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    GRAMÁTICA DO TEXTO JORNALÍSTICO 

    Por Nilson Lage

    [AULA 1] 

    O jornalismo é uma forma de conhecimento e, como tal, incumbe-se de atualizar onível de informação da população com velocidade impossível de alcançar por outromeio. Sua necessidade social ampliou-se na medida em que as transformaçõespolíticas, sociais, científicas e tecnológicas se aceleraram, tornando inviável aatualização por outros processos, como contatos pessoais, demonstrações emauditórios etc.

    O jornalismo seria, assim, responsável tanto pela amplitude quanto pela

    superficialidade do conhecimento que as pessoas têm, fora de suas áreas específicasde atuação. No entanto, a influência da atividade jornalística penetra mesmo emsetores que dispõem de estruturas próprias de coleta de dados.

    Uma pesquisa (SCHUCH, 1997), realizada no universo das principais empresas deSanta Catarina, revela que seus executivos baseiam-se em jornais (particularmente naGazeta Mercantil) para formular decisões estratégicas. O mesmo se observa, porexemplo, na indústria norte-americana de espetáculos, com relação à críticaespecializada, ou nos mercados de capitais, em que corriqueiramente informações daimprensa sobre desempenho de setores produtivos provocam reações antes de seremdivulgadas oficialmente – por exemplo, nos balanços.

    É óbvia a influência do jornalismo em processos políticos como as eleições. No entanto,a aferição dessa influência costuma ser destorcida por uma tendência genérica dosgrupos de poder: eles consideram ótimo o jornalismo quando é a favor e péssimoquando é contra, independente da verdade ou falsidade dos conteúdos. Da perspectivaprofissional, os critérios são outros: uma boa notícia não é a mais bem escrita ou amais construtiva, mas, principalmente, a verdadeira. Parece óbvio que toda notíciaapaixonante beneficia ou agrada a uns e prejudica ou desagrada a outros.

    Neste aspecto, o jornalismo tem uma confiança tal em seu discurso que se aproximada ciência: define verdade, à maneira de Isaac Israeli (Século IX), como adequaçãodesse discurso à realidade. Não passou certamente pela cabeça de Isaac Newton, aoenunciar a Lei da Gravitação Universal, discutir se seria ou não conveniente para ahumanidade continuar ignorando os princípios da gravidade, que sempre existiu. Da

    mesma forma, seria insensato imaginar que Alan Turing destruísse os originais de suapesquisa sobre a máquina universal de processamento de informações, na década de30, por antever que os computadores poderiam causar desemprego.

    Excluídas algumas situações chamadas de éticas, em que o prejuízo é imediato eevidente (como pode ser o caso de negociações no curso de seqüestros ou doenvolvimento de menores em crimes), a tendência dos jornalistas é consideraradequada a divulgação de informação de interesse público sobre que têm certeza. Adificuldade de distinguir o que é público e o que é privado ou de confrontar o que sesupõe que as pessoas precisam ouvir e o que elas querem realmente ouvir não éproblema só do jornalismo, mas, no geral, das sociedades em que é praticado.

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    No entanto, há diferenças importantes entre o discurso jornalístico e o discursocientífico: uma delas é que o primeiro é um discurso de aparências. Qualquer quesejam as versões difundidas numa matéria de jornal ou revista, não importando a linha

    editorial, o mais importante são sempre os fatos. São estes o que os repórteresapuram e que valorizam. Já na ciência, o que se investiga são essências: leis,princípios e postulados que devem reger conjuntos de fatos; teorias que se sustentamenquanto não se consegue comprovar sua falsidade.

    Quando o jornalismo tenta abordar essências da realidade, geralmente foge a suascaracterísticas informativas, perde a novidade, recorre ao lugar comum e torna-sesubliteratura. A literatura, a partir da forma da língua e da vaguidade dos conceitos,cuida de revelar verdades essenciais. O método não é a inferência dedutiva, como sepretende numa demonstração científica, mas o insight, a experiência, a indução. Assimse pode dizer que uma obra de ficção encerra realidade – visões pessoais, parciais eessenciais; esse percurso não é viável nas condições industriais em que se produznormalmente o jornalismo. O insight, a experiência e a indução também existem naciência quando ela formula hipóteses e idealiza modelos, que são falseamentosgeralmente baseados na abstração de algum ou alguns aspectos da realidade; aquestão é que hipótese e modelos têm ser verificados e comprovados, o que não seexige da obra literária.

    Em síntese, o jornalismo, como a ciência, pretende que a verdade objetiva existe eque é possível discorrer sobre ela; não investiga essências e assume as versõesimpostas pela ideologia, procurando preservar, no entanto, a inteireza dos fatos. Nãotrabalha, ao menos conscientemente, sobre a forma da língua para aprofundar oudesvelar algo que relata, nem se baseia na intuição, experiência ou capacidadeindutiva do autor.

    Pelo jornalismo passam discursos ideológicos que provêm, em maior escala, dossetores dominantes das sociedades. O mesmo ocorre com outros mídia, como auniversidade, as escolas de ensino médio e primário, produtos artísticos e derecreação. No entanto, a visibilidade da presença desse discurso no jornalismo émaior, uma vez que suas mensagens são mais explícitas e se reportam a assuntos deinteresse imediato.

    No ensino, as turmas são relativamente homogêneas, há obrigatoriedade defreqüência e avaliações periódicas. A informação jornalística, pelo contrário, destina-sea público diversificado, disperso e pode ser ignorada ou omitida – basta não comprar o jornal, pô-lo de lado, desligar ou mudar a estação de rádio, de televisão, a página daInternet. Isso obriga o jornalismo a ser atraente, o que significa ser facilmente

    compreensível e conformar-se a pelo menos alguns dos valores, aspirações e fantasiasde um público.

    Enunciados jornalísticos estão sendo tomados, modernamente, como padrão da línguaculta, tanto escrita quanto oral – embora, neste caso, haja apenas simulação deoralidade. Falas jornalísticas, no rádio ou na televisão, correspondem à leitura detextos feitos para serem lidos em voz alta ou, no caso da narrativa simultânea deeventos (como jogos desportivos ou desfiles de carnaval), à repetição de poucasestruturas modulares, com eventual recurso a suportes escritos e comentaristasespecializados.

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    A pré-história do jornalismo 

    Os sistemas sociais de difusão de informação envolviam, nos estados clássicos, dois

    circuitos:

    1. o oficial, constituído por mensageiros ou arautos que levavam à população decisõese conclamações do poder leigo; sacerdotes, incumbidos da tarefa de convencimento eda mobilização comunitária; e artistas (poetas e atores, em forma lingüística, mastambém pintores, escultores e arquitetos), empenhados na exaltação do estado ou dafé;

    2. o privado, constituído por trovadores que receberam, em épocas e países diferentes,diversas denominações (na Grécia, aedos); por eles transitavam histórias centradasem enredos fantásticos ou envolventes, geralmente com localização e temporalidadeimprecisas. Pode-se acompanhar, ao longo dos anos, o trajeto de alguns desses

    contos, como As aventuras de Cid, ao longo de décadas, pela Europa medieval.

    Sempre que o nível de alfabetização permitia, utilizavam-se suportes escritos. É o casodas Actae Durnae do Senado romano, ou dos Avvisi, mandados redigir por banqueirose comerciantes nas cidades litorâneas da Itália do Século XIV. Em ambos os casos, osmanuscritos eram colados nas paredes.

    Passaram-se 150 anos entre a descoberta, na Europa, do tipos móveis, e o surgimentoda imprensa periódica, que só ocorreu no início do Século XVII. Dois processos dessaépoca são considerados essenciais: a difusão da alfabetização e a expansão dosserviços de correios, que permitiam o tráfego mais rápido de informações. Um terceiroprocesso foi fundamental para a rápida difusão dos jornais: a luta da burguesia pelopoder.

    Formas clássicas dos discursos não artísticos 

    Os discursos não-artísticos (isto é, não construídos com preocupação dominantementeestética) sempre compuseram a maior parte dos enunciados sociais. A preocupação dequem redige uma lei, um documento oficial ou científico distribui-se por igual entrefatores que podem ser considerados equivalentes às leis estabelecidas por Grice para aconversação.

    A cada uma das máximas de Grice corresponde uma regra da estilística tradicional.Assim, a informação deve ser a necessária para os fins do documento e nãoexcedente; ser verdadeira ou, no mínimo, verossímil (admitindo-se que algunsdocumentos, como algumas falas, são realmente maliciosos); ser relevante, não-ambígua, concisa, estruturar-se segundo preceitos lógicos e com a clareza necessáriapara ser compreendida pelo(s) destinatário(s).

    Máximas de Grice 

    1. Máximas da quantidade a. Faça sua contribuição tão informativa quanto necessário (para ospropósitos reais da troca de informações);b. Não faça sua contribuição mais informativa do que o necessário.

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    Pode-se admitir, como parece óbvio, que o jornalismo contemporâneo descende dosdiscursos informativos clássicos; e que a publicidade, da mesma forma, decorre dosdiscursos retóricos. No entanto, a relação não é tão simples: na verdade, o universo

    político e social é retórico, e o jornalismo está imerso nele; a forma de convivência é,aí, o discurso indireto, em que opiniões, interpretações ou versões são dadas comomanifestas e, assim, citadas.

    "O discurso citado", escreve Mikhail Bakhtin (BAKHTIN,1992, pp. 144 fls), "é o discursono discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobreo discurso, uma enunciação sobre a enunciação". O discurso citado "é visto pelofalante como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente naorigem, dotada de construção completa e situada fora do contexto narrativo". A partirdessa existência autônoma, o discurso de outrem "passa para o contexto narrativo,conservando o seu conteúdo e ao menos rudimentos de sua integridade lingüística e desua autonomia estrutural primitivas".

    Bakhtin observa que quem apreende a enunciação de outrem "não é um ser mudo,privado de palavra, mas, ao contrário, um ser cheio de palavras interiores". Nodiscurso jornalístico, pelo menos em suas formas canônicas (a notícia e a reportagem),as formas de citação usuais são o discurso direto e o indireto; outros processos, comoo discurso indireto livre (em que o narrador assume a subjetividade do indivíduocitado) não são considerados legítimos. A única responsabilidade que o jornalista seimpõe diante de uma citação (embora não seja sempre esse o entendimento legal) éque ela esteja conforme a essência (ou a forma, se entre aspas) do discurso citado.Ainda assim, quem cita escolhe o que cita e, de muitas maneiras, assume posições emface da citação.

    O narrador pode interferir pela escolha do verbo dicendi ou proposicional, pela

    definição de circunstâncias para o trecho citado, pela seleção de trechos entre aspasetc. Pode suprimir o contexto da enunciação (extrair o texto do contexto) ou, pelocontrário, explicitá-lo - isto conforme suas intenções, ou quantas inferências adicionaisimagine possibilitar ao leitor. Compare-se:

    1. Em discurso direto:

    a."Vamos recorrer no Judiciário até a última instância", disse o advogado.

    b."Vamos recorrer no Judiciário até a última instância", advertiu o advogado.

    c."Vamos recorrer no Judiciário até a última instância", ameaçou o advogado.

    2. Em discurso indireto:

    a.Marta Suplici disse que, em caráter pessoal, votará em Mário Covas.

    b. Marta Suplici anunciou seu voto em Mário Covas, "em caráter pessoal".

    c.Discordando da orientação do Diretório Nacional do PT, que recomendou não apoiarnenhum candidato ligado a Fernando Henrique Cardoso, Marta Suplici tornou públicasua "decisão pessoal" de votar em Mário Covas.

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    Os stile books (livros de normas) de alguns veículos preocupam-se com alguns dessesrecursos, vedando a utilização de verbos que encerram nítido juízo de valor, comoameaçar, vociferar ou disparar. No entanto, a preocupação manifesta com a exatidão

    da citação, a reiteração de seu conteúdo podem ser também recursos paradesqualificá-la ou fornecer elementos para sua crítica:

    1.O Ministro da Fazenda disse, ao longo da entrevista, que a prorrogação da CPMF "éindispensável", "mais do que necessária", "essencial" e que o aumento de 50 por centoda alíquota "não pode ser descartado", "é provável", "está quase decidido".

    Combinada com um antecedente circunstancial - e a partir do princípio retórico de que"se a vem antes de b, a é a causa de b", ou post hoc ergo propter hoc - uma citaçãopode assumir o valor de discurso opinativo:

    2. O parlamentar governista, cujo salário aumentará com a elevação do teto de

    vencimentos do funcionalismo, manifestou-se "plenamente favorável" à medida.

    A citação é tomada, no discurso científico ou jurídico, tal como na retórica clássica,como base para o argumento de autoridade; é o que se passa, neste texto, com ascitações de Bakhtin. Mas não é o caso do jornalismo contemporâneo, inserido no que oautor soviético chama de individualismo relativista. Adverte ele que "é importantedeterminar o peso específico dos discursos retórico, político ou jurídico na consciênciade um dado grupo social em determinada época", bem como "a posição que umdiscurso citado ocupa na hierarquia social de valores".

    A história moderna dos discursos não-artísticos 

    Na Idade Média, os discursos não-artísticos constituem documentos fundamentais parao estudo da evolução do latim vulgar e de sua diluição em dialetos comunitários eregionais por toda a Europa. Anais, atas, decretos, relatórios, proclamações, crônicas(episódios listados em ordem cronológica) constituem parte substancial da bibliografiados dicionários etimológicos.

    Com o renascimento e a formação dos estados nacionais modernos, as línguasnacionais foram impostas a áreas territoriais extensas através de mecanismoscompulsórios e sistemas escolares que partiram da estruturação dessas línguas emdocumentos literários canônicos, como Os Lusíadas, de Camões, Dom Quixote, deCervantes, peças de Shakespeare e poemas de Mílton, o teatro de Racine e Molière.

    A literatura - pelo menos, essa literatura - passou a ser o padrão ao qual deveriamconformar-se os discursos institucionais. É por esse tempo que nasce o jornalismo,caracterizado, inicialmente, como publicismo e com a tarefa histórica de confrontar aaristocracia a serviço da ideologia burguesa. Os grandes jornalistas do Século XVIIIforam escritores, nem sempre brilhantes, e críticos do poder aristocrático;consideravam-se e eram considerados portadores da verdade iluminista. O jornalismoera, ao mesmo tempo, retórico e literário.

    O público era restrito, porque a alfabetização ainda não se difundira o bastante; osenunciados dirigiam-se a formadores de opinião, pessoas que, por definição,dispunham de alguma liderança na sociedade. Opinião, interpretação e fatos semisturavam, a ponto de ser difícil distingui-los. A própria divisão das matérias porassuntos - que daria origem às modernas editorias - demorou a acontecer.

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    As mudanças aceleraram-se no Século XIX, em parte por causa da mecanização daindústria gráfica e do surgimento da publicidade, que baixou o custo de produção dos jornais e reduziu de maneira radical o espaço para a opinião divergente, isto é,

    daquela contrária ao poder econômico; data dessa época o fim da censura de estadopor toda a Europa. O principal fator para a mudança, no entanto, terá sido ageneralização do ensino básico, por conta da revolução industrial.

    O público multiplicou-se, alterando a demanda de informação. Dentre os várioscaminhos tentados - novelas contadas no rodapé das páginas, desenhos e gravurasque dariam origem às charges e às histórias em quadrinhos, campanhas de opiniãocontundentes etc. - o que mais se mostrou frutífero foi a exploração do noticiário. Osnovos leitores apreciavam histórias fantásticas e sentimentais, acontecimentosemocionantes e portentosos, relatos de países distantes, selvagens ou misteriosos e aampliação de dramas do cotidiano.

    Daí ao sensacionalismo foi um passo. A má qualidade literária - herdada da época dapublicismo - somou-se, aí, ao exagero retórico para produzir relatos da realidade muitodestorcidos e eventualmente mentirosos. Isso se tornaria mais evidente, no entanto,nos Estados Unidos que viveram, no fim do século passado, uma revolução industrialrápida e intensa, com a inserção na sociedade de levas e levas de imigrantes.

    Foi na América que o sensacionalismo atingiu sua máxima ampliação. Tratava-se, aí,de integrar recém-chegados de várias procedências, muitos deles mal dominando oinglês. O modelo capitalista conduziu à concentração da indústria da informação,produzindo distorções tais que um dos magnatas da imprensa da época, Hearst, foiacusado de ter promovido a guerra contra a Espanha pelo domínio sobre Cuba emtroca de privilégios de cobertura jornalística.

    Foi também na América que o sensacionalismo foi contestado de maneira maisconseqüente. Para enfrentá-lo, criaram-se cursos de jornalismo nas universidades (oprimeiro deles resultante de uma doação milionária de outro magnata da informação,Pulitzer) e procuraram-se formas de regulamentar a produção de matérias jornalísticascom alguns objetivos essenciais: (a) fixar procedimentos confiáveis de apuração deinformações; (b) estabelecer padrões consensuais de qualidade; (c) restringir o códigolingüístico de forma a permitir que notícias e reportagens possam ser produzidasrapidamente, com alta legibilidade e o mínimo de interferência das modas artísticas eliterárias.

    As estratégias empregadas para o atingimento dessas metas refletiram tendênciastípicas da época: influência dos métodos e critérios das ciências exatas, com traços

    que refletem posturas positivistas e funcionalistas; preocupação industrial esegmentação de tarefas, à maneira da organização do trabalho taylorista;pragmatismo quanto às linhas editoriais, temperado por uma tarefa de vigilância ética,transferida, geralmente, às corporações profissionais, e às escolas especializadas.

    A despeito dessa origem datada, os procedimentos desenvolvidos então difundiram-serapidamente por todos os países industrializados, com adaptações às culturas locais.Mesmo os críticos mais veementes do positivismo ou do funcionalismo - como é o casodos sistemas de informação da Igreja católica ou da União Soviética, enquanto elaexistiu - terminaram adotando as normas básicas da escola americana para a produçãode notícias e reportagens jornalísticas. Elas são versáteis o bastante para conviver comdiferentes ideologias; pode suportar linhas editoriais fundadas em hard news - como as

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    notícias sobre política, ciências ou economia - ou em temas de recreação, comoesportes e espetáculos. Tornadas signo da modernidade, chegaram ao Brasil meioséculo depois e levaram mais duas décadas para se implantarem aqui.

    Na verdade, esse estilo que valoriza a objetividade não alcança por igual todos osgêneros do jornalismo. Magazines, por exemplo, continuam inserindo mais adjetivos eadvérbios do que seria canonicamente desejável; o estilo Time combina umvocabulário básico restrito com vocábulos técnicos, palavras de gíria e adjetivaçãoerudita. Editoriais e artigos aproximam-se mais da retórica clássica; seçõesespecializadas assumem freqüentemente discursos intimistas ou excessivamentetécnicos; a crônica e a crítica são gêneros que se aproximam da literatura.

    No entanto, a linguagem básica do jornalismo tem ampla penetração social e influenciabastante outros discursos. Mantém relação constante com a linguagem coloquial e setornou o padrão genérico dos enunciados impessoais e conteudísticos que predominam

    na cultura contemporânea - diante dos quais surgem como rebarbativos os discursos jurídicos tradicionais, a escrita oficial e cartorária e certas falas corporativas, como oeconomês.

    O texto jornalístico no Brasil 

    Os primeiros veículos de informação periódica produzidos no Brasil antecedem depouco a Independência. No primeiro império e no período das regências, o jornalismoera uma atividade publicista de alto risco, exercida em veículos geralmente de vidaefêmera. Só no Segundo Império, em ambiente de mecenato, surgem algumascaracterísticas peculiares de estilo. Jornalistas, na época, eram escritores, algunsnotáveis, como Machado de Assis ou Raul Pompéia; adotavam, em geral, um textoliterário simplificado, que se manifesta, por exemplo, nas Crônicas do Senado, deMachado.

    Qualidade realmente literária é rara. Ela aparece, por exemplo, em Os sertões, deEuclides da Cunha. No entanto, esse extenso livro-reportagem levou dois anos paraser escrito, enquanto o autor, que era engenheiro, construía uma ponte, em São Josédo Rio Pardo, São Paulo, e teve dois pré-textos: os telegramas que enviou ao Estadode São Paulo, acompanhando a guerra em Canudos, e o manuscrito Diário de umaexpedição, que só seria publicado em 1935.

    O divórcio entre a língua escrita e a falada - entre o vocabulário e os usos gramaticaisde uma e outra - agravaram-se no início do Século XX. Sob influência doparnasianismo francês, exaltava-se o estilo empolado dos discursos de Rui Barbosa,

    cujo conteúdo jurídico, no entanto, parece hoje modesto. Essa mesma presunção dequalidade artística se reflete nos artigos médicos relacionados com a campanha contraas doenças tropicais liderada por Osvaldo Cruz, nas crônicas e romances de CoelhoNeto ou Humberto de Campos, nas reportagens - importantes como documento - deJoão do Rio (Paulo Barreto), notável jornalista do Rio de Janeiro da República velha.

    Com a profissionalização incipiente e a presença de corretores de anúncios nasredações - as agências de publicidade só começariam a aparecer na década de 20 - onível sociocultural dos jornalistas sofreu, na média, queda acentuada. A cobertura defatos urbanos e policiais, particularmente, evidencia esse fato: tende a incorporar agíria dos rábulas e policiais, chamando os acusados de indigitados, as pessoas pobres(só estas) de indivíduos, os carros oficiais de viaturas. Ao mesmo tempo, a presunção

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    literária nomeava ruas e avenidas como artérias, vereadores como edis, motoristascomo chauffeurs etc. A hierarquia social rígida aparecia no tratamento de SuaExcelência dado às autoridades e de doutor a qualquer pessoa influente.

    Os poucos escritores dessa época lidos ainda hoje eram acusados por seuscontemporâneos de praticar um estilo pobre e vulgar. É o caso de Lima Barreto, deMonteiro Lobato e de Oswald de Andrade (este, desde muito antes de se tornarconhecido, com a Semana de Arte Moderna de 1922).

    O modernismo literário demorou a se transplantar para o discurso jornalístico; amaioria das propostas da Semana, que pretendia justamente aproximar os enunciadosartísticos da fala comum, só chegou efetivamente aos jornais somadas à importaçãoestilística do modelo americano, a partir da década de 50 - embora houvessetentativas anteriores, principalmente gráficas e em publicações de circulação restrita.

    Uma das razões do abandono dos paradigmas literários no jornalismo, com aindustrialização, é uma nova compreensão dos objetivos do ensino e da prática dalíngua nacional. A questão central é que dificilmente alguém será chamado, na prática,a exercer a competência compatível com um Camões, um Machado, ou para citar autormais recente, de um Graciliano Ramos, ele mesmo revisor de originas do Correio daManhã, do Rio, na década de 40. Pessoas em geral não escrevem ou falam literatura,isto é, língua em forma de poesia ou narrativa artística; o que se exige delas é que seexpressem com clareza, concisão, correção e, subsidiariamente, elegância, emdiscursos e textos voltados para a comunicação de conteúdos referenciais.

    O estudo da "língua culta" 

    Presentemente, os estudos literários ampliam-se, associando-se à análise de discursose à semiologia na tentativa de construir um conhecimento que dê conta de atividadesartísticas envolvendo línguas e imagens dinâmicas, como o teatro, o cinema ou osquadrinhos. Já a Lingüística contemporânea valoriza extraordinariamente o estudo dasformas orais e dialetais das línguas. Isso se deve a uma série de fatores:

    a. línguas ágrafas ocuparam o espaço acadêmico antes dedicado às letras clássicas e àLingüística comparada, principalmente a partir da tarefa de descrever idiomasindígenas, a que se obrigaram os lingüistas desde a contratação de Franz Boas pelogoverno americano, com essa finalidade, no século passado e, depois, com osinvestimentos feitos na área de antropologia;

    b. algumas tendências modernas, como a Gramática Gerativa de Noam Chomsky,

    buscam uma gramática universal (UG), fundada na correspondência de uma formalógica (LF) e uma forma fonética (PF) e cujo fundamento é a aquisição de linguagem(oral) pelas crianças, atribuída a uma faculdade mental inata. Isto chamou a atençãopara o fato óbvio de que as línguas são primariamente eventos sonoros;

    c. a fonética teve desenvolvimento extraordinário e se tornou a única área daespecialidade que parece a ponto de se completar como ciência, produzindoconhecimento que se transfere à medicina e à informática.

    Terá sentido, dentro desse contexto, estudar uma forma de língua escrita, que nosentido clássico se chamaria de "culta" e, ainda mais, não literária? Há duas respostaspossíveis. Uma refere-se a questões essencialmente técnicas - facilidades operacionais

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    que o estudo da língua escrita simplificada em que os jornalistas se expressam oferecepara uma compreensão formal documentada do idioma. Esmiuçaremos isso na próximaaula.

    Outra resposta tem que ver com um raciocínio de outra natureza. Ele nos remete a umanúncio de banco que a televisão veicula; nele, um ator declara que seu apoio àglobalização e comenta: "um só mundo, falando a mesma língua". Como aconteceusobre o Império romano, o inglês, novo latim, tende a ser língua universal e, assimsendo, substituir os idiomas nacionais como língua de cultura.

    Dentre as línguas nacionais, o português é uma das mais vulneráveis: é falado por umgrupo de países pobres, está sendo varrido da Ásia e, no entanto, materializa uma belatradição cultural. A sobrevivência da língua, em sua forma escrita e "culta", relaciona-se com a sobrevivência do estado nacional, dentro do qual construímos nossaidentidade, validamos nossos poucos direitos civis, as habilitações profissionais e

    acadêmicas.Preservar o português em suas formas escritas é, assim, como observa o Prêmio Nobelde Literatura José Saramago, uma atitude política de sentido, a essa altura,fortemente contestador.

    Disponível em http://www.jornalismo.ufsc.br/bancodedados/md-gramatica1.html em 27.11.2002

    [Aula 2]

    A reforma do estilo da imprensa brasileira começou na década de 1950 num pequeno jornal do Rio de Janeiro, o Diário Carioca, de forte tradição política e orientaçãoconservadora. Lá, dois professores do curso pioneiro de jornalismo que funcionava naFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil - Danton Jobim, ocatedrático, e Pompeu de Souza, seu assistente - arregimentaram um grupo de jovens, vindos quase todos de diferentes cursos universitários, para introduzir no Brasilas técnicas de redação originalmente desenvolvidas nos Estados Unidos e que já sehaviam generalizado nos países desenvolvidos.

    A aspiração de modernidade adequava-se ao espírito desenvolvimentista da década ecorrespondia à influência do estilo das agências de notícias internacionais (FrancePress, United Press, Associated Press, principalmente), cujos telegramas traduzidos os

     jornais transcreviam. Com a Segunda Guerra Mundial e, em seguida, a guerra fria,esses telegramas ocupavam espaços privilegiados, em conflito estilístico claro com asmatérias locais. Por outro lado, as técnicas modernas de redação eram conhecidas denúmero restrito de jornalistas com experiência no exterior, como Joel Silveira e RubemBraga, correspondentes de guerra junto à Força Expedicionária Brasileira, na Itália, ouo próprio Pompeu de Souza, que trabalhou como redator de um noticiário da ColumbiaBroadcasting System (CBS) dirigido ao Brasil, entre 1941 e 1943.

    Do Diário Carioca a nova maneira de redigir migrou - na verdade, foram os redatoresque migraram -, para o Jornal do Brasil, veículo tradicional (fundado em 1891, comorientação monarquista) que se decidiu a fazer uma reforma editorial. Lá, no final dadécada de 50 e nos primeiros anos da de 60, o estilo de texto se fixou, associando-se

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    a uma nova estética gráfica. A primeira página, antes ocupada por anúnciosclassificados, ganhou formas inspiradas no construtivismo; o mesmo formatoprosseguia pelas páginas internas e suplementos. Um deles, o Suplemento Literário,

    com diagramação experimental surpreendente, veiculava idéias estruturalistas epublicava poemas concretos. A própria diagramação das páginas - projeção emprancheta - era novidade, introduzida na imprensa diária, anos antes, pela ÚltimaHora, de Samuel Weiner, que, no entanto, importou da Argentina estética popular emais conservadora. O Diário Carioca, como os outros jornais da época, não eradiagramado.

    O efeito da reforma do Jornal do Brasil foi notável, não tanto pelo aumento da tiragem(que se elevou bastante, mas não a ponto de torná-lo o líder em vendas na cidade),mas, principalmente, pelo prestígio que o jornal assumiu como porta-voz dasaspirações da nova classe média que ocupava postos de decisão nas empresas estataise multinacionais. Como conseqüência, a reação dos concorrentes foi intensa.

    A maneira encontrada pelo Jornal do Brasil para modificar, do dia para a noite, o estilode todo texto do jornal foi a institucionalização de um procedimento já adotado noDiário, de maneira informal: reescrever as matérias, ampliando as atribuições do copydesk, seção da redação existente na imprensa americana com a incumbência derevisar originais. Foi exatamente contra o copy desk do JB que se concentrou acampanha movida tanto por jornais do Rio de Janeiro, principalmente O Globo, quanto,em caráter preventivo, pelos de São Paulo.

    A razão principal é que o copy desk era um corpo de profissionais com visão técnica do jornalismo, excluído do sistema de injunções que tradicionalmente se instituíra naimprensa. Naquela época, as empresas jornalísticas, com raras exceções,remuneravam oficialmente todos os redatores e repórteres com o salário mínimo

    permitido por lei. Muitos eram funcionários públicos ou de empresas prestadoras deserviços públicos; para esses, o jornalismo era um segundo emprego, relacionado como primeiro - no jornal, defendiam os interesses do principal empregador. Para outros, opróprio dono do jornal conseguia, com seu prestigio, a inclusão em folhas depagamento de repartições do governo. Nos casos (como os dos jovens redatores) emque havia necessidade de pagar além do mínimo, o dinheiro saía por fora, isto é, semo recolhimento de encargos previdenciários, sem a obrigação de remunerar as férias eindenizar por ocasião da dispensa.

    A luta contra essa caixa dois, pela profissionalização e moralização do jornalismoempolgou naturalmente os jovens redatores do copydesk do Jornal do Brasil, queestiveram na linha de frente de uma greve que paralisou os jornais cariocas, em 1962,exatamente com essas palavras de ordem. No clima político agitado da época que

    precedeu e se seguiu imediatamente ao golpe de 1964, eles foram, então,sucessivamente acusados de comunistas, comparados a censores e, finalmente,apelidados de idiotas da objetividade por Nélson Rodrigues, o teatrólogo que escreviauma coluna em O Globo expressando geralmente o pensamento de Roberto Marinho.Nessa mesma coluna, anos depois, ele conduziria uma campanha de desmoralizaçãocontra D. Hélder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, numa época em que o nomedo clérigo, opositor do regime militar, não podia sequer ser mencionado nos outros jornais.

    Só no início da década de 70 os grandes jornais do Rio e de São Paulo - logo seguidospela imprensa de todo o País - adotariam algumas das normas de redação lançadaspelo Diário Carioca (que deixou de circular em 1965) e fixadas no Jornal do Brasil. O

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    Globo, inicialmente, contratou um profissional oriundo do Diário Carioca para reformarseu texto noticioso, organizando um copy desk; cerca de um ano depois, quandovagou o cargo de diretor de redação, trouxe outro jornalista do Diário para ocupar o

    cargo.

    Em São Paulo, a mudança dos métodos e critérios do jornalismo havia começado, nadécada de 60, com uma revista mensal ambiciosa e muito bem editada, Realidade.Para a mudança nos jornais, foram feitas algumas experiências, a começar pelovespertino de O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde, que dava às matérias noticiosasestilo inspirado no dos magazines. A incorporação do novo modo de escrever aonoticiário tradicional fez-se aos poucos, com a preocupação de copiar rigorosamentemodelos americanos, de modo que algumas das criações mais originais do DiárioCarioca não chegaram ou demoraram a chegar à imprensa paulista.

    Foram características da reforma do Diário Carioca:

    1. a adaptação do lead - primeiro parágrafo da matéria impressa, onde consta o fatoprincipal ou mais importante de uma série, tomado por seu aspecto principal - à línguaportuguesa evitando, por exemplo, o estilo uma proposição por período, que é aindahoje norma imposta na Folha de São Paulo, e dá aos textos aspecto telegráfico, deleitura cansativa. Para isso, foram consultados outros modelos de adaptação,principalmente dos jornais ingleses e franceses;

    2.a incorporação progressiva de usos propostos, na literatura, pelos modernistas de1922, para aproximar a escrita da fala corrente brasileira. Nessa linha, as pessoasdeixaram de morar à Rua X para morar na Rua X. Os tratamentos tornaram-se menoscerimoniosos; passou-se, aos poucos, a escrever o nome das pessoas sem aprecedência de um título - senhor, senhora, doutor, excelência, dona e, para os

    desqualificados, o estranho indivíduo. Os redatores do Diário eram leitores constantesde autores modernos, particularmente de Graciliano Ramos, cujo estilo enxutotomava-se como modelo.

    É interessante comparar os style books - manuais de redação - do Diário e dos jornaisatuais. O manual escrito em 1950 por Pompeu de Souza, é um documento sintético,até porque produzido por quem iria gerir sua aplicação. Contém algumas concessõesao espírito da época: não se admitia chamar uma mulher casada, pelo menos as daclasse dominante, pelo nome; era necessário precedê-lo de d. Da mesma forma, opronome para o Papa não era ele, mas Sua Santidade, e temia-se que fosse impossívelsuprimir inteiramente o Exa do nome de alguns figurões. Esses preceitos tiveram queser modificados ao longo do tempo, à medida que as experiências ou (falsos)esquecimentos esbarravam ou não em reações negativas - das madamas, da

    hierarquia da Igreja, daqueles a quem se negava a excelência.

    Já os manuais de redação atuais costumam ser detalhistas, abrangentes epresunçosos. Misturam discursos sobre o que o dono do jornal pensa do mundo (naRBS, instruções internas informam aos jornalistas que o jornal apóia decididamente aprivatização e a globalização) - e nisto se parecem com o manual da Tribuna daImprensa, de Carlos Lacerda que, na década de 50, imitando o Diário Carioca, lançoutambém seu style book - com critérios editoriais genéricos, manifestações de princípiose argumentos de marketing institucional.

    Em alguns casos, pretendem legislar sobre temas lingüísticos: o manual do Estado deSão Paulo, inspirado em uma tradição que descende da Gramática de Port Royal, do

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    Século XVII, afirma que a ordem sujeito-verbo-objeto é a "normal" nas sentenças,alinhando, em seguida, dezenas de exemplos em contrário, ou exceções.Consideremos, mais longamente esse caso, em particular:

    A - Característica geral da percepção humana - portanto, da gramática universal - éque a natureza nos propõe ações e relações entre objetos, mas nós as representamoscomo objetos em relação ou ação. Na natureza, o que notamos, portanto, é a quedado cometa, o soco de um pugilista no outro, o pássaro no céu; o notável, para nós, é adescontinuidade, a relação entre dois estados simultâneos (uma forma contraposta aoutra) ou entre dois estados sucessivos (os de algo que se desloca, se revela ou setransforma). A maneira humana de representar isso atribui papéis temáticos (deagente, paciente, instrumento etc.) a objetos ou coisas, que são os argumentos dafunção, e concentra a transformação em verbos, adjetivos, advérbios e preposições.Assim, dizemos que o cometa cai (o cometa é o paciente da queda), que um pugilista(agente) socou o outro (paciente), o pássaro (paciente) está, é perceptível no céu(função). Neste último caso, no (em) estabelece a relação entre pássaro e céu;

    transforma céu em no céu; o verbo estar afirma a relação, transforma-a em sentença,além de agregar os elementos tempo, modo e aspecto.

    B - Isso, no entanto, não justifica a generalização da precedência do sujeito nasentença. Na verdade, a ordem S-V-O é típica de línguas não declinadas e não pro-drop, como o francês ou o inglês. Nas línguas declinadas (como o latim, o alemão ou orusso), a ordem pode não ser relevante ou essencial para o sentido. Nas línguas pro-drop, como o português, em que as pessoas verbais são identificadas na fala pordesinências distintas, o sujeito genérico é freqüentemente omitido (fica subentendidopela desinência do verbo), o sujeito pode aparecer posposto e desaparecem pronomesexpletivos (de valor meramente gramatical) antecedendo as formas verbais. Hálínguas em que a ordem usual não é S-V-O, mas outra: em irlandês, a sentença usual

    tem a forma V-S-O.1 -a - Passaram todos.b - *Have passed (they) allc - *Ont passé ( ils) tous

    2 -a - Chove.b - *Rainec - *Pleut

    3 -

    a - Sevódnia utrom vam zvoníl Sómov (russo)Hoje de manhã para vocês telefonou Somov

    4 -a - Chonaic Seán an madra (irlandês)Viu João o cachorro

    C - Daí se pode presumir que o etnocentrismo, não efetivamente hipótesesrelacionadas com universais lingüísticos, determinam a indicação da ordem S-V-Ocomo normal, intuitiva ou "própria da estrutura profunda da linguagem", tanto nomanual de O Estado de São Paulo quanto na gramática francesa do Século XVII (em

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    que se apresentava o francês como língua lógica, em oposição ao alemão, que falavapor inversões) e em textos da gramática gerativa americana.

    D - Note-se que a descrição gramatical, no caso dessas duas gramáticas, parte dosconceitos de sujeito e predicado em Aristóteles. Este sustentava o ponto de vista deParmênides, sobre a unidade do ser, para o qual as sentenças apenas podiam predicarestados. No entanto, na visão dialética de Heráclito, a primazia não pertence aosujeito, mas aos estados, já que não há dois sujeitos iguais em estados ou temposdistintos: "não se pode tomar banho duas vezes na mesma água de um rio". O mundoé dado em fluxo e, portanto, todos os seres estão também em fluxo.

    E - A notação lógico-matemática que prevalece hoje na lingüística formal está maispara Heráclito do que para Parmênides. A predicação é, aí, assimilada ao conceito defunção; sujeitos e demais complementos do verbo são considerados argumentos.Assim, em "João viu o cachorro", viu é a função; João e o cachorro os argumentos. Afunção é designada por letra maiúscula (F) e os argumentos pelas letras iniciais

    minúsculas da palavra principal do sujeito ou complementos do verbo. Sepretendermos uma interpretação filosófica, as relações presidem as entidadesnomeadas no discurso. Assim:

    5 - João viu o cachorro j F cF(j,c)

    E - Observe-se que a precedência é dada à função, não ao argumento, seja ele sujeitoou objeto do verbo. Esse modelo funcional domina praticamente todas as gramáticascontemporâneas, desde a semântica de Montague e as representações da lingüísticacomputacional até o gerativismo de Chomsky a partir da Teoria dos Princípios e

    Parâmetros(onde os argumentos são chamados de externo, o sujeito, e internos, osobjetos), embora possa conviver, aí, mesmo no minimalismo, com a precedênciaatribuída ao sujeito nas sentenças nas primeiras versões da Teoria Gerativa.

    Características da linguagem jornalística

    Com as inovações introduzidas pelas reformas do período 1950-1970, a linguagem jornalística tem, hoje, as seguintes características:

    aos discursos retóricos, explicitamente, pelo mecanismo da citação e, implicitamente,através dos métodos de seleção do que é informado e ordenação das informações -que são os aspectos ideológicos desse tipo de discurso.

    A - quanto à escolha de itens léxicos

    1. utilização, sempre que possível de palavras admissíveis no registro formal e noregistro coloquial da linguagem, isto é, daquelas palavras que pertencem, ao mesmotempo, ao conjunto dos itens léxicos aceitos na linguagem formal e na linguagemcoloquial. Sempre que os sentidos sejam permutáveis, entre perfunctório e superficial,o preferível, portanto, é superficial; entre próximo a e perto de, é perto de; entrerecinto e sala, é sala; entre pretérito e passado, é passado; entre sintagma e locução,é locução. A regra se aplica, no geral, tanto ao texto escrito quanto ao coloquialsimulado.

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    2. criação de neologismos e atualizações necessárias (malufista, petista), formascondensadas que se originam da circunstância de os títulos terem letras contadas (FHCpor Fernando Henrique Cardoso, desarme por desarmamento), bem como a

    incorporação de expressões populares e de gíria que se generalizam (bumbum, chequevoador).

    3. eliminação, sempre que possível, de preciosismos, palavras estrangeiras, de gírialocal e jargão profissional. Palavras técnicas, quando necessárias - e elas se tornamnecessárias em períodos de intensa transformação tecnológica como o atual - devemser usadas com parcimônia (na linguagem jornalística, seria preferível commoderação) e definidas pragmaticamente, isto é, com a explicação necessária apenasa seu entendimento imediato. Assim, por exemplo, na descrição de uma cirurgia:

    O corte é feito na artéria femural, a principal da coxa, quatro dedos acima do joelho...

    e não:

    O corte é feito, seis centímetros acima da borda da rótula, na artéria femural, ramoprimário da aorta descedente que se nomeia como artéria ilíaca até o ponto em que,ao sair da região ínguino-crural, assume esse nome ...

    1. a teoria geral por detrás dessas escolhas é de que a precisão é sempre relativa,dependendo do contexto da enunciação. Se um político sofre de câncer, isto bastanuma notícia destinada ao público em geral, mas não bastará certamente a seu médicoassistente, que precisará averiguar a natureza, tamanho e localização do tumor, nomínimo. A informação de que uma nave experimental é movida a jatos de partículassubatômicas ou íons é adequada e bastante para um público com formação básicaescolar completa, mas nitidamente insuficiente para umfísico, que gostaria de dispor

    de detalhes sobre o funcionamento desse motor iônico; a mesma informação é, poroutro lado, inacessível a pessoas sem formação básica completa ou que não prestarama atenção merecida às aulas de ciências - daí o bom senso de se acrescentar no jornaluma explicação suplementar tal como "este é um tipo de motor que só existia emfilmes de ficção e histórias em quadrinhos".

    2. eliminação (com exceção das citações), de adjetivos e categorias testemunhais, istoé, daqueles e daquelas cuja aplicação depende da subjetividade de quem produz amensagem. Assim, evita-se dizer que alguém é rico, ou que é bonito, ou que énotável; prefere-se alinhar os bens, reproduzir depoimentos de entendidos sobre abeleza ou contar episódios em que se comprova a notatabilidade. A preferência pelaadjetivação fatual ou comprovável (números, evidências) atende à circunstância de o jornalismo ser um discurso impessoal, da perspectiva do consumidor. Não conhecendo

    o autor do enunciado, ele geralmente não é capaz de avaliar os padrões de referênciada aferição: em relação a que média se é rico, a que padrão étnico ou estético sereporta a beleza, qual a natureza ou intensidade da notabilidade atribuída.

    3. eliminação, na medida do possível e com exceção de citações, de advérbios queexpressam juízos de valor ou modulam predicações e sentenças, situando-as emmundos possíveis ou desejáveis - em suma dos advérbios de modo, intensidade eafirmação. Essa característica é importante para uma descrição formal, porque essesadvérbios oferecem dificuldades suplementares para a análise, por serem elementoslógicos de segunda ordem, ou seja, que predicam o que já está predicado, atuandocomo funções de funções. O jornalismo reporta-se ao mundo real (é fundamento

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    filosófico do ofício que ele existe), não ao que ao mundo que seria possivelmente,provavelmente, supostamente, desejavelmente, preferivelmente etc.

    4. na mesma linha, restrição genérica e entendimento particular de verbos de atitudeproposicional, isto é, que expressam esperanças, temores, desejos etc. quanto àproposição que os sucede, precedida de que (o que em inglês se chama de that-verbs). É o caso de considerar, esperar, ameaçar, parecer etc. - verbos cujo sentidopleno reporta-se à pessoa do falante. Quando se lê em um veículo de informação que"X considera que P", é tácita a leitura "X disse que considera que P".

    B - quanto aos procedimentos gramaticais

    1. de maneira paralela ao que ocorre quanto aos itens léxicos, utilizam-se as formassancionadas no registro formal e aceitas no registro coloquial da linguagem.Construções em desuso, como as mesóclises, são definitivamente suprimidas; há fortetendência em favor da próclise em lugar da ênclise, por ser este o uso coloquial

    corrente no Brasil; pela mesma razão, é mais comum a forma analítica do que asintética do pretérito mais que perfeito etc.

    2. de modo geral, os jornalistas estão comprometidos com a normalização da língua,embora priorizem a necessidade de informar; assim, o verbo assistir, quando temregência indireta (assistir ao espetáculo), não deveria admitir voz passiva (oespetáculo foi assistido por...), que, no entanto, tornou-se usual pela inexistência dequalquer outro verbo que permitisse apassivar a construção (o espetáculo foipresenciado por... não é o mesmo que o espetáculo foi assistido por...).

    3. a linguagem do jornalismo é mais dinâmica do que a linguagem formal. Reflete,apesar da preocupação com a norma, os usos que se tornam correntes na língua

    coloquial, como, por exemplo, a tendência de violar a concordância verbo-nominalquando verbos pronominais vêm antes dos elementos descritos tradicionalmente comosujeitos: Vende-se casas, amplia-se as possibilidades...

    4. os períodos costumam ser mais curtos do que no uso formal. Períodos muito longos(com mais de 20 palavras, em média, dependendo, naturalmente, do grau de coesão)são de leitura difícil e seletiva quanto ao nível cultural do leitor. A brevidade éevidentemente maior nos enunciados destinados a serem lidos, no rádio ou televisão, enos que se destinam à veiculação noticiosa pela Internet.

    5. As sentenças são construídas, quase sempre, na terceira pessoa, com exceção dascitações em discurso direto. Os tempos preferenciais, nas notícias, são o passadoperfeito, o futuro e o presente pelo futuro, reservando-se o presente concomitante ou

    freqüentativo para as interpretações e as formas imperfeitas para descrições quecaracterizam os actantes - personagens e entidades em geral que interferem noenunciado. O subjuntivo é de uso restrito e há nítida preferência pelo infinitivoimpessoal.

    Em suma: o texto jornalístico utiliza um léxico simplificado, sistema verbal restrito àterceira pessoa e a alguns tempos verbais, constrói períodos mais curtos e evita oudelimita o sentido de construções problemáticas, como as proposicionais. Isto lhepermite produção rápida e eficiente para fins informativos, obedecendo às normasgerais da língua. No entanto, confina a abrangência dos enunciados: a informação em jornalismo é axiomática, geralmente não dedutiva, dispensa a argumentação e asestratégias de convencimento. Reporta-se.

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     Disponível em http://www.jornalismo.ufsc.br/bancodedados/md-gramatica2.html em 6 fev 2004

    [Aula 3]

    Suponhamos que um observador humano contempla a realidade. Coloca-se no vérticede um campo de visão e; a partir dos estímulos luminosos que chegam à retina,fabrica uma realidade virtual que corresponde à realidade real considerando asensibilidade a certas radiações (do vermelho ao azul) e não a outras; integra-a comoutras percepções, táteis, sonoras, olfativas e de equilíbrio; e compensa variações deluz e foco, movimentos dos olhos e do corpo.

    O input que a representação mental do mundo recebe corresponde a descontinuidadesno espaço e fluxo no tempo, definindo relações (no primeiro caso) e ações (nosegundo). Contrapostas à memória, essas descontinuidades permitem o

    reconhecimento de padrões pelos quais se estabelecem identidades e semelhanças.Redes neurais artificiais, construídas à semelhança das biológicas, têm sido capazes dedemonstrar essa competência, aprendendo a reconhecer formas com grande acuidade.

    O trabalho mental dissocia objetos e relações, que irão corresponder a entidades epredicações do discurso. Recorrendo à memória, organiza os objetos em categorias,com base em semelhanças; distingue as relações entre as em presença (localizações)e em seqüência (ações); atribui causas e antecipa conseqüências. Prevê e desenvolveraciocínios probabilísticos.

    A confusão das categorias de identidade e semelhança resulta essencial para aconstrução da consciência humana da realidade. Admitamos que revejo uma pessoaalguns meses ou anos depois de tê-la visto: concluo que é a mesma pessoa, emboratenha tais e tais mudanças. Admitamos que vejo uma palmeira, e que a reconheçocom base na memória da visão de outra palmeira: não são iguais, mas concluo quesão da mesma espécie.

    Os conceitos de identidade do ser e de agrupamento em espécies são possíveisexatamente pelo abandono de algumas características julgadas acessórias econsideração de outras, julgadas fundamentais. É por efeito da memória que meconsidero idêntico ao que era nos diferentes estados por que passei na vida, emboratenha mudado radicalmente, em forma, atitudes, comportamentos e valores;reconheço a criança no homem, os traços do pai no filho e o Coliseu nas ruínas doColiseu.

    É evidente que, do ponto de vista lógico, uma coisa só pode ser idêntica a si mesma e,como todas as coisas existentes estão situadas no espaço e em fluxo no tempo, essaidentidade só subsiste no mesmo espaço e no mesmo tempo. Um afresco medieval noteto de uma igreja é distinto da imagem do mesmo afresco medieval na tela docomputador ou na gravura exposta em um museu, por mais exata que seja areprodução. Não havendo como separar a percepção de um objeto das relações que ocercam, nem de igualar a representação desse objeto por observadores inseridos emcircunstâncias diferentes, cada fruição do objeto, em espaço e tempo distintos, é umaexperiência única.

    Dois produtos industriais de uma linha de montagem não são logicamente idênticos: sefossem, submetidos às mesmas condições, se deteriorariam de modo exatamente igual

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    e no mesmo instante, o que não acontece. A própria idéia de semelhança recobrecritérios distintos: duas coisas podem ser semelhantes porque se parecem na forma(como as pérolas), porque têm desempenho similar (como os computadores) ou

    porque despertam os mesmos sentimentos (como as feras). A definição de categoriasdepende da pragmática da relação: a denominação pinheiro, em português, recobrevários tipos diferentes de árvores em russo; a cultura aimara reconhecia dezenas desementes distintas para o que chamamos de amendoim.

    A teoria moderna mais consistente que aborda a questão da percepção é a dosmodelos. Segundo ela, a representação da realidade é decomposta e modelada numaetapa pré-lingüística da percepção. Desenvolvida no contexto da Teoria da Cognição,sua formulação deve-se, principalmente, a Johnson Phillip-Laird (PHILLIP-LAIRD,1983). Segundo essa hipótese, as sentenças das línguas naturais remeteriam amodelos mentais, que são análogos estruturais do mundo: dão conta de relaçõesestáticas e dinâmicas entre objetos, ações e estados; descartam aspectos nãorelevantes da realidade para captar os relevantes e contêm aspectos proposicionais,

    tais como relações sintáticas .

    Os modelos mentais são incompletos, mais ou menos imprecisos, eventualmenteinconsistentes, porém funcionais. Não têm fronteiras definidas: superpõem-se econfundem-se. São tomados como hipóteses mais ou menos confiáveis e nãosuprimem necessariamente comportamentos relacionados a modelos concorrentes.

    Modelos mentais refletem crenças da pessoa, adquiridas por observação, informaçãoou inferência; devem ter parâmetros e estados correspondentes a parâmetros eestados cuja negação a pessoa não possa observar ou inferir. Permitem também certonível de predição: quem está com o guarda-chuva aberto e tem que passar portal decasa modela previamente o evento de modo a perceber que precisa fechar o guarda-

    chuva e colocá-lo na vertical.As pessoas fazem modelos mentais das situações espaço-temporais descritas nasproposições que recebem; estabelecem, assim, relações que excedem aspossibilidades de inferência a partir das proposições recebidas; podem ter modelosdiferentes ou contraditórios para o mesmo estado de coisas, em diferentes instânciasou situações. Esquecem detalhes do sistema modelado, refazem e revisam seusmodelos com a experiência. A operação dinâmica dos modelos possibilita a redução deriscos objetivos (antecipação de desastres) e a economia de esforços físicos naapreensão do conhecimento (dispensa de experimentações), embora haja nisso customental e limitações operacionais variáveis.

    É a gestão do modelo que vai definir sua amplitude, isto é, o conjunto de coisas a que

    ele se aplica. Modelos mentais representam objetos e relações, a que vãocorresponder, nas proposições, argumentos (nomes) e funções (verbos, adjetivos,advérbios); estruturam-se conforme os estados de coisas do mundo mas, por teremestrutura dimensional, podem ser manipulados mais livremente do que asrepresentações proposicionais, aprisionadas a regras sintáticas.

    As estruturas dos modelos mentais eqüivalem às estruturas atribuídas pela percepçãoou concepção aos estados de coisas que os modelos representam. Cada elemento deum modelo mental, incluindo suas relações estruturais, deve representar algo, nadahavendo nele sem significado ou função.

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    Uma pessoa que anda, à noite, no escuro, em sua casa, tem um modelo mental(espacial) da casa. Uma pessoa que reza durante uma tempestade tem um modelomental (causal) que relaciona a reza e algum controle sobre a tempestade. Uma

    pessoa que aperta repetidamente o botão + da calculadora tem um modelo mental deprocedimento recursivo ou confirmatório.

    No âmbito da Teoria da Cognição, modelos mentais são concebidos como entidadescomputáveis e finitas, construídas a partir de elementos (ou tokens) e relações, quepodem ser revisadas recursivamente, de modo a corresponder a número infinito depossíveis estados de coisas. A possibilidade de representar diretamenteindeterminações é limitada pela operacionalidade do modelo.

    Modelos mentais constituem conjuntos finitos de campos semânticos e de operadores,entre esses os conceitos de tempo, espaço, possibilidade, permissibilidade, causa eintenção. Campos semânticos correspondem, nas línguas, a palavras quecompartilham um conceito comum no núcleo de seus significados. Quanto a esses

    operadores, tempo e espaço, por exemplo, podem ser entendidos como grandezasvetoriais; a noção de causa relaciona-se com a implicação lógica (a causa b sepertence a um conjunto de eventos A tal que A antecede b e, se ocorrer A, entãoocorre b); os demais (o possível, o permitido, o pretendido) pertencem ao universo daLógica Modal.

    Ao atualizar um modelo, remeto a primitivos conceituais que devem ser inatos - porexemplo, a noção de fluxo. Suponhamos que tenho o modelo mental de "avião" comoalgo estrutural equivalente a "artefato + que voa". Se ouço dizerem "o avião quepassa", atualizo o modelo no tempo-espaço (seria diferente a dimensão espaço-temporal se dissesse "a nave interplanetária"). Mas se me reporto ao "avião em queviajo", atualizo o modelo para "eu-dentro-avião"; naturalmente, o modelo será

    diferente se sei como é um avião por dentro ou não, se já viajei ou não em avião. Noentanto, se imagino "o avião que piloto", atualizo o modelo "eu-dentro-avião" para"eu-comando-avião", com o grau de discernimento de que disponha sobre a tarefa dapilotagem.

    A Teoria distingue entre modelos físicos (estáticos, espaciais, temporais, cinemáticos,dinâmicos e imagens, que são vistas ou projeções do objeto ou evento representado) emodelos conceituais, construídos, em geral, a partir dos discursos. Dentre esses: (a) omonádico, que representa afirmações sobre individualidades; (b) o relacional, queagrega número finito de relações, possivelmente abstratas, entre entidadesindividuais; (c) o metalingüístico, que contém tokens correspondentes a expressõesque relacionam um item do código lingüístico a outros (como chama-se, significa); e(d) o conjunto teórico, que contem número finito de tokens que representam

    qualidades abstratas dos conjuntos e um número finito de relações entre os elementosdesses conjuntos.

    A tese dos modelos mentais sintetiza concepções freqüentes na segunda metade doSéculo XX em diferentes campos do conhecimento. Ela é compatível, por exemplo,com a proposta de Charles Fillmore (FILLMORE, 1971), para quem o significado estáligado a cenas e perspectivas: sempre que o falante escolhe uma palavra em umenunciado, automaticamente a insere numa cena na qual adquire interpretação. Anoção de perspectiva é tal que, quando se diz "quebrei o vaso", o que está sendoposto em primeiro plano é o que foi quebrado, colocando-se em desprezível segundoplano o onde, o quando e o como.

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    Os nomes

    Ao distinguir entidades e relações, o pensamento humano nomeia as primeiros, isto é,

    estabelece correspondências entre os traços do modelo que representa as entidades ealguma cadeia de símbolos sonoros. Os nomes podem ser grupados em trêscategorias:

    1.Nomes próprios - do ponto de vista semântico, nome próprio ou individual é aqueleque designa de maneira única uma entidade em um universo de discurso considerado.O universo de discurso corresponde a espaço e tempo delimitados, de modo queMárcia é o nome próprio de uma pessoa numa sala de aula de poucos alunos, mas nãoo é para o conjunto de uma escola, muito menos para o Registro Civil, onde seránecessário não apenas o nome completo mas outros índices (como a filiação e o CPF)para compor uma designação única; não se pode afirmar que essa mesma designaçãocompleta corresponda à entidade Márcia em algum tempo futuro ou passado ou numoutro planeta.

    Nomes próprios (ou designações próprias) são unívocos no universo considerado. Noentanto, um mesmo objeto pode ter vários nomes próprios. Assim, o presidente darepública e Fernando Henrique Cardoso designam a mesma entidade, hoje, no Brasil;Euclides da Cunha, o autor de Os Sertões e o repórter de O Estado de São Pauloenviado a Canudos para cobertura da campanha designam a mesma pessoa.

    As equatividades (Fernando Henrique é o presidente, Euclides é o autor de Os Sertõese o repórter enviado a Canudos) reduzem-se, do ponto de vista da extensão ou dareferência, isto é, do mundo real, a tautologias, já que uma coisa é igual a si mesma;não conteriam, assim, informação. No entanto, do ponto de vista da intensão ou dosentido, isto é, da linguagem, é capaz de encerrar informação, porque alguém pode

    conhecer Fernando Henrique Cardoso e não saber que ele é Presidente da República,ou conhecer Euclides da Cunha, saber que ele é o autor de Os Sertões mas não que foienviado como repórter de O Estado de São Paulo para a cobertura da campanha deCanudos.

    A questão da intensão tem que ver com o princípio de Leibnitz (Eadem sunt quorumunum potest substitui alteri salva veritate), segundo o qual, se duas coisas são amesma, então uma pode substituir a outra sem afetar o valor de verdade. Isso nãoocorre em contextos proposicionais, ditos opacos. Num exemplo clássico,

    ( i) Electra tem diante dela um homem.

    ( ii) Esse homem é Orestes.

    (iii) Electra sabe que Orestes é seu irmão, mas não sabe que o homem diante dela éOrestes.

    ( iv) Não há, pois, do ponto de vista de Electra, como substituir "um homem", nasentença ( i), por "Orestes".

    A intensão é um princípio de determinação extensional. Da mesma forma quediferentes intensões correspondem à mesma extensão, a intensão pode permanecer amesma, enquanto a extensão se modifica (é o caso de seres humanos da Terra emépocas diferentes).

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    A existência de informação intensional nas relações equativas explica porque, naslocuções, duas ou mais denominações da mesma coisa podem aparecer justapostas (1a-b), sem que se constate redundância, que é, no entanto, evidente em (1 c):

    1 a - O Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, ...

    Fernando Henrique Cardoso, Presidente da República, ...

    1 b - Euclides da Cunha, o autor de Os Sertões, ...

    O autor de Os Sertões, Euclides da Cunha, ...

    1 c - *Márcia, Márcia, ...

    *Márcia, Márcia de Freitas, ...

    Do ponto de vista de uma gramática categórica, bem como da gramática de Montague,nomes próprios são designados pela letra e.

    Observe-se que a palavra "o/a", no contexto de (1 a-b) incorpora os sentidos deunicidade (é único), singularidade (em oposição a os/as) e determinação (é este, nãooutro). Mais ou menos com as mesmas interpretações aparece antes de designativosgenéricos que precedem nomes próprios (a Rua X, o Sr. Y, o General Z), mas não seusa com esses sentidos antes do nome de registro de pessoa; passaria, aí, a indicarintimidade ou notoriedade do personagem. Antes de nomes próprios geográficos, aadmissão de o/a é idiossincrática (venho de Pernambuco, venho da Paraíba).

    2.Nomes genéricos. Os nomes genéricos dão início ao processo de abstração que

    permite a linguagem e o discurso. Trata-se de uma predicação, em que se afirma queuma entidade pertence a um conjunto ou categoria existente (a que se denomina).Uma mesma entidade admite n denominações genéricas, conforme a categoria em queseja incluída: uma mesma entidade pode ser "um muro", "uma divisa", "um obstáculo"etc. Observe-se que a palavra "um", nesse contexto, incorpora os sentidos de numeral(em oposição a dois, três ... uns), de indeterminador (um qualquer) e de partitivo (umdentre aqueles da categoria ...).

    Há relação necessária entre nome genérico e pertinência a conjunto ou categoria.Quando digo que determinada entidade x "é uma árvore", estou dizendo que ela"pertence ao conjunto das árvores". A remissão é a um modelo, isto é, a algo de quedisponho, na memória, de traços aplicáveis à entidade em causa. Como em todomodelo, há um protótipo, ou imagem ideal, que incorpora muitos desses traços, e

    possibilidades mais distantes do protótipo, em que alguns traços são afirmados eoutros não, criando uma zona difusa (fuzzy). A entidade, aí, pode ser, por exemplo,árvore ou arbusto - caso em que poderia recorrer a outro conjunto mais abrangente -por exemplo, planta, com o ônus de tornar mais abrangente (e portanto menosespecífica) a denominação.

    A nomeação genérica, de certa maneira, desintegra o objeto denominado, aoconsiderá-lo por uma característica ou utilidade. Quando chamo determinadamangueira de árvore, atento para sua configuração geral (que corresponde aos traçosdo modelo de árvore - tronco, copa), mas desprezo a circunstância, por exemplo, deque dá mangas; se a chamasse mais especificamente de mangueira, atentaria paraesse fato, mas não para o tipo de manga, nem para a localização da árvore. De toda

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    sorte, nenhuma denominação genérica define (especifica de maneira única) a entidadeque predica. Isto significa que a denominação genericamente não corresponde a umelemento, mas uma variável.

    Sendo variável do discurso, a designação genérica pode sempre ser especificada poruma atribuição. Se tenho a designação genérica árvore, ao acrescentar o atributoflorida, restrinjo o sentido; se acrescento do meu jardim, restrinjo ainda mais e, por aí,posso especificar a denominação de modo que ela termine se aplicando a uma sóentidade e se torne, então, nome próprio, o da única árvore florida do meu jardim. Omecanismo, aí, é o de interseção de conjuntos conceituais, isto é, das coleções deobjetos a que se reportam funcionalmente os nomes: o conjunto das entidades quesão árvores, primeiro, porque árvore é o núcleo semântico da locução: depois, dentreas árvores, as floridas e, dentre essas, a (as) que está (estão) no meu jardim.Nomeado os conjuntos pelas iniciais maiúsculas:

    x = AÇ FÇ J

    Numa gramática categórica, a representação para nome genérico é t/e. Nesse tipo deálgebra, o denominador indica com que elemento o nome genérico deve combinar-se eo numerador o resultado da combinação: nomes genéricos devem combinar-se comum nome próprio para formar uma predicação completa. Assim:

    2.e - Maria (entidade)t/e - jornalista (nome genérico)t - A Jornalista Maria; Maria, jornalista; ou Maria é jornalista. (predicação completa)

    Sendo t/e uma fração, o produto algébrico de t/e por e é, obviamente, t .

    Note-se que t/e não é mais específico do que e, porque este, por definição, é o nomepróprio da entidade nomeada; no entanto, permite acrescentar um predicado a e,gerando a proposição predicativa t.

    Numa representação lógica tradicional, a sentença Maria é jornalista ficaria assim:

    3 - - $ x| M(x) Ù J(x), existe um x tal que x é Maria e x é jornalista.

    A notação (3 b) contempla a possibilidade de não se saber previamente que x é Maria,isto é, de se desconhecer o nome próprio de x. No entanto, iguala a condição única deser Maria no universo considerado à condição predicada (não necessariamenteexclusiva) de ser jornalista- ou seja, não distingue entre a definição, ou designação

    única de x (que é ser Maria) e seu atributo (que é ser jornalista).

    O verbo ser (é) afirma a relação entre e e t, transformando uma locução (a JornalistaMaria, ou Maria, jornalista) em sentença, à qual agrega as noções de tempo, modo easpecto (Maria foi/era/ tem sido/pode ser... jornalista). A partir de Alfred Tarski(TARSKI, 1974), considera-se que uma sentença tem valor de verdade (é verdadeiraou falsa), enquanto uma locução pode designar uma entidade ou conjunto deentidades, mas não tem valor de verdade, isto é, não pode ser dita verdadeira oufalsa.

    A notação lógica (seja da lógica categórica, em (2), seja na lógica convencional, emque pressupõe a existência ($ ) de Maria, em (3)) não contempla a diferença

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    lingüística entre a forma canônica Maria é jornalista e a forma inversa jornalista éMaria, nem a nuança de sentido que se obtém agregando à categoria a palavra "o/a"(Maria é a jornalista, a jornalista é Maria).

    No caso da inversão, a distinção decorre de estratégias de discurso, isto é, dagramática do texto, não da gramática da sentença. Digo que Maria é a jornalista se ofoco discursivo recai sobre Maria e que a jornalista é Maria se o foco discursivo recaisobre a professora.

    A palavra "o/a", antes de um nome genérico, pode atuar como o operador lógico iota (i), individualizando a entidade (como quando digo "o jornalista apurou a notícia",referindo-me a determinado jornalista e a determinada notícia) ou particularizar acategoria designada pelo nome genérico em relação a qualquer outra (como quandodigo "o jornalista é um questionador", querendo dizer que todo/qualquer jornalista équestionador, ou que ser questionador é predicado da categoria/conjunto/espécie dos jornalistas). Em determinados contextos, diferencia a relação equativa da relação

    predicativa:

    4 - a - João da Mata, o guia da expedição ao Alto Purus, ...b - João da Mata, guia da expedição ao Alto Purus, ...c - João da Mata, um guia da expedição ao Alto Purus, ...

    Em (4 a), João da Mata é o único guia da expedição ao Alto Purus e, portanto, guia daexpedição ao Alto Purus é designação própria de João da Mata; em (4 b) e (4 c), nãose afirma essa unicidade e, portanto, guia da expedição ao Alto Purus é apenas umnome genérico predicado a João da Mata.

    Note-se que, embora os significados de "o/a" pareçam relevantes, a exigência dessas

    formas (e a complicada regulagem de seu uso) é peculiar de algumas línguas (naGramática Gerativa se poderia dizer que é paramétrica dessas línguas), de vez quemuitas outros idiomas dispensam o artigo. É o caso do russo, do latim ou do hebraico.

    III - Nomes relacionais - Entidades não são designadas apenas por nomes próprios ounomes genéricos, isto é, pelas categorias a que se afirma pertencerem. Podem serdesignados também a partir de relações que mantêm com outras entidades nãoconsideradas similares. Por exemplo, irmão (de Pedro), causador (da briga), vencedor(da corrida). Nomes relacionais correspondem a predicações, designando a entidade apartir de funções (ser irmão de x, causar y, vencer z).

    Essas designações, que Luria chama de genitivas (LURIA, 1987) e os nomes genéricosdiferem

    a. do ponto de vista semântico, porque nomes genéricos reportam-se a conjuntos deentidades (árvores, carros, pessoas, mares, rios, aviões etc.), enquanto nomesrelacionais (irmão, marido, causador, matador, vítima etc.), não se reportam aqualquer entidade salvo quando acompanhados da designação da entidade com que seestabelece a relação (irmão, marido, matador de alguém; causador de algo; vítima dealguém ou de algo);b.do ponto de vista sintático, porque, quando um nome genérico é acompanhado deum atributo, pode-se afirmar a relação predicativa (4 a-b-c); isso não ocorre em umnome relacional, exatamente porque ele já expressa, em si, uma relação (5 a-b-c).Pode-se, no entanto, predicar a relação à entidade (6 a-b-c):

    4 - a - O carro de São Paulo > o carro é de São Paulo

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    b - A árvore frondosa > a árvore é frondosac - O avião da presidência > o avião é da presidência

    5 - a - O irmão de Pedro > *o irmão é de Pedrob - O causador da tragédia > *o causador é da tragédiac - A vítima do chantagista > *a vítima é do chantagista

    6 - a - X, irmão de Pedro, ... > X é irmão de Pedrob - Y, causador da tragédia, ... > Y é causador da tragédiac - Z, dono da casa, ... > Z é dono da casa

    Nomes relacionais rotulam não apenas entidades que mantém relações com outras,isto é, argumentos de funções, mas as próprias funções, constituindo, portanto,elementos de uma lógica de segunda ordem, isto é, uma lógica que permite predicarfunções. Assim, consideremos funções e designações relacionais a elas referidas:

    7 - a - A mulher bela > a beleza da mulherb - Peter caça antílopes > o caçador de antílopes > a caçada de antílopes > a caça dePeterc - Mário comprou o carro > a compra do carro por Mário

    Em (7 a), a beleza rotula a predicação "ser bela". Em (7 b), o caçador é o agente de"caçar", isto é, Peter; a caça é o paciente da "caçar", isto é, os antílopes; e caçada afunção "caçar". Em (7 c), a compra rotula a função "comprar",

    A nomeação relacional pode ter ou não correspondência morfológica derivacional.Assim, se o assaltante matou o caseiro, podemos chamar o assaltante de matador ouassassino, a morte de assassinato ou crime, que é uma designação mais abrangente, e

    o caseiro de morto ou vítima; em todos esses casos teremos designações relacionais,referidas à função descrita na sentença.

    Fato de interesse sintático, no entanto, é que as nomeações relacionais transportampara a locução de que participam a estrutura argumental originária. Tomemos, porexemplo, um verbo de movimento, que preside ou admite o agrupamento de umasérie de papéis temáticos: paciente, origem, destino, sentido, direção etc.:

    8 - a - Carlos viajou de Londres a Paris, semana passada, pelo túnel sob o Canal daMancha.b - A viagem de Carlos, de Londres a Paris, semana passada, pelo túnel sob o Canal daMancha, foi uma aventura fascinante.

    Não parece adequado considerar que todas relações e circunstâncias agrupadas emtorno da denominação relacional viagem sejam meros atributos; na verdade, elaspreservam sua natureza de argumentos funcionais, permitindo a coesão da sentençaem (8 b). Compare-se com a acumulação de atribuições em torno de uma nomeaçãogenérica, em (9) :

    9 - A porta de ferro da casa de campo do dono da firma de construção civil foiarrombada.

    A dificuldade de entendimento de (9) é certamente maior do que a (8 b).

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    A possibilidade de se nomear relacionalmente não é universal: não existe, emportuguês - e, provavelmente, em língua alguma -, nomeação adequada para todas asfunções e papéis temáticos. No caso de Maria comeu um sanduíche, poderíamos

    nomear sanduíche como "comida", a função comeu, com alguma impropriedade, como"refeição", mas não teríamos como nomear relacionalmente Maria. Em João deu umlivro a Márcia, o livro poderia ser "presente"; Maria, em alguns contextos, "apresenteada"; não teríamos, porém, como designar o benefactor, João.

    Nomeação relacional e estrutura da notíciaA nomeação relacional tem extraordinária importância na gramática dos textosexpositivos, onde atua como elemento de coesão, capaz de desdobrar por váriosperíodos uma única proposição. Consideremos uma notícia típica, com seu lead (10 a)organizado no modelo clássico, em que se responde às perguntas quem? fez o quê? aquem? quando? onde? por que? e como?

    10 -

    a - X matou Y, no tempo t, no lugar l, com a arma A, pelo motivo M.b - O assassino ....c - A vítima ...d - O crime ...e - A causa ...f - A arma...

    Na série (10 a-f), os parágrafos indicados por (10 b-f) estão integrados ao lead peloinstrumento de coesão que são as nomeações relacionais. De forma menosesquemática (variando a ordenação, intercalando outras informações etc.), este é omolde básico de notícias produzidas industrialmente.

    Acontece, aí, que é exatamente a denominação relacional que permite estruturar comoexposição, isto é, como ordenação lógica (no caso, situando o todo no primeiroparágrafo lógico e as partes, uma a uma, nos parágrafos subsequentes) um eventoseqüencial. Não precisamos explicitar tudo que sabemos sobre o assassino para depoisfalar de tudo que sabemos sobre o crime, tudo sobre a vítima etc.

    Disponível em http://www.jornalismo.ufsc.br/bancodedados/md-gramatica3.html em 06 fev 2004.

    [Aula 4]

    O mundo externo, percebido pelos órgãos dos sentidos, é reconstruído na mente comorealidade virtual. Essa representação se faz por modelos compostos de traços. Modelos

    são, portanto, representações constituídas de conjuntos de traços que se especificamou particularizam a cada proposição.

    As operações proposicionais realizadas com modelos/traços permitem reconhecerrelações:a. espaço-temporais (em presença e em fluxo),b. de inferência lógica (negação, conjunção, disjunção, implicação, equivalência),c.de semelhança (causa/conseqüência, essência/aparência).

    Operando (suprimindo, compondo, abstraindo) com modelos/traços analógicos,podem-se antecipar eventos com alto grau de probabilidade e modelar objetosinexistentes no mundo real, mas atribuídos a mundos possíveis: (a) ficcionais

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    (unicórnios, centauros); (b) de desejo (deuses, fadas) ou temor (demônios,vampiros); (c) de conhecimento (seres extra-terrestres, buracos negros) etc. Pode-setambém inferir a existência de abstrações necessárias (números, equações) e modelar

    metaforicamente entidades inefáveis (sensações e estados subjetivos, como angústiaou ansiedade).

    A cada modelo corresponde uma entidade ou conjunto de entidades virtuais oumentais; modelos mantém relações funcionais com esses entidades. Dessa maneira, ouniverso dos modelos é o co-domínio ou universo dos valores do universo dasentidades mentais, tenham ou não existência no mundo real.

    Toda predicação é uma função na qual se relacionam argumentos um-um ou vários-um. Modelar um mundo real ou possível implica construir cenários onde entes dessemundo desempenham papéis temáticos (agente, paciente, tema etc.) determinadospelo funtor da predicação. Um mesmo episódio real ou possível pode ser modelado demaneira distinta por diferentes funtores, que criam cenários próprios.

    Criar um cenário implica não apenas distribuir papéis temáticos mas também priorizaralgum(ns) aspecto(s) em detrimento de outros. Assim, posso considerar a construçãoda casa de (1 a-c) como investimento (1-a), dimencioná-la pelo espaço que ocupa(1-b) ou sugerir seu valor como criação artística (1-c) em distintos cenáriosproposicionais, onde ela ocupa o papel temático de tema e, por hipótese, designa omesmo objeto:

    1 -a - A casa custou quinhentos mil dólaresb - A casa ocupa oitocentos metros quadrados.c - A casa foi projetada por Niemeier.

    Diante da morte de alguém conhecido, posso destacar o paciente, Mário, tornando acausa irrelevante (2-a), co-relevante ou secundária (2-b) ou relevante (2-c) para odiscurso, conforme a estratégia assumida (parte-se de uma das máximas de Grice:dizer apenas o que é relevante):

    2 -a - O Mário morreub - O Mário morreu de aidsc - A aids matou o Mário

    Os papéis temáticos realizam-se na língua como casos sintáticos determinados pelo

    funtor da predicação. O funtor ou o predicado desenham o cenário da predicação, demodo que não há homologia entre papéis temáticos e casos sintáticos. Por exemplo,embora intuitivamente se atribua o papel de agente ao sujeito, verbos ditosinacusativos ou ergativos (por exemplo, "Mário morreu", "Maria chegou") destinam olugar de sujeito ao paciente ou tema, não ao agente.

    Nas línguas em geral, todas as relações que constituem dimensões de um modelodevem ser expressas por sons linearmente organizados. Por um princípio de economialingüística, tanto relações necessárias (tempo, aspecto e modo das sentenças; lugar,pertinência, propriedade, posse: agente/paciente, modo, instrumento,causa/conseqüência, origem, destino, sentido, direção etc) quanto condiçõessemânticas (sexo expresso pelo gênero, singularidade e pluralidade etc.) podem ser

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    gramaticalizadas. O elenco de relações e condições selecionadas para gramaticalizaçãovaria de língua para língua, embora haja um conjunto de relações e condições quetende a ser gramaticalizada na maioria das línguas.

    Os processos de gramaticalização obedecem com freqüência a uma hierarquia:a. adição à unidade semântica mínima de afixos;b. adição à locução de afixos;c. ordenação das palavras.

    Em um sistema de afixação, a ausência de afixo (ou afixo Æ ) costuma sersignificativa. Assim, na oposição singular/plural, em português, o s é marca depluralidade e, em decorrência, sua ausência é marca de singularidade.

    Os afixos de palavras são freqüentemente sufixos, embora possam ocorrer prefixos (oredobro dos verbos gregos, por exemplo) e encaixes internos. Os afixos de locuçõessão freqüentemente prefixos, embora possam ocorrer formas sufixais, partículas

    encaixadas ou livres.

    A ordenação de palavras tende a torna-se significativa de relações de caso (portanto,dos papéis temáticos, dentro do cenário desenhado pelo modelo proposicional) àmedida que se desprezam os recursos da afixação de palavras e locuções. No entanto,a ordenação pode conter significados semânticos não relacionais ou sistêmicos dalíngua (paradigmáticos, em regra, não sintagmáticos), como ocorre na colocação demuitos adjetivos em português: eles são mais referenciais ou concretos após o nome,mais fracos ou abstratos antes do nome (grande casa, casa grande, homem pobre,pobre homem).

    Diz-se em teoria da gramática que os predicados ou seus funtores selecionam os

    papéis temáticos, atribuindo-lhes casos e sistemas de concordância que variam delíngua para língua. Pode-se afirmar que para qualquer papel temático existe um caso,embora seja comum mais de um caso terem a mesma forma (por exemplo, aspalavras femininas gregas da primeira declinação com o tema em a precedido de e , iou r têm nominativo, vocativo e dativo com a terminação Æ ), o que geraeventualmente ambigüidade fora do contexto. Isto é, no entanto, irrelevante porque oque importa na língua é a ambigüidade contextualizada, isto é, as situações deenunciação em que a ambigüidade não pode ser eliminada imediatamente porinferência ou pressuposto.

    A noção de predicação tem sido aplicada ora à sentença, onde o funtor seria em geralo verbo (discute-se este papel no caso das sentenças copulares e de sentenças semverbos ou small clauses, como "João considera a prova difícil" ) , ora a locuções, onde

    (a) adjetivos atuariam como predicados (3-a) e (b) preposições (3-b) ou, mesmo, emportuguês, o artigo indefinido (3-c) atuariam como funtores, estabelecendo relaçõesfuncionais entre dois termos. Sob certas condições, a simples justaposição de umtermo genérico a um nome próprio já é capaz de indicar a predicação (3-d):

    3 -a - casa confortável - C(c) = a casa [é] confortávelb - casa de pedra - F(c, p) = casa [é] feita de pedrac - Armstrong, um astronauta - A(a) = Armstrong [é] [um dos da categoria de oupertence à categoria de] astronautad - O Marechal Rondon - i M(r ) = [determinado] Rondon [é] [um dos da categoria deou pertence à categoria de] Marechal

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     Tomemos o caso de uma sentença que admite vários papéis temáticos, como é o casodaquelas nucleadas por verbos de movimento, que mapeam cenários de deslocamento

    no espaço-tempo:

    4 - João foi de Ponta Grossa a Foz do Iguaçu de automóvel em cinco horas.

    Uma abordagem no nível da sentença atribuiria a João o papel temático de paciente dodeslocamento, a Ponta Grossa o papel de origem do deslocamento, a Foz do Iguaçu ode destino do deslocamento, a de automóvel o de instrumento do deslocamento e acinco horas o de tempo decorrido no deslocamento.

    Poderíamos admitir também que o verbo ir (foi) atribui ou admite esses papéistemáticos, mas sua realização, em cada caso, decorreria de funtores particulares: depara origem, para para destino, de para instrumento e em para tempo decorrido. Ouso de de com mais de uma significação funcional (ele tem mais de uma dezena) na

    mesma sentença não implica ambigüidade uma vez que os argumentos internosregidos em cada caso (Ponta Grossa e automóvel) não a admitem.

    A relação funcional em de Ponta Grossa seria entre a função verbal rotulada, isto é, otermo que designa a fórmula funcional (a ida), e um designativo de lugar (PontaGrossa); em para Foz do Iguaçu seria entre esse termo (ida) e um designativo delugar (Foz do Iguaçu); em de automóvel, seria entre o termo (ida) e um designativode instrumento ou meio do transporte (automóvel). Como a função verbal não estáefetivamente rotulada na sentença (onde a palavra ida não aparece), cada um dospapéis temáticos referidos a ela teriam o caráter de elementos de uma lógica desegundo grau (a lógica de primeiro grau não permite predicar funções como se fossemargumentos), o que explica o entendimento tradicional desses complementos como

    advérbios.Pode-se admitir a continuidade da noção de caso, ainda sem os sufixos queconsagraram essa figura nas línguas clássicas, como o latim ou o grego, e sepreservam em línguas modernas, como o alemão ou o russo. Aí, cada caso seriadesignado pela ausência/presença de alguma preposição em algum contexto.Parodiando designações clássicas,