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ODALIA, Nilo. as Formas Do Mesmo - Ensaios Sobre o Pensamento Historiografico de Varnhagen e Oliveira Vianna, 1997

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Estudando as obras de Varnhagen e Oliveira Vianna, este livro reconstitui a trajetria de uma corrente historiogrfica brasileira ainda agora muito atuante, e que sintetiza, de mo do exemplar, os ideais e objetivos das classes dirigentes do pas, de ontem e de hoje.

Nesse pensamento, o povo brasileiro dese nha-se no horizonte como uma imagem amorfa e indefinida, qual um Estado tutelar poderia dar identidade, construindo a Nao sua imagem e semelhana. Para as classes dirigentes e para os pensadores que em gran de medida constituem-se como seus porta- vozes autorizados, o Estado tem tais poderes demirgicos por uma razo decisiva: ele o fantasma das fraquezas e impotncias dessas mesmas classes dirigentes. A massacrante pre sena do Estado nega a existncia de uma sociedade de classes que, se admitida, de mandaria tambm reconhecer um papel para os subalternos, na formulao de um projeto nacional.

Pode ser que no tenhamos lido Varnhagen e Oliveira Vianna, ou jamais tenhamos levado na devida conta seus argumentos. E por isso talvez sejamos levados a pensar que suas doutrinas no nos afetam. Mas as pginas deste estudo vo pouco a pouco revelando o quanto elas esto presentes em nossos modos de enquadrar a histria da sociedade bra sileira - mesmo, e talvez sobretudo, quando ignoramos suas fontes. As tradies, como os desejos, tm esta singular forma de dominar nossos atos e escolhas: pela ausncia aparente e pela fresta da porta. Se ainda uma palavra coubesse para destacar a relevncia de tal arqueologia das idias e imagens, vale a pena lembrar a frase de um erudito conservador, segundo a qual quem no compreende o pas sado est condenado a repeti-lo.

Reginaldo MoraesAS FORMAS DO MESMOFUNDAO EDITORA DA UNESPPresidente do Conselho CuradorAntonio Manoel dos Santos SilvaDiretor-PresidenteJos Castilho Marques Net oAssessor EditorialJzio Hernani Bomfim GutierreConselho Editorial AcadmicoAguinaldo Jos Gonalves Anna Maria Martinez Corra Antonio Carlos Massabni Antonio Celso Wagner Zanin Carlos Erivany Fantinati Fausto ForestiJos Ribeiro Jnior Jos Roberto Ferreira Roberto KraenkelEditor ExecutivoTulio Y. KawataEditoras AssistentesMaria Apparecida F. M. BussolottiMaria Dolores PradesNILO ODALIAAS FORMAS DO MESMOENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO HISTORIOGRFICO DE VARNHAGEN E OLIVEIRA VIANNA

Copyright 1997 by Editora da UNESPDireitos de publicao reservados : Fundao Editora da UNESP (FEU).Av. Rio Branco, 121001206-904 - So Paulo - SPTel./Fax: (011) 223-9560Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Odalia, Nilo, 1929-

As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiografia) de Varnhagen e Oliveira Vianna / Nilo Odalia. - So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1997. - (Ariadne)

Bibliografia.

ISBN 85-7139-142-4

1. Brasil Histria 2. Brasil Histria Historiogra

fia 3. Varnhagen, Francisco Adolfo de, Visconde de Porto Seguro,1816-1878 4. Oliveira Vianna, 1883-1951 I. Ttulo. II. Srie.97-0552CDD-981.0072ndices para catlogo sistemtico:1. Brasil: Historiografia981.00722. Historiografia: Brasil981.0072

minha esposa Therezinha, s minhas filhas Andra e Adriana e,como no poderia deixar de ser, aos meus netos Jlia Ianina e Lucas.SUMRIOPARTE 1

VARNHAGEN E A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

IntroduoFormas do pensamento historiogrfico brasileiro 111 Uma viso de mundo poltica 252 A nao branca e europia 433 O Estado: fora tuteladora e instrumento de formao da Nao 634 O homem branco brasileiro 89Concluso 707Referncias bibliogrficas 113PARTE 2OLIVEIRA VIANNA: o SONHO DE UMA NAO SOLIDRIA

Introduo 1111 Um conhecimento fundante da Histria do Brasil 1212 O espao brasileiro: o meio natural e a apropriao do espao geogrfico 1293 O Estado: fins, atribuies e limites 1414 A educao: um projeto pedaggico para construir a Nao solidria1575 Consideraes finais 163Referncias bibliogrficas173

PARTE 1VARNHAGEN E A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRAINTRODUOFORMAS DO PENSAMENTO HISTORIOGRFICO BRASILEIROPensar o fato historiogrfico no tem sido uma preocu pao muito corrente entre os escritores brasileiros, que se dedicam ao campo da histria. De maneira geral, nossos historiadores ostentam uma visvel negligncia em relao ao que lhes antecede como produo histrica. Esse estado de coisas ainda mais grave quando nos situamos no pla no da reflexo histrico-filosfica. Pouca coisa existe no campo da reflexo epistemolgica. Jos Honrio Rodrigues quase uma exceo; se no o , deve-se simplesmente ao fato de que, ultimamente, alguns trabalhos realizados no mbito das universidades vm secundar o esforo pioneiro do autor da Teoria da histria do Brasil.Talvez no seja exagero dizer que quem analisa a produ o de nossos historiadores tem a impresso de que o conhecimento histrico brasileiro sofre do mal de Ssifo, est sempre num processo infindo de reconstituio. O novo historiador assume sempre a postura de que tudo comea com ele. Falta-nos, sem dvida, uma histria da historio grafia, que poderia servir como uma ponte de ligao entre o que se faz e o que se fez. Infelizmente, os trabalhos j realizados no chegam a suprir tais lacunas, porque antes de mais nada so ou o estudo de um nico historiador, ou ensaios que muitas vezes apenas afloram a problemtica de uma histria da historiografia.

Ilhado, o historiador brasileiro v-se na contingncia de ignorar quase que completamente tudo o que lhe antecedeu, ou, quando muito, apenas conhecer dos historiadores ante riores as pginas que consubstanciam sua preocupao. Estud-los como um todo, tentar compreender o que signi ficou e/ou significa sua obra para a historiografia brasileira um esforo que poucos, muito poucos, acham tempo de intentar. Em contrapartida, estamos muito atentos ao que ocorre em outras naes e culturas, especialmente na fran cesa, procurando seguir-lhes o modelo e adotar prticas e problemticas que nem sempre se harmonizam com os objetivos de uma histria brasileira. Muito da histria colonial brasileira nada mais do que uma histria de Portugal, mal disfarada e muito pouco elucidativa em relao a ns mesmos; ou ento so trabalhos que, por tentarem pr-se excessivamente prximos do desen volvimento historiogrfico europeu, transformam a histria do Brasil em casos exemplares do processo de acumulao capitalista que se realiza na Europa etc.

Claro que esta uma viso provocadoramente simplista, por esquecer que muitas das melhores contribuies histo riogrficas nasceram talvez por essa mesma razo desse quase servilismo metodolgico e problemtico em que se realiza a prtica histrica de nossos historiadores. Estou convencido, contudo, de que esse centrifugismo uma caracterstica de nossa historiografia que deve ser combati da. No porque dela s nasam frutos pobres e bichados, mas simplesmente pelo fato de que ela s revela uma das faces de nossa situao.

H necessidade de compreendermos que nossa histria no condicionada simplesmente pelas convulses e trans formaes capitalistas externas, mas que, em seu interior, existe uma vida que reage, se adapta, repele, se amolda e se transforma, em razo de condies intrnsecas. O juste milieu pode parecer, com naturalidade, a resposta adequada a tais inquietaes, no fora a dificuldade em realiz-lo. Se um dia ele existir, dever decorrer, creio, do natural confronto entre a tendncia centrfuga de nossa historiografia e de sua

corrente oposta, de natureza centrpeta, tal como a conce bemos. Para que esse confronto possa ser um dia possvel, necessrio que voltemos nossas vistas para o que foi realizado em nossa historiografia, tentando sistematiz-la como um estilo de pensar o fato brasileiro, dando-lhe dignidade de experincia passvel de ser pensada por si mesma, e no por suas vinculaes, estruturais, sem dvida, com fenmenos gerais como o capitalismo, o imperialismo etc.

O que talvez se deva compreender que as condies internas em que se desenrola o nosso acontecer histrico so estruturas que, embora fortemente vinculadas e depen dentes do que acontece no mundo exterior, no deixam de ter uma certa autonomia, nascida de uma experincia his trica singular.

Essa singularidade deve ser pensada e, mais do que isso, deve ser buscada como uma condio de nossa existncia histrica. Se, de um lado, ela existe, e no podemos neg-la, pois seria ridculo aceitar uma dependncia absoluta de nosso viver histrico em relao a correntes histricas exte riores que teriam uma primazia na orientao de seu pro cesso de desenvolvimento; no menos verdadeiro, de ou tro, que, qualquer que seja nosso grau de dependncia das correntes histricas internacionais, de alguma maneira, os fatores que determinam essa dependncia se amoldam a nossas condies. No existe uma dependncia que seja absoluta, o que representaria, em ltima anlise, um mime- tismo histrico dificilmente sustentvel, tanto prtica como teoricamente. Existem dependncias e no-dependncia. A diferena fica a cargo das nossas condies objetivas de realizar a histria.

verdade que o conceito de dependncia excessiva mente contemporneo para que possamos aplic-lo de ma neira temporal indiferente; contudo, o fenmeno sempre existiu e, mais do que isso, sempre foi ressentido como um entrave a um legtimo modo de viver histrico brasileiro. A dependncia, sob os mais diversos e diferentes disfarces, incorpora-se ideologia que se forma na medida mesma em que se pretende dela fugir. Ela um dos elementos com os

quais se deve contar quando da anlise de nossas manifesta es culturais. A dependncia enquanto ideologia assumida, visando sua superao, aparece como uma realidade visvel que escamoteia, disfara e defrauda nossa realidade histrica vivida.

Os circunlquios com que procuro explicitar meu pen samento, em ltima anlise, so o prprio resultado do crculo vicioso em que parece estarmos sempre metidos toda vez que buscamos falar ou pensar em termos brasileiros.

Poder-se-ia dizer que estamos condenados a esbarrar com formas mimticas de agir e pensar, as quais, se levadas ao extremo de suas conseqncias, justificariam um ceticis mo quanto possibilidade de se alcanar o mnimo de autonomia, requerido para se poder falar em um pensar brasileiro. O que se intenta buscar, portanto, esse mnimo, que deve ser alcanado por meio de instrumentos delicados e sensveis, embora, por outro lado, devamos utilizar ins trumentos, pesados e grosseiros, para aferir sua qualidade. No universal que todos buscamos, a singularidade da expe rincia brasileira o elemento central. Pens-la, mesmo quando esse ato possa ser fruto de uma violncia, um dado salutar e necessrio. Poder-se- dizer, neste terreno, que prefervel errar por excesso e jamais por comedimento.

A anlise que se proponha os fins acima referidos, deve antes de mais nada ser atenta prpria sensibilidade do autor quanto ao problema da dependncia. Isto , ela deve procurar, num autor determinado, no aquilo que o nivela a todos, mas especialmente tentar descobrir o que nele o diferencia enquanto luta por afirmar-se como um autor brasileiro.

Para no ficarmos excessivamente em generalizaes, tomemos um exemplo: Capistrano de Abreu. At onde vai meu conhecimento historiogrfico, considero-o caso nico entre os historiadores brasileiros. uma figura isolada, que conseguiu dar contornos precisos a uma concepo da his tria brasileira centrada, exclusivamente, numa viso india nista de nossa sociedade. Sua coerncia, ao construir uma interpretao da histria brasileira centralizada no indgena

e em sua sociedade, foi porm uma limitao que truncou cedo demais sua carreira de historiador.

ainda sua coerncia que permite que possamos dele dizer o que algum j disse de Michelet: o criador de uma corrente historiogrfica to ligada s suas qualidades que no comporta seno um nico membro: ele prprio.

No se pode esquecer que de Capistrano se originou uma tradio de estudos histricos ligados aos problemas dos caminhos e dos povoamentos e que grassaram como uma epidemia entre os nossos eruditos provincianos. Contudo, jamais se procurou decodificar o sentido que Capistrano atribua a esse tipo de estudo. Para tanto seria necessrio ligarem-se seu ensaio "O descobrimento do Brasil - povoa mento do solo - evoluo social", no qual, entre outras coisas, faz uma histria universal dos caminhos percorridos pelo homem na busca de novas fontes de comrcio, e sua concepo indianista de nossa sociedade, que tem na socie dade indgena sua matriz e termo de evoluo.

A histria, contudo, no deu razo a Capistrano, o que ele prprio acabou por perceber, fechando-se num mutismo e num pessimismo que o levaram, ao final da vida, a um ceticismo radical. O que parecia impossvel a Capistrano aconteceu: nos trpicos, em condies ambientais tidas como desfavorveis, que aparentemente haviam condenado a sociedade indgena a ser desmembrada, desarticulada, nasceu uma sociedade branca que buscou, e ainda busca, cercear os efeitos entrpicos que se assimilam no s ao universo fsico em que se instala, mas tambm s condies socioeconmicas de sua colonizao.

Se, de um lado, Capistrano de Abreu o exemplar nico de uma interpretao histrica que privilegia o indgena e sua sociedade como centro irradiador de suas preocupaes, de outro, ele se inscreve no extenso rol de historiadores brasileiros que, submissos e dependentes das teorias impor tadas da Europa, positivismo, spencerismo, teorias raciais etc , se dilaceram na dicotomia de, ao mesmo tempo, terem de atender s imposies tericas que condenavam o Brasil a um triste destino, e contriburem para que a profecia

altamente negativa de homens como Lapouge, Gobineau, Buckle etc. no se realizasse; o Brasil deveria constituir-se uma Nao. nesse quase ato de vontade, em que se nega um destino prefixado pelos iluminares europeus, que pode mos encontrar o que existe de criador e inventivo em homens como Oliveira Vianna, Slvio Romero e outros, pois, no tendo foras nem morais nem intelectuais para renegarem o que recebiam como quinta-essncia do cientificismo eu ropeu, deram tratos bola para conciliarem-na com a reali dade do pas, que se formava diante de seus olhos.

Em seu livro Black into White, Skidmore descreve a situao desses autores como de perplexidade. Creio que o termo convm; contudo, o que no se pode ignorar, sob pena de falsear a interpretao que se pode fazer de suas obras, que as solues que aventam esto profundamente arraiga das em nossa histria. necessrio que se saliente o fato de que, se o instrumental intelectual de que se utilizam originrio da Europa, assim como o tipo de argumentao de que lanam mo tem como fundamento primeiro as teorias em que predominam os fatores raciais e ecolgicos, os resultados a que chegam s podem ser compreendidos se minimizarmos essas determinaes de ordem terica e bus carmos compreend-los como profundamente arraigados em nossa histria. Ainda que esse arraigamento permanea obscuro, incerto e desconhecido para os autores.

Uma histria do pensamento histrico brasileiro que apenas se detivesse na contemplao das servides e depen dncias de nossa intelectualidade aos padres europeus do fazer cincia jamais conseguiria abrir as sendas da descoberta das chaves que nos permitem compreender com maior propriedade o pensamento dos Capistrano, dos Oliveira Vianna, dos Slvio Romero etc. Uma tal histria apenas abriria acesso a uma face do problema, a dependncia cul tural, trao no relevante na medida mesmo em que no a situemos como uma opo deliberada, a fim de superar as presumveis impossibilidades de realizao europia de um pas-continente tropical, cujo destino parecia j estar traa do pelas teorias de Buckle, Lapouge, Gobineau etc. Esse

gesto antropofgico profiltico e analptico. A assimilao das impossibilidades faz-se na forma de antdoto, primeiro passo em direo sua superao.

Quaisquer que tenham sido as vicissitudes e/ou incon gruncias que possam tais autores ter experimentado, no nvel terico, o que parece ser inegvel que as solues a que chegam so sempre a expresso da experincia histrica concreta de uma sociedade que se define, desde o primeiro momento, por intermdio dos homens que detm o poder poltico e econmico, resolutamente em favor de uma so ciedade branca europia. Excetuando Capistrano de Abreu, coerente desde os primrdios de sua obra com os postulados tericos que a fundamentam e que acabaram por lev-lo ao impasse j observado, os demais historiadores brasileiros citados vo extrair da experincia histrica da relativamente nova sociedade brasileira os elementos de uma interpretao ideolgica que amolda as peculiaridades de nosso ambiente racial e geogrfico s condies de teorias que condenavam a priori qualquer esforo de edificao de uma nao nos trpicos.

Em Oliveira Vianna, a diferena entre a sociedade bra sileira e a europia est situada na grande propriedade; ela que modela um novo tipo de homem, visto que o portugus um homem da pequena propriedade, que necessariamente se transforma ao se estabelecer numa regio em que os amplos horizontes so a forma e o contedo da vida socio- econmica. Contudo, e esse o elo da cadeia perdido, o primeiro homem portugus que aqui aporta basicamente um desbravador e um conquistador, que no outro seno o homem "louro, alto, dolicide, de hbitos nmades e conquistadores".1 Sua presena na nova terra, modificando- o em seus hbitos e costumes, prepara o caminho para a imigrao "dos branquiides ou dolicides brunos de pe quena estatura", sedentrios.21 OLIVEIRA VIANNA, 1956, p.125. Para maiores esclarecimentos, ver ensaio sobre Oliveira Vianna.

2 Ibidem, p.125 .

Cria-se assim a fico de uma aristocracia ariana que impregnar nosso desenvolvimento histrico, conciliando teoria e prtica histricas.

A conciliao faz-se pela institucionalizao da expe rincia histrica do modo como ela aparece a esses autores, como fonte de legitimidade das condies em que ela se realiza.

As condies de nossa experincia histrica, embora basicamente herdadas de nosso estado colonial, no podem restringir-se simples constatao desse fato.

A herana colonial metamorfoseia-se com nossa inde pendncia poltica, transformando-se ento nas condies de criao de um povo e de uma Nao. O ex-estado colonial, por mais limitativo que seja em termos de experincia hist rica, deve providenciar os alicerces da nova Nao, e passa a ser encarado como a base concreta em que se apiam os funda mentos da nacionalidade, ainda mais prxima de um em brio do que de um organismo plenamente constitudo.

O desenvolvimento desse embrio deve ser moldado, vigiado e controlado, tanto em razo do que vem da herana colonial quanto do que a existncia de uma Nao em projeto deve acarretar em termos de ideais, sentimentos, valores e obrigaes.

A herana colonial lida naquilo que parece mais im portante no processo de construo do pas. Em uma leitura, o colonialismo portugus no Brasil tem como aspecto rele vante o fato de transmitir Nao emergente um modo de produo escravista, que tanto quanto no perodo colonial permite sua unidade.3 Em outra, essa estrutura econmica quase que totalmente ignorada ou, ento, assimilada a uma de suas conseqncias, a estrutura racial realidade mais visvel e palpvel.

3 Essa unidade precria sob diversos aspectos; contudo, o elemento central dessa precariedade parece estar no fato de, ao tempo da independncia, os dois extremos do pas no estarem to vinculados ao modo de produo escravista quanto a regio que se estende do Nordeste ao Sudeste.

Qualquer que seja, porm, a leitura feita, o que importa a realidade que se pretende tornar visvel e com a qual, e pela qual, se formam as representaes de todos os que se preocupam com a tarefa de urdir os fundamentos da Nao e da nacionalidade.

E de observar que pouca ou nenhuma ateno dispen sada estrutura do poder poltico que nos legada pelo perodo colonial.

Essa estrutura de tendncia fortemente centralizadora dever desempenhar um papel significativo em todas as regies em que o modo de produo escravista, no perodo colonial, no se instalara de maneira segura e permanente.

O centralismo governamental, caracterstica bsica dos governos imperiais do pas independente, funcionar como um tampo toda vez que a unidade periclitar e a ameaa de fendas se oferecer.

E sobre a estrutura racial, que dissimula uma realidade de estrutura de classes, que vo convergir todos os esforos de interpretao da nossa histria de parte significativa dos intelectuais brasileiros do sculo XIX e das primeiras dca das do sculo XX, demonstrando de maneira eloqente que, em primeiro lugar, uma opo de sociedade j havia sido feita, tendo como paradigma a sociedade europia e, em segundo, que essa opo era tambm uma forma de integra o a essa sociedade. Integrao que demandava uma meta morfose dos elementos esprios da estrutura racial, ndios e negros, pelo remdio da fuso ou miscigenao racial.

Contudo, se num primeiro momento, a pura e simples fuso racial parece conduzir pacificamente opo feita, num segundo, a rejeio sofrida por essa soluo tranqila pela comunidade cientfica europia qual repugna o hibridismo racial do homem brasileiro obriga a uma reavaliao do nosso passado colonial, de maneira que se amolde s condies impostas pela opo feita. Assim, se a opo por um modelo europeu de sociedade parecia ser apenas conseqncia natural de nossa experincia histrica, os obstculos tericos que surgem da comunidade cientfica

europia devem ser analisados, ratificados e, principalmen

te, retificados, em razo daquela mesma experincia.

Slvio Romero, em sua Histria da literatura brasileira, ao apresentar um declogo de concluses ao final do captulo sexto ("Raas que constituram o povo brasileiro o mes tio"), arrola, entre outras, as seguintes caractersticas: "1a) O povo brasileiro no corresponde a uma raa determinada e nica; 2a) um povo que representa uma fuso; um povo mestiado; 3a) Pouco adianta por enquanto discutir se isto um bem ou mal; um fato e basta".4A realidade visvel expressa de modo taxativo o fio condutor de seu pensamento, isto , o Brasil um pas mestio e como tal deve ser encarado e analisado. No se pode retificar esse fruto de nossa experincia histrica, tem-se apenas de constat-lo.

Contudo, se essa realidade uma realidade sobre a qual nada podemos, o mesmo no acontece com o futuro, pois este pode e deve ser amoldado segundo novas convenincias, no, exclusivamente, ditadas por uma realidade histrica j vivida, mas por um projeto de nao a ser constituda. Para isso necessrio que se retifiquem as teorias que condenam o Brasil como uma futura nao. Embora o pensamento de Romero seja devedor e limitado pelos prejuzos cientficos ligados aos nomes de Buckle, Comte etc. que o levam a valorizar na anlise histrica os fatores do meio e raciais, sua preocupao a de proceder a uma srie de retificaes nos conceitos emitidos por esses autores, especialmente em relao a Buckle, com o objetivo de encontrar no s um modus vivendi adequado entre teoria e prtica, mas principalmente em tentar superar os fatores negativos do meio e da raa, atravs do fator humano, ou seja, pelo novo homem brasileiro.

Por outro lado, o estudo da mesologia comea apenas a esboar-se e ainda no se sabe totalmente como os meios modificam os povos. Tudo isto certo e -o tambm que estes, por sua parte, reagem contra aqueles. O meio no funda uma

4 SLVIO ROMERO, s. d, p.104.

raa; pode modific-la e nada mais. Deve-se, neste assunto, contar com o fator humano, isto , com uma fora viva prestes a reagir contra todas as presses por intermdio da cultura.5As ambigidade s e contradies em qu e se debat e o pensament o d e Slvio Romer o nascem exatament e d o com promiss o qu e lhe parece necessrio estabelecer entr e as teorias cientficas europias, em relao raa e ao meio , e as condies raciais herdadas da colnia.

O futuro deve significar para a Na o a superao do entrav e qu e o mei o ergu e n o caminh o d e sua realizao.

N o Nov o Continente , um a nova civilizao deve ser criada e, embor a smil e da europia, deve conte r em si elemento s diferenciais ligados raa.6Superar os bices qu e se anteponha m nesse caminh o deve ser um a tarefa a ser realizada, primeiramente , pelo diagnstic o de nossas fraquezas: deve-se possuir um a cons cincia plen a desses entraves , pois as barreiras fsicas e morai s qu e se antepe m ao home m brasileiro no desen volviment o de sua misso devero ser superadas um a vez qu e se conhea m as razes de suas prprias debilidades .

U m at o d e vontad e poderoso element o meno s biol

gic o do qu e cultura l - deve presidi r nosso destin o histrico :

Ns os brasileiros no pensamos ainda muito, por certo, no todo da evoluo universal do homem; ainda no demos um impulso nosso direo geral das idias; mas um povo que se forma no deve s pedir lies aos outros; deve procurar ser-lhes tambm um exemplo. Ver-se-em que consiste nossa pequenez e o que deveremos fazer para ser grandes.7O at o de vontad e em qu e se resum e o futuro histric o da Nao , assenta-se na desmedid a confiana qu e se credit a

5 Ibidem, p.84.

6 "O mestio o produto fisiolgico, tnico e histrico do Brasil, a forma nova de nossa diferenciao social" (Ibidem, p.103).

7 Ibidem, p.43.

cincia como panacia adequada s incertezas que parecem abundar na rota da Nao.

A cincia, assim, tem uma dupla representao: da mesma maneira que um despertar de conscincia em relao ao que fomos e ao que somos, a ela tambm que se outorga o privilgio de abrir as portas ao povo brasileiro para que surja no horizonte uma nova Nao, antes produto da cultura do que das condies fsico-geogrficas ou raciais da regio em que se estabelece.

"Eis ai [Slvio Romero refere-se a um texto de Taine] a que ficou reduzida pelo clima da ndia a raa mais progres siva e inteligente da terra. Se o nosso cu no to dspota, no deixa de s-lo tambm at certo ponto. Conjuremos sempre por novas levas de imigrantes europeus a extenuao de nosso povo: conjuremo-la por meio de todos os grandes recursos da cincia. E esta a lio dos fatos." 8A lio dos fatos consiste em amalgamar-se o resultado da experincia histrica da colnia aos imperativos e conquis tas da cincia europia, de modo que possa conduzir o pas em direo ao paradigma escolhido, a sociedade europia.

Pode-se perceber, creio, a diferena que medeia entre Capistrano de Abreu e Slvio Romero: o primeiro coerente e fiel aos postulados tericos que abraa; menos flexvel em suas anlises e crenas do que Romero, acaba por entrar num beco sem sada em que s pode optar pela impossibilidade da sociedade brasileira.

Slvio Romero, e mais tarde Oliveira Vianna, ao contr rio, faz de sua conscincia e conhecimento do cientificismo europeu o trampolim que lhe permite saltar por cima de suas prprias contradies. Abeberar-se da cincia europia uma condio essencial para vencer os escolhos que a histria e a natureza colocaram no caminho do Brasil em busca de sua identidade nacional.

A inoculao do cientificismo de procedncia europia na corrente sangnea de nossa histria tem por objetivo

8 Ibidem, p.82.

criar os anticorpos necessrios para que o organismo da Nao em formao possa eliminar, no processo de desen volvimento, as molstias devidas natureza, estrutura racial e experincia histrica do colonialismo.

Cincia e conscincia fundem-se nessa viso histrica em que o elemento primeiro o compromisso com a elabo rao das bases da Nao e da identidade nacional.

As formas de que se revestem as aproximaes sucessivas ao tema no chegam a diferenar os objetivos finais a que se pretende chegar. A leitura atenta das obras de Slvio Rome ro, Oliveira Vianna e Gilberto Freyre mostra que seus esforos para delimitarem ou definirem um homem brasi leiro no podem ser diferenciados pelos objetivos finais. Cada um deles contribui com anlises e argumentaes, cuja sofisticao terica ou metodolgica pode variar, mas elas sempre reafirmam, por mais especiosas que possam ser, a opo feita: uma sociedade europia, basicamente, com traos diferenciais indianizantes ou africanizantes, os quais no pem em risco, em nenhum momento, a opo maior.

As formas variam, ganhando em alguns casos por exemplo, a anlise de Gilberto Freyre da contribuio do negro, centrando-se sobre o escravismo maior profundi dade, mas nunca chegam a opor opo feita inicialmente uma nova opo. Elas so formas variveis que se dirigem ao mesmo, uma sociedade branca, europia.

A preocupao por uma sociedade branca e europia nasce no sculo XIX. A permanncia dessa preocupao durante as primeiras dcadas do sculo XX deve ser credi tada ao fato de que o Brasil como nao no parecia uma realidade irreversvel.

Os problemas herdados da colnia no haviam sido satisfatoriamente resolvidos; os conflitos, reais e latentes, em regies no suficientemente integradas ao todo da Na o, eram ainda suficientemente expressivos para pr em dvida a viabilidade do Brasil como Nao.

Capistrano, personalidade sensvel ao descontnuo e ao conflitante, em estudo sobre a colnia do Sacramento, no se faz de rogado em prever a separao do Rio Grande do

Sul, que acabaria por pertencer "a uma raa livre de todos os crimes e abominaes decorrentes do Tratado de 1750".9Embora esse sentimento separatista no tenha sido parti lhado pelos outros historiadores e seria necessrio reafirmar ainda uma vez o particularismo das concepes capistranianas, no se pode pr em dvida que o separatismo foi sempre uma preocupao constante dos governantes brasileiros, que vai se refletir em toda a historiografia brasileira do sculo XIX e incios do sculo XX. Contudo, o que nos importa aqui, ao traar de maneira genrica um quadro da historio grafia brasileira de Slvio Romero a Oliveira Vianna e Gilberto Freyre a inteno de pr em relevo que os temas por eles tratados, mais sofisticadamente, j haviam sido apresentados por Varnhagen.

Nosso estudo sobre Varnhagen. Sobre o historiador que podemos considerar o fundador de uma corrente histo riogrfica brasileira, ainda hoje atuante, na medida mesmo em que em Varnhagen o pensamento burgus brasileiro encontrou o esprito que, embora falto de imaginao, conseguiu realizar uma sntese admirvel dos ideais e obje tivos das classes dirigentes que tomaram a seu cargo a construo da Nao.

9 CAPISTRANO DE ABREU, 1976a, p.55.

1UMA VISO DE MUNDO POLTICA1 O processo de nossa independncia poltica

Um dos fatos relevantes da histria brasileira do sculo XIX todo o processo histrico que se abre, nos albores desse sculo, com a transmigrao da famlia real portuguesa para as terras brasileiras e que culmina com nossa independncia poltica.

Aos acontecimentos polticos que marcam nosso sculo XIX, no indiferente o fato de ele se inaugurar com a presena da corte real portuguesa no Rio de Janeiro,. Para a colnia, essa presena marcante, porque significa sediar o poder poltico que, at ento, lhe era longnquo e inacess vel. E verdade que esse poder poltico - concentrado nas mos da decadente dinastia dos Bragana estava desgas tado e nada mais era do que destroos e uma plida carica tura do poder absoluto de que se achavam investidos os monarcas do sculo XVIII.

A monarquia absoluta portuguesa - minada e derruda tanto pelos acontecimentos revolucionrios que marcaram o final do sculo XVIII e o incio do sculo XIX, quanto por uma exausto biolgica que destrua sua capacidade de ao

inaugura nosso sculo XIX no trazendo em sua bagagem os ares benficos de uma renovao. Pelo contrrio, ela que buscava num ambiente novo e jovem o sopro de vitalidade

que lhe fazia falta, e as escoras de que necessitava para que seu poder e autoridade polticos no desaparecessem pela simples fora da inrcia.

E um paradoxo digno de ser notado que nossa histria poltica se abra num mundo conturbado por idias e realizaes revolucionrias exatamente por uma fora e um poder poltico que encarnavam o passado em vias de destruio e banimento. Superada pelo tempo, desgastada pelas pr prias condies em que se deu o translado da famlia real, a corte portuguesa chega ao Rio de Janeiro trazendo visveis seus sinais de fragilidade. Contudo, essa fragilidade osten siva da monarquia portuguesa um dos aspectos que se devem reter, quando se pretende compreender todo o pro cesso poltico que se desencadeia com sua presena e que tem como resultado final nossa independncia poltica.

Transformando o Brasil em cabea de um Imprio que, mesmo em decadncia, ainda significativo, a presena da famlia real estimula e incentiva as atividades polticas, inicialmente monopolizadas pelos membros portugueses da corte, mas que, em relativamente pouco tempo, passam a sofrer pesada influncia dos elementos brasileiros, cujos interesses no se coadunam e so mesmo opostos queles defendidos pela frao portuguesa.

A longa permanncia de D.Joo VI em terras brasileiras deve ser creditada, em parte significativa, ao fato de nossa independncia poltica no ter se realizado em termos de idias e solues revolucionrias. Pode-se atribuir, tambm, em parte, sua presena o fato de nossa independncia se realizar num vazio de idias, ligadas a um iderio poltico-filosfico que definisse ou, pelo menos, tentasse definir os rumos de uma nova Nao. Muito esparsamente, podemos detectar, aqui ou ali, idias que ultrapassem o nvel de ao imediata, e mesmo a frase - pronunciada ou no por D. Pedro I: Independncia ou morte - que se tornou o smbolo e o gesto de nossa indepen dncia se esvazia exatamente por cair num terreno rido, inculto e estril, de maneira que o primeiro de seus termos no encontra eco em ideais que a justifiquem e a sustentem e o segundo, numa realidade que afasta sua possibilidade.

A presena da famlia real representou, pois, de um lado, um obstculo intransponvel no caminho daqueles que sonhavam com uma Nao jovem, moderna e fiel ao iderio revolucionrio nascido nos Estados Unidos da Amrica e na Frana, mas, de outro, ela significou tambm a possibilida de - reforando o trao anterior assinalado - de harmoniza o dos interesses de proprietrios de terra e de escravos, de maneira a conduzi-los a realizar a transio da colnia ao pas independente sem que se produzissem aqui os trauma tismos que se produziam na Amrica espanhola.

A independncia, analisada sob esse aspecto, nada mais do que a realizao de um pacto e de um consenso em que se achavam envolvidos to-somente os senhores de terra e de escravos e que visava preservar o que lhes interessava basicamente, a saber, um modo de produo escravista e a propriedade da terra. Assim, os regionalismos se acomo dam, momentaneamente, e os grupos sociais, limitados e pouco numerosos, que manifestavam idias revolucionrias puderam ser facilmente dominados.

O carter no traumtico da transio da colnia ao pas independente tem sido de maneiras diversas interpretado em nossa historiografia: para alguns de nossos historiadores, a ausncia de conflitos generalizados e o fato de se ter preservado a unidade brasileira so motivos suficientes para verses apologticas em favor de D. Joo VI,1 ao qual atribuem e emprestam virtudes de descortino poltico e de estadista que sua pusilanimidade recusa; em outros historia dores, o que temos uma mal disfarada tendncia a uma interpretao catastrfica da histria,2 confundindo-a la mentavelmente com pseudoposies marxistas ou marxi- zantes, que os incentiva a buscar conflitos e participaes

1 Ver, especialmente, Oliveira Lima, D. Joo VI no Brasil.2 Confunde-se nessa interpretao, entre outras coisas, um processo revolucionrio de substituio de classes dominantes com um pro cesso de independncia de um pas. Nada existe que possa vincular efetivamente um processo ao outro. O aspecto revolucionrio num processo de independncia de um pas deve ser buscado diferen temente.

populares que jamais ocorreram no nvel em que eles o desejariam. Desmentindo uns e outros, tudo parece indicar que a interpretao mais prxima dos fatos a de ver o movimento da independncia como um movimento no trau mtico, cuja caracterstica maior o de ser conduzido por uma cpula dirigente que em nenhum momento abriu mo de suas prprias prerrogativas, esvaziando-se assim as pos sibilidades de uma independncia armada e revolucionria.

A ser correta tal interpretao, a famlia real portugue sa, por sua presena em terras brasileiras, bifurca sua influn cia, no que tange independncia: de um lado, impede e neutraliza toda tentativa de soluo revolucionria que trouxesse em seu bojo a idia de orientar a nova Nao e a nova sociedade para caminhos em que a propriedade fundiria e a existncia da mo-de-obra escrava desaparecessem; de outro, ela age como agente catalisador, no deixando de se apresentar como uma fora de mediao, harmonizao e racionalizao de esforos para a independncia e a formao da nova Nao.

O pas, uma vez independente, revela, de imediato, o vazio ideolgico em que se desenvolvera nosso processo de emancipao. Torna-se necessrio preencher esse espao, por meio de uma ao deliberada e racional, orientada no senti do de construir o que no havia. Se, inicialmente, a ausncia de um iderio poltico, a absoluta falta de um projeto de Nao puderam funcionar como um fator altamente posi tivo para a realizao da emancipao poltica, nos estreitos limites demarcados pelos interesses das classes proprietrias de terra e de escravos, uma vez consumada a emancipao, avultam os problemas da construo da Nao. Esses pro blemas no sero vistos da mesma maneira pelos diversos grupos sociais e s ento aparecem e tomam corpo as divergncias regionais. Em conseqncia, comeam tam bm a se estruturar com maior nitidez e desembarao os ideais dos diversos grupos sociais no que se refere ao que pretendiam quanto aos destinos do pas.

Pode-se aventar, tambm, com um grau bastante razovel de plausibilidade, que os acontecimentos que se sucedem

independncia decorrem da incompatibilidade existente entre o pacto da independncia e determinadas regies do pas em que o modo de produo escravista ou no havia penetrado ou no havia se estabelecido com suficiente fora e vigor. Os regionalismos que aparecem de maneira viru- lenta no perodo ps-independncia podem ser assim com preendidos como um processo de defasagem e de falta de integrao em relao ao modo de produo dominante.33 No parece ser por outra razo que os dois extremos do pas se constituiro problemas maiores para a unidade nacional. As revolu es do Sul no so apenas um fenmeno de fronteiras: elas so, antes de mais nada, a expresso clara de uma impossibilidade - conciliar, no interior do pas, os interesses antagnicos de proprietrios de terras e de escravos, de uma parte, e de proprietrios fundirios que no dependiam to exclusivamente da mo-de-obra escrava, de outra. Em razo do tipo de colonizao que se desenvolveu no extremo sul do pas, alicerado na apropriao de terras que oferecia como fonte de explorao o gado selvagem, criaram-se condies de produo que, se no chegam a ser incompatveis com a mo-de-obra escrava, pelo menos, no permitem que as relaes de produo possam ser iguais quelas que se desenvolveram nas regies mineradoras, do acar e do caf. significativo observar-se que, tanto no Sul do pas quanto no Norte , especialmente na regio amaznica, a colonizao se faz atravs do que se poderia considerar um retrocesso do branco em relao ao modo de produo. Num a e noutra regio, a coleta predominante no primeiro estgio de colonizao. Quanto regio amaznica, o processo de degradao mais significativo, pois l se verificam ensaios de introduo de modo de produo escravista que no vingam e suas populaes regridem - para sobreviver - no nvel de simples coletores. Capistrano j o havia notado: "O caf levado de Caiena por Francisco de Melo Palheta pareceu despertar o torpor da populao. Pouco tempo durou a experincia; preferiu-se a apanha de produtos florestais, cravo, canela, cacau, salsa, mais rendosos e criados lei da natureza" (1976b, p.120) ou "Maranho comeou a decair desde ou antes do governo de Gomes Freire, e explica-se o fato pelo abandono da agricultura, devido a produtos florestais seme lhantes aos do Par. Ao cravo, canela, castanha sucumbiram os engenhos" (p. 122). O fenmeno no se repetiu no extremo sul, entre outras razes, pelo fato de que o simples arrebanhamento do gado selvagem foi substitudo pela criao. Tanto quanto So Paulo, que, no perodo colonial, permaneceu como uma regio marginal em

Pode dizer-se que a integrao nacional se periodiza em razo da constituio e expanso dos dois modos de produ o - o escravista e o capitalista, e a este ltimo deve ser creditada a integrao final, que se realiza ainda nos dias de hoje, pela da conquista da regio amaznica.

A independncia pode ser considerada, desse ponto de vista, uma continuidade em relao ao perodo colonial que lhe lega a herana de um modo de produo e uma forma monrquica de governo; contudo, no se poderia realmente compreender o que representa para o Brasil sua emancipao poltica se no se visse nela um elemento de descontinuida de originrio do fato de que a liberdade poltica traz consigo uma srie de problemas relacionados com a emer gncia do pas independente.

A ruptura dos laos de dependncia poltica em relao metrpole traduz-se numa reorientao da economia bra sileira, no sentido de que ela deve ser reestruturada em razo da autonomia relativa, tambm que se estabelece, no interior do pas, para os grupos sociais economicamente dominadores.4No nvel poltico, os problemas da Nao tomam maior consistncia, pois agora se impe a necessidade de estruturar-se um poder suficientemente forte para conduzir a nova Nao e que corresponda, tambm, ao pacto da independncia, para assegurar os interesses econmicos da classe dominante.

relao ao eixo predominante - regies nordestina e mineradora , vindo a se integrar definitivamente fora unificadora do modo de produo escravista somente no fim do sculo XVIII e incio do sculo XIX , tambm o extremo sul comea a se integrar no pas medida que vai acontecendo o desmoronamento do modo de produ o escravista e sua paulatina substituio pelo modo de produo capitalista. A unidade brasileira assim conseguida lentamente e em etapas que se caracterizam pelo progressivo desenvolvimento de modos de produo diferentes, em que cada um deles desempenha um papel importante e especfico na tarefa ainda atual de integrar regies num pas de carter continental.

4 FLORESTAN FERNANDES, 1975.

No plano poltico-ideolgico, os problemas essenciais so: traar o trajeto que vai da colnia Nao e da massa heterclita herdada da colnia ao povo.

A sobrevivncia do pas independente se confunde, pois, com a capacidade poltica de suas classes dirigentes reali zarem com sucesso a misso poltica fundamental do sculo XIX estruturar e tornar efetivo um projeto de Nao.

Essa a tarefa primordial, o trao predominante do nosso sculo XIX. Construir uma Nao com o material que nos foi legado por um passado colonial que no pode ser esque cido nem abominado, pois dele resultam nossas condies de sobrevivncia.

2 Os elementos de uma viso de mundo poltica: a Nao, o Estado, o Homem Brasileiro

O sculo XIX d a impresso, s vezes, de ser uma vasta e rica cornucpia, de onde se retiram, conforme o gosto e o paladar de cada um, sonhos ou pesadelos. Amado ou odiado, ele est sempre presente sob nossos olhos; porm, fora de tanto t-lo sob nossos olhos, que as anlises e interpreta es que dele possumos na mesma medida o revelam e o escondem. Se o que dizemos tem relao imediata com o sculo XIX europeu, ainda maior o seu peso em relao nossa prpria histria. Ele uma presena acachapante, muitas e muitas vezes um fardo excessivo, cuja influncia dificulta e embaraa o encontro de novos caminhos e novos ideais. No importa em qu e no qu falamos ou pensamos, cedo ou tarde acabamos por nos meter em desvos e trilhas subterrneas que quele perodo nos conduzem.

E bem possvel que essa dependncia em que nos situa mos em relao a ele esteja intimamente ligada ao fato de que o processo histrico de longa durao, desencadeado em princpios desse sculo, no tenha ainda terminado em muitos de seus aspectos. E bem possvel que essas sobras

renitentes do sculo XIX sejam por ns vividas como um pesadelo interminvel, porque, assustados, somos obrigados a conviver com a possibilidade de reconhecer que no che gamos a concretizar o sonho to acalentado de sermos uma Nao.

Em verdade, esse pesadelo , antes de mais nada, a expresso do divrcio existente entre uma Nao subterr nea que se constitui uma quase clandestinidade, lastreada quase que exclusivamente no elemento menos claro, e mais terrivelmente enganoso e manobrvel, embora possa vir a ser o mais pujante o pertencer-se a uma comunidade e a Nao que nasce de uma tutela mascarada na forma de uma imposio ideolgica de classes dirigentes que encon tram na reiterao do processo de construir a Nao uma maneira de perpetuar-se no poder.

por isso que nosso sculo XIX no pode ser completa mente desvinculado do pensamento racionalista do sculo XVIII, pois seus projetos nasceram, em grande parte, dos ideais originrios do chamado Sculo das Luzes.

O mesmo racionalismo tecnocrtico que perpassa pelas pginas da Histria geral do Brasil de Varnhagen, na sua nsia de tudo consertar, de tudo prever e projetar, numa con fiana ilimitada na capacidade do homem de conduzir sua prpria histria, mostra seu rosto nos dias de hoje, em bora essa razo se apresente mais desenvolta e cruel do que no sculo XVIII.

Dessa maneira, quando escrevemos que no podemos separarmo-nos do sculo XIX, talvez fosse mais correto dizer que no podemos desligar-nos de projetos e solues enco mendados ao sculo XVIII, mas que formam o que ns chamamos de sculo XIX brasileiro.

O exemplo mais flagrante do que vimos dizendo pensar sobre o que tem significado o Estado entre ns desde que se constituiu como Estado de um pas independente. Ele menos a expresso do povo do que o instrumento de formao de um povo; um Estado que no decorre da vontade, consciente ou inconsciente, de um povo, mas, ao contrrio,

um Estado que busca sua legitimao na sempre reiterada misso de constituir o povo que o deveria sustentar.

O desencontro poltico que podemos observar em toda nossa histria de pas independente parece fluir exatamente de que jamais Estado e Nao se colocaram no mesmo nvel, jamais puderam abrigar em seu seio a totalidade dos indi vduos que os deveria constituir.

A Nao legal e a Nao subterrnea jamais se identifi caram, correndo ambas em circuitos paralelos e fechados, sem vasos comunicantes, e quando estes aparecem so ape nas com uma nica direo daquela para esta.

Nao e Estado foram sempre concebidos como tarefa de uma minoria culta e esclarecida que deveria reger os destinos de ambos, orientando, corrigindo, pela educao, pela fora, a massa considerada incapaz e incompetente de se reconhecer e de reconhecer, no projeto idealizado pela camada dirigente, seu destino. Ao povo resta sua nica arma, a indiferena, o desinteresse. Em alguns perodos, essa letargia e essa impossibilidade de ao que acompanham nosso povo so desmentidas e podemos ento sentir sua presena em movimentos de cunho essencialmente regiona lista Canudos, Farrapos ou ento em movimentos que galvanizam a Nao a Revoluo de 30.

Nesse quadro geral que avulta a importncia do nosso sculo XIX. Foi nele que foram lanados os projetos de nossa nacionalidade nos termos em que vigoram at hoje; nele que se forma uma ideologia de dominao que se filtra na elaborao de um projeto de Nao, que se mantm at o momento atual. Esta uma caracterstica fundamental, pois a ideologia de dominao que se desenvolve no Brasil, desde o sculo XIX, tem como um de seus mecanismos mais eficientes de preservao a preocupao de obscurecer e camuflar suas origens e apresentar como novo aquilo que velho de mais de um sculo.

O sculo XIX o momento de nossa independncia, ele marca o incio de um processo lento e de longa durao que busca forjar a nacionalidade e a Nao. E um problema comum do sculo XIX, como tambm do sculo XX: pases

novos ou velhos, antigas colnias, que buscam encontrar, em alguns casos, ou reencontrar, em outros, sua identi dade, seu projeto de vida como Nao una, indivisvel e independente.

Nessa tarefa imensa a que se lana a camada dirigente da Nao delegado um papel essencial histria: esqua drinhar o passado, peneir-lo, resolv-lo, buscar em suas cinzas ainda fumegantes, entre as mazelas da servido e da desunio, os desvos camuflados, as pequenas reentrncias, os minsculos acontecimentos em que se inserem os primei ros gestos tmidos de identidade, os primeiros acenos de unio, os primeiros sonhos de uma ptria livre.

Os historiadores atenderam ao apelo e procuraram aten der a essa necessidade bsica das naes que estavam em vias de formao.5 Eles se admitiram como os forjadores de nacionalidade. Agiram premidos e impulsionados pela ur gncia e pela conscincia da tarefa que tinham a realizar. E por isso que, para compreend-los e explic-los em suas relaes com os grupos sociais que os sustentam e do os elementos de sua concepo do mundo, necessrio que nos detenhamos e procuremos estar o mais prximo do que pensavam ser sua misso. E preciso refletir mais demorada- mente nos elementos e nos fatores que condicionavam sua ao e seu pensamento, e que eles acreditavam ser o cerne para a constituio e a preservao dessa nacionalidade. preciso que se indague o que queriam, ao que vinham, quando falavam em Nao. Quando decodificamos seus escritos, quando nos aproximamos do que tinham em men te, ao falarem em Nao, atingimos o momento-chave do desvendamento. Este o elemento central, a pedra angular de sua intimidade, que no apenas a deles, mas de seu grupo social ou dos grupos sociais que se constituem e

5 "Assim a integridade do Brasil, j representada magestosamente no Estado e no Universo pela Monarchia, vai agora, bem que mui humildemente, ser representada entre as histrias das naes por uma histria nacional" (VARNHAGEN , F. A. de, s. d.a, p.XXI - prefcio da led.) .

almejam a direo da Nao, criando, inventando projetos para ela. E tambm a chave para que se possa compreender que muitas das coisas pensadas e realizadas a eles devem ser remetidas e que, em conseqncia, se estabelece uma con tinuidade feita de uma comunidade de idias e de inte resses freqentemente dissimulada em falsos caminhos, vinculando-os, at hoje, a pensadores, historiadores, soci logos etc , que muito amide reclamam uma originalidade que no lhes cabe.

A continuidade reencontrada, pelo menos neste caso, funciona como um critrio para ter-se a justa medida de um pensamento racionalista, que muda seus meios, suas formas, mas jamais seus objetivos de dominao.

O sentimento de nacionalidade parece afirmar-se quan do se possui um conceito ideal de Nao. Parece no bastar que se fale em nacionalidade, na formao de uma naciona lidade, para que se tenha a Nao. O sentimento de uma Nao amadurece no interior de uma situao social deter minada, mas ela ser sempre algo difuso, de contornos impre cisos, enquanto no houver o esforo de reunir seus elemen tos dispersos, enquanto no se expressar a realidade social mesmo que seja a aparente no mundo imaginrio em que se formula e se elabora idealmente o projeto da Nao.

Elaborar idealmente uma Nao significa primeiramen te a escolha de opes. So valores que devero ser escolhidos e atingidos so opes sociais, tnicas, polticas, econmi cas, antropolgicas etc. que devero ser feitas. Uma Nao no um simples aglomerado de indivduos; no somente uma presena territorial ou uma unidade e continuidade espaciais. Ela algo mais amplo e sofisticado.

Quando ouvimos os historiadores falarem em Nao, somos levados a acreditar que ela traduz a realidade de um consenso. Contudo, a verdade que, na prtica social, esse con senso no existe, seno sob a forma trivial, porm enganosa, na qual a Nao aparece, primordialmente, como o fato de pertencer-se a uma comunidade.

Neste nvel elementar de apreenso, a Nao se nos apresenta como uma realidade concreta com que temos de

nos haver continuamente, pois dela decorre uma srie de deveres e obrigaes que dimanam, aparentemente como uma fora irresistvel e no contestvel, de existirmos no interior da coletividade. A Nao aparece, pois, como uma realidade com a qual mantemos uma relao direta e ime diata, independentemente de outros tipos de relaes que possam existir entre indivduos ou grupos da coletividade. Lidamos como uma representao, a Nao, que melhor poderamos chamar de fico.

Essa representao ou fico aparece como o resultado de relaes sociais que permanecem aqum e alm das condies reais dos indivduos, acima dos interesses de classes e grupos sociais que formam a comunidade. Nenhu ma hierarquia social, nenhuma diferenciao de classe, nenhuma discriminao quanto cor, quanto ao saber, quanto riqueza parece estar raiz do que chamamos Nao. Nossa solidariedade pode continuamente ser solicitada e tudo se passa como se ela fosse a obrigao, decorrente do trao comum que a todos une, de pertencer ao mesmo pas. Ser francs, ingls, ou brasileiro se consubstancia como uma obrigao que preexiste ao nosso prprio nascimento.

O pacto de solidariedade social que se realiza no interior de uma comunidade, que se pretende nacional, no , porm, fruto de um tcito consenso; seria mais prximo da realidade dizer que o falso consenso em que nos vemos enredados decorre de uma ideologia, de fundamentos hist ricos, em que as diferenciaes, as hierarquizaes sociais que determinam efetivamente as opes feitas so sistema ticamente reduzidas, esquecidas. De maneira que ela possa afirmar-se como a ideologia em movimento de um pacto ou de um consenso.

Em realidade, ela uma imposio de classes ou de camadas sociais que possuem o poder econmico, poltico e cultural de fazer a sua representao de Nao a "represen tao de Nao".

A legitimidade dessa representao s se d no momen to em que os valores que definem so acreditados como universais e, mais do que isso, neutros em relao aos grupos

sociais da comunidade . A imposio ideolgica se complet a quand o os membro s da comunidad e passam a perceber esses valores com o seus, mesm o quand o contrarie m a prpri a realidade histrico-social em qu e vivem .

N a produ o dessa ideologia, a o historiado r cabe um a das maiores tarefas: ele deve reescrever a histria para harmoniz-l a e coloc-la dentr o dos trilho s assinalados. A histri a deve ser o espelho em qu e os homen s de um a comunidad e devem se olhar e se reconhecer. Nela , o qu e vo buscar so os traos comuns , qu e permite m a cada indivdu o olhar o outr o e reconhecer-se nele; so as peculiaridades qu e permite m ao grup o reconhecer-se como grup o nacional e diferenciar-se dos grupo s no nacionais.

Em sua tarefa, o historiado r deve homogeneiza r o pas sado para qu e as peculiaridades sejam traos distinto s de um povo e no no interio r de um povo. O passado deve ser retomado , reconstrud o em razo do interesse maior j definido , a Nao .

O home m poltic o na prtic a diria deve evitar qu e se produza m o separatismo , a desunio, a fragmentao do territri o e dos homens ; o historiado r se imp e como misso a tarefa de secund-lo com razes e argumento s histricos , oferecendo do passado os elemento s qu e possam orienta r e consolidar na prtic a poltic a a consecuo do ideal. Da ser um salto relativament e simples o fato de o historiado r envolver-se nas teias do oficialismo. Nessa opo ele no v nenhu m mal e, quand o dele vem o reconhecimento , ele se transforma em sua suprem a realizao.

Ne m mesm o preciso qu e o Estad o lh e venha solicitar o concurso, ele se oferece na certeza de qu e seu trabalh o significativo e necessrio.

A Vossa Majestade Imperial, Senhor, Primeiro Estadista brasileiro que reconheceu e sancionou a importncia do estu do da Histria da Nao, tanto para contribuir ao maior esplendor dela entre os estranhos, como para ministrar dados aproveitveis na Administrao do Estado, e para fortificar os vnculos da unidade nacional, e aviventar e exaltar o patrio-

tismo, e enobrecer o esprito pblico, aumentando a f no futuro e na glria das letras...6Nessas palavras esto sintetizados os objetivos a que o historiador deve obedecer em seu trabalho: em primeiro lugar, colaborar na Administrao do Estado, por meio do levantamento histrico de dados que lhe possam ser teis; em segundo, favorecer a unidade nacional; e, em terceiro, complementando o segundo, fomentar e "exaltar" o patriotis mo, enobrecendo o esprito pblico.O historiador impe sua presena como algo absoluta mente necessrio nos quadros de uma Nao em gesto. Sua pretenso, contudo, muito mais ampla e profunda do que, primeira vista, pode parecer.Se, num primeiro momento, a ele cabe a criao de um passado uno, que d sentido Nao; num segundo, a sua participao muito mais vigorosa porque a ele tambm deve caber a tarefa de modelar o futuro. Uma Nao no apenas o que ela foi em seu passado colonial, esta a matria-prima, o ponto de partida para uma projeo em direo ao futuro em que deve se realizar seu ideal de Nao.O processo de criao no se reduz em dar, abstratamen te, realidade a uma Nao; o que anima vivamente o histo riador a trabalhar o passado nele encontrar a matria viva e incandescente que permite manipular experincias e ele mentos histricos, para moldar o futuro da Nao. O pas sado, ento, aparece como o despertar da conscincia da Nao e da nacionalidade para um certo tipo de Nao. Sua identidade ou diferenas com outras naes nascero do passado recons titudo. As naes existentes so o modelo paradigmtico que atua sobre o historiador e sobre o grupo social, da mesma maneira que os povos que constituram o cerne colonizador da nova Nao so as condies do novo povo que surge. Em uns, temos o modelo para o que se tende; em outros, a herana, recolhida ou rechaada, de uma experincia hist rica singular que deve ser aviventada e encarecida.

6 VARNHAGEN, F. A. de, s. d.a, v.1, p.I-II.

A realizao de uma Nao, como j o dissemos, uma atividade poltica, mas a prtica poltica deve estar alicer ada numa ideologia que cubra no simplesmente o grupo social a ela ligada, mas a todos que por ela possam ou devam ser absorvidos.

A atividade poltica deve ser suplementada e garantida por uma viso poltica do mundo, em que cada um de seus elementos a Nao, o Estado, o Homem Brasileiro guarde entre si a mesma unidade que o historiador busca na histria do passado. Os elementos dessa viso de mundo no devem aparecer como a expresso particular de um grupo social, que nele exprime seus sentimentos, ideais, projetos etc ; devem, sim, surgir com naturalidade como os frutos de um processo histrico que a todos envolve e abrange.

Nenhum pas, nenhuma Nao, apenas o resultado de uma etnia; os pases e as naes so, tambm, a expresso de uma conquista guerreira. O fato tnico se sublima na con quista guerreira, esta o consolida na negao, em que a etnia do vencedor se impe vencida, no apenas pela fora mas pela possibilidade que a este oferece de redimir-se pela assimilao ao povo vencedor. A etnia se purifica pela conquista que a legitima. Os senhores da terra so tambm os senhores que podem impor sua etnia. A Nao assim se define por uma etnia - a do grupo vencedor. O grupo vencido participa da histria pela nica porta que se lhes deixa aberta, a miscigenao.

A assimilao via miscigenao tem um nico sentido, a preservao da raa superior no campo de batalha. A Nao se esboa, portanto, como a realizao de uma etnia em que as outras sero lenta e deliberadamente absorvidas, de maneira que o futuro da Nao se confunde com essa etnia e seus valores.

Uma nova Nao recobre assim uma srie de signifi cados e valores, que vo desde a etnia civilizao: uma certa etnia, a do grupo vencedor; um certo tipo de colonizao e de conquista, a do povo vencedor; um certo tipo de povo conquis tado, a do autctone; um certo tipo de erro histrico, a escra vido de povos no conquistados; um certo tipo de correo

histrica, a miscigenao; um certo tipo de civilizao, a do vencedor; um certo tipo de Estado, instrumento de realiza o da Nao; um certo tipo de homem, o brasileiro, fruto e construtor, ao mesmo tempo, da nova Nao.

Uma nova Nao, como uma rvore nova, necessita de escora e proteo. Ela deve ser amparada, guiada e seu jardineiro deve estar atento a tudo que possa afetar seu desenvolvimento. Cuidar para que as ervas daninhas no obstruam seu caminho, no ofendam nem impeam que busque seu alimento. Ele arranca com suas prprias mos as ervas daninhas, ele d de suas mos o carinho ao amanhar a terra. A jardinagem, contudo, se apia na cincia da bot nica, o carinho de que ela se reveste est solidamente alicerado no bem e no mal que ela prpria no define. As mos carinhosas do jardineiro so impessoais e no so guiadas por outros interesses, explcitos ou implcitos, que no sejam ver a rvore frutificar, tornar-se bela.

No ocorre o mesmo com a jardinagem de uma nova Nao. Ela pode ser comparada a uma jovem rvore, mas quando h o gesto da poda - ele no um gesto de carinho

ele no o gesto que precede o crescimento harmonioso.

Como no organismo humano, uma Nao, quando pri vada de um de seus rgos, apenas significa que um outro se desenvolver mais e tomar seu lugar. O que temos, ento, uma hipertrofia o desmesurado crescimento de um rgo, de uma funo, em detrimento dos demais. Numa jovem Nao insegura, em que seus grupos sociais ainda no esto perfeitamente determinados, parece num primeiro momento - uma atitude de prudncia e de sabe doria polticas delegar ao Estado, como instrumento de ao, a tarefa de realizar o projeto que dela se tem. E preciso, para tanto, que ele seja concebido como um ser puro, difano, sereno e imparcial para que possa pairar acima das contingncias daqueles que formam a comunidade. D-se ao Estado a forma pura de uma idia hegeliana, mas com a mesma fora de realizao.

O Estado aparece como um ente transcendente, pairan

do sereno acima de contingncias e divergncias. Dentro

dessa concepo, as classes sociais ligadas terra e ao escra vismo buscam delegar-lhe no s a funo administrativa da nova Nao, como tambm, e muito mais importante, a tarefa poltica de sua constituio.

Forma e contedo da jovem Nao j se esboam, po- der-se-ia dizer que j esto quase predeterminados pela histria que a precede. Eles devem ser realizados, no nas condies em que se desejaria, mas naquelas em que se encontra a ex-colnia.

O pas independente, quando se percebe como inde pendente, percebe tambm que apenas uma simples ex-colnia.

No caso brasileiro, a presena da monarquia portuguesa, por um momento, fez sonhar ser possvel a concretizao do sonho to longamente acalentado: o de que a ex-colnia po deria ser um dia a cabea do Imprio de que fazia parte. Ela fora pensada como o natural prolongamento da Monarquia e do Imprio portugueses. Esse sonho se desfaz no dia seguinte ao da independncia.

A unidade da colnia se perde no momento mesmo em que se desvincula do Imprio que a assegurava; em vez dela, o que se tem a heterogeneidade, a diviso, a discriminao em todos os nveis. Ao Estado incumbe buscar a unidade perdida, fazendo-se dele algo unitrio e centralizador; s divises internas, que se abrem imediatamente, deve cor responder um Estado cuja autoridade deve ser incontrast- vel. Essa autoridade no pode concentrar-se num nico homem, mas deve ser a substncia de uma oligarquia eno brecida, menos pelo sangue do que pela inteligncia, pelo que pode render em termos de servios nova Nao.

Ao Estado deve incumbir preencher o vazio de idias em que se processara nossa independncia, pois esse vazio apa recia em toda sua profundidade e em toda gama de conse qncias. Era-se to apenas uma ex-colnia, pobre de idias e, ainda, mais pobre economicamente.

Os sonhos de grandeza de um novo Imprio do qual o Brasil seria a cabea desmoronaram. A realidade era um pesadelo a ser recuperado; o que se tinha eram destroos de

um passado colonial a serem recompostos. Das velhas runas coloniais deveria fazer-se o novo. Contudo, a jovem Nao j nascia velha, porque voltava as costas para seu prprio sculo e ia buscar sua inspirao nos ideais velhos e desgas tados que aqui haviam arribado com a decadente corte portuguesa. O pavor da desunio, das dissenses, a discri minao que lavrava no interior do pas independente, tudo deveria ser modificado. Os novos senhores da histria acre ditaram que isso seria possvel, com a mesma f cega e racionalista dos homens do sculo XVIII, se s mos do Estado fossem depositados os destinos da nova Nao.

Essa a maior tarefa do Estado, e ser ela quem determi nar suas dimenses e caractersticas. A ele incumbe levar adiante o projeto de Nao e do Homem Brasileiro.

Os senhores da histria criam o Estado tutelar que far a Nao sua imagem e semelhana. Da massa amorfa e indefinida, discriminada e sofrida, deve surgir o novo Ho mem Brasileiro que formar, um dia, o povo brasileiro.

Essa a histria poltica do nosso sculo XIX. E a ela que Varnhagen vai servir e ser porta-voz. Ele uma voz que cem anos depois to atual quanto o foi no momento em que se fez ouvir. Ele o orculo de uma situao que se perpetua porque infinita a tarefa, quando s eleitos e taumaturgos so convocados para a sua realizao que deve ria ser a obra comum de todos; porque ela ininteligvel, quando o poder e o saber so privilgios que no se repartem; porque ela infinda, quando o que se realiza pressupe o tutelador e o tutelado.

2A NAO BRANCA E EUROPIA

O que uma Nao? Mais especificamente, o que uma Nao, quando ela comea a surgir dos escombros de uma sociedade fruto de um sistema colonial que vigorara por trs longos sculos? O que uma Nao, quando se admite, como o faz Varnhagen, que ela estava j implcita, desde o mo mento em que a terra, que devia abrig-la, era descoberta pelos que a deveriam formar? O que uma Nao, quando se admite que seu agente formador no o povo que a deveria fazer, mas o Estado, entendido como agente tutelar e onipresente em sua ao e em sua omisso? Que espcie de Nao deve nascer de um solo primitivamente ocupado por homens, cujo estgio de civilizao no ultrapassou a barbrie e cuja incapacidade se revela pelo simples fato de que jamais conseguiram constituir- se como Nao? Que Nao pode surgir do seio de uma populao que, formada por trs etnias uma das quais sem nenhuma relao com a terra ou com as outras etnias no atingira nem a unidade nem a organicidade de um povo?

Dessa Nao, quando muito, pode dizer-se que possui um sentimento nacional, forjado no dia-a-dia da vida colo nial mas no suficientemente difundido e nem muito expl cito porque deriva e se relaciona mais com um sentimento de propriedade da terra, conquistada e reconquistada, do que de um sentimento comum em que se partilham valores comuns que pudessem transformar uma massa heterognea num povo, um simples territrio, numa Nao.

Em tais condies no se tem uma Nao. Tem-se um projeto. Um projeto que deve ser criado, elaborado, esmiu ado e explicado. Um projeto, diga-se de passagem, uma idealizao, mas tambm uma construo. Enquanto idea lizao, consubstancia os ideais e anseios do grupo social ou dos grupos sociais capazes de compreender o que representa o sentimento nacional e a nacionalidade para seus prprios fins; enquanto construo, ele demanda que se possuam os instrumentos polticos e persuasrios adequados para que se possa transformar a massa heterognea em um povo que se determina, um territrio imenso e sem unidade, num pas e numa Nao.

A tarefa se delimita e se esclarece, de uma colnia de vocao independente faz-se uma Nao; de um Estado estrangeiro e opressor, o natural antecedente de um novo Estado de fins nacionais, cuja sagrada misso concretizar os anseios, os ideais, os sentimentos de uma camada da populao - a nica capaz de definir-se e de arrogar-se o direito de depositria dos destinos da Nao emergente.

Um projeto, nunca demais insistir-se nesta sua faceta, fruto tanto em sua elaborao quanto em sua execuo

de uma vontade e de uma conscincia. O projeto assim compreendido no se circunscreve ao mbito de uma tarefa de cunho poltico-administrativo. Sua verdadeira face se revela quando o percebemos como a expresso de uma concepo do mundo em que o fator poltico ganha relevo. O poltico aqui deve ser compreendido tanto como a preocupao de elaborar uma ideologia quanto como o desenvolvimento de uma prtica poltica que nela alcance seu modo de ser.

Dividem-se, naturalmente, as funes: ao homem pol tico cabe a direo da prtica poltica; ao intelectual, espe cialmente ao historiador, incumbe suprir essa ao com os elementos tericos e histricos necessrios para a consecuo dos ideais estabelecidos. Ao contrrio do que acontece com a pessoa jurdica do Estado, cujo conceito antes afirmado em sua abstrao e generalidade, a Nao, desde o seu incio, deve ser compreendida essencialmente como uma constru o histrica.

No se trata, portanto, de definir-se abstratamente o que uma Nao; a preocupao , prioritariamente, saber que ao possvel e desejvel numa situao histrica determinada; em que fatores, presentes ou passados, con junturais ou estruturais, nacionais ou internacionais, devem repousar os seus alicerces. Ela ser, assim, a resultante natural tanto de uma ao pragmtica como de uma inter pretao pragmtica da histria.

Se uma jovem Nao no pode nascer espontaneamente como o desejavam os romnticos do seio de uma populao ainda indefinida -, torna-se essencial a tarefa do historiador, pois a ele deve incumbir o trabalho delicado de cirurgio plstico, extirpando, suturando, acrescentando os elemen tos esparsos de uma nacionalidade ainda em formao. Todas as operaes so realizadas sob o critrio das expecta tivas que se tem a respeito da futura Nao. Se ela no existe ainda, uma das maneiras de a ela se chegar recuperar a histria universal, seria melhor dizer aqui, a histria do mundo ocidental, tal como se apresenta no interior da Nao que se forma, e t-la como guia de um caminho a ser percorrido.

A idealidade da nova Nao fica circunscrita s condi es especficas da experincia histrica da sociedade nasci da do sistema colonial, contudo, e isto muito importante, talvez decisivo, essa experincia avaliada, limitada e cor rigida, no interior do projeto em gestao, em razo da experincia histrica mais ampla e mais absorvente da civilizao ocidental.

A histria da colnia assim interpretada no to- somente a histria de uma conquista, pois isto ela o efetivamente, como veremos adiante mas ela , priorita riamente, a constatao da superioridade de uma cultura, de uma civilizao, de um modo de vida e de pensamento, sobre outras formas primitivas que acabam por ser interpre tadas como um estado de barbrie.

O conflito que se estabelece e que ope os brancos aos ndios, ou aos negros de natureza no apenas racial, mas basicamente um conflito da civilizao contra a barbrie, da

ordem contra a desordem, da unidade contra a disperso, da lei contra o desregramento.

A escolha do que dever ser a nova Nao acaba por parecer como a natural decorrncia de uma situao hist rica em que a oposio entre culturas e civilizaes diferen tes acaba por impor um vencedor a cultura e a civilizao dos brancos, que traz em seu arsenal de armas no s as de natureza guerreira, como tambm outras, mais efetivas e sofisticadas, vistas como os atributos de uma civilizao superior. Elas se expressam naqueles traos que so inter pretados como os valores mximos da civilizao superior: lei, ordem, autoridade e religio. Cada um desses elementos baliza e consubstancia o processo de colonizao e tornam-se os parmetros da nova experincia histrica, a construo da Nao. Tais parmetros devem nascer de nossa histria colonial e nela se explicitam, porque se suas origens no esto aqui, mas na longnqua Europa, que permanecer sempre como o paradigma a ser imitado; o historiador no pode esquecer que o que legitima a opo feita a expe rincia histrica vivida desses valores no interior da colnia. A Europa, com tudo o que significa em termos de cultura e civilizao, ser eternamente o modelo a que se deve apegar a nova Nao.

Um povo e uma Nao, porm, no so construdos na contemplao muda de um paradigma. E necessrio que eles surjam sob a forma amena e inquestionvel da inevitabili- dade histrica, de tal maneira que o histrico e o natural apaream como fundidos e indissociveis. Para que isso ocorra, o trabalho do historiador deve concentrar-se na busca dos grmens criativos que afloram do fluir da histria primitiva da colonizao, tentando detectar os momentos

1 "Se da unio nasce a fora, da desunio somente fraqueza resulta; e o maior ascendente que em todos os pases tem tido a civilizao sobre a barbrie vem de que esta, composta de elementos dissolventes, no se une, ao passo que a nao civilizada, que com ela se pe em contacto, tem nas suas mesmas leis os laos de unio" (VARNHA- GEN , F. A. de, s. d.b, v.1 , p.457).

privilegiados em que se produz o milagre da transposio e da metamorfose dos valores diferenciais em relao cultura autctone que consigo trouxeram os primeiros homens brancos que aqui aportaram.

Eles so os desbravadores dos sertes e florestas bravias; so os que domesticam as foras selvagens da natureza primitiva; so os que catequizam e instruem os selvagens sem ordem e sem Deus; so os que, aqui nascidos ou radicados, lutaram pela terra, primeiro contra os indgenas, depois contra os invasores estrangeiros, franceses, espanhis ou holandeses, reconquistando-a; e, finalmente, so os que a expandiram custa do Imprio espanhol.

A opo irrecorrvel por uma Nao branca e europia nasce, segundo o autor da Histria geral do Brasil, como o fruto amadurecido e temperado da uma experincia hist rica em que as linhas da nova Nao so legadas e determi nadas por uma civilizao superior. Aos demais grupos tnicos e culturais, considerados vencidos, s lhes resta uma participao passiva no projeto da nova Nao e apenas na medida em que se deixarem ou forem absorvidos e integra dos, racial e culturalmente, pelo branco nica fonte de legitimao, pois dele decorrem os valores bsicos da nova nacionalidade.

A tarefa do historiador como expoente do "mximo de conscincia possvel" (Goldmann) alargar e aprofundar, por uma fundamentao alicerada nos eventos histricos, a conscincia nacional que se apresenta, em seus primrdios, como o apangio de alguns poucos privilegiados.

O projeto de Nao no aparece simplesmente como criatura das lucubraes mentais de um nico homem, o historiador; ele no sua criao ex nihil. O projeto, tanto em sua generalidade quanto em seus traos especficos que passa a ostentar, pertence ao grupo social. Ao historiador, como expresso intelectual do grupo social a que pertence, incumbe diligenciar para traduzir os anseios que o revelam, os objetivos que o caracterizam, nos termos de nacionalida de, inteligibilidade e plausibilidade; e devem procurar re vesti-lo de cores que no aparentem ser apenas a traduo

dos anseios e ideais de um grup o social delimitado . O projeto de Nao deve surgir de sua pena como o anseio, o desejo e o ideal da sociedade com o um todo .

Ness e trabalh o de constru o e convencimento , no basta m as belas palavras de um patriotism o qu e se julg a sadio, ne m a exaltao pur a e simples , aind a qu e ela exista, d e u m sentiment o nacional, aind a apenas entrevisto . O papel do historiado r o de demonstra r qu e sob o legad o catico da colnia - um a Na o existe, aind a informe e inacabada, mas apresentand o j um a caracterstica, a de ser o fruto de um a conquist a qu e lh e permit e oferecer os ele mento s primordiai s par a qu e sua construo aparea aos olhos de todo s com o a decorrncia de sua prpri a histria .

Se a Na o nasce assim com seus contorno s gerais definidos, poi s eles so apenas um a extenso da distant e Europa, resta ent o demonstra r qu e o projet o propost o no ofende ne m violent a suas origens , n o interio r d o pas .

Um a das formas de trabalh o do historiado r a compa - tibilizao entr e o paradigm a escolhido e o curso da histri a da colnia, de maneir a qu e tais origens , reais ou presumidas , demarca m o caminh o qu e se deve percorrer em direo Na o plena .

O historiado r esclarece sua funo, utilizand o para tant o palavras de Tocqueville :

Os povos, disse Tocqueville, ressentem-se eternamente, da sua origem. As circunstncias que os acompanharam ao nascer e que os ajudaram a desenvolver-se influem sobre toda a sua

existncia. Se possvel fosse a todas as naes, prossegue o mesmo publicista, remontar... a origem da sua histria, no duvido que a poderamos descobrir a causa primria das prevenes, dos usos e paixes dominantes de tudo, enfim quanto compe o que se chama carter nacional.2O trabalh o de construo de um a Na o comport a mo

mento s d e reconhecimento , d e desbravamento , d e consoli-

2 Idem, s. d.a, Prlogo.

dao e de edificao. Tal como no trabalho de uma mina, necessrio que se retorne constantemente para verificar se a galeria j edificada, muitas vezes caoticamente em seu incio, necessita de escoras e de reparos; de outro lado, avanando o tnel, necessrio que no se pense apenas no passado, porque o futuro representa a superao das deficin cias primeiras se o soubermos compreender.

O historiador se investe na funo de guia e controlador das idas e vindas em direo ao passado e ao futuro; ele conduz em suas mos a luz do reconhecimento do caminho percorrido e do que se deve ainda percorrer; ele o organiza e o demarca; cria e constata argumentos. A racionalidade de que se acha investido lhe advm tanto de sua inteligncia quanto de sua misso; seus problemas nascem da represen tao que faz da Nao.

Uma Nao, para ser considerada como tal, deve ter unidade. Surpreendamos, portanto, essa unidade nos esca- ninhos em que se esconde; remexamos todos os recantos em que ela pode se esconder e depois a revelemos.

Como pode surgir unidade no interior de um continente em que a desunio uma marca indelvel? Como foi possvel preservar-se a unidade brasileira, quando as dissenses na turais num processo de independncia indicariam a desunio como um desaguadouro natural das divises internas pro duzidas pela colonizao? Como explicar a preservao de uma massa territorial to grande quanto o resto do conti nente? So questes que o historiador se prope quando rasteia a unidade pretendida nos desvos em que se camufla.

Ele a detecta nos indgenas que, embora desunidos, multiplicados em cabildas, divididos por dios e questin culas tribais, incapazes de patriotismo, conservam, contu do, como se fosse pela providncia divina, a unidade lings tica. E essa unidade que vai permitir que uma nova fora de unidade e de integrao exera tambm sua influncia; a Companhia de Jesus, a catequese do indgena, sinnimo de civilizao, s possvel porque alguns padres, "grandes lnguas", traduzem para o tupi o catecismo, transforman do-se assim num instrumento para a ao unificadora do

jesuta, qu e pod e dessa maneira estender-se por todos os brasis. Porm , a Companhi a de Jesu s um fator integrado r por sua prpri a organizao unitri a e centralizadora. Sua presena nas terras conquistada s representa um pont o de unio e de ligao. Por meio das relaes qu e se estabelecem obrigatoriament e no interio r da Companhi a entr e seus membro s revela-se e se imp e sua estrutur a unitria , a qua l acaba por se transcende r e interiorizar a prpri a unidad e das terras conquistadas .

Os jesutas nunc a esto ss; para ond e que r qu e se dirijam , a presena e os vnculos com sua institui o se fazem e se refazem pelo trabalh o dirio qu e realizam, pelos relatrios qu e redige m a respeito de sua misso evanglica, pelas notcias qu e veiculam, pelo conheciment o qu e acumu lam das regies em qu e operam .

Nbrega apenas recebeu para o seu colgio mais padres, como tinha pedido, tratou de espalhar por todo o Brasil os seus combatentes; e com isso, favorecendo a unidade prover- bial da Companhia, concorreu muito para favorecer tambm a do Brasil, entabulando mais freqncia de notcias e relaes de umas vilas para as outras, e contribuindo, com as pacifica- doras palavras do Evangelho, para estabelecer mais fraterni dade entre os habitantes das diferentes capitanias, e para destruir o feio hbito, resultante da falta de educao dos habitantes, de se estarem umas s outras injuriando com doestos, ainda quando mais polidos que os de piratas, ladres e quejandos.3Com o se v, os jesutas une m tamb m pelo exempl o e pela educao, evitand o qu e as capitanias pudesse m desu nir-se pela falta de respeito qu e pudessem ter os homen s entr e si e uma s em relao s outras .

O trabalh o do historiador paciencioso e detalhstico ; nada deve esquecer daquil o qu e pod e traduzi r a unidad e a ser constituda , que r se trat e de um detalh e do povo venci do , que r d e u m aspecto d a organizao religiosa, que r aind a

3 Idem, s. d.b, p.290.

se refira ao Estado - do qual falaremos adiante , mesmo em seus aspectos mais simples e humildes.

A organizao judiciria interpretada como fonte de unidade, pois a ela se deve a instituio do juiz de fora, obrigando a que os indivduos a ela agregados servissem fora de sua capitania. "Esta instituio (juiz de fora), que s foi introduzida no Brasil em fins desse sculo (1606), contri buiu para cada vez se estreitar mais a unidade nacional, obrigando-se os indivduos de umas provncias a servirem nas outras, com o que se iam desterrando os excessos do pernicioso bairrismo."4Uma Nao, contudo, no se forja apenas por meio de instituies pacficas e religiosas; ela tambm o produto de lutas em que o sangue que corre, generoso e herico, serve para amalgamar e sustentar o sentimento de nacionalidade. Esse sentimento de nacionalidade se confunde com a idia de unidade territorial, que uma idia de posse e conquista.

A unidade territorial no pode ser compreendida apenas como algo que decorre de um acidente geogrfico ou como o fato natural da existncia de uma continuidade espacial.

Ela envolve sempre o pressuposto de que a resultante de uma conquista e no de uma ddiva. Esse elemento lhe d grandeza e confere sentido histria colonial.

A unidade territorial , assim, algo que se faz, primei ramente, de maneira histrica e, depois, se apresenta como um fato natural. Pressupe no somente a existncia de um ncleo inicial do qual se irradia a ao colonizadora e aglutinante, mas se corporifica tambm na existncia de uma rede fsica de ligaes que permitem aos seus centros iniciais estenderam sua ao centrpeta.

No Brasil, segundo Varnhagen, o que temos inicial mente uma poltica de diversificao dos centros aglutina- dores as capitanias hereditrias - que mesmo em termos de expresso territorial so desconhecidos, pois so demar-

4 Ibidem, v.2, p.122.

cados apenas em razo das costas martimas . O interio r permanec e com o o desconhecido a ser conquistado .

Co m as capitanias , o Brasil inicia sua vid a de pas independent e com o pretend e Varnhage n sob o sign o da diviso. Soment e com o governo geral qu e se inicia a tarefa de unificao do territrio . N o ser um a empres a fcil e sua consecuo se mescla, a tod o instante , com a da nacionali dade . N a realizao d a unidad e agiro o s mesmo s elemento s qu e permitir o desabrochar o sentiment o de nacionalidade. Em ambas , agiro com a mesm a fora o Estado , as guerras de conquist a e de reconquista , as guerras de expanso, a lut a nacional contr a o estrangeiro , aind a qu e seja o portugus .

A guerr a nesse context o passa a ser encarada no com o u m mal , mas como um a necessidade histrica e m qu e o s interesses de um so os interesses de todos . Cada capitania , centralizadas todas sob a autoridad e do governo geral , v nas demai s no um a concorrente , mas u m peda o d e s i mesma . E na guerr a surge m os heris nos quais os habitante s vo se reconhecer.

No somos, merc de Deus, fatalista na histria. Cremos, sim, que uma guerra de tempos a tempos pode erguer um pas do seu torpor; cremos que a estranha, quando a costa braslica acabava de ser ocupada na totalidade, com as cidades de So Lus e de Belm, no Maranho e no Par, poderia estabelecer, como estabeleceu, mais unio e fraternidade, em toda a famlia brasileira; cremos que se estreitam muito nas mesmas fileiras os laos do que resultam glrias comuns, e que no h vnculos mais firmes que os sancionados pelos sofrimentos; e tanto que ao estrangeiro que peleja ao nosso lado e que derrama o seu sangue pela nossa causa, lhes conferimos pelo batismo do sangue a mais valiosa carta de naturalizao.5Talvez a primeir a impresso qu e ocorra ao leitor seja a d e qu e estamo s perant e u m historiado r qu e pensa a histri a simplesment e como um a histria-batalha . N o parece ser o caso. Mesm o qu e no se possa descartar integralment e essa

5 Ibidem, p.183.

idia, creio que ela no capaz de nos revelar integralmente o significado que tem para Varnhagen essa quase obsesso em pr o leitor em contato fsico com os sucessivos conflitos armados que agitaram nosso perodo colonial. Sua inteno parece ser a de nos demonstrar que o Brasil, como unidade territorial e poltica, no decorreu da posse e manuteno pacficas do seu territrio. O raciocnio inverso de rigor, segundo ele, isto , se o Brasil, findo o perodo colonial, pode apresentar-se como um pas de dimenses continentais e alm disso ntegro, tudo isso se deve ao fato de que sua posse se fez por meio de um processo em que o sangue foi um componente obrigatrio.

possvel mesmo estabelecer uma tipologia dos confli tos e mostrar as razes que levaram Varnhagen a atribuir tanta importncia a eles.

Em primeiro lugar, tanto cronologicamente como em importncia, temos as guerras de conquista, as quais puse ram frente a frente, e num confronto contnuo, o elemen to conquistador o portugus - e o indgena - o elemento conquistado. As guerras de conquista se sublimam porque nelas se defrontam, de um lado, a lei, a civilizao, a ordem, a autoridade, a religio, em uma palavra, a sociedade branca e europia, e, de outro, a barbrie, a sociedade local, dispersa em mil e uma cabildas, incapaz da ordem, da autoridade, pag, num estgio de evoluo (ou involuo) social, cujo mrito nico o de possibilitar sociedade e civilizao superiores, brancas, reconhecerem-se em seus primrdios.

Deve-se observar que as guerras de conquista no so um fato simples. Elas se bifurcam quanto ao seu signifi cado, de modo que cada um de seus aspectos se comple menta no outro.

Nu m primeiro nvel, temos a luta armada como o instrumento adequado conquista e posse da terra. Assim, a guerra tem o significado bsico de apresentar a posse como no decorrente simplesmente de uma providncia divina, ela no uma ddiva de Deus; a posse consubstancia e representa o resultado de uma ao do homem conquistador.

Num outro nvel, a posse deve ser legitimada por fatores outros que no decorrem da simples conquista guerreira, isto , ela deve ter uma fundamentao moral, cujo carter se reveste tambm dos parmetros de uma conquista, mas agora no da coisa material, da terra, mas do prprio homem conquistado. A conquista neste nvel se apresenta como uma forma de regenerao dos costumes e do prprio silvcola. Ele conquistado pela civilizao. Este um passo necessrio no interior do pensamento de Varnhagen, porque ele no pode esquecer que o indgena tanto quanto o negro contribuiu e contribuir para a formao do homem branco brasileiro. Ora, este homem brasileiro, como veremos no captulo dedicado a ele, comea a se esboar no momento em que se desenvolvem os primeiros combates pela conquis ta da terra. O indgena, vencido pelo branco, despojado de seus valores, aniquilado como expresso de uma sociedade que se pretende extinguir, deve ser recuperado, antes pela fora do que pela persuaso, e novamente conquistado para os valores ocidentais e cristos que mostraram no campo de batalha sua superioridade. Sua recuperao, a partir desses valores, legitima moralmente a conquista fsica.

O processo de miscigenao do qual vai resultar o homem branco brasileiro no simplesmente uma fuso racial. Seu significado maior dado pelo fato de que a miscigenao que possibilita a existncia do homem brasi leiro com a supremacia dos valores brancos, os quais cons tituiro o cerne de seu ser moral, da mesma forma que, para o indgena, ela representar a superao da sua condio selvagem.

No se pode deixar de mencionar que, para Varnhagen, no processo de conquista se defrontam dois sistemas de vida, duas sociedades, mas jamais duas naes. A Nao indgena no existe, existem apenas cabildas ou tribos que, mesmo ostentando origens comuns, no se comportam como uma Nao, agem os indgenas apena