nenhum acordo com o poder local, concretizado na figura do coronel.

    A despeito da pertinncia de alguns pontos levantados por Cammack, as linhas bsicas da

    anlise de Nunes; Leal permanecem atuais. Amlcar Martins, em seu artigo "Clientelismo erepresentao em Minas Gerais durante a Primeira Repblica: uma crtica a Paul Cammack"(1984), faz unia anlise das interpretaes do historiador ingls, resgatando, no fundamental, atese do compromisso coronelista. Jos Murilo de Carvalho, igualmente, em seu verbete"Coronelismo" (1984), recupera o amplo debate acerca do tema e, se por um lado reconhece osexageros atribudos ao valor do voto na Repblica Velha, no encara essa limitao comosuficiente para invalidar o modelo de anlise de Vitor Nunes.

    Uma outra linha de trabalho que discute as relaes entre ordem privada e ordem pblica estassociada s interpretaes de Raimundo Faoro. Os donos do poder foi publicado em 1958 ereeditado em 1975. quando sofreu um processo de reviso e ampliao. O livro trata da formaodo patronato brasileiro, vista como um processo que se inicia com a fundao do Estado

    portugus e se encerra com o governo Vargas. A tese central que o Estado foi sempreonipotente no Brasil, e ao estamento burocrtico coube a direo dos negcios pblicos. Como oEstado o centro de tudo, quem o personifica a classe dirigente. No caso especfico da PrimeiraRepblica, com a implantao de um federalismo desvirtuado, o estamento burocrtico sofre umdeclnio, ou mesmo " banido ou escorraado". Ainda assim, o poder pblico continua a atuar nosentido de solucionar crises econmicas e financeiras e, principalmente, intervir para amparar acafeicultura.

    Com uma perspectiva diferente, Elisa Reis (1985) analisa o processo de construo do Estadono Brasil de 1890 a 1930. A base de seu argumento que os interesses agro-exportadoresdominantes no perodo, ao politizarem a economia, conferiram ao Estado uma posio

    estratgica, que em funo do seu timing poltico propiciou uma marcada autonomia do Estadofrente a interesses sociais. Partindo desse ponto, e retomando algumas contribuies de Vtor

    Nunes, a autora demonstra o crescimento do Estado republicano brasileiro no perodo, atravs daexpanso da burocracia, do aumento de sua capacidade fiscal e do prprio aumento das forasmilitares.

    Desse debate, a questo mais importante a ser retida que o pblico e o privado no Brasil tmlimites fluidos e continuam a suscitar amplas discusses.

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    3. Agricultura e industrializao

    Uma bibliografia complementar que deve merecer nossa ateno para uma melhorcompreenso do papel das oligarquias e da produo historiogrfica a elas referente, so osestudos voltados para a agricultura e a industrializao.

    A literatura existente sobre a agricultura brasileira no perodo republicano bastante limitada.Diferentemente do processo de industrializao, que tem sido objeto de anlises sistemticas que

    possibilitam uma viso d conjunto e um esforo interpretativo, a agricultura vem sendoexaminada em seus aspectos parciais, em trabalhos que oscilam entre uma excessiva

    preocupao com detalhes e um exagero de generalizaes.

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    No caso particular da Primeira Repblica, essa situao ainda mais grave, inexistindotrabalhos que propiciem uma viso de conjunto dessa atividade. A produo disponvel consistede alguns captulos inseridos em obras de carter geral tais como Histria da agricultura

    brasileira, de Lus Amaral (1940), Histria econmica do Brasil, de Caio Prado Jr. (1945), e

    Formao econmica do Brasil, de Celso Furtado (1959), ou ainda, de alguns poucos trabalhosdedicados a alguma regio, ou algum tema especfico, ou algum produto em particular.

    Como exemplo de trabalho importante na perspectiva da abordagem regional, deve serlembrado o artigo de Francisco Iglsias (1985) sobre a agricultura de Minas Gerais na PrimeiraRepblica. Podem tambm ser citados vrios exemplos de estudos dedicados a urra atividadeespecfica. Entre eles os trabalhos de Jos Gnacarine (1975) e Gadiel Perucci (1978), voltados

    para as atividades aucareiras, e o livro de Sandra Pesavento, sobre o setor agropecurio gacho.Quanto ao caf, deve ser mencionado o artigo de Boris Fausto, "Expanso do caf e polticacafeeira" (1975).

    Outro trabalho fundamental relacionado atividade cafeeira O cativeiro da terra, de Jos deSousa Martins, que se dedica anlise da estrutura de produo em So Paulo. A tese central doautor de que a substituio do trabalho escravo no conduziu ao estabelecimento do trabalhoassalariado nos cafezais, mas sim implantao do colonato. Acrescenta ainda que essa jornadade trabalho se fundamentou em mecanismos de correo intra-econmica, o queconseqentemente dificultou sua caracterizao como uma relao capitalista de produo. Aexistncia, entretanto, de relaes de produo pr-capitalista na cafeicultura, est subordinada lgica capitalista, segundo a qual o prprio capital engendra e reproduz relaes no-capitalistasde produo.

    Alm dessas contribuies voltadas fundamentalmente para algum aspecto especfico daagricultura na Primeira Repblica, deve ser comentado um outro conjunto de trabalhos que,embora dedicados discusso da problemtica agrria do pas a partir dos anos 50, traz

    contribuies interessantes para o primeiro perodo republicano. Ao longo dos anos 60 e 70foram produzidas inmeras obras cuja preocupao central era refletir sobre as dificuldadeseconmicas do pas e as possveis alternativas para sua superao. Nestes textos, um tema queganhou destaque foi a avaliao do setor agrcola brasileiro. A pergunta principal consistia emsaber se a agricultura era um obstculo ao desenvolvimento do pas.

    Partindo do pressuposto de que a resposta para essa questo s seria obtida atravs da anlisedo processo de formao histrica do Brasil, inmeros autores voltaram-se para o estudo datrajetria da agricultura do pas, sendo a Primeira Repblica uma das conjunturas examinadas.

    Nesse sentido inmeras contribuies podem ser citadas, como Alberto Passos Guimares(1963), Hlio Jaguaribe (1962), Nelson Werneck Sodr (1962), Delfim Netto (1973) e Antnio

    de Barros Castro (1971). Merecem ser citados tambm as contribuies de Maria Yeda Linharese Francisco Carlos Teixeira da Silva (1979 e 1981).Os estudos acerca da industrializao no Brasil, generalizados a partir da dcada de 1950 e

    produzidos em sua grande maioria por economistas, desenvolveram-se dentro dos marcos dopensamento cepalino. Criada em 1948, a Comisso Econmica para a Amrica Latina (CEPAL)tinha por objetivo produzir anlises prprias que permitissem um melhor entendimento da

    problemtica latino-americana, em substituio aos modelos tericos dominantes desenvolvidosa partir da realidade histrica de outros pases.

    Comprometido com a superao dos problemas estruturais da Amrica Latina, tais como adependncia econmica e a elevao do nvel de vida das massas populares, o discurso cepalinoorganizou-se em torno da questo da industrializao. Em sua perspectiva, colocava-se como

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    ponto central que os pases latino americanos que lograram realizar sua industrializao ofizeram porque contaram com circunstncias histricas desfavorveis ao pleno funcionamento domodelo exportador.

    Este ponto de vista, especificamente em relao ao Brasil, expresso de forma clara por Celso

    Furtado no livro Formao econmica do Brasil, citado anteriormente. Segundo este autor, acrise de 29, ao provocar a queda acentuada dos preos do caf, colocou em xeque ofuncionamento do modelo exportador. No entanto, a poltica cafeeira adotada no incio da dcadade 30, ao garantir a compra de cafs invendveis externamente, assegurou a manuteno do nvelde renda do pas, funcionando como uma medida anti-depressiva. Se, de um lado, a demanda por

    produtos importados foi mantida, de outro, persistiam as dificuldades de importao, emconseqncia da depresso internacional. Tal situao criou condies favorveis produointerna de bens manufaturados.

    Este tipo de enfoque, portanto, localiza o desenvolvimento das indstrias brasileirasfundamentalmente nos anos posteriores a 1930. No perodo anterior, a Primeira Guerra Mundial interpretada corno uma conjuntura especfica, em que o afrouxamento das ligaes do setoragro-exportador com os mercados externos criou facilidades para o surgimento do primeirocrescimento industrial brasileiro. As anlises de Conceio Tavares (1973) tambm se inseremnessa perspectiva.

    Uma interpretao diferente a que aparece na obra pioneira de Stanley Stein, BrazilianCotton Manufacture, 1850-1930, (1957). A partir de uma cuidadosa pesquisa histrica, o autordemonstra a importncia da expanso industrial brasileira anterior a 1930, destacando a o papeldinamizador das atividades comerciais. Contudo, o trabalho de Stein teve muito poucadivulgao no Brasil nos anos que se seguiram ao seu lanamento, e sua contribuio para odebate acerca da industrializao brasileira s se efetivou plenamente nos anos 70, quando seulivro foi traduzido para o portugus (1979).

    De toda forma, com a crise do modelo desenvolvimentista cepalino nos anos 60, decorrente dofato de a industrializao brasileira no ter correspondido s expectativas, tornou-se necessrio

    buscar novas perspectivas de anlise. A tese de que a expanso industrial dos paseslatino-americanos estava associada aos momentos de crise do modelo exportador - no caso doBrasil, baseado no caf -recebeu duras crticas, e, conseqentemente, um amplo debate sobre otema foi inaugurado no comeo dos anos 70.

    A obra de Warren Dean, traduzida em 1971, Uw uma contribuio substantiva a estadiscusso, recolocando em novos termos as relaes entre atividade exportadora e expansoindustrial. Do seu ponto de vista, a expanso industrial brasileira foi uma decorrncia docrescimento das exportaes de caf, e a Primeira Guerra Mundial, contrariamente s anlises at

    ento consagradas, representou, no um elemento de incentivo, e sim um obstculo industrializao. Isto porque, na medida em que a guerra criava entraves para a importao debens de capital, limitava o aumento da capacidade produtiva do nosso parque fabril. Assimtambm, a Grande Depresso e a crise do caf quase paralisaram as indstrias de So Paulo em1930, tendo a seguir dificultado o crescimento industrial durante toda a dcada.

    Segundo Dean, ao promover o crescimento da renda interna, o comrcio exportador do cafcriou no Brasil um mercado para produtos manufaturados. Impulsionou, tambm, odesenvolvimento de estradas de ferro e estimulou os investimentos em infra-estrutura, o que porsua vez integrou e ampliou este mesmo mercado. Alm disso, o caf foi responsvel peloaumento da oferta de mo-de-obra, ao estimular a imigrao, e introduziu no pas recursos em

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    moeda estrangeira que passaram a ser utilizados para a importao de insumos e bens de capitaldestinados ao setor industrial.

    Outro trabalho que merece ser citado o de Vilela e Suzigan (1973), onde no s questionado o argumento de que as dificuldades do setor exportador promoveram a expanso da

    indstria brasileira, como tambm apontado como fator importante no estudo daindustrializao o papel das polticas governamentais. Mais recentemente, em seu trabalho sobreas origens e o desenvolvimento da indstria brasileira entre 1855 e 1939 (1986), Suzigan retomaestas questes, defendendo a tese de que o desenvolvimento industrial no sculo XIX foiinduzido pela expanso do setor exportador. Este impulso dinmico arrefeceu aps a PrimeiraGuerra Mundial, uma vez que a partir de 1900, o prprio setor industrial, embora incipiente, j

    passara a estimular investimentos. Na dcada de 1920, em parte devido aos incentivosgovernamentais, acentuou-se a diversificao da estrutura industrial. Foi na dcada de 1930,entretanto, que a crise do setor exportador e a Grande Depresso romperam a ligao entre acafeicultura e o crescimento industrial - embora o investimento industrial continuasse a dependerda capacidade de importao criada pelo setor exportador -, iniciando-se assim um processo deindustrializao via substituio de importaes. Esta interpretao de Suzigan , sem dvida, degrande relevncia, mas no enfatiza, as diferenas e especificidades: regionais do processo deexpanso industrial.

    As formulaes acerca da complementaridade. entre a economia exportadora e os impulsos industrializao foram igualmente desenvolvidas nos trabalhos de um grupo de economistas daUniversidade de Campinas - Unicamp -, entre os quais destacam-se Srgio Silva (1976), WilsonCano (1977), Joo Manoel Cardoso de Meio (1982) e Liana Aureliano (1981). A despeito deseus enfoques especficos, estes estudos tm em comum a valorizao das relaes caf-indstriacomo fator fundamental para a compreenso do processo de industrializao no Brasil. E,

    justamente por isso, atribuem um papel relevante atividade industrial existente na Primeira

    Repblica.De acordo com estes trabalhos, o capital industrial originou-se na dcada de 1880, na esteira

    de um rpido processo de acumulao ocorrido no setor exportador de caf. Contudo, a relaoentre o capital cafeeiro e o capital industrial era contraditria, em funo da subordinao dosegundo ao primeiro, e deste ao capital internacional. Assim, o desenvolvimento do capitalismo

    baseado no comrcio do caf, ao mesmo tempo que estimulou o desenvolvimento industrial,imps-lhe limites que permitem caracteriz-lo como tardio e especfico.

    Do conjunto de estudos produzidos na Unicamp, destacamos aqui aqueles realizados porWilson Cano (1977, 1978 e 1985), que, ao analisar o caso de So Paulo, oferece tambm

    propostas de interpretao sobre a industrializao no Rio de Janeiro. De fato, seu modelo do

    complexo cafeeiro, destinado a explicar as origens e o dinamismo da indstria paulista,pressupe a possibilidade de generalizao para as demais reas cafeeiras do pas.J em seu trabalho de 1977, utilizando os mesmos procedimentos de anlise construdos a

    partir da realidade paulista, Cano procura demonstrar como e por que a economia carioca teriasofrido um processo de "retrocesso industrial". Esta proposta de generalizao do modelo docomplexo cafeeiro e de sua aplicao para o entendimento das realidades econmicas do Rio deJaneiro, Minas Gerais e Esprito Santo encontra-se porm melhor explicitada em seu artigo"Padres diferenciados das principais regou cafeeiras (1850-1930)" de 1985.

    Neste texto, tomando como referencial de anlise a economia paulista, Cano prope-se aexplicar as razes fundamentais pelas quais as principais regies cafeeiras do perodo assinaladotiveram dinmicas distintas de crescimento e de transforma5o econmica. O elemento

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    fundamental de diferenciao entre So Paulo e as demais regies consistiria no fato de queapenas naquele Estado constituiu-se plenamente o complexo cafeeiro, j que, nos demais, asrelaes sociais de produo vigentes e as peculiaridades da comercializao e do financiamentodo caf no o permitiram. Assim, o elemento capaz de explicar seja a expanso industrial, seja a

    perda de dinamismo desta atividade, seria a relao caf-indstria.De acordo com esta perspectiva complementarista no caso de So Paulo, o elemento

    propulsionador da industrializao teria sido, portanto, o desenvolvimento da lavoura cafeeira.Instituindo desde cedo o trabalho livre, So Paulo teria eliminado um freio expanso do caf, eao mesmo tempo criado um amplo mercado para produtos alimentcios e industriais. Por outrolado, a expanso da lavoura teria tambm ampliado as bases de acumulao, abrindooportunidades de inverso de capital tanto no desenvolvimento de uma agricultura mercantilcomo na indstria. Finalmente, teriam surgido condies para a criao de um mercado detrabalho livre que reduzia a presso dos custos da produo industrial.

    Enquanto So Paulo se expandia, a utilizao mais intensa e prolongada do trabalho escravona cidade e no Estado do Rio teria esvaziado a possibilidade de criao de um setor agrcoladinmico que pudesse trocar impulsos com o setor industrial. Dificultando o aparecimento de ummercado de, trabalho livre e amplo, o escravismo prolongado teria impedido o desenvolvimentoda produo de gneros alimentcios baratos - capazes por sua vez de baratear o custo da fora detrabalho - bem como a criao de um mercado consumidor para produtos industrializados. Porinferncia, conclui-se que, na medida em que a antiga economia cafeeira do vale do Parabae daregio de Minas declinava, toda a economia fluminense e carioca entrava num processo de"inexorvel atrofia".

    Uma outra proposta de interpretao sobre a expanso industrial na Primeira Repblica apresentada por Versiani e Versiani (1977 e 1980). Um dos pontos centrais do argumento dessesautores a defesa da tese que o Estado desempenhou um papel positivo na promoo do

    desenvolvimento industrial brasileiro antes de 1930. Este apoio concretizou-se, inicialmente,atravs de uma poltica de proteo alfandegria deliberada e, posteriormente, atravs daconcesso de incentivos e subsdios a indstrias especficas. Estudando o desenvolvimento daindstria de tecidos de algodo, esses autores sugerem que o desenvolvimento industrial deu-sede forma cclica, alternando fases de aumento de capacidade produtiva e fases de aumento dacapacidade de produo. Essa alternncia seria fruto da variao da taxa de cmbio.

    Uma outra contribuio de Versiani e Versiani, ainda que no especificamente preocupadoscom diferenciaes regionais no processo de expanso industrial, foi abrir novas perspectivas deanlise, rompendo com uma viso dicotmica, ao defender a hiptese de que a industrializaosurgiu como resultado dos estmulos produzidos pela conjugao de perodos de dificuldades e

    de expanso do setor exportador. As concluses de F. Versiani (1980) indicam tambm que osetor cafeeiro no constituiu importante fonte de recursos diretos para a indstria, e que oscapitais para a nova atividade provieram principalmente do comrcio de importao e doreinvestimento de lucros do prprio setor fabril.

    Por fim merecem ser citados ainda como contribuies importantes os trabalhos de NiciaVilela Luz (1960), Eullia Lobo (1978) e Brbara Levy (1980 e 1989).

    Esses diversos estudos sobre a industrializao, tiveram um papel fundamental ao reforar asinterpretaes sobre o sistema poltico brasileiro na Primeira Repblica, que questionam aexistncia de uma contradio fundamental entre o setor agrrio-exportador e os setoresurbano-industriais, demonstrando que a expanso industrial no criou um antagonismo com o

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    setor exportador e que havia uma complementariedade de interesses das duas esferaseconmicas.

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    4. Soldados, tenentes e generais: os militares entram na cena poltica

    Um outro ator poltico de fundamental importncia e que mereceu anlise cuidadosa dahistoriografia so os militares. Nada mais natural, j que foram eles que proclamaram aRepblica, entrando a partir da no cenrio poltico para no mais se afastar.

    Praticamente at os anos 60, grande parte da produo bibliogrfica voltada para o estudo dosmilitares estava inserida dentro dos modelos de interpretao que enfocavam a dinmica daPrimeira Repblica como resultado de uma oposio entre oligarquias rurais e setores urbanos. Olivro clssico que serviu de base a essa interpretao foi o O sentido do tenentismo, de VirgnioSanta Rosa. Publicado em 1933, teve sua reedio patrocinada pelo ISEB nos textos "Cadernosdo Povo Brasileiro" em 1963. O prefcio de Nelson Werneck Sodr corrobora e revigora ainterpretao de Santa Rosa:

    "O tenentismo, entre o fim da Primeira Guerra Mundial e o Estado Novo, ocupou ocenrio brasileiro, avultando como manifestao poltica cuja complexidade escapava,via de regra, anlise dos contemporneos. ( ... ) Virgnio Santa Rosa foi o iniciador desua exata conceituao: colocou-o em seus devidos termos. E fez tudo isso naseqncia dos prprios acontecimentos, com as personagens ainda no palco".

    A intelegibilidade da Primeira Repblica para Santa Rosa estava no choque entre asoligarquias e as classes mdias urbanas, que tinham como sua vanguarda poltica os militares.Seu foco de anlise est nos anos 20 e no papel que os tenentes desempenharam na Revoluo de

    30. Tenentismo e Revoluo de 30 so dois temas de anlise imbricados desde ento.Na viso de Santa Rosa, os militares puderam desempenhar este papel de vanguarda poltica

    do "povo brasileiro" devido a suas origens e articulaes sociais. Estrutura-se assim uma linha deinterpretao "classista" sobre o movimento tenentista e sobre a atuao dos militares na PrimeiraRepblica. Esta concepo encontra campo prprio nos anos 50, sobretudo entre os seguidoresde uma teoria marxista mais economicista e determinista.

    At meados dos anos 60, pode-se dizer que esta interpretao que domina os textos sobremilitares, quer sejam mais ou menos acadmicos. Os primeiros trabalhos que criticam estaorientao so artigo de Maria do Carmo Campelo de Sousa (1968), e os livros de Boris Fausto(1970) e Dcio Saes (1975). Em suas anlises estes autores contestam a tese de que os militares

    representavam politicamente os interesses das classes mdias urbanas, destacando igualmente aausncia de um projeto mais modernizador e industrializante.Ao longo dos anos 70, e no bojo das novas tendncias tericas que privilegiaram o papel do

    Estado na conduo do desenvolvimento brasileiro, emerge um outro tipo de interpretao. Aao dos militares e do movimento tenentista passam a ser enfocados tendo em vista umavarivel fundamental: o pertencimento corporao militar. Este tipo de anlise, que valoriza o

    papel da organizao militar como instrumento de socializao poltica e de formao dequadros, tem como seus melhores exemplos os textos de Edmundo Campos Coelho (1976) e JosMurilo de Carvalho (1977). inegvel a importncia, para o desenvolvimento deste tipo dereflexo, dos acontecimentos ocorridos no ps-1964, mais particularmente no ps-1968.

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    Este modelo de interpretao organizacional seria contudo relativizado pelos trabalhos deMaria Ceclia Spina Forjaz (1977, 1978, 1988). Mantendo sempre a mesma linha de anlise, aautora assume a dimenso corporativa como elemento explicativo essencial, mas sustenta aimportncia das relaes desenvolvidas entre militares e setores civis da sociedade brasileira.

    Para ela, inclusive, teria sido esta a razo das dificuldades enfrentadas pelos tenentes junto cpula do Exrcito, que rejeitou e combateu o movimento rebelde.

    Retomando o debate com Jos Murilo e Spina Forjaz, surgem os trabalhos de Jos AugustoDrummond (1985, 1986). A idia principal deste autor a de que o movimento tenentista temum ntido carter militar, defendendo os interesses da corporao e o seu papel de vanguardacomo "patrocinador dos direitos do povo". Para ele, o apoio popular que os tenentes receberamno foi nem to grande, nem to sistemtico. Neste sentido, o tenentismo uma corrente polticadentro do Exrcito, que fala para o Exrcito e mobiliza oficiais de patente inferior, noconseguindo alcanar as patentes superiores que o combatem vigorosamente. Se a inspiraodeste modelo de atuao militar vem do republicanismo, radical da virada do sculo - oflorianismo e o movimento jacobino - no se deve, para Drummond, confundir os doismovimentos. No primeiro caso houve adeses significativas da cpula militar e maior articulaocom bases populares, o que no ocorreu no segundo caso.

    A questo do movimento jacobino ela mesma objeto de reflexo que parece crescer a partirdos anos 80. O livro de Suely R. de Queiroz (1987) o melhor exemplo desta preocupao, queat ento surgia apenas marginalmente nas anlises sobre militares na Primeira Repblica.

    interessante, portanto, finalizar com uma reflexo sobre o tratamento recebido pelosmovimentos que envolveramos militares neste perodo, a saber, o jacobinismo e o tenentismo.Enquanto o primeiro e sua principal figura - Floriano Peixoto - figuram obscurecidos tanto naverso "oficial" dos fatos republicanos, quanto nas prprias anlises historiogrficas, o segundorecebe ampla ateno e valorizao. As caractersticas destes dois movimentos nos ajudam a

    entender tal percurso. O jacobinismo foi sem dvida um movimento violento que, se envolveumarechais, tambm envolveu o baixo povo da cidade do Rio de Janeiro. J o tenentismo, se noenvolveu generais, propiciou a saga de muitos heris e anti-heris dos anos 30.=====================================================================5. A classe operria vai ao sindicato e Deus e o diabo esto na terra do sol.

    O fim da dcada de 50 e sobretudo a dcada de 60 marcam o momento em que cientistassociais - nacionais e estrangeiros - privilegiaram como objeto de seus estudos as populaesrurais e a classe trabalhadora que povoa as cidades durante a Primeira Repblica. Nesta nova

    perspectiva, toma-se fundamental para a compreenso da dinmica mais global deste perodo,

    que o foco das investigaes volte-se para o exame de atores coletivos - conceituados como"classe", "frao de classe" ou "movimentos sociais" - que estavam fora dos setores oligrquicosdominantes e que, em geral, eram percebidos como marginais e pouco significativos para a pol-tica coronelista.

    significativo realar este momento porque ele , sem dvida, o do contexto do movimentode 1964 com todos os seus antecedentes e conseqentes dramticos no que se refere mobilizaopopular no campo e na cidade. De uma forma geral, podemos dizer que a literatura

    produzida vai no s procurar demonstrar a participao social e poltica destes atores no arranjofederalista da Primeira Repblica, como tambm postular seu sucesso relativo, mesmo quandoderrotados historicamente.

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    A cidade

    Os estudos sobre a classe trabalhadora e os movimentos sociais urbanos ocupam um grandeespao nesta produo. No caso da classe trabalhadora, pode-se dizer que s nos incios da

    dcada de 60, sob o choque do desmonte do pacto populista, que ela se toma uni objetoprivilegiado de reflexo acadmica. A preocupao mais gemi que move os importantes estudosento produzidos explicar as caractersticas desta classe, que bem ou mal vinha tendo papelfundamental tanto no processo de industrializao quanto na experincia poltica liberaldemocrtica do pas. E a compreenso destas caractersticas no se faria sem um retorno ao

    perodo da Primeira Repblica, reconhecidamente o bero do processo de industrializao e deformao da classe trabalhadora brasileira.

    O texto pioneiro e hoje clssico , sem dvida, O problema do sindicato nico no Brasil, deEvaristo de MoraesFilho, publicado pela primeira vez em 1952 e reeditado apenas em 1978. o

    primeiro trabalho que recupera a histria do movimento operrio na Primeira Repblica e chamaa ateno para as experincias de legislao social no pr-30. Outro livro que tambm tem o

    papel de abrir caminhos Sindicato e Estado (1966), de Azis Simo. O prprio ttulo deixantido o foco de ateno deste e de outros autores: a questo do sindicalismo como elementochave para a organizao e atuao poltica dos trabalhadores e para suas relaes com o poderdo Estado. A utilizao de fontes corno dados estatsticos, documentos de associaes de classeempresarial e entrevistas com militantes do movimento operrio tambm constitui outro pontoinovador de Azis Simo. Sua anlise procura destacar e correlacionar as condies de trabalho

    por ocasio da emergncia do sindicalismo na Primeira Repblica - em especial os conflitosgrevistas -, com o tipo de resistncia do patronato e, sobretudo, com o tipo de interveno doEstado. Trabalhando de forma comparativa com o perodo do pr e do ps-30, o autor chama aateno para o tipo de tradio organizacional deste primeiro momento: uma tradio mutualista

    (e no corporativista), quer na experincia de trabalhadores, quer na do patronato. O exame daevoluo do sindicalismo no Brasil leva-o a apontar para um processo de uniformizao dostipos de associao - para o que concorre fortemente o Estado - e para um processo de"racionalizao" das relaes e aes sociais destas organizaes, que se traduz na questo da

    burocratizao do sindicato no ps-30.Os textos de Jos Albertino Rodrigues (1966) o Lencio Martins Rodrigues (1966) seriam os

    dois outros bons exemplos de estudos que tratam da classe trabalhadora na Primeira Repblicasob o entoque do desenvolvimento do sindicalismo, procurando confrontar os momentos do pr edo ps-30. O primeiro deles chama a ateno para a relevncia da perspectiva histrica no estudode uma instituio social - o sindicato -que afeta o processo de transformao de toda a

    sociedade. Neste sentido, o autor critica a nfase dada ao corte em 1930, considerando-oexagerado, embora verdadeiro. Para ele, tal nfase advm de uma certa confuso estabelecidaentre a evoluo do sindicalismo e a evoluo da legislao trabalhista no Brasil, sendo que o

    primeiro no mero "reflexo" ou decorrncia da segunda, como muitas vezes algumasinterpretaes parecem sugerir. Ambos os livros valorizam a experincia vivida pelostrabalhadores at 1930 e situam sua importncia para a linha mais geral de atuao sindical no

    pas.Vale a pena destacar que estes autores, que na segunda metade dos anos 60 buscam afirmar a

    presena social e poltica dos trabalhadores no contexto da Primeira Repblica, esto seconfrontando com uma forte vertente interpretativa. Ela pode ser identificada nas anlises doschamados "pensadores autoritrios" das dcadas de 30 e 40, que consagraram a viso de uma

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    sociedade brasileira sem "classes" organizadas, sem "opinio pblica" e, em especial, semqualquer presena significativa de trabalhadores. Praticamente, a nica literatura que recuperavaa atuao destes elementos eram os textos de memrias de lideranas do movimento sindical,com as caractersticas naturais de tal tipo de produo.

    O fim dos anos 60 e incio dos 70 so prdigos em textos que se voltam para a classetrabalhadora, mas neste momento no por excelncia a Primeira Repblica o alvo de atenodos estudiosos. O perodo de 1945 a 1964, quando o sindicalismo corporativista convive com os

    partidos polticos, o grande centro da curiosidade, havendo recuos para a dcada de 30, quandoo modelo teria sido montado. Mas j em meados de 70, alguns textos trazem de volta os olhares eos debates para a Primeira Repblica. So eles Trabalho urbano e conflito industrial(1890-1920), de Boris Fausto; e o conjunto de publicaes desenvolvidopor Paulo SrgioPinheiro e Michael Hall. A contribuio de Boris Fausto particularmente importante.Historiador consagrado, ele retoma s questes do movimento operrio e sindical j apontados

    pela literatura especializada, trabalhando com o operariado do Rio e de So Paulo. Atravs destaestratgia comparativa - at ento muito pouco se escrevera sobre a experincia carioca - corrigegeneralizaes e relativiza concluses, expandindo e complexificando a temtica do sindicalismona Primeira Repblica. Entre os muitos pontos que destaca esto a importncia do sindicalismoamarelo, sobretudo para o Rio, e a fora da proposta dos anarquistas, com nfase para suadimenso de projeto cultural. Inmeros estudos sero tributrios direta ou indiretamente destelivro de Boris Fausto. Dentre eles cabe mencionar os textos de Sheldon L. Maran (1979),Francisco F. Hardman (1984) e Antnio A. Prado (1986), que discutem o anarquismo; o texto deZaidan (1985), que lida com a experincia dos comunistas; e a primeira parte do livro de ngelaGomes (1988), que trata de socialistas, anarquistas e comunistas.

    O trabalho de Paulo Srgio Pinheiro e Michael Hall merece ateno. Paulo Srgio, depois dapublicao de seu livro Poltica e trabalho (1975), dedica-se a estudar, localizar e socializar

    material documental referente classe trabalhadora, com nfase para o momento da PrimeiraRepblica. Em tal empreendimento, associa-se a Michael Hall, que vinha trabalhando com asquestes da imigrao, do trabalho no campo, e da classe operria em So Paulo (1969 e 1975).Juntos eles publicam dois preciosos volumes de documentos: A classe operria no Brasil,volume 1, O movimento operrio (1979); eA classe operria no Brasil, volume2, Condies devida e trabalho, relaes com os empresrios e o Estado (1981)*. Sozinho, Paulo Srgio escreveum longo artigo para a "Histria Geral da Civilizao Brasileira"(1977).

    importante tambm apontar o papel desempenhado pelos trabalhos de Luiz W. Vianna. Emprimeiro lugar, seu texto Liberalismo e sindicato no Brasil (1976), embora no se concentre noperodo da Primeira Repblica, provocou muitos debates e atuou como estmulo s reflexes

    sobre o corporativismo e sobre o movimento sindical, mesmo quando discutia privilegiadamenteo papel da burguesia e do Estado. Desta forma, o autor retornou questo da periodizao domovimento sindical, considerando a situao do mercado de trabalho, e enfatizou a dinmica dasrelaes entre burguesia-Estado e sindicato, tanto no perodo do pr, quanto do ps-30. Emsegundo lugar, produziu duas das mais significativas resenhas bibliogrficas sobre o tema daclasse trabalhadora, ambas publicadas no BIB (1978 e 1984).

    Estas observaes ressaltam a importncia para este tema de anlise de um ator que at essemomento vinha recebendo pouca ateno da literatura: a burguesia industrial e comercial. Tendosido o objeto do livro de Nicea Vilela Luz (1975), sua anlise era especialmente vinculada s

    * Edgar Carone (1979) tambm organiza e publica um volume de documentos sobre a classe trabalhadora

    cobrindo o perodo que vai de 1877 a 1944.

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    questes da poltica econmica da Primeira Repblica. Assim, no que se refere poltica social -o que envolve diretamente as relaes com a classe trabalhadora e o Estado -, praticamente

    pouco se tinha publicado. este espao que os trabalhos de Mariza Saens Leme (1978) e ngelaGomes (1979) vm preencher, articulando as preocupaes sobre o processo de industrializao e

    de formao da classe trabalhadora a partir de um outro ngulo de viso.De uma maneira geral, o ponto mais significativo destes estudos ressaltar a presena poltica

    do ator burguesia urbana, analisado at ento muito mais por suas carncias: fraquezaorganizacional, ausncia de representao poltica etc. A presena dos paradigmas europeu enorte-americano era evidente, e o perfil de Primeira Repblica que se consagrava eraefetivamente o de um condomnio monopolizado pelas oligarquias cafeeiras. O esforo daquelesque estudam os setores urbanos da burguesia , portanto, o de relativizar esta viso, assinalandosua presena na luta por seus interesses chaves (tarifas alfandegrias e regulamentao domercado de trabalho) e qualificando sua forma de organizao poltica. Neste sentido, importante assinalar que foi durante a Primeira Repblica e sob o estmulo do prpriomovimento sindical que uma rede de associaes de classe se estruturou no Rio de Janeiro e SoPaulo, dentre outras cidades de menor peso no pas. Estas associaes, algumas com tradio quedata do sculo XIX, atuam como fortes grupos de presso, utilizando a forma clssica de um

    poder de veto e buscando alternativas ao universo da representao poltico-partidria.Estas concluses importam para se pensar as questes da industrializao e do trabalho no

    Brasil do ps-30, quando uma proposta corporativista comeou a ser encaminhada pelo Estado.Do ponto de vista desta resenha importa destacar que, mais uma vez, a Primeira Repblicaemerge como um perodo estratgico para a articulao de interesses de um ator polticorelevante como a burguesia comercial e industrial, permitindo reflexes mais refinadas sobre aslinhas de continuidade e descontinuidade do pr e do ps-1930.

    Finalmente, caberia registrar aqui que a cidade, durante a Primeira Repblica, foi no s o

    palco privilegiado do movimento operrio, como igualmente dos chamados movimentos sociaispoliclassistas. Neste caso, a cidade do Rio de Janeiro, por ser a capital da Repblica e maiorncleo urbano at pelo menos os anos 20, surge como principal espao para este tipo demovimento. At praticamente os anos 70, os textos que procuraram tratar da atuao da

    populao urbana enfatizaram uma separao entre manifestaes espontneas e violentas(campanhas, conflitos, quebra-quebras) e movimentos da classe trabalhadora (greves, comdestaque), situados como um fenmeno parte.

    O que se pode observar nos estudos mais atuais que privilegiam esta temtica justamente apreocupao de no mais distinguir to claramente entre manifestaes da classe trabalhadora econflitos policlassistas. Os dois melhores exemplos para o que estamos destacando so os livros

    de Nicolau Sevcenko, sobre a Revolta da Vacina (1984), e de Jos Murilo de Carvalho (1987),sobre a participao poltica na cidade do Rio de Janeiro na virada do sculo. Em ambos oscasos praticamente um mesmo episdio analisado, e o que conclumos da leitura justamente anecessidade de uma linha de reflexo que articule emprica e teoricamente os diversos tipos demovimentos sociais urbanos ocorridos durante a Primeira Repblica. Os estudos de Boris Faustosobre as greves de 1917, quando uma campanha contra a carestia teve forte peso mobilizador, eas dificuldades dos anarquistas para organizar sindicatos, vm corroborar a perspectiva dos laosque unem os diversos segmentos sociais da populao urbana. Desta forma, verifica-se acomplexidade e a importncia da questo da participao poltica na Primeira Repblica, que secontrape estreiteza e dificuldade da utilizao dos mecanismos formais de representao

    poltica, circunscritos aos partidos sob controle oligrquico.

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    O Campo

    No caso dos estudos que se voltam para as populaes rurais, os temas privilegiados so os

    movimentos messinicos de Canudos, Contestado e Juazeiro, alm da questo do cangao. Todaesta reflexo tem como objetivo principal um melhor esclarecimento da lgica que presidia o

    pacto coronelista que comandava a poltica nacional e estadual durante a Primeira Repblica.Para isso, acentua um ponto novo e bsico: a relao existente entre a histria poltica do pas e aecloso de movimentos sociais, religiosos ou no, entre a populao rural considerada comomarginal e atrasada socialmente.

    Esses trabalhos, em seu conjunto, vo portanto defender a tese de que os movimentos sociaisrurais no podem nem devem ser tratados como fatos isolados no tempo e no espao da PrimeiraRepblica. Ao contrrio, a intelegibilidade de tais movimentos s emerge com a percepo deque eles afetam a poltica coronelista e so por ela afetados. Em decorrncia, a estratgia de vidae de luta destes homens do campo no a do desterro, mas ao contrrio, a da participao

    poltica.Este aspecto para ns fundamental, pois revelador de um grande interlocutor de fundo: Os

    sertes de Euclides da Cunha. muito natural, alis, que fosse com esta interpretao que todosse defrontassem. Euclides da Cunha, em seu clssico texto sobre Canudos, constri a imagem deum movimento rural corajoso e violento, expresso do fanatismo religioso de populaesatrasadas, porque isoladas fsica e politicamente dos centros da civilizao. Isolamento e atrasoso variveis cruciais em sua anlise, pois justamente a partir delas que a fraqueza do homemdo campo se transfigura em fora e emerge a figura do sertanejo como o smbolo real danacionalidade brasileira.

    Nos anos 60 e aps experincias no menos violentas e impactantes de conflitos rurais

    encabeados pelas Ligas Camponesas do Nordeste, a academia se volta para o tema do homemdo serto e retoma sua interpretao magna, mesmo quando no a menciona diretamente. Nesteconjunto, situaremos apenas alguns estudos, hoje clssicos da historiografia sobre o tema.

    Vale comear pelo texto de Rui Fac, Cangaceiros e fanticos, escrito na dcada de 50 epublicado em 1963.* Trabalhando com os exemplos de Canudos e Juazeiro, Fac vai conotarpositivamente as categorias de cangaceiro e fantico, vistas at ento com significado negativo.Seu estudo vai tambm minimizar a dimenso religiosa e mstica destes movimentos rurais,defendendo uma explicao de "cunho material" para suas origens e fins. Seriam razes deordem econmica e poltica que, produzindo o abandono das populaes do interior, provocavamseus movimentos de revolta durante a Primeira Repblica. Tais movimentos, em decorrncia,

    eram formas de expresso de "vtimas de uma monstruosa organizao social", formas estasprecursoras e anunciadoras de futuros movimentos de rebeldia, crescentes poca da publicaodo livro. O trabalho de Rui Fac teve grande divulgao, sobretudo a partir de meados de 60,quando se tornou uma espcie de leitura obrigatria para toda uma gerao de estudantesuniversitrios que assistia com igual interesse ao filme de Glauber Rocha, Deus e o diabo naterra do sol.

    Outro trabalho de grande importncia e influncia O messianismo no Brasil e no mundo, dasociloga Maria Isaura Pereira de Queiroz. Fruto de pesquisas que datam de 1948, o livro, escrito

    * A 1a edio de 1963, foi feita pela Civilizao Brasileira, que adquiriu seus direitos da editora Vitria, ligada

    ao PCB. H uma 2a edio de 1965 e a 3a. edio, com a qual trabalhamos, de 1972.

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    como sua tese de doutoramento na Frana, tem prefcio do mestre Roger Bastide.* A proposta deMaria Isaura demonstrar a precariedade da noo de messianismo como uma forma novelesca,dolorosa e atrasada de manifestao cultural da populao rural. Em sua anlise, o messianismo

    por excelncia uma forma do catolicismo popular rstico que percebe a religiosidade de maneira

    distinta da praticadano litoral, cuja orientao dogmtica e puritana conforme a hierarquia daIgreja. Neste sentido, a autora prope interpretar os movimentos messinicos como umaestratgia de resposta bem sucedida de uma populao marginalizada que integra o sagrado aoseu cotidiano e o vive como uma festa: com procisses, cavalhadas, desafios de viola etc. Umaconcluso importante desta tese a de que, na perspectiva dos movimentos messinicos, o"campesinato", mesmo utilizando modelos tradicionais de organizao, passa por um"progresso", como por exemplo uma economia mais comercial e experincias de "reformaagrria", por via das prprias lideranas carismticas.

    Como Roger Bastide acentua em seu prefcio, o texto da autora comprova que oracionalismo, tido como especfico da sociedade industrial e como fato de destruio domisticismo, pode ser "desviado" deste percurso, seguindo caminhos inusitados no campo e nacidade, ontem e hoje. Distintamente de Rui Fac, embora tambm considerando o messianismocomo um fenmeno que exige explicao sociolgica, Maria Isaura no descarta nem minimizaa centralidade de sua dimenso mtica e mstica.

    Impossvel, em um ensaio como este, discutir, mesmo que brevemente, as inmeras questese propostas da autora. Seu trabalho um marco, retomado por autores como Maurcio Vinhas deQueiroz (Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado: 1912-1916); RalphDella Cava (Milagre em Juazeiro); Douglas Teixeira Monteiro ("Um confronto entreJuazeiro,Canudos e Contestado", HGCB) o Walnice Nogueira Galvo (Nocalor da hora: a guerra deCanudos nos jornais), dentre outros.

    O texto de Maurcio Vinhas de Queiroz, publicado em 1966, inovador pelo tratamento que

    d s fontes.** Para ele, os trabalhos anteriores eram apenas relatos sobre o Contestado, nohavendo real preocupao com a anlise das condies sociais, polticas e econmicas que

    permitiram sua ecloso naquela regio, nem com a possibilidade do surgimento de um "homemSanto" que aglutinou tantas pessoas em torno de si. Seu trabalho um estudo sobre a trajetriado movimento do Contestado desde a morte de seu lder santo, passando pelo estabelecimentodo acampamento religioso e sua transformao em reduto de guerrilheiros, at a destruiotrgica que envolveu cerca de 20 mil pessoas. O ponto a destacar o de como o autoracompanha o processo que leva os sertanejos a instaurarem a sua "monarquia", em oposio repblica dos coronis, manifestando violentamente o desejo de garantir seu direito a terra. Paraele, o Contestado um movimento messinico de tipo clssico, que tende a readaptar-se ao

    mundo, mesmo quando o recusa de forma radical.Ralph Delia Cava, que tambm produz nos anos 60, privilegia outro movimento messinico -o de Juazeiro, no Cear -, mas ressalta a mesma questo - a da terra - como ponto estratgico

    para se entender as relaes sociais que se estruturam no Brasil da Primeira Repblica. Damesma forma que Vinhas de Queiroz, o autor utiliza fontes at ento nunca examinadas:arquivos eclesisticos, arquivos privados de polticos da regio, peridicos, a correspondncia do

    * A 1a edio de 1965 e a 2a, revista e aumentada. com a qual trabalhamos, de 1976.

    ** Vale a pena destacar que o autor trabalha com depoimentos de moradores da regio, proprietrios e trabalhadoresrurais, delegados de polcia, imigrantes (recolhidos entre 1954 e 1961) e tambm com artigos de jornais, processos

    judicirios e inquritos policiais.

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    padre Ccero e entrevistas com remanescentes, realizadas entre 1963 e 1964. Apreocupao coma anlise documental est firmada, bem como a recusa da interpretao que v o movimentomessinico como fruto do fanatismo e do atraso da populao rural. Juazeiro um fenmeno dequase meio sculo, e so suas bases msticas e polticas que possibilitam tanta coeso e durao.

    preciso examin-lo como um movimento religioso de cunho popular, cujo sentido poltico dado tanto por suas relaes com as elites estaduais e nacionais da Primeira Repblica, quanto

    por seus embates com a hierarquia da Igreja Catlica.Nessa mesma linha est o texto de Douglas Teixeira Monteiro, que trabalha de forma

    comparativa com Canudos, Juazeiro e o Contestado. A contribuio do autor est em distinguirentre estes movimentos messinicos, o do Contestado como o nico a possuir caractersticasmilenaristas, isto , a postular um desligamento da sociedade instituda em nome da instauraode uma comunidade futura justa e fraterna. Nem Canudos, nem Juazeiro possuiriam taiscomponentes. Nos dois casos, os vnculos com a poltica oligrquica, e os esforos para amanuteno de uma religiosidade que no se pautava pelo rompimento com a cpula eclesistica,evidenciariam tal interpretao. Engrossando, portanto, o mesmo tipo de concluses defendidas

    por Della Cava, o autor v os movimentos de Canudos e Juazeiro como tendo profundas razesna situao da estrutura eclesistica catlica e significativos apoios entre proprietrios de terra ecomerciantes da Primeira Repblica.

    De forma geral, todos estes trabalhos sobre os movimentos messinicos, ao ressaltarem aviolncia no campo, expem a outra face da moeda coronelista. Com o estabelecimento dofederalismo e com as crescentes disputas por recursos polticos e econmicos de poder, fica claroque o pacto oligrquico tem equilbrio precrio. Se Vitor Nunes Leal chama a ateno, com

    presteza de mestre e como primeiro grande analista, para o "ponto timo" deste pacto que setraduz pelo decrescente poder dos oligarcas e pelo crescente poder da burocracia de Estado, osestudos sobre os movimentos de rebeldia no campo ilustram o seu "ponto pssimo". Amaury de

    Souza, em um artigo publicado pela revista Dados em 1973, que tem o cangao como seu objetode anlise, deixa este aspecto muito claro. Muito antes da Primeira Repblica existiram rebeldesno serto (milcias privadas existiram desde o sc. XVII). Mas s com o federalismo, de umlado, e a extenso do poder central, de outro, que esses rebeldes organizam-se em um movimentode cangaceiros que vive e explora os interstcios desta ordem. Este movimento significativa-mente s destrudo aps 1930.

    O lao que une cangao e coronelismo muito forte e visvel e tem tradio na literatura decunho memorialstico. Para finalizar, interessante registrar a importncia para esses estudos dostrabalhos de Eric Hobsbawn. Para ele, os movimentos rebeldes podiam ser "conservadores" ou"reformistas", mais ou menos violentos, mas certamente no podiam constituir-se em opes

    revolucionrias. Dois textos, pelo menos, foram leitura e inspirao para todos os que se voltampara o campo e para os rebeldes do Brasil oligrquico: PrimitiveRebels (1965) eBandits (1969).

    =====================================================================6. Em nome de Roma, mas na Terra de Santo Cruz

    Refletir sobre o perodo inicial do experimento republicano no Brasil necessariamenteconsiderar a relevncia de uma instituio que por mais de quatro sculos manteve estreitosvnculos com o Estado, fosse ele o metropolitano, fosse ele o nacional. A Igreja, atravs dafamosa questo religiosa, est nas bases da crise da Proclamao, e a instaurao da Repblica ,sem dvida, um momento-chave para a histria do catolicismo brasileiro.

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    No se pode dizer que seja extensa a bibliografia que privilegia o estudo da Igreja durante aPrimeira Repblica, mas pode-se sentir que ela cresce a partir dos anos 70. Este fato deve-se, em

    boa parte, tanto ao estmulo produzido pelo movimento renovador catlico que foi esposado peloclero latino-americano em geral, quando tenso que, aps 1964, passou a marcar as relaes

    Estado-Igreja no Brasil. Por esta razo, alguns dos importantes trabalhos sobre a Igrejaocupam-se de sua histria institucional e das relaes que ela manteve com a sociedade

    brasileira, destacando a o perodo do ps-Segunda Guerra Mundial (Thomas Bruneau,Catolicismo brasileiro em poca de transio (1974), por exemplo).

    O que gostaramos de ressaltar aqui que o interesse acadmico pelas relaes Estado-Igrejano Brasil, motivado pela conjuntura dos anos 70, deslancha um crescente interesse ereconhecimento da importncia do perodo da Primeira Repblica. Atravs das anlisesempreendidas, consolida-se a idia de que se tratava de um momento-chave, no s para acompreenso da histria do catolicismo no Brasil, como tambm para a apreenso das marcasque, eleimprimiuna sociedade brasileira. dentro deste contexto que a literatura volta-se paraas grandes reformas que a Igreja sofreu em meados do sculo XIX e passa a refletir sobre suasimplicaes no Brasil.

    De forma consensual, a bibliografia situa que com as encclicas Quanta Cura e SyllabusErrorum (1864) Roma passa a comandar uma poltica de supremacia espiritual do papado que semanifesta na reformulao dos contedos do catolicismo e na moralizao e nacionalizao doclero. O ultramontanismo era tanto um movimento defensivo ante os avanos do racionalismocientificista moderno e a ampliao dos espaos das crenas concorrentes, como um movimentoofensivo da Igreja atravs da afirmao da hierarquia e da pureza da f catlica. Foi no contextodesta orientao de renovao e disciplinarizao espiritual que se desencadeou a crise da

    proclamao da Repblica, onde o conservadorismo catlico foi golpeado com o fim daMonarquia e, com ela, do regime do Padroado.

    A Primeira Repblica se inicia exigindo da Igreja uma contundente reflexo crtica e umgrande esforo organizacional. Iluminar os caminhos desta Igreja neste perodo desvendarcomo ela enfrentou a questo da transformao das bases materiais que at ento sustentavamculto e clero, e como estruturou suas relaes com um novo regime poltico consagrador daslideranas oligrquicas regionais. So estas reconhecidas dificuldades que alimentam em grande

    parte interpretaes que vem o perodo da Primeira Repblica como um interregno do ponto devista do poder poltico da Igreja no Brasil. A separao Igreja-Estado, com a perda das regaliasasseguradas pelo Padroado Imperial, teria afetado duramente a hierarquia eclesistica, socorrendo urna recomposio de seu poder por volta de 1930, sob as lideranas do Cardeal Lemee de Getlio Vargas.

    Este ponto importante, pois ele se sustenta a respeito do reconhecimento de que o fim doPadroado foi um fato ambguo na prpria viso da Igreja. Se, de um lado, era uma ameaa, pelainstaurao de um Estado no confessional que laicizava o casamento, a educao e outrosespaos cativos da f, era tambm uma salvao, ao exigir do clero um efetivo trabalhoapostlico. O texto de Srgio L. Moura e Jos Maria G. de Almeida ("A Igreja na PrimeiraRepblica", 1977) um exemplo do que desejamos fixar, pois ele chama a ateno para o

    progresso institucional e para a liberdade que a Igreja conseguiu neste perodo, assinalando, aomesmo tempo, um clima de ilusrio otimismo. No cmputo geral como se os ganhos -manuteno do prestgio social e poltico dentre outros - no balanceassem as perdas: o nocontrole do catolicismo popular; a descristianizao das camadas superiores da populao; ocrescimento das crenas concorrentes e o menor poder poltico. Esta concluso de fundo

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    sustenta-se mesmo quando estes autores analisam a presena da intelectualidade catlica desdefins do sculo XIX at os anos 20. O papel de lderes como Carlos de Laet e Jackson deFigueiredo sobejamente reconhecido, mas sua militncia se confronta com um clima deindiferena religiosa ou de religiosidades alternativas: seitas protestantes, cultos africanos,

    espiritismo etc.. em relao a este quadro de fundo que se deve analisar a proposta de Srgio Miceli em seu

    mais recente livro, A elite eclesistica brasileira (1988). Fazendo o pndulo correr para o outrolado, o autor no apenas relativiza o teor da poltica de romanizao do Vaticano, como

    principalmente quer sustentar que a Primeira Repblica um momento fundamental para aconstruo institucional da Igreja no Brasil. Desta forma, Miceli questiona as abordagens quesustentam a "perda do poder poltico" da organizao eclesistica nestas dcadas e alinhaevidncias que demonstram a construo de uma cuidadosa e profunda rede de relaes entre altoclero catlico e novas lideranas oligrquicas.

    De uma forma muito esquemtica, estas evidncias tm dois pontos fortes. O primeiro o daexpanso territorial da Igreja, atravs do estabelecimento de uma verdadeira mquinaorganizacional de novas dioceses (o que inclui edificaes e prelados). A Igreja passa a estar

    presente em todas as capitais estaduais e nas principais cidades do pas, com nfase para SoPaulo, Minas Gerais e Nordeste. Neste caso, vale notar que Miceli endossa a viso de que aIgreja no foi capaz de incorporar ou domesticar os movimentos messinicos como Canudos eJuazeiro. Mas, para ele, em sua estratgia de controle, a Igreja monta um verdadeiro "cinturo desegurana" que impede a difuso deste catolicismo popular rebelde.

    O segundo argumento de peso se refere ao investimento na rea de formao escolar, fosseela dirigida para a reproduo dos prprios quadros eclesisticos, fosse dirigida para os quadrosda elite poltica. Preenchendo um espao que os grupos dirigentes no conseguiam atender porfalta de recursos financeiros e humanos, e tambm por falta de tradio, a Igreja sela uma forte

    aliana com os grupos oligrquicos do pas. A despeito da educao ser formalmente laica e doensino religioso estar fora dos currculos, a Primeira Repblica a fase urea de expanso doscolgios catlicos, especialmente os voltados para o ensino secundrio de moas e rapazes.

    Apesar de todos esses problemas, alguns dos quais no resolvidos, a Igreja que surge destaleitura est bem mais poderosa e segura, inclusive de seu poder poltico. A questo central, anosso ver, que durante a Primeira Repblica houve uma requalificao do que devia ser o poderda organizao eclesistica. O prprio Srgio Miceli indica tal avaliao, quando destaca aausncia de envolvimento poltico direto por parte de autoridades catlicas no Brasil. Talvez,

    justamente por isso, muitas interpretaes insistam na perda da influncia poltica da Igreja nesseperodo, embora reconheam seus avanos em vrios setores.

    A dificuldade est em ver que foi nesse momento que a hierarquia catlica discutiu econsolidou um tipo de estratgia para lidar com a poltica. Uma estratgia que recusou aformao de um partido catlico (desejado e considerado indispensvel por Carlos de Laet) e querecriminou todos aqueles que desejavam ser "polticos de batina". De certa forma, desejadavisibilidade ritual presente nos paramentos, sacramentos, festas religiosas, lugares santos etc.,acoplava-se a tambm agora desejada invisibilidade poltica. Igreja-Estado mantinham forteslaos, mas aquela no poderia nem deveria se expor aos conflitos e paixes prprios da arena

    poltica institucional. preciso assinalar que esta no uma opo universal, j que tio Chile,por exemplo, existiu um significativo partido catlico.

    Entretanto, absorvida esta orientao, a Igreja est munida de um slido recurso de poder parafundamentar sua militncia, sobretudo entre o laicato. A criao do Centro D. Vital e a

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    publicao da revista A Ordem, sob a direo de Jackson de Figueiredo nos anos 20, do aprecisa dimenso desta estratgia (Azzi, 1977; 1982 e Velloso, 1978). Longe de estar distantedos grandes acontecimentos do perodo, a Igreja - em especial atravs dos intelectuais catlicos -deles participou e para eles se preparou. Nos movimentos nacionalistas, nos debates sobre

    educao, eugenia, arte moderna e, em especial, na crtica crescente ao iderio liberal, a Igrejacatlica um interlocutor de primeira ordem. As dcadas de 30 e 40 comprovam o esmero e aeficcia do alto clero brasileiro.

    =====================================================================7. De gerao de 1870 gerao republicana: os Intelectuais projetam a Repblica doa seus

    sonhos

    No prefcio do j mencionado margem da histria da Repblica, organizado por VicenteLicnio Cardoso, este autor d-nos uma imagem preciosa da avaliao que os intelectuais tinhamsobre sua situao e papel histrico durante a Primeira Repblica:

    "Escrevem, porque no puderam fazer ainda outra coisa seno pensar, mas sentem com aprpria obra que vai surgindo (...) o irremedivel das situaes que vo criando: Prome-teus acorrentados pela opinio pblica que os esmaga com o maior dos castigos dehomens livres: o silncio horrvel de uma nacionalidade sem conscincia (...)." (Cardoso,1981, p.17)

    A Repblica fora, antes de tudo, uma "idia" no sentido forte do termo. Um projeto de aoabraado por uma gerao de polticos e intelectuais que, como "os mosqueteiros", por elelutaram na virada do sculo. Dcadas aps, outros intelectuais, de uma nova gerao que no viraa escravido nem o imperador, quer "construir" a Repblica, uma vez que em seu diagnstico

    muito se destrura e pouco se edificara. O projeto continuava a ser o da Repblica; a "vanguarda"responsvel pela educao da elite poltica continuava a ser a dos intelectuais. Apenas osintelectuais no eram mais os mesmos, e a Repblica tambm no.

    A primeira e talvez a maior das concluses que a literatura produzida sobre cultura na PrimeiraRepblica nos permite chegar a do papel de vanguarda poltica que os intelectuais seauto-atribuam, e a aceitao geral na sociedade brasileira de que a eles cabia a "misso" deiluminar as elites que construiriam o povo-nao. Esta literatura muito vasta e diversificada, e a

    principal razo para tal fato a densidade dos debates ocorridos neste perodo. Os mais variadostemas e as mais variadas posies esto presentes no campo intelectual. Tratava-se de enfrentar

    problemas concretos corno os de sade, educao, agricultura, imigrao, organizao do

    trabalho, servio militar, arte etc.As mltiplas respostas para o desenho de uma nova arquitetura poltica da sociedade noimpediam, contudo, um ponto de convergncia bsico. O diagnstico realizado pelos intelectuais o de uma nao sem conscincia, de uma sociedade sem povo, mas tambm sem elitescompetentes e capazes da grande tarefa histrica a que estavam destinadas. De tudo isso emergea centralidade do papel da "inteligncia" brasileira portadora da luz do saber, no importando, nocaso, o paradigma de definio deste saber.

    Um dos livros mais importantes sobre este tema, quer por seu pioneirismo, quer pelainfluncia que exerce nos trabalhos que lhe so posteriores A ilustraobrasileira e a idia deuniversidade (1959), do filsofo Roque Spencer Maciel de Barros. Corno o ttulo anuncia, deleo conceito de uma "ilustrao brasileira". Ou seja, de que em fins do sculo XIX formou-se no

  • 7/30/2019 GOMES; FERREIRA balano historiografico 1 rep 2

    24/38

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 244-280.

    Brasil um movimento ilustrado que guardou do iluminismo europeu do sculo XVIII uma crenaradical no poder da cincia e, portanto, no papel dos intelectuais, que iluminariam o pas atravsda cultura, da educao. A este movime