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Gonçalo Júnior - Liberdade Cabeluda

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Liberdade Cabeluda

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  • PESQUISA FAPESP 155 n janeiro De 2009 n 103

    Liberdade cabeludao inusitado carter poltico da contracultura brasileira | Gonalo Junior

    Houve uma vez um vero. Era o vero do desbunde, quando milhares de hippies de todo o pas migra-ram a p, de carona ou de carro como romaria para a pequena praia de Arembepe, no litoral baiano, em dezembro de 1970. Como se ali fosse meca e houvesse a necessidade de estar l como uma forma de batismo para aquele novo estilo

    de encarar a vida e o mundo. Eram os hippies que se disse-minavam pelo pas, a contragosto da ditadura e da moral vigente. Por causa disso, muitos no conseguiram chegar. Foram presos em cidades como Salvador, onde a represso aos cabeludos era uma prioridade para a polcia local, que os considerava meros vagabundos, segundo registraram jornais da poca. Para a esquerda e demais envolvidos na luta contra o regime, essas moas e rapazes que no se preocupavam em tomar banho, pregavam o sexo livre e o consumo de maconha no passavam de alienados. E eram mesmo?

    Essa viso teria ajudado a academia a manter no limbo o rico movimento que ficou conhecido como contracultura ou underground udigrudi, em bom portugus , en-quanto se dedicou exaustivamente a estudar o movimento estudantil e a luta armada? provvel que sim. Doutor em histria social pela USP, Marcos Alexandre Capellari diz que se pode aventar, inicialmente, algumas razes para o pouco interesse da universidade pelo assunto. A primeira, explica ele, tem a ver com o fato de que se trata de fenme-no recente em que muitas de suas feridas (decepes, mal- -entendidos etc.) ainda no cicatrizaram. No confortvel lidar com um movimento cujos personagens envolvidos, em sua grande maioria, esto vivos e atuantes, e cujo ide-rio ainda repercute culturalmente, dividindo opinies, observa o historiador, que defendeu recentemente a tese O discurso da contracultura no Brasil: o underground atravs de Luiz Carlos Maciel, com orientao de Raquel Glezer. Outra explicao diz respeito s tradies de pesquisa nas universidades, no interior das quais determinados temas so ou no considerados legtimos objetos de estudo.

    Capellari concentrou sua pesquisa na represso imposta pelo regime militar, sobretudo a partir do AI-5, de dezem-bro de 1968, para investigar o iderio libertrio da contra-cultura propagado pelo jornalista Luiz Carlos Maciel na coluna Underground, do semanrio O Pasquim, lanado em junho de 1969. Maciel seria apelidado de guru da contra-cultura pela importncia que teve em difundir suas ideias

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    no pas. A anlise de Capellari tenta identificar as motivaes do movimento contracultural in-ternacional e sua introduo no Brasil em um perodo marcado por fortes rivalidades polticas e ideolgicas. A partir do discurso do jornalista, ele questiona se a concepo de liberdade proposta pelo movimento foi, como de-fende a crtica, mera expresso de escapismo hedonista ou efe-tivamente revolucionria. O tra-balho procura tambm apontar suas origens histricas.

    Para elaborar o projeto do doutorado, Capellari leu de for-ma mais sistemtica desde obras de divulgao sobre o tema at tericos evocados pelo movi-mento, como Theodore Roszak, Wilhelm Reich, Herbert Marcu-se, David Cooper, entre vrios outros. Com a ajuda de minha orientadora, avaliei possveis rumos da pesquisa e surgiu a deciso de abordar a coluna de Luiz Carlos Maciel. Ao lidar com essa documentao, o historiador notou que era possvel, analisando os elementos de seu discurso, compor uma interpretao no apenas da difuso, nesse perodo (1969-1972), do iderio contracultural no Brasil, como tambm do seu conte-do, composto por elementos oriundos de diversas tradies do saber. Nesse con-texto, a ditadura, de alguma forma, ao reprimir a liberdade sexual e outras ma-nifestaes como o movimento hippie, tentou conter a chegada da contracultura no Brasil. Nesse sentido, o autor observa que, alm dos aspectos polticos e econ-micos envolvidos no conceito, o termo ditadura pode ser considerado, para o perodo, como representao sinttica do conservadorismo na esfera dos cos-tumes. No resta dvida de que ela se ops de forma contundente ao ingresso da contracultura no cenrio nacional, ao consider-la um elemento subversivo a mais a ser combatido.

    Para isso, a censura, de um lado, e a represso, atestada por testemunhos

    de poca, de outro, foram utilizadas como meio de impedir a liberao dos costumes. Creio que no s o regime, mas sobretudo a cultura conservadora que ele representava foi vencedora, mas no apenas no Brasil. Acontece que, prossegue Capellari, do ponto de vista de grande parte dos que se envolveram na contracultura, ficou a sensao de que os ideais libertrios que acompa-nhavam a liberao dos costumes min-guaram medida que, no seu lugar, a indstria cultural transformava as ban-deiras do movimento em mercadoria, esvaziando-as de suas conotaes po-lticas e filosficas.

    Juventude - H, sobre esse aspecto, afirma o pesquisador, uma outra con-siderao a ser feita e que se relaciona com as disputas que ocorriam no Brasil no mbito poltico e cultural. De um lado, ao contrrio dos EUA, vivia-se no pas um regime de exceo, contra o qual parte da juventude estudantil e de outros segmentos sociais se manifestou at dezembro de 1968, quando veio a represso pelo AI-5. De outro lado, na arena cultural, havia uma forte disputa entre defensores de uma cultura nacio-

    nal e politicamente engajada, simbolizada pelas propostas do CPC (Centro Popular de Cultura), e tropicalistas aber-tos s vanguardas estticas nacionais e internacionais. Entendo que no interessava ao regime militar a introduo de elementos culturais alien-genas quando eles tivessem al-guma conotao subversiva, e realmente houve represso a eles; creio, contudo, que a con-tracultura tambm encontrou obstculos para a sua difuso na prpria conjuntura brasi-leira do perodo.

    Capellari acredita que at 1968 a juventude engajada tinha como norte comum a derrubada da ditadura, e outras preocupaes, relacionadas subjetividade, em geral ficavam em segundo plano. Quando, porm, o sinal se fechou com o AI-5, a juventude se trifurcou (como disse Alfredo Syrkis), e uma parte dela aderiu luta armada, outra sociedade de

    consumo e uma terceira, j aberta para as influncias culturais internacionais e desconfiada em relao luta poltica tradicional, desbundou.

    Maciel, acredita ele, ajudou e muito na difuso da contracultura no Brasil. O Pasquim foi muito lido pela juven-tude da poca, vendendo mais de 200 mil exemplares semanalmente e a coluna Underground, de sua responsabilida-de, alm de divulgar o que se passava no universo contracultural, discutia de forma sinttica ideias que permea-vam o imaginrio dos envolvidos, em maior ou menor grau. Mas claro que a contracultura chegou de uma forma mais ampla por intermdio do rock e da indstria cultural como um todo. E tambm de publicaes semelhantes, porm de menor repercusso, como A pausa, Rolling Stone, o tablide paulista-no O Bondinho e a revista Grilo, ambos editados por um grupo de jornalistas oriundos da revista Realidade.

    O desbunde brasileiro tinha moti-vaes internacionais como a recusa em relao ao modelo ocidental de cultu-ra, entendido pelos envolvidos como opressivo. Capellari observa que o no famlia burguesa e conteno sexual,

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    O rebelde hoje: Luiz Carlos maciel

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    ao servio militar, ao trabalho e acu-mulao, religio institucionalizada e aos seus dogmas, ao conhecimento legtimo ministrado nas escolas, entre outros, aludia com clareza a um outro no. Isto , ao processo civilizador que caracteriza a modernidade ociden-tal, sobretudo desde a revoluo cient-fica do sculo XVII, o Iluminismo e, claro, o capitalismo industrial.

    Represso - Para o pesquisador, trata-se, portanto, de uma questo comple-xa, que ele discute na tese. No caso do Brasil, como j disse, a sua introduo se deu em uma conjuntura marcada pela represso de extrema direita de um lado e, de outro, por uma oposio que acabou se dividindo no s na esfera poltica (o caso das diversas frentes de esquerda), como tambm no mbito cultural. Nesse caso havia, por parte de uma das vertentes, nacional-popular, uma certa desconfiana em relao ao movimento contracultural. Por essa razo a contracultura sofreu a oposio no Brasil tanto da direita quanto da es-querda tradicional, que a considerava uma forma de escapismo.

    A concepo de liberdade contracul-tural foi o objeto de anlise de Capellari. Ele observa que sobre isso h autores que entendem no passar de uma forma de escapismo, uma vez que uma liber-dade que aponta apenas para a prpria subjetividade. Haveria ento, como de-fende Luciano Martins, uma espcie de negao da condio de sujeito histrico por parte dos envolvidos. Muito embora sua anlise seja pertinente sob o ngulo sociolgico, creio que o ideal de liber-dade na contracultura um pouco mais refinado do que isso, pois ele aponta sim para uma ruptura no universo social, mas por um caminho diferente, a sim a partir da subjetividade.

    Em vez da ao positiva, nos mol-des convencionais de poltica, explica o autor, a contracultura defende o rompi-mento a partir de dentro, do ncleo no interior do qual a rede cultural se fecha sobre o sujeito, a sua subjetividade, pois ela que conserva, como um n, a rede como um todo. Se h o rompimento de um ponto, a rede tende a se esgarar, sendo essa ento a prpria ruptura na esfera social. Trata-se, pois, de um ideal de liberdade que reclama, em primeiro lugar, a libertao do sujeito para que

    Turma do Pasquim reunida: Jaguar, de culos, e Tarso de Castro, ao centro

    dela surja a libertao social como um todo. Da o apelo exercido pelas drogas psicodlicas, por algumas vertentes da psicanlise e pelas correntes filosfico-religiosas orientais.

    O Brasil, nesse perodo, afirma Ca-pellari, passava por um processo de modernizao autoritria. A socieda-de se urbanizava e, em virtude da ex-panso dos meios de comunicao de massa, tornava-se permevel s trans-formaes que vinham ocorrendo l fora na esfera dos costumes, dos com-portamentos etc. Era inevitvel que a contracultura se introduzisse no pas. E ao se introduzir sofreu a represso do regime devido ao seu carter sub-

    versivo, mas no s. Sofreu tambm a oposio de setores polticos e culturais de esquerda, para quem a contracultura era considerada uma forma de esca-pismo introduzido junto com outros elementos alienantes produzidos pelo imperialismo cultural.

    O pesquisador dedica boa parte do primeiro captulo da tese na dis-cusso dessa e de outras questes. Ele confronta testemunhos e opinies fa-vorveis e desfavorveis em relao introduo da contracultura no Brasil. Para alm da esfera nacional, discuti em profundidade a ideia de liberdade contracultural no segundo captulo da tese, dedicada anlise de artigos da coluna Underground. Nesse captulo analisa certas vertentes da psicanlise (Reich, Marcuse, Brown etc.) e concei-tos oriundos do universo filosfico e religioso oriental. E compe um qua-dro que pode esclarecer certos com-portamentos contraculturais. n

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