181
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA CRISTINA VIEIRA GOMES “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE FRANCA NAS DÉCADAS DE 60 A 80 DO SÉCULO XX FRANCA 2010

“GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO MESQUITA FILHO”

FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CRISTINA VIEIRA GOMES

“GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE

FRANCA NAS DÉCADAS DE 60 A 80 DO SÉCULO XX

FRANCA

2010

Page 2: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

CRISTINA VIEIRA GOMES

“GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE

FRANCA NAS DÉCADAS DE 60 A 80 DO SÉCULO XX

Dissertação de Mestrado apresentada à

Faculdade de História, Direito e Serviço Social,

da Universidade Estadual Paulista “Júlio

Mesquita Filho”, para obtenção do título de

Mestrado em História. Área de concentração:

Cultura Social.

Orientador: Prof. Dr. Moacir Gigante.

FRANCA

2010

Page 3: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

1

Gomes, Cristina Vieira

“Guardiãs do saber” : a memória das normalistas de Franca nas

décadas de 60 a 80 do século XX / Cristina Vieira Gomes. – Franca:

UNESP, 2010.

Dissertação – Mestrado – História – Faculdade de História,

Direito e Serviço Social – UNESP.

1. Educação – História – Brasil. 2. Professores – Formação

profissional. 3. Prática pedagógica.

CDD – 370.981

Page 4: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

2

CRISTINA VIEIRA GOMES

“GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE

FRANCA NAS DÉCADAS DE 60 A 80 DO SÉCULO XX

Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade

Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para obtenção do título de Mestre em

História

BANCA EXAMINADORA

Presidente:_____________________________________________________________

Prof. Dr. Moacir Gigante, UNESP-Franca

1º Examinador:_________________________________________________________

Prof. Dr. Mauro Carlos Romanatto, UNESP-Araraquara

2º Examinador:_________________________________________________________

Prof. Dr. Pedro Geraldo Tosi, UNESP-Franca

Page 5: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

3

Dedico este trabalho à minha mãe, Maria Rita,

que quando criança sonhou estudar no Colégio de Lourdes,

mas acordou trabalhando, aos nove anos de idade, nas casas da elite francana.

A todas as “Marias” que não tiveram oportunidade de estudar.

A meu pai (in memoriam) que sempre me incentivou.

A meu mestre e amigo Moacir Gigante.

Page 6: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a todas as minhas colaboradoras: D. Edna Cintra Haber, D.

Augusta Maria Pinho Caleiro, D. Dulce Margarida Biasoli Piola, D. Leila Astun Abrahão, D.

Cleuza Tozzi Mendonça. Sem a disposição de lembrar o passado, compartilhar comigo suas

alegrias e tristezas, de abrirem as portas de suas casas para me receber com carinho e

compartilhar comigo um passado tão caro, a matéria prima desta pesquisa, não seria possível

realizar essa empreitada. É justo que, como minhas colaboradoras, ou seja, com quem

compartilhou comigo no esforço da construção do material de pesquisa, as normalistas sejam

lembradas com carinho e gratidão.

É com o mesmo carinho que agradeço meu orientador Moacir Gigante, sempre

atento e disposto a me auxiliar em minhas angústias acerca da pesquisa, com paciência e

amizade muito grandes. Cada orientação era um momento privilegiado, de boas conversas,

troca de informações, crescimento intelectual, que me possibilitava redirecionar a pesquisa

com estímulo renovado. Considero-me privilegiada de tê-lo como meu orientador e amigo e

agradeço à dedicação demonstrada por ele nestes anos de projeto, a instigação intelectual

constante, que não permitiu que continuasse acomodada, na zona de conforto, mas buscasse

respostas às minhas questões e perseguisse os meus objetivos. Nesta relação orientador-aluna,

aprendi muito sobre o papel fomentador do verdadeiro educador, e essa lição, eu tiro para a

vida.

Também agradeço aos Professores Doutores Pedro Tosi e Célia David pelas valiosas

sugestões dadas durante minha qualificação, que permitiram um redirecionamento da pesquisa

que, a meu ver, enriqueceram muito o trabalho ora apresentado.

A Senhora Margarida do Museu Municipal de Franca “José Chiachiri”, pela atenção

e ajuda na identificação de documentos que pudessem auxiliar a pesquisa. À Laura e Silvana

da Biblioteca da UNESP, por suas valiosas orientações para elaboração do trabalho

acadêmico. Ao Otávio que auxiliou na árdua tarefa de transcrição de parte das entrevistas.

À minha irmã Adriana, companheira de trabalho, agradeço por ter me ajudado na

digitação de todo o texto, correção, críticas construtivas, enfim, por ter passado muito de seu

tempo ao meu lado, me auxiliando para que eu pudesse realizar essa pesquisa. A toda minha

família que me apoiou, às vezes nos custos financeiros envolvidos na pesquisa, às vezes com

ajuda técnica e prática, muitas vezes compreendendo minhas ausências por causa dos estudos,

outras vezes com uma palavra de ajuda, de consolo, nas horas de extremo cansaço.

Page 7: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

5

Ao Governo do Estado de São Paulo, que através do projeto Bolsa

Mestrado/Doutorado para professores efetivos da rede, deu-me a oportunidade, durante um

ano e meio, de receber o benefício e me dedicar mais aos estudos, com carga horária de

trabalho reduzida.

Aos meus colegas de trabalho Francisco e Gisele, colaboradores na correção do

texto escrito, e a Ana Paula que fez a tradução do resumo para o francês.

A Luciara, que corrigiu com cuidado e competência o trabalho para que estivesse de

acordo com as exigências das normas acadêmicas de publicação.

Page 8: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

6

“Era tão bom saber que a gente tinha saído

da gaiola [se referindo ao internato] um pouquinho.”

Dona Augusta M. P. Caleiro

“Uma coisa a gente tinha como certo: que quem não

nasceu com facilidades, tinha que ir à luta.

Isso ficou na minha vida e não me larga.

Então é assim ó, „quer lute. Nada cai do céu‟.

Então isso ficou muito forte, muito forte.

Onde que eu tenho essa dificuldade de sair de cena.

Muito. [...] Como se diz, „descer do pódio.‟”

Dona Cleuza T. Mendonça

“Então precisava rigor, porque onde há ordem, há progresso, né.

Porque senão não tinha ordem. Como é que ia fazer uma escola sem ordem?

Tinha que ter. Mas sempre tinha as que não obedecia, né.”

Dona Dulce M. B. Piola

Page 9: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

7

RESUMO

O trabalho aqui apresentado tem por objetivo resgatar a memória das normalistas da cidade de

Franca e região. Utilizamos a metodologia de História Oral, visto que ela nos permite dar

vozes a estes atores históricos, a fim de analisar sua cultura social como colônia, suas

práticas, fatores de coesão e contradição. Durante o século XX, a educação brasileira foi alvo

de transformações estruturais profundas, reflexo das mudanças ocorridas nos meios político,

econômico e social da nação. As disputas de grupos divergentes pelo poder incidiram

diretamente na educação através de manifestos, decretos e leis, já que esta é considerada um

instrumento eficaz de legitimação e manutenção da hegemonia política dominante. As

normalistas que atuaram no primeiro ciclo do ensino fundamental (1ª à 4ª séries) durante as

décadas de 60 a 80 do século XX e tiveram sua formação educacional nas duas décadas

anteriores, servem-nos como suportes da memória capazes de, através de seus depoimentos,

reconstruir a história da educação de, pelo menos, meio século, fazendo uma releitura de seu

passado, da educação formal e informal recebida e de sua prática profissional. Restituir valor

à memória destas profissionais permitiu-nos entender como este grupo, atuante dentro da

instituição escolar e imprescindível para a manutenção do sistema vigente, concebia e

interpretava sua realidade e, como isso, consequentemente, refletia em sua prática pedagógica.

Procuramos compreender a cultura social deste grupo, construída desde a sua educação

familiar, até a sua formação religiosa complementada em colégios de caráter confessional e a

própria formação profissional, de acordo com o modelo idealizado de normalista. Através dos

relatos das normalistas formadas nos diferentes cursos – laico e religioso – oferecidos na

cidade de Franca, foi possível traçar o perfil que este grupo de profissionais adquiriu. As

normas, a disciplina do corpo e da alma, os métodos de ensino, o currículo oculto impregnado

na prática docente nestas instituições de ensino tinham por objetivo ditar um paradigma que

deveria moldar o perfil das professoras primárias e que se tornaria a base de apoio no

exercício de sua profissão. Compreender como os educadores, que neste contexto,

constituíram-se em porta-vozes do Estado autoritário, concebia sua função social e como

conseguiram, com o passar dos anos, reconstruir sua própria atuação docente, por meio da

memória, permitiu-nos analisar a importância que o professor e a educação têm para a

manutenção, e até mesmo, para a transformação social. A forma como as normalistas foram

preparadas para assumir esse papel e como elas, ao olhar para o passado, interpretam os fatos

e sua atuação diante deles é o objetivo fundamental desta pesquisa.

Palavras-chave: Normalistas. História da Educação. Memória. Cultura Social. Prática

Pedagógica.

Page 10: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

8

RESUMÉ

La recherche présentée a pour objectif racheter la mémoire des normaliennes de la ville de

Franca et région. En utilisant la méthodologie de l‟Histoire orale, vu qu‟elle nous permet de

donner des voix à ces acteurs historiques afin de analyser leur culture sociale comme colonie,

leurs habitudes; facteur de cohésion et de contradiction. Pendant le XXème siècle, l‟éducation

brésilienne a été une cible de changements structurels profonds, reflet des changements

arrivés dans le moyens politique, économique et social de la nation. Les luttes de groupes

divergents pour le pouvoir arrivent directement à l‟éducation à travers les manifestations ,

les decrets et les lois, puisqu‟elle est considerée un instrument efficace de légitimation et

manutention de l‟hégémonie politique dominante. Les normaliennes qui étaient en activité

dans le premier cycle de l‟enseignement fondamental (du 1er

au 4 ème) pendant les années 60

jusqu‟aux années 80 du XXème siècle et qui ont eu sa formation dans les deux décennies

anterieures; elles sont comme des supports de mémoire capables de, grâce à leurs

dépositions, reconstruire l‟histoire de l‟éducation d‟un démi-siècle environ, en faisant une

relecture de leur passé, de l‟éducation formelle et informelle reçue et de leur pratique

professionelle. Restituer le valeur à la mémoire de ces professionnelles nous permet de

comprendre comme réfléchissait ce groupe, présent dans l‟intituition scolaire et surtout

indispensable pour la manutention du système en vigueur, comme elles concevaient et

interprétaient sa réalité et comme cela, par conséquent, réfléchissait dans sa pratique

pédagogique. Par la méthodologie de l‟histoire orale, nous cherchons comprendre la culture

sociale de ce groupe de profsionnelles, construite depuis l‟éducation familier jusqu‟à la

formation religieuse complétée dans les écoles de caractère confessionnal, et la formation

professionelle, selon le modèle idéalisé de normaliennes. Par les dépositions des normaliennes

diplômées dans les différents cours – laïque et religieux – offerts à Franca, on a eu la

possibilité de tracer le profil que ce groupe de profesionelles a acquis, comme colonie, par sa

culture social. Les règles, la discipline du corps et de l‟âme, les méthodes d‟enseignement , le

curriculum caché impregné dans la pratique enseignante dans ces instituitions d‟enseignement

ont eu par objectif dicter un paradigne qui devrait mouler le profil des professeurs primaires et

qui deviendrait la base de support dans l‟exercice de sa profession. Comprendre comme les

enseignants, que dans ce contexte étaient les porte-paroles de l‟ètat autoritaire, concevait sa

fonction social et comme ils ont réussi, à travers le temps, reconstruire son action enseignant,

par la mémoire , nous avons pu analyser empiriquement l‟importance du professeur et de

l‟éducation pour la manutention et pour le changement social. La manière comme les

normaliennes ont été préparées pour jouer ce rôle et comme elles, à regarder le passé,

interprètent les faits et son action devant eux c‟est l‟objectif fondamental de cette recherche.

Mots clés: Normaliennes. Histoire de l‟ Éducation. Mémoire. Culture social. Pratique

pédagogique.

Page 11: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 11

CAPÍTULO 1 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL ......................................... 27

1.1 A Educação no Brasil Colônia ..................................................................... 27

1.2 A Educação no Brasil Império .................................................................... 32

1.3 A Educação no Brasil República ................................................................. 33

1.3.1 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e sua repercussão na

educação do Brasil ......................................................................................................

35

1.3.2 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e a formação do professor .... 41

1.3.3 A Educação nas Constituições de 1934, 1937 e 1946 .................................... 44

1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional nº 4024/61 ...................................................................................

47

1.3.5 O Nacional-desenvolvimentismo e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional nº 5692/71 ....................................................................................................

50

1.3.6 Regime Militar e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº

5692/71 .......................................................................................................................

55

CAPÍTULO 2 MEMÓRIA E SOCIEDADE: A FORMAÇÃO DA COLÔNIA DE

NORMALISTAS COMO CATEGORIA SOCIAL E PROFISSIONAL ....................

68

2.1 A família: Berço das Tradições ..................................................................... 69

2.2 A Educação Familiar Cristã .......................................................................... 76

2.3 A Escola: Aparando as Arestas ..................................................................... 85

2.4 O Curso Normal: A produção do Modelo de Professor .............................. 107

CAPÍTULO 3 A PRATICA PEDAGÓGICA DA NORMALISTA E A

PRODUÇÃO DO TRABALHADOR NOS BANCOS ESCOLARES .........................

128

3.1 As Primeiras Experiências Pedagógicas: Adaptações e Transformações 128

3.2 A Metodologia e o Currículo Oculto em Ação: A Produção do

Trabalhador ......................................................................................................................

134

3.3 Formação Continuada e a Experiência na Gestão Escolar ......................... 162

CONSIDERÇÕES FINAIS .............................................................................................. 168

Page 12: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

10

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 174

ANEXO .............................................................................................................................. 178

Page 13: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

11

INTRODUÇÃO

As últimas décadas do século XX assistiram ao florescimento e utilização em larga

escala dos relatos orais como fontes úteis, capazes de dar vozes a grupos até então pouco

ouvidos e estudados em nossa sociedade, mais conhecidos como minorias. No entanto, esse

termo é realmente controverso, visto que nem sempre os sujeitos históricos que não tem sua

memória contemplada como digna de preservação fazem realmente parte de uma minoria

social. O mesmo equívoco se dá ao tratá-los simplesmente como história vinda de baixo, visto

que nem sempre se trata de grupos excluídos socialmente. A história oral pode ser realizada

inclusive com grupos altamente hegemônicos, porém, com a vantagem de colher o ponto de

vista pessoal de alguns sujeitos sobre determinado acontecimento que este tenha efetivamente

participado e que disponha de uma larga fonte oficial. Este, por exemplo, é o caso das

entrevistas com militares que participaram do golpe de 64 no Brasil.

Assim, o estudo aqui desenvolvido não utiliza estes conceitos acima descritos como

sujeitos da pesquisa. O que propomos é analisar a educação no Brasil nas décadas de 60 a 80

do século XX sob as lentes de uma categoria profissional específica: as professoras primárias.

O interesse em estudar esse grupo de profissionais ligados à educação se deve

particularmente à minha própria formação. Antes de me graduar como professora de História

pela UNESP-Franca, fui aluna de um curso específico de formação de professores primários

e, durante os anos de minha formação acadêmica, atuei no ensino público oficial como tal.

Esta vivência educativa e profissional suscitou em mim questões referentes à formação do

profissional da educação e de como esta se refletia na sua atuação posterior. A busca por

respostas levaram-me a pesquisar como Trabalho de Conclusão de Curso de História a

Memória das Normalistas da Cidade de Franca, dando um enfoque à sua formação tradicional

e de como esta se refletia em sua prática pedagógica. Como base metodológica, recorri à

história oral, como meio capaz de captar as permanências e mudanças ocorridas na educação e

a leitura que as normalistas faziam de sua vivência profissional.

Entretanto, questões mais profundas relacionadas ao tema ficaram sem resposta e o

trabalho de conclusão de curso não tinha fôlego suficiente para abarcá-las. Estas questões

ficaram latentes por um período de doze anos, quando finalmente decidi me aprofundar no

tema em uma dissertação de mestrado.

Fazer parte da mesma comunidade de destino (MEIHY, 1996) – as professoras

primárias – contribuiu sobremaneira para que eu pudesse compreender melhor os relatos

colhidos por estabelecer uma identidade comum com o grupo estudado. Neste sentido, venho

Page 14: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

12

em defesa da história oral, que é vista por muitos estudiosos com desconfiança por se tratar de

uma história do tempo presente, contemporânea ao pesquisador e que, por isso mesmo, não

permite o distanciamento necessário entre o pesquisador e o objeto de estudo, a fim de não

contaminá-lo com a sua subjetividade. O que para estes é visto como um obstáculo, para nós

oralistas, é uma vantagem, pois permite, de um campo visual privilegiado, perceber as

contradições, supressões, lembranças e esquecimentos presentes nos relatos orais. Valendo-se

das palavras de Roger Chartier (1992) em defesa da História do Tempo Presente,

O pesquisador é contemporâneo de seu objeto e divide com os que fazem a

história, seus atores, as mesmas categorias e referências. Assim, a falta de

distância, ao invés de um inconveniente pode ser um instrumento de auxílio

importante para um maior entendimento da realidade estudada, de maneira a

superar a descontinuidade fundamental, que ordinariamente separa o

instrumental intelectual, afetivo e psíquico do historiador e aqueles que

fazem a história. (apud FERREIRA, 1996, p. 18).

Por participar da mesma categoria profissional das normalistas foi possível estabelecer

uma relação de cumplicidade durante as entrevistas, não sendo eu encarada como uma

pesquisadora distante da realidade de um professor, mas como uma delas, capaz de

compreender melhor o significado dos seus relatos. Isso me proporcionou experienciar de

forma significativa, uma das qualidades da pesquisa oral: a relação que ela estabelece com o

objeto estudado em uma via de duas mãos na qual ocorre troca de informações e

interpretações. (THOMPSON, 1992, p. 44).

Thompson (1992, p. 196) descreve com as seguintes palavras esta qualidade das fontes

orais: “Estamos lidando com fontes vivas que, exatamente por serem vivas, são capazes, à

diferença das pedras com inscrições e das pilhas de papel, de trabalhar conosco num processo

bidirecional”.

Mas alguém poderia perguntar: essa relação tão próxima entre o pesquisador e seu

objeto de estudo, não faz com que o produto final desta pesquisa esteja extremamente

contaminado por um subjetivismo interpretativo?

Primeiramente, toda fonte histórica, seja ela escrita ou oral, carrega em si certo grau de

subjetividade. Ambas passam por um crivo seletivo que decide o que é digno e que deve

realmente ser lembrado e registrado para a posteridade. Entretanto, apenas o depoimento “oral

permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas da memória, cavar fundo em

suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta”. (THOMPSON, 1992, p. 192).

Sim, a história oral é captada direto da fonte, o que dá condições para que o

pesquisador procure obter respostas às questões pouco elucidadas, as contradições ou mesmo

Page 15: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

13

omissões do relato. O que o oralista busca nos depoimentos não é a verdade sobre uma época;

o que se quer compreender é a “percepção social dos fatos” que os sujeitos históricos

possuem. Para Thompson (1992, p. 145) “o que chega até nós, é o significado social, e este é

o que deve ser avaliado”. Também no momento em que realizamos a entrevista podemos

questionar, aprofundar, contestar um fato relatado. O mesmo não ocorre com as fontes

escritas que muitas vezes possuem lacunas que não podemos preencher no ato da análise.

(THOMPSON, 1992, p. 147).

Negar a subjetividade do relato oral seria inocência da nossa parte como

pesquisadores. Porém, negar sua validade enquanto fonte, pode nos levar a uma visão estreita

do fazer histórico. Meihy (1996, p. 50) nos lembra: “Toda narrativa é sempre e

inevitavelmente construção, elaboração, seleção de fatos e impressões. Portanto, como

discurso em eterna elaboração, a narrativa para a história oral é uma versão dos fatos e não os

fatos em si”.

Neste sentido, a memória não é tratada aqui como um devaneio que pessoas idosas,

distantes de sua prática profissional e presos às limitações que a idade lhes impõe, entregam-

se como fuga do presente pouco gentil. Ao contrário, a memória é trabalho (BOSI, 1994, p.

55). O processo de lembrar exige esforço por parte do informante, “labor”, expressão latina

que designa trabalho. Nada mais significativo do que dizermos que lembrar é trabalho. Esta

palavra deriva-se do latim tripalium que designava um objeto de tortura, composto por um

tripé formado por três estacas (“tri” = três; “palus”= paus). Desta forma, a palavra trabalho

traz na sua essência a idéia de sofrimento, atividade exaustiva. E é exatamente isso o que

ocorre com os recordadores: no momento que se dedicam a lembrar estão dispostos a reviver

situações felizes e tristes do passado, carregadas de sentido pessoal e grupal, que são capazes

de fazer aflorar um turbilhão de emoções: “Eu que agradeço a oportunidade de voltar aos

meus tempos, eu fico até emocionada [choro] [...] hoje eu tô feliz de ver essa caminhada que

eu fiz [...] Você me deu uma grande oportunidade, obrigada.” (ARQUIVO 12, p. 20).

Também pode levar os recordadores a refletirem sobre alguns pormenores do seu

passado e analisá-los sobre uma nova ótica. Isso exige um esforço mental relativamente

grande que leva à exaustão. Por isso é comum fazermos várias entrevistas com a mesma

pessoa, levando em consideração os limites que cada um tem para lidar com a dor e o cansaço

que o lembrar cobra deles. Ecléa Bosi (1994, p. 60) assim descreve o sentido de lembrar para

os velhos:

Page 16: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

14

Ao lembrar o passado ele não está descansando, por um instante, das lides

cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele

está se ocupando conscientemente e atentamente do próprio passado, da

substância mesma de sua vida. (BOSI, 1994, p. 60).

O que proponho neste trabalho é lançar mão da memória, respeitando o fato de que as

lembranças das normalistas utilizadas como fonte de pesquisa são produtos de uma

reformulação do passado. Não podemos esperar que as normalistas entrevistadas para esta

pesquisa, que tem atualmente em média 78 anos, com sua experiência de vida pensem

exatamente como quando eram professoras atuantes, ligadas a uma instituição, com interesses

diversos dos de hoje.

A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão agora à

nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa

consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato

antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque

não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com

ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de

lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre a imagem de um e

outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. (BOSI, 1994,

p. 55, grifo da autora).

Quando lembramos o passado não o reconstituímos nos mesmos moldes, com as

mesmas impressões que o vivenciamos; ao contrário, o reconstruímos a partir de nossas

experiências, noções e vivências do presente, num processo dialético de releitura dos fatos.

Isso pressupõe que nossas lembranças ao serem evocadas, não afloram em estado puro: elas

vêm à tona impregnadas de valores morais e culturais que adquirimos no decorrer de nossa

vida em sociedade.

Neste ponto, recorro ao conceito desenvolvido pelo sociólogo francês Maurice

Halbwachs sobre a existência de uma memória coletiva. Partindo da idéia de que o homem é

um ser essencialmente social, Halbwachs nega a possibilidade de uma memória puramente

individual. Todas as lembranças que evocamos, de uma maneira ou de outra, estão ligadas a

diferentes grupos sociais dos quais nós fizemos parte. É por isso que Halbwachs (1990, p. 36-

37) diz que mesmo quando o indivíduo está aparentemente sozinho “seus pensamentos e seus

atos se explicam pela sua natureza de ser social, e que em nenhum instante deixou de estar

confinado dentro de uma sociedade”. Portanto, isso explica o conceito anteriormente

defendido de releitura e reconstrução do passado nos moldes fixados no presente. Por sermos

seres sociais, somos influenciados pelos costumes, ideologias e visões de mundo dos

diferentes grupos e instituições dos quais fazemos parte durante nossa vida.

Page 17: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

15

Ao analisar a psicologia social de Charles Bartlett, Ecléa Bosi aproximou o conceito

de memória coletiva de Halbwachs com o conceito de “convencionalização”, criado por

W.H.R. Rivers e utilizado por Bartlett. Rivers cunhou esse conceito a partir de diversas

experiências que realizou com os povos swazi em que se constatou a transposição de idéias e

símbolos desconhecidos por eles em outras culturas, para uma significação própria do grupo

de origem. Ecléa Bosi (1994, p. 64) concluiu assim sua análise:

[...] transpondo o conceito para a área psicossocial, Bartlett postula que a

matéria-prima da recordação não aflora em estado puro na linguagem do

falante que lembre; ela é tratada, às vezes estilizada pelo ponto de vista

cultural e ideológico do grupo em que o sujeito está situado. (BOSI, 1994,

p. 64).

É exatamente nesse ponto que tanto Halbwachs como Bartlett se aproximam ao

definirem os “quadros sociais da memória” como fundamentais para a rememoração.

Neste sentido é que lanço mão da memória das normalistas, não acreditando

inocentemente que elas estejam livres de toda e qualquer influência externa que tem o caráter

de transformar os fatos rememorados tal como ocorreram. Ao contrário, a memória deste

grupo de profissionais é tomada nessa pesquisa como “matéria-prima” necessária para

reconstruir toda uma época, o modo de ver e viver de uma sociedade, tornando possível

demolir por meio das próprias ideologias que lhe impregnam a ideologia dominante, fazendo

assim, uma releitura do passado. É exatamente esta reformulação do passado que me

interessa: a visão transformada de uma colônia (MEIHY, 1996) de profissionais que se

educaram num contexto determinado e que, ao se reportarem ao passado, conseguem

reinterpretá-lo e reconstruí-lo em novos moldes, dando assim uma visão dialética de

continuidade e renovação, que constitui a própria história.

Entretanto, é importante colocar nesse ponto do trabalho que, se por um lado o

conceito de memória coletiva é verazmente útil neste estudo, por outro lado, não compartilho

da idéia de Halbwachs de que só lembramos o que se relaciona com nossa vida social e que,

portanto, seria impossível lembrarmo-nos de algo se estivéssemos à parte do grupo no interior

do qual a memória reside.

Para Halbwachs (1990, p. 32) “esquecer um período de sua vida é perder o contato

com aqueles que então nos rodeavam”. Se tomássemos essa afirmativa por certa,

concordaríamos, então, que só é possível evocarmos o passado concernente à nossa vivência

em determinado grupo se ainda estivéssemos em contato com ele. Isso é o que possibilitaria

que nossas lembranças viessem à tona. Entretanto, na prática não é isso que observamos – ao

Page 18: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

16

entrevistar pessoas que participaram de um mesmo grupo no passado, e que hoje se encontram

dispersas em grupos distintos, conseguimos reconstruir seu passado por meio da memória

coletiva que se conserva nelas de forma individual. Assim podemos concluir que a evocação

das lembranças não está condicionada à nossa vivência coletiva, enquanto ser social. Mesmo

distantes dos grupos dos quais fizemos parte algum dia, somos capazes de lembrar.

Outro aspecto da história oral que gera debates entre historiadores tem haver com a

relação entre o pesquisador e o recordador. Questiona-se que o contato entre as partes pode

influenciar no material colhido de modo a distorcer a realidade. É evidente que a nossa

relação com os recordadores inevitavelmente provoca alterações e isto, uma vez mais, é

conveniente dizer, nós oralistas não negamos.

Entretanto, nossa função ao produzir o documento oral não é eliminar dele todas as

influências externas. Ao contrário, como bem observou Ken Plummer, citado por Thompson

(1992, p. 158) “expurgar a pesquisa de todas essas „fontes de viés‟ significa expurgar a

pesquisa da vida humana.”. Nós oralistas, simplesmente não podemos fazer isto, pois lidamos

com fontes vivas. Thompson (1992, p. 158, grifo do autor) declara a tarefa do historiador oral

deste modo: “o verdadeiro objetivo dos sociólogos da história de vida, ou do historiador oral,

deve ser revelar as fontes de viés, mais do que pretender que elas possam ser eliminadas, por

exemplo, com „um pesquisador sem rosto que exprima sentimentos‟”.

Apesar de a comunidade de destino analisada nesta pesquisa ser as normalistas, estas

podem se relacionar a outras categorias além da profissional, como, no caso, à categoria de

gênero e, pela idade atual das recordadoras, à categoria de idosos.

Nas últimas décadas foram desenvolvidos trabalhos sérios de pesquisa oral que

focalizaram a categoria dos velhos. Dentre eles, podemos citar um clássico no Brasil,

Memória e Sociedade – lembranças de velhos, de Ecléa Bosi, utilizado largamente pelos

historiadores oralistas.

Sua contribuição para a compreensão desta categoria é inegável. Ecléa Bosi (1994, p.

64) assevera que em muitas culturas a função social do velho é lembrar. É o velho que é o

depositário de toda a tradição do grupo e, por isso, possui lugar privilegiado na sociedade.

Neste ponto a autora relata-nos uma lenda balinesa de um povo que vivia nas montanhas e

que tinha como costume sacrificar os velhos. Essa prática se estendeu ao ponto de não existir

mais nenhum velho que pudesse guardar as tradições do povo. Um dia, quando os jovens

quiseram construir a sede do conselho, abateram as árvores, mas não sabiam como proceder.

Há muito não se faziam construções como aquelas e seus conhecimentos foram enterrados

Page 19: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

17

com os velhos. Neste momento, um velho que havia escapado aparece e ensina aos jovens

como construir e nunca mais os velhos são sacrificados por este povo.

A história é bela e retrata muito bem a importância dos velhos em algumas poucas

culturas como, por exemplo, as tribos indígenas. Mas não é esse o nosso caso. Vivemos em

uma sociedade que o velho e seus conhecimentos têm pouca importância, ou melhor, são

totalmente descartados. A sociedade capitalista, com sua tendência à modernização, traz em

sua esteira a rápida transformação dos costumes, tecnologias e do próprio modo de fazer as

coisas. O conhecimento é transformado muito rapidamente e, com ele o velho vai ficando

para trás.

A sociedade rejeita o velho, não oferece nenhuma sobrevivência à sua obra. Perdendo

a força de trabalho ele não é produtor nem reprodutor. Se a posse, a propriedade constitui,

segundo Sartre, uma defesa contra o outro, o velho de uma classe favorecida defende-se pela

acumulação de bens. Suas propriedades o defendem da desvalorização de sua pessoa. (BOSI,

1994, p. 77).

Neste contexto, o que significa lembrar para o velho? Significa resgatar importância a

si mesmo. Quando convocados a lembrar, normalmente os velhos se colocam numa posição

de cautela quanto ao que se espera dele.

Parece estranho aos seus ouvidos que alguém deseja escutá-los, interrogar-lhes o

passado. Duvidam que há realmente algo que possa ser útil à uma jovem pesquisadora. Isso

ficou evidente durante as entrevistas que realizei. Dona Leila falou sobre a sua preocupação

em lembrar após o trauma da viuvez: “então foi onde eu te falei, nem sei se a gente vai ter

condições de lembrar, de falar alguma coisa, de ter condições para isso. Mas vamos tentar”.

(D. Leila, 1ª entrevista) Porém, no momento em que encontra ouvidos realmente atentos,

lembrar toma outra proporção. O passado retoma o sentido.

Quando a sociedade esvazia seu tempo de experiências significativas,

empurrando-o para a margem, a lembrança de tempos melhores se converte

num sucedâneo da vida. E a vida atual só parece significar se ela recolher de

outra época o alento. O vínculo com outra época, a consciência de ter

suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e uma

ocasião de mostrar sua competência. Sua vida ganha uma finalidade, se

encontrar ouvidos atentos, ressonância. (BOSI, 1944, p. 82).

De qualquer modo, alguns olham com suspeita para o relato do idoso. Thompson

demonstra a incredulidade de muitos historiadores quanto á fonte oral ao citar A. J. P. Taylor.

Para Taylor, “todas as fontes são suspeitas”. Entretanto, quando se trata da fonte oral,

recolhida com sujeitos históricos velhos, a situação é pior ainda: “quanto a esse assunto, sou

Page 20: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

18

quase inteiramente cético [...] pessoas idosas falando bobagens sobre sua mocidade – Não”

(TAYLOR apud THOMPSON, 1992, p. 82, 102).

O ceticismo diante das fontes orais, principalmente quando estas se originam de

velhos não invalidam sua utilização. Estudos na área de psicologia atestam-nos que as

lembranças dos idosos podem ser bastante precisas, se é que podemos usar este termo.

Thompson usou estudos de psicólogos para demonstrar-nos que a capacidade do

indivíduo de lembrar sofre um declínio até os 30 anos e daí até a velhice, pouca diferença

existe com relação à memória na fase adulta, exceto é claro em casos de doenças como

Alzheimer ou amnésia senil. (THOMPSON, 1992, p. 156).

Estudos realizados no campo da neurociência vêm demonstrando que mesmo nos

casos de doenças como as citadas acima, as primeiras memórias afetadas são de curta duração

e a memória-trabalho. (IZQUIERDO, 2002, p. 80-81) Isto significa que as memórias mais

caras ao historiador, que residem no passado e fazem parte das lembranças de longa duração,

são as mais permanentes. Neste sentido, é coerente a ligação realizada por Marcos Gigante

(2008, p. 47, grifos do autor) desta memória permanente com o que Bergson chamou de

memória pura. Ele escreveu:

Embora a memória seja coletiva, nunca pura‟, é inegável um certo núcleo

duro da memória, núcleo que é indubitavelmente individual. Mesmo em

casos de Mal de Alzleimeir, esse núcleo duro parece ser o último a

desaparecer. Diz respeito diretamente ao que a pessoa tem mais seu, sua

personalidade, seu modus faciend, maneira de agir, de resolver as coisas, de

onde jamais recua a um nível mais „primário. (GIGANTE, 2008, p. 47).

Outro fator relevante que devemos considerar é que é na velhice que ocorrem fatos

traumáticos que podem desencadear um maior interesse do sujeito em rememorar o passado.

Estes fatos podem relacionar-se a aposentadoria ou a viuvez. Thompson (1992, p. 157)

escreve este período como um momento privilegiado para as lembranças aflorarem sem uma

preocupação do narrador em “adequar a narrativa às normas sociais de quem escuta. Desse

modo, o viés proveniente da repreensão e da distorção passa a ser uma dificuldade menos

inibidora, tanto para os narradores como para o historiador”.

Também é nessa altura da vida que pode se manifestar um tipo de memória

subversiva, que não se enquadra aos novos padrões sociais e produtivos que desprezam o

velho e seus conhecimentos como ultrapassados. Em sua tese sobre os idosos asilados da

cidade de São Carlos, Marcos Antônio Gigante (2008, p. 39-40) desenvolveu o conceito de

„memória avessa‟. Escreveu:

Page 21: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

19

[...] por memória avessa entendo aquela humanidade do sujeito que é

traduzida em lembranças que não se coadunam com as novas formas de

produzir, viver e pensar que o capital traz à tona em momentos de

reestruturações mais profundas. Ora, senão são nesses momentos que os

discursos pedagógicos ficam mais agressivos, e gerenciadores vêm à arena

exigir que se “refundam os sujeitos!”. (GIGANTE, 2008, p. 39-40).

Partindo da idéia do historiador estoniano Iúri Mikhailovich Lotman de que a cultura

humana é formada por várias estruturas concêntricas, que partem de um centro (estruturas

evidentes) para a periferia (estruturas menos evidentes), Gigante constrói seu conceito de

“memória avessa”. Segundo Gigante, a “memória avessa” reside essencialmente nestas

estruturas periféricas da cultura. “Essa memória avessa, certamente, não constitui o centro da

cultura, porque está a reboque não simplesmente da maior capacidade estrutural do centro; ela

reside nos destroços documentais dos conflitos sociais.” (GIGANTE, 2008, p. 51). Um ponto

interessante da análise feita por Gigante, refere-se à resistência individual que se traduz na

memória avessa. Essa resistência pode se manifestar de duas formas: pode ser dispensável

dentro de um sistema produtivo em que o sujeito não se enquadra e pode ser indispensável

para se construir sua identidade enquanto tal. Assim, cabe ao pesquisador a tarefa de trazer à

tona essas resistências silenciosas do sujeito que podem contribuir de forma significativa para

a compreensão do tema abordado.

O método de história oral é justificadamente utilizado em minha pesquisa por suas

peculiaridades arroladas neste capítulo, a saber: é capaz de dar vozes a sujeitos silenciados ou

pouco estudados; consegue captar no momento da criação do documento as nuances ocultas

da memória, suas supressões, distorções e reconstruções; permite o prazer do contato com a

fonte de pesquisa que, por ser viva, pode interagir conosco em uma situação que nos

colocamos como aprendizes de ouvidos atentos.

Outra grande contribuição que temos para compreender a memória deriva dos estudos

de Henri Bergson. Filósofo nascido em 1859, Bérgson foi um dos primeiros estudiosos que se

dedicou a compreender os mecanismos da memória.

Primeiramente, Bergson (1990) procurou associar a matéria à memória, ou seja, a

corporeidade à percepção. Para Bergson, quando nosso corpo percebe algo no presente, por

meio dos sentidos, recorremos às lembranças contidas no cérebro que se associam com a

percepção. Assim, nossas percepções estão diretamente condicionadas às percepções

passadas. Lembramos, ou seja, deixamos vir à tona o passado submerso no presente.

Bergson defende que temos dois tipos de memória. A primeira é a memória-hábito,

relacionada ao condicionamento cultural e envolve o esquema motor. A segunda é chamada

Page 22: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

20

de imagem-lembrança que é para Bergson a “lembrança pura”. É esta memória que retém o

que é singular de nossa vida que para Bergson aflora no sonho, quando nosso inconsciente,

lugar onde habita a memória, cria conexões com o consciente.

As considerações de Bergson influenciaram muito as pesquisas e os debates no campo

da memória. Por meio de seus estudos fica evidente que a memória constitui-se em

conservação do passado e, portanto, “é nossa constante referência”. (GIGANTE, 2008, p. 42).

Porém, não cabe neste trabalho confrontarmos os conceitos formulados por diversos

estudiosos no assunto sobre o caráter da memória. Seja ela coletiva, determinada pelos

quadros sociais, ou pura, fruto de nosso esquema perceptivo, a memória é o que nos permite

reter nosso passado e definir nossa identidade social.

Todavia, as pesquisas acadêmicas que envolvem a metodologia de História Oral, nos

últimos anos, têm demonstrado a tendência de suprimir de teses ou dissertações um capítulo

específico que trata do método e dos procedimentos adotados para a coleta dos depoimentos e

tratamento dos mesmos. Essa tendência demonstra-nos o quanto a metodologia de História

Oral conquistou espaço nos meios acadêmicos, não sendo mais exigida de maneira categórica

uma defesa do método, como se este se encontrasse no banco dos réus, e o pesquisador

precisasse provar sua validade por meio de argumentos.

No entanto, penso ser vital fazer logo na introdução, algumas considerações sobre a

escolha do método, suas características e os procedimentos utilizados no decorrer da pesquisa.

Desta forma, é possível esclarecer aos leitores como é delicado o trabalho do historiador que

se dedica a construir, juntamente com os colaboradores que viveram em uma determinada

época e experiência, o documento sobre o qual irá se debruçar para analisar e elaborar a

história de um grupo, de um povo, de um tempo que já passou. É exatamente isso que

pretendo fazer aqui: descrever de forma simples e objetiva os caminhos escolhidos e trilhados

por quem escolheu o ofício de reconstruir um passado que ainda pulsa, porque seus sujeitos

estão vivos e são capazes de através da memória e de um movimento bidirecional entre o

pesquisador e o colaborador, puxar os fios finos que tecem suas histórias de vida e trabalho.

Por se tratarem de fontes vivas e, portanto, sujeitas a diversos fatores que podem

torná-las inviáveis de serem coletadas e utilizadas (como por exemplo, o caso de alguém não

estar disposto a ceder seus depoimentos para pesquisa) nem sempre é possível criar um

sistema de seleção de colaboradores fechado ou inflexível.

No caso da pesquisa aqui apresentada, um fator que contribuiu muito na identificação

de ex-normalistas aposentadas, foi anteriormente ter tido contato com uma delas, que foi

Page 23: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

21

minha professora no magistério e colaboradora no meu Trabalho de Conclusão de Curso em

História1 sobre memória da educação na cidade de Franca.

Esta senhora foi tomada como o “ponto zero”2 da pesquisa, visto que a partir dela foi

possível obter indicações de possíveis colaboradores que participaram da mesma “colônia”3,

ou seja, grupo que preserva as mesmas características ou identidade cultural – que no nosso

caso é a cultura social das normalistas.

A partir de suas indicações, possíveis colaboradoras foram arroladas na lista das

normalistas a serem contadas. Destas, uma foi selecionada para fazer parte da “rede”4, ou

seja, uma subdivisão da colônia de normalistas que finalmente estava dentro do perfil

desejado para fazer parte da pesquisa.

As outras três colaboradoras foram identificadas através de contatos casuais, sendo

uma delas contatada em uma palestra sobre Memória de Franca realizada na Semana dos

Museus em 2008. Duas foram indicadas por pessoas conhecidas e todas demonstraram

interesse em participar da pesquisa, embora tenha sido necessária uma visita prévia às

entrevistadas para explicar-lhes o objetivo do trabalho e a importância de seus depoimentos

para o resgate da memória das normalistas.

A pesquisa contou com uma “rede” formada por cinco normalistas na faixa de 76 a 80

anos de idade, formadas no curso Normal, sendo três delas alunas do Colégio Nossa Senhora

de Lourdes e duas apenas concluíram sua educação na Escola Normal Livre que futuramente

tornar-se-ia Instituto de Ensino Torquato Caleiro.

Os principais critérios de seleção para fazer parte da rede foram: ser normalista, ter se

formado em colégios de caráter religioso (Nossa Senhora de Lourdes) ou laico (Instituto de

Ensino Torquato Caleiro) e também, ter exercido de alguma forma a profissão entre as

décadas de 60 a 80 do século XX. Esse período foi escolhido porque nele ocorreram grandes

transformações econômicas e políticas no Brasil, com a implantação do Regime Militar e a

diversificação da economia, fatos que impulsionaram o processo de urbanização do país. A

atuação das normalistas, reflexo da bagagem cultural que traziam consigo neste contexto, e o

tipo de educação que se pretendia consolidar dentro de um projeto militar é o eixo norteador

da pesquisa.

1 GOMES, Cristina Vieira. Memória e educação: uma análise do ensino tradicional a partir das lembranças de

educadores. (TCC UNESP) – 1996. 2 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 4 ed. revista e ampliada. Loyola, 1996. p. 167.

3 IDEM p. 167.

4 IDEM p. 166.

Page 24: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

22

A partir das entrevistas citadas anteriormente para o Trabalho de Conclusão de Curso

foi possível também considerar quais as questões podiam ser exploradas nos novos contatos e

a profundidade dos conhecimentos sobre a colônia que a memória desta colaboradora, como

ponto zero, podia representar. Daí nasceram os primeiros roteiros de entrevistas.

Embora os roteiros elaborados seguissem o que chamamos de dimensões, ou seja,

grandes tópicos, através dos quais é possível disparar vários temas relacionados, não houve

uma rigidez na sua aplicação. De acordo com as respostas das colaboradoras, na primeira

entrevista, outro roteiro foi elaborado seguindo as dimensões nas quais desejava-se

aprofundar e assim foram planejados os roteiros para cada nova entrevista.

Pela própria flexibilidade do roteiro, não cabe aqui apresentá-lo da forma como foi

desenvolvido com cada uma das colaboradoras. De qualquer maneira, as dimensões ou temas

disparadores foram: os dados pessoais, perfil familiar, educação antes de entrar na escola,

educação fundamental, educação Normal, atuação profissional e visão sobre a educação

ontem e hoje.

Dentro dessas dimensões surgiram temas como: rigidez, disciplina, religiosidade,

civismo, o papel da mulher na sociedade, regras, costumes, metodologias de ensino, o

professor como modelo, currículos escolar e oculto, exame de admissão, formação

continuada, pensamento burguês, política, etc.

A forma como os roteiros foram elaborados e aplicados e a divisão deles em partes,

como dimensões e temas contribuiu bastante para a análise das entrevistas que deve ser feita

após coleta, transcrição e conferência de fidelidade (momento em que a transcrição é

conferida juntamente com a gravação a fim de corrigir eventuais erros no processo de escuta e

escrita).

A primeira tarefa do pesquisador de história oral, após ter as entrevistas transcritas em

forma de documento, é lê-las com bastante atenção e selecionar os trechos importantes que

deseja esmiuçar, interpretar. Para isso elaborei uma legenda com cores e nela coloquei todas

as dimensões e temas relacionados que aparecem na fala das colaboradoras. Cada cor

correspondendo a uma dessas dimensões. Durante a leitura de todo o material, grifei com

cores diferentes os temas que surgiram seguindo a legenda. Desta forma, no momento da

elaboração do texto da dissertação, ficou fácil encontrar os trechos que gostaria de pinçar,

pois estes saltavam aos olhos pelas cores.

A tarefa de interpretação de apenas um trecho de entrevista é árdua e delicada. É como

se pegássemos um novelo embaraçado, cheio de nós, e precisássemos, com paciência, ir

desmanchando aquele intrincado de ideias que aparecem juntas, numa mesma frase, mas estão

Page 25: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

23

carregadas de sentido. Esse é o trabalho do oralista. Para demonstrar isso, tomemos um

pequeno trecho de entrevista de uma colaboradora como exemplo. Falando sobre a sua prática

pedagógica e da forma como conscientizou seus alunos sobre a importância dos estudos, a

colaboradora contou um episódio atual, que ocorreu com funcionários de sua fazenda, em que

fica evidente não só a valorização da educação como meio de conquistar o sucesso, mas

vários juízos de valor presentes no pensamento da colônia de normalista, que fazem parte de

sua cultura social.

Falava pra eles [os alunos] que era bom estudar, pra no futuro, ter futuro

melhor. Porque sem estudo não faz nada. O que eu falei pro menino lá na

fazenda? Que o menino não tava indo, da fazenda, recebeu o bilhetinho e a

mãe falou assim: „Ah, não precisa nada disso, nada não! Ela [a professora] mandou esse bilhete aqui, não precisa nada não. Hoje em dia qualquer um aí,

tem engenheiro [se referindo ao filho da patroa] que vai até pra roça‟ –

porque o Décio não tem paciência de ver eu lá, só ganhando dinheiro e tá

numa boa. Enquanto eu estou lá, tudo corre bem, quando eu não tô não faz

nada [os empregados]. Aí eu falei aí eu expliquei: „Olha minha filha, eu

vou falar uma coisa pra você, hoje sem estudo nada faz. Nem um lixeiro

hoje, ele não passa sem ter um concurso. Por isso ele tem que estudar. Ele

tem que ir sim na escola, porque é na escola que ele aprende. Senão, não vai

ser ninguém mesmo‟. E agora está mandando, mas foi porque eu falei e li o

bilhetinho da professora. Um bilhetinho bom sabe, explicando como ele

estava indolente. (ARQUIVO 35, p. 10-11, grifo nosso).

Este pequeno trecho trás consigo diversos temas ou unidades de sentido, que se

repetem em outras entrevistas com colaboradoras diferentes. Uma dessas unidades de sentido

que fica evidente na fala da participante pela repetição é: “estudar para no futuro, ter futuro

melhor”, ou “hoje sem estudo não faz nada”, ou ainda “senão [sem estudo] ele não vai ser

ninguém mesmo”. Estas frases traduzem o pensamento que é típico dos grupos sociais de

origem das professoras; pensamento este que difere daquele dos grupos sociais de origem dos

estudantes que deviam internalizá-las como verdade absoluta, que não devia nem podia ser

questionada. Por ser internalizada por estes últimos, serviria aos interesses capitalistas, que

necessita de formação básica suficiente para o adestramento das almas, a docilidade dos

corpos e certa especialização para o trabalho em determinadas funções.

Mas essa é a conclusão que chegamos apenas numa primeira leitura do trecho acima

transcrito; se olharmos mais de perto, fazendo uma divisão cuidadosa em partes, de acordo

com os diversos temas que vão surgindo na fala da colaboradora, o mesmo fragmento seria

assim analisado:

Page 26: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

24

“Falava para eles [os alunos]”, fazendo alusão à sua prática quando lecionava “que era

bom estudar”, inculcação do valor do estudo; “pra no futuro, ter futuro melhor”, que justifica

o que foi dito anteriormente, que “era bom estudar”. Em seguida, há uma repetição do

pensamento dos grupos de elite: “porque sem estudo, não se faz nada”. O resgate deste

pensamento na atualidade apareceu em tom de questionamento: “O que eu falei pro menino lá

na fazenda?”. Daí se explicou a situação: “porque o menino não tava indo [na escola]”. A

colaboradora contou como foi informada do fato: “recebeu o bilhetinho [da professora]” e

mais na frente, “[...] e li o bilhetinho da senhora”. Talvez esse bilhete tenha chegado à suas

mãos porque os pais da criança são analfabetos, ou porque não tinham condições suficientes

para compreender o que estava escrito. Nesse momento do trecho apareceu um afrontamento

de opiniões em que a mãe da criança contestou a visão de que „o estudo é importante para ser

alguém na vida‟. A colaboradora prosseguiu: “A mãe falou assim: Ah não precisa nada disso,

nada não! Ela mandou esse bilhete aqui, não precisa nada não. Hoje em dia qualquer um aí,

tem engenheiro que vai até pra roça”, (fazendo alusão ao filho da colaboradora que é

engenheiro). O valor da educação para a mãe da criança que trabalha na roça, se relaciona

com a vivência dela. Se alguém que é estudado, engenheiro “vai até para a roça”, qual é o

sentido do estudo para ela? A ideologia liberal de que o estudo é meio eficaz de ascensão para

todos os grupos sociais, propagada durante décadas, já não convence a maior parte da

população que não notou grandes transformações em suas vidas e nem nas vidas de pessoas

bem próximas, que se empenharam tanto em estudar na ilusão de “vencer na vida”. Ao

contestar a patroa, esta senhora contestou a cultura social de um grupo que trás em seu bojo

pensamentos que desejam instituir como verdades absolutas para todos os grupos que as

assimilarem.

A colaboradora explicou porque seu filho “vai para a roça”: “Porque o Décio [filho]

não tem paciência de ver eu lá, só ganhando dinheiro e tá numa boa”. Também explicou

porque é importante sempre ir à fazenda: “Enquanto eu estou lá, tudo corre bem, quando eu

não tô, não faz nada [se referindo aos empregados]”. Reafirmando sua posição no confronto,

“aí eu expliquei”, a narradora continua num tom de lição, de ensinamento, no caso, maternal:

“Olha minha filha, eu vou falar uma coisa pra você”, e neste ponto retomou-se a unidade de

sentido, “hoje sem estudo, nada se faz. Nem um lixeiro hoje, [referindo-se a um trabalho

costumeiramente pré-concebido em nossa sociedade como inferior] ele não passa sem ter um

concurso”, o que reforça o valor do estudo. “Por isso ele tem que estudar”, justifica. E num

tom imperativo, como quem dá uma ordem concluiu: “ele tem que ir sim, na escola”.

Mostrando a função da escola disse: “Porque é da escola que se aprende”. “Senão”, ou seja,

Page 27: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

25

caso não der ouvidos e estudar concluiu, “não vai ser ninguém mesmo”, porque não se espera

que se torne alguém o filho de um agricultor. O resultado é narrado assim: “E agora está

mandando” e reconheceu a importância de sua intervenção neste assunto dizendo, “mas foi

porque eu falei”. Valorizando o trabalho da professora com quem compartilha a mesma

profissão e identidade grupal, a colaboradora comentou: “e li o bilhetinho da professora. Um

bilhetinho bom sabe?” Finalmente, fica explícito um juízo de valor da colaboradora ao se

referir à criança “[...] explicando [o bilhetinho] como ele [a criança] estava indolente”. A essa

mesma conclusão chegam muitos professores atualmente, quando seus alunos resistem, de

alguma forma, à escola e ao sistema de valores e modelos que ela lhes impõe a fim de serem

facilmente dominados pelo mundo do trabalho. Mas está internalizado no pensamento dessas

normalistas, muito desses valores acima citados e que fazem parte do que elas realmente

acreditam, porque foram assim educadas desde a sua infância para crerem.

Embora possa parecer redundante ocupar algumas páginas a fim de demonstrar o que é

a análise de um depoimento, penso que isso seja importante para valorizar o trabalho do

pesquisador oralista.

A pesquisa aqui apresentada é dividida em três grandes capítulos, sendo que cada um

deles corresponde a um dos principais temas aqui abordados.

O primeiro Capítulo foi dedicado a uma breve história da educação no Brasil. Visto

que encontramos na instituição escolar fortes vestígios dos primórdios da educação brasileira,

pensamos que, através desse ligeiro retrospecto, lançamos uma base sólida para traçarmos

paralelos entre passado e presente, buscando as mudanças e, acima de tudo, as permanências

nos discursos das normalistas entrevistadas. Uma parte deste Capítulo descreve as discussões

de educadores proeminentes em torno de temas como gratuidade, laicidade e co-educação dos

sexos no ensino, e como tais questões foram inseridas e desenvolvidas no decorrer do século

XX nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) oportunamente, de acordo

com os interesses das elites dominantes. Ao descrevermos as mudanças e permanências nas

LDBs, lançamos base para compreendermos o sistema educacional que as normalistas foram

educadas e atuaram como educadoras, e sua visão sobre o assunto abordado.

O Capítulo 2 descreve a formação da categoria social das normalistas. Através dos

relatos procuramos reconstruir o cenário familiar em que as colaboradoras foram criadas e

educadas, bem como os costumes das famílias tradicionais no início do século XX. Em

seguida, acompanhamos todo o processo de educação formal ou escolar que as normalistas

entrevistadas receberam até concluírem o curso Normal, com o objetivo de perceber como a

Page 28: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

26

educação familiar, escolar e religiosa, sendo esta última ministrada tanto no seio da família

como pela instituição de ensino, moldaram o perfil da normalista.

Por fim, o Capítulo 3 discute a prática pedagógica das professoras primárias a partir da

segunda metade do século XX, época em que começaram a atuar. Neste capítulo analisamos o

discurso das normalistas a fim de compreender o sentido que a educação teve para elas

durante sua prática e como este correspondia aos interesses do Estado com aspirações

modernizantes.

O papel que as normalistas encarnaram e a função que aceitaram para si num país em

processo de transformação foram imprescindíveis para a implantação dos ideais democráticos,

calcados numa sociedade desigual e excludente, que teve na instituição escolar os meios para

legitimação e consagração do poder dos grupos hegemônicos.

Page 29: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

27

CAPÍTULO 1 – HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL

1.1 A Educação no Brasil Colônia

A Educação no Brasil tem suas raízes fortemente apoiadas na cultura européia

medieval. Por meio de uma breve retrospectiva da história da educação no Brasil, desde a

chegada do colonizador europeu até a introdução da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional n° 5.692/71 procuramos mostrar como se desenvolveu o sistema educacional

brasileiro, fruto de embates ideológicos influenciados por conceitos tradicionais de

pensadores estrangeiros. O que destacaremos aqui são as permanências deste pensamento nos

discursos pedagógicos, nas leis e na própria política educacional adotada durante o período

abrangido no presente estudo. Daí a necessidade de retroceder na corrente do tempo pelo

menos quinhentos anos, a fim de buscar as raízes do modelo educacional que permeará a

ensino brasileiro durante séculos, ora de maneira evidente no cotidiano das práticas

pedagógicas, ora sutil, através de propostas educacionais que se autodenominam “novas”, mas

que trazem em seu seio, idéias nada originais. Estas idéias serão desenvolvidas no decorrer

deste capítulo. Agora, no entanto, passemos para a origem do ensino formal no Brasil, com a

chegada dos portugueses e o início da colonização.

Desprezando a cultura nativa passada oralmente de geração em geração, os

colonizadores, ao chegarem aqui, trouxeram consigo os primeiros educadores que

constituíram a educação formal e institucionalizada no Brasil: os Jesuítas.

Os padres da Companhia de Jesus chegaram ao Brasil nos idos de 1549 e 1553 e aqui

permaneceram até sua expulsão pelo Marques de Pombal em 1759. Durante pouco mais de

duzentos anos, esta ordem dominou a educação no Brasil. (AZEVEDO, 1963, p. 502-503).

Percebendo a importância da educação como instrumento de dominação dos povos

conquistados, com o apoio da Coroa portuguesa, os jesuítas implantaram no Brasil o primeiro

sistema organizado de ensino. As escolas de ler e escrever atendiam os filhos dos nativos, dos

colonos e dos reinóis. Como o próprio nome indica, nelas aprendia-se a ler, escrever e no caso

dos nativos, a falar português. Essa heterogeneidade na formação das turmas de educandos

funcionava como estratégia de dominação: o contato entre os nativos e as crianças brancas já

era um estímulo para a aculturação dos primeiros, como aponta Azevedo (1963, p. 507):

Page 30: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

28

Atraindo os meninos índios às suas casas ou indo-lhes ao encontro nas

aldeias; associando, na mesma comunidade escolar, filhos de nativos e de

reinóis, - brancos, índios e mestiços, e procurando na educação dos filhos,

conquistar e reeducar os pais, os Jesuítas não estavam servindo apenas à obra

de catequeses, mas lançavam as bases da educação popular e, espalhando nas

novas gerações a mesma fé, a mesma língua e os mesmos costumes,

começava a forjar, na unidade espiritual, a unidade política de uma nova

pátria. (AZEVEDO, 1963, p. 507).

Educando as crianças nativas, os Jesuítas encontravam o caminho para chegar aos

pais, mais arraigados à cultura indígena:

Em toda essa obra magnífica, de catequese e colonização, utilizavam os

padres não só a influência dos meninos brancos, órfãos ou filhos de colonos,

sobre os meninos índios, postos em contato com aqueles nos mesmos

colégios, como também a ação dos colonins que, ensinados pelos padres,

saíam pelas aldeias a ensinar os pais na própria língua dos índios.

(AZEVEDO, 1963, p.507).

Assim, os pequenos nativos se tornaram multiplicadores da cultura europeia de

dominação.

Aproximadamente um século após chegarem ao Brasil, os Jesuítas ampliaram o

sistema educacional, implementando o curso de letras humanas, dividindo em gramática,

humanidades e retórica e o curso de “artes” que incluía filosofia e ciências físicas e naturais.

Estes cursos, porém, não se destinavam aos nativos; eram ministrados aos filhos da elite

patriarcal que, normalmente, após concluí-los, partiam para Portugal, a fim de obter educação

superior na Universidade de Coimbra.

Para estes, a educação assumiu o papel de instrumento de dominação. Como bem

observa Azevedo (1963, p. 523-524):

Entre as três instituições sociais que mais serviam de canais de ascensão, a

família patriarcal, a igreja e a escola, estas duas últimas, que constituíram um

contrapeso à influência da casa-grande, estavam praticamente nas mãos da

Companhia: quase toda a mocidade, de brancos e mestiços, tinha de passar

pelo molde do ensino jesuítico, manipulada pelos padres, em seus colégios e

seminários, segundo os princípios da famosa ordenação escolar, e atribuída

para as funções eclesiásticas, a magistratura e as letras. O gosto que

despertaram pelos estudos e pelos títulos acadêmicos (e aqui não se

conferiam para os leigos, senão os de bacharel e licenciado em artes) e o

desejo de ascensão social, tão vivo entre mestiços como em filhos de

brancos, de senhores de engenho e de burgueses, tornaram cedo a

universidade um ideal comum: “a magistratura, o canonicato, escreve, Pedro

Calmon, honravam por seus privilégios, elevavam o homem a um nível

egrégio, davam-lhe, principalmente na colônia uma eminente situação, ao

par dos cargos de governo”. (AZEVEDO, 1963, p. 523-524).

Page 31: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

29

Desde então, notamos nascer no Brasil o culto à educação como forma de ascensão

social e, quiçá, de dominação econômica e política. Desta forma é possível notar, desde os

primórdios da educação institucionalizada no país, a dicotomia do ensino: um elementar,

porém, útil para a dominação e aculturação dos povos nativos e outro literário e de tradição

escolástica para os dominadores. Esta característica dual do ensino que perdura até os nossos

dias será discutida posteriormente nesta pesquisa, pois é claramente perceptível no período

estudado.

A aversão aos estudos técnicos e ao trabalho produtivo fez da educação jesuítica dada

à elite a marca registrada. Como bem observou Azevedo (1963, p. 533) “a vocação dos

jesuítas era outra certamente, não a educação popular primária ou profissional, mas a

educação das classes dirigentes, aristocrática, com base nos ensinos das humanidades”.

O trabalho produtivo era realizado pelos escravos e pelos nativos e as técnicas

produtivas eram transmitidas de geração para geração de forma empírica. Não havia, portanto,

preocupação com a formação para o trabalho das camadas populares por parte dos jesuítas.

Durante o Brasil Colônia, a atividade econômica predominante era a produção do

açúcar nos engenhos. A formação das competências necessárias para atuar no processo de

produção do açúcar ocorria no próprio cotidiano do engenho. Ao mestre do açúcar,

conhecedor de todo o processo, cabia supervisionar o trabalho de vários profissionais

especializados em diferentes etapas da produção.

Uma descrição detalhada do processo de fabrico do açúcar feita por Antonil (1982, p.

85-86) nos dá a noção da complexidade da tarefa do mestre de engenho bem como da

diversidade de habilidades e competências que este deveria apresentar:

A quem faz o açúcar, com razão se dá o nome de mestre, porque o seu obrar

pede inteligência, atenção e experiência, e esta, não basta que seja qualquer,

mas é necessária a experiência local, a saber, do lugar e qualidade da cana,

onde se planta e se mói; por que os canaviais, de uma parte, dão cana muito

forte, e de outra, muito fraca. Diverso sumo tem a cana das várzeas do que

tem a dos outeiros: a das várzeas vem muito aguacenta e o caldo dela tem

muito que purgar nas caldeiras, e pede mais decoada; a dos outeiros vem

bem açucarada e o seu caldo pede menos tempo e menos decoada para se

purificar e clarificar. Nas tachas há melado, que quer maior cozimento e há

outro de menor; um, logo se condensa na batedeira, outro, mais devagar. Das

três têmperas que se hão de fazer para encher as formas, depende o purgar-se

o açúcar bem ou mal, conforme elas são. Se o mestre se fiar dos caldeireiros

e dos tacheiros, umas vezes cansados, outras sonolentos e outras alegres

mais do que convém, e com a cabeça esquentada, acontecer-lhe-á ver

perdida uma e outra meladura, sem lhe poder dar remédio. Por isso, vigie em

cousa de tanta importância; e se o banqueiro e o ajuda-banqueiro não

tiverem a inteligência e a experiência necessária para suprirem em sua

Page 32: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

30

ausência, não descanse sobre eles, ensine-os, avise-os e, se for necessário,

repreenda-os, pondo-lhes diante dos olhos o prejuízo do senhor do engenho e

dos lavradores, se se perder o melado nas tachas ou se for mal temperado

para as formas. (ANTONIL, 1982, p. 85-86).

Entretanto, a cultura transplantada da metrópole para a colônia pelos jesuítas cumpriu

com sua tarefa: criar por meio de bens culturais veiculados pela educação, uma estrutura de

dominação colonial. Nas palavras de Romanelli (1978, p. 22), “o controle, domínio e

manipulação desses bens ajudaram a manter a dependência cultural da colônia, ao mesmo

tempo em que conferia status a classe dominante e contribuía para manter a distância entre

esta e as demais classes sociais”.

Em 1759 o Marques de Pombal, com a autoridade conferida por Dom João V,

expulsou do Brasil a Ordem Jesuítica, provocando o desmantelamento do sistema educacional

criado por eles. Durante os treze anos seguintes, o Brasil vivenciou um período de abandono

que terminou com a implantação das aulas régias que não lograram os mesmos resultados da

educação sistematizada organizada pelos jesuítas, dada a sua fragmentação. (AZEVEDO,

1963, p. 553).

Com a expulsão [dos jesuítas], desmantelou-se toda a estrutura

administrativa do ensino. A uniformidade da ação pedagógica, a perfeita

transição de um nível escolar para outro, a graduação, foram substituídas

pela diversificação das disciplinas isoladas. Leigos começaram a ser

introduzidos no ensino e o Estado assumiu pela primeira vez, os encargos da

educação. (ROMANELLI, 1978, p. 36).

Entretanto, o que se observou, na prática, foi a sobrevivência da pedagogia jesuítica,

visto que os mestres de agora, em sua maioria os tios-padres e capelães de engenho5, eram

fruto da educação dos jesuítas nos seminários de formação do clero secular (FREYRE, 1936,

p. 62-63 apud AZEVEDO, 1963, p. 514). Assim, os jesuítas foram expulsos, mas sua

influência ainda se fazia sentir durante toda a era pombalina no que tange aos métodos, a

valorização do ensino literário e religioso. Acima de tudo, coube aos capelães de engenho

consolidar a educação moral e cristã, fundamental para conformar a alma e os corpos dos

escravos, que então representavam a base da sociedade, tornando-os dóceis e subordinados

5 No sistema patriarcal instituído durante o período colonial era sempre o primogênito do senhor de terras o

herdeiro natural. Ao segundo, cabia seguir os estudos e alcançar o almejado título de bacharel. Se houvesse um

terceiro filho, este deveria seguir a carreira eclesiástica, formando-se nos seminários do clero secular e mais

tarde voltando aos domínios paternos para exercerem sua missão como capelães de engenho. Estes eram

conhecidos como os tios-padres. Durante o período da reforma pombalina eles é que assumiram a educação nos

engenhos.

Page 33: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

31

aos interesses da elite. A importância do capelão de engenho é descrita por Antonil (1982, p.

81) da seguinte forma:

O primeiro, que se há de escolher com circunspecção e informação secreta

do seu procedimento e saber, é o capelão, a quem se há de encomendar o

ensino de tudo o que pertence à vida cristã, para desta sorte satisfazer à

maior das obrigações que tem, a qual é doutrinar ou mandar doutrinar a

família e escravos, não já por um crioulo ou por um feitor que, quando

muito, poderá ensinar-lhes vocalmente as orações e os mandamentos da lei

de Deus e da Igreja, mas por quem saiba explicar-lhes o que hão de crer, o

que hão de obrar, e como hão de pedir a Deus aquilo de que necessitam. E,

para isso, se for necessário dar ao capelão alguma cousa mais do que se

costuma, entenda que este será o melhor dinheiro que se dará em boa mão.

(ANTONIL, 1982, p. 81).

Foi somente com a vinda da Família Real para o Brasil (1808), quase meio século após

a expulsão dos jesuítas, que o sistema educacional começou a apresentar as primeiras

mudanças. O panorama colonial sofreu transformações e o modelo literário e basicamente

eclesiástico, herança dos jesuítas não correspondia mais aos anseios da sociedade atendida por

poucas e esparsas instituições escolares, que não se limitava mais aos filhos oriundos da casa

grande. A urbanização acompanhada pelo desenvolvimento das atividades econômicas na

mineração e na indústria exigia um novo modelo educacional para atender à demanda. No

tocante ao desenvolvimento industrial vale salientar que a primeira iniciativa do Príncipe

Regente Dom João VI ao chegar ao Brasil, foi revogar o alvará de 5 de janeiro de 1785, que

ordenava o fechamento de todas as fábricas da colônia. Neste contexto, começou a florescer

as primeiras indústrias no Brasil e, segundo Gilberto Freire, o Seminário de Olinda, criado por

Azeredo Coutinho em 1798 e fundado em 1800

„começou a ensinar as ciências úteis que tornassem o rapaz mais apto a

corresponder às necessidades do meio brasileiro, cuja transição do

patriarcalismo agrário para um tipo de vida urbana e mais industrial, exigia

orientadores técnicos bem instruídos e não apenas artífices negros e

mulatos...‟ como também „o estudo dos problemas econômicos criados pela

mineração, pela industrialização, pelo declínio da economia baseada

simplesmente na monocultura e no monopólio‟. (FREYRE, 1936, p. 105

apud AZEVEDO, 1963, p. 558-559).

As medidas tomadas por Dom João na criação de instituições escolares demonstram o

caráter pragmático que caracterizou o período. Sua preocupação foi fundar escolas técnicas,

profissionalizantes que preparassem em pouco tempo e a custo reduzido pessoas para

trabalharem junto ao serviço público. Assim, nas palavras de Azevedo (1963, p. 563) “quase

Page 34: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

32

toda a obra escolar de Dom João VI, impelida pelo cuidado e pela utilidade prática e imediata,

pode se dizer que foi uma ruptura completa com o programa escolástico e literário do período

colonial”.

1.2 A Educação no Brasil Império

No ano de 1822 foi Proclamada a Independência do Brasil e, no ano seguinte,

convocou-se a Assembleia Constituinte. As ideias liberais prevalecentes entre os participantes

se fizeram presentes na preocupação com a educação popular. Entretanto, com a dissolução de

Assembleia Constituinte, os anseios liberais caíram por terra. A Constituição outorgada por

Dom Pedro I em 11 de dezembro de 1823 e registrada na Secretaria de Estado dos Negócios

do Império do Brazil em 22 de abril de 1824, garantia no artigo 179, nº XXXII “A Instrução

Primária, e gratuita a todos os cidadãos”. Em sequência, no nº 33 instituiu a criação de

“Colégios e Universidades aonde serão ensinados os elementos das Sciências, Bellas Artes e

Artes” (Constituição de 1824). Excetuando-se essa duas leis referentes à Educação, não existe

nada de consistente, do ponto de vista do comprometimento do governo imperial, com a

remodelação do sistema de ensino no Brasil que na prática continuou sendo privilégio de

poucos.

As tendências descentralizadoras e regionalistas que ameaçavam a unidade nacional

do Brasil se materializam no Ato Adicional de 1834 que em seu art.10, item dois incumbiu a

Assembleia Legislativa Provincial de zelar pela instrução pública primária e secundária.

Assim:

[...] o governo da União, a que competia, como centro coordenador e

propulsor da vida política do país, se exonerava por essa forma, segundo as

expressões de Tavares Bastos „do principal dos deveres públicos de uma

democracia‟, que é o de levar a educação geral e comum a todos os postos

do território e organizá-la em bases uniformes e nacionais. (AZEVEDO,

1963, p. 566).

Como consequência, o ensino primário continuou restrito a um décimo da população

em idade escolar, o que torna evidente que a instrução primária gratuita para todos assegurada

pela Constituição de 1834 persistia como letra morta. Enquanto a escola primária se limitou

ao ensino da leitura, escrita e operações matemáticas básicas, o curso secundário continuou

priorizando o ensino do tipo aristocrático, formador da elite. Dessa forma, não havia

Page 35: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

33

articulação entre os dois sistemas de ensino. Nas palavras de Azevedo (1963, p. 568) tratava-

se de “dois mundos que se orientam, cada um na sua direção”.

O ensino secundário passou a ser assumido, sobretudo, pela iniciativa privada, em sua

maioria, colégios de natureza confessional, o que acentuou ainda mais seu caráter elitista.

1.3 A Educação no Brasil República

Em fins do século XIX, o Brasil foi palco de acontecimentos importantes que

atingiram e modificaram definitivamente seu panorama econômico, social e político. Em

1888, a abolição dos escravos golpeou o regime econômico baseado na monocultura

escravista. No ano seguinte, ocorreu a Proclamação da República, e em 24 de fevereiro de

1891, tivemos nossa primeira Constituição republicana.

No que tange à educação, a Constituição de 1891 reforçou o caráter federalista e

descentralizador do Ato Adicional de 1824, deixando nas mãos dos Estados, antigas

províncias, a educação primária. Mais uma vez o governo federal desviou de suas mãos a

responsabilidade para com o ensino primário, o que não permitiu o estabelecimento de uma

unidade na estrutura educacional do país durante toda a Primeira República.

Na opinião de Romanelli (1978, p. 41) a Constituição de 1891

Era, portanto, a consagração do sistema dual de ensino, que vinha mantendo

desde o Império. Era também uma forma de oficialização da distância que

mostrava, na prática, entre a educação da classe dominante (escolas

secundárias acadêmicas e escolas Superiores) e educação do povo (escola

primária e escola profissional). Refletia essa situação uma dualidade que era

o próprio retrato da organização social brasileira. (ROMANELLI, 1978, p.

41).

A novidade da Constituição de 1891, apresentada no artigo 72, parágrafo 6, foi a

introdução da laicidade do ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. Esse tema

tornou-se alvo de muitas discussões nas constituições futuras, provocando uma cisão entre os

educadores envolvidos e abalando o monopólio da Igreja sobre a educação. Entretanto, como

veremos nas duas constituições que se seguiram, a questão do ensino laico foi retomada e

abriu-se uma brecha na lei, a fim de que o ensino religioso voltasse a ser instituído nas escolas

públicas. Enquanto a Constituição de 1891 era resoluta em determinar que o ensino nos

estabelecimentos públicos devesse ser leigo, a Constituição de 1934, no artigo 153, permitia

que o ensino religioso fizesse parte da grade curricular das escolas públicas, sendo de

Page 36: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

34

frequência facultativa e, finalmente em 1937, o artigo 183 isentou os mestres de ministrá-lo,

conservando sua frequência facultativa para os alunos.

Percebemos assim que a questão da laicidade do ensino introduzida com o advento da

República foi tema de lutas de caráter ideológico que ocorreram no seio da nova sociedade

que se constituía. De um lado, a Igreja procurou de todos os modos, garantir seu monopólio

sobre a educação, principalmente do Ensino Médio, enquanto do outro, as classes médias em

ascensão exigiram que o Estado assumisse sua responsabilidade para com o ensino, que

deveria ser gratuito, obrigatório e laico. Apesar da luta dos renovadores pela laicização do

ensino, e das pequenas vitórias conquistadas por eles nas constituições republicanas que se

seguiram – haja vista que o ensino religioso se perpetuou como facultativo – observamos que

a essência da moral cristã continuou a constituir parte do currículo, se não de modo formal,

certamente de maneira oculta e dissimulada. (APPLE, 1989).

A tradição religiosa observada nas práticas educacionais de origem europeia encontrou

terreno fértil no Brasil e aqui se consolidou, desde o período Colonial até o Republicano. Com

a finalidade de inculcar nas mentes dos filhos dos trabalhadores a obediência e resgatá-los dos

costumes ruins que os levariam ao ócio e a tentativa de driblar as imposições sofridas pela sua

própria situação de miséria, a educação moral e cristã tornou-se fundamental nas escolas de

educação elementar.

Uma escola francesa elementar do Século XIX é descrita da seguinte maneira por

Petitat (1994, p. 121-122):

A escola elementar dos pobres, neste ponto, não difere das pequenas classes

dos colégios ou das escolas de bairro. De tanto concentrarmo-nos naquilo

que separa as redes de escolas elementares, esquecemos aquilo que as une:

jornadas ritmadas por orações, uma literatura escolar recheada de máximas

morais e uma organização pedagógica (horário escolar, supervisão

ininterrupta, estrito controle dos conteúdos, estimulação, outorga de cargos

honoríficos a alunos, minuciosa divisão e progressiva acumulação dos

programas) que visa tanto a criação de “bons hábitos”, quanto a eficácia

didática na aprendizagem da escrita. (PETITAT, 1994, p. 121-122).

Essa descrição muito se assemelha à feita pelas professoras entrevistadas nesta

pesquisa, que foram educadas e que atuaram como docentes, durante as décadas de 30 a 80 do

século XX. Embora estas profissionais não constituíssem parte integrante das escolas voltadas

para a educação dos pobres, eram elas que desempenhariam o papel de promotoras da

educação dos mesmos futuramente, enquanto normalistas e, neste sentido, era necessário

Page 37: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

35

desde cedo, engendrar em sua própria formação, o respeito, a disciplina e o controle dos

corpos defendidos pela moral cristã.

O currículo oculto (APPLE, 1989) se manifestava na postura do professor que, desde

sua vestimenta até os seus movimentos, devia encarnar o modelo de moral cristã, que seus

alunos deveriam imitar.

Discretamente vestidas, geralmente saias mais compridas, bem compridas,

meias. Sapatos fechados daquele estilo assim de amarrar, tipo assim, saltinho

baixinho, sabe um sapato que ele vem assim, amarra em cima. Camisas,

blusinhas ou assim ou manguinhas compridas, fechadinhas assim, sabe, de

golinha. Cabelinhos discretamente arrumados. (ARQUIVO 12, p. 12).

Esse e outros detalhes da formação da normalista serão explorados através dos relatos

da rede no Capítulo 2, em que mostraremos como a educação integral que receberam, estava a

serviço do Estado e da educação que se pretendia dar aos alunos de ensino primário.

1.3.1 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e sua repercussão na educação do Brasil

Desses embates ideológicos, surgiu um movimento renovador que se formalizou com

a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova no ano de 1932. Utilizando os

preceitos liberais da laicidade, gratuidade e obrigatoriedade do ensino, um grupo formado por

educadores intelectuais que, a pedido do então Presidente em exercício, Getúlio Vargas, se

reuniram a fim de estabelecer diretrizes para uma nova política educacional que coincidisse

com as aspirações do movimento revolucionário que acabava de se instalar no poder. Segundo

Paschoal Lemme (2005, p. 171), um dos signatários do documento, na IV Conferência

Nacional de Educação em que estava presente,

O chefe do Governo Revolucionário – Getúlio Vargas – especialmente

convidado, instalou os trabalhos da conferência e, em memorável discurso,

disse aos educadores presentes que os considerava convocados para

encontrarem uma „fórmula feliz‟ com a qual fosse definido o que ele

denominou de „sentido pedagógico‟ da Revolução de 1930, que o governo se

comprometia a adotar uma obra em que estava empenhado de reconstrução

do País. (LEMME, 2005, p. 171).

Page 38: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

36

A questão da laicidade voltou à tona durante a redação do documento e acabou por

provocar uma ruptura entre os grupos participantes.

Houve então sérias divergências entre os participantes da Conferência, o que

redundou até na retirada do grupo dos educadores católicos, que discordaram

das primeiras redações do documento, em aspectos fundamentais, tais como

prioridade outorgada ao Estado para a manutenção do ensino, ensino leigo,

escola única, coeducação dos sexos, etc. (LEMME, 2005, p. 171).

De acordo com o manifesto, a educação deveria ter “uma função essencialmente

pública”. Sob este tópico o documento reza:

Mas, do direito de cada indivíduo à sua educação integral, decorre

logicamente para o Estado que o reconhece e o proclama, o dever de

considerar a educação, na variedade de seus graus e manifestações, como

uma função social e eminentemente pública, que ele é chamado a realizar,

com a cooperação de todas as instituições sociais. (AZEVEDO, 1932, p.

192).

No entanto, o Estado reconhecia suas limitações e, consciente de que não podia

assumir a responsabilidade pela educação em todos os níveis, permitiu que o ensino privado

continuasse funcionando paralelamente ao ensino público, sob sua vigilância. Desta forma, o

governo não entrou em conflito direto com a iniciativa particular e com os interesses da elite,

pois sabia que não tinha condições de implantar um sistema educacional único gratuito e, ao

mesmo tempo, atendeu às aspirações dos grupos emergentes que viam na educação um meio

de ascensão social. Consolidava-se desta forma o modelo dualista da educação brasileira.

Como bem observou Xavier (1990, p. 72):

Essa concessão, admitida no próprio libelo renovador dos pioneiros, e

aparentemente não percebida como comprometedora para o „projeto de

reconstrução social via reconstrução educacional‟, favorecia a legitimação,

dentro da nova ótica progressista, do tradicional dualismo educacional

brasileiro [...]. Essa concessão „realista‟, admitida e incorporada pelos

ideólogos da renovação, criava também condições favoráveis para a defesa

dos incentivos à escola privada, que se acelerará nas próximas décadas. É

interessante observar o processo através do qual a adesão a um modelo

educacional acaba por transformar-se, via concessão à realidade dos fatos,

numa mera declaração de intenções otimistas que, redimensionadas,

avalizam a perpetuação do vigente. (XAVIER, 1990, p. 72).

De fato, o Governo “Revolucionário” que pregava uma transformação nacional via

educação, através do Manifesto, abriu uma brecha para a manutenção do sistema baseado no

reforço da desigualdade: uma educação voltada para as elites, de iniciativa particular e outra

Page 39: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

37

atendendo os filhos dos trabalhadores em geral. Notamos que nesta fase ocorreu um grande

impulso da educação privada que encontrou campo para seu crescimento e desenvolvimento

em detrimento da educação pública que, por pelo menos quase meio século, era ainda

incipiente diante da demanda nacional.

A obrigatoriedade e a gratuidade do ensino também foram defendidas no Manifesto:

“O Estado não pode tornar o ensino obrigatório se não for gratuito”. (AZEVEDO, 1932, p.

194).

Na opinião dos redatores do documento a obrigatoriedade só sairia do papel como

letra morta a partir do momento em que o Estado desse condições para que pessoas de todos

os níveis sociais pudessem dela usufruir. Isto só seria possível se o ensino fosse gratuito.

É evidente que os preceitos liberais defendidos neste documento histórico respondiam

aos anseios de um governo com aspirações modernizantes. Após a crise de 1929, o Brasil

entrava em uma nova fase econômica marcada pela migração do capital do setor agrícola para

a indústria, até então incipiente. Era preciso qualificar mão de obra para trabalhar na indústria

e a educação cumpriria seu papel neste aspecto. Paschoal Lemme (2005, p. 166) ao analisar o

contexto do período escreveu:

O desenvolvimento e a diversificação da indústria traziam como

conseqüência natural a necessidade de uma melhor preparação de mão de

obra, com reflexos na quantidade de escolas e na qualidade de ensino. A

chegada de grandes contingentes de imigrantes estrangeiros, como vimos,

portadores de uma educação mais aprimorada, elementar, profissional, e

mesmo de nível secundário, passou a pressionar nossa precária estrutura de

ensino, no sentido de sua melhoria. De outro lado, as relações sociais

propiciadas pela intensificação da urbanização e a criação de novas

categorias de empregados, no comércio, de escritório, e de funcionários

públicos, agiram no mesmo sentido da exigência de um ensino mais

eficiente, não somente em relação ao 1º grau, mas também no tocante ao 2º

grau, de caráter geral e profissional. (LEMME, 2005, p. 166).

Neste sentido o Manifesto dos Pioneiros da Educação subordinou mudanças

econômicas à reforma educacional. Logo na introdução lemos:

Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e

gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem

disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a

evolução orgânica do sistema cultural de um país depende de suas condições

econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o

desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os fatores

fundamentais de acréscimo de riqueza de uma sociedade. (AZEVEDO,

1932, p. 188, grifo nosso).

Page 40: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

38

Segundo o documento, as reformas anteriores fracassaram por dissociarem economia e

educação. Ambas deveriam ser encadeadas a fim de “criar um sistema de organização escolar,

à altura das necessidades modernas e das necessidades do país.” (AZEVEDO, 1932, p. 188).

No entanto, o próprio Manifesto não logrou êxito de imediato, visto que seus

pressupostos foram implantados no Brasil de modo parcial, fragmentário e tardio. O governo

que se autoproclamou revolucionário, logo mostrou sua face reacionária e autoritária quando

em 1937 implantou o Estado Novo.

Num balanço realizado por Paschoal Lemme sobre os cinquenta anos do Manifesto da

Educação Nova e suas repercussões no Brasil, o autor admitiu que os dados da Pesquisa

Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) e do IBGE comprovavam que na década de 80 a

exclusão social e educacional ainda era um fato relevante na realidade brasileira. Para Lemme

isso não evidenciava uma falha nas propostas dos Pioneiros e sim um descompasso entre os

pressupostos apregoados por eles e o contexto nacional com uma “estrutura da sociedade

brasileira [...] profundamente antidemocrática”. A solução apontada por Lemme (2005, p.

178) para a implantação dos ideais de igualdade de oportunidades via educação defendida

pelos Pioneiros, se daria “somente quando alcançarmos um regime verdadeiramente

democrático é que se criarão as condições para que se possa florescer uma educação

democrática, na qual prevaleça o preceito fundamental da democracia que é a igualdade de

oportunidades para todos”.

É interessante notar a mudança que ocorreu no discurso deste participante do

movimento escolanovista meio século após o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da

Educação Nova.

Enquanto o Manifesto dos Pioneiros criticava as políticas educacionais anteriores por

dissociarem a educação da economia e propunha uma reforma do país – inclusive das bases

econômicas – via educação, Paschoal Lemme admitiu que era impossível a proposta dos

pioneiros lograr algum êxito se não houvesse primeiro uma mudança conjuntural que tornasse

a nação mais democrática.

O otimismo do discurso dos Pioneiros da Educação Nova revestiu-se de uma sombria

constatação de que o projeto educacional apresentado por seus idealizadores não era

suficientemente consistente para trazer ao Brasil uma nova fase de desenvolvimento e bem

estar social.

Embora o Manifesto defendesse a igualdade no direito à educação para todos, deixava

escapar seu ranço elitista ao defender uma espécie de seleção natural, em que somente os

Page 41: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

39

capazes conseguiriam chegar ao ápice educacional, ou seja, à universidade, tornando-se por

merecimento a elite dirigente da nação. Com respeito a este tema o documento reza:

Se o problema fundamental das democracias é a educação das massas

populares, os melhores e os mais capazes por seleção devem formar o vértice

de uma pirâmide de base imensa [...]. Essa seleção que se deve processar

não “por uma diferenciação econômica” mas, “pela diferenciação de todas

capacidades”, favorecida pela educação, mediante ação biológica e

funcional, não pode, não diremos completar-se, mas nem sequer realizar-se

senão pela obra universitária que, elevando ao máximo o desenvolvimento

dos indivíduos dentro de suas aptidões naturais e selecionando os mais

capazes, lhes dá bastante força para exercer influência efetiva na sociedade e

afetar, dessa forma, a consciência social. (AZEVEDO, 1932, p. 200).

Com esse discurso o Manifesto defendia o conceito de que o desenvolvimento e o

sucesso do indivíduo estavam diretamente relacionados ao mérito, justificando desta forma a

sociedade desigual e excludente existente. Ao propor um sistema educacional de caráter

altamente seletivo, o Manifesto caiu na armadilha da “postura tradicionalista, já que a noção

de desigualdade social justa, com base na hierarquia das capacidades, é a base da legitimação

da escola e da própria sociedade capitalista no pensamento liberal” (XAVIER, 1990, p. 87).

O Manifesto, fruto da influência do pensamento da escolanovista, que teve como um

dos seus maiores expoentes o filósofo norte-americano John Dewey tinha como pressuposto

básico o pragmatismo educacional como substitutivo da tradição filosófica humanista-cristã

que predominava no período. Propunha uma educação voltada para o indivíduo que levasse

em consideração seus interesses, a fim de desenvolver suas potencialidades e inseri-lo na

sociedade.

Considerando a criança o cerne em torno do qual deveria se desenvolver toda a

prática educativa, o escolanovismo criticava o ensino tradicional que impunha ao indivíduo

um conhecimento pronto e acabado que lhe era exterior. Para os progressistas a educação

deveria levar em consideração a curiosidade da criança, aguçando assim sua capacidade

criadora.

Notamos que a proposta escolanovista era profundamente influenciada pelos estudos e

descobertas de fins do século XIX e início do século XX na área da psicologia. Para os

redatores do Manifesto, isto é o que distinguia esta nova proposta educacional das anteriores.

No Manifesto lemos:

O que distingue da escola tradicional a escola nova, não é, de fato, a

predominância dos trabalhos de base manual e corporal, mas a presença, em

todas as suas atividades, do fator psicológico do interesse, que é a primeira

Page 42: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

40

condição de uma atividade espontânea e o estímulo constante ao educando

(criança, adolescente ou jovem) a buscar todos os recursos ao seu alcance,

“graças a força de atração das necessidades profundamente sentidas”.

(AZEVEDO, 1932, p. 196).

Comentando a proposta educacional da escola nova, Paschoal Lemme (2005, p. 167)

relatou:

Esse movimento de renovação escolar, que passou a ser conhecido como o

da “Escola Nova” ou “Escola Ativa”, baseava-se nos progressos mais

recentes da psicologia infantil, que reivindicava uma maior liberdade para a

criança, o respeito às características da personalidade de cada um, nas várias

fases de seu desenvolvimento, colocando o “interesse” como o principal

motor da aprendizagem. Era o que John Dewey, considerado o maior

filósofo e educador norte-americano, pregava como uma verdadeira

revolução – “a revolução copernicana” – em que o centro da educação e da

atividade escolar passava a ser a criança com suas características próprias e

seus interesses e não mais a vontade imposta do educador. (LEMME, 2005,

p. 167).

É curioso notar que os precursores da Escola Nova tomaram para si a idéia de colocar

a criança no centro da educação como uma novidade, em suas palavras, “como uma

verdadeira revolução copernicana”, esquecendo-se, porém, que já no século XVII Comenius,

em sua Didática Magna (1627), propunha uma educação voltada para a criança e seus

interesses. No capítulo XVII sob o tópico “Fundamentos para ensinar e aprender com

facilidade”, Comenius citou dez “pegadas da natureza” que deveriam ser seguidas pelos

educadores para que pudessem ter sucesso no ensino. Dentre elas destacam-se:

I – começar cedo, antes da corrupção das inteligências;

VII – e se os espíritos não forem constrangidos a fazer nada mais que aquilo

que desejam fazer espontaneamente, segundo a idade e por efeito do método;

IX – e fazendo ver sua utilidade imediata. (COMENIUS, 1627).

Aprofundando sua explicação de cada um desses fundamentos, Comenius (1627)

assim justificou a educação voltada para a criança: “as mentes jovens, ainda não habituadas a

se distraírem com outras ocupações, se embebem bem dos estudos da sabedoria. E, quanto

mais tarde começa a formação, tanto mais embaraçada procede, pois a mente já está ocupada

com outras coisas.” (COMENIUS, 1627).

E sobre o fundamento VII, demonstrou através da comparação que, assim como uma

avezinha não é constrangida pela natureza a sair do ovo antes da hora, na educação, “a nada se

Page 43: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

41

obrigue a juventude, a não ser aquilo que a idade e a inteligência, não só admitem, mas até

desejam”. (COMENIUS, 1627).

Também notamos que o caráter pragmático defendido pelos escolanovistas já era

sugerido por Comenius no IX fundamento que asseverava: “não se ensine senão aquilo que se

apresente como imediatamente útil.” (COMENIUS, 1627). Desta forma, podemos concluir

que a Escola Nova, nos seus preceitos fundamentais não era tão nova assim, pois baseava seus

princípios em antigas propostas que apenas não eram colocadas em prática, nem no Brasil

onde encontrou terreno fértil, nem no exterior, onde supostamente teria nascido.

1.3.2 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e a formação do professor

Sob o tópico “A unidade de formação de professores e a unidade de espírito”, o

Manifesto dos Pioneiros defendia que os educadores, como parte integrante da elite brasileira,

deveriam receber uma educação própria para atuarem como tal. Criticava fortemente a

formação dos professores que no início do século XX ainda se organizava nos moldes da

Reforma Benjamin Constant, empreendida no final do século anterior e de cunho positivista.

De acordo com Azevedo (1963, p. 623), “a reforma do ensino secundário e normal, sob a

inspiração de Benjamin Constant, deu ao ensino propedêutico, e a formação profissional do

professor um caráter mais enciclopédico do que científico”. Isso se chocava diretamente com

os preceitos escolanovistas que defendiam o pragmatismo científico na educação.

Assim, o Manifesto dirigiu a sua crítica aos cursos de formação de professores

dizendo:

O magistério primário, preparado em escolas especiais (escolas normais), de

caráter mais propedêutico, e, às vezes misto, com seus cursos geral e de

especialização profissional, não recebe, por via de regra, nesses

estabelecimentos, de nível secundário, nem uma sólida preparação

pedagógica, nem a educação geral em que ela deve basear-se. A preparação

dos professores, como se vê, é tratada entre nós, de maneira descuidada,

como se a função educacional, de todas as funções públicas a mais

importante, fosse a única para cujo exercício não houvesse necessidade de

qualquer preparação profissional. (AZEVEDO, 1932, p. 200).

Segundo o Manifesto dos Pioneiros, o professorado de todos os níveis (fundamental,

médio e superior) deveria receber uma formação dentro de um espírito de unidade que

Page 44: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

42

imprimiria nos mesmos uma coesão em sua prática pedagógica. A proposta dos Pioneiros era

que,

Todos os professores de todos os graus, cuja preparação geral se adquirirá

em estabelecimento de ensino secundário, devem, no entanto, formar o seu

espírito pedagógico, nos cursos universitários, em faculdades ou escolas

normais, elevadas ao nível superior e incorporadas às universidades. A

tradição das hierarquias docentes, baseada na diferenciação dos graus de

ensino, e que a linguagem fixou em denominações diferentes (mestre,

professor e catedrático), é inteiramente contrária ao princípio da unidade da

função educacional, que, aplicado às funções docentes, importa na

incorporação dos estudos do magistério às universidades e, portanto, na

libertação espiritual e econômica do professor, mediante uma formação e

remuneração equivalentes que lhe permitam manter, com a eficiência no

trabalho, a dignidade e o prestígio indispensáveis aos educadores.

(AZEVEDO, 1932, p. 200).

O curso Normal, como era denominado o magistério neste período, dirigido à

formação de professores primários, continuou sendo um curso predominantemente de nível

médio. Por ser um curso que atendia quase que exclusivamente o público feminino em escolas

na maior parte confessionais, a formação do professor primário não ultrapassou o nível médio,

pois às mulheres estava vedado o acesso ao ensino superior. Azevedo (1963, p. 639) explicou:

Se as portas das escolas normais já se franqueavam inteiramente às

mulheres, que passaram a dominar o ensino primário, como seu próprio

elemento, e começaram a figurar, embora em percentagem extremamente

reduzida até 1930, nas escolas secundárias, as escolas superiores

permaneciam ainda praticamente fechadas. (AZEVEDO, 1963, p. 639).

Desta forma, era impossível implantar uma formação de caráter único ao professorado

de todos os níveis, em uma sociedade tradicionalmente machista em que às mulheres

permitia-se a formação como professoras primárias única e exclusivamente, por se associar ao

feminino o caráter maternal de cuidado, que as crianças neste nível de escolaridade careciam.

O fracasso em implantar um sistema unitário de formação para o professorado atuante

em todos os níveis de ensino não permitiu a eliminação da hierarquização do profissional da

educação. Assim, predominou, entre o grupo de educadores, uma postura corporativa de

categorias profissionais, definida pelo nível de ensino em que atuava, não sendo incomum

notar certo desprezo pelos professores que atuavam no ensino primário com uma formação

limitada ao nível médio.

As entrevistas realizadas são elucidativas no que diz respeito a como as leis

relacionadas à educação eram elaboradas pelos estudiosos e legisladores, e como eram

Page 45: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

43

assimiladas na prática pelos professores, alijados do processo de elaboração das mesmas, que

sentiam no cotidiano escolar o reflexo das alterações que lhes eram impostas. De fato, sempre

houve uma discrepância enorme entre os legisladores, que elaboram as leis sem conhecerem a

realidade escolar e os professores que vivem da educação e para a educação e não

compreende, em seu cotidiano, o sentido das decisões das Assembleias Legislativas, alheias

às consequências das medidas por ela tomadas. Assim, alguns trechos de entrevistas serão

aqui analisados a fim de fazer um contraponto entre as leis direcionadas à educação e a

impressão causada nas normalistas em sua prática pedagógica.

D. Cleuza comentou como era a convivência entre os PI (Professores Primários) e os

PII (Professores com licenciatura para atuarem em ensinos fundamental de 2º ciclo e Médio),

no período da introdução da lei 5692/71 que implementou a instrução superior para

professores que tinham apenas o curso Normal, e reorganizou fisicamente as escolas juntando

em um mesmo prédio 1º e 2º graus:

Olha, não sei se coincidiu com a ditadura, mas quando houve aquela

valorização do professor de 1ª a 4ª série, que se cursasse uma faculdade ele

melhoraria os vencimentos, subiria quatro referências para ganhar como

professor que na época falava PI e PIII. O PIII é o que dava aula de 5ª série

em diante, né. Que houve uma rivalidade, uma coisa incrível. Até, nem em

sala de professor não podia ter recreio junto porque não parecia a mesma

categoria. Porque aqueles eram PIII, esses eram PI. E, então houve isso.

Quem cursou faculdade subiu muito o salário e tudo. (ARQUIVO 41, p.

3).

Somente em fins do século XX, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Brasileira 9394/96, é que houve uma tentativa de nivelar a formação do profissional da

educação ao ensino superior, como propunham os Pioneiros no seu Manifesto.

No artigo 62, a LDB 9394/96 propõe:

A formação de docentes para atuar na educação básica, far-se-á em nível

superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e

institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o

exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do

ensino fundamental a oferecida em nível médio, na modalidade normal.

(BRASIL. LDB 9394/96).

Entretanto, notamos uma enorme brecha na lei que permite ainda a atuação de

professores com formação normal em nível médio no ensino infantil de 1ª a 4ª séries do

ensino fundamental. No entanto, a tendência que se segue é a extinção completa desse

Page 46: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

44

profissional, visto que, juntamente com a lei 9394/96 seguiu-se a eliminação de cursos de

magistério em nível médio e a implantação do Normal Superior.

1.3.3 A Educação nas Constituições de 1934, 1937 e 1946

Fruto do regime que se instalou em 1930 e respondendo a seus anseios, o Manifesto

não o questionou. Como bem observou Romanelli (1978, p. 151), “sua luta era contra a escola

tradicional, não contra o Estado burguês. Representava o pensamento das lideranças jovens na

composição das estruturas de poder da época, estruturas que, como já afirmarmos, contavam

também com velhas lideranças.” As lutas ideológicas entre conservadores e renovadores se

consolidaram nas leis referentes à educação das constituições de 1934 e 1937, ora

favorecendo um, ora outro grupo.

A Constituição de 1934 contemplou boa parte das propostas básicas do Manifesto.

Excetuando o artigo 153 que deu continuidade ao ensino religioso, no entanto, “de frequência

facultativa e, de acordo com os princípios de confissão religiosa do aluno manifestada pelos

pais ou responsáveis”, os demais artigos representavam a vitória renovadora. A ideia de

unidade na educação defendida pelos pioneiros foi estabelecida no artigo 151 que dispunha

sobre a tarefa que “compete aos Estados e ao Distrito Federal organizar e manter sistemas

educativos nos territórios respectivos, respeitadas as diretrizes estabelecidas pela União”. O

Manifesto defendia que “Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe

multiplicidade”. (AZEVEDO, 1932, p. 195).

Assim, a proposta era de descentralização da obra educativa que respeitasse as

particularidades geográficas, regionais e culturais.

À União na capital, e aos estados, nos seus respectivos territórios, é que deve

competir a educação em todos os graus, dentro dos princípios gerais fixados

na nova constituição, que deve conter, com a definição de atribuições e

deveres, os fundamentos da educação nacional. (AZEVEDO, 1932,

p.195).

Os princípios liberais de direito à educação para todos e do dever do Estado em

oferecê-la foi contemplado no artigo 149. As letras a e b do parágrafo único do art. 150

propunham que o ensino primário fosse gratuito sendo que, com o tempo, deveria estender-se

para nível de ensino ulterior, tornando-o “mais acessível” a todos.

Page 47: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

45

É notório que a Constituição de 1937 não defende com tanta veemência o dever do

Estado para com a educação. O artigo 129 definia que o Estado deveria assegurar a educação

às crianças e jovens que não tivessem “recursos necessários” para frequentar instituições

particulares. Assim, o Estado é que deveria complementar a educação oferecida pela iniciativa

particular e não o contrário.

A Constituição de 1937 não se manifestou também sobre ampliação da gratuidade do

ensino. No artigo 130 definiu que apenas “o ensino primário é obrigatório e gratuito”.

Também propunha um sistema de ajuda mútua, baseado no princípio de solidariedade que

permitisse que os menos necessitados contribuíssem mensalmente para a “caixa escolar” a fim

de favorecer os mais necessitados. O ensino religioso, como já comentado neste trabalho,

continuou sendo de caráter facultativo para alunos, porém, o professor não era mais obrigado

a ministrá-lo.

Uma novidade na Constituição de 1937 foi instituir no artigo 129 o dever das

indústrias e dos sindicatos de criarem escolas de aprendizes a fim de educar para o trabalho os

filhos de operários. Isto demonstra-nos a preocupação do Estado com a preparação de mão-

de-obra especializada para trabalhar no setor industrial que, neste período, estava em franco

desenvolvimento.

O Estado demonstrou sua intenção de contribuir para a manutenção das desigualdades

sociais ao afirmar também no artigo 129, que o ensino pré-vocacional profissional destinava-

se “às classes menos favorecidas”. Como bem observou Romanelli (1978, p. 153, grifo da

autora) “oficializando o ensino profissional como ensino destinado aos pobres, estava o

Estado instituindo oficialmente a discriminação social, através da escola. E fazendo isso,

estava orientando a escolha da demanda social de educação”. Mais uma vez o dualismo na

educação foi reforçado ao propor um tipo de educação para os filhos dos trabalhadores e outro

para as elites.

O fato de a educação brasileira ser marcada em toda sua história pelo dualismo do

ensino oferecido para a elite e para as camadas populares da sociedade é digno de nota.

Quando decidimos compreender a forma como as normalistas foram educadas e para que fim,

esbarramos inevitavelmente na questão mais profunda da educação, que diz respeito ao tipo

de ensino que se pretende ministrar aos filhos dos trabalhadores, de forma a garantir uma

inserção rápida e desvantajosa no mercado de trabalho, e outra destinada à elite que ocupará

os postos de comando, gestão de pessoas, bens e serviços. Neste sentido, um retorno de longa

duração à história da educação no Brasil se faz necessário, para visualizarmos melhor como

Page 48: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

46

se processou o desenvolvimento do ensino como instrumento de controle e manutenção da

sociedade desigual e injusta.

A preocupação com a formação da elite ficou evidente com a criação da Universidade

de São Paulo em 1934 e Universidade do Distrito Federal, um ano depois. No entanto, a

educação primária continuou restrita, não havendo interesse em expandir o sistema de ensino

a fim de atender a demanda existente.

A letra e do parágrafo único do art. 150 instituiu: “limitação da matrícula à capacidade

didática do estabelecimento e seleção por meio de provas de inteligência e aproveitamento,

ou por processos objetivos apropriados à finalidade do curso.” (BRASIL.

CONSTITUIÇÃO..., 1937, art. 150, grifo nosso). Assim, como observou Romanelli (1978, p.

153), “A constituição não se refere a um plano de expansão das escolas, mas sim a um plano

de limitação de matrícula, prova que, por parte do Governo, se cuidou de conter a expansão

do ensino em limites estreitos.” Contrário aos preceitos defendidos pelos renovadores que

propunham a educação como dever do Estado e direito de todos, na prática continuou a existir

um sistema educacional cruelmente seletivo e excludente da maior parte da população

brasileira.

Com o fim do Estado Novo em 1945, umas das primeiras medidas do governo que se

instituiu após as eleições, foi a convocação de uma Assembleia Constituinte para redigir uma

nova Constituição. Nela permaneceram aspectos da gratuidade e obrigatoriedade do ensino

primário. Entretanto, o Estado não assumiu definitivamente o ensino ulterior ao primário. Ao

contrário, no item II do art. 168 lê-se: “O ensino primário oficial é gratuito a todos: o ensino

oficial ulterior sê-lo-à para quantos provarem falta ou insuficiência de recursos.” Notamos

assim que a tendência de expansão da gratuidade do ensino para além do primário defendida

na Constituição de 1934, (BRASIL. CONSTITUIÇÃO..., 1934, art. 150, parágrafo único,

letra b) ficou restrita aos “necessitados” e não a todos os brasileiros, independente das

condições sociais e financeiras. O ensino religioso não foi excluído definitivamente,

continuando a ser de matrícula facultativa (item V, art. 168). Assim, o Estado não adotou a

laicidade do ensino público de maneira categórica, e este perfil dúbio da educação se arrastou

por toda a história do ensino do Brasil Republicano.

A educação primária dos trabalhadores e dos filhos destes passou a ser um dever das

empresas industriais, comerciais e agrícolas que tivessem mais de 100 pessoas em seu quadro

funcional. Também cabia a estas instituições prover “em cooperação, aprendizagem a seus

trabalhadores menores.” (itens III e IV do art. 168). Fica claro que a preocupação do Estado

era garantir uma educação mínima para os trabalhadores a fim de prepará-los para

Page 49: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

47

desempenharem suas funções da forma mais eficiente possível. A introdução de menores

aprendizes na indústria e comércio denuncia o caráter empírico que a educação deveria

assumir para os filhos dos operários.

Outro aspecto da Constituição de 1946 foi a descentralização da administração do

ensino, deixando à União a tarefa de organização do sistema federal do ensino, enquanto que

os Estados e o Distrito Federal ficariam responsáveis pela sua própria organização

administrativa e pedagógica. (art. 170 e 171) Neste sentido, as aspirações dos pioneiros da

Educação Nova foram atendidas no quesito denominado por eles de “doutrina federativa e

descentralizadora” (AZEVEDO, 1932, p. 195).

1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional n° 4024/61

No ano de 1948, o então Ministro da Educação, Clemente Mariani, reuniu um grupo

de educadores e intelectuais com o objetivo de elaborar um projeto de reforma da educação

nacional. Embora os debates em torno do tema tenham se iniciado neste ano, somente em

1961, 13 anos depois, o Brasil recebia o produto final, a saber a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação 4.024 de 20 de dezembro de 1961. Durante esse período ocorreram muitas

discussões em torno da educação por parte dos grupos historicamente oponentes –

conservadores católicos versus renovadores liberais.

Um dos principais pontos de discórdia entre estes dois grupos se relacionava à questão

do monopólio estatal sobre o ensino. Embora a Constituição de 1946 garantisse em seu artigo

167, a existência de um sistema particular de ensino paralelo ao oficial, a preocupação em

garantir os direitos de educação da elite frente à democratização apregoada pela Carta era

evidente.

O substitutivo apresentado pelo Deputado Carlos Lacerda em 1959 direcionou as

discussões para a liberdade do ato de ensinar. Partindo das premissas de que “a educação da

prole é direito inalienável e imprescritível da família”, (art. 3°) e que “a escola é,

fundamentalmente, prolongamento e delegação da família” (art. 4º), o dispositivo conclui no

art. 5º que:

Para que a família, por si ou por seus mandatários, possa obrigar-se do

encargo de educar a prole, compete ao Estado oferecer-lhe os suprimentos e

recursos técnicos e financeiros indispensáveis, seja estimulando a iniciativa

Page 50: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

48

particular, seja proporcionando ensino oficial gratuito ou de contribuição

reduzida.

Desta forma, como observou Romanelli (1978, p. 174) “O centro do interesse não

estava no direito da família, mas na reivindicação de recursos que se fazia em favor desta ao

Estado para beneficiar a iniciativa privada antes mesmo que o ensino oficial.” Nos artigos 6º e

7º fica evidente o que o substitutivo Lacerda pretendia:

Art. 6º – É assegurado o direito paterno de prover, com prioridade absoluta,

a educação dos filhos; e dos particulares, de comunicarem a outros os seus

conhecimentos, vedado ao Estado exercer ou, de qualquer modo, favorecer o

monopólio do ensino.

Art. 7º – O Estado outorgará igualdade de condições às escolas oficiais e às

particulares:

a) pela representação adequada das instituições educacionais nos órgãos

de direção de ensino;

b) pela distribuição das verbas consignadas para a educação entre as

escolas oficiais e as particulares proporcionalmente ao número de alunos

atendidos;

c) pelo conhecimento, para todos os fins, dos estudos realizados nos

estabelecimentos particulares.

Estas propostas vinham de encontro aos interesses privatistas dos donos de escolas e

da Igreja que ainda dominava boa parte da educação privada.

No entanto, Romanelli (1978, p. 178) traduziu as aspirações do substitutivo Lacerda

como sendo uma luta contra a democratização do ensino e como consequência, da “vida

nacional”.

O ensino público, com o ser obrigatório e gratuito, era democrático e

possibilitava, de um lado, às camadas populares uma via de acesso à

participação na vida econômica, de forma menos discriminante, mais justa,

de outro lado, acenava com a possibilidade de participação política mais

consciente e de bases mais amplas, o que vinha a minar pela base, o

sustentáculo político das velhas elites. (ROMANELLI, 1978, p. 178).

Todavia, sabemos que as escolas públicas neste período representavam mais uma

concorrência com o ensino privado – visto que os grupos emergentes economicamente

recorriam ao ensino oficial como meio de ascensão social – o que, de fato, promovia uma

democratização e, como quer Romanelli (1978, p. 178), “uma via de acesso menos

discriminante e mais justa às camadas populares”. O acesso à escola, mesmo pública, ainda

era vetado à maior parte da população pobre que, em busca da sobrevivência não tinha

condições de permanecer nela e concluir nem mesmo, o ensino primário.

Page 51: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

49

Em resposta ao substitutivo Lacerda foi publicado em 1º de julho de 1959, no jornal O

Estado de São Paulo, um novo Manifesto dos Educadores, novamente redigido por Fernando

de Azevedo e assinado por 189 signatários, incluindo desta vez estudantes, profissionais de

outras áreas e líderes sindicais. Este documento foi fruto de um movimento denominado pelos

seus líderes como Campanha em Defesa da Escola Pública. Tinha por objetivo, como exposto

em sua introdução, “apresentar e submeter ao julgamento público os novos pontos de vista

sobre os problemas da gravidade e complexidade com que se apresenta a educação.”

(AZEVEDO, 1959, p. 205).

Reconhecendo as propostas do Manifesto de 1932 como atuais, reforçou os conceitos

básicos defendidos no mesmo, chamando à atenção para o papel que a educação pública devia

assumir diante do processo de modernização que incidia sobre o país. Reiterou a importância

de preservar a descentralização no campo educacional que a Constituição democrática de

1946 havia restabelecido, após quase uma década de governo centralizado e de caráter

autoritário.6 Acima de tudo, defendeu com veemência a escola pública e gratuita atacada pelo

substitutivo Lacerda, chamando a atenção para as verdadeiras intenções do mesmo: o aspecto

econômico, ou seja, transferir os recursos financeiros destinados à escola pública para a escola

particular.

Vale salientar que o Manifesto de 1959 reforçou a importância da educação pública

para a preparação do jovem para o trabalho. A educação não podia mais se basear na “ciência

desinteressada”, preparatória para o nível superior. Era imperativo diante do contexto

econômico desenvolvimentista que se estabelecia na década de 50, preparar o maior

contingente populacional em idade escolar para o trabalho produtivo e o domínio de técnicas

sofisticadas. Desta forma, Sanfelice (2007, p. 552) definiu assim o objetivo da educação

exposta no Manifesto de 1959:

A educação pública tem que ser reestruturada de maneira que contribua para

com o progresso científico e técnico, para o trabalho produtivo e o

desenvolvimento econômico [...] Os objetivos da escola são agora práticos,

mais profissionais, da ciência aplicada e menos da ciência pura e

desinteressada. (SANFELICE, 2007, p. 552).

A educação devia, segundo o Manifesto “incutir-lhe [na mocidade] o respeito e a

estima para com o trabalho e ensiná-la a utilizar de maneira ativa, para o bem estar do povo,

6 A constituição outorgada em 1937 durante o Estado Novo suprimiu a disposição que legitimava a

descentralização no campo educacional, pois isto era incompatível com a ideia centralizadora do regime

autoritário.

Page 52: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

50

as realizações da ciência e da técnica.” (AZEVEDO, 1959, p. 216). Fica evidente o papel

fundamental da educação em infundir o espírito liberal de trabalho como instrumento de

envolvimento humano na população destinada à escola pública.

Dos debates que se seguiram em torno das propostas do substitutivo Lacerda e do

Manifesto dos Educadores de 1959, nasceu o projeto que foi transformado em lei em 1961.

Como era de se esperar, a LDB nº 4.024/61 trazia em seu bojo aspirações e elementos tanto

progressistas-liberais como conservadores. Como observou Sanfelice (2007, p. 555)

Os interesses realmente antagônicos estavam sendo forjados no movimento

operário, no movimento dos camponeses, em certos setores das camadas

médias ou de grupos de intelectuais que foram derrotados na seqüência dos

acontecimentos políticos ocorridos no transcorrer dos governos de Jânio

Quadros e João Goulart, culminando com a vitória do movimento civil-

militar de 1964. (SANFELICE, 2007, p. 555).

Por representarem as elites do país, estes dois grupos, embora aparentemente

antagônicos, conseguiram concluir seus interesses nas leis que se seguiram aos embates

ideológicos por eles travados. Podemos dizer, apropriando- nos de parte das conclusões de

Sanfelice, (2007, p. 554) que “entre o passado, a modernidade e a revolução, era preciso

garantir pelo menos a modernidade” para os progressistas ou, na pior das hipóteses até o

retrocesso, mas nunca a verdadeira revolução.

1.3.5 O nacional-desenvolvimentismo e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº

4.024/61

No Brasil a década de 50 do século XX foi marcada profundamente pelo ideário

modernizante. O governo de Jucelino Kubetschek, de cunho nacional-desenvolvimentista

assumiu o poder em 1955, com o slogan político “50 anos em 5” em que propunha trazer para

o Brasil em cinco anos de mandato o progresso que não havia alcançado no último meio

século. Com um projeto arrojado e inovador, o governo JK atraiu para o país cada vez mais

capital estrangeiro a fim de investir na industrialização.

O desenvolvimento do setor econômico-industrial do país se tornou evidente neste

período. O crescimento na geração de emprego na indústria mudou de uma vez por todas a

feição do Brasil. Em busca de trabalho, a população rural migrou em levas do campo para as

cidades que assistiram nesta década um crescimento assustador.

Page 53: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

51

No entanto, é evidente que o sistema educacional do Brasil era totalmente deficiente e

não acompanhava as transformações econômicas que se davam no país. Consequentemente o

Brasil ficava preso à tecnologia importada por não ter mão-de-obra especializada e preparada

para lidar com ela. Como observou Skidmore (1988, p. 32):

O sistema educacional não somente deixava de cumprir as metas mínimas de

alfabetização para o povo em geral, mas também não procurava preparar a

força de trabalho qualificada que a industrialização reclamava. O Brasil

dependia quase totalmente de tecnologia importada possuída por empresa

como Brown Boveri (geradores), Bayer (medicamentos), Bosch

(equipamentos elétricos), Coca-Cola (refrigerantes) e Volkwagem

(veículos). (SKIDMORE, 1988, p. 32).

Os idealizadores do Manifesto dos Educadores de 1959, antenados que estavam nas

transformações que ocorriam no Brasil, já sugeriam neste documento, uma educação voltada

para a formação técnica e profissional do indivíduo. Neste respeito, é possível notarmos a

influência de suas propostas na lei nº 4.024/61, que instituiu as bases para a educação

nacional.

Logo no artigo 1º letra e instituiu-se que a educação nacional tinha por fim “o preparo

do indivíduo e da sociedade para o domínio dos recursos científicos e tecnológicos que lhes

permitam utilizar as possibilidades e vencer as dificuldades do meio”, acenando assim para o

papel da escola em formar mão-de-obra especializada que seria absorvida rapidamente pelo

setor industrial em expansão.

O ensino primário continuou sendo o único de caráter obrigatório, reconhecendo o

Estado o dever de oferecê-lo paralelamente com a iniciativa privada. Neste sentido, os

interesses dos donos de escolas particulares confessionais ou leigas foram preservados, apesar

de o ensino oficial não assumir o caráter supletivo na educação, como havia sugerido o

substitutivo Lacerda.

A lei, nos artigos 31 e 32, outorgou às grandes empresas industriais, comerciais e

agrícolas o dever de oferecer ensino primário gratuito para os seus funcionários e os filhos

destes. Os proprietários rurais que não tivessem escola para atender os filhos dos

trabalhadores deviam prover condições para que estes se dirigissem para as escolas mais

próximas ou permitir que se instalassem em suas glebas escolas públicas. Desta forma,

procurava-se garantir o mínimo de instrução necessária aos filhos dos trabalhadores.

As mudanças econômicas refletiram de maneira direta na sociedade brasileira. A

mulher, anteriormente destinada aos cuidados do lar, do marido e dos filhos, passou a

constituir mão-de-obra em diversos setores da economia. Apercebendo-se disso a lei nº

Page 54: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

52

4.024/61, em seu artigo 24, estabeleceu a criação de creches que atendessem crianças menores

de 7 anos, em cooperação entre empresas e poderes públicos.

Vale salientar que a obrigatoriedade do ensino primário estava sujeita a algumas

exceções através dos quais o governo isentava tanto a si próprio como aos pais de aplicá-la.

(FAZENDA, 1985, p. 46).

O artigo 30, parágrafo único, dispunha:

Constituem casos de isenção (da obrigatoriedade), além de outros previstos

na lei:

a) comprovado estado de pobreza do pai ou responsável;

b) insuficiência de escolas ;

c) matrículas encerradas;

d) doenças ou anomalia grave da criança. (BRASIL. LEI 4.024/61, art.

30, parágrafo único).

Como podemos observar, estes dispositivos não obrigavam o Estado criar instituições

suficientes para atenderem a demanda (item b – insuficiência de escolas), nem os pais de

proverem educação para os filhos se provassem “estado de pobreza”, em outras palavras, se

precisassem destes filhos para ajudar nas despesas do lar com seu trabalho. Isso denunciava o

caráter utilitário da lei, que demonstrava maior interesse na mão-de-obra infantil dos filhos

dos pobres do que na sua educação, ou seja, tal lei funcionava mais para o crescimento

econômico do país e reservava, obviamente, a educação àquelas famílias possuidoras de

recursos financeiros, que tinham seu status renovado pela educação, que lhe permitia

formação técnica avançada para ocupar os melhores empregos.

Neste aspecto a Lei de Diretrizes e Bases parecia trazer em seu seio uma ambiguidade:

enquanto o artigo 30 letra a acima citado isentava os pais pobres do dever de matricular seus

filhos na escola primária, sob o título II estabelecia:

Art. 3º O direito à educação é assegurado:

II – pela obrigação do Estado de fornecer recursos indispensáveis para que a

família e, na falta desta, os demais membros da sociedade se desobriguem

dos encargos da educação, quando provada insuficiência dos meios, de modo

que sejam asseguradas iguais oportunidades a todos. (BRASIL. LEI

4.024/61).

Embora na letra da Lei fosse garantida igualdade de direito e oportunidade para todos,

a educação continuava sendo excludente e elitista.

Após as quatro séries do ensino primário, a lei estabelecia o prosseguimento dos

estudos no ensino médio. No entanto, o ingresso neste ciclo era um verdadeiro desafio. No

Page 55: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

53

artigo 36 da Lei instituiu-se “exame de admissão” em que o aluno deveria demonstrar

desempenho satisfatório para passar para o ensino médio. O exame de admissão funcionava

exatamente como gargalo de um funil que selecionava de maneira extremamente precisa e

rigorosa os alunos que dariam continuidade aos estudos.

Estes escolhidos, os mais capazes segundo o sistema, ingressavam no ensino médio e

ali, tinham a oportunidade de receber uma educação mais técnica. O artigo 34 definia que “o

ensino médio será ministrado em dois ciclos, o ginasial e o colegial, e abrangerá, entre outros,

os cursos secundários, técnicos e de formação de professores para o ensino primário e pré-

primário”.

O curso técnico assumiu um relevo nesta Lei. O artigo 47 instituiu o ensino técnico no

grau médio nas seguintes áreas: industrial, agrícola e comercial que, segundo o artigo 49,

podiam ser ministradas nos ciclos ginasial e colegial.

Porém, a formação técnica empírica não foi deixada de lado. A formação de menores

empregados no próprio estabelecimento de trabalho foi assegurada no artigo 51 e o parágrafo

2º validava os certificados de conclusão de curso de aprendizagens ou carta de ofício para o

acesso aos ginásios de ensino técnico.

Isto demonstra-nos o quanto o Estado e a burguesia industrial e comercial estavam

pactuados em busca do crescimento econômico via formação de mão-de-obra especializada.

Os cursos de aprendizagem e ofício, oferecidos pelas empresas técnicas e comerciais

em cooperação (art. 51), passaram pelo crivo dos Conselhos Estaduais de Educação dos

estados e nos territórios, pelo Conselho Federal de Educação.

Enquanto o ensino religioso continuou a funcionar em caráter facultativo (art. 97),

outro dispositivo de controle das mentes e dos corpos foi instituído na LDB 4.024/61 – a

Educação Moral e Cívica (art. 38 item III). Fica evidente que o pensamento nacionalista que

aflorou com a modernização do país nos anos anteriores se refletia sobre a educação com

grande êxito. Não se falava mais em ensino religioso propriamente dito, para não ferir a

liberdade de consciência e de culto defendida pelo pensamento liberal; agora se falava em

educação “moral” que podia abarcar todas as crenças, mas que, na realidade, pregava a “moral

cristã” de obediência irrestrita, respeito pelas autoridades, trabalho como meio de libertação e

enobrecimento da alma. Já o civismo era defendido pelo apelo ufanista de defesa do território

nacional, de luta pelo crescimento do país, “gigante pela própria natureza”. Estes conceitos,

incutidos nas crianças seriam úteis no futuro, como trabalhadores dóceis das fábricas.

Page 56: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

54

No entanto, para que fosse possível implementar essa lei, era necessário que se

contemplasse a formação dos educadores, que seriam os porta-vozes do modelo de educação

proposto.

O capítulo IV da Lei 4.024/61 discorre sobre a formação dos professores de todos os

níveis:

Art. 53. A formação de docentes para o ensino primário far-se-á:

a) em escola Normal de grau ginasial no mínimo de quatro séries anuais

onde além das disciplinas obrigatórias do curso secundário ginasial será

ministrada preparação pedagógica;

b) em escola Normal de grau colegial, de três séries anuais, no mínimo,

em prosseguimento ao vetado grau ginasial.

Art. 54. As escolas Normais, de grau ginasial expedirão o diploma de

regente de ensino primário, e, as de grau colegial, o de professor primário.

Art. 55. Os Institutos de Educação além dos cursos de grau médio referidos

no artigo 53 ministrarão cursos de especialização, de administradores

escolares e de aperfeiçoamento, abertos aos graduados em escolas Normais

de grau colegial.

Art. 59. A formação de professores para o ensino médio será feita nas

faculdades de filosofia ciências e letras e de professores de disciplinas

específicas de ensino médio técnico em cursos especiais de educação

técnica.

Parágrafo único. Nos Institutos de Educação poderão funcionar cursos de

formação de professores para o ensino normal, dentro das normas

estabelecidas para os cursos pedagógicos das faculdades de filosofia,

ciências e letras. (BRASIL. LEI 4.024/61).

É perceptível a relevância dos cursos de formação de professores através da lei. O

curso Normal, para onde se dirigia a maior parte das moças que chegavam até este nível de

escolaridade, era destinado à preparação dos docentes que ministrariam aulas ao ensino

primário. É exatamente a essa categoria profissional que dirigimos nossos estudos. A elas

cabia a educação de um grande contingente da população que a partir desse momento passou

a ter acesso à escola. Analisaremos posteriormente como foi a formação destas profissionais

da educação e sua prática de ensino através da análise de entrevistas por elas cedidas.

Nos Institutos de Educação, como é o caso do IETC (Instituto de Educação Torquato

Caleiro), frequentado por algumas das colaboradoras, formavam-se também especialistas em

educação e administradores escolares. Como veremos adiante, durante muito tempo esses

Institutos formaram gestores em educação, cumprindo a função que, mais tarde, foi assumida

pelos cursos de Pedagogia.

A formação do professor de ensino médio dava-se preferencialmente nas faculdades

de ciências e letras. No entanto, o parágrafo único abria uma brecha para professores

Page 57: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

55

lecionarem matérias pedagógicas no curso Normal, com formação apenas nos cursos de

especialização oferecidos nos Institutos de ensino.

No caso dos cursos técnicos, dado à sua necessidade crescente e poucos professores

habilitados, a lei permitia o aproveitamento de “profissionais liberais de cursos superiores

correspondentes ou técnicos diplomados na especialidade”. (Art. 118).

Podemos concluir desta forma, que a LDB 4.024/61 representou para a história da

educação brasileira uma tentativa de colocar no mesmo ritmo educação e economia, para que

a primeira pudesse dar suporte para que a segunda seguisse rumo à modernização.

1.3.6 O regime militar e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/71

Em 1˚ de abril de 1964, o Brasil assistiu à deposição do então presidente João Goulart,

pelo Exército Revolucionário7. Isto significou para o país o fim do Regime democrático

iniciado em 1945 e a introdução de uma nova fase: a ditadura militar.

Durante duas décadas, o Brasil esteve sob o comando dos Militares que se revezavam

no poder. Sob o pretexto de salvar a nação do perigo comunista e colocá-la no caminho do

desenvolvimento, os militares se instalaram no poder após o golpe de 1964, instituindo um

regime de caráter nacionalista, que atendia bem aos interesses dos setores tradicionais

industriais, bem como os interesses internacionais.

Foi neste período, que o Brasil, através de recursos financeiros externos, conseguiu

atingir no campo econômico o que os militares denominaram “Milagre brasileiro”. Gaspari

(2002, p. 208), assim descreveu o período:

Vivia-se um ciclo de crescimento inédito na história nacional. Desde 1968, a

economia mostrava-se não só revigorada, mas também, reorientada. O ano

de 1969 fechava sem deixar margem de dúvidas; 9,5% de crescimento do

Produto Interno Bruto, 11% de expansão do setor industrial e inflação

estabilizada pouco abaixo dos 20% anuais. Depois de quinze anos de virtual

estagnação, as exportações chegaram à 1,8 bilhão de dólares, com um

crescimento de 23% em relação ao ano anterior. A taxa de poupança bruta

ficara em 21,3%, índice jamais atingido e jamais igualado. A indústria

automobilística estava em pleno vapor e a construção civil entrara em tal

atividade que faltou cimento. Os números do primeiro semestre de 1970

indicavam que, a prosperidade prosseguiria (fechou o ano com crescimento

7 Assim se autodenominou o Exército brasileiro, que encabeçou o golpe militar e instituiu a Ditadura no Brasil.

Nas palavras do então General Cordeiro de Farias “o exército dormiu janguista no dia 31 e acordou

revolucionário no dia 1º ” - Aspásia Camargo e Walter Góes, Meio Século de Combate –Diálogo com Cordeiro

de Farias, p 566 . In Gaspari Élio - A Ditadura Envergonhada p.81-83.

Page 58: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

56

de 10,4%). O Brasil tornara-se a décima economia do mundo, oitava do

ocidente e primeira do hemisfério sul. (GASPARI, 2002, p. 208).

Este foi o resultado do trabalho do tecnocrata Delfim Neto, que permaneceu como

Ministro da Fazenda, durante boa parte do período militar.

A lógica econômica de Delfim Neto parecia bastante simples: era preciso aumentar o

bolo econômico para depois reparti-lo. Nas palavras do ministro “não se pode colocar a

distribuição na frente da produção. Se o fizermos, acabaremos distribuindo o que não existe.”

(SKIDMORE, 1988, p. 286).

O resultado dessa política econômica foi mais além do que um visível

desenvolvimento do país - também levou a maior parte da população brasileira, alienada do

processo político, a acreditar que vivia uma fase de prosperidade. O reflexo dos indicadores

econômicos e seus efeitos na sociedade são descritos da seguinte forma por Gaspari (2002, p.

208-209):

A consistência da explosão econômica podia ser aferida também por

indicadores como o aumento das importações de máquinas equipamentos

(23%) e do consumo de energia elétrica (10%). As montadoras do ABC

paulista havia posto na rua 307.000 carros de passeio, quase o triplo de sua

marca em 1964. Os trabalhadores , tinham em suas casas 4,58milhões de

aparelhos de televisão, contra 1,66 milhão em 1964. Um em cada dois

brasileiros, achava que o nível de vida estava melhorando, e sete em cada

dez, achavam que 1971 seria um ano de prosperidade econômica superior a

70. Era o Milagre Brasileiro. O século XX terminaria sem que o país

passasse por semelhante período de prosperidade. (GASPARI, 2002, p.

208-209).

O desenvolvimento econômico refletiu-se fortemente na educação. A lógica científica

e tecnocrata de planejamento minucioso e averiguação dos resultados, foi absorvida pelo

sistema educacional. Agora era preciso, mais do que nunca, adequar a educação e preparação

de mão-de-obra à realidade da política econômica nacional.

Nas palavras do então Ministro da Educação, Jarbas Passarinho:

Num país que decidiu planejar-se também na educação, a palavra de ordem

terá de ser a racionalização dos investimentos para que ela própria venha a

construir o investimento nobre, por excelência, sobre a qual há de assentar-se

o processo de desenvolvimento. (LEIS..., p.15 apud FAZENDA, 1985, p.

88,).

Page 59: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

57

Este planejamento envolvia a LDB, que devia adequar o projeto educacional ao

Projeto Nacionalista. O ministro declarou no documento:

A idéia dominante é a organização de escolas e sistemas escolares sob

critério que lhes permitam atualizarem-se ou reformarem-se constantemente

para refletir no quadro de uma grande Educação erigida em grande Projeto

Nacional, as tendências e necessidades de cada momento e de cada

comunidade. (LEIS..., p. 15 apud FAZENDA, 1985, p. 91).

Após a convocação de dois Grupos de Trabalho, um em 1969 e outro em 1970, pelo

Ministro Jarbas Passarinho, para fazerem propostas para a reforma do Sistema de ensino, em

30 de março de 1971, foi encaminhado ao presidente da república o anteprojeto da lei de

diretrizes e bases para o ensino de 1˚ e 2˚ graus. Cinco meses depois, em 11 de agosto de

1971, a Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional, foi sancionada pelo Congresso.

Segundo Ivani Fazenda (1985, p. 93-94, 101), a postura do Congresso diante do

anteprojeto apresentado, foi de total apatia e isto se justificava pelo contexto político

existente:

É relevante assinalar que estávamos a um ano e meio do ato Institucional

n˚5, e o Congresso não havia ainda recuperado suas prerrogativas. Além

disso, a composição da Comissão Mista, era praticamente a ARENA, foi

contrária à Lei. Nenhum dos itens antes questionados: ensino público, ensino

privado, centralização, descentralização, ocorreu. Parecia ser uma Lei que

expressava o anseio de todos [...] a apatia ocorrida no Congresso, deveu-se

sobretudo, ao enfraquecimento de seus poderes, após extinção de 13 partidos

políticos existentes no Brasil em 1965 e sucessivas cassações de direitos

políticos. (FAZENDA, 1985, p. 93-94, 101).

Assim, diferentemente das reformas efetuadas anteriormente no ensino que

provocavam a polarização de interesses de grupos divergentes e, consequentemente, longas

discussões até chegarem a um denominador comum, o anteprojeto parece ter seguido um

percurso “suave” até a sua aprovação, devido ao silêncio imposto pela repressão.

As mudanças econômicas ocorridas durante os primeiros anos da ditadura acabaram

por desencadear um aumento “da demanda social da educação, o que provocou

consequentemente, um agravamento da crise do sistema educacional, crise que já vinha de

longe.” (ROMANELLI, 1978, p. 196).

A fim de enfrentar a crise na educação, o MEC fez convênio com a Agency for

International Development (AID) para receber ajuda técnica e financeira que seriam

direcionadas à reforma do ensino. A primeira medida do MEC-USAID foi procurar adequar o

Page 60: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

58

sistema educacional ao modelo econômico. Daí a adoção do modelo tecnocrata na educação,

como já dito anteriormente. Do ponto de vista dessas agências internacionais:

O problema do subdesenvolvimento deve ser tratado, predominantemente

como um problema técnico. Daí a superioridade do planejamento sobre a

ação não planejada, a necessidade de se incluir nos investimentos feitos

pelos países centrais nos países periféricos, a educação como fator

importante na produção de recursos humanos, para o desenvolvimento

desejado. (ROMANELLI, 1978, p. 199).

A crise do sistema educacional brasileiro foi marcada por diversos fatores como:

Aumento da procura pelo ensino primário e médio;

Déficit de pessoas com qualificação de nível médio;

Sistema de ensino incapaz de fornecer mão-de-obra preparada para atender a

demanda da economia;

Aumento desproporcional entre a procura e a oferta de vagas nas universidades.

Como já assinalamos anteriormente, o desenvolvimento do setor industrial provocou

no Brasil o êxodo rural e, consequentemente, o aumento da população urbana que passou a

buscar a qualificação profissional para entrar no mercado de trabalho, via escolarização. O

aumento na procura por escolas de ensino primário e médio pressionava o Estado a construir

mais escolas públicas. Por outro lado, os setores médios passaram a ver na educação um meio

de ascensão social e manutenção do status visto que, naquele momento, “o processo de

concentração de capital, renda e mercado, os canais „tradicionais‟ de ascensão tornaram-se

cada vez mais estreitos.” (ROMANELLI, 1978, p. 205).

Tornou-se cada vez mais comum às famílias de donos de pequenos negócios

procurarem formar seus filhos para profissões liberais, garantindo-lhes seu status social. Isto

pressionou severamente o Estado, pois aumentou, consequentemente, a procura pelas

Universidades Públicas, ainda escassas para atender a demanda.

Assim, a Lei 5.692/71 procurou sanar estes principais problemas apontados através da

reforma do ensino de 1˚ e 2˚ graus.

Page 61: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

59

Logo em seu 1˚ artigo, a Lei deixou claro os objetivos práticos que deviam permear o

ensino de 1˚e 2˚ graus8 “Art 1º O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar

ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de sua potencialidade como elemento

de autorealização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da

cidadania.” (LEI 5692/71, art. 1º).

Além da formação integral, o ensino desenvolveria as potencialidades do indivíduo

para que este, sendo útil na sociedade, pudesse “autorrealizar”. Em seguida se esclareceu o

caminho para atingir este resultado: “a qualificação para o trabalho”. Associando o trabalho

ao exercício da cidadania, a lei expunha claramente suas intenções para com a educação – esta

deveria servir para inculcar nos indivíduos valores burgueses sobre o trabalho como forma de

emancipação do homem. Em outras palavras, o homem que se propunha formar era aquele

que, por meio da educação desenvolvesse ao máximo suas capacidades a fim de usá-las a

serviço do crescimento da nação. Este era o verdadeiro cidadão que à escola cabia formar.

A organização do ensino de 1º e 2º, também denunciava outras intenções:

primeiramente, ao unir o ensino primário ao 1º ciclo da escola média (antigo ginásio), a lei

procurou eliminar a compartimentação do sistema educacional e, ao mesmo tempo, banir de

vez com o temido “exame de admissão” que se interpunha entre estes dois períodos, sendo um

dos grandes obstáculos à continuidade dos estudos da maior parte da população pobre.

Comentando sobre a dificuldade de enfrentar tal exame D. Cleuza relata: “[...] tinha que fazer

um curso de admissão para entrar no quinto ano. [...] É a gente fazia um cursinho particular.

Eu fiz com o professor Augusto Bittencourt, a gente pagava né, tinha aula com ele pra

preparar. Muita gente não entrava, barrava ali”. (ARQUIVO 27, p. 8-9).

D. Dulce contou-nos sobre a dificuldade que o exame de admissão impunha e fez uma

crítica a Lei 5692/71 que estabeleceu o seu fim:

Automática [a passagem do 4º para o 5º ano]. Na minha época você tinha

uma admissão minha filha, que eu tive que fazer o ano inteirinho outra vez

no Colégio de Lourdes pra mim ter base pra mim passar pra 1ª série que hoje

vem ser a 5ª, corresponde a 5ª série, né. Então, mas eu tive de fazer. Mas era

ali ó. [...] Bem mas a gente estudava com aquela irmã Tereza! Tinha aquelas

Matemática, Português nem se fala. Tinha que você não podia errar nem

uma acentuação. Olha e tinha inspetor tomando conta. Você pensa? O

negócio era ali [batendo na mesa com o indicador e o polegar]. Não é essa

bambeza não de passar de 1ª passa pra 2ª. Olha eu tinha um empregado lá na

roça, a mulher dele falou assim: “D. Dulce a minha irmã ta na 5ª série mas

8 O 1ºgrau fundiu os cursos primário e ginasial, perfazendo um período de 8 anos (hoje conhecido como ensino

fundamental pela lei 9394/96); o 2º grau correspondia ao colegial com 3 ou 4 anos de duração (LEI 5692/71 arts.

18 e 22).

Page 62: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

60

só que ela não sabe nem lê”. Eu falei assim: “Olha, mas por que na 5ª série

não sabe ler?” “Não sabe” “Uai ensina você pra ela”. “Eu não. Meu pai tá lá

pelejando pra vê se ela aprende qualquer coisa” Vai passando assim, eles não

sabe. Fiquei boba. Fiquei boba. E existe. (ARQUIVO 36, p. 9).

A essa altura, pensamos ser importante abrir um parênteses para explicar outro aspecto

citado na evidência oral e relevante ao assunto hora apresentado – diz respeito à

democratização do ensino. Neste sentido é comum muitas professoras confundirem o

processo de democratização do ensino, que permitiu a abertura da escola a um grande

contingente da população até então não atendido pela instituição de ensino, com a progressão

continuada, implantada pelo governo do Estado de São Paulo a partir de 1997 e aprovada pelo

CEE (Conselho Estadual de Educação) nº 09/97, que prevê a organização do sistema de

ensino por ciclos, o que eliminou o processo contínuo de retenção e evasão escolar.

Sempre que indagadas sobre sua opinião a respeito da democratização do ensino,

promovidas pelas Leis 4024/61 e 5692/71, as normalistas normalmente responderam:

Cristina. Posso falar na progressão continuada? [...] Eu não sou a favor da

progressão continuada, sabe por que bem? O aluno falta, o aluno não estuda,

o aluno chega numa determinada época ele não sabe, ele está lá na quinta,

sexta, sétima série ele não sabe nada, certo? Então em parte não é bom. Até

concordo numa progressão continuada que dá até mais oportunidade mesmo

para o indivíduo. Porque repetir um ano às vezes por causa de uma coisa à

toa. Mas tem que ser bem colocada, tem que ser bem feita. Agora o aluno

não aparece, o aluno não faz nada, o aluno não escreve, como é que esse

aluno pode passar de ano? Então aproveita a situação, quer o diploma. Então

nesse ponto, na minha opinião, está errado. [...] Muito. Não há dúvida, não

há dúvida. A democratização do ensino, por exemplo, para os adultos, para

os jovens e adultos que não tiveram oportunidade é ótimo. Se você não teve

oportunidade de frequentar a escola, mas agora você tem, que beleza. Então

nesse ponto não há dúvida, sou mais que favorável. Agora há certas coisas

que ainda atrapalham, como a progressão continuada que vai passando, vai

passando sem saber nada, não é? (ARQUIVO 21, p. 13-14).

O processo de abertura da escola para todos, inclusive para os grupos sociais pouco

privilegiados, causou na memória das normalistas uma associação com a desqualificação do

ensino público, que se verificou através das reformas educacionais constantes, que visavam

aumentar os dados quantitativos de educação da população brasileira aos olhos dos órgãos

internacionais. Para elas, democratização do ensino e progressão continuada são sinônimos,

embora saibamos que a última apenas vem atender o escoamento do fluxo de alunos para que

a demanda da primeira seja possível.

Outro fato curioso foi que uma de nossas colaboradoras negou o fato de que houve a

partir da Lei 5692/71 um maior fluxo de alunos para a escola pública. Ela disse:

Page 63: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

61

Não. Toda vida [a escola] recebeu [todos os alunos]. [...] Ah eu ficava meio

nervosa sabe por quê? Porque você tava adiantada já com os alunos, chegava

o diretor na porta: “Ah D. Dulce, tá precisando porque removeu pra cá,

precisa por na coisa”. Aí ele já vinha mais atrasado um pouco, né. Nunca

vinha adiantado. Sempre mais atrasado. Então a gente pelejava. Até que

também acompanhava os outros. E acompanhava. (ARQUIVO 36, p. 10).

Na visão da colaboradora, a escola sempre recebeu toda a população em idade escolar,

não havendo um momento específico em que a instituição abriu suas portas para todos. A

negação de uma escola pública elitista na memória de uma normalista da rede, se caracterizou

uma surpresa. É pertinente que haja uma confusão entre a democratização do ensino e a

progressão continuada, pois era de se esperar que, com a primeira mudança, a escola pública

que antes era elitista e servia aos interesses de formação de um grupo hegemônico, agora não

preservasse as mesmas características cultuadas e valorizadas pela categoria social e

profissional das normalistas. O mesmo não ocorre, porém, com a negação de que a escola

pública foi durante muito tempo elitista e que, apenas com as transformações ocorridas

durante a segunda metade o século XX, viu a necessidade de transformar-se e abrir-se para

formar a grande parcela da população, até então excluída de seus bancos.

Retomemos agora a questão do fim do exame de admissão. Como nem todos

dispunham de recursos para pagar um professor particular para passar no exame, muitos

ficavam pelo caminho. Desta forma, alguns professores viram com bons olhos essa mudança:

Quanto à extinção da admissão, achei maravilhoso. Sabe por que bem? É

uma barreira. Às vezes o aluno fez e tal, mas não foi muito bem, então ele

não podia entrar no ginásio. É a continuidade, é a oportunidade de estudo.

Então a eliminação do exame de admissão, pra mim foi maravilhoso, certo?

(ARQUIVO 21, p. 11).

Todavia, nem todas as normalistas partilhavam da mesma opinião. D. Leila comentou:

Olha, sempre que havia alguma reforma no ensino, a gente sempre esperava

pra melhor, né. Então, a gente acreditava, a gente fazia tudo pra melhor. Mas

eu acho que na época da admissão, parece que os alunos se dedicavam, não

sei se dedicavam mais, ou porque precisavam fazer aquele exame. Então, pra

poder entrar no ginásio, vamos assim dizer, naquela época né, e porque a

diferença substancial era grande, era uma coisa assim de... Porque ali o aluno

de 1ª a 4ª ele só tinha um professor né, num ano dava tudo. Depois ele já ia

passar mesmo para o ensino mais específico né, das disciplinas. E eu achei

que foi muito, a admissão ajudava assim, a selecionar mais os alunos, os

alunos parece que com mais, não vou dizer que sabendo mais, com mais

base, porque mesmo naquela época o ensino primário era muito bem feito.

Talvez foi eliminado porque acho que não havia necessidade mesmo dele.

Porque o ensino era muito bem feito, havia assim todos os anos, havia os

Page 64: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

62

exames, o aluno que não era aprovado repetia o ano. Então quando ele

chegava na 4ª série, ele já estava apto mesmo. [...] É. Eu sou assim, que se

tivesse continuado o exame, teria sido o ideal. Mas as mudanças são tantas

que surgem que a gente não é capaz de dizer assim: “foi bom, foi ruim.”

(ARQUIVO 32, p. 1-2).

Segundo o seu argumento, o exame de admissão ajudava “a selecionar mais os alunos

[...] pra poder entrar no ginásio [...] porque a diferença substancial era grande”. Entretanto,

asseverou que na sua época “o ensino primário era muito bem feito”, o que talvez eliminasse a

“necessidade mesmo dele [do exame de admissão]”. Apesar de não questionar o fim do exame

pela Lei 5692/71, a colaboradora concluiu que “se tivesse continuado o exame, talvez seria o

ideal”. Em sua argumentação, percebemos que não há uma preocupação com o fator exclusão

social do grande contingente populacional da educação, e sim com a qualidade que esse

ensino deveria ter. Isso reforça a ideia de que o pensamento elitista também foi absorvido

pelas normalistas, sendo característico de seu discurso.

Em segundo lugar, a lei transformou o 2º ciclo do ensino médio, agora 2ºgrau, não

mais em um passaporte que o preparava para concorrer às vagas da Universidade (que eram

poucas para atender à demanda), mas em um curso técnico, que proporcionava ao formando,

uma profissão. Desta forma, o 2ºgrau, adquiriu um caráter de terminalidade, desviando o

fluxo da procura pelos cursos universitários, o que do ponto de vista do Governo, parecia

resolver parte da crise da educação brasileira.

Vale salientar que a lei 5692/71, ao instituir que o 1ºgrau teria duração de 8 anos,

sendo, de acordo com o Art.20, “obrigatório dos 7 aos 14 anos”, aumentou o compromisso

que o governo devia assumir para com a educação.

Comentando sobre o aumento previsto na Lei 5692/71, da obrigatoriedade do ensino

para oito anos, D. Leila explicou:

É. Eu acho que era isso, que não tinha estrutura porque pra, porque foi muito

difícil pra organizar. E outra, eu acho que a lei vinha de acordo com a

evolução, o desenvolvimento, porque até certo ponto, de 1ª a 4ª era o

suficiente para terminar o primário, quer dizer, ele recebia um diploma e

coisa e tal, já podia trabalhar, podia fazer alguma coisa e tudo bem. Tudo

bem. Só que com o passar do tempo, as coisas iam mudando e de fato tinha

que haver mesmo uma coisa, essa mudança que passou a ser oito anos né, de

1ª a 8ª obrigatório. Isso foi muito bom, né. Nesse sentido, nesse sentido foi

muito bom. Foi muito bom. Porque aqueles que pegavam, que iam pra escola

de 5ª série era uma minoria. Quer dizer que a maioria parava na 4ª série.[...]

Uma, que começava a estudar sempre a estudar mais tarde um pouco, né.

Então quando chegava na 4ª série, já tava grande, doze, treze, quatorze anos,

né. Então, já tava na hora de procurar, de trabalhar, fazer alguma coisa.

Então eram poucos os que iam continuar de 5ª a 8ª. Então as escolas, essas

Page 65: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

63

escolas que tinham de 5ª a 8ª aliás não é de 5ª a 8ª, é da 1ª a 5ª do ginásio,

que seria o ginásio, era o suficiente. Aí com a obrigatoriedade, com essa

nova lei, foi um passo muito grande, muito bom, que previa essa

obrigatoriedade do ensino até a 8ª série. (ARQUIVO 32, p. 5).

De acordo com o comentário feito pela normalista, notamos que havia uma percepção

de que as mudanças imprimidas pela Lei na educação acompanhavam “a evolução, o

desenvolvimento” do país como um todo. Ela explicou que no seu tempo, ou seja, quando ela

estudava, “de 1ª a 4ª série era o suficiente para terminar o primário [...] já podiam trabalhar”,

isso se referindo, é claro, às crianças pobres que não continuavam os estudos. “A maioria

parava na 4ª série [...] uma, que começava a estudar já grande, doze, treze, quatorze anos”,

explica, “então já tava na hora de procurar, de trabalhar, de fazer alguma coisa”, pois por

serem pobres precisavam se sustentar. Apenas “poucos [a elite] os que iam continuar de 5ª a

8ª série”. Seguindo a linha de raciocínio da colaboradora, com a evolução do país, se fez

necessário prover maior instrução à população que antes saía da escola para trabalhar muito

cedo. Completando os oito anos de ensino obrigatório os alunos poderiam ingressar em cursos

técnicos e se preparar melhor para o mercado de trabalho, que exigia mão-de-obra

especializada para o exercício de diferentes funções. “Aí, com a obrigatoriedade, com essa

nova lei, foi um passo muito grande, muito bom, que previa essa obrigatoriedade do ensino

até o 8ª série.”

A abertura das portas das escolas para todos, não era bem vista pelos educadores que

vivenciaram as transformações da lei durante sua docência. A democratização do ensino, do

ponto de vista das normalistas, fez com que o ensino diminuísse sua qualidade.

O binômio, quantidade-qualidade, se apresenta na fala das colaboradoras como

característica da democratização do ensino:

É. E essa explosão aí ó. E houve tempo que a escola pública foi divina viu?

Melhor que escola particular. Professores capacitados, maravilhosos. E

[INCOMPREENSÍVEL] o ensino médio, tem ensino médio, né. Depois essa

abertura assim, não sei se é sem planejamento, não sei se é a qualificação

que foi abaixando o nível dos professores. A escola para todos acho que

tirou a qualidade. Classes lotadas, professores mal pagos, desvalorizados até

como pessoas, sem poder investir na cultura deles mesmos. E a exigência

para se dar aula, caiu a qualidade, caiu a qualidade. E o prejuízo foi nosso.

Ter que pagar, tendo escola pública, ter que pagar uma escola particular, né.

(ARQUIVO 42, p. 6).

A época de ouro da escola pública se refere ao período em que esta atendia a elite do

país. “Depois essa abertura” da escola, “foi abaixando o nível dos professores”, afinal, até

Page 66: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

64

mesmo estes, já não representava mais os grupos economicamente privilegiados. “A exigência

para se dar aula, caiu a qualidade, caiu a qualidade”. A elite passou a procurar as escolas

particulares para seus filhos: “ter que pagar, tendo escola pública, ter que pagar uma escola

particular, né”.

A escola pública não servia mais para educar seus filhos. Relatando esse processo de

transformação pela qual passou a escola pública, D. Leila relata:

Então a escola ficou assim, saturada sabe? Ela não comportava aquele

número de alunos. De modo geral ela não comportava aquele número de

alunos [...] Eu acho que isso aí é que trouxe muitos problemas para a

educação, muita dificuldade até, muito assim. E os alunos meio perdidos,

vinha de uma escola, vinha de outra, de outra, sabe? Então era um

agrupamento muito heterogêneo, muito desigual. Trouxe muito problema.

Ninguém conseguia. [...] Aí começou aquela procura pelo ensino particular.

(ARQUIVO 32, p. 3-4).

Em sequência, ela justifica a migração de parte da clientela da escola pública para a

particular:

Geralmente é o medo do novo. Acho que os pais sentiam assim, que aqueles

alunos que estavam passando por aquela fase, os mais, vamos supor, aqueles

que já estavam cursando né, o ginásio, vamos supor, sentiram o baque, a

coisa diferente. Porque mudando de escola, mudando de professor, mudando

de tudo, sentiram sim. Então eu acho que para não ser prejudicado esse, não

digo o aluno que ia entrar na 5ª série não, porque esse que já saiu da 4ª e ia

para a 5ª, ele ia encontrar diferença em qualquer lugar que fosse né, se ele

fosse continuar. Então eu acho que aqueles outros, os da 6ª, 7ª, 8ª séries.

Então eu acho que ai nesse momento, eu acho que os pais principalmente,

sentiram assim, que o filho ia ser prejudicado, que não tava sendo muito bem

desenvolvidas as aulas e coisa e tal. Não estou te falando no problema de

professores não, tô falando só do problema da transição, da mudança. Então

eu acho que nesse momento eles apelaram para a particular. [...] Isso me

aconteceu também né. Nessa época eu tinha uma filha terminando a 8ª série

e ai ela queria fazer o... tinha o científico e o clássico né? [...] que tinha que

fazer. E na escola mais perto só tinha o clássico. Então pra fazer não tinha o

científico. [...] Então foi onde procuramos escola particular. [...] E um outro

caso que eu tive também, o meu filho tava na, tinha feito a 5ª série, tava na

6ª, passando para a 6ª série. É por isso que eu te falo. Então a mudança ele

foi para uma escola pública. Foi. Mas como eu sempre observava,

continuava, como sempre acompanhei os estudos dos filhos e tudo, e esse

era o meu filho caçula, quer dizer, tinha passado por outros e tudo. Então a

gente observou que aquele ano ele, foi péssimo para ele, assim em termos de

aprendizagem [...] Aproveitamento. E a gente naturalmente sabia como ele

era. Então foi onde eu fiz isso; transferi no ano seguinte pra uma escola

particular. [...] Ficou um ano, a gente viu, acompanhou. Então não é que eu

estava, não é desfazer das coisas não. [...] Porque eu sempre fui defensora

do ensino público, porque eu fazia parte dele. Eu trabalhei, a gente lutou

para que o ensino fosse o melhor possível. Nós fizemos, a gente fazia de

Page 67: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

65

tudo. E os meus filhos, os mais velhos só frequentaram a escola pública. O

tempo todo. [...] Eu tive a experiência, esperei um ano. Depois no ano

seguinte eu passei [Para a escola particular] (ARQUIVO 32, p. 6-8).

Finalmente, no mesmo relato, nossa colaboradora deixa escapar o sentido que a

educação deveria ter na formação de seus filhos:

[...] a gente quer que continue os estudos que faça uma faculdade e tudo o

mais, né. A gente lutava para isso tudo. Então como ainda não tava muito

bem estruturado, tudo. Talvez depois tudo bem né. Eu sei que o primeiro

ano, o ano de transição é muito problema, é mais difícil mesmo. Mas eu

sempre fui uma defensora da escola pública, porque eu pra mim, eu sabe,

sempre fui. Meus filhos frequentaram mesmo. Só nessa época que aconteceu

isso ai. (ARQUIVO 32, p. 8).

A defesa pela escola pública nesse momento se dava como professora, membro

atuante do sistema de ensino. No entanto, era evidente que o ensino público não se destinava

mais à formação da elite. Essa maneira de pensar representava não só a mentalidade deste

grupo profissional; expressava os temores das camadas médias que tinham na escola pública

até então, um meio de ascensão social. E era a esses que a escola altamente seletiva havia

servido até este período. Como podemos notar através do relato, as transformações ocorridas

com as leis de Diretrizes e Bases, geraram uma migração dos alunos das escolas públicas com

certo poder aquisitivo, para as escolas particulares que expandiram no período.

Podemos concluir, portanto, que o dualismo na educação foi finalmente reforçado

pelas Leis de Diretrizes e Bases, como algo inerente às sociedades capitalistas no qual está

inserida. Não poderia ser diferente. Não podemos falar em uma escola una, como queriam os

pioneiros da educação em 1932 em uma sociedade compartimentada, com interesses sociais

divergentes que pedem por uma educação de base para formar mão-de-obra qualificada para

gerar lucros, e uma educação de gestores que precisam aprender como administrar os recursos

humanos e materiais e explorá-los de forma eficiente, a fim de maximizar seus rendimentos e

manter seu status quo.

A escola pública não mais servia às aspirações das camadas emergentes da população,

pois seu objetivo era preparar mão-de-obra especializada, porém, barata para ser absorvida

pelo mercado em expansão. No artigo 5º que estabelecia o currículo para o 1º e 2º graus,

determinava que existisse uma educação geral, predominante no ensino de primeiro grau, e

uma formação especial, destinada ao 2ºgrau. No item b do art 5º lemos:

b) no ensino de 2º grau, predomine a parte de formação especial.

Page 68: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

66

§2º A parte da formação especial do currículo:

a) terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciarão para o trabalho, no

ensino de 1ºgrau e de habilitação profissional, em consonância com as

necessidades do mercado de trabalho local ou regional, à vista de

levantamentos periodicamente renovados. (BRASIL. LEI 5692/71).

Torna-se evidente que o currículo, principalmente da formação especial, ou

profissional, deveria seguir as tendências do mercado de trabalho a fim de atender a demanda

de mão-de-obra qualificada.

A Educação Moral e Cívica, a Educação Física, a Educação Artística e o Programa de

Saúde (art. 7º) tornaram-se obrigatórios. Enquanto que a Educação Moral e Cívica, como já

salientado anteriormente, tinha por objetivo a preparação para a obediência, o trabalho e a

docilidade. Já a Educação Física, seguindo o modelo Militar, primava pela ordem, postura e

preparação do corpo saudável – orientado pelo Programa de Saúde – para exercer a função

desejada no mundo do trabalho.

O ensino Religioso continuou em caráter facultativo, sendo ministrado nos horários

normais.

Pois bem, para que essas mudanças fossem colocadas em prática era imprescindível a

atuação de professores em todos os níveis de ensino. O capítulo V da LDB é dedicado aos

“Professores e Especialistas”. O Artigo 30 determina:

Art.30. Exigir-se-á como formação mínima para o exercício do magistério:

a) no ensino de 1ºgrau, da 1ª à 4ª séries, habilitação específica de 2ºgrau;

b) no ensino de 1ºgrau, da 1ª à 8ª séries, habilitação específica de grau

superior, ao nível de graduação, representada por licenciatura de 1ºgrau,

obtida em curso de curta duração;

c) em todo ensino de 1ºe 2º graus, habilitação específica obtida em curso

superior de graduação correspondente a licenciatura plena.

§ 1º os professores a que se refere à letra “a” poderão lecionar na 5ª e 6ª

séries do ensino de 1ºgrau se a sua habilitação houver sido obtida em quatro

séries ou, quando três, mediante estudos adicionais correspondentes a um

ano letivo que incluirão, quando for o caso, formação pedagógica.

§ 2º os professores a que se refere à letra “b” poderão alcançar, no exercício

do magistério, a 2ª série do ensino de 2ºgrau mediante estudos adicionais

correspondentes no mínimo a um ano letivo.

§3º os estudos adicionais referidos aos parágrafos anteriores poderão ser

objeto de aproveitamento em cursos ulteriores.

Através do artigo 39, a lei instituiu uma política de incentivo à formação docente por

meio de aumento de salários:

Art.39 Os sistemas de ensino devem fixar a remuneração dos professores e

especialistas de ensino de 1º e 2º graus, tendo em vista a maior qualificação

Page 69: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

67

em cursos e estágios de formação, aperfeiçoamento ou especialização, sem

distinção de graus escolares em que atuem. (BRASIL. LEI 5692/71).

Muitas professoras primárias, que já estavam prestes a aposentar procuraram cursos de

especialização, motivadas que estavam com um possível aumento de seus vencimentos que

também se refletiria em sua aposentadoria.

Houve assim aquele plano de carreira que mudava de referência. Então foi

assim, quem tinha só o magistério ganhava x. Referência tal. Referência era

o valor do pagamento. E quem tivesse pedagogia, ou outra faculdade. A

princípio foi só pedagogia, depois abriu outras faculdades. Subia quatro

referências. Dava um salto no salário muito grande, então isso foi um

estímulo muito grande, correu todo mundo pra pedagogia. (ARQUIVO 27,

p. 10).

Esse incentivo dado pelo governo proporcionou às professoras a oportunidade de

buscar outros postos dentro da educação como o de direção e supervisão.

[...] conversando com a Cleuza eu falei que nós nos formamos em setenta e

quatro... ela falou “não foi Edna. Em setenta e quatro nós já prestamos

concurso pra diretor...” [...] Eu formei primeiro, eu devo ter formado em

setenta e dois. [...] Ela não fez a pedagogia junto comigo, ela fez depois. Eu

devo ter formado em setenta e dois. Em setenta e quatro nós prestamos

concurso pra diretor. Ela e eu... passamos as duas né. (ARQUIVO 28, p.

10-11).

Como veremos mais adiante, esta formação complementar permitiu que as normalistas

sobrevivessem enquanto categoria profissional a estas transformações no ensino e, mais do

que isso, atingissem outros cargos dentro deste sistema durante sua carreira, adquirindo ampla

experiência na área educacional. Desta forma, os depoimentos das normalistas são

fundamentais para compreendermos como se processaram no imaginário, no comportamento,

nas práticas pedagógicas desta categoria de profissionais, as transformações ocorridas no

âmbito político, econômico, social e, sobretudo, educacional que se deram no Brasil durante

as décadas de 60 a 80 do século XX.

Page 70: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

68

CAPÍTULO 2 – MEMÓRIA E SOCIEDADE: A FORMAÇÃO DA COLÔNIA DE

NORMALISTAS COMO CATEGORIA SOCIAL E PROFISSIONAL

Durante o século XX, a educação brasileira foi alvo de transformações estruturais

profundas, reflexo das mudanças ocorridas nos meios político, econômico e social da nação.

As disputas de grupos divergentes pelo poder incidiram diretamente na educação através de

manifestos, decretos e leis, visto ser esta considerada um instrumento eficaz de legitimação e

manutenção da hegemonia política dominante.

O grande impulso ocorrido na educação, a partir da década de 30, refletiu as mudanças

sociais, econômicas e políticas ocorridas no Brasil no início do século XX. Com o advento da

República, os ideais liberais passaram a fazer parte dos discursos políticos. Era necessário

imprimir uma nova face para a nação e a educação passou a ocupar um papel fundamental

neste aspecto. No campo econômico, o Brasil assistiu durante as primeiras décadas do século

XX a uma grande transformação. A crise mundial de 1929 desencadeou a crise do café,

principal produto de exportação do Brasil. Neste contexto, houve a migração de capital da

economia agrário-exportadora em crise, para a indústria até então incipiente no país. Para

Franca representou o crescimento da indústria coureiro-calçadista, crescimento industrial que

representava forte transformação na tradição artesanal, consolidada há bom tempo na cidade.

Na esteira das transformações econômicas, vieram as transformações sociais:

crescente migração de braços do campo para a cidade em busca de trabalho, desenraizamento

cultural, transformações das relações sociais e produtivas. Isto tornou imperativo o

surgimento de escolas primárias para ensinarem a ler e escrever a crescente massa de

operários. Era necessário destituí-los de seus “acervos culturais” (FERNANDES, 1989, p.

144), de sua autonomia e auto-suficiência produtiva e revesti-los do caráter alienante

imprescindível no ambiente fabril.

Devido à constante urbanização e industrialização, tornou-se imperativo a abertura das

portas das escolas à população até então apartada do mundo letrado. O analfabetismo era

comum às pessoas que habitavam nos campos e fazendas por questões de sobrevivência, e se

fazia impor diante das dificuldades que encontravam em ter acesso à educação: poucas

escolas rurais esparsas em um grande território, grandes distâncias existentes entre as

fazendas e as escolas, necessidade de as crianças, desde a tenra infância, trabalhar na roça,

não tendo tempo para frequentar a escola e, finalmente, a escassez de inscrições e da

Page 71: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

69

utilização da escrita nas fazendas para indicar algo, qualquer coisa que fosse tais como:

embalagens, placas jornais e livros que pudessem promover ou incentivar a leitura e a escrita.

Mas que educação se pretendia ministrar a essa classe trabalhadora que saíra do

campo, do trabalho com a terra e viera para a cidade participar no trabalho produtivo dentro

de fábricas de calçado? O ritmo, as técnicas e a organização da produção não eram mais os

mesmos utilizados no campo. Tornava-se de extrema importância, neste momento, adequar o

ensino às necessidades impostas pelo desenvolvimento do capitalismo industrial.

No entanto, para compreendermos a prática pedagógica das normalistas, que se

dedicaram à formação elementar destinada aos filhos dos trabalhadores, é importante que nos

reportemos à sua própria educação formativa recebida tanto no lar como em colégios de

ensino laico e confessional.

2.1 A Família: Berço das Tradições

Nas primeiras décadas do século XX, a República brasileira criada sobre as bases

tradicionais do latifúndio monocultor, de produção para exportação e trabalho, até pouco

antes de seu advento, escravista, continuou servindo aos interesses do grupo hegemônico que

detinha o poder político e econômico – os cafeicultores.

Franca, localizada na região nordeste do Estado de São Paulo, juntamente com outras

cidades como Ribeirão Preto, formou o que se convencionou chamar de Alta Mogiana, alusão

feita à ferrovia que chegou à região em 1887, com o objetivo de escoar a produção do café até

o porto de Santos, de onde seguia de navio para o exterior.

Junto com a ferrovia, chegaram também grandes levas de imigrantes para trabalhar na

colheita do café e substituír a mão-de-obra escrava. Entretanto, alguns destes imigrantes, mais

tarde, tornaram-se proprietários de grandes glebas produtoras de café da região. Outros se

dedicaram ao comércio, tradição de seu povo, como é o caso dos libaneses, judeus e sírios.

Independentemente da ocupação econômica a que se dedicaram, os imigrantes trouxeram

consigo, como parte de sua cultura social, o valor da educação, como forma de alcançar e ou

manter o status quo que desejavam na sociedade que se formava.

É curioso notar que a formação institucional, principalmente de nível superior, que

titulava com um diploma os filhos destes fazendeiros, era muito valorizada, embora isso não

significasse na prática, o abandono da terra para o exercício da profissão estudada.

Page 72: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

70

Ah, o papai? Eu vou te falar, o papai era agricultor né, mas a profissão dele

mesmo, ele formou, ele era farmacêutico. Mas ele não exerceu, ele foi

mesmo pra fazenda, porque os pais lá eram muito filhinhos de papai né, e

muito rico e ele então era o caçula sabe. Aqui eles ó [mostrando foto

antiga] tem eles pequeninhos aqui. Têm meu avô, minha avó, aqui os três

irmãos, com ele quatro. [...] A raspa do tacho. E a raspa do tacho você sabe

como é que é né, não exerceu a profissão de farmacêutico. [...] Foi ficar

junto com o pai. (ARQUIVO 33, p. 1-2).

Como fica evidente no depoimento, o pai da colaboradora era farmacêutico de

profissão, mas, como “eram muito filhinhos de papai né, muito rico”, não havia necessidade

de exercê-la. Como era a “rapa do tacho”, o caçula, “não exerceu a profissão de farmacêutico.

[...] foi ficar junto com o pai”, ou seja, dar continuidade aos negócios da família e, para

cumprir esse papel, a formatura pouco valor prático tinha, pois administrar a fazenda de café

se aprendia no cotidiano, de forma empírica, lado a lado com o pai.

O mesmo se dava com as moças: formavam no Magistério, recebiam seu diploma,

mas, na maior parte das vezes se casavam e nunca exerciam a profissão. Embora todas as

colaboradoras aqui entrevistadas tenham exercido de fato a profissão – o que foi um critério

para a escolha das mesmas – é comum, em seus relatos, citarem colegas que não tiveram o

mesmo destino. Neste sentido, podemos concluir que, possuir o diploma do Curso Normal,

para as moças casadouras, fazia parte do dote de casamento – dava-lhes a formação e o

refinamento necessário para serem futuras “rainhas do lar”.

D. Leila assim define o valor do Curso Normal para a mulher:

É então, aí eu acho que a gente valorizava a formação, o estudo, a

aprendizagem, aquela coisa tudo. Era necessário. Não com o intuito de

trabalho, nem nada. Mas era necessário. Tanto é que havia muitas, por

exemplo, que casaram logo e se não tivesse condição de trabalhar não

trabalhava, só que ia trabalhar mais tarde. Quantas que talvez até fizesse o

melhor, tinha os filhos e tudo. Depois dos filhos grandes elas iam começar

trabalhar, né. Tinha muito, tinha isso também. Então a gente queria estudar

assim, mais para uma formação, pra aprender, pra sabe, a importância do

estudo. Depois [VOZES CRUZADAS] era outra coisa. Depois cada uma

ia ver o que podia fazer, o que devia fazer. (ARQUIVO 32, p.19, grifo

nosso).

Para a mulher, a educação “era necessário”. Mas veja: “Não com o intuito de trabalho,

nem nada”, ou seja, o objetivo não era necessariamente profissionalizar-se, trabalhar. A

justificativa se apresenta em seguida: “Então, a gente queria estudar assim, mais para uma

formação, pra aprender, pra sabe, a importância do estudo”. Uma educação mais refinada para

as filhas dos fazendeiros, comerciantes, profissionais liberais era fundamental. O trabalho na

Page 73: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

71

profissão vinha como consequência: “Depois [VOZES CRUZADAS] era outra coisa. Depois

cada uma ia ver o que podia fazer, o que devia fazer”. Ao falar “o que podia fazer”, a

colaboradora refere-se ao que teria condições de fazer após casar-se, ou seja, o que seria

permitido pelo marido que a aspirante à professora primária fizesse.

Embora alguns exercessem a profissão para a qual estudaram, mantiveram as fazendas

e, mais tarde, voltaram a dedicar-se exclusivamente a elas. Esse é o caso do pai da

colaboradora, D. Augusta, Sr. Antonio Ricardo Pinho, que exerceu a medicina durante muitos

anos em Franca e foi importante influência da fundação do Sanatório Santana, que funcionava

onde “hoje é uma dependência burocrática da Santa Casa, ali atrás [da Santa Casa]”.

(ARQUIVOS 8-10, p. 1) Ao deixar a medicina, o Sr. Pinho voltou para a fazenda,

introduzindo a criação do gado Gir na região de Franca, ao lado do filho que era formado em

Direito, mas que cuidava das fazendas do pai. D. Augusta conta:

[As fazendas] tinha pra descanso. Porque meu irmão é que gostava e

tomava conta, entendeu? Que depois se formou em Direito. O meu pai, eu ia

te contar uma coisa tão interessante... ele gostava do gado gir e ele

especializou-se gostando porque ele tinha um primo, o Zico, lá em Uberaba,

que o fez introduzir na criação do gado, sabe. E ele foi muito feliz, ele teve

uma criação de gir, muito, muito bem encaminhada. E meu irmão que

gostava de fazenda, já morava em fazenda sabia mexer com tudo isso. Então,

meu pai passou a gostar muito e a desanuviar um pouco a cabeça porque ele

tinha muita responsabilidade com os doentes. (ARQUIVO 6, p. 14).

Na década de 50, com a decadência do café e a crescente urbanização e

industrialização, tornou-se mais coerente transferir o capital da agricultura para a pecuária, na

criação de gado leiteiro ou de corte, ou para a indústria calçadista que se fortalecia.

A crise econômica de 1929 afetou sobremaneira a economia brasileira baseada no

sistema tradicional agrário-exportador. Nos primeiros anos da década de 30 era possível sentir

os efeitos da crise para os produtores de café.

D. Dulce conta:

Meu avô que nasceu na Itália. Ele veio da Itália, minha avó era imigrante.

Veio, começou a plantar café, né. Ele tinha sete fazendas e na queda do café

ele perdeu [...] Ficou só com essa. A melhor. Ele ficou com a melhor. Tanto

que eu herdei 42 alqueires. Bastante, né? [Após divisão de bens com dois

irmãos]. (ARQUIVOS 35-36, p. 5).

Como ficou evidente no depoimento, alguns não chegaram a perder todo patrimônio

construído, talvez pela sua extensão. Outros já não tiveram a mesma sorte. Uma das

Page 74: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

72

colaboradoras contou que o pai perdeu a fazenda e entrou em ruína financeira com o

enfraquecimento do comércio do café. É digno de nota que, neste caso, o pai da colaboradora

era fazendeiro com escolaridade básica (nível de 1º ciclo do ensino fundamental) não tendo

uma profissão de diploma como os demais, para recorrer em caso de crise financeira na

agricultura. Também, diferentemente dos outros progenitores, não tinha um segundo

investimento ou negócio, como no caso do pai da D. Dulce que também tinha um comércio,

onde empregava parte de seus lucros.

Ele [o pai] tinha o bar e tinha a mercearia do lado assim, sabe, um negócio.

Ali vendia, uma mercearia como vende arroz, feijão, tudo essas coisas, né. E

o bar tinha do lado de cá. Aí tinha uma sorveteria. E tanto que ele me formou

ali, negócio. Vendia muito. (ARQUIVOS 35-36, p. 5).

Nesse pequeno trecho percebemos a visão empreendedora que alguns fazendeiros

imigrantes tinham. Embora fossem ligados à terra e ao trabalho na lavoura, isso não impedia

que tivessem uma visão mais à frente, mais apurada, que lhes permitia investir parte dos

ganhos em outro setor, diversificando assim suas atividades econômicas e os possíveis

retornos que estas podiam lhes conferir.

Como observou Freitas (1979, p. 29)

Enquanto crescia a lavoura cafeeira, as necessidades brasileiras em outros

setores também cresciam, notadamente no setor de manufaturados. A

superprodução de café a partir de 1880, a baixa nos preços deste produto, as

oscilações de câmbio, o início da formação de um mercado consumidor,

após a abolição da escravatura em 1888, a proclamação da República no ano

seguinte e as modificações que naturalmente se fizeram sentir no plano

político-administrativo do país, deram origem a um movimento mais

acentuado em prol da sua industrialização. (FREITAS, 1979, p. 29).

Estes homens, atentos que estavam às transformações sociais e econômicas do

período, com um crescente mercado consumidor de produtos manufaturados, viam no

comércio e no setor industrial, condições de ampliar seus rendimentos.

Outra preocupação destes homens de negócios era dedicar-se a um único produto

como o café, sujeito às oscilações do mercado, que poderia – como ocorreu no passado de

nossa história econômica com outros produtos como o açúcar, a madeira e o ouro – entrar em

decadência, levando-os à ruína financeira, o que de fato ocorreu na crise de 1929 com os

fazendeiros que não tinham o mesmo espírito empreendedor. Esta qualidade de algumas

personalidades francanas aparece na evidência oral com clareza de detalhes:

Page 75: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

73

Olha, eu sempre tenho que ressaltar que a minha mãe foi sempre uma pessoa

assim muito enérgica, entendeu? Ela era Maria Augusta Caleiro Pinho, filha

do, do Hygino de Oliveira Caleiro. Família mesmo muito, muito tradicional.

E eu falo isso não com orgulho assim, mas eu falo com um sentimento assim

de admiração sabe, porque o Hygino de Oliveira Caleiro, meu avô, teve sete

filhas e ele era o espírito empreendedor. Ele além das fazendas que tinha, ele

montou a Casa Bancária Hygino Caleiro, a Casa Hygino ao lado, que era

toda aquela parte da esquina que hoje é a Casa das Novidades, do Dr. Jamil,

ele que comprou a Casa Hygino, que a Casa Hygino ia até lá embaixo

naquele, naquele quarteirão. E eu me lembro muito bem que naquele tempo

não se falava supermercado, se falava armazém. Então na sequência, a Casa

Hygino é uma esquina da Praça Nossa Senhora da Conceição e Voluntários,

certo, na esquina. Naquela esquina era tecido, confecções... e subia a escada

no segundo andar tinha assim armarinhos, como eles chamavam; na

seqüência tinha a seção de presentes; depois vinha a seção para homens e

depois o armazém. Então a Casa Hygino ia tomando conta de tudo aquilo. E

tem um detalhe interessante que quem tomava conta que era a gerente da

seção de presentes era a Nilza Trajano sabe, que formou o Magazine Luiza,

que era nossa funcionária. (ARQUIVOS 8-10, p. 2).

Esse fragmento mostra-nos o poderio econômico da família Caleiro que figurava entre

as mais importantes da cidade de Franca. D. Augusta comentou: “O Hygino de Oliveira

Caleiro, meu avô [...] era o espírito empreendedor [...] além das fazendas que tinha, ele

montou a Casa Bancária Hygino Caleiro, a Casa Hygino” (loja de departamentos). É notório,

neste relato, que seu avô era fazendeiro, banqueiro e comerciante. Essa diversidade de

empreendimentos lhe conferia prestígio social, econômico e político.

Hygino de Oliveira Caleiro, avô de D. Augusta, colaboradora em nossa pesquisa, era

um dos homens mais ricos e influentes da região. Hygino Jacintho Caleiro, seu neto e esposo

de D. Augusta, de quem era primo, escreveu sua biografia, exaltando a importância que

conferiu à cidade de Franca como homem de negócios e articulador de riquezas. Em sua

Monografia de Conclusão de Curso de História na então Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras de Franca, Hygino Jacintho Caleiro descreveu assim o espírito empreendedor do avô:

Ao elaborarmos pesquisa em tôrno de Hygino de Oliveira Caleiro, devemos

salientar, de comêço, as condições de comércio interiorano do seu tempo.

Processava-se êle com características próprias, fazendo do comerciante, não

só transacionador de mercadorias, como também um conselheiro, misto de

oráculo e vidente, onde não poderia faltar, como condição sine qua non, a

reputação, o bom nome e o conceito reunidos. As funções “extras” de

compadre e padrinho de muitos, estavam perfeitamente enquadradas

naqueles moldes de comércio cabôclo, quando, principalmente aos

lavradores, eram fornecidas mercadorias com a célebre ressalva, “em prazo

de colheita”. Para melhor esclarecer esta parte, o produto da venda do

comerciante era para ser pago apenas na época das colheitas, fossem elas de

café, cereais ou outros gêneros de montante vultoso. Apenas nestas ocasiões,

ficava o lavrador apto a regularizar seus débitos, ressalvadas as exceções das

Page 76: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

74

trocas por queijo, farinha, rapaduras e outras rendas de menor monta que a

todo tempo eram válidas. Conclui-se daí que o comerciante, mesmo

cobrando algum juro pela espera na regularização dos débitos, deveria

possuir um capital apreciável, pois ao lado do suprimento de suas prateleiras,

deveria arcar com o financiamento dos seus fregueses. Surgiram, em razão

disto, os embriões, as primeiras células de muitos organismos bancários do

interior, pois, nesta altura, já se confundiam as figuras do negociante com a

do banqueiro. Foi o que se deu com o próprio Hygino de Oliveira Caleiro,

com o grupo Moreira Salles de Poços de Caldas, com o grupo Artur Scatena

de Batatais, e muitos outros que poderíamos enumerar. Para melhor elucidar

o problema da carência de recursos, creditícios de estabelecimentos

bancários própriamente ditos, tenhamos em mente que em cidades do

interior do porte de Franca, só a partir da segunda década do nosso século é

que os créditos específicos começaram a afluir, como foi o caso da fundação

do Banco de Custeio Rural francano, a partir de 1911. (CALEIRO, 1967,

p. 9-10, grifos do autor).

Esse fragmento descreve bem o embrião dos primeiros sistemas de crédito, de onde

surgiram as casas bancárias, neste caso, o BHC ou Banco Hygino Caleiro, que mais tarde

foi comprado pelo grupo Bradesco.

A Casa Hygino, fundada originalmente em 1883, em parceria com o sogro Francisco

Martins Ferreira da Costa, como Caleiro e Andrade, por volta de 1903 “passou a ter a razão

social Hygino Caleiro e Sandoval [...] no ponto de confluência da Pça. N. S. da Conceição e

R. Voluntários da Franca” (CALEIRO, 1967, p. 15). Foi somente em 1918 que o

estabelecimento recebeu o nome de Casa Hygino sendo Hygino de Oliveira Caleiro seu

único proprietário juntamente com a Casa Bancária Hygino Caleiro.

No entanto, a elite da sociedade de Franca e região não se constituíam apenas de

fazendeiros. Como já referido acima, os comerciantes e profissionais liberais também

cobravam seu quinhão na hierarquia da sociedade que se definia em meados do século XX. O

comércio sempre ocupou um espaço privilegiado na sociedade e, no caso de Franca e cidades

adjacentes, não era diferente.

Nessa época, as lojas ou armazéns, vendiam de tudo um pouco: utilidades domésticas,

panos ou fazendas, como diziam, para fazer roupas, alimentos básicos como arroz, feijão,

açúcar, querosene para lampião, botinas de couro, produtos de selaria – enfim, tudo o que se

precisava, encontrava ali.

Era esse o tipo de comércio que o pai da D. Leila tinha em Rifaina9. “Ele era

comerciante”. Tinha “uma loja que vendia de tudo [...] É. Vendia de tudo”. (ARQUIVO 30, p.

2).

9 Cidade turística do interior do Estado de São Paulo encontra-se às margens do Rio Grande, divisa com o Estado

de Minas Gerais. Localiza-se a 73 quilômetros da cidade de Franca.

Page 77: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

75

Os comerciantes de cidades vizinhas enviavam suas filhas para fora, a fim de obterem

sua educação em regime de internato, no Colégio de Nossa Senhora de Lourdes.

Outra profissão que gozava de certo status era a de alfaiate; afinal eram eles que

faziam as roupas que vestiam os grandes fazendeiros, os doutores, os políticos. Era essa a

profissão do pai de D. Cleuza.

O meu pai, ele foi um homem muito simples, filho de imigrantes italianos.

Por muito tempo, quando criança, ele ajudou os pais com uma lenhadora e

depois, como dizia antigamente, foi aprender um ofício, e ele aprendeu

assim o serviço de alfaiate, e desempenhou essa função por muitos anos e foi

um excelente alfaiate, se destacou aí na alta costura, na sociedade francana...

venceu na vida assim. (ARQUIVO 12, p. 1).

“Aprender o ofício” com um mestre de ofício que já o dominava e depois exercer a

profissão a vida toda era o costume desde a Idade Média. No Brasil, essa forma de

aprendizado se propagou até o surgimento dos cursos técnicos e colégios industriais, que

suprimiram a figura do mestre de ofício, responsável por ensinar a profissão em sua oficina

aos jovens aprendizes que para lá eram enviados pelos pais, caso estes não fossem os próprios

mestres que passavam o saber para as próximas gerações, como um segredo de família. Mas

esse não era o caso da nossa colaboradora. Ele era filho do dono de uma lenhadora e foi

aprender a profissão com um alfaiate. E foi assim, cortando e costurando que seu pai “se

destacou aí na alta costura, na sociedade francana”.

Esse fenômeno social que provocou a transferência da educação profissional, que

ocorria na informalidade das oficinas para a formalidade das instituições de ensino técnico,

foi característica marcante do processo de modernização econômica que o Brasil mergulhou a

partir de segunda metade do século XX. O mestre que dominava os conhecimentos relativos

ao seu ofício, com o desenvolvimento da manufatura e a consequente industrialização foi

destituído de sua posição privilegiada de guardião de um saber importante.

Nesse contexto, a escola passou a assumir um papel anteriormente nulo neste aspecto:

agora era para lá e não para as oficinas que as crianças e adolescentes deveriam se dirigir para

aprender as habilidades necessárias para o trabalho na indústria, setor que crescia em todo

país particularmente em Franca.

Partindo da profissão dos pais das colaboradoras, é possível reconstruir o perfil das

normalistas, sua origem, as tradições familiares, os valores, a educação recebida no lar e,

acima de tudo, compreender como toda essa gama de relações influenciou na formação do que

Page 78: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

76

vamos chamar de cultura social da colônia das normalistas. É como se o cenário estivesse

delineado e, a partir daí, os atores pudessem tomar os seus postos e iniciar o ato.

2.2 A Educação Familiar Cristã

Nas primeiras décadas do século XX, eram escassas as escolas em todo território

nacional. Mesmo regiões economicamente mais ricas, como a região sudeste, contavam com

poucas e esparsas escolas de primeiras letras, sustentadas pelo Estado, de caráter confessional,

ou de iniciativa de alguns poucos fazendeiros que as mantinham em suas glebas e atendiam

boa parte das regiões circundantes.

Era comum as crianças entrarem direto na primeira série, com sete anos completos e

até esta idade recebiam educação no lar, tendo suas progenitoras como mestras, os irmãos (se

houvessem) como companheiros de aprendizagem e o quintal, o pomar, a rua (no caso das

crianças da cidade) como a sala de aula. Eram quase inexistentes os chamados Jardins da

Infância, a pré-escola da época. Tudo o que a criança deveria aprender a fim de estar

preparada para o ingresso no mundo da educação formal e sistematizada era aprendido no seu

cotidiano.

Daí, podemos compreender a importância da rigidez dessa educação familiar: ela

sinalizava o comportamento que a criança deveria ter, não só ao ingressar na escola, mas

servia-lhe de parâmetro para a vida adulta. Aliás, é curioso notar que uma das evidências de

boa educação dizia respeito à criança se vestir, se arrumar e, acima de tudo, se comportar

como um adulto em miniatura.

Referindo se à educação recebida no lar, as recordadoras, de modo geral comentam

sobre a rigidez: “[a educação] Era rígida também. Antigamente os pais era diferente. Nossa!

Eu era filha única, apanhava, me batia. Mas eu fazia muita arte também.” (ARQUIVO 34, p.

10).

Os valores tradicionais, os preceitos religiosos faziam parte do currículo da educação

familiar:

Bom, a gente sempre foi, sempre orientado pelos pais em todas as situações

eles nos educaram assim com muito rigor e na época a gente era também

muito obediente, eu acho que nós recebemos assim toda a espécie de valores

né, que a gente pode conservar né. Eu acho que foi a melhor possível, apesar

de eles serem, ter vindo há pouco assim da Síria, eles eram imigrantes,

falavam pouco né, mais quanto a parte da educação eles foram muito, muito

Page 79: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

77

bons. Tanto a gente recebia uma educação religiosa como a formação de

valores né, foi muito expressiva, muito boa. (ARQUIVO 30, p. 2).

Fazendo uma releitura da educação recebida no lar, D. Edna com seus conhecimentos

sobre filosofia concluiu que teve uma “educação dos sentimentos”:

Olha Cristina, foi muito importante porque como eu te falei família assim

mais antiga não tinha esse costume de logo colocar as crianças na escola,

quer dizer que a formação era mesmo no lar né. E isto foi muito importante

pra mim mesmo depois, para eu trabalhar depois com as crianças viu, porque

minha mãe sempre orientava pra a gente sempre dizer a verdade, nunca

mentir, pedir desculpas pras pessoas, se errar errou, procura corrigir... então

essa formação foi muito importante pra mim bem, e eu ainda hoje insisto na

formação dos sentimentos no lar, certo? (ARQUIVO 21, p. 1).

Essa educação dos sentimentos se refletiu na sua prática profissional como veremos

mais adiante. Isso torna evidente que a educação recebida no lar foi fundamental para a

formação do perfil profissional da futura educadora, da normalista. “Sempre dizer a verdade,

nunca mentir”, eram preceitos cristãos que mais tarde seriam reforçados tanto nas missas

como na educação de caráter confessional que receberiam no Colégio de Lourdes. Não

podemos negar que esses valores eram fundamentais para a formação das normalistas, pois,

na medida em que acreditassem profundamente neles, naturalmente os defenderia em sua

prática pedagógica, inculcando-os em seus futuros alunos. Estes últimos, como produto de um

sistema educacional pautado nos interesses capitalistas e na reprodução das desigualdades,

aprenderiam assim na escola o que verdadeiramente é importante para o trabalhador:

obedecer, não mentir, não roubar tempo do patrão, ser diligente no trabalho, obedecer às

regras, o controle do tempo e hierarquia, primeiro da escola, depois das fábricas.

Um relato interessante sobre a educação familiar mostra-nos a importância da mulher

progenitora nesse processo, além de chamar-nos a atenção para um aspecto interessante – o

currículo oculto (APPLE, 1982) está presente todo o tempo na cultura social das normalistas

sem que elas, nem seus pais se apercebam disso:

Bom, era uma educação assim bastante rígida, meu pai com costumes

italianos bastante assim, severos. E minha mãe era bem mais nova que o meu

pai, assim, muito mais nova. E assim, era uma submissão amorosa assim

muito grande, feliz, não tinha nada de sofrimento. E ela acompanhava meu

pai. Era tudo, nós duas éramos tudo. Mas uma educação assim pautada pela

fé, pela moral, pelos bons costumes, pela ética, pela cidadania... sem eles

saberem de nada que eles estavam fazendo. Então eles, minha mãe me

ajudava muito nos afazeres de escola assim, mesmo antes, eu fui entrar em

escola com seis anos. (ARQUIVO 12, p. 2).

Page 80: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

78

Esse fragmento é muito rico em informações: reforça a rigidez da educação familiar, e

nos dá uma possível origem nos “costumes italianos, bastante [...] severos.” Outra tradição

que podemos observar aqui é o casamento de jovens moças com homens mais velhos: “minha

mãe era bem mais nova que meu pai, assim, muito mais nova.” A submissão da mulher ao

marido, era considerada como algo natural que fluía com certo prazer, afinal, as mulheres

eram criadas para esse papel: “era uma submissão amorosa assim, muito grande, feliz, não

tinha nada de sofrimento.” Em outra entrevista esse aspecto da submissão feminina reaparece

no momento em que a mulher conquista o direito do voto. As mães das colaboradoras são

contemporâneas a essa transformação e sentem dificuldade em escolher seus próprios

representantes – são os maridos que decidem por elas. D. Cleuza contou: “Interessante

lembrar assim que a mamãe quando ela ia votar, ela ia votar, ela votava no candidato que meu

pai trazia pra ela o nome, o número e sempre foi assim.” (ARQUIVO 40, p. 1). O dever da

esposa era acompanhar seu marido. E a educação familiar resumia-se nos pilares da „fé,

moral, bons costumes, ética e cidadania‟. Hoje, fazendo uma reelaboração do passado a

colaboradora chega a dizer: “[...] sem eles saberem de nada que eles estavam fazendo”, ou

seja, que seus pais não tinham noção desses conceitos atuais, mas que, na realidade, no

cotidiano do lar era isso que eles ensinavam.

A mãe, primeiro modelo de mulher que a normalista tinha como exemplo perfeito, era

submissa ao marido, de poucas palavras, recatada, de semblante sério ou de uma docilidade

imensa. D. Augusta descreveu sua mãe da seguinte maneira:

Minha mãe era uma pessoa assim, de modos austeros, a minha mãe nunca

deu uma risada, ela me achava escandalosa... verdade. Ela curtia meu

programa de rádio e falava, “que horror! Você deu risada!”, “ah, mas a coisa

tava engraçada...”. (ARQUIVO 6, p. 13).

Rir era proibido para a mulher, pois esse comportamento se destinava a pessoas

vulgares. A espontaneidade na demonstração dos sentimentos era controlada desde cedo, tanto

pelo exemplo da mãe, como pelas reprimendas que os filhos levavam até a fase adulta, como

vimos neste relato em que a colaboradora já trabalhava no rádio.

Além da educação moral e cristã, as crianças recebiam no lar a disciplina que

acompanhava a mesma rigidez que se seguiria no colégio: os castigos eram comuns, embora

alguns pais ainda fossem mais severos, como já observamos no fragmento citado

anteriormente, em que a recordadora diz que „apanhava‟ dos pais por ser muito „arteira‟. D.

Edna conta como era o castigo: “Ah minha filha, sentada em determinado lugar, sem sair,

Page 81: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

79

ficar tantas horas sem comer, certo. Enfim, um castigo mesmo, para sentir que estava sendo

castigado”. (ARQUIVO 15, p. 2).

Por meio desses mecanismos moldava-se a criança para entrar na escola. A liberdade

de brincar de maneira solta pela fazenda, com quem desejasse ou como quisesse deveria ser

cerceada. A hierarquia se aprendia logo cedo, na escolha dos coleguinhas de jogos infantis: se

não tivesse irmãos ou primos para brincar, brincava sozinha, mas nunca com os filhos de

colonos. “[Irmãos] não tinha. Brincava sozinha. Porque filha única tinha gente na fazenda,

mas já os pais não deixavam brincar. Brincava sozinha.” (ARQUIVO 34, p. 10).

Desta forma, aprendia-se desde muito cedo que não devia misturar pessoas de

situações econômicas e culturas diferentes. A hierarquia também era ensinada para as meninas

pelas mães na administração do lar. Era proibido um contato informal com os criados, devia

manter o respeito, a distância necessária:

[O relacionamento] Era de muito respeito. A minha mãe era muito séria e

muito, muito brava, a minha mãe... meu pai não. Então o que é que

acontecia? A minha mãe tinha um regime que eu brigava com ela, que era o

regime germânico dentro de casa, tanto que não era permitido ficar

conversando com a empregada, tinha que tratar muito bem, mas não era pra

ficar conversando, brincando... nada, nada, nada. Era uma coisa respeitosa,

as empregadas, eu nunca entrei na cozinha, era proibido. Eu vim aprender

tudo depois de casada. Hoje eu cozinho muitíssimo bem, modéstia às favas

eu cozinho muito bem. Mas é porque eu fui aprendendo com um, com outro,

porque eu gostava e gosto até hoje né, mas não é porque... lá em casa não

aprendi. (ARQUIVOS 17-18, p. 5).

A distância entre empregados e patroa devia ser mantida: “era o regime germânico

dentro de casa.” A menina, filha da elite local não precisava aprender os afazeres domésticos,

pois haviam muitos criados para cumprir tais tarefas. Ela precisava apenas saber dar ordens:

“eu nunca entrei na cozinha, era proibido.” O resultado era o total despreparo para as tarefas

do lar após o casamento, pois os grupos sociais privilegiados economicamente continuariam

cercados de muitos empregados.

Embora a rede de normalistas de modo geral gozasse de uma boa condição financeira,

seus depoimentos demonstram-nos que a criatividade infantil e as brincadeiras folclóricas

predominavam sobre os brinquedos sofisticados.

Uma vez eu balancei no rabo do cavalo. Tomei uma surra que foi [...] Quando era criança? Deixa eu te contar. Então era na roça. Eu tinha umas

bonecas. Brincava de boneca. Depois eu enjoava daquelas bonecas então,

você vai vendo. Eu pegava chuchu – já te contaram isso? [...] Então eu

pegava o chuchu e fazia cavalinho, fazia vaquinha. Pegava laranja e falava

Page 82: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

80

que era bola. Muitas vão falar isso pra você. E é mesmo. Hoje em dia eles

tenham tudo, né. Isso daqui acho que dava uma sala de brinquedo. O pai

comprava assim ó, vinha assim [mostrando grande quantidade com os

braços]. Porque falava que ele não teve então, dava pra eles. Eles, não faltou

nada, entendeu? Eu já, eu não ligava muito também não. Mas minha mãe

comprava, tadinha. Ela comprava. Eu uma vez lembro que ela comprou

umas panelinhas sabe, umas panelinhas pra mim brincar. Acho que eu

brincava um pouco porque eu brincava sozinha, né? Conversava sozinha [...]

Fui filha única. Se eu tivesse uma companheirinha. (ARQUIVO 34, p. 10-

11).

Neste aspecto das brincadeiras de infância, as normalistas criadas na cidade, filhas de

profissionais liberais e comerciantes, gozavam de certa liberdade que as filhas dos fazendeiros

não tinham – brincar na rua.

Na década de 30, Franca ainda era uma cidade pequena, com ruas não pavimentadas,

de terra nua, por onde passavam carroças, cavalos e muito raramente um automóvel. Também

era o lugar preferido para as brincadeiras infantis, pois não havia os perigos de hoje com o

intenso trânsito de automóveis. Lembrando de como era o entretenimento na infância, D.

Cleuza nos fez uma bela descrição de como era a cidade no seu tempo de menina:

[...] a nossa diversão em família como eu estou dizendo assim, eram

reuniões na própria família era assim, os avós tinham lenhadora, e tinham

caminhões. Então nós íamos assim, nadar na Piçarra. Juntava a família toda

em cima do caminhão [RISO], nós íamos nadar na Piçarra. A Piçarra você

sabe que é aqui próximo, então. É um hotel, até está desativado. É um hotel,

uma piscina natural, as pessoas naquele tempo iam nadar, brincar, porque

nós não tínhamos clube aqui na cidade naquele tempo assim, igual hoje tem

o Castelinho, o Clube de Campo, pra se levar os filhos né. Meus pais

passeavam muito com a gente assim na Praça Nossa Senhora da Conceição,

era obrigatório todo o domingo vir e ouvir a banda municipal que tocava no

coreto. E ficavam todos ali em volta e as crianças brincavam muito ali na

praça. E também assim, na mesma atividade de usar esse caminhão do meu

avô, ia colher gabiroba, chupar gabiroba na época da gabiroba ou de

jabuticaba em algum lugar com pessoas conhecidas sabe. E eu brincava

muito na rua, muito. Porque a rua onde a gente morava não tinha asfalto, é a

rua Estevão Borroul, que hoje é uma rua maravilhosa. Aquilo ali já era

assim, já não era centro. Era chamado Campo das Galinhas ali, então na terra

eu brincava muito com a molecada como se dizia na época né. Cabeça ao

varo, [INAUDÍVEL], jogar bolinha de gude, essas brincadeira que

envolviam também meninos né, e a rua era muita criançada né. Era aquela

faquinha, não sei se você sabe aquele jogo com crianças na terra e joga a

faquinha sabe? Então, essa diversão também. E o que mais que nós

tínhamos? Meu pai era um craque de futebol super espetacular da Francana,

era um zagueiro maravilhoso. Então domingo era certo, ia ver o papai jogar,

ia a família inteira e depois ele até se dedicou muito sempre ao futebol

amador sabe? Então, eu tenho muita lembrança boa disso daí. Bicicleta que a

gente andava demais de bicicleta pela rua. Hoje não, as crianças precisam ser

levadas pra algum lugar né, pra andar de bicicleta... e a gente andava de

Page 83: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

81

bicicleta na rua, achava gostoso, não tinha perigo nenhum. (ARQUIVO 26,

p. 1-2).

Os passeios na praça com a família, para “ouvir a banda municipal que tocava no

coreto” era uma tradição nas cidades. A rua Estevão Leão Borroul, que hoje situa-se na parte

central da cidade, na época “já não era centro”. Meninas e meninos brincavam juntos, sem

distinção de sexo: “eu brincava muito com a molecada, como se dizia na época [...] jogar

bolinha de gude, essas brincadeiras que envolviam também meninos né, e a rua era muita

criançada.”.

Embora as crianças da cidade contassem com maior liberdade para se desenvolverem

através dos jogos infantis isso não quer dizer que fossem criadas soltas, sem qualquer

vigilância. D. Leila relatou:

Ah, você sabe que lugar pequeno, as famílias também eram assim mais

numerosas né. Então era muita criança, tudo da mesma idade, quase tudo

assim... então a gente entrosava muito, brincava muito. Tinha liberdade de

andar na rua, nas casas de um, do outro, tudo casas assim espaçosas né.

Então a gente brincava muito né, principalmente assim na rua, na casa de

um, do outro, vizinhos e parentes, tinha os parentes também, os primos.

Então a gente foi criado assim tudo junto né, tudo com muita assim, muita

liberdade né. Mas assim sempre nos olhos dos pais, não deixava também...

porque onde estivesse tinha, tava junto né, tava junto com os adultos e tudo.

(ARQUIVO 31, p. 4).

Sim, as crianças sempre estavam junto aos pais, sob seu controle. Essa liberdade dos

primeiros anos da infância logo era interrompida, quando aos sete anos as meninas iam para o

Colégio. Lá não era permitida tanta vivacidade, espontaneidade e alegria. Era preciso uma

extirpação urgente destes costumes e a introdução de outros, mais desejáveis, porém, pouco

desenvolvidos através da educação familiar cristã.

No modelo de família patriarcal burguesa o homem assumia o papel de provedor

único. A geração das mães das normalistas, de modo geral, foi formada por mulheres que se

dedicaram ao lar a vida toda. Somente na próxima geração, das normalistas propriamente

ditas, que a mulher, em melhores condições econômicas, saiu para conquistar seu espaço no

mercado de trabalho. Esse parêntese é importante para compreendermos o perfil do homem

dentro da família tradicional nas primeiras décadas do século XX.

Sendo o chefe da família, direito conferido pela doutrina cristã e pelo poder como

provedor único era a autoridade máxima do clã. Os filhos de fazendeiros, que tiveram

oportunidade de cursar faculdade nas capitais ou mesmo no exterior, tinham uma educação

um tanto refinada para os padrões da época, o que lhes permitia uma visão mais cosmopolita.

Page 84: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

82

Os pais de duas colaboradoras tinham esse perfil. D Augusta comentou sobre a formação de

seu pai:

Além de ele ser cirurgião ele era um médico que sabia tudo, a formação

alemã, europeia era coisa de louco né. Imagina um homem, depois que ele

fez o curso todo na Alemanha, em Berlim – onde eles moravam – ele foi pra

Suíça, pra Suíça francesa e ficou interno lá no hospital Charité e fez mais de

uma especialização também na língua francesa e na medicina francesa.

Naquele tempo a medicina europeia era muito adiantada, entendeu? Tanto é

que quando ele voltou ele trouxe todo o instrumental cirúrgico pra cá. Coisas

que aqui não tinha ele trouxe da Europa, e montou o sanatório Santana, atrás,

aquele prédio atrás da Santa Casa, que hoje é uma dependência burocrática

da Santa Casa, ali era o sanatório Santana, o primeiro hospital de Franca.

Quem instalou foi meu pai, doutor Antonio Ricardo Pinto, contemporâneo

de doutor Alonso. Quem trouxe doutor Alonso pra Franca foi meu pai.

(ARQUIVO 6, p. 8).

Quando D. Augusta fez 16 anos, seu pai permitiu que fizesse uma viagem

internacional pela Europa e todo o Oriente Médio, claro, acompanhada de algumas primas

mais velhas. Esse episódio chama-nos a atenção pela suntuosidade do presente dado a uma

jovem debutante – o que nos mostra a riqueza das famílias da elite francana – e pela

mentalidade do Dr. Pinho que parecia estar décadas à frente:

[...] meu pai perguntou se eu queria uma festa, se eu queria uma roupa nova.

[...] Ou um anel de brilhante bonito, que papai gostava de dar joia. Eu falei:

“eu não quero nada disso, eu quero ir pra Europa!”. Então quando eu lembro

disso eu falo meu Deus, eu era adiantada mesmo, sabe. Ainda mais com uma

educação repressora, como era a da minha mãe, não tanto a do meu pai, mas

a da minha mãe sabe... tanto que ela não gostava que lesse livros durante a

semana, tinha que bordar, entendeu? Essa era a atividade das moças de

então. (ARQUIVOS 8-10, p. 8-9).

O contraste entre o pensamento da mãe, muito rígida e do pai, homem esclarecido é

inevitável. „Boas moças tinham de bordar‟, não viajar – pensava a mãe. Ler também era uma

forma de viajar, afinal dava asas à imaginação. Penso que os romances fossem os grandes

vilões, pois D. Augusta contou:

[...] eu toda a vida gostei de ler e minha mãe não gostava que moça, mocinha

lesse. Não, não... ela dizia que leitura durante o dia era se jogar fora um

tempo que eu poderia ta bordando, entendeu? Era outra educação. Então ela

me pôs numa aula de bordado com [INAUDÍVEL] que era prima do meu

pai e fazia as toalhas pra igreja [INAUDÍVEL], pra catedral, né. E eu me

lembro que eu fiquei muito tempo fazendo, bordando uma toalha de linho

branca pro altar de São Sebastião. (ARQUIVOS 8-10, p. 3).

Page 85: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

83

Mas havia também o fazendeiro rústico, homem de poucas palavras, com estudo

básico, conhecedor do trabalho no campo. Esse era o típico fazendeiro ligado às tradições,

criado e educado na zona rural, avesso aos modernismos da vida urbana. Para ele, a educação

elementar adquirida nos bancos das escolas de fazenda era suficiente para garantir o manuseio

com a terra, o gado e a administração dos negócios. Mas as futuras gerações necessitavam de

mais estudo – sim, era importante a educação para manter o status e posição na sociedade.

Assim, os filhos deveriam estudar. D. Edna contou sobre o pai:

Era fazendeiro, e ali ele mexia com gado, com café, gostava muito lá da

fazenda né. E tinha os seus negocinhos próprios da fazenda [...] [Educação]

O básico, naquela época era o básico [...] [A mãe] Tinha, [preocupação

com a educação formal dos filhos] tinha... porque ela sempre dizia que

queria que os filhos fossem além do que ela fez, certo. O pai não, o pai não

era muito chegado a isso, mas a mamãe sim, haja vista que quando eu me

formei lá no magistério foi uma honra, foi uma coisa maravilhosa, porque

até então Cristina, na família não havia ninguém formado, eu fui a primeira a

formar. (ARQUIVO 15, p. 1-3).

Fica evidente quão importante era ter uma filha normalista: “foi uma honra, foi uma

coisa maravilhosa”, evidenciando o status que tal formação usufruía na comunidade. Sim, as

normalistas eram, na visão da sociedade, as portadoras do conhecimento, as guardiãs do saber.

Como detentoras do conhecimento acumulado durante séculos, ocupavam um lugar nobre na

hierarquia social, pois seu papel era fundamental para a modernização da sociedade que, por

volta das décadas de 40 e 50 se transformava. Mas voltaremos a essa discussão mais à frente,

quando trataremos especificamente da formação da normalista.

Voltando ao perfil do patriarca, ficou claro nas entrevistas a sociedade machista em

que as normalistas foram criadas: ser mãe, ser mulher não garantia visibilidade, mas sempre

papéis sociais secundários e coadjuvantes, àquela que orientava, escutava, resolvia os

conflitos familiares com sabedoria, porém, sempre se reservando ao seu lugar imposto pelo

homem. Esse era o perfil que as normalistas deveriam adotar quando adultas. O homem, preso

à terra e às tradições também orientava a família no seguimento religioso, mesmo que não

fosse pessoalmente tão ligado às liturgias.

Mas houve a tradição da religião católica. E tanto um quanto o outro eram

religiosos né, da religião católica... e isso passou pra nós. [...] Bom, lá não

havia culto, não... nada disso. Na casa da minha avó de vez em quando

celebrava uma missa e tal e nós íamos em outra fazenda. Mas na minha casa

mesmo não havia essa preocupação de cultos religiosos. [...] Não, nós só

rezávamos juntos, fazíamos orações, aliás, antes da refeição a gente já fazia

oração. [...] Já é uma tradição né. [...] Importante... rezávamos e

Page 86: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

84

agradecíamos o alimento bem, antes da gente começar a alimentar.

(ARQUIVO 15, p. 4).

Ao presidir a família em oração todos os dias à mesa, o patriarca indicava ser ele o

chefe, aquele que podia mediar os pedidos e agradecimentos a Deus, Ser Supremo, em nome

da família. Isso delimitava a hierarquia no lar e o padrão que devia ser seguido pelas próximas

gerações.

Todas as colaboradoras entrevistadas foram criadas por famílias católicas e educadas

em colégios de caráter confessional católico. Apenas uma delas mais tarde se converteu ao

cardecismo por achá-lo mais coerente às suas convicções, mas todas as outras mantêm a

tradição católica fortemente arraigada, como um forte traço de formação. À frente

discutiremos como essa formação influenciou na prática profissional das normalistas.

O patriarca urbano também era homem muito religioso. Fazia questão de educar as

filhas em colégio de freiras, pois ali teriam a educação escolar e religiosa paralelamente:

O colégio não só deu assim essa base da informação, do conhecimento,

como da formação, dessa parte dos valores, tão complicado no mundo de

hoje, né, aqueles valores imutáveis. Eu acredito que não perdi mesmo o

caminho e essa, vamos dizer isso que me foi assim apresentado né, desde o

início da minha vida, que é a vontade dos meus pais me colocando em

colégio católico e justamente pra isso. (ARQUIVO 26, p. 5).

Desta forma, os profissionais liberais e comerciantes garantiam às suas filhas uma

“boa educação”, o que incluía os valores morais e cristãos. Sendo imigrantes ou descendentes

destes, viam na educação um facilitador na inserção das futuras gerações em melhores postos

na sociedade brasileira.

Olha, apesar de os meus pais serem sírios, pessoas mais assim... olha, meu

pai tinha uma cabeça muito diferente. Porque quando nós estávamos

estudando e tudo, ele já falava pra nós que a maior riqueza que ele poderia

deixar pra nós era o estudo, entendeu? Ninguém falava isso, a gente nunca

ouviu falar nisso naquela época, e já faz muito tempo. Pois o meu pai falava

isso, papai falava isso pra nós. Tanto é que você vê, na época não tinha

assim sair de uma cidade pra pôr em colégio, ainda mais menina. Menino

ainda mandava estudar fora [...] Menina não, tinha que aprender a costurar,

bordar né. [...] Terminava lá o quarto ano e ficava lá pra aprender a costurar,

bordar [...] Já o papai, a cabeça era diferente. Tanto é que ele pôs nós

internas no colégio, duas. Não era fácil de pôr, era dispendioso.

(ARQUIVO 31, p. 7-8).

Não era costume que meninas de famílias menos favorecidas financeiramente fossem

se dedicar aos estudos após concluir o 4º ano. Reforçando a mentalidade machista do seu

Page 87: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

85

tempo a colaboradora disse “[...] sair da cidade para pôr em colégio, ainda mais menina.

Menino ainda mandava estudar fora [...] menina não, tinha que aprender a bordar, costurar

né.”

Mas para os comerciantes imigrantes a equação era simples: estudo + estudo =

riqueza. Sim, na visão dos grupos sociais dominantes, através do estudo, os filhos poderiam

alcançar melhores posições na sociedade. Esse discurso seria internalizado e reproduzido

pelas normalistas no seu cotidiano pedagógico.

Até aqui procuramos traçar o perfil das famílias em que as normalistas receberam sua

primeira educação e que interferiu, daí para frente, no seu modo de ver o mundo, de se

comportar e de reagir diante das situações experienciadas em sua história de vida e trabalho.

Agora descreveremos a formação primária e ginasial das normalistas que inclui o

ensino em escolas rurais, colégios estaduais urbanos e o Colégio Nossa Senhora de Lourdes,

por onde as colaboradoras passaram a fim de adquirir o ensino fundamental, da época.

2.3 A Escola: Aparando as Arestas

Aos sete anos de idade aproximadamente, as crianças eram enviadas à escola de

primeiras letras para serem alfabetizadas. Uma pequena parte da população brasileira, nessa

faixa de idade, completava a instrução primária. Em Franca, o quadro não era diferente. No

início do século XX, a cidade contava com apenas cinco escolas, sendo duas católicas,

(Colégio de Lourdes e Champagnat) que atendiam a elite feminina e masculina

respectivamente, e os Colégios Cândido Alves, Santa Maria e Culto às Letras, até então

predominando instituições de ensino de caráter particular. A maior concentração de escolas se

localizava no centro da cidade e apenas uma na periferia. Essa tendência continuou durante a

criação dos cinco primeiros Grupos Escolares que, em sua maioria, se concentraram na região

central da cidade. O primeiro Grupo Escolar inaugurado na cidade de Franca, no ano de 1905,

foi o “Cel Francisco Martins”. Também havia escolas isoladas nos bairros da Estação, Cidade

Nova e Santa Cruz, que atendiam o grosso da população pobre da cidade, que não tinha

acesso ao Grupo Escolar localizado no centro. As escolas isoladas funcionavam em situações

precárias e tinham o aluguel de seus cômodos pago pelos próprios professores.

A situação de Franca, com respeito ao oferecimento de vagas no ensino público,

permaneceu precária até a primeira metade do século XX. Um estudo feito pela Diretoria de

Ensino de Franca sobre a memória das escolas mostra-nos que até 1943 havia no município:

Page 88: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

86

4 Grupos Escolares no Distrito da sede, e 4 outros espalhados nos distritos

de São José da Bela Vista, Restinga, Cristais Paulista, e Jeriquara, 10 Cursos

Primários, 1 Escola Normal Oficial, 1 Ginásio e 1 Colégio Universitário, 28

Escolas Isoladas Estaduais e 25 isoladas municipais, além das particulares,

que envolviam 1 Seminário, 1 Escola Profissional Secundária Mista, 1

Escola de Comércio, atingindo um total de 7.000 alunos matriculados.

(AIMOLI, SILVA, 2007, p. 15).

De fato, após a inauguração do primeiro Grupo Escolar em 1905, a cidade recebeu em

1926, o “Grupo Escolar da Estação”, mais tarde denominado Grupo Escolar Barão da Franca;

em 1928 a Escola Normal Oficial; em 1933 o Grupo Escolar da Cidade Nova que em 1949

passou a se chamar “Grupo Escolar Caetano Petráglia” e, finalmente em 1935, o Grupo

Escolar do Cubatão que, em 1956, recebeu o nome de Escola Estadual Homero Alves. Até a

década de 50, estas eram as escolas da cidade, que aumentaram consideravelmente a partir

daí, acompanhando o ritmo de urbanização e industrialização que impulsionaram a demanda

de vagas oferecidas pelo poder público.

A situação da educação no Brasil, nas primeiras décadas da República, era caótica e,

embora Franca se encontrasse em uma posição privilegiada, dentro do Estado de São Paulo,

com a economia em pleno apogeu, seu quadro educacional não era menos alarmante.

De acordo com dados do IBGE sobre o recenseamento em 1920, no Brasil, o número

de pessoas que sabiam ler e escrever passou de 15% em 1890, para 35% em 1920. O número

de analfabetos em 1920 era aproximadamente 65%. No Estado de São Paulo a constatação era

similar:

Em 1920 do total de 732.081 crianças em idade escolar, apenas 289.291

estavam matriculadas, cerca de 39%, ou seja, 61% ficavam fora das salas de

aula. Uma comparação com a frequência escolar e a evasão escolar traria,

sem sombra de dúvida, índices ainda menores do que estes. (TEIXEIRA,

2000, p. 94).

Em Franca, os dados do IBGE apontam para uma população, em 1920, de 44.133

habitantes, sendo que, 31.620 eram analfabetos e 12.513 alfabetizados. (TEIXEIRA, 2000, p.

95).

Isso nos leva à conclusão de que o índice de analfabetos em Franca era de 71% da

população, número maior que o auferido ao Brasil como um todo, o que tornava imperativa a

criação de uma Escola Normal, a fim de formar professoras para preencherem os quadros do

magistério público do ensino primário.

Esse problema não passou despercebido aos políticos que se embrenharam nas lutas

pelo poder no início da República. Comentando a entrevista do então candidato ao Governo

Page 89: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

87

do Estado de São Paulo, Júlio Prestes, dado à imprensa em dezembro de 1927, o Prof.

Homero Alves escreveu no Jornal Comércio da Franca as referidas palavras do acima citado:

Estou grandemente impressionado com a quantidade de crianças que na

idade escolar não encontram vagas nas Escolas públicas e que amanhã irão

avolumar a massa da população analfabeta, e mais impressionado estou

diante do número diminuto de professores diplomados pelas nossas 11

Escolas Normais. O recenseamento escolar desse ano acusa, com as

possíveis faltas, 150.000 crianças sem escolas, o que implica na carencia de

mais de 5.000 professores quando as Escolas Normais nos deram neste ano

de 1927, 328. Si a população escolar não aumentasse como aumenta num

Estado como o de São Paulo, seriam precisos 20 anos para obtermos o

número de educadores que a criança paulista reclama e tem direito.

(COMÉRCIO DA FRANCA, 1941, p. 3).

Desta forma, os filhos da elite agrária e urbana e uns poucos filhos dos trabalhadores

que moravam próximos a alguma escola rural ou grupo escolar compunham a clientela que

freqüentava a escola primária. Essa tendência de excluir boa parte da população brasileira da

educação não parava por aí. Havia mais tarde uma segunda seleção, o exame de admissão,

que excluía do processo educacional muitos dos alunos que haviam completado o quarto ano.

Estes não concluíam seus estudos por causa desse fator de estrangulamento do fluxo de

alunos, como discutiremos mais à frente.

Sendo o primeiro contato da criança com a educação formal, a escola primária

funcionava como uma aparadora de arestas, ou seja, era ela que dava os retoques finais, que

destituía da criança sua individualidade para prepará-la para viver de acordo com os moldes

que a sociedade cobraria dela no futuro. Neste sentido, para a futura normalista, essa educação

era fundamental para traçar o seu perfil profissional. Suas primeiras professoras tornaram-se

modelos positivos ou negativos que determinaram sua ação no futuro como profissionais.

Experiência negativa teve uma de nossas colaboradoras que nos relatou:

No colégio, no externato São José, eu continuei aquilo que eu tinha em casa

assim, uma educação com regras, com normas... uniforme perfeito, sapato

verniz engraxado, meia branca comprida, saia pregueada azul-marinho,

camisa de manga comprida com gravata, época até que usou boina,

chapeuzinho. E o respeito era cobrado assim de uma forma muito rígida e as

irmãs eram assim bastante, assim mais severas do que amigas. Mas nós

tínhamos professoras de fora, leigas, que também seguiam. Na sala de aula,

tinha por sinal uma professora na primeira série que eu acompanhei a vida

dela, ela morreu recentemente. Mas ela foi assim de uma rigidez muito

grande. Eu apavorei demais no primeiro ano meu de escola e me fez mal

aquilo ali, o tipo de alfabetização que eu não conseguia. Com isso, meus pais

acharam que eu deveria fazer a primeira série outra vez, por eles próprios. E

eles me matricularam novamente na primeira série, eu cursei novamente a

Page 90: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

88

primeira série. Então eu cheguei muitas vezes a sonhar, falar a noite,

levantar, que eu era sonâmbula e ta falando o que a professora falava na sala.

Então foi assim... como é que eu vou dizer? Tentar ficar quieta, calar a

boquinha, ouvir, é desse jeito, é pra seguir assim... e a gente não tinha muito

direito a vez e nem a voz, certo?. Isso porque eu era uma aluna assim que eu

destoei demais. Eu sempre fui assim muito falante, muito polêmica, muito de

fazer as coisas que eu queria fazer... eu enfrentava. E eu fui uma aluna que

dei trabalho. [...] Eu fui bastante brecada, fui bastante brecada... eu fui tida

assim como uma aluna que dava problema. Eu era uma aluna difícil pro

colégio. [...] Tinha um livro, que falava “livro negro” [...] (ARQUIVO 12,

p. 3-4).

Podemos afirmar, a partir desse relato, que a escola era uma continuidade do que

aprendia no lar: “No colégio, no externato São José, eu continuei aquilo que eu tinha em casa

assim, uma educação com regras, com normas.” Esse é um tópico frasal que se repete na fala

das colaboradoras – a escola funcionava como uma continuidade, um apêndice da educação

familiar. Outra colaboradora comenta como foi à transição do lar para a escola. Diz: “Não,

não sofri porque em minha casa a coisa era mais ou menos igual [...] Entendeu? Não sofri

não.”(ARQUIVO 15, p. 5) A rigidez e as regras já faziam parte do cotidiano das normalistas

antes de entrar na escola: “É. E outra, porque como fala, era uma continuação do lar, os pais

eram severos também né. Então a escola continuava, era um aluno, eles eram também

severos.” (ARQUIVO 30, p. 8).

Porém, nesses relatos, fica evidente o papel da escola em aparar as arestas deixadas

pela educação materna, talvez mais parcial – uma das colaboradoras justifica seu sofrimento

em acatar as regras: “Eu sempre fui assim muito falante, muito polêmica, [...] eu enfrentava.

[...] Eu fui bastante brecada, fui bastante brecada... eu fui tida assim como uma aluna que dava

problema. Eu era uma aluna difícil para o colégio.” O que era ser uma aluna difícil para o

colégio? Uma aluna que não aderia às regras de obediência e submissão, “tentar ficar quieta,

calar a boquinha, ouvir, é desse jeito, é pra seguir assim... e a gente não tinha muito direito a

vez e a voz, certo?” A futura normalista deveria primeiro aprender e internalizar a submissão

e obediência para depois inculcá-la em seus alunos. Ensinar aos filhos dos trabalhadores que a

sociedade funciona como a escola, com uma hierarquia rígida, em que eles não têm direito “a

vez e a voz”, mas devem “calar a boquinha e ouvir” o que os seus superiores determinam.

D. Edna conta de sua primeira professora, que ensinava em uma escola rural que

ficava na fazenda de uns parentes:

Eu tinha, entrei com sete anos, numa escola na fazenda, mas não na minha

fazenda, era na fazenda de um tio que aí até eu fui e ficava na fazenda deles

lá, durante a semana e no fim de semana eu voltava pra minha casa. Fiquei lá

Page 91: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

89

até a terceira série. [...] Muito boa, muito boa. Essa escola que eu frequentei,

minha primeira professora, a dona Palmira, maravilhosa certo... e vamos

dizer assim, ela conseguia alfabetizar e trabalhar com a segunda, com a

terceira e com a quarta série, tudo ao mesmo tempo. Educação muito boa

viu, boa mesmo. (ARQUIVO 15, p. 4).

Esse relato nos mostra que mesmo as escolas rurais eram poucas – na fazenda do pai

da colaboradora não havia escola, sendo necessário que ela ficasse três anos em fazenda do tio

para estudar, voltando para casa só aos finais de semana. Isso significa que as pessoas que não

podiam locomover-se a longas distâncias de onde moravam ou ficar em outros lugares

ficavam sem estudo.

Das cinco colaboradoras entrevistadas, apenas uma fez parte do ensino primário em

escola de fazenda. Duas delas que não moravam em Franca, mas sim em Pedregulho10

e

Rifaina respectivamente, estudaram até o 4º ano em Grupos Escolares Estaduais existentes em

suas próprias cidades e, mais tarde, após prestar a admissão, vieram para Franca que oferecia

o curso ginasial em colégio confessional das irmãs de São José e aqui ficaram como internas.

As outras duas normalistas, moradoras da cidade, frequentaram o Colégio de Lourdes como

externas durante toda sua formação, salvo um período em que, por motivo de mudança, o pai

de D. Augusta que era médico a transferiu para o Des Oiseaux (Colégio das Cônegas de Santo

Agostinho) um colégio de elite da capital, de tradição francesa. Lá ela cursou parte do ginásio

como interna. D. Augusta contou: “Eu comecei aqui no Colégio de Lourdes. [...] Depois eu

fui pro Des Oiseaux, as Cônegas de Santo Agostinho [...]. O ensino do colégio Des Oiseaux

era qualquer coisa de extraordinário, sabe. [...] Eu já peguei a quarta série”. (ARQUIVOS 8-

10, p. 3-4). O Des Oiseaux foi descrito como um colégio moderno, onde as freiras de Santo

Agostinho tinham uma postura mais liberal, menos rígida que no Colégio de Lourdes dirigido

pelas irmãs de São José:

[...] para completar ainda me enviaram pro colégio Des Oiseaux, o colégio

das Cônegas de Santo Agostinho. O colégio Des Oiseaux era um colégio

famoso naquele tempo. Tinha o colégio [INCOMPREENSÍVEL] e o

colégio Des Oiseaux, e meu pai não sei porque preferiu que eu fosse pro Des

Oiseaux. E lá a gente era obrigado a falar francês, o que ajuda muito né.

Tinha uma disciplina rigorosa, o ensino era perfeito [ÊNFASE], tanto que

eu tinha até professora de dança, madame Morissete, era uma francesa. Aos

sábados, como eu era interna, eu aos sábados nós tínhamos aula durante o

dia de dança. Então tudo, tudo eu aprendi lá, nós tínhamos as aulas de dança.

Então tudo, tudo eu aprendi lá. Nós tínhamos as horas de recreio, as horas de

fazer uma atividade qualquer, como por exemplo, um jogo de tênis,

basquete, vôlei. Nós tínhamos essas atividades lúdicas também que a gente

10

Cidade do interior do Estado de São Paulo, distante de Franca cerca de 40 quilômetros.

Page 92: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

90

escolhia com qual é que a gente se dava melhor. Tinha natação, tudo com

professor, organizado pra, pra orientar, entendeu? Então quer dizer que eu

tenho só que agradecer a educação que eu tive porque eu fiquei no meio de

gente formada, de gente categorizada, de gente doutorada né, gente que

tinha a educação pra oferecer a todo momento, sabe? Então foi muito, muito

bom [...]. [Comparando os dois colégios] Não tem nem comparação. As

freiras de lá [do Des Oiseaux] eram alegres, sabe? Conversava com a

gente. Na hora do estudo era uma coisa, na hora de conversar eram alegres,

cantavam... aqui [no Colégio de Lourdes] era uma coisa fechada sempre

né. Muito, muito diferente. Eu ainda abusava um pouco porque o meu pai

era médico do colégio, então eu abusava. Eu saia pela portaria e a freira lá da

portaria ou a moça lá da portaria me chamavam eu falava assim: “eu sou

filha do médico do colégio, doutor Pinho me chamou, to saindo... tchau”.

(ARQUIVOS 17-18, p. 1-2, 8, grifo nosso).

Neste Colégio, de “gente categorizada” aprendia-se dança, jogar tênis, natação, enfim,

atividades que enriqueciam o currículo das filhas da elite paulistana. “As freiras de lá [do De

Oiseaux] eram mais alegres, cantavam... aqui [no Colégio de Lourdes] era uma coisa fechada

sempre, né”, comparou D. Augusta, que se aproveitava da sua posição de filha do médico do

Colégio para burlar as regras. “Eu saia pela portaria e a freira lá da portaria ou a moça lá da

portaria me chamavam eu falava assim: „eu sou filha do médico do colégio, doutor Pinho me

chamou, to saindo... tchau‟”.

O quadro que segue demonstra os processos de formação escolar da rede de

colaboradoras nas respectivas instituições de ensino:

QUADRO DE FORMAÇÃO DAS NORMALISTAS

NOMES PRIMÁRIO TANSIÇÃO GINÁSIO NORMAL

D. EDNA Escola da

fazenda até 3º

ano

(Arq. 15, p. 4)

Colégio de

Lourdes – Franca

(externa)

4º ano

(Arq.15, p. 5)

Colégio de Lourdes –

Franca

(Arq. 15, p. 5)

IETC – Franca

(Arq. 15, p. 5)

D. LEILA Escola Pública –

Rifaina

1º ao 4º ano

(Arq. 30, p. 4)

Admissão Colégio de Lourdes –

Franca (Interna) até o

3º ano

Colégio de Freira –

Piracicaba (Externa)

4ºano

(Arq. 30, p. 4)

Escola Pública –

Piracicaba 6 meses

Científico

Pré-normal 1º ano

IETC – Franca

2º ano em diante

(Arq. 30, p. 4)

Page 93: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

91

D. AUGUSTA Colégio de

Lourdes – Franca

(Externa)

(Arq. 8-10, p. 3)

Admissão Colégio de Lourdes –

Franca (Externa)

até o 3º ano

Colégio Dês Oiseaux

– São Paulo 4º ano

(Arq. 8-10, p. 3)

Colégio de

Lourdes – Franca

(Externa)

D. DULCE Grupo Escolar

Artur Belém

Júnior –

Pedregulho

(Arq. 33, p. 11)

Admissão Colégio de Lourdes –

Franca (Interna)

(Arq. 33, p. 11)

Colégio de Lourdes

– Franca (Externa)

(Arq. 33, p. 14)

D. CLEUZA Colégio de

Lourdes – Franca

(Externa)

(Arq. 12, p. 2)

Admissão Colégio de Lourdes –

Franca (Interna)

(Arq. 12, p. 2)

Colégio de Lourdes

– Franca (Externa)

(Arq. 12, p. 2)

Fonte: Da autora.

Como vimos no capítulo 1, para poder cursar o Ginásio todas as crianças deviam

passar pelo exame de admissão. Uma colaboradora relatou:

Então com seis anos eu fui ali, que também era das irmãs religiosas da

França né, e daí eu cursei até o quarto, era quarto ano. Depois a gente fazia

uma prova de admissão pra entrar no quinto ano e eu entrei no colégio Nossa

Senhora de Lourdes, que eu fiquei até completar o magistério. Entrei com

seis anos e saí com dezoito. (ARQUIVO 12, p. 2).

Somente com a Lei 5692/71 o exame de admissão foi extinto do sistema educacional

brasileiro, permitindo que um maior fluxo de alunos completasse a educação fundamental que

passou de quatro, para oito anos.

Durante o curso Ginasial, todas as normalistas frequentaram o Colégio Nossa Senhora

de Lourdes, as moradoras da cidade em regime de externato e as que moravam fora, como

internas. D. Edna, que morava na fazenda, contou que veio para Franca morar com a avó e

com a tia para ficar como externa. “Eu vim morar com a minha avó e tinha uma tia [...]”

(ARQUIVO 15, p. 12).

É digno de nota que, pelo histórico de formação da rede de normalistas, percebemos

que o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, de caráter confessional, era um destino certo para

todas elas. Todas, sem exceção, fluíram para ele em algum momento de sua formação

Page 94: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

92

educacional – umas desde o começo, outras geralmente após o exame de admissão, para

cursar o ginásio.

Isso nos indica que o Colégio de Lourdes, fundado pelas irmãs de São José no ano de

1888 em Franca, que resistiu até sua extinção em 1967, era um ponto de referência na

educação de toda a região.

Outro aspecto importante a considerar, é o valor que o ensino confessional tinha para

as famílias tradicionais. Os pais, sempre que podiam, escolhiam dar aos filhos a educação

escolar juntamente com a educação religiosa: “Naquela época não precisava de escola

particular não, escola pública era de primeira grandeza. Eu estudei em colégio de irmã porque

meu pai optou, porque ele queria o ensino religioso, foi por isso.” (ARQUIVO 12, p. 15).

Apesar de a escola pública ser de qualidade, “o pai [...] queria o ensino religioso”. O

colégio de caráter confessional auxiliava os pais na formação moral e católica dos filhos.

Esses conceitos hegemônicos, mais tarde, fariam parte do ser da normalista, de tal forma, que

se apresentariam de diversas maneiras em seu modo de ensinar os alunos. No capítulo que se

segue, mostraremos exemplos nítidos de como isso ocorreu na prática pedagógica das

normalistas, embora nos apercebamos que muitas não têm plena consciência de como se deu

esse processo, enquanto outras refletem e questionam sua prática diante da releitura

proporcionada pelo lembrar.

Embora as colaboradoras tenham recebido sua educação primária em diferentes

instituições – públicas, particulares, laica e confessional – fica evidente o caráter rígido do

ensino. Em nenhum relato houve comentários referentes aos castigos corporais que, por volta

das décadas de 30 e 40, já não eram utilizados nas citadas instituições de ensino.

Por meio do controle e vigilância, era possível punir eventuais condutas indesejáveis.

O castigo físico, como a palmatória, não era usado no colégio, segundo os depoimentos

colhidos. Entretanto, outros castigos permaneciam como ficar de pé, virado para a parede, ser

colocado para fora da sala de aula. (GOMES, 1996, p. 68).

Castigos mais sutis ainda eram aplicados. Por exemplo, para as alunas que viviam no

sistema de internato, havia o castigo de perder o direito de passar um domingo do mês com a

família. O símbolo que demonstrava se a aluna estava sujeita ou não a esta sanção, eram as

fitas de comportamento, que elas recebiam a cada semana, caso houvessem se comportado

bem:

Todos os primeiros domingos as alunas saíam com os pais, ficavam e

voltavam na segunda cedo. E aquelas que perdiam suas fitas, porque eram

quatro semanas, quando perdiam duas fitas, por exemplo, se conversou na

Page 95: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

93

fila, se não fez os deveres da escola, sabe. Eram as duas espiãs que

verificavam sem que as outras soubessem. Não havia ninguém para policiá-

las. Então quando havia falta de duas... em duas semanas a aluna perdesse a

fita, no primeiro domingo ela não podia sair.[...] A fita é uma fita de

comportamento. Porque no domingo era um dia de gala [...] a gente ia a

missa mais tarde, depois ia fazer um passeio na chácara [...] das irmãs São

José [...], então a gente ia para a chácara e com a fita. A fita era o distintivo

do bom comportamento. E aquelas que não conseguiam a fita iam sem a fita.

Então isso demonstra que ela não era bem comportada [...] E todos os

domingos a gente desfilava o dia todo com a fita amarela. E se ganhasse

todas as fitas durante as quatro semanas, tinha o direito de folga. (GOMES,

1996, p. 113-114).

Desta forma, o controle disciplinar era conseguido por meio da vigilância e das

sanções aplicadas, de forma a conseguir um comportamento desejado, o adestramento dos

corpos. “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis”

(FOUCAULT, 1987, p. 119).

A perda da fita de comportamento sempre foi citada pelas alunas interna nas

entrevistas como um castigo:

Sabe que punições que tinha? Uai, era de cortar a fita. [...] A fita. [...] A fita

era uma punição. Porque ali tinha regulamento. Se você fosse, aonde você

fosse, você não podia conversar. “Sempre em fila” – era a ordem da escola.

Sempre com disciplina. Você tinha que ir para o refeitório: ia tudo em fila,

sem prosa sem nada. Se proseasse, tinha a que tomava conta, tinha uma das

alunas que tomava conta, as mais velhas. Eles escolhiam as mais de idade e

ali elas marcavam, né. De acordo com as marcas, por exemplo, se eu tinha,

por exemplo, tivesse 20 cruzinhas no meu nome, eu perdia a fita, entendeu?

(ARQUIVO 34, p. 3).

Se saísse fora do regulamento perdia a fita e o direito de passar o único final de

semana do mês em casa com a família. É interessante nesse fragmento que D. Dulce se

lembra que “se proseasse, tinha a que tomava conta, tinha uma das alunas que tomava conta,

as mais velhas. Elas escolhiam as mais de idade e ali elas marcavam, né.” Sim, as próprias

alunas vigiavam o comportamento das demais colegas e delatavam os desvios. “De acordo

com as marcas, por exemplo, se eu tinha [...] vinte cruzinhas no meu nome, eu perdia a fita,

entendeu?” Esse recurso de vigilância era muito eficaz: alunas que observavam o

comportamento das demais colegas e até mesmo de mestres [no caso, leigos] e faziam

relatórios para as irmãs. Uma prática tão comum que se consolidou através das décadas.

Este método, criado por Batencour e utilizado nas escolas paroquiais para resolver o

problema da indisciplina gerada com o aumento do número de alunos que passa atender, é

citado por Foucault:

Page 96: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

94

Os observadores devem anotar quem sai do banco, quem conversa, quem

não tem o terço ou o livro de orações, quem se comporta mal na missa, quem

comete alguma imodéstia, conversa ou grita na rua; os admunitores estão

encarregados de tomar conta dos que falam ou fazem zunzum ou estudar

lições, dos que não escrevem ou brincam. (FOUCAULT, 1987, p. 147).

No Colégio Nossa Senhora de Lourdes, estas vigilantes existiam, embora sua

identidade fosse preservada. Quando indagada sobre quem deveria ser vigiado, o professor ou

as alunas, uma ex-interna relatou:

Eu acredito que os dois. Porque elas [as freiras] queriam saber se o

professor estava cumprindo e se os alunos... porque cada classe tinha duas

vigilantes, mas vigilantes assim, que a classe não sabia quem era, sabe.[...] Eram as alunas mesmas. As próprias alunas. Existiam duas que fazia

relatórios todos os dias, para a madre superiora. Só que era uma espécie de

espiã, né. Eram duas espiãs. (GOMES, 1996, p. 111).

Internas e externas eram proibidas de ficarem juntas. Uma ex-externa explicou o

motivo de não haver contato entre estes dois grupos: “Não, não podia ter. Porque senão

achava que a gente estava trazendo coisas do mundo externo lá pra elas. Então, lá era um

mundo fechado demais. Neste ponto eu acho que a gente ficou um pouco prejudicada [...] mas

valeu”. (GOMES, 1996, p. 103).

Desta forma, podemos dizer que se usava a “arte da distribuição dos sujeitos no

espaço” (FOUCAULT, 1987, p. 121) a fim de controlar até mesmo as informações que

entravam e saíam do colégio. Assim, elas deviam ficar o tempo todo, separadas e vigiadas.

O mecanismo de distinção entre um grupo e outro era o próprio uniforme:

Porque era saia, né. Na época era saia. Saia e nós tínhamos um corpetinho e

as outras, externas tinha só a sainha com a blusinha branca, sabe? Já as

externas era a blusinha e nós tinha o corpetinho. Tinha uma gravata também,

sabe? [...] Era o que diferenciava do internato para o externato. (ARQUIVO

34, p. 9).

O uniforme sinalizava o grupo a que a aluna pertencia, o que facilitava o controle de

seu comportamento.

A ordem se manifestava também nas filas para entrar e sair da sala de aula e da

organização das alunas no espaço. Atividades pedagógicas em um grupo não eram

incentivadas. Cada uma ocupava seu espaço na sala de aula, o que permitia o maior controle

de suas ações. Nas palavras de Foucault:

Page 97: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

95

Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar um indivíduo. Evitar as

distribuições por grupos, decompor as implantações coletivas [...] estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar o

indivíduo, instaurar as comunicações úteis, interromper outras, poder a cada

instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir a

qualidades e os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e

utilizar. (FOUCAULT, 1987, p. 123).

D. Cleuza contou:

Aí as internas, quando a gente entrava, as internas já sentavam do outro lado

do internato, onde elas dormiam e elas não podiam sentar misturadas

conosco. [...] Aí as externas sentavam de cá e as internas sentavam de lá. E a

gente não podia conversar muito com as internas, tinha que ser mais

afastado. [...] Lá tinha muita preocupação de mulher com mulher estar muito

junto. Mas as internas... eu não sei assim, eu sei que elas tinham que ficar

sentadas separadas. Não podia sentar assim uma externa aqui, uma... não

podia misturar, sabe. Era uma regra, era uma regra. Trabalho em grupo não

podia fazer com interna. (ARQUIVO 12, p. 10-11).

A separação dos corpos sinalizava também a preocupação com o homossexualismo.

Em várias entrevistas as normalistas comentaram a preocupação das freiras com as

manifestações de afetividade entre as alunas. “Lá tinha muita preocupação de mulher com

mulher estar muito junto”.

Comentando sobre a relação existente entre as alunas, uma ex- aluna do internato

disse: “Mas a disciplina era rígida. Não se ficava sozinha com ninguém, certo? Não se podia

dar as mãos, não se podia assim ter contato mais afetivo, de maneira nenhuma”. (GOMES,

1996, p. 110).

Havia preocupação entre as freiras do colégio com o homossexualismo. Por isso era

comum reprimir qualquer manifestação afetiva entre as alunas. Outra ex- aluna comenta:

“Banho... essa coisa toda... muito sigilosa... não podia, por exemplo, duas colegas ficarem

conversando porque já formava mal juízo dessas colegas. Ali o regime era bastante rigoroso

mesmo no internato”. (GOMES, 1996, p. 103).

Quando questionada sobre a influência deste tipo de educação na sua vida ela

comenta:

[...] mas eu acho que pode ter sido ótimo sob certo aspecto, mas, por

exemplo, em relação [...] afetiva, eu acho que prejudicou bastante, porque

sendo uma educação muito rígida, todos os sentimentos refreados, não é.

Barbaramente refreados mesmo, seguros. Então a gente não tinha como. E

na idade adulta, porque nós éramos adolescentes, na idade adulta, então

aquele comportamento mais fechado, mesmo no uso de roupas, por exemplo,

Page 98: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

96

isso influiu muito, eu nunca consegui colocar um decote! Tudo isso influiu

nos mínimos detalhes da educação. (GOMES, 1996, p. 110).

Até mesmo o modo como a futura normalista ia se arrumar, se vestir e se comportar

era influenciado por essas regras acima descritas.

Os recreios também eram vigiados, embora não houvesse uma programação de

atividades monitoradas pelas freiras.

Olha, no recreio não tinha monitoramento não. Tinha uma irmãzinha que até

tinha assim a fama de bravinha, a irmã Rosa, ela ficava assim sabe [...] Por

ali, mas não era monitoramento não. Mas assim as quadras, as redes de vôlei

já estavam armadas, e você comia o lanche correndo pra jogar, o basquete

tava lá funcionando. Outros ficavam tentando, outros ficavam andando, que

o pátio era muito grande, sabe? Aí dava o sinal e voltava a mesma coisa... e a

assim era a, a rotina era essa aí. [...] Geralmente no recreio a gente era

recomendado assim, dá um cheguinho na capela, então todas as alunas

costumavam ir na capela, rezar um pouquinho. (ARQUIVO 12, p. 11).

Até na hora do recreio, as meninas eram incentivadas a ir rezar. Assim desviava o

fluxo de meninas do banheiro onde podiam ocorrer práticas ilícitas.

Tópicos frasais que aparecem de forma recorrente nas entrevistas estão relacionados à

rigidez na organização do tempo, dos espaços, das tarefas a serem cumpridas, e da disciplina.

Havia regras para tudo no Colégio de Lourdes.

Tinha, você pode por, tinha regulamento pra tudo, pra tudo tinha um

regulamento sabe, pra tudo, tudo. E muita ordem, muita ordem, sabe? Não é

aquele vai... não é mesmo? Lá não. Hoje que é assim. Antigamente não.

Hoje tem aquela liberdade, aquela coisa. Foi tanta liberdade que eles deram

que está dando o que ta dando. Entendeu? Nós era ali ó [batendo o polegar

e o indicador na mesa]. [...] No Colégio. Ah, lá porque a gente era interna

né bem, ás vezes saía um pouco dos estudos, né. A gente lá assim, muito

rígido, tinha tudo que rezar, não é mesmo? Ás vezes tinha tudo no horário,

tudo com horário, pra rezar, pra alimento, pra tudo, janta. Tinha os

refeitórios. Tudo horário. Tudo a poder de horário. Mas era rígido. E... Tudo

que você vê num colégio interno, né. (ARQUIVO 34, p. 3, 7).

O controle do tempo para a realização das tarefas obedecia aos sinais. Esse padrão de

controle, que impunha uma rotina rígida no cotidiano das normalistas, se seguiu durante o

restante de suas vidas. Formação duradoura do caráter. O perfil da normalista é característico

de alguém apegada às regras, apegada à vida encadeada pela rotina pré-determinada, mesmo

após a aposentadoria.

Page 99: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

97

O enraizamento desses conceitos rígidos de disciplina e administração do tempo

tornaria essenciais para instrumentalizar a prática pedagógica das normalistas, afinal, a escola

seria a primeira a introduzir estes mecanismos de controle no cotidiano dos alunos que, mais

tarde, seria exigido no mundo do trabalho.

D. Dulce justificou em sua fala o porquê devia haver regras no colégio: “Então eu

precisava ter rigor, porque onde há ordem há o progresso, né. Porque senão não tinha ordem.

Como é que ia fazer uma escola sem ordem. Tinha de ter. Mas sempre tinha as que não

obedecia, né”. (ARQUIVO 34, p. 3).

A visão positivista de “onde há ordem há progresso”, foi internalizada pela

colaboradora. Crer nisso era fundamental para que ela desempenhasse de forma satisfatória

seu papel de “guardiã de um saber”, uma ideia da elite dominante que se queria fazer

acreditar, ser portadora da verdade, do exemplo e da correta conduta social. É importante que

se entenda aqui que, para ser um canal eficiente de uma cultura social, de uma ideologia que

se quer impor como verdade universal, é preciso contar com a fé, o poder da convicção das

pessoas que serão os porta-vozes de tal contexto. A eficiência de nossas colaboradoras dentro

do sistema educacional que buscava promover uma escola pública gratuita e obrigatória para

todos, a fim de formar mão-de-obra qualificada para o trabalho na indústria, destituída dos

costumes do homem do campo, ligado à terra, estava intimamente ligada à sua formação

enquanto pessoas.

Através das entrevistas com ex-alunas do Colégio de Lourdes, tanto internas como

externas, obtivemos uma descrição detalhada de como era a rotina escolar dentro da

instituição para cada um dos grupos. Sobre o internato D. Leila relatou:

Então. Tinha o sinal né, que dava o sinal pra levantar né. Porque geralmente

nos dormitórios, lá tinha sempre uma irmã que dormia naquele dormitório,

mas era fechadinho assim, né. E ela ficava, quer dizer, qualquer coisa que

acontecesse ela tava ali, em todos os dormitórios que tinha. Então tinha o

sinal pra levantar, todo mundo levantava... já ia pro banheiro né, pra escovar

os dentes, lavar a roupa e aí já ia pra igreja pra assistir a missa. Depois vai

tomar o café né, no refeitório e aí passava pra sala de aula né, ou sala, a sala,

cada série né tinha uma sala né. Ali você, pra estudo... porque aula

geralmente era à tarde, então de manhã, a gente tinha aulas de estudo, depois

nesse período tinha aula de educação física né, a hora do banho. Então todos

os dias já tinha, então a hora do banho, aí depois do almoço tinha o intervalo,

ficava lá no pátio a vontade. E aí na hora das aulas, cada um ia... [...]

Normal. Assistia às aulas. Terminando... [...] Não. Ficava a noite. Às vezes

ficava um pouco em aula, estudando, qualquer coisa. Não me lembro direito

aí no horário de dormir não. [...] É. Tinha no intervalo das aulas, tinha o

recreio né, e era servido um lanche. Mas a aluna podia ter alguma coisa. Os

pais às vezes mandavam uma bolachinha, uma rosquinha, alguma coisa né.

Page 100: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

98

Então era guardado lá e nessa hora você podia ir lá, pegar e comer né. [...]

Mas tudo era muito bem dosado, muito bem organizado. (ARQUIVO 30,

p. 10).

Até mesmo na hora de dormir, as meninas não eram deixadas só: “Nos dormitórios lá,

tinha sempre uma irmã que dormia no dormitório”. De manhã levantava, lavava a roupa,

tomava café e ia para a missa. Havia missa diariamente. Os estudos e tarefas eram feitos pela

manhã e à tarde se misturavam às aulas.

Nos finais de semana que as internas não iam para casa dos pais, as freiras promoviam

passeios:

Toda quarta-feira também tinha o passeio, sabe. Tinha o passeio. [...] Passeava na cidade de Franca. E tinha uma vez por mês assim, ou aos

domingos, quando elas combinavam, nós íamos para uma chácara, uma

chácara do Colégio, e ali a gente levava o lanche. Cada um levava o lanche

que quisesse, entendeu? Porque os pais sempre mandava né, assim uns

doces, umas coisas, sabe? Porque era interna, era igual casa. Era assim nossa

vida no Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Assim me formei lá. Sempre

estudando. (ARQUIVO 34, p. 9).

A descrição do externato foi feita por D. Cleuza:

Bom a gente chegava cedo, tinha o lugar de formar a fila. Aí tinha o sinal,

sinalzinho... ia pra, subia as escadas porque era um prédio muito grande, os

pequenos em baixo, os maiores mais em cima. Entrava sempre o primeiro

professor e rezava com a gente. Ah, tinha muito a parte do civismo que eu

não falei. A parte dos hinos pátrios né, tanto é que isso é uma marca muito

grande em mim, eu tenho um lado forte muito com relação a isso na

formação dos meus alunos né. E a gente rezava, entrava e não sentava não.

Ficava em pé do lado da carteira individual, vocês ficavam em pé, a irmã

chegava, “em nome do Pai” rezava, agradecia a aula, agradecia o dia e tudo

que tinha que fazer, sentava, tinha o jeito das boas maneiras de sentar – igual

eu fiz barulho na cadeira – não podia fazer barulho na cadeira. (ARQUIVO

12, p. 10).

A mesma educação religiosa era repetida todos os dias com as externas: chegavam,

formavam fila, entravam para a sala e rezavam. Outro aspecto muito ressaltado na educação

recebida pelas normalistas era o civismo: “Ah, tinha muito a parte do civismo que eu não

falei. A parte dos hinos pátrios”. O amor a Pátria, a convicção de estar servindo a nação

movia as normalistas à ação, a realizarem com afinco seu papel de perpetuadoras destes

conceitos. Analisaremos mais de perto como isso se deu em sua prática pedagógica mais à

frente, no terceiro capítulo. No entanto, não podemos deixar passar despercebido o fato de que

a evidência oral comprova o quanto tais valores estavam enraizados na colônia de

Page 101: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

99

normalistas, ao ponto da colaboradora admitir: “tanto é que isso [hinos pátrios] é uma marca

muito grande em mim, eu tenho um lado forte, muito com relação a isso na formação dos

meus alunos”.

Não é à toa que as normalistas lembram com riqueza de detalhes as comemorações

cívicas de seu tempo de estudante:

[As comemorações cívicas] eram feitas assim, da melhor maneira

possível. Olha, mesmo na época que eu estudei, desde o 1º ano, desde o

primário, vamos se dizer né, a gente era assim, comemorado nas escolas,

tinha desfiles, tinha comemoração muito bonita sabe, manifestação,

participação de todos, do povo em geral. Quando eu vim estudar no colégio a

gente tinha até o uniforme de gala pra desfile. [...] Uniforme de gala! Que o

Colégio de Lourdes era para as meninas e tinha o Champagnat que era para

os meninos. Os desfiles do Champagnat chamava a atenção do povo tudo.

Eles desfilavam em cavalo com aquela roupa e tudo. Mas era uma beleza!

Uma fanfarra que dava gosto! Era dia de festa! E todo mundo sabia porque

que tava comemorando, o que que estava. Então as solenidades eram muito

bem feitas, muito bem preparadas, muito bem aceitas, porque todo mundo

esperava. Passava na rua aquele movimento, aquela coisa. Era dia de festa,

dia que tinha um desfile. (ARQUIVO 32, p. 13).

As datas de 7 de setembro, de 15 de novembro eram aguardadas com grande

expectativa pela população que vinha para as ruas assistir e prestigiar os filhos e filhas da elite

de Franca e região que desfilavam em seus trajes de gala. Nessas comemorações, a sociedade,

embora desigual, parecia compartilhar de um mesmo sentimento de identidade que

proporcionava uma falsa impressão de harmonia.

Os trajes deveriam se apresentar impecáveis em todas as ocasiões, mas especialmente

nestas. Havia até uma nota para a arrumação. D. Cleuza lembrou:

Cantar nas datas específicas era um luxo. Olha, a independência do Brasil,

minha filha, era um luxo nas ruas. Além da comemoração a gente saia com o

uniforme de gala que a gente tinha um uniforme comum e um uniforme de

gala. A gente saia com o uniforme de gala, abafava minha filha. Era assim

olha, mas vinha uma mulher, aquela coisa. Sabe a barra da saia da gente?

Tinha que ser tudo, por exemplo, tinha... a mãe tinha que medir do chão à

barra da saia, vamos supor, trinta centímetros pra todo mundo. Não

importava se você era alto ou baixo. Então olhava assim, era um

comprimento só a barra da saia, o sapato de verniz... tudo, tudo, tudo aquela

coisa lindíssima. Tinha nota pro uniforme. Quando eu era uma aluna assim

bem tipo, bonitinha, [RISOS] meu pai pegava meu boletim, tinha boletim, e

falava assim, “olha!”... acho que chamava “ordem”, não sei como é que

chamava essa nota.[...] Ele falava assim: “Olha! Único...”, não, “Olha dois

dez! Um é da sua mãe!”. Era a “ordem”. [RISOS] “Que sua mãe manda

com a camisa impecável, isso não sei o que, o sapato aquilo... e o outro era

Page 102: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

100

das brincadeiras de educação física”. Mas era fora de série viu, formidável,

uma saudade imensa. (ARQUIVO 12, p. 12).

Eram nas aulas de canto orfeônico que as meninas do Colégio aprendiam e treinavam

os hinos pátrios. Fazia parte do currículo. “[Os hinos pátrios] sempre eram cantados nas aulas

de música.” A ex-normalista reconheceu o valor de tal instrução para sua prática profissional

ao contar:

O canto orfeônico? [...] Acho importante Cristina, acho bem. Porque deixa

eu te falar uma coisa. Na minha época não havia, acho que até eu já falei isso

pra você, educação artística. [...] Então eu tenho dificuldade de fazer um

desenho... acho que eu já te falei isso. [...] É então. Justamente agora, o

canto orfeônico é muito importante, eu acho, muito importante. [...] Ah

lógico, as crianças também, ensinar a cantar... é muito importante. Porque

hoje bem, a criança não sabe nem cantar o Hino Nacional, não é verdade?

[...] E quando eu me formei aí na Pedagogia, que e fiz administração, escolhi

a escola de Patrocínio Paulista, que eu passei a ser a diretora de lá, no início

das aulas eu mandava cantar o Hino Nacional todo o dia, por quê? Porque o

aluno tem que saber o Hino Nacional, não é verdade? Então, isso foi uma

orientação mesmo da dona Lúcia Ceraso, de fazer com que o aluno

aprendesse os nossos hinos. (ARQUIVO 21, p. 6).

Aprender a cantar para ensinar os alunos – esse era o objetivo do curso de canto. E não

era qualquer música que se ensinava; apesar dos depoimentos citarem cantigas de roda, os

hinos pátrios eram parte central do currículo das aulas de canto orfeônico, dada a importância

do patriotismo na educação ministrada. “[...] ensinar a cantar... é muito importante. Porque

hoje bem, a criança não sabe nem cantar o Hino Nacional, não é verdade?”

Havia uma orientação no curso Normal por parte da professora de canto orfeônico,

sobre a relevância do ensino dos hinos pátrios: “Porque o aluno tem que saber o Hino

Nacional, não é verdade? Então, isso foi uma orientação mesmo da D. Lúcia Ceraso, de fazer

com que o aluno aprendesse os hinos.” Endossar o patriotismo e o civismo de forma a imbuir

na criança o sentimento de identidade, amor e respeito à nação era fundamental para a

formação do indivíduo, pois estes mesmos aspectos contribuiriam para o controle e a

dominação social.

Também faziam parte do currículo, as aulas de polidez. Nelas, as futuras professoras,

esposas e mães, aprendiam os verdadeiros dons femininos: como se portar à mesa, regras de

etiqueta que determinava como falar, sorrir e até mesmo, preparar uma mesa de jantar para

uma ocasião importante.

Page 103: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

101

Polidez. [...] Quem dava? Ah era as irmãs mesmo, mas a irmã que eu não

lembro o nome. Eu acho que é irmã Laurinha. Acho que era ela. [...] Irmã

Olga dava Música, irmã Olga. A Polidez? Aprendia, por exemplo, como

você ia sentar numa mesa, como você, como, por exemplo, como você ia

comer, punha o guardanapo assim, como pegar o garfo, como pegar na faca,

comer com garfo, faca. Como você comportava numa mesa, né.

(ARQUIVO 34, p. 5).

Desta forma, as meninas recebiam uma educação à altura da elite da qual se

originavam, perpetuando assim seus valores. Seriam excelentes esposas e, ao lado de seus

maridos, personalidades importantes da região, se apresentariam com a postura desejada de

educação, delicadeza e cortesia. A própria palavra polidez, nome dado ao curso de etiqueta,

designa o seu objetivo: lustrar, polir, alisar algo, como por exemplo, uma pedra bruta, a fim de

que ela brilhe. A menina chegava ao colégio desta forma, como um diamante bruto, que

precisava ser polido, lapidado a fim de bem representar seus pais e futuros maridos na

sociedade. “Nós nascemos um diamante bruto que vamos lapidando no decorrer dos anos né,

é isso que nós somos. E quanto mais você tem um grande, um dedicado, um especial

educador, você vai ser uma pedra brilhante, não é.” (ARQUIVO 11, p. 9).

Mais tarde tal formação tornou-se parte vital do currículo oculto que as normalistas,

atuantes na profissão, deixaram transparecer em sua prática pedagógica. A postura da

professora em si ensinava aos alunos como deveriam se comportar. D. Cleuza descreve o

currículo extra:

Nós tínhamos aulas de boas maneiras. Nós tínhamos o ensino religioso, que

estudava a bíblia, o catecismo. Nós tínhamos aulas de boas maneiras: sentar

numa mesa, usar um talher, se levantar, sentar, receber uma autoridade, de...

o que mais que a gente tinha de diferente? E essa parte de correr atrás de

quem, do necessitado assim, de trabalhar, vamos supor, campanha... só que

não tinha esse nome sabe. [...] A gente já fazia, já ajuda, pessoas. E agora de

currículo mesmo... porque a música era dentro, trabalhos manuais era dentro,

educação física elas valorizavam demais... (ARQUIVO 12, p. 9).

A educação católica incentivava a caridade, o assistencialismo como forma de

amenizar as desigualdades sociais: “E essa parte de correr atrás [...] do necessitado assim,

vamos supor, campanha [...] a gente já fazia, ajudar pessoas”.

No Colégio Des Oiseaux, das Cônegas de Santo Agostinho, também ensinava etiqueta

no cotidiano.

Etiqueta. O francês sempre bateu muito com isso. Tanto que na hora do

jantar a gente sabia como colocar o prato sem debruçar, levar a xícara à boca

e não a boca na xícara né. A postura na mesa... Tipo não deitar com os

Page 104: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

102

cotovelos né. E tudo isso era, tinha uma das freiras que passava pelas mesas

orientando as alunas. Muito boa. Extraordinariamente boa. (ARQUIVOS 8-

10, p. 5).

Habilidades manuais incluíam bordado, ponto cruz, crochê, tricô, macramê e

confecção de flores. Como já dito anteriormente pelas próprias colaboradoras, as meninas que

acabavam o quarto ano e não iam para o colégio, deviam aprender artes manuais, porém, as

que se dirigiam para lá não escapavam de ter o mesmo destino ou instrução.

Olha, eu tinha irmãs muito competentes, capacitadas, sabe. Nós tivemos

assim na área de português, no magistério. Nossa, eu tive uma irmã muito

boa mesmo. E nós tivemos trabalhos manuais menina, incrível. Eu não tenho

essa habilidade, esse dom. Mas a gente aprendeu tudo. Em panos de amostra,

bainhas de todo o jeito, amarrar toalhas de todo o jeito, todo o pontinho de

bordado, sabe. Todos aqueles panos maravilhosos que tinha na aula de

trabalhos manuais... aula de música, a irmã Olga, naquele piano, a gente

naquele gradem. Se você soubesse que coisa linda, o gradem era um banco

assim que ia subindo e a gente naquela postura assim, naquele canto. Era a

coisa mais encantadora do mundo aquilo. E eu tô falando pra você, parece

que eu estou vendo. (ARQUIVO 12, p. 8).

Apesar desse aprendizado não ocupar o cotidiano das normalistas que se formaram e

foram trabalhar fora de casa – o que foi uma revolução para a época, pelo menos para as

mulheres originárias de um grupo social privilegiado economicamente – hoje está presente

como ocupação de algumas delas.

Não sei. Eu me habituei tanto dentro de casa, acho tão bom aqui dentro da

minha casa... gosto tanto do meu artesanato, desse trabalho de mão sabe, que

eu não gostava antes não. Tanto que a primeira vez que eu fiz um trabalho de

ponto de cruz lá no colégio [INAUDÍVEL], eu gostava tão pouco que eu

pus a toalhinha aqui no, em cima da saia do uniforme e fiquei fazendo ponto

de cruz... quando eu levantei a toalha. [...] Ela tava costurada na minha saia

[RISOS]. E pra não perder a nota eu fui assim ó, a saia e a toalha costurada

na saia. Você viu como eu não gostava, e agora eu adoro. Aqui esse pano fui

eu que fiz olha, tá vendo? Eu procuro fazer tudo agora. Aquelas

bombonieres de crochê eu que fiz também. (ARQUIVO 6, p. 16).

Alguns pais pagavam à parte para suas filhas terem aula de algum instrumento musical

como piano ou violino. Era comum as moças bem educadas saberem tocar, de preferência o

piano, em ocasiões importantes em que podiam manifestar seus dotes. “Eu aprendi [a tocar],

mas pagava particular [...] E, tinha [aula] de piano, de violino. Eu aprendi violino, um pouco,

sabe? É, eu aprendi três anos.” (ARQUIVO 34, p. 4).

Page 105: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

103

O método de ensino largamente utilizado na época da formação das normalistas que

fazem parte deste estudo, é o método tradicional. (GOMES, 1996) Não cabe aqui fazer uma

crítica do método em si. Como vimos no Capítulo 1, a educação brasileira, pautada no método

Jesuíta, católico e europeu, trouxe em seu bojo as características tradicionais que a República,

em mais de meio século, não conseguiu se desvencilhar. Os ideais liberais apresentados pelos

escolanovistas como educação laica, gratuita, obrigatória e mista tomaria corpo apenas na

segunda metade do século XX, quando as normalistas já estavam em plena atuação.

No entanto, como veremos mais adiante, as professoras reproduziram muitas vezes os

mesmos “modos de fazer” ou metodologias de ensino aprendidas enquanto alunas, com

algumas adaptações necessárias. Longe de ser uma crítica ao seu trabalho, esse comentário

apenas reforça a ideia de que não só o aprendizado (currículo escolar), mas o modo como foi

ensinado (currículo oculto), foram engendrados na educação integral das normalistas de forma

tão eficiente que, após muitos anos as mesmas acreditavam que aquele era o melhor método

de ensino.

A alfabetização era na cartilha e através de exercícios repetitivos as crianças

aprendiam a ler:

Era cartilha. [...] É. Cópia, isso, cópia, ditado... eram aquelas palavrinhas o

livro né, depois é que vinha o global né. [...] Começava né. Começava com

as letras né. a, e, i, o, u né, o alfabeto né. Depois normalmente, acho que

igual a sua mãe mesmo. Acho que tirou daquilo. [...] Era bem rígido, uma

pessoa muito boa, muito enérgica, sabe. Ela queria que a gente passava né.

Era ali ó [batendo com o dedo indicador dobrado sobre a mesa]. Era

muito bom o ensino antigamente. (ARQUIVO 33, p. 11).

Esse método era repetido em escolas de fazenda, grupos escolares e colégios

particulares. Repetir a mesma tarefa para memorizar e assim, cumpri-la de modo eficiente: eis

a função do método. Não podemos negar que esse método funcionou tanto na escola, para os

alunos, como nas fábricas, para os trabalhadores, que se tornaram eficientes em sua função

através da repetição das tarefas.

Para a eficiência no processo de memorização, a atenção do indivíduo devia ser

canalizada estritamente para os estudos. Não podia haver distrações.

Estudar. Estudar muito em silêncio, em lugar de silêncio. Não é possível

você estudar ouvindo música, eu acho que não. Entendeu? Então toda a vida

eu estudei muito foi por causa disso. Queria silêncio. Silêncio e no estudo lá,

à noite era silêncio quando eu estudava à noite. Tanto que eu lembrei, latim

né, a declinação em latim, não sei se você estudou... você nunca estudou

Page 106: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

104

latim, então... nós estudamos...[INAUDÍVEL]. Aí, eu to com a cabeça

ainda naquilo que eu aprendi, faz quantos anos? A declinação, primeira

declinação [INAUDÍVEL], depois vem a segunda declinação

[INAUDÍVEL], e eu ainda me lembro, entendeu? E eu fazia as traduções

em latim. Versões de canções de alguns verbos... na primeira declinação e na

segunda declinação, entendeu? Era um estudo muito puxado. (ARQUIVO

11, p. 9).

Assim como os Jesuítas, as freiras usavam as dramatizações como método eficaz de

ensino. D. Cleuza recorda:

A gente rezava muito, tinha uns retiros espirituais que, nossa, marcaram a

minha vida até hoje, sabe. Elas deram uma contribuição pra minha formação

muito grande, formação religiosa, na minha formação mesmo de cidadã

sabe, de ser assim uma pessoa no mundo... de transformação, agente de

mudança, sabe. Nos retiros espirituais com sacerdotes de outras cidades.

Nós, tinha muita dramatização assim, da vida de Nossa Senhora, sabe essa

parte de teatro, de dança... essa parte artística foi, nossa. Até hoje eu tenho

essa coisa sabe. [...] Tinha dança, tinha teatro... nossa, a gente participou

muito de teatro viu. (ARQUIVO 12, p. 4, 9).

O latim era uma das línguas ensinadas para meninas do Colégio de Lourdes, além do

francês e o inglês. As missas eram ministradas em latim e apenas quem tinha essa educação

podia entender o que se dizia ali.

Além das referidas “batalhas de verbos” presente nos depoimentos que fazem alusão

às avaliações orais, haviam outras formas de avaliação:

A prova escrita existe até hoje, e tinha a prova oral que a gente era chamado,

o professor ficava em outra sala e a gente ficava em uma sala da gente. E a

gente tinha que ir lá fazer a prova oral, tinha que fazer na lousa se era uma

aula de desenho, se era matemática, aquela raiz quadrada, equação, etc... a

gente tinha que fazer na lousa. Eu nunca fui boa de matemática, até hoje.

Quando eu preciso dessa parte eu sempre tenho algum assistente que é

competente nisso, mas estudei bastante, consegui utilizar em concursos que

eu prestei. Mas não é meu campo. (ARQUIVO 12, p. 14).

As alunas deviam resolver questões diante dos professores a fim de demonstrar suas

habilidades, o que não excluía as provas escritas.

A estrutura do sistema educacional era bastante rígida, o que causava a exclusão de

boa parte da população dos bancos escolares. Os próprios processos metodológicos citados, o

sistema de regras, disciplina e punição não era assimilado por todas as meninas enviadas para

o Colégio de Lourdes e muitos outros. A evidência oral permite-nos concluir que muitas

desistiam dos estudos, sendo selecionadas apenas aquelas que, de alguma forma, com muita

Page 107: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

105

ou pouca resistência, aderiram ao modelo de ensino proposto. Essas que ficaram e se

adaptaram, ou melhor, se conformaram – no pleno sentido da palavra, se encaixaram em uma

forma de modelar – tornaram-se as guardiãs do saber, e não podia ser diferente, afinal elas

assimilaram o currículo de forma integral e, por isso, foram eficientes em aplicá-lo. Dois

relatos de colaboradoras diferentes demonstram que mesmo as moças oriundas da elite

evadiam da escola:

Aí eu vim pro Colégio Nossa Senhora de Lourdes na época né. Estudei

interna. Minha irmã veio também comigo, nós terminamos o quarto ano

juntas. Ela veio, mas ficou um ano e depois não quis e voltou. Eu continuei.

[...] Ela não chegou a terminar os estudos não. Ela parou, casou mais nova,

não gostava assim muito né [de estudar]. (ARQUIVO 30, p. 3-4).

Somos em três, todas elas, nós três, só essa caçula que não formou. Não

formou porque arrumou namorado, o namorado quis casar e ela então...

Sabe, mas depois se arrependeu tanto né? Não forma, mas depois se

arrepende. Bem faz você que tá seguindo a sua vida. O verdadeiro

casamento é a sua formatura. (ARQUIVO 33, p. 4).

No primeiro fragmento é perceptível que a irmã da colaboradora não quis continuar os

estudos, mas o motivo não era o casamento e sim a adaptação, visto que ela fez apenas o

primeiro ano do ginásio no Colégio de Lourdes como interna e abandonou muito antes de

casar. Já no segundo caso, a colaboradora apresentou o casamento como motivo que levou a

irmã a deixar de estudar: “Não formou porque arrumou namorado, o namorado quis casar e

ela então...” Em seguida, deixou claro a importância que dá à educação: “O verdadeiro

casamento é a sua formatura”. Essa fala, improvável há 60 anos e muito comum nos tempos

atuais, faz parte da mentalidade própria das normalistas, que viam na educação uma forma de

emancipação da mulher, não em sentido financeiro propriamente dito, mas profissional, ao

adquirir seu espaço no mercado de trabalho, até então ocupado apenas pelas mulheres de

baixa renda. No capítulo que se segue mostraremos como essa mentalidade contribuiu para

que as normalistas enfrentassem as dificuldades e desafios de sua carreira.

Além de a adaptação ser uma forma de seleção da aspirante à normalista, havia outros

meios de captação das alunas mais talentosas – as que se destacavam pela boa memorização,

facilidade de falar em público e desenvoltura. Essas alunas sempre eram chamadas para

participar de eventos importantes e, aos poucos, iam tomando gosto pela posição que lhes

conferiam no futuro ser professora.

Page 108: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

106

Eu era boazinha no francês, que a gente estudava duas línguas. E tanto que

quando veio a madre superiora, ela era da França, a gente falava má mère, a

madre superiora, era a mãe da gente. Então teve aquela solenidade, aquela

coisa linda e eu aquela danadinha, lá... aquela danadinha de quinta série ou

sexta, eles foram me catar: “Dona Tozzi, a senhora é que vai falar para a

madre, para a má mère...”, falei, “mas eu?”, “ah porque a sua pronúncia de

francês é muito boa, só que você vai ter que decorar a poesia. E lá vai eu,

peguei , e eu gostava mesmo de subir no banquinho. Achei bom demais da

conta, [RISO] e meu pai achava muito mais, porque meu pai sempre achou

assim que eu era muito boa pra falar, muito boa pra cantar... tanto é que me

pôs em estudo de música desde criança, desde piano, formei em acordeom,

violão, e ele gostava da casa cheia, gente tocando, sabe. E aí eu falei essa

poesia, eu não lembro, era uma poesia grande. Só lembro que era assim, eu

falava. Aí eu não me lembro mais. Era uma poesia grande que eu decorei e

falei pra freira. Foi muito legal, foi muito legal. Eu tenho recordações muito

boas. (ARQUIVO 12, p. 8-9).

E mais infância, quando eu educava a voz, eu fiz uma apresentação com um

grupo de alunos desse professor no Teatro Santa Maria eu vesti de espanhola

e cantei Granada. Eu lembro perfeitamente. Fiquei lindinha de espanhola,

cantei Granada no Teatro Santa Maria. “Granada, terra sonhada por mim.”

Conhece né? [RISO]. (ARQUIVO 26, p. 4).

Em várias ocasiões a mesma colaboradora comentou sobre suas participações em

eventos importantes da cidade, incentivada tanto pelos mestres como pelo pai: “Achei bom

demais da conta, [RISO], e meu pai achava muito mais, porque meu pai sempre achou assim

que eu era muito boa pra falar, muito boa pra cantar.” O pai não só acreditava, mas também

incentivava o desenvolvimento de suas habilidades: “[...] tanto é que me pôs em estudo de

música desde criança, desde... piano, formei em acordeom, violão, e ele gostava da casa cheia,

gente tocando, sabe.”

O gosto de “subir no banquinho” (como dizia brincando nas entrevistas), de liderar,

acompanhou a história de vida dessa normalista que sempre foi participativa no meio

profissional, religioso e social da cidade de Franca.

Uma coisa a gente tinha como certo: que quem não nasceu com facilidades,

tinha que ir à luta. Isso ficou na minha vida e não me larga. Então é assim ó,

“quer lute. Nada cai do céu”. Então isso ficou muito forte, muito forte. Onde

que eu tenho essa dificuldade imensa de sair de cena. Muito. [...] Como se

diz: “descer do pódio”. (ARQUIVO 42, p. 1).

Até a conclusão do Ginásio, muito do perfil da normalista já estava formado através

do currículo oculto absorvido durante todos esses anos em contato com a instituição escolar.

A próxima fase incluía a escolha, que parecia quase natural, de fazer o curso Normal. Porém,

vários fatores influenciavam na decisão das moças de cursarem o Normal e um,

Page 109: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

107

especificamente, será discutido agora: a carreira da normalista e o status que esta

proporcionava.

2.4 O Curso Normal: A Produção do Modelo de Professor

Ao concluírem o Ginásio, algumas moças abandonavam os estudos enquanto outras

seguiam o que parecia ser a sequência lógica da formação educacional feminina – o curso

Normal.

Como já foi dito anteriormente, vários fatores influenciavam nessa escolha, mas

alguns especificamente aparecem em tópicos frasais repetidas vezes nas evidências orais. O

que faremos aqui é analisar cada um desses fatores de influência na escolha da profissão, bem

como o curso Normal propriamente dito sob o prisma das recordadoras. Para tanto,

descreveremos o surgimento dos cursos Normais de caráter laico e confessional na cidade de

Franca e sua influência no contexto social, econômico e político do período estudado.

A Escola Normal Livre de Franca foi fundada em 1928, oitenta e três anos mais tarde

que a primeira Escola Normal no Brasil, criada em 1835 em Niterói. Entretanto, se

analisarmos o processo de abertura de cursos Normais pelo Brasil, notaremos que ele ocorreu

de forma bem lenta até o início da República, quando passou a postular entre as primeiras

necessidades defendidas pelos ideais liberais.

Com a República, urgia dar continuidade ao projeto civilizador da Nação

com a meta de estender a educação para todos, nos moldes de uma ação

democrática que visava fortalecer o país, o que poderia ser alcançado através

da escola. A formação de bons professores era parte integrante desse projeto.

(ALMEIDA, 2005, p. 113).

Neste sentido, podemos considerar que, embora Franca fosse uma cidade pequena do

interior paulista, devido sua importância econômica, não ficou para trás no sentido de

conseguir introduzir, logo na segunda década do século XX, um curso Normal laico na

cidade. E essa era uma luta antiga de personalidades da elite francana. O jornal A Tribuna de

Franca, de 18 de dezembro de 1913, em artigo assinado pelos professores Homero Alves e

Sabino Loureiro, convocavam os cidadãos francanos para a peleja com outras cidades como

Mogi Mirim e Ribeirão Preto, que disputavam com ela a sede de uma Escola Normal Livre no

interior paulista: “[...] nós os francanos devemos nos empenhar seriamente para a vinda da

Page 110: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

108

Escola Normal para Franca, unirmos e sermos fortes pela união, fortes pela energia de nosso

querer [...] lutemos pelo progresso de nossa terra natal, não importa que sejamos vencidos.”.

O entusiasmo presente no discurso destes homens ilustres que se empenhavam para

introduzir o curso na cidade demonstra-nos que Franca seguia passo a passo o

desenvolvimento nacional e que a elite estava atenta às transformações ocorridas no país.

Todavia, o Curso Normal tornou-se realidade somente em 1927 com a lei que permitia

a criação de escolas normais pela iniciativa privada e pelo município. O então prefeito da

cidade Major Torquato Caleiro, o Sr. Hygino de Oliveira Caleiro e o Dr Ricardo Pinho,

respectivamente tio-avô, avô e pai de D. Augusta Caleiro, uma de nossas colaboradoras,

estiveram entre os articuladores do movimento de implantação da Escola Normal Livre de

Franca que sob o decreto de lei nº 443 de 20 de setembro de 1949 passou a se chamar Colégio

Estadual e Escola Normal Major Torquato Caleiro em homenagem a esse personagem ilustre.

Fazendo referência à homenagem feita ao Major Torquato Caleiro, o Jornal Comércio da

Franca de 25 de setembro de 1949 justificou:

Torquato Caleiro criou a Escola Normal Livre de Franca, dirigiu-lhe a

construção do prédio para funcionamento efetivo, viu-a crescer, florescer e

frutificar. Nos primeiros momentos, arrancos iniciais de grande empresa,

havia a parte financeira que era precípua: a ela também se dedicou com

carinho o falecido Major Torquato, assistindo com seus recursos às

necessidades da Escola, provendo-as e satisfazendo-as. Assim, graças à

dedicação do saudoso ex-Prefeito, muitas e muitas gerações de jovens

puderam receber, sob o teto amigo, a formação profissional de professor

normalista, indo participar ativamente da obra educadora de nossa gente.

Mais tarde, foi criado, no mesmo prédio em que funcionava a Escola

Normal, o Ginásio Municipal; com o tempo, o Ginásio e a Escola Normal

passavam para a administração estadual, recebendo Franca, então,

colaboração efetiva dos poderes estaduais, mais tarde ampliada e solidificada

por outros administradores do Município e do Estado. (COMÉRCIO DA

FRANCA, 1949, p. 1).

De fato, a iniciativa de implantar um curso Normal em Franca partiu de esforços e

interesses da elite francana que percebeu a necessidade de formar quadros profissionais

competentes para atuar na formação da crescente população que migrava do campo rumo à

cidade e carecia de instrução fundamental para compreender e adaptar ao sistema produtivo

que passou a enfrentar.

Não haviam professores normalistas qualificados em número suficiente para enfrentar

a empreitada liberal de trazer o progresso ao país via educação da grande massa de iletrados

aqui existentes. Ciente da situação o professor Homero Alves escreveu em dois de março de

1941, no Jornal Comércio da Franca:

Page 111: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

109

Sou testemunha da carencia de professores em nossa terra e quase que

poderei afirmar sem mêdo de erro ou exagero que antes de 1928 não existia

na comarca um único professor normalista filho de Franca. Poucos eram os

normalistas, todos vindos de outras cidades. As Escolas primárias, na sua

quasi totalidade, eram regidas por professores leigos que merecem a nossa

estima pelo esforço e dedicação dispendidos não obstante a sua visivel falta

de preparo pedagogico. Eram esses pobres servidores das Comarcas mal

pagos e sem a menor garantia. Ser professor público era avisinhar se da

miseria, sofrendo quase sempre o despreso social, relegados para a classe

dos párias, a todos e a tudo sujeitos. (COMÉRCIO DA FRANCA, 1941,

p. 3).

Essa descrição da situação precária em que vivia os professores leigos não condiz, em

nada, com a situação das normalistas que, por serem filhas da elite, já traziam consigo de

valorização e status quo que derivavam do grupo social do qual originavam. Essa condição foi

transferida para o papel da normalista e, posteriormente, para o professor formado que, como

veremos, encontrou um lugar de prestígio na sociedade brasileira na primeira metade do

século XX.

A Escritura de Constituição da Sociedade Civil “Escola Normal Livre de Franca”,

atenta-nos ao fato de que personalidades importantes, inclusive o Patrono da escola,

contribuíram para a fundação da Escola Normal Livre de Franca, inclusive financeiramente,

pois o seu retorno, em formação de mão-de-obra preparada para o mercado de trabalho

industrial, via formação de professores era certo. No artigo 1º da escritura lemos:

Sob a denominação de Escola Normal Livre de Franca, Estado de S. Paulo,

onde tem sua sede, uma sociedade civil de caráter não econômico, cuja

duração é por prazo indeterminado, com o fim de ministrar instrução

secundária a pessoas de ambos os sexos, no regime de externato, nos termos

da lei n. 2.269 de 31 de Dezembro de 1927. [...] Parágrafo único. – Serão no

estatuto admitidos com o título de sócios beneméritos todos aqueles que

fizeram doações ou importantes contribuições para a sociedade o houverem

prestado a esta serviços notáveis, dependendo a concessão desse título da

aprovação da Assembléia dos sócios effectivos. (DIÁRIO OFICIAL,

1930).

Os membros da sociedade civil “Escola Normal Livre de Franca” fizeram as seguintes

subscrições ou contribuições para pôr em funcionamento o externato:

A lista de subscrições atingiu no mesmo dia a quantia de 12:600$000, e foi

subscrita por Cel. André Martins de Andrade, 2:000$000, Major Torquato

Caleiro, 2:000$000; Cel. Francisco de Andrade Junqueira, 2:000$000;

Joaquim de Paula Costa, 1:000$000; Azarias Martins Ferreira, 1:000$000;

Hygino de Oliveira Caleiro, 1:000$000; Bernardo Avelino de Andrade,

500$000; dr. Ricardo Pinho, 500$000, dr. João Marciano de Almeida,

Page 112: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

110

200$000; prof. Olívio Peixoto, 200$000; Luiz de Lima, 200$000; Antonio

Constantino, 200$000; dr. Walfrido Maciel, 200$000; dr. Roberto Tedesco,

200$000; dr. Jonas Ribeiro, 200$0000; Dolor de Oliveira Dias, 200$000; dr.

Américo M. Castro, 200$000; Benevides Barbosa Sandoval, 200$000; Plínio

Vilela de Andrade, 200$000 e Nilo Pirro, 200$000. (COMÉRCIO DA

FRANCA, 1941, p. 3).

Vale salientar que até a instituição passar para a administração estadual, o curso

Normal cobrava uma taxa de seus alunos.

Na Secretaria da Escola achava-se fixada a lista das contribuições e taxas

devidas para cada aluno:

Inscrição 50$000

Matricula 100$000

Exames finais 150$000

Mensalidades, 9 meses a 40$ 360$000

Soma 660$000

96 alunos, 10 masculinos e 86 femininos, chegaram ao fim do ano, sendo a

renda prevista para esse primeiro ano de 43:560$000, quantia que deveria,

como o fez, cobrir todas as despesas, visto como fundo de patrimônio estava

todo distribuído para a construção do atual Prédio do Ginásio e compra do

material didático, carteiras, etc. (COMÉRCIO DA FRANCA, 1941, p.

3).

Desta forma, o curso Normal tornava-se um curso de elite, pois somente quem tinha

condições financeiras para cobrir tais despesas podia matricular-se na Escola Normal Livre de

Franca. No entanto, a escola previa seis lugares gratuitos a alunas com excelente rendimento

escolar:

De conformidade com a chamada de matrícula publicada pela imprensa local

são matriculados neste ano na escola 127 alunos, sendo 84 no 2º ano e 43 no

1º. Destes 127 alunos a escola concede 6 lugares gratuitos a alunas

reconhecidamente pobres e que tivessem se distinguido em seus estudos.

(COMÉRCIO DA FRANCA, 1941, p. 5).

Difícil, porém, era encontrar “alunas reconhecidamente pobres”, que tivessem

conseguido driblar todas as agruras do sistema e chegado ao tão almejado curso. De qualquer

forma, em 1930 a Escola Normal Livre de Franca formou sua primeira turma de normalistas.

No ano de 1929 ocorreu uma primeira tentativa de abrir, anexo ao Colégio Nossa

Senhora de Lourdes, uma Escola Normal Livre dirigida pelas irmãs de São José. Todavia, a

empreitada não logrou êxito devido a concorrência com a instituição pública que foi pioneira

na introdução do curso Normal. Assim, o Colégio de Lourdes fechou o curso Normal em 1930

e reabriu-o novamente em 1945, funcionando até a extinção do Colégio, em 1967.

Page 113: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

111

Isso explica porque duas de nossas colaboradoras, cuja data de ingresso no curso

Normal coincidiu com a extinção do mesmo no Colégio de Lourdes, migraram para o colégio

Torquato Caleiro a fim de completar seus estudos. D. Edna explicou:

Aí depois eu fiz o Ginásio, até o Ginásio. Na minha época não havia o curso

Normal no Colégio de Lourdes. Aí eu fui para o Torquato Caleiro. [...]

quarenta e quatro... [data do ingresso] porque eu me formei em quarenta e

sete. Foi isso mesmo. [...] [Depois o curso Normal] Voltou. Voltou. Aliás

depois eu tive uma irmã que formou aí [no Colégio de Lourdes].

(ARQUIVO 15, p. 5).

De acordo com as datas, tanto D. Edna como D. Leila, que nasceram no mesmo ano,

entraram no Magistério no ano de 1944 e só no ano seguinte o Normal reabriria suas portas no

Colégio de Lourdes. Como a D. Leila já havia concluído, boa parte de seus estudos fora da

cidade, por motivo de mudança, em um colégio público, ao voltar optou por concluir seus

estudos na Escola Normal Oficial de Franca. Todas as outras colaboradoras com idade para

concluírem os estudos no Colégio de caráter confessional, incluindo o Normal, o fizeram, à

revelia das despesas envolvidas.

Isso torna evidente o caráter elitista atribuído à formação da normalista e a

importância que ainda se dava ao ensino religioso há mais de meio século após a proclamação

da República. Embora os ideais republicanos liberais defendessem a laicidade do ensino, a

elite católica presa à tradição sustentou a existência dos colégios confessionais, concretizando

o dualismo da educação brasileira.

O glamour da profissão estava diretamente relacionado a quem o ocupava – as filhas

da elite. Almeida (2005, p. 116) explicou:

Essas oligarquias, símbolo de um país agrário e atrasado, que tinham como

base social os latifundiários, representados em São Paulo e Minas Gerais

pelos denominados barões do café, são deslocadas do poder em

conseqüência da crise econômica que se desencadearia no setor cafeeiro.

Isso vai promover mudanças na organização social, e as filhas dos oligarcas

falidos pela quebra financeira, pressionadas pela urgência econômica,

também irão sentar-se nos bancos escolares da Escola Normal já ocupados

pelas jovens filhas de comerciantes, profissionais liberais e pequenos

fazendeiros. (ALMEIDA, 2005, p. 116).

Exatamente esse é o perfil da rede das colaboradoras que participaram deste estudo e

representam o que, de fato, era o grupo das normalistas: moças ricas, bem criadas, originárias

de famílias tradicionais ou oriundas das camadas emergentes da sociedade, geralmente

Page 114: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

112

formada por imigrantes, profissionais liberais e comerciantes que aspiravam ascensão social

via educação.

Assim, o que conferia status a profissão professor era quem, ou seja, que tipo de

pessoa podia obter tal educação e não o contrário, tanto que a partir da década de 1950, com a

introdução do curso Normal noturno para alunos trabalhadores e paulatinamente à

democratização do ensino, houve a decadência e a desvalorização da profissão. Uma das

colaboradoras comenta acertadamente o processo de ascensão e queda do papel da normalista:

O professor era super respeitado. O professor era visto como uma pessoa

culta, bem intencionado, colaborador das famílias e ele tinha um salário

digno, que dava pra ele vestir razoavelmente, calçar, ter seus passeios,

adquirir, investir em cultura nele, e era respeitado por tudo, por pais, por

autoridades, entendeu? Um professor não podia ir dar aula sem um cabelo,

com um cabelo desarrumado, com um lenço na cabeça, com um vestido de

alça, com um vestido sem costa, com uma saia, com roupa curta. Nada disso.

Era uma coisa que era assim, exemplo. De vestir, de postura, de ética. Não se

falava em ética nesse tempo não, mas se vivia. Vivia-se. [...] É. Daí quando,

deixa ver que começou essa decadência. Começou com a desvalorização

assim... quando começou a escola para todos, isso daí também contribuiu um

pouco porque começou a entrar no magistério assim, às vezes pessoas que

não tinham uma postura, uma dignidade pra tratar diante de uma sala de

aula. Como é que eu vou falar isso? Não é bem assim que eu quero falar.

Quando abriu para todos, perdeu essa história do... era seletivo, vamos dizer

assim. [...] Quem tinha mais conhecimento... aí abriu a escola para todos e

passava a ter promoção direta assim, começou a chegar um pessoal assim,

mais sem capacidade, vamos dizer assim. Não sei se é assim que eu falo. E a

desvalorização dos nossos governos em termos do nosso salário ter aquele

crescimento, fez com que a procura fosse mais por pessoas que não, mais é

isso que eu quero falar, que a procura foi feita pelos menos capazes,

daqueles que não davam certo em outras coisas, optavam pelo magistério, foi

assim que eu percebi. E que foram assim os nossos governos, do tempo do

Mário Covas principalmente pra cá, que até o Montoro foi um governo

muito bom que valorizou o professor, do Mário Covas pra cá então, o

professor partiu pra rua com o holerite na mão. Eu me lembro direitinho

disso. Eu me neguei a sair. Saíram todos nas praças, arrumaram um galho de

árvore seco e penduraram o xerox de holerite de todo mundo. Eu acho que o

professor nesse dia, ele perdeu a dignidade. Assim, querendo ser valorizado.

Eu penso assim. Mas eu acredito que os nossos governantes, eles têm muita

culpa nisso aí, sabe por quê? Se desmotivou demais. O ganho insuficiente

pra vestir, pra calçar, pra comer, pra estudar os próprios filhos... porque o

professor ensina os filhos dos outros não pode dar uma faculdade pro filho

dele você entendeu? Só se ele passar em uma faculdade pública. E deixa ver

o que mais que eu vou te falar que eu acho que contribuiu. A mudança do

mundo, as próprias sabe... essa mudança do mundo que revolucionou tudo,

que o respeito em todos os setores assim deixou de existir. Deixou de existir

nas famílias e chegou esse aluno pro professor despreparado e ele com

vontade de não ser também um bom aluno, não é? Eu fico triste hoje de ver

assim, bate em professor em sala de aula, o ponto que nós chegamos, gente.

Olha esses professores que citei pra vocês, nossa senhora. Sabe, eles iam dar

aula de terno e gravata bem, eles davam aula de terno e de gravata! Meu

Page 115: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

113

esposo como delegado de polícia, de terno e de gravata. Hoje bem, o povo

anda de camisa, revolve, não sei o que... então, final dos tempos que nós

mesmo fizemos. Quem faz os tempos? A humanidade. Não é? Quem ta

destruindo? Nós mesmos. [...] Mas o professor não tinha dinheiro pra

investir na cultura e no conhecimento dele. Como é que você quer que ele

esteja atualizado? [...] Eu trabalhava no Caetano Petraglia, eu trabalhava lá.

A minha vida era lá, a minha vida era lá, o meu corpo, o meu coração, a

minha cabeça inteira lá. Hoje os professores infelizmente... eu tenho pena,

não sei, eles são uns heróis. Eles conseguem trabalhar em quatro, cinco

escolas. Porque inclui do Estado, Prefeitura, municipal e ainda precisa

estudar... eu não sei, é muito complicado. [...] Eu acredito que quando eu

converso assim com uns mais próximos, eu só escuto desânimo deles, só

escuto desânimo. (ARQUIVO 27, p. 18-20, grifo nosso).

Esse fragmento, embora extenso é muito rico em informações. Primeiramente a

colaboradora descreveu de forma nítida o perfil da professora: “pessoa culta, bem

intencionado, colaborador das famílias e ele tinha um salário digno”.

Essa era a imagem que a sociedade tinha do professor. Em outro depoimento uma

recordadora comentou a posição do professor na sociedade: “Porque antigamente era juiz,

padre e professor né, hoje infelizmente não é mais.” E admite que isso influenciou em sua

escolha: “Porque antigamente o professor era respeitado meu bem. Então tudo isso, devido

minha formação parece que colaborou para que eu fosse professora, certo?” (ARQUIVO 15,

p. 13).

O motivo da decadência da profissão é associado no fragmento à democratização do

ensino e, consequentemente, do curso Normal: “quando começou a escola para todos [...]

começou entrar no magistério [...] pessoas que não tinham uma postura, uma dignidade pra

tratar diante da sala de aula”. Essa observação é interessante porque mostra-nos o valor do

currículo oculto apreendido durante toda a educação formal e informal que a elite recebia para

ter a „postura adequada‟ para lidar com os alunos. Com o fim do exame de Admissão

implantado pela Lei 5692/71, “abriu a escola para todos e passava a ter promoção direta

assim, começou a chegar um pessoal [...] mais sem capacidade”, ou melhor, os pobres, filhos

dos trabalhadores. Estes “menos capazes, daqueles que não davam certo em outras coisas,

optavam pelo magistério”. A profissão se pauperizou, se proletarizou na medida em que

começou a afluir para ela parte da população até então excluída dos estudos.

Enquanto ser normalista era profissão de status, apenas uma elite escolhida a dedo se

formava. Quando o curso Normal deixou de ser elevado à categoria de formação superior, e as

professoras formadas para ganharem mais, precisaram fazer a Pedagogia que lhes conferia um

título acadêmico, o status da profissão acabou. O Normal, igualado ao nível do 2º grau,

começou a ser procurado por trabalhadores ansiosos de buscarem melhores condições

Page 116: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

114

econômicas via educação profissional. No entanto, com o aumento de mão-de-obra

qualificada para lecionar nas primeiras séries do ensino fundamental, a tendência foi a

promoção de uma política de desvalorização dos salários, o que causou greves históricas na

década de 80, como relatou a colaboradora: “o professor partiu para a rua com o holerite na

mão. Eu me lembro direitinho disso. Eu me neguei a sair. Saíram todos nas praças [...]. Eu

acho que o professor nesse dia, ele perdeu a dignidade.”

Outra característica do professor, “era assim, exemplo de vestir, de postura, de ética.

Não se falava em ética nesse tempo não, mas se vivia. Vivia-se”, reforçou. A idéia do

professor modelo é um tópico frasal que se repete em diferentes entrevistas. Defere-se desse

fato que, o professor educava pelo modelo mais do que pela aula.

O currículo oculto entrava em vigor nos aspectos sutis de sua postura, arrumação e

tom de voz. Após descrever o figurino impróprio do professor de hoje, a colaboradora contou:

“Olha esses professores que citei para vocês, nossa senhora! Sabe, eles iam dar aula de terno e

gravata bem, eles davam aula de terno e gravata!”

Outra recordadora descreve a vestimenta e postura das normalistas mais

especificamente:

Olha, ela sempre assim, principalmente o traje da professora. Então era

parece que padronizado: sapato de professora, aqueles sapatos que usava na

época, com aqueles saltos solo né; a roupa assim, sempre muito bem,

estavam sempre muito bem vestidos né. Então ela se distinguia na sua

postura né, e sempre com as roupas muito bem assim, não sei se eu vou falar

“decentes” ou qualquer coisa assim [...] Se era o termo né. [...] Tinha aquela

preocupação né. Por exemplo, você vê que naquela época ninguém usava

calça comprida e nada, era saia né, uma blusa, uma blusa bem recatada, de

manga. Aquela postura né, de professora. Que eu também cheguei a pegar

essa fase também como professora. [...] Então a gente usava aquele sapato,

sapato né, fechadinho, característico né. Então tinha... e os trajes também,

saia bem mais, usava tudo mais comprido e tudo. Então eu acho que era uma

maneira mais também, bom, era da época né. Não sei se era pra, não tinha

nada assim que, era da época. E os professores eram assim muito respeitados

né, que às vezes o aluno passava na rua, via a professora, até ia mais longe,

desviava, sempre o receio, o respeito pelos professor. Embora né... era.

(ARQUIVO 30, p. 7).

As roupas deveriam ser “decentes”, para demonstrar a postura de recato da mulher,

afinal a normalista servia de exemplo ou modelo para inúmeras moças que constituiriam

família no futuro. As meninas, por sua vez, observavam com expectativa os trajes das

professoras em quem se espelhavam:

Page 117: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

115

Era roupa da época né. E a gente acostumada a só conviver com as freiras, a

gente adorava ver as professoras se apresentarem, cada dia elas iam com

uma roupa diferente. A gente então dava palpite: “hoje a senhora ta mais

chique...”, entendeu? Então, era a roupa da época. [...] Eu não lembro direito

como é que era o tipo de roupa, mas eu lembro que elas eram muito

alinhadas, sabe. (ARQUIVO 11, p. 7).

Não era só a vestimenta, mas a postura de integridade, a delicadeza nos gestos, a

suavidade da voz, que faziam da normalista um exemplo. É muito comum as colaboradoras

compararem tal postura com a ética, conceito muito propagado nos nossos dias.

Aliás Cristina, eu trabalho com ética profissional aí na universidade. E eu

insisto muito com meus alunos que professor é exemplo. Não adianta você

falar em justiça, você falar da verdade, se você é injusta, se você às vezes faz

uma malandragem também... a humildade do professor. Nunca um aluno

perguntar uma coisa pra você, que você não saiba, e você queira tapear esse

aluno. Não, seja honesto: “olha bem, eu não sei...”, ou então “eu já vi isso,

mas esqueci. Vamos pesquisar, vamos procurar?”. Nunca querer tapear o

aluno. Isto é uma questão de ética, certo? E não adianta você falar que a

pessoa tem que ser assim, tem que ser desse jeito e você proceder errado,

certo? Horário, por exemplo, a gente insiste no horário com os alunos, agora

eu devo chegar atrasada na sala de aula? Nunca! Nunca. E graças à Deus

Cristina, nunca cheguei atrasada, sabe bem? Aliás eu digo uma coisa pra

você, que pra mim, não precisa de sinal nenhum em escola. É oito horas que

eu tenho que estar lá? Oito horas que eu estarei lá. Vai até as dez? Termino a

minha aula às dez horas. E eu falo isso pra eles, que todo o profissional tem

que obedecer o horário. Porque afinal de contas, se ele não cumpre com o

horário, ele está dando exemplo para os alunos, exemplo para outras pessoas.

Então isso aí é uma questão de ética profissional, viu? (ARQUIVO 21, p.

3-4).

Ressaltando a importância do exemplo que o educador deve ser para os alunos, a

colaboradora deixou claro que até hoje se apega aos padrões morais de obediência, verdade,

honestidade, justiça e disciplina. “A gente insiste no horário com os alunos, agora eu devo

chegar atrasada na sala de aula? Nunca! Nunca. E graças a Deus Cristina, eu nunca cheguei

atrasada.” Esse é um aprendizado importante que os alunos, futuros trabalhadores devem ter:

serem diligentes no serviço, cumpridores do horário, disciplinados. “É oito horas que eu tenho

que estar lá [na faculdade]? Oito horas que eu estarei lá. Vai até as dez? Termino a minha aula

às dez horas. E eu falo isso pra eles, que todo profissional tem que obedecer o horário.” É

notável no discurso da normalista a influência do currículo oculto em sua prática profissional.

Conceitos atualmente em pauta como a ética são apropriados e transformados, revestidos de

um sentido moral fortemente influenciado pela educação e cultura social recebida durante sua

formação.

Page 118: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

116

O exemplo de algumas professoras do curso era eleito pelas normalistas para ser

copiado quando fossem exercer a profissão:

Olha, eu tive uma professora no pré-Normal lá, em Piracicaba que se

chamava dona Olga Milhomens. Ela tinha obtido assim, acho que o primeiro

lugar no concurso, ela era uma sumidade, era uma professora de português

mais... e eu a admirava muito sabe. Era uma professora que sabia e que sabia

transmitir. Então essa professora me marcou, marcou muito. Agora depois,

no Normal mesmo, eu tive ótimos professores aqui: seu Júlio Delia, foi

professor; dona Vanda Valério; dona... tive professores muito bons. Então eu

acho que cada um. [...] Contribui de uma maneira. (ARQUIVO 30, p.13).

É possível concluir que tanto o status da profissão, que de certa maneira, já era

usufruído pelas aspirantes normalistas, como o referencial de modelo que tinham, foram

grandes atrativos para escolherem a carreira. Vale lembrar, porém, que nas primeiras décadas

do século XX, o curso Normal foi apresentado como única opção de educação profissional

feminina. Era quase que o destino natural das moças que desejavam continuar os estudos após

completarem o Ginásio.

Associar a mulher ao papel de educadora nata, com o dom divino de educar, por ser

também mãe, fez dela a professora primária por excelência. Quem melhor que a mulher para

compreender e educar as crianças? Foi a partir desse pensamento que se difundiu a ideia de

que a profissão – professor era essencialmente feminina e que a normalista se tornou uma

questão de gênero. (ALMEIDA 2005, p. 114) explicou:

Os movimentos pela educação feminina seriam reforçados principalmente

pelo Positivismo. Seus seguidores admitiam a inferioridade orgânica e

intelectual das mulheres, porém, as consideravam superiores do ponto de

vista moral, o que as fazia merecedoras da abnegada missão de educar as

crianças, rompendo assim com as idéias anteriores de destinar à parcela

feminina apenas a função de procriar, embora mantivessem a estreita relação

professora-mãe. (ALMEIDA 2005, p. 114, grifo da autora).

Tal visão foi registrada na Poliantéa Comemorativa dos 50 anos do Colégio Nossa

Senhora de Lourdes, onde o Sr Altino Arantes, casado com uma ex-aluna do colégio, presta

uma homenagem à instituição:

[...] pode-se afirmar, sem lisonja e sem exagero, que o Colégio Nossa

Senhora de Lourdes conferiu, [...] um legítimo primado moral e intelectual.

Pois, para ali correram, como para um centro de benéfica irradiação, em

número sempre crescente, alunas [...] E todas elas daí partiram afinal,

terminado o curso, em alegres e formosas revoadas, para fundar lares e criar

novas famílias, comprovando por toda a parte, pelas suas virtudes e pela

Page 119: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

117

integridade do seu procedimento, a beleza, a força e a prodigiosa

fecundidade da verdadeira educação católica. (POLIANTÉA, 1938, rolo

28).

A função do Colégio de natureza confessional era dar a “verdadeira educação católica”

para as moças constituírem suas famílias dentro dos preceitos cristãos. Era do pensamento

religioso que também se originava a ideia de seguir a vocação e de ter no magistério uma

missão e não uma profissão. Uma recordadora comentou:

Acho que ser professor e gostar da profissão, eu acho que você tem uma

coisa sobrenatural que te ajuda a ver, olhar o aluno e conhecer o aluno e

tratar cada um assim, do seu jeito, muito importante. Eu acho que o

professor, a gente teve muito disso. E no olhar, naquela convivência, aquela

coisa, a gente sabia lidar. E a gente observava muito né. Não deixava as

coisas passarem assim. Então a gente conhecia, enquanto ia conhecendo

cada um né. E fazendo o que for preciso, o melhor pra cada um deles.

(ARQUIVO 32, p. 23).

Nota-se que o termo vocação em si não aparece, mas a ideia sim: “Acho que você tem

uma coisa sobrenatural”, o que poderíamos traduzir em outras palavras por dom, “que te ajuda

a ver, olhar o aluno, conhecer o aluno e tratar cada um assim, do seu jeito”. Para isso era

preciso antes de tudo, gostar da profissão.

Em outra entrevista com a mesmo colaboradora, o assunto voltou à pauta quando

comentávamos sobre a importância do modelo do professor para a educação integral do aluno.

A essa altura da entrevista a colaboradora fez o seguinte comentário:

Então, essa postura numa sala de aula, a maneira de falar, a maneira de tratar

cada um, porque o tom de voz era muito importante né, pro aluno entender...

então eu falo assim que o professor, ele tem que ter o dom sabe, porque o, a

escola, o aluno, é como se fosse assim um sacerdócio, ou alguma coisa assim

muito sabe, que você precisa ir lá e deixar, e se dedicar ali de corpo e alma

em uma sala de aula. Não é fácil, mas é necessário. Então o, naquele

momento, é assim, procurar, por exemplo, usar conforme os termos. Sempre

tratar o aluno com educação, não usar assim termos que possam ofender, ele

vai falar a mesma coisa, o que você fala, ele vai falar. (ARQUIVO 43, p.

10-11).

O professor precisa “ter o dom sabe, porque o, a escola, o aluno, é como se fosse um

sacerdócio, ou alguma coisa assim muito sabe que você precisa ir lá e deixar, e se dedicar de

corpo e alma em uma sala de aula”. É isso. A normalista devia dedicar-se à escola como se

dedicava ao lar. Os relatos demonstram como essas mulheres, de fato, dedicaram suas vidas à

Page 120: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

118

tarefa de ensinar, pois incorporaram em suas mentes isso como um dever sagrado, parecido à

maternidade.

Bom, eu toda a vida pensei em ser professora. Toda a vida pensei, certo?

Em primeiro lugar, aqui em Franca não tinha outro curso, era só o magistério

mesmo. Quer dizer, foi uma coisa assim, um impulso mesmo que eu tive.

Mas toda a vida eu pensei em ser professora, e... eu me realizei Cristina, eu

sou sincera em dizer pra você, viu bem. (ARQUIVO 21, p. 7).

Sem dúvida, a formação recebida no lar, o status que a profissão auferia às

normalistas, a crença no dom e o direcionamento do curso Normal para o gênero feminino

contribuíram para a escolha de nossas colaboradoras.

Uma frase interessante, inúmeras vezes repetida nas entrevistas de D. Augusta é: “[...]

eu tenho a didática na alma”. (ARQUIVO 6, p. 7). Ela traduz a ideia do desejo nato de ensinar

– que é parte intrínseca da alma, do grego psy – khé, que significa vida – podendo assim

concluir que educar e viver são sinônimos na vida desta categoria social e profissional aqui

estudada.

A maioria de nossas colaboradoras cursou o Normal sob a vigência da Lei Orgânica do

Magistério de 1946. Em seu decreto 8.530, de 2 de janeiro de 1946, a lei institucionalizava

como objetivo do ensino Normal:

1. Prover a formação do pessoal docente necessário às escolas primárias;

2. Habilitar administradores escolares destinados às mesmas escolas;

3. Desenvolver e propagar os conhecimentos e técnicas relativas à educação

da infância.

Logo na descrição da primeira finalidade do curso Normal, fica evidente a

preocupação do governo em promover formação para professores em número suficiente para

suprir a demanda crescente de cargos em ensino primário que, até então, era em grande parte

ocupado por professores não qualificados ou com pouca instrução.

Segundo o quadro abaixo, podemos observar a situação precária do funcionamento das

escolas primárias através da qualificação dos professores que, apesar da Lei Orgânica de

1946, não conseguiu eliminar o professor leigo.

Page 121: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

119

TABELA 1: Situação da qualificação do magistério primário no Brasil entre 1940 e 1957

Anos Percentagem Números índices

Normalistas Não-normalistas Normalistas Não-

normalistas

1940

1945

1950

1955

1957

60

62

52

52

53

40

38

48

48

47

100

118

137

186

221

100

110

192

264

297

Fonte: Maria José Garcia Werebe, Grandezas e Misérias do Ensino Brasileiro.

O segundo item que previa a formação de administradores escolares promoveu a

implantação dos Institutos de Educação. Estes ofereciam os cursos de 1º ciclo, com duração

de quatro anos, para a formação de regentes de ensino primário, conhecido como Escolas

Normais Regionais e cursos de 2º ciclo, com duração de três anos para formação de

professores primários em Escolas Normais. (ROMANELLI, 1978).

Foi nesse período, de 1953 a 1976, que a Escola Normal de Franca tornou-se Instituto

Estadual de Educação Torquato Caleiro (IEETC) e passou a oferecer o Curso Normal além de

cursos de administração escolar para professores que já haviam completado o magistério. D.

Leila conta que fez cursos no IEETC após ter concluído o magistério, quando já era

professora.

Rodei muito. Fui pra Patrocínio Paulista. E em Patrocínio Paulista fiquei um

ano... aí abriu o curso de aperfeiçoamento. Aqui no IETC abriu o curso de

aperfeiçoamento. Aí eles ofereceram assim pra quem fizesse assim o curso

de aperfeiçoamento, pros professores já efetivos, que a gente já era efetiva

nessa época né, os primeiros colocados, eu não sei se era três ou cinco, uma

coisa assim... os primeiros colocados ficava comissionado. Então, você já

viu, a gente estudou bastante e eu consegui ficar comissionado. [...] Curso

comissionado eu fiquei aqui só pra estudar, não precisava lecionar. [...] É.

Eu não lecionei naquele ano e fiquei aqui só pra estudar. Estudava,

freqüentava a escola né, aqui no IETC. [...] Fazendo, eu fiz, era um ano o

aperfeiçoamento. E a gente conseguia, ganhava pontos também né. E com

isso eu consegui mais pontos, então no ano seguinte, já consegui. Depois que

eu terminei, já entrei em remoção e já vim pra Franca. [...] Aí eu vim pro

“Jerônimo Barbosa”, aquela escola ali em cima e fiquei. Acho que um ano

depois ou dois anos a gente podia fazer o curso... aí abria o curso de

administradores. Administrador escolar e já era quase que pra formação,

pedagogia mesmo, sabe? E eu fui tentar outra vez. Aí parece que era só três

vagas pra comissionado e eu consegui também. Aí fiquei dois anos, eram

dois anos o curso. [...] Era aqui no IETC. [...] E depois voltei pra lecionar e,

e... aí surgiu que o curso de administradores valia pra pedagogia. Então

podia entrar no terceiro ano de pedagogia. (ARQUIVO 30, p. 21-22).

Page 122: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

120

Neste fragmento a colaboradora contou que fez cursos de administração escolar no

Instituto Estadual de Educação “Torquato Caleiro”, após ter concluído o curso Normal e já

estar lecionando. De fato, o Estado de São Paulo promoveu tais cursos para professores

efetivos de caráter comissionado, em que estes não perdiam nem os pontos de tempo de

serviço, embora ficassem afastados do cargo, nem o salário. Sobre tais cursos, Lourenço Filho

escreveu: “Os cursos extraordinários são organizados, especialmente, para atender a

professores dos Estados, que sejam comissionados pelos respectivos governos, para

especialização, aperfeiçoamento ou continuação dos estudos pedagógicos, em geral.”.

(LOURENÇO FILHO, 2001, p. 27).

Esse curso de administração escolar, segundo a colaboradora, “já era quase [...]

pedagogia mesmo [...] o curso de administradores valia pra pedagogia. Então podia entrar no

terceiro ano de pedagogia”. Isso demonstra-nos quanto a cidade se beneficiou de possuir um

Instituto de Educação que preparava profissionais com a melhor qualificação oferecida pelo

Estado até aquele momento.

Podemos dizer sem exagero, que a formação Normal adquirida nos Institutos de

Educação tinha na época de seu funcionamento, o status de um curso universitário, o que fica

evidente no seguinte comentário que Lourenço Filho fez sobre a mudança da Escola Normal

da capital em Instituto de Educação:

Desaparecida a tradicional escola de preparação do magistério,

transformada, como foi, numa organização inteiramente nova, tanto na

forma como no espírito. Quebrava-se decididamente, o velho padrão francês,

de formação do magistério no ramo dos estudos primários. Destruíam-se as

divisões estanques características desse padrão, entre o ensino normal e o

secundário geral, isto é, entre a habilitação inicial, requerida para os cursos

do magistério, e o curso do ginásio, exigido para matrícula nas escolas

superiores. Eleva-se a formação do mestre, mesmo primário, ao nível dos

estudos universitários. (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 34).

Esse fator em muito contribuiu para manter o status da profissão-professor por um

bom tempo, até ser substituída pelos cursos superiores de Pedagogia que, com a Lei 5692/71,

atrairia boa parte das professoras primárias em exercício que buscavam melhorar seus

rendimentos via qualificação. Como já comentado no Capítulo 1, o artigo 39 da Lei 5692/71

estipulava que a remuneração do professor deveria ser de acordo com sua formação, e não

segundo o grau de ensino em que atuasse, o que motivou nossas colaboradoras a buscarem o

diploma de nível superior, a saber, a Pedagogia. O Instituto de Educação Caetano de Campos

foi incorporado à Universidade de São Paulo, criada em 1934. No ano de 1938, o Instituto de

Page 123: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

121

Educação foi suprimido e seus professores, finalmente encaminhados para a seção de

Educação da Faculdade de Filosofia da USP. Essa mudança elevava o curso Normal à

categoria de curso superior, que mais tarde seria denominado Pedagogia. (LOURENÇO

FILHO, 2001, p. 22).

É digno de nota que é essa mesma lei que põe fim ao Instituto Estadual de Educação

(IEETC) que em 1976, com a reorganização da rede física de ensino de Franca, transformou-

se Escola Estadual Torquato Caleiro (EETC) e passou a atender apenas o ensino médio,

embora mantivesse o curso de Magistério, porém, em nível de segundo grau. Era o fim do

estatuto que conferia ao professor primário status.

Embora as recordadoras tivessem frequentado colégios, tanto de caráter laico como

confessional durante o curso Normal, ficou evidente em seus depoimentos que havia pouca

diferença no currículo escolar e oculto aplicado nas diferentes instituições de ensino.

As colaboradoras que foram obrigadas a transferir do Colégio de Lourdes para uma

Escola Normal Pública durante o fechamento do curso na instituição religiosa revelam não

terem sentido tanta diferença quanto ao rigor e o ensino.

Não. Não senti não. Porque aqui no colégio na hora da aula é aula normal,

nada de religião. [...] Bom, Colégio de Lourdes um pouco mais rigoroso,

mas minha filha, na minha época no IETC também a coisa era bastante

rigorosa, certo? Não posso dizer pra você que era a mesma coisa, mas lá a

coisa era bem rigorosa também viu. [...] Bem, vamos usar a expressão:

vigiada, controlada. Certo? Nós tínhamos aulas de educação física, a gente

tinha aula de, de desenho... tudo isso, mas tudo dentro das normas, nada de

exagero. (ARQUIVO 15, p. 8-9).

No Colégio de Lourdes havia a hora de se dedicar aos cultos religiosos, mas como

Dona Edna explicou “no Colégio, na hora de aula, é aula normal, nada de religião”. Por isso

explica que não sentiu muita diferença ao transferir de uma instituição para outra.

Outro aspecto que não causava tanta estranheza nas meninas que mudaram de

instituição de ensino, é que muitos dos professores leigos que lecionavam no Colégio de

Lourdes eram os mesmos que davam suas aulas na Escola Normal Livre de Franca, fundada

em 1928.

Em visita de inspeção a então fundada Escola Normal Livre de Franca, o professor

Ataliba de Oliveira, Inspetor das Normais do Estado, pôde constatar que a instituição não

deixava a desejar em nada, aos modelos educacionais estipulados para a época:

Page 124: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

122

Na qualidade de Inspetor de Escolas Normais Livres, visitei esta casa de

ensino, confiada á direção do sr Torquato Caleiro e á orientação e

fiscalização do sr prof. Luiz Castanho de Almeida. O Estabelecimento, que

está magnificamente instalado em prédio, conta com 127 alunos dos quais 43

frequentam o 1º ano e 84 o 2º que está dividido em 2 classes. [...] A

escrituração dos Livros oficiais está certa e em dia. Reinam ordem e

disciplina na Escola. [...] Assistindo as aulas de geografia, física, aritmetica,

desenho e trabalhos manuaes, tive oportunidade de trocar com os Professores

e com o sr. Inspetor-fiscal ideias sobre a orientação do Ensino que aliás vem

sendo feito com acerto. (COMÉRCIO DA FRANCA, 1941, p. 5).

Falando sobre a formação que obteve D. Leila contou:

[...] quando eu fiz o normal, nossa formação no normal foi muito, muito boa

mesmo, você aprendia a falar, a lecionar, a ensinar o aluno, a postura e

tudo... então a gente já levou essa bagagem com a gente, ninguém foi, nós

levamos essa bagagem junto. Então a gente já saiu da escola normal com

essa bagagem, essa maneira de agir, esse comportamento e tudo. E a gente

foi levando, quando viu você tava transmitindo pro aluno. [...] De uma

maneira natural, sem pensar. [...] Então a nossa formação, nós tivemos

formação pedagógica, formação sociológica, tudo assim muito, muito bom.

E mesmo a prática, a prática foi excelente. Então nós saímos com essa

bagagem toda, que eu acho que os professores têm essa dificuldade porque

eu não sei se eles têm essa bagagem. A nossa bagagem foi excelente, nós

saímos com tudo pronto já, só chegar... você entrava na sala de aula pronto

pra ensinar, pra tudo. A maneira, porque eu acho que isso aí que é o mais

importante. A motivação, a maneira, verificar, ver o aprendizado, a maneira

de... tudo. Até a maneira de escrever, tudo. Então nós fomos preparadas pra

isso, então eu acho que nós não fizemos nada de extraordinário, entendeu?

Eu acho que nós assim, normalistas, nós não fizemos nada de extraordinário,

apenas levamos a nossa bagagem, que adquirimos na escola. (ARQUIVO

43, p. 11).

É curioso que nesse fragmento a colaboradora demonstra como foi incorporado o

currículo oculto em sua prática pedagógica ao dizer: “você aprendia a falar [...] a postura e

tudo [...]”. A normalista estava pronta para sua tarefa: “E a gente foi levando, quando viu,

você tava transmitindo pro aluno [...] de uma maneira natural, sem pensar.” A “bagagem” que

a colaboradora se refere é a formação integral da normalista: “a motivação, a maneira,

verificar, ver o aprendizado, a maneira de... tudo. Até a maneira de escrever, tudo.” E conclui

como se sentia após concluir o curso: “A nossa bagagem foi excelente, nós saímos com tudo

pronto já, só chegar. Você entrava na sala de aula pronto para ensinar, pra tudo”. Na sua

visão, com o preparo recebido durante a formação escolar, a normalista apenas correspondeu

ao que se esperava dela: “Eu acho que assim, nós, normalistas, não fizemos nada de

extraordinário, apenas levamos nossa bagagem, que adquirimos na escola.”

Mas como era que se constituía tal “bagagem” da normalista durante o curso Normal?

Page 125: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

123

O Curso Normal era dividido em pré-Normal, de um ano e o Normal com duração de

dois anos. D. Leila explicou como era dividida a base curricular:

Mas assim eu me lembro muito bem do pré-Normal, porque nós tivemos

professores assim excelentes, sabe. Professores assim concursados, aqueles

que obtinham os primeiros lugares. Então a gente teve uma formação muito,

mas muito boa. Uma base muito... excelente. [...] É. Porque tinha as matérias

todas. Tinha português, matemática né, todas, todas essas matérias, seria

como... depois no Normal é que a gente começou, no primeiro ano é que a

gente começou com as matérias específicas né. (ARQUIVO 30, p. 12).

Além das disciplinas comuns do currículo como Português, Matemática, Geografia,

História, Ciências, Educação Física, havia disciplinas mais específicas, voltadas à educação

da normalista propriamente dita. Dentre estas estavam o Desenho, o Canto Orfeônico [que

como já ressaltado nas entrevistas era muito importante para as normalistas aprenderem os

hinos pátrios], a Caligrafia que ensinava às meninas a “maneira de escrever” (ARQUIVO 43,

p. 11), os Trabalhos Manuais (afinal quem não se tornasse professora certamente seria uma

refinada dona de casa), Higiene (para ensinar os alunos a evitar doenças), Didática e Prática

de Ensino (que envolvia os estágios) e a Psicologia muito citada por todas as recordadoras por

sua utilidade na prática pedagógica.

A metodologia das aulas do curso Normal não diferia muito das demais: são citadas

aulas expositivas e seminários. No caso do curso Normal, parece que as alunas podiam

participar mais das aulas, o que não é citado nos outros níveis de ensino [primário e ginásio]:

É. Então aula expositiva, mas também seminários que nós tínhamos que

preparar e apresentar, certo? Não vou dizer pra você que era aquela aula

expositiva cansativa não. Dava expositiva, mas fazendo perguntas, nos

fazendo colocar exemplos... porque havia bem a participação do aluno, havia

bem. (ARQUIVO 15, p 7-8).

Sobre as aulas de Metodologia ou Prática de Ensino D. Leila comentou:

Porque as matérias do curso né, foram assim muito boas. Dona Olívia, Olívia

Correia, ela também foi professora, foi muito boa. Ela era de metodologia.

Então as aulas práticas que a gente teve muito, foram ótimas, excelentes né.

Então a gente teve uma formação assim não só teórica, mas prática também.

Então as aulas práticas eram muito, muito... eram ótimas. A gente preparava

muito bem as aulas, as colegas assistiam o professor. Então depois havia a

crítica de todo o jeito né, a boa e corrigir alguma coisa também né. Então foi

muito bom. De um modo geral, os professores assim, me deixaram assim

muita coisa boa né, que eu acho que a gente seguiu durante a vida da gente

toda né. (ARQUIVO 30, p. 13).

Page 126: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

124

As aulas práticas envolviam regência, ou seja, as alunas preparavam as aulas e as

ministravam, sendo observadas por suas colegas de classe e seus professores que faziam

críticas e davam sugestões sobre onde podiam melhorar. Tanto colaboradoras que cursaram o

Colégio de Lourdes como as que fizeram a Escola Normal de Franca contaram que faziam o

mesmo tipo de estágio11

. A observação das colegas e da professora ou professor era

minucioso, pois havia didática para tudo:

Até a maneira de a gente escrever na lousa era olhado pelas colegas. A gente

tinha a maneira até de pegar o giz pra escrever na lousa. Por exemplo, não

podia escrever de costas assim pros alunos sabe, tinha que ir escrevendo e o

aluno tava vendo a gente escrever de lado e tudo. Assim, a maneira de usar a

lousa, a maneira de escrever. Então tudo, a postura né, a maneira como você

ia andando na sala, como é que tinha que ser né. [...] Tudo, mas tudo...

aquilo que a gente falava, se estava no português correto, a maneira como

que você fazia a verificação do aprendizado né. Como é que a gente fazia a,

como se diz, a aula em si né. Se estava interessante ou não. (ARQUIVO 30,

p. 14).

A postura da normalista devia ser impecável desde a forma como falava, andava, até

como pegava o giz e escrevia na lousa. Em outra entrevista, quando indagada sobre o que os

professores do curso Normal ressaltavam como importante D. Leila voltou a falar sobre a

postura como algo que ficou muito marcado em sua educação profissional:

Olha, era muito importante assim, a maneira de falar, a tonalidade da voz, a

maneira de escrever. Mesmo, além disso, como é que fala? A postura do

professor dentro da sala de aula. Por exemplo, ficar andando na sala e

falando né, num... Então tinha muitas coisas que não podia ser feito. Então

havia muitas regras mesmo pra gente observar pras aulas. E observar assim,

tinha que ter o conteúdo, tinha que ter uma motivação pra poder dar sua aula,

uma verificação depois. Então acho que era tudo muito bem. Eu falo que eu

fiz um curso Normal excelente, excelente. E que fornecia assim, tudo pra

gente. A maneira como você dirigia os alunos, como fazer. Tonalidade da

voz era muito importante também, né. Não gritar, não falar alto. Não sentar

na cadeira. Cadeira, nem não precisava pôr cadeira, porque o professor não

sentava. Também não precisa, não ficava assim andando não. Ele tinha que

manter um lugar certo, assim, na hora que está escrevendo, falando, tá

sempre. E o principal era assim, preparação da aula, né. Você tinha que estar

bem informada do assunto, procurar fazer, motivar e procurar despertar o

interesse do aluno. (ARQUIVO 32, p. 20-21, grifo nosso).

“O professor não sentava” em sala de aula. “Tinha que manter um lugar certo” e dali

ele explicava e observava os alunos. Essa era a postura desejada. Também nesse fragmento

11

Para detalhes sobre como eram direcionadas as observações das normalistas das aulas das colegas, ver anexo

1, elaborado por Lourenço Filho para as alunas do curso Normal, ministrado por ele no Instituto de Educação de

Piracicaba no ano de 1922. (LOURENÇO FILHO, p.71-72, 2001).

Page 127: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

125

notamos como a aula devia ser dividida: motivação, conteúdo e verificação ou avaliação. A

professora, “tinha que estar bem informada do assunto” para “ motivar e procurar despertar o

interesse do aluno”. No entanto, é difícil entender como era possível verificar realmente se os

alunos estavam motivados em uma época de disciplina rígida em que era vedado qualquer

tipo de manifestação das crianças. O ensino tradicional baseava-se na ideia de que o aluno

pouco ou nada tinha a contribuir para sua própria aprendizagem. Quem definia a educação era

o professor, o detentor do conhecimento. Esse foi o modelo de educação que as normalistas

receberam e, portanto, reproduziram durante sua prática, com poucas transformações. Essa

visão se manifestou na fala da colaboradora que disse que o Normal foi excelente, pois

ensinou “a maneira como você dirigia os alunos, como fazer.” As crianças do ensino primário

deviam ser dirigidas pelo professor na escola e aprender a obediência para serem dirigidas

pelo chefe nas fábricas e darem uma boa produção.

O modelo de regência tripartido contado pela colaboradora era o mesmo adotado no

Magistério quatro décadas mais tarde, o que posso afirmar por experiência própria, pois como

parte da colônia de normalistas, minha memória se funde à da rede aqui estudada, fazendo

conexões inevitáveis. Isso demonstra-nos a sobrevivência do modelo tradicional em cursos

considerados renovadores como foi o CEFAM (Centro Específico de Formação e

Aperfeiçoamento do Magistério) no qual me formei. Também a proposta de estágio em que as

regências eram acompanhadas por alunas e professores que avaliavam o desempenho da

normalista regente foi um modelo levado para o CEFAM por duas normalistas integrantes

dessa rede, que ali atuariam como Diretora e Supervisora de Estágio. D. Cleuza lembrou esse

fato em uma entrevista:

Pesquisadora: E os estágios, no curso Normal. Existia algum tipo de

estágio?

Cleuza Tosi: Lá tinha o Externato São José, que era de primeira a quarta

série e a gente fazia lá.

Pesquisadora: Como é que eram esses estágios?

Cleuza Tosi: Ah, ficava... era dentro do período mesmo, não retornava não.

Pesquisadora: Assistiam e depois davam as aulas.

Cleuza Tosi: Dava as aulas, a gente ia lá pra ver as aulas das professoras.

Muito pouco viu, bem pouco essa parte prática, muito pouco. Era mais a

gente dava aula pra nós mesmos sabe, na própria sala de aula. E aí fazia as

correções, a professora de prática fazia as correções junto com... ficava o

grupo todo avaliando sabe. Naquele tempo era bom, era isso, que hoje não

tem. Porque a sala toda ficava vendo você dar aula.

Pesquisadora: Lá no CEFAM a gente fez isso.

Cleuza Tosi: Fez.

Pesquisadora: Eu lembro que a gente fez isso na Colméia mesmo.

Cleuza Tosi: Fez.

Page 128: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

126

Pesquisadora: Lembra?

Cleuza Tosi: Aí depois todos davam aquela contribuição: “olha, eu acho que

ela poderia ter feito isso quando ela falou aquilo...”. Isso ajudava muito, viu.

Sabe por quê? Hoje muitas pessoas ainda hoje não aceitam correções,

críticas... se acham assim muito poderosas, que não erram. Mas a gente

aprende desde esse tempo que é preciso ouvir as pessoas, que as coisas que

nós não fazemos corretamente nós podemos melhorar né, dessa forma.

(ARQUIVO 12, p. 14-15).

As aulas de Psicologia sempre apareceram na evidência oral como disciplina marcante

do currículo.

Foi a parte da psicologia. Eu tive uma professora que foi de psicologia da

educação que ficou marcada para mim. Então ela sempre falava: “gente, o

ser humano é uma pessoa assim. Porque você sabe que o homem não nasce

homem, ele se torna homem através da educação”. Então ela sempre insistia

com a gente essa parte assim psicológica da pessoa, certo? E isso me

influenciou muito mesmo. (ARQUIVO 21, p. 2).

A importância dada à psicologia na educação talvez se deva ao fato dos estudos na

área evoluírem bastante na passagem do século XIX para o XX e haver uma tendência na

educação de buscar nela, soluções para os problemas no ensino. A visão da professora de

psicologia de que “o homem não nasce homem, ele se torna homem através da educação”,

vinha justificar tanto as instituições educacionais em si como a própria profissão da

normalista. Era ela que se incumbia da tarefa de transformar o homem, de lhe dar a

consciência de si. Essa visão conferia à normalista uma posição privilegiada, de poder, de

transformação. Nesse sentido é possível afirmar que as normalistas, após receberem toda essa

formação, podiam se considerar e eram consideradas pela sociedade como as “guardiãs do

saber”, detentoras do conhecimento. D. Cleuza lembrou-se de seus professores e contou:

[O professor era] O dono do saber, uma pessoa distante da gente porque

tava em cima, assim, feito um palco né. Tinha um tablado alto né, com uma

mesa onde ele ficava. Respeito. Vixe, ninguém podia contestar um professor

não, dono do saber mesmo, e da verdade. Por isso que foi muito perigoso.

Porque pra um aluno às vezes uma verdade que não era verdade ficou como

verdade né. Não só no conhecimento. Hoje não, hoje o aluno pode

conversar, curtir um pouco né. (ARQUIVO 12, p. 15).

Não era à toa que o professor antigamente se posicionava em um tablado: era

necessário reforçar aos alunos a sua posição superior, como “dono do saber mesmo, da

verdade”. Ao comentar sobre a forma como o professor é visto hoje, desabafou:

Page 129: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

127

Eu tive, acho que foi a semana passada, nós fomos conversando, eu

conversando num grupo diferente que não me conhecia e eu falei, “não

quando eu me casei eu não fiquei aqui não, eu fui embora. Meu marido era

professor, eu e ele”. A pessoa falou assim, “vixe!”. Falou isso “vixe!”.

Entende que situação que nós ficamos? E hoje em dia assim, parece

descartável. Em escola pública assim: quando tá interessado, daqui um

pouquinho manda embora. Vai retrocando. (ARQUIVO 42, p. 6-7).

Atualmente, grupos sociais privilegiados com quem a colaboradora convive, pensam

como um casal de professores podia viver com tal salário. É perceptível uma mudança nos

valores sociais e a colaboradora conclui: “hoje em dia [o professor] parece descartável”. Em

nossa sociedade a tecnologia tomou o espaço que antes era do professor. A criança não

precisa mais tanto da escola para “vencer na vida” porque se ela aprender os jogos de

videogame ou da Internet conseguirá adquirir as habilidades básicas para atuar no crescente

mercado de novas tecnologias. O professor, antes tão valorizado, agora tem se tornado

obsoleto.

Na visão da colaboradora, a decadência da profissão e da posição anteriormente

gozada pelas normalistas se encontra no descuido dos governantes:

É. Mas os nossos governantes, eles descuidaram disso aí viu. Professor tinha

que manter aquela posição que ele sempre teve né. Como é que falava? Era o

detentor do saber né. Saber agora, ninguém acredita! Infelizmente. Você vê,

a Edna é mais ou menos mais velha que eu. Bastante tempo, mas da mesma

época. Vivemos juntas lá, e a dela, a educação dela acho que foi mais rígida

que a minha viu. [...] Mais rigorosa, bem mais rigorosa. E eu fico pensando

como é que ela aceita essa mudança porque até aí na faculdade, até hoje os

alunos dela vão pra aprender mesmo, que é a postura dela, que ela ainda

exige. (ARQUIVO 27, p. 20).

O saudosismo do discurso parece-nos inevitável e soa como um apelo: “[O] professor

tinha que manter aquela posição que ele sempre teve né.” E pergunta: “Como é que falava?”.

Respondendo em seguida: “Era o detentor do saber né. Saber agora, ninguém acredita!

Infelizmente!” As conjugações no passado e no presente demonstram a sobriedade da

conclusão da colaboradora.

No entanto, acreditarem que eram detentoras do saber motivou as normalistas agir de

acordo com o que se esperava delas: uma prática pedagógica voltada para inculcação de

valores e posturas apropriadas ao trabalho fabril à clientela que por suas mãos passassem.

É sobre essa prática pedagógica que discutiremos no capítulo que se segue.

Page 130: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

128

CAPÍTULO 3 – A PRÁTICA PEDAGÓGICA DA NORMALISTA E A PRODUÇÃO

DO TRABALHOR NOS BANCOS ESCOLARES

3.1 As Primeiras Experiências Pedagógicas: Adaptações e Transformações

Após concluírem o curso Normal, as jovens normalistas tomavam dois caminhos, que

embora fossem distintos, não se anulavam necessariamente: umas logo se casavam e

abandonavam a carreira por um período ou toda a vida e outras procuravam uma cadeira,

como se chamava na época o cargo de professor.

No caso da rede aqui pesquisada todas as colaboradoras ingressavam na profissão

assim que se formavam. D. Edna nos contou que a melhor aluna da turma saía com cadeira

garantida, como se fosse concursada, para exercer a função de professora primária:

Não. Eu não tinha idéia. Quando eu me formei... aliás, naquela época bem,

quem formava em primeiro lugar no Estado ganhava uma cadeira, e nós

estávamos em cinco disputando o primeiro lugar. Infelizmente eu, na parte

em que nós vamos dizer assim artística... não desenvolveram isso em mim,

então eu pra fazer um desenho, porque nós tínhamos o desenho pedagógico

na lousa. Aí até a professora chegou perto de mim e disse: “ai Edna, melhora

um pouquinho o desenho...”, eu virei pra ela e disse “não tem jeito”. Então

eu perdi a cadeira premio bem, por causa disso... mas logo no ano seguinte

não precisava de concurso, eu já ingressei com a nota do diploma. Então eu

formei em quarenta e sete e em quarenta e oito eu comecei a trabalhar já,

certo. (ARQUIVO 15, p. 14).

As alunas que não conseguiam a “cadeira prêmio”, por não terem aproveitamento

suficiente para lhes conferir o “primeiro lugar no Estado”, ingressavam “com a nota do

diploma”, ou seja, eram classificadas de acordo com seu rendimento durante o curso, o que

lhes garantia uma escola para lecionar.

D. Leila contou como funcionava o concurso por pontos:

Depois eu vim e ia ter um concurso né, de escolha. O concurso era por

pontos, então, pontos do diploma e pontos dos anos que a gente trabalhou,

ganhava pontos né. Então juntou pra poder fazer a classificação. A gente

entrou em concurso pra ingresso né, não tinha prova não, era só por pontos e

como aqui na nossa região quase que não criava escolas, eram poucas as

escolas, e as escolas já estavam com professores e tudo. Então quase que a

minha turma toda né, a gente tinha se formado fazia um ano e pouco, criou-

se uma delegacia de Votuporanga, e lá era sertão naquela época, São José do

Rio Preto e depois pra lá era tudo, era assim sertão. Mas criou a delegacia,

porque era tudo em São José do Rio Preto. Então naquele ano criou a

Page 131: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

129

delegacia de Votuporanga que era mais longe e muitas vagas. Escolas pra

tudo quanto é lado lá né. Então nós optamos na época, tinha que indicar a

região. Então se a gente indicasse Franca, tinha que ser só Franca. Então, e

como aqui não tinha [...] Com poucos pontos... então nós indicamos a região

de Votuporanga. E fomos chamadas pra escolher e tudo né, e só podia

escolher aquela região mesmo. [...] E aí que eu ainda tive sorte assim, eu

falo que eu tive sorte, porque eu não fui muito lá pro sertão não. Porque em

Monte Aprazível, que é uma cidade que fica perto de São José do Rio Preto,

mas já pertencia... uma cidade já bem desenvolvida, sabe? Só que não fiquei

na cidade, fiquei numa escola isolada, que tava perto e eu fui pra essa escola.

(ARQUIVO 30, p. 18-19).

Neste fragmento percebemos que não havia escolas suficientes na Região de Franca

para absorver o número de normalistas formadas pela Escola Normal Oficial. Era preciso que

as normalistas escolhessem outra delegacia de ensino e aos poucos pedissem remoção,

conforme a criação de novos Grupos Escolares e respectivas cadeiras na região de Franca.

Entretanto, para conseguir uma classificação razoável nos concursos por pontos,

juntavam-se os “pontos do diploma e os pontos dos anos que a gente trabalhou”, contou D.

Leila, ou seja, no início de carreira as normalista trabalhavam como substitutas, quase sempre

em escolas rurais.

Muitas viajavam todos os dias para dar aulas, em precárias estradas de terra, ocupando

boa parte do seu tempo com o deslocamento. D. Dulce lembrou como foi o progresso nos

meios de transporte por ela utilizados para este fim: “Eu, na escola de roça eu ia de trole [...]

De trole é uma charrete assim. [...] Depois ia de jipe. Mudou, melhorou.” (ARQUIVO 34, p.

1).

D. Edna contou seu trajeto:

Não, não... morava aqui. Eu pegava o ônibus de manhã que ia pra Ribeirão

Preto. Então quando chegava na fazenda, lá no ponto eu descia e tinha um

aluno me esperando. Eu ia à cavalo. [...] Do ponto da estrada até lá na

fazenda, certo? E dava aula e tal. Aí ficava esperando um determinado

tempo porque aí o ônibus ia de volta a Ribeirão, aí voltava novamente,

pegava o ônibus e vinha pra Franca. [...] Todo o dia. [...] Claro. Não é fácil

não. (ARQUIVO 21, p. 9).

Como as outras colaboradoras, D. Dulce passou por diversas fazendas até transferir-se

para uma escola pública de Franca, criada em 1970:

De primeiro a gente pegava escola de roça. Então eu fui na que se chamava

Santa Cruz e custei vim. Porque eu efetivei né, escolhi a Santa Cruz perto de

Patrocínio. Santa Cruz, era uma Santa Cruz mesmo. [...] Você nem pode

imaginar. Eu nem vou te contar. [...] Porque era uma novela [ÊNFASE] Era

Page 132: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

130

uma novela. Mas os meninos eram inteligentes. [...] Claro. Sempre

aprendiam muito, bom aprendizado, aprendiam, tudo gente assim, que queria

aprender. Um amor. Depois eu fui pra uma fazenda... teve outra fazenda que

se chamava São Luís, dos Couto Rosa aqui de Franca. [...] É. Fernando

Couto Rosa. Fazenda São Luís, os meninos muito bons também. Aí fiquei

um ano também. Depois eu fui pra Restinga. Não. É, eu era efetiva, aí eu fui

pra Restinga, fiquei quatro anos lá. Fui pra Restinga. [...] E depois pro

Suzana Ribeiro. Aí eu não saí. [...] Ah eu fiquei uns bons, uns 20 anos.

(ARQUIVO 34, p. 1-2).

D. Edna também passou por duas fazendas: a Limoeiro, perto de Marília e a Boa

Esperança na estrada velha de Batatais. Depois de alguns anos retornou à Franca para lecionar

num dos primeiros grupos escolares de Franca, o Caetano Petraglia (1933). (ARQUIVO 21, p.

9).

Eram nas escolas mistas de roça, onde em uma única classe se ensinava crianças em

todos os níveis de ensino, que as normalistas adquiriam experiência com a docência e os

pontos necessários para conseguirem ingressar no Estado como professoras concursadas.

D. Cleuza contou-nos sobre 1ª experiência em escola de fazenda:

A minha primeira experiência de trabalho foi, Nossa Senhora, eu passei

muito aperto. Eu, parece que eu não sabia fazer nada... e tinha que viajar, era

uma escola de roça, meu pai foi junto, não quis deixar porque tinha que

andar um pedaço a pé e ele teve medo. E ele criou a gente muito assim,

agarradinha. E eu não sabia, eu tinha que alfabetizar. Era primeiro com

terceiro ano numa sala só e eu não sabia de método, eu não sabia de nada

mais, eu não sabia como aplicar. Olha, foi um sufoco. (ARQUIVO 12, p.

16).

Como vimos neste relato, nem sempre as normalistas se sentiam preparadas para

enfrentar a uma realidade tão complexa quanto às escolas multiseriadas de fazenda. “Parece

que eu não sabia fazer nada [...] E eu não sabia, eu tinha que alfabetizar”. Também havia a

dificuldade de acesso à fazenda que “tinha que andar um pedaço a pé”. Por isso, a

colaboradora explicou que o pai “teve medo” e foi com ela. “Ele criou a gente assim,

agarradinha”, explicou a colaboradora justificando os cuidados do pai.

As classes das escolas de roça além de mistas (com alunos de 1ª a 4ª séries do ensino

fundamental) eram numerosas, o que exigia das normalistas certa habilidade na utilização de

métodos de ensino que possibilitasse um domínio sobre o grupo de alunos e aproveitamento

dos mesmos. D. Leila relatou como fazia para ensinar alunos de várias séries ao mesmo

tempo:

Page 133: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

131

Ah, devia ter uns trinta e cinco, quarenta... por aí, mais ou menos isso. [...] Então, dava exercícios, ocupação pra uma série, e a outra né. Levava às

vezes também algumas fichas e organizava fichas com alguns exercícios né,

sobre aquela aula que tinha dado, qualquer coisa, ou questionário... enquanto

uma turma fazia, a outra a gente era mais direto. (ARQUIVO 30, p. 16).

Assim, alternava-se aula expositiva com exercícios de fixação do conteúdo estudado,

como maneira de driblar as dificuldades com a clientela diversificada, o que não fugia aos

moldes do ensino tradicional, também aplicado em grupos escolares de classes regulares.

Onde quer que fossem lecionar as normalistas eram tratadas com muito respeito. D.

Leila relatou como foi sua experiência quando ingressou na Delegacia de Ensino de

Votuporanga como professora efetiva:

E aí que eu ainda tive sorte assim, eu falo que eu tive sorte, porque eu não

fui muito lá pro sertão não. Porque em Monte Aprazível, que é uma cidade

que fica perto de São José do Rio Preto, mas já pertencia... uma cidade já

bem desenvolvida, sabe? Só que não fiquei na cidade, fiquei numa escola

isolada, que tava perto e eu fui pra essa escola. [...] Mas assim, tinha que

pegar o ônibus pra ir e tudo. A escola, aí depois lá, pra ficar, pra arrumar

uma casa pra hospedar a gente né, e o professor naquela época também era

muito bem considerado, então as pessoas procuravam ajudar, fazer o melhor

possível. E mesmo na escola, lá, quando chegamos, por exemplo, lá em

Monte Aprazível pra tomar posse e tudo, o diretor lá, fez questão de ir com a

gente, pra levar a gente na escola. Então eles davam muita assistência pra

gente. Mesmo o pessoal que morava. E como era assim, não tinham lugares

próximos da escola pra morar, eu fiquei morando num sítio que ficava a um

quilometro da escola. Então eu andava todo dia um quilometro pra ir na

escola. Desse sítio até [...] É. Pagava [...] Era uma casa de família, pagava e

tudo. (ARQUIVO 30, p. 19).

Embora os pais apoiassem a filha ingressar na profissão e isso significasse sair da

cidade e ir morar fora, vemos que lhe foi dada toda a assistência: “quando chegamos [...] lá

em Monte Aprazível pra tomar posse e tudo, o diretor lá, fez questão de ir com a gente, pra

levar a gente na escola. Então eles davam muita assistência pra gente.” O status da profissão

ajudava as normalistas a se sentirem mais seguras “pra arrumar uma casa pra hospedar a gente

né, e o professor naquela época também era muito bem considerado, então as pessoas

procuravam ajudar, fazer o melhor possível.” Quando havia necessidade de morar fora da casa

dos pais, as normalistas procuravam uma pensão: “Era uma casa de família, pagava e tudo.”

Assim as moças protegiam sua boa reputação.

É digno de nota que as normalistas faziam parte da primeira geração de mulheres da

elite de Franca e região que saíram do lar e dos afazeres costumeiramente a elas destinados,

Page 134: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

132

para atender a demanda do mercado de trabalho. Esse fenômeno social se fazia presente em

todo o país em meados da década de 50.

Entretanto, cabe salientar que o trabalho feminino para as mulheres provenientes de

grupos sociais abastados, era visto com estranheza e até certa intolerância pela elite, arraigada

aos costumes tradicionais. D. Leila comparou a mentalidade do pai, homem de negócios e

imigrante, com a sociedade de modo geral, a respeito desse assunto:

Então a cabeça dele era diferente. Ele valorizava o estudo. Ele falava assim

que a maior riqueza que podia deixar pra nós era o estudo. [...] Não é? Então

pra época era muito difícil né. [...] Então eu sempre assim, considerei meu

pai uma cabeça muito boa né. Pensava muito bem e tudo. Então quando eu

formei e, ele fez questão que eu fosse trabalhar. [...] Ele não se opôs de jeito

nenhum. Foi comigo, me levou até lá onde tinha que ir... Tudo, sabe? Então

ele não se opôs. E como havia muitos aí que os pais não deixaram. E muita

gente que ainda falava pra mim: “nossa! Mas seu pai vai deixar você sair!”.

Então foi um [...] [para a sociedade era uma coisa] Escandalosa mesmo.

Era escandalosa. [...] Não tinha isso né. [da mulher sair para trabalhar]

[...] Mas pros meus pais, não. [...] Não teve obstáculo nenhum. [...] [a mãe

também aceitou] Nossa... tudo. Muito boa, cabeça muito boa. Então eu me

dediquei mesmo, acho que o estudo era o que eu gostava, é o que eu fiz.

Acho que o estudo era o que eu gostava, é o que eu fiz, eu fiz o curso que eu

gostava, que eu gostaria mesmo de fazer. (ARQUIVO 31, p. 8-9).

É possível notar, nesse fragmento, a mentalidade liberal presente no discurso do pai da

colaboradora, que tinha na educação uma via de ascensão social: “Ele falava assim que a

maior riqueza que podia deixar pra nós era o estudo.” De modo geral, mas principalmente

para o imigrante, o diploma funcionava como um ingresso, que permitia o acesso das futuras

gerações a uma posição mais privilegiada na sociedade em que se inseria. Daí o incentivo

dado tanto ao estudo como também o ingresso na profissão, que abriria as portas para as filhas

da elite econômica perpetuarem seu status quo na sociedade.

Ao se casarem, as normalistas entrevistadas continuaram trabalhando. Formou-se

naquele momento um novo perfil de família, em que o homem continuou sendo o chefe da

casa, quem decidia o destino dos familiares, porém, mais liberal, ao dar ouvidos às sugestões

da esposa, que agora já se permitia opinar e não simplesmente silenciar, como antes.

D. Leila, assim que casou, contou-nos que foi para Uberaba que, por ser cidade do

Estado de Minas Gerais, não lhe dava condições de continuar a exercer o cargo efetivo,

conquistado como funcionária pública do Estado de São Paulo. Por isso, pediu afastamento

sem vencimentos por dois anos, até decidir o que ia fazer:

Page 135: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

133

[...] porque como eu comecei a trabalhar eu era solteira, eu era solteira

ainda. Eu era solteira, já era, já tinha prestado concurso, já tinha escolhido.

Eu era efetiva antes de casar. Mas eu fui porque eu tive apoio dos meus pais.

[...] Quando eu casei, eu encontrei uma barreira. Tanto é que eu falei que eu

tirei um afastamento. [...] De dois anos sem vencimentos devido o

casamento que foi uma barreira. Uma que eu fui morar noutro Estado e não

tinha nem jeito d‟eu trabalhar né. E como aconteceu? Com a situação que a

gente tava assim, eu fui assim analisando, que eu devia voltar a trabalhar,

que era melhor para nós. Aí meu marido aceitou, a família dele não. Tanto é

que botou obstáculos e tanta coisa, mas assim mesmo a gente acabou vindo e

ficando e trabalhando. (ARQUIVO 32, p. 20).

Como podemos observar, a colaboradora contou que com o tempo foi “assim

analisando” “que devia voltar a trabalhar [...] que era melhor” para o casal e o marido aceitou

a sugestão. Esse era um comportamento estranho à geração anterior à rede que, como já

vimos, era formado por mulheres totalmente submissas aos seus maridos.

Outro aspecto interessante relatado pela rede de normalistas foi sobre a carga horária

da professora primária, que permitia conciliar os papéis de esposa, mãe e profissional. O

trabalho para as mulheres de grupos socialmente privilegiados não tinha o caráter de

sustentação das necessidades do lar como era o caso da mulher operária. Era possível até

manter empregadas que auxiliassem nos afazeres domésticos, para que pudessem se dedicar

às aulas. No caso das famílias mais abastadas terem empregados que cuidavam da casa já era

tradição, não interferindo no trabalho das normalistas. D. Leila contou como organizava seu

tempo:

Era coisa nova, era nova [sair para trabalhar fora]. [...] Não tinha, era

muito difícil. Não podia fazer isso. Então eu sou dessa geração que nós

lutamos pra poder trabalhar. Só que a gente lutou pra trabalhar, mas pra

trabalhar um período só. Ninguém queria ficar o dia inteiro fora de casa. E a

gente tinha a responsabilidade de casa. Ninguém dividia nada com a gente.

Você podia ter uma auxiliar em casa, qualquer coisa, mas o homem, o

marido, tava no trabalho dele. Ele não vinha pra fazer comida em casa, nem

cuidar de filho. Não tinha nada disso. Então a gente tinha que pensar nesse

sentido. Então, se nós lutamos para trabalhar fora, mas era aquele trabalho

assim, um período, pra trabalhar fora de casa. [...] [não deixava os filhos] A Deus dará. Então, o que eu senti, por exemplo, que eu fiz. Como tava

começando, então eu procurava assim, uma maneira de ficar fora de casa só

naquele período. Quatro horas fora de casa né, por exemplo, das 8:00 ao

12:00 ou senão das 1:00 as 5:00. Então eu sempre preferi o período da tarde.

[...] À tarde. Por quê? Porque eu queria ficar em casa de manhã, porque era a

hora dos filhos ter levantando, pra cuidar da alimentação, fazer a comida,

fazer o almoço. Então já cuidava daquilo. Chegava no período da tarde já era

mais fácil você deixar com alguém né. (ARQUIVO 32, p. 17).

Page 136: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

134

Após vencerem os primeiros obstáculos do início de carreira discutidos até agora –

como o pioneirismo do trabalho feminino, dos grupos economicamente abastados, a saída de

casa para trabalhar em outra região sendo mulher, as dificuldades de acesso e permanência

nas escolas de fazenda e grupos isolados – as normalistas enfrentaram lutas mais sutis no

cotidiano escolar, imprescindíveis para a sobrevivência delas como “guardiãs do saber” e do

sistema educacional como o fomentador do progresso da nação.

Essa ideologia empregada em suas mentes durante toda a formação familiar e escolar

devia ser reimpressa, como verdade absoluta, nas mentes de seus alunos que formariam o

grosso da população trabalhadora no futuro. Os métodos de ensino e o currículo oculto

tornaram-se instrumentos eficientes para a transmissão dessas ideias e valores, difundidos

amplamente pelos grupos hegemônicos dominantes.

O que propomos agora, através das evidências orais captadas da rede de normalistas, é

analisar como, no fazer pedagógico do cotidiano escolar, conceitos e valores dos grupos

sociais que detinham o poder político e econômico foram reproduzidos no seio da escola

primária por meio do currículo oculto.

3.2 A Metodologia e o Currículo Oculto em Ação – A Produção do Trabalhador

A educação durante toda a história sempre esteve associada ao poder. Como vimos no

Capítulo 1, desde a época do Brasil Colônia a educação foi extensamente utilizada pelos

jesuítas como forma de controle dos nativos que aqui viviam, com certa medida de sucesso,

perpetuando-se como instrumento eficaz de dominação.

Com a introdução do sistema capitalista, a escola continuou sendo de caráter dual,

oferecendo uma formação para os filhos dos grupos sociais dominantes e outra para os filhos

dos trabalhadores. Até agora falamos sobre a educação das filhas da elite, as normalistas que,

ao exercerem sua função, dariam sustentação para o outro modelo educacional – o ensino

público elementar para os pobres, que comporiam o exército de mão-de-obra para o setor

industrial em franco crescimento na região de Franca no período estudado.

Neste contexto, a escola primária devia ensinar aos alunos não só os saberes

sistematizados, acumulados através das gerações; devia ensiná-los, sobretudo, as habilidades

fundamentais para sua adaptação ao mundo do trabalho. Oder José dos Santos em sua obra

Pedagogia dos Conflitos Sociais observou:

Page 137: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

135

O aumento da instrução, ou melhor, o domínio das três habilidades – ler,

escrever e contar – responde muito mais às exigências impostas pela

complexidade da vida urbana [...] As unidades de produção, consoante a sua

organização do processo de trabalho em inevitável divisão hierárquica de

tarefas, exigem, ao lado de uma grande massa de trabalhadores pouco

qualificada, um quadro de técnicos qualificados. E é justamente o

atendimento hierárquico dessas qualificações pelo sistema de ensino que as

unidades produtivas reclamam. (SANTOS, 1992, p. 56).

O currículo escolar das instituições educacionais se incumbiu da tarefa de ensinar as

habilidades essenciais exigidas dos trabalhadores, que em sua maioria, abandonaram a vida no

campo e vieram tentar a sorte na cidade. Saber ler, escrever e contar era fundamental para sua

adaptação à cidade, cheia de símbolos e códigos escritos que precisavam dominar.

Já o currículo oculto que devia ser transmitido de maneira sutil, ensinou desde cedo às

crianças, futuros operários, a obediência, o respeito à hierarquia, a ordem, a disciplina, a

diligência no cumprimento das tarefas que moldariam o comportamento desejado no interior

das fábricas.

Nas entrevistas com a rede de normalistas ficou evidente que as colaboradoras não

tinham consciência de sua função na instituição de ensino como transmissoras de um

currículo oculto que fazia parte delas, de suas crenças, de sua cultura como grupo social e que

servia como poderoso instrumento de perpetuação da dominação. Neste sentido, podemos

afirmar que esse era um fator importantíssimo para a eficiência de sua prática pedagógica –

reproduziam conceitos internalizados durante anos de formação familiar, religiosa e escolar e,

por isso, acreditavam neles e os defendiam.

Isso ocorreu porque as normalistas, como qualquer outra categoria profissional, foram

esvaziadas de seu conteúdo de humanidade ao entrarem na instituição escolar e perderem sua

autonomia produtiva. Esse processo de alienação iniciado desde a educação infantil recebida

no lar não permitiu que as mesmas se atentassem ao fato que sua função não seria tão nobre

quanto era propagado pela sociedade.

Em diversos fragmentos da evidência oral notamos como se deu a reprodução dos

valores pertencentes aos grupos hegemônicos na prática pedagógica. Tomemos como

exemplo as comemorações cívicas. Como vimos no capítulo anterior, tais comemorações

eram realizadas com muita pompa durante os anos em que nossas normalistas eram apenas

estudantes, engendrando nelas valores como patriotismo, civismo e ordem. Quando

questionadas sobre sua prática pedagógica, num período em que o Brasil estava submetido à

ditadura militar e esses valores eram ressaltados sobremaneira, percebemos que, para as

normalistas, a transmissão dos mesmos ocorria de forma natural, quase imperceptível.

Page 138: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

136

O Cristina, eu acho que não houve assim... [uma imposição da ditadura

com respeito à comemorações das datas cívicas] é lógico que a gente

tinha com mais rigor e tudo, mas que eu me lembre, não coisas diferentes.

Porque desde que eu me entendo por gente, tanto como estudante, tanto

como normalista e como já professora, a gente fazia o desfile... no Colégio

de Lourdes então você precisava de ver como é que a gente preparava pra

esses desfiles. Eu não sei e há alguma, vamos dizer assim, imposição maior

na ditadura. [...] Já havia uma tradição. (ARQUIVO 28, p. 4).

Outra colaboradora comentou a importância das comemorações cívicas para a

inculcação do respeito, valor importante a ser cultivado pelo trabalhador que deve reconhecer

os símbolos e sinais de comando:

[SILÊNCIO] Olha, na época, eu acho que tinha um valor muito grande

naquilo que formava o espírito cívico, né. Eu acho que trazia pro, uma

formação cívica muito importante. Eu acho que sempre que se fala num

assunto, que se fala bem, que aborda um assunto de uma maneira muito

significativa e tudo, não deixa de trazer um benefício, principalmente pra

formação cívica que eu acho que é muito importante o patriotismo. Então, o

orgulho da terra, orgulho da Pátria, né. Quando se falava em bandeira, o

respeito pela bandeira. Então as cores, por exemplo, da bandeira, o

significado, aquilo tudo não deixa de tocar nas pessoas né, os alunos de

modo geral. [...] É porque olha, pra começar: é claro que eu acho muita

diferença e que eu sou mais a favor a outra, as coisas como eram feitas

antigamente. Mas hoje eu vejo assim, que falta o principal, que ta faltando o

respeito. [...] Eu acredito que é. Então, o respeito a tudo. No fim você vai

olhar, abrange tudo né. Não só os símbolos da Pátria, as coisas, mas a vida

de modo geral. Por exemplo, a maneira como os professores eram

respeitados na época. Por exemplo, toda a época que eu trabalhei eu não tive

problema nenhum, aluno desrespeitando nem respondendo. Nunca tive esse

problema. Então, isso aí é uma coisa muito importante. E a gente é o respeito

dos filhos com os pais, dos alunos com os professores, com a Pátria, com os

tudo. Então, hoje eu acho que falta às vezes o respeito. Por quê? Você às

vezes, muita coisa não pode nem ser falado, porque não é aceito ou é

recebido de uma maneira crítica, ou... (ARQUIVO 32, p. 14-15).

Como bem observou a colaboradora, a formação do “espírito cívico” influenciaria no

respeito que o indivíduo demonstraria em todos os aspectos da vida: “o respeito dos filhos

com os pais, dos alunos com os professores, com a Pátria, com tudo” e podia se completar, do

trabalhador com o patrão, do operário com o chefe e assim por diante.

O espírito cívico formado durante anos de educação escolar das normalistas foi

reforçado no curso Normal. Em um Programa de Prática de Ensino datado de 1922, o então

professor da Escola Normal de Piracicaba, Lourenço Filho arrolou sob o título “Metodologia

especial”, o que chamou de “orientações didáticas”. Dentre estas podemos citar:

Page 139: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

137

j) Metodologia da História. A história pode ser ensinada no curso primário?

Como a criança chega à noção de sucessão do tempo. Partir do conhecido: a

história do aluno, da família, da escola, da cidade, do bairro ou da fazenda. A

história do país pelos fatos mais recentes. Banimento absoluto do ensino de

cor. A história e o patriotismo. Marcha do ensino.

k) Metodologia do Ensino Moral e Cívico. Importância deste ensino nas

primeiras idades. A formação do cidadão e do homem social. O civismo não

pode ser ensinado só por fórmulas, pelo culto abstrato de símbolos, mas,

sim, basear-se no conhecimento do país, pela geografia, pela história e pelo

idioma nacional. O escotismo como auxiliar do civismo. O problema moral

na escola. Responsabilidade do professor primário. A lição do exemplo.

n) Metodologia da Música. Importância do canto coral como fator

dinamogênico no ensino. Como preparar o canto e como fazê-lo cantar. A

popularização dos hinos patrióticos. Marcha do ensino. (LOURENÇO

FILHO, 2001, p. 67, grifo do autor).

Nesses três fatores podemos ressaltar alguns pontos que aparecem na evidência oral

como preponderante na formação e, consequentemente, na prática da normalista.

O primeiro diz respeito à educação moral e cívica que devia estar presente no currículo

desde as primeiras séries do ensino fundamental. O método principal destacado para atingir a

“formação do cidadão e do homem social” é a “lição do exemplo”, ou seja, é da

“responsabilidade do professor primário” ensinar através da sua própria postura, que devia ser

irrepreensível, como já analisado no capítulo anterior, ao tratarmos a questão do professor

modelo.

No item anterior, que trata da Metodologia da História – disciplina completamente

banida do currículo nos anos da ditadura militar, no período em que nossas colaboradoras

exerceram boa parte do magistério – observamos que devia ser ressaltado a “A História e o

Patriotismo”, o que não fugia muito aos moldes do que, mais tarde, seriam impostos nas

disciplinas de Educação Moral e Cívica e OSPB.

Na Metodologia da Música – como já vimos em relatos anteriores de colaboradoras

que usavam largamente esse recurso com seus alunos – o programa de ensino da escola

Normal destacava a importância de „popularização dos hinos patrióticos‟, através das aulas de

canto orfeônico. Outros fragmentos citados no Capítulo 2, em que as normalistas justificaram

a importância da matéria de canto para aprenderem os hinos pátrios, que seriam ensinados

mais tarde a seus alunos, reforçam o conceito que este programa de ensino, embora datado de

1922, era um modelo válido mesmo na formação de nossa rede, duas décadas depois.

Por outro lado, notamos que estes valores foram tão fortemente arraigados durante a

formação de algumas normalistas que, no decorrer de sua prática pedagógica houve uma

dificuldade de adaptação e abertura à diversidade cultural, que atualmente propõe o respeito

aos alunos que não participam de comemorações cívicas por questão de consciência.

Page 140: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

138

Bom o civismo, eu sou fruto disso, daí até, né. Porque nossa, eu com o Hino

Nacional e outras coisas mais, os símbolos nacionais, a vivência do amor à

Pátria, isso eu peguei muito. [...] Eu peguei muito. Eu tive até mães que

proibiram filhos de participar porque não aceitavam o culto à Pátria e, o

culto à bandeira, que culto só pode ser feito à Deus, sabe? Deixa eu ver que

mais que eu, nesse tempo na educação. Era autoridade, né. Que eu sou fruto

desse regime aí, autoritário. Aonde eu te falei que precisa muito esforço pra

mudança, sabe? Muito esforço. [...] Como diretora já passou um pouco, já

tinha passado um pouco. Mas o ranço fica, né. [...] O ranço fica. Muitos

gostam. Interessante, falam: “Ah, não pode deixar escolher muito não,

porque ninguém sabe o que quer, tem que...” (ARQUIVO 41, p. 3-4).

A colaboradora comentou sobre o “ranço” que a acompanhou durante sua carreira

profissional por ter sido, em suas palavras, “fruto desse regime aí, autoritário” e concluiu que

“muitos gostam”, ou aceitam o autoritarismo, porque assimilam a ideologia dominante: “Ah,

não pode deixar escolher muito não, porque ninguém sabe o que quer, tem que...”.

Em outra entrevista, anterior a essa, a mesma colaboradora descreveu como eram

ressaltadas as datas cívicas quando lecionava e, posteriormente, quando se tornou Diretora de

escola:

Amor à Pátria. [...] Isso aí foi marcante na minha vida. E marcou, tanto é que

a minha vida profissional eu sou lembrada muito por conta disso, muito.

Quando eu estava em sala de aula nós plantamos aquele grupo lá no Caetano

Petraglia de estar ensinando os hinos sacros. Que nós tínhamos que dar aula

de música, né. E na nossa programação nós tínhamos o toca CD direitinho

né, e uma emprestava pra outra e até a criança aprender a ler a letra e a

música de todos os hinos a gente fazia, por exemplo, lá no Caetano a gente

fazia comemorações cívicas. Aí só quando eu fui pro Caetano Petraglia, não

só essa parte, mas a gente trabalhava. Hoje eu não vejo isso, porque quando

tinha Educação Moral e Cívica a meninada já seguia vendo isso. OSPB que

também foi tirado. Então a gente trabalhava até o quarto ano, tinha aula

mesmo, o uso da bandeira. Tinha aula assim sobre os símbolos da pátria e

coisas mesmo. A gente sabia nome de governador, de presidente e de mais

todos os chefes da nação assim, a gente sabia os nomes todos na ponta da

língua. Pergunta quem sabe um ministro, uma coisa, um secretário? A gente

sabia tudo, meus menininhos. Era uma gracinha. E quando eu fui pro

Caetano [escola], pro Coronel [escola] como diretora, eu instituí o

momento cívico. [...] Era uma vez por semana, na sexta-feira. Então, e aqui,

quando eu vim pra cá a gente também fez isso, faz até hoje, no Alto Padrão

[escola particular]. Fica cada semana um professor responsável, tem um

tema, um tema de patriotismo ou de formação né, de formação tipo valores.

Ou então de algum conhecimento do ambiente sabe, que nós estamos na

poluição, no ambiente, essas coisas todas. E colocando música, achando

músicas que falam sobre o sistema, sabe. Nossa, sabe aquela coisa da

postura, eu lembro do pátio do Coronel, aquela voz brava, tudo bonitinho.

Eu tinha mania de subir... eu não falei que eu subia no banquinho quando

criança? O Coronel tinha um banquinho também. Eles falam: “eu lembro da

senhora no banquinho ou na cadeira, não sei...”, eu ficava então alta assim,

enxergava todo mundo. Encontrei com uma aluna e ela falou “dona Cleuza,

Page 141: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

139

a senhora enxergava todo mundo, quem tava mexendo, quem não tava na

postura certa, e canta bonito...”. E a gente ensaiava os hinos, bem. Até que

apresentasse a gente ia aprendendo, pedaço por pedaço, sabe? E os desfiles.

Ah meu Deus, como eu amava desfilar! Preparar o tema, as roupas sabe? A

bandeira. Uma mãe evangélica não entendeu isso e ela falou assim: “vou

pedir um favor pra senhora. Na hora do momento cívico a senhora dispensa

meus filhos?”. Aí eu quis saber por que e ela falou: “não! A minha religião,

culto é só a Deus. E aqui ta cultuando o pavilhão nacional...”. Eu falei “não!

É um respeito, é o símbolo da pátria...”, aí ela falou “não, mas não pode...”.

Então eu falei “ta dispensado.” Então na sexta-feira eles entravam mais

tarde. [...] Nessa época eu já estava melhorzinha. [...] Se fosse em outras

épocas.[RISOS] (ARQUIVO 27, p. 17-18).

Esse fragmento é riquíssimo, pois mostra-nos o quanto a formação da normalista

contribuiu para sua atuação profissional. O “Amor à Pátria” ensinado no Colégio e Lourdes,

segundo a colaboradora, “foi marcante em minha vida. E marcou, tanto é que a minha vida

profissional eu sou lembrada muito por conta disso, muito”. Os “hinos pátrios”, os símbolos

nacionais, o “uso da bandeira”, os nomes dos governadores, presidentes, “chefes da nação”,

tudo isso “tinha aula mesmo”, ou seja, fazia parte do currículo, das matérias de “Educação

Moral e Cívica” e “OSPB” (Organização Social e Política do Brasil) – que foram implantadas

pelo regime militar em substituição à disciplina de História exatamente para este fim – e “a

gente sabia tudo na ponta da língua [...] meus menininhos. Era uma gracinha”, comentou a

recordadora com entusiasmo. Quando já era diretora, nossa colaboradora contou como

controlava a disciplina no “momento cívico”, que era o dia da semana em que todos os alunos

no pátio deviam cantar os hinos pátrios: “O Coronel [escola] tinha um banquinho também [...]

eu ficava então alta assim, enxergava todo mundo [...] quem tava mexendo, quem não tava na

postura certa”. Com o tempo a colaboradora foi se adaptando melhor às mudanças e nessa fala

ela já comentou ter respeitado o aluno que pediu dispensa do momento cívico por questão de

consciência e admitiu rindo: “Nessa época eu já estava melhorzinha [...] Se fosse em outras

épocas.”

Não podemos ignorar o fato que a rede de normalistas selecionada para esta pesquisa,

atuou no sistema público de ensino durante o período da ditadura militar no Brasil. A escola

como aparelho do Estado (ALTHUSSER, 1974) juntamente com as demais instituições

sociais, devia colaborar para que a nova estrutura de governo encontrasse condições

favoráveis de dominação.

Neste contexto, a escola e o professor deveriam ressaltar de maneira intensa o amor à

Pátria, o espírito cívico, o que significava aos olhos do governo, o apoio irrestrito ao seu

autoritarismo. Na visão das normalistas, a ditadura implantada no Brasil em 64 foi um mal

Page 142: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

140

menor, a salvação do país do perigo comunista, que pairava sobre o mundo no período da

Guerra Fria:

É. Eu acho que foi isso mesmo. Porque a hora que o golpe de Estado, essa

mudança, então foi mesmo pra salvar do comunismo. Porque assim,

ninguém queria mesmo. O povo tinha medo era do comunismo, como tem

até hoje e coisa e tal. Então tinha medo do comunismo. Porque a gente

vivendo num país como o nosso né, sempre mais liberdade de ação, de

escolha, de fazer o que fosse. Então o comunismo naquela época era, falava-

se muito horrores né, na maneira de vida do povo que estava sob o

comunismo. Então eu acho que foi a salvação mesmo. Naquela época sim.

Eu acho que não tinha outra maneira né. (ARQUIVO 32, p. 11).

O depoimento nos parece contraditório, mas, na visão da colaboradora, a ditadura não

era o fim da “liberdade de ação, de escolha”, e sim o comunismo. Esse era o inimigo que

devia ser combatido. A Igreja, por sua vez, endossava tal visão:

Bom, na Igreja principalmente o Comunismo era visto como um Demônio,

vamos dizer assim. E como eu falo pra você que eu sempre estive ligada à

Igreja, então o Comunismo era uma coisa que a gente não podia nem

conversar, nem conviver com ele né. Era tido como uma coisa muito ruim. E

naquele tempo até eu acreditava assim também né, às vezes até por

desconhecimento, porque depois que a gente vai entender ou estudar melhor

a filosofia de cada segmento e tudo, você vê que a coisa não é tão por aí

assim, né. E esse que eu te falei, preso aí, esses presos eram todos tidos

como “comunistas”, e o meu vizinho era pessoa mais encantadora do mundo.

[...] Era pessoa solidária, com família. Ele partilhava o que ele tinha com

todo mundo, sabe? E comunista. Então comunista não prestava, certo? [...] Não podia. O comunista, o comunista oferecia perigo, vamos dizer assim.

Oferecia perigo. E eu fiquei por muito tempo com essa visão por

desconhecimento. [...] Era sofrido. Na minha época tinha-se medo demais da

conta. Medo porque era tido como uma coisa muito ruim. [...] Na verdade

[SILÊNCIO]. Na verdade eu acho que aconteceu isso mesmo. Tidos como

salvadores. [...] É como salvadores. E, foi isso mesmo. [...] Porque você está

dentro da religião que você acredita que você segue aquela comunidade. E lá

pensava assim, na sua família pensava assim também, que era uma coisa

prejudicial, né? (ARQUIVO 40, p. 5-6).

Como vimos neste fragmento a colaboradora reconheceu que o medo do comunismo

estava fortemente associado à imagem que a Igreja fazia dele: “era tido como uma coisa muito

ruim”. Só mais tarde, depois de “estudar melhor a filosofia de cada segmento e tudo”, a

colaboradora entendeu “que a coisa não era tão por aí assim”. Neste caso a colaboradora

lembrou-se de pessoas conhecidas que foram perseguidas pelo governo, mas que não

“oferecia perigo” como o comunista deveria oferecer. Era difícil pensar diferente se, “dentro

Page 143: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

141

da religião que você acredita que você segue, aquela comunidade. E lá pensava assim, na

família pensava assim também, que era uma coisa prejudicial, né?”.

Essa reflexão sobre a ideologia imposta pela ditadura militar e endossada pela Igreja

Católica foi feita, segundo a colaboradora somente no momento da entrevista: “mas isso que

agora estou recordando, eu nunca refleti sobre isso. Só agora, com a sua pergunta. Eu

admirava de paixão essas pessoas [perseguidas].” (ARQUIVO 40, p. 7) Assim, como podia

alguém bom ser preso porque era comunista, sendo que todo comunista era mal? Parece que

estas não eram questões comumente feitas pela sociedade, de modo geral, nem pelas

normalistas, mais especificamente. D. Leila comentou como ela e as demais pessoas com

quem se relacionava lidaram com o novo regime político:

Eu acho assim, a gente já é assim uma... já veio vindo assim na vida de

trabalho, de coisa né, a vida ali de, de, cumprir ali as suas obrigações, seus

deveres e tudo e nunca teve assim na minha família ninguém assim,

envolvido mesmo em política assim. Porque eu acho que as pessoas assim

que se envolvem já nascem com essa tendência ou é influenciado por outros

né, ou às vezes até as próprias escolas, faculdades e coisas existe né. Mas a

gente assim não teve assim influência e também continuou a vida. [...] Normalmente né. Cumprindo as obrigações, cumprindo os deveres, as coisas

que tinham que fazer e tudo bem né. Como a gente não tinha aquela coisa de

manifestações e coisa, a gente não tinha isso. Então. [...] Agia de

[INAUDÍVEL] assim, não foi assim como uma defesa nem nada, mas eu

acho que foi uma coisa normal da vida da gente, cada um dentro daquilo que

gostava ou que fazia né, sem influência de nada. (ARQUIVO 43, p. 5).

De modo geral, a sociedade parecia alheia ao que estava acontecendo em nosso país.

Enquanto uns poucos grupos pegavam em armas, a fim de derrubar a ditadura e eram

massacrados por ela, a grande maioria da população “continuou a vida [...] normalmente, né.

Cumprindo as obrigações, cumprindo os deveres”. De fato, para essa parcela alienada da

população, só restava cumprir obrigações e deveres, pois era isso que o governo esperava

dela. Essa postura se refletia no trabalho em sala de aula:

Então, eu acho que desde que a gente tava ali pra escola, de um modo geral,

você não levando nada de política para a escola [RISO], a gente não era do

ramo nem nada, né. Então dava as aulas normalmente, trabalhando da

mesma maneira. Não houve nada que pudesse modificar. [...] É que não saía

daquilo. Então, às vezes a gente ouve falar alguma coisa que a pessoa foi

exilada, que a pessoa foi não sei aonde, pá, pá, pá, passou por isso e por

aquilo. Mas na ocasião a gente não sabia de ninguém. Não sabia de ninguém,

porque as coisas eram muito fechadas, muito coisa, sabe? Quem participava

disso, ou os políticos ou as pessoas jornalistas, sei lá quem né, as pessoas, sei

lá quem, que era de, que tinha opiniões contrárias e tudo o mais, era muito

fechado. Então a gente também não ficava procurando porque senão, você

Page 144: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

142

teria que ser um deles, né? [...] Então a gente evitava até saber, de procurar.

Não ficava sabendo de nada. Então na época eu não fiquei sabendo de

ninguém. (ARQUIVO 32, p. 12-13).

A normalista não se encarava como sendo “do ramo”, ou seja, não achava que tinha

compromisso com a educação política dos seus alunos. “Então dava as aula normalmente,

trabalhando da mesma maneira. Não houve nada que pudesse modificar”. Percebemos neste

relato que as normalistas não haviam sido formadas para ter uma visão política da sociedade

em que estavam inseridas e nem para formar pessoas críticas, que pudessem provocar

mudanças em seu meio através da ação consciente. A colaboradora justificou sua atitude não

como “uma defesa nem nada”, mas como uma “coisa normal”, em sua primeira entrevista.

Todavia, no segundo fragmento aqui citado a mesma normalista legitimou seu

comportamento como maneira de definir de que lado estava na questão do governo

autoritário: “Então a gente também não ficava procurando [saber detalhes da política] porque

senão, você teria que ser um deles [da oposição], né?” O silêncio era, desta forma, um

mecanismo de defesa, pois identificava as normalistas como apoiadoras do regime militar.

Outra colaboradora comentou sobre a influência do governo ditatorial no currículo

escolar:

Não. Na verdade a gente teve aí, vamos dizer assim, um susto né, um susto.

Porque afinal de contas a ditadura é uma forma de governo bastante pesada,

como eu te falei, a gente tinha que seguir a risca as coisas que vinham. Te

falei... a programação vinha pronta, você tinha que seguir aquela

programação. Mês de março, tem que dar isso, mês de abril... nada de você

fazer o seu plano de aula como hoje faz, de acordo com a realidade que você

ta trabalhando. Então são essas coisas que realmente eu sentia, mas da parte

política... (ARQUIVO 28, p. 7).

Na prática não mudou muita coisa: “tinha que seguir a risca [...] aquela programação”,

que vinha da Secretaria da Educação. No entanto, o currículo oculto permanecia intocado: o

modo de pensar e a postura das normalistas, as comemorações cívicas, as regras de

comportamento, a organização dos espaços, a religiosidade presente no cotidiano escolar.

Todos estes fatores trabalhavam juntos, a fim de garantir o poder instituído pela força, mas

preservado pela formação das mentes e dos corpos.

Outra questão que podemos analisar que está presente na evidência oral é a

perpetuação dos valores e da moral cristã na prática pedagógica das normalistas. Como vimos

no Capítulo 2, todas as colaboradoras que compõe a rede aqui pesquisada passaram, em

algum momento de suas vidas, pelo Colégio Nossa Senhora de Lourdes, onde receberam uma

Page 145: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

143

educação religiosa paralelamente à educação escolar. Essa educação, adquirida no colégio,

vinha complementar a formação moral e cristã do lar e dos cultos religiosos que as

normalistas estavam sujeitas desde a infância, mesmo antes de ingressar na instituição escolar.

É evidente que as crenças e valores absorvidos durante anos de educação formal e informal se

refletiriam de maneira contundente na prática pedagógica das normalistas.

É comum, nas evidências orais, ouvirmos relatos em que as colaboradoras contam-nos

que fazia parte da rotina escolar, quando lecionavam, rezar com alunos em sala de aula.

Curioso que isso de fato era comum, pois eu ainda era criança quando as colaboradoras

estavam próximas da aposentadoria e me lembro bem que, por volta do início da década de

80, todas as aulas começavam com reza e algumas músicas religiosas.

A escola laica apregoada pelos Pioneiros da Educação Nova nos idos de 1932 ainda

não era fato no fim do século XX. Sem falar no crucifixo grande pregado na parede da sala de

aula – de escola pública, que em sua essência deveria ser laica – que eu guardo na memória,

com as palavras sugestivas escritas embaixo: “Deus me vê”. O que parece incoerente ao

discurso republicano liberal e às reformas educacionais implantadas não parece, porém,

incoerente do ponto de vista da lógica capitalista. Como já foi discutido em capítulos

anteriores, o medo e o castigo presente na doutrina Católica foram fundamentais para reforçar

a obediência às autoridades, fossem elas padres, madres, freiras, pais, mães, professores,

chefes ou patrões. Era preciso ensinar a subordinação e o medo como o mecanismo de

controle.

D. Dulce contou como conseguia a disciplina dos alunos:

Tinha de ter um jeito especial. Porque com brutalidade, tinha que ter muita

paciência se você quiser ter alguma coisa. Usufruir do que você está

ensinando. Então eu fazia isso. Eu lidava com meus meninos com

psicologia. Com carinho, sabe, com conselho, entendeu? Eu fazia isso.

Agora eu não sei se as outras professoras faziam, né. Tanto que eu tinha

disciplina assim. Tinha, os meninos gostavam muito de mim. Eu rezava

muito com os meninos. Muito. Na hora do recreio, na hora de sair do recreio,

na hora de entrar, entendeu? Ensinava muita religião pra eles. Muita mesmo.

[...] Tanto hoje que eles me encontram na rua eles perguntam se eu to

rezando: “Ai que bom D. Dulce.” Você vê que gracinha que eles são.

(ARQUIVO 35-36, p. 1).

Ensinar religião para os alunos era o meio de conseguir disciplina. Na prática, a

normalista observou que “com brutalidade” não conseguia nada. “Tinha que ter muita

paciência” para ter disciplina e isso era alcançado com sutileza, nas palavras da colaboradora,

com “psicologia”.

Page 146: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

144

De fato, fazia parte da psicologia a “disciplina de persuasão e, por ela, o

desenvolvimento do raciocínio e do auto governo”. (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 65).

Era assim que também conseguia controlar o mau aluno, aquele que não aderia às

regras que a escola impunha por perceber nelas uma estratégia de dominação. Esse tipo de

aluno que se manifestava contra a disciplina se recusando ao processo de remodelagem feito

pela instituição escolar, era e ainda é encarado pelos profissionais da educação como o aluno

problema.

Entretanto, a colaboradora conta-nos como foi bem sucedida em educá-los, dentro do

que acreditava ser o correto:

Mas você sabe, quando eu faltava também da escola, que eu tinha de faltar

por alguma coisa, eu tinha uns meninos muito impossível sabe. Uns. Mas

como eles gostava muito de mim, entendeu, então eles ficava quieto, sabe. A

disciplina era outra, punha ali perto de mim, perto da mesa, sabe. E quando

eu ia faltar, eu falava assim: “Carlos e Gilmar, amanhã vocês não vem não,

porque amanhã a D. Dulce não vem, entendeu?” Ai eles já nem vinha. Às

vezes ia até capinar quintal antigamente, aqui era quintal do lado de lá, então

vinha capinar quintal pra mim. E porque senão ele acabava com a

professora, com a substituta. Então pra não ter isso, eu falava pra eles,

porque faltou só um dia, não ia atrapalhar em nada, porque depois eu só

[expressão com os dedos de que ia por em dia o conteúdo]. E eles era

aluno melhor assim, melhor não era, mas dava pra ir bem. Mas com a

substituta eles subia em cima da mesa, da cadeira, eles pintava. Os meninos

falava: “Ih dona [INCOMPREENSÍVEL] que lambança que eles

aprontaram com a substituta. Ah também aquela substituta, não sei o que!”

[RISO]. Era desse jeito. (ARQUIVO 35-36, p. 6-7).

A disciplina era conseguida mesmo desses “meninos muito impossível”, porque

“como eles gostavam muito [da professora] [...] então eles ficava quieto, sabe”. Quando a

professora faltava, estes alunos avisados de antemão, “às vezes [...] vinha capinar quintal pra

mim”, pois essa era uma forma eficiente de mantê-los ocupados para não perturbarem a

substituta, que não teria os mesmos mecanismos de controle sobre eles: “com a substituta eles

subiam em cima da mesa, da cadeira, eles pintava”.

Dar uma tarefa extra curricular para eles como carpir o quintal, também era uma forma

de ensinar o papel que deveriam ocupar na sociedade mais tarde, como trabalhadores dóceis e

diligentes.

Ainda sobre como lidar com alunos “indisciplinados” ou “maus alunos” é possível

perceber o quanto os valores religiosos fortemente arraigados nas colaboradoras educadas em

colégio católico, estavam presentes na maneira como elas enxergavam e lidavam com o

assunto. Comentando sobre a responsabilidade do professor frente à profissão, D. Edna disse:

Page 147: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

145

Muita responsabilidade, o professor tem que ter muita responsabilidade... ele

tem que ter um domínio do conteúdo que ele vai passar. Ele tem que ter uma

metodologia, porque pra cada conteúdo você tem uma metodologia... então

nunca bem, entrar em uma sala de aula sem preparar o que você vai

trabalhar. Então a responsabilidade do professor é muito grande, muito

grande viu. Você dominar bem o conteúdo, dominar bem a metodologia...

saber trabalhar com os alunos também é importante, certo? Nada de

menosprezo de ninguém, são todos iguais... porque tem que considerar seus

alunos como todos iguais. E outra coisa viu Cristina, não ver só o lado mau

do aluno, embora ele não seja um aluno assim bem aplicado, bem

acomodado, mas ele tem o lado bom dele. Então você, se você procurar o

lado bom desse aluno às vezes você muda muita gente. Então a

responsabilidade do professor é muito grande, muito grande... (ARQUIVO

15, p. 14-15, grifo nosso).

O bom professor na visão dela é aquele que tem domínio não só do conteúdo, do

método, mas que “sabe trabalhar com os alunos também, não menospreza ninguém, considera

todos iguais”. A visão cristã de igualdade foi notadamente assimilada pela colaboradora e

reproduzida no seu discurso, embora não seja, de fato, a realidade social refletida na esfera

escolar. Continuando seu discurso, D. Edna explica seu critério de classificação do lado mau

do aluno, segundo o modelo aprendido por ela e cobrado das crianças no sistema escolar

capitalista: “embora ele não seja um aluno assim bem aplicado, bem acomodado, mas ele tem

o lado bom dele”.

O aluno que não é bem acomodado ou bem aplicado é aquele que não se sujeita aos

moldes impostos pelo sistema. Logo, na compreensão da normalista, esse aluno tem um lado

mau, indisciplinado, que deve ser trabalhado com jeito, pois o pensamento religioso a leva a

acreditar que há também um lado bom, humano, divino ou “a imagem e semelhança de Deus”

a ser resgatado a seu favor, o que, na realidade significa a favor ou a serviço do sistema. Neste

sentido, o professor tinha muita responsabilidade de ajudar a „mudar o aluno‟, fazê-lo

conformar-se ao currículo escolar e ao que a sociedade esperava dele. Na sequência da

entrevista, a colaboradora relatou uma experiência:

Vou te contar uma passagem assim bem rapidinha. Um aluno, naquela época

ainda tinha reprovação, já era o quarto ano que, a quarta vez que ele ia fazer

o quarto ano. O diretor chegou perto de mim e eu estava na quarta série

nessa época: “dona Edna, a senhora vai ter que ficar com fulano de tal”, eu

arrepiei bem, porque eu sabia da indisciplina dele. Mas eu não sei o que é

que me deu na cabeça que eu falei “olha seu [INCOMPREENSÍVEL], ta

tudo bem, o que é que eu vou fazer?”. Então Cristina, eu pensei justamente,

foi nesse lado bom. Foi quando eu comecei a pensar que o aluno tem o lado

bom. Entrou tal, no primeiro dia e eu coloquei bem na frente e disse para ele,

“agora você vai ser o meu auxiliar”, então eu esquecia de propósito o

apagador, o giz, uma porção de coisas que eu precisava e ele ia buscar pra

mim. Apagar a lousa ele apagava pra mim. Então eu coloquei como meu

Page 148: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

146

auxiliar. Eu consertei o aluno. Passou... “uns quatro ou cinco anos depois eu

encontro com ele na rua e ele veio me abraçar, eu nem me lembrava mais do

que tinha acontecido: “eu vim abraçar a senhora dona Edna e agradecer que

a senhora me fez virar gente”, eu falei “uai, por quê?”, “uai, a senhora não

lembra?”. Aí lembramos lá. Eu ainda pensei comigo, nem lembrava mais do

aluno, nem nada. Que coisa boa que eu fiz. Mas porque eu comecei a pensar

que o aluno tem o lado bom também, não é só o lado mau, certo? E passo

muito isso pros meus alunos, porque às vezes minha filha a pessoa ta tão

acostumada “você não presta, você é isso, você é aquilo...”, que ele acaba

não prestando mesmo. Então vamos procurar um pouquinho o lado bom

dessa pessoa. E graças a Deus eu consertei. (ARQUIVO 15, p. 16).

Como vemos, esse relato de experiência é representativo do pensamento e da ação das

normalistas em casos de alunos resistentes ao sistema escolar, como meio de manipulação

social e de exploração do trabalho. A colaboradora contou que ao receber a notícia que teria

em sua sala um aluno multirrepetente e famoso pela indisciplina – diga-se de passagem, o que

justificava, segundo o sistema de ensino excludente do „mau aluno‟, a sua retenção – ela

„arrepiou‟. A moral cristã falou mais alto e, „ao pensar no lado bom do aluno‟, aceitou o

desafio de educá-lo; colocou-o na frente e disse: “agora você vai ser meu auxiliar”. Nesse

momento a colaboradora deu a oportunidade para que o aluno desenvolvesse suas habilidades.

Desde aquele momento, e direcionada por outros conceitos, a professora otimizou a

capacidade do aluno por usar o que ele tinha de melhor e aí conseguiu que ele se

desenvolvesse ou, em suas palavras, “consertei o aluno‟. De fato, essa é a tendência da

pedagogia atual: aproveitar as habilidades e competências dos alunos e, a partir delas,

desenvolver sua autonomia a fim de serem diligentes, criativos e produtivos no mercado de

trabalho.

É nítida neste e em outros relatos, a influência dos conceitos religiosos na formação do

currículo oculto amplamente utilizado pelas normalistas em sua prática pedagógica. Uma de

nossas colaboradoras que sempre se manteve engajada em movimentos religiosos católicos

durante toda sua vida, desde a sua formação no Colégio de Lourdes, fez a seguinte reflexão

sobre a importância dos valores e da moral cristã para sua atuação profissional:

O colégio não só deu assim essa base da informação, do conhecimento,

como da formação, dessa parte dos valores, tão complicado no mundo de

hoje, né, aqueles valores imutáveis. Eu acredito que não perdi mesmo o

caminho e essa, vamos dizer isso que me foi assim apresentado né, desde o

início da minha vida, que é a vontade dos meus pais me colocando em

colégio católico e justamente pra isso. [...] E uma vez assim casada eu

participei muito de movimentos religiosos. Eu participei do Encontro de

Casais Com Cristo, e participo até hoje quando precisam de um casal, meu

esposo e eu, e damos palestra e uns quinze anos também dando palestras,

curso de noivos, onde mais? Curcílio, trabalhei muito em Curcílio,

Page 149: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

147

Renovação Carismática. [...] E eu queria dizer assim que isso teve uma

importância muito grande sabe, muito. E mesmo no meu trabalho, durante

todo o meu trabalho. E hoje se eu estou aqui é porque eu tenho essa parte,

essa humanização, vamos dizer assim essa evangelização assim de estar

colaborando nesse sentido da formação dos alunos, entendeu? Pra mim isso

é mais importante. É muito importante passar em vestibular, mas é muito

importante a gente poder contribuir com os pais nessa formação. [...] Dos

valores. [...] Não só do aluno, mas também com as pessoas que convivem

com ele né, tentando passar um pouco daquilo que passaram pra mim né.

(ARQUIVO 26, p. 5-6).

De acordo com o fragmento, a colaboradora reconheceu que seus pais tinham um

objetivo ao escolher um Colégio Católico para que fosse educada, a saber, a formação de

valores. Concluiu que sua formação religiosa “teve uma importância muito grande [...]

durante todo o [...] trabalho” como professora, porque a “humanização” e a “evangelização”

colaboraram para a “formação dos alunos”.

Independente das normalistas reconhecerem ou não tal influência sobre sua prática

profissional, ao fazerem essa releitura sobre o seu passado, é evidente o fato que a formação

dos valores religiosos e cívicos incidiu diretamente no cotidiano escolar e no seu fazer

pedagógico.

O método utilizado pelas normalistas no Ensino Primário era o tradicional: na primeira

série se alfabetizava usando a cartilha e as famílias silábicas; outros recursos de que

dispunham eram gravuras, o ábaco nas aulas de matemática, músicas e dramatizações.

Eu não sei se isso eu posso chamar de analítico-sintético, eu não sei como é

que é... eu não me lembro muito bem assim da coisa né, mas eu acho assim

que era mais objetivo né, usando às vezes figuras, gravuras, usando [...] Não

tinha muito não. Tinha por exemplo, de matemática, aquele ábaco que

chamava né? [...] E pra, por exemplo, português, tinha umas gravuras,

gravuras grandes, bonitas até, pra fazer uma redação. Então eram muitas

gravuras que colocava num cavalete e cada dia a professora dava, mandava

escrever sobre aquilo que tava vendo né, sobre as gravuras. (ARQUIVO

30, p. 14-15).

A influência das aulas de Psicologia, amplamente citadas pelas normalistas como

marcantes em sua formação, foi observada nos relatos orais das experiências pedagógicas.

De fato, neste ponto do trabalho, podemos dizer que a evidência oral mais uma vez foi

responsável por levantar questões e direcionar a pesquisa a fim de elucidá-las. Compreender

porque as lições de Psicologia do curso Normal bem como sua utilização em sala de aula

foram temas recorrentes na evidência oral, tornou-se fundamental para esclarecer a relação

Page 150: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

148

deste fator com o produto final que a escola primária desejava formar naquele momento

histórico, a saber, o aluno da escola pública.

Um estudo mais detalhado dos temas apontados pelos tópicos frasais nos levou ao

pensamento escolanovista, amplamente difundido no país por volta de 1930. A psicologia

aplicada à educação, que teve em Lourenço Filho (um pioneiro do Manifesto de 1932), seu

maior expoente no Brasil, pelo que indicam a evidência oral e obras de sua própria autoria,

esteve fortemente presente na formação da normalista e como consequência, em sua prática

pedagógica.

Lourenço Filho, professor diplomado pela Escola Normal Primária de Pirassununga

(SP), em 1914, e pela Escola Normal Secundária de São Paulo, em 1917, tornou-se Diretor

Geral da Instituição Pública do Estado de São Paulo no período do Governo Provisório de

Getúlio Vargas, de 1930 a 1931. (MONARCHA, 2001, p. 11). Durante esta fase efetivou

importantes reformas no ensino normal, a fim de garantir uma formação mais completa das

normalistas. Sobre tais reformas escreveu:

Com o estabelecimento do Governo Provisório, consequente à Revolução de

1930, o ensino normal, em quase todo o País, entrou em nova e auspiciosa

fase. Nos primeiros meses de 1931, tivemos o prazer de colaborar na

reforma das escolas normais do Estado de São Paulo, de modo a prepará-las

para a sua definitiva reorganização. É assim que se restabeleceu o curso de

quatro anos e se reorganizaram os programas das matérias preparatórias, de

modo a imprimir-lhes, desde os primeiros anos do curso complementar, o

cunho do estudos secundários, conforme a reforma pouco antes decretada

pelo Governo Provisório. Fez-se mais. Criou-se o curso de Aperfeiçoamento

Pedagógico, de dois anos, para cuja matrícula era exigido o diploma de

escola normal ou de ginásio. (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 22).

Essa iniciativa de ampliar o período do curso normal de três para quatro anos tinha por

objetivo dar uma formação específica ampliada aos professores primários que, segundo

Lourenço Filho, ficava a desejar com a divisão do normal em ensino propedêutico e

profissional:

A brevidade do curso, o exíguo preparo dos alunos, por ocasião da matrícula

inicial, nas escolas normais, e a inadequação dos processos de ensino,

principalmente nas matérias de cunho técnico, tem impedido que essa

preparação se tenha podido fazer de modo cabal. As matérias de cunho

profissional, na maioria das escolas, têm-se limitado a duas ou três, enquanto

as de ensino propedêutico, dadas de mistura com essas, têm sido 10 ou 12,

absorvendo o tempo e as preocupações do estudante, que não as pode

distinguir nem hierarquizar. (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 33).

Page 151: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

149

Essas reformas no ensino normal seriam responsáveis, mais tarde, pela formação dos

Institutos de Educação que, como vimos, procurariam sanar as deficiências na formação do

professorado.

Durante a efervescência dos debates dos educadores em torno do tema que discutia

ampliação do curso Normal – a fim de inserir matérias de cunho específico à pratica

educacional – que se introduziu com grande força a psicologia aplicada à educação.

Foi por volta de 1920, quando lecionava na Escola Normal Piracicaba e num colégio

particular mantido por uma fundação norte-americana, que Lourenço Filho começou a ter

contato com a psicologia educacional dos Estados Unidos. Em 1925, reativou o Laboratório

de Psicologia Experimental da Escola Normal e passou a formular os primeiros testes

psicométricos aplicados à educação. (MONARCHA, 2001, p. 12).

Particularmente, a psicologia aplicada à educação recebeu um poderoso

impulso, inserindo-se de forma duradoura na cultura escolar da época, graças

ao fortalecimento do chamado “movimento dos testes” no âmbito de várias

Escolas Normais e Diretorias-Gerais da Instituição Pública.

(MONARCHA, 2001, p. 14).

Essa tendência promovida pelo chamado “movimento dos testes”, que passou a

selecionar e classificar os alunos, idealizando a formação de classes homogêneas, viria ao

encontro de aspirações tecnicistas da lógica capitalista.

No momento histórico em que a educação das massas e o trabalho urbano

ganham centralidade na vida urbano-industrial, aguçando a percepção das

tensões contraditórias, a psicologia objetiva irrompe como ciência aplicada à

organização da sociedade. Nesse momento, Lourenço Filho eleva-se a uma

posição dominante no ambiente intelectual paulista. (MONARCHA, 2001,

p. 32).

Desta forma, a psicologia aplicada à educação serviria muito mais do que apenas

selecionar e organizar alunos de acordo com sua capacidade intelectual: visava, na verdade,

legitimar a exclusão social de um grupo, sua dominação e exploração. Piéron, renomado

psicologista e um dos responsáveis pela introdução da psicologia científica no Brasil

reconheceu:

Conforme puderam verificar os leitores, seguimos com o maior interesse as

lições do eminente professor da Sorbonne, convencidos, como estamos de

que cabe à psicotécnica um grande papel não só na renovação dos processo

de organização do trabalho industrial, como, principalmente, na remodelação

Page 152: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

150

das bases em que deve assentar-se todo o trabalho de educação popular.

(PIÉRON, p. 25 apud MONARCHA, 2001).

Essa racionalização do ambiente escolar promovido pelos testes também visava um

maior gerenciamento do trabalho pedagógico:

Ora, no caso, a mais simples reflexão demonstra que os benefícios sociais

foram inúmeros. Primeiro, em relação à maior confiança na escola pública,

por parte dos pais: as escolas puderam ensinar mais, em menor prazo.

Depois, em relação a um melhor critério de julgamento do trabalho docente,

por parte da administração: sabendo que material humano recebeu cada

mestre, pode a administração avaliar o esforço real de cada docente.

(LOURENÇO FILHO, p. 37 apud MONARCHA, 2001).

Assim, começava-se a introduzir nas escolas um modelo de avaliação da produtividade

do professor, segundo o “material humano” que recebeu cada mestre e não segundo o

desempenho da classe. Devia ser levado em consideração o desenvolvimento do aluno

segundo o seu enquadramento nos testes psicométricos e não com relação ao todo. Neste

sentido, a escola começou a ser gerenciada como uma fábrica, levando em consideração o

fator produtividade.

Os testes ABC, como foram chamados exames psicométricos para a organização de

classes homogêneas foram largamente utilizados nos cursos Normais durante um longo

período que vai de 1933 a 1974.

Magnani (1987) comentou sobre a repercussão dos testes ABC:

A 2ª edição (3 mil exemplares) de Testes ABC é lançada em junho de 1937, e

a última de que se teve notícia, a 12ª (3 mil exemplares), em 1974, tendo-se

alcançado, no conjunto das 12 edições, uma tiragem total de 62 mil

exemplares. A análise do percurso editorial da obra ao longo dessas quatro

décadas, revela uma trajetória ascendente, com gradativa diminuição do

intervalo entre as edições e significativo aumento do número de exemplares

por tiragem, sobretudo nas décadas de 1950 a 1960, coincidindo com o ápice

da carreira de Lourenço Filho e a consolidação de seu prestígio no Brasil e

no exterior. O ponto mais alto nessa trajetória editorial verifica-se, em 1967

– dez anos após a aposentadoria do autor – com o lançamento de duas

edições no mês de agosto (8ª, 6 mil exemplares, e 9ª, 8 mil exemplares) e a

maior tiragem – a 10ª edição (em dezembro de 1967, 10 mil exemplares) –

alcançando 12 edições. (MAGNANI, 1987, p. 37-38 apud

MONARCHA, 2001).

Esse parêntese explicativo sobre a introdução da psicologia na educação se fez

necessário para, a partir daqui, compreendermos os depoimentos orais e a relevância de tal

aspecto no cotidiano das normalistas.

Page 153: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

151

Analisemos agora um relato significativo sobre o modo como as normalistas lidavam

com os alunos:

Mas de qualquer maneira, eu acho assim que nós procurávamos na época

assim, incentivar o aluno, o interesse do aluno, mas dentro daquela, dentro

assim daquilo que a gente achava importante era acompanhar o aluno de

acordo com o seu desenvolvimento sabe, de acordo com a aprendizagem

dele, e buscando sempre o aluno em primeiro lugar, mas sempre a gente

junto com o aluno, porque a gente não podia esperar às vezes dos pais pra

ajudar e pra orientar. Então a escola, era procurava suprir toda a dificuldade

do aluno, então, mas quanto a isso, a gente procurava os meios mais, mais...

eficaz pra, pro aluno aprender. Às vezes buscando numa cartilha nova ou

buscando introduzindo outra coisa junto, outro método junto. Então a gente

tava sempre no, não podia assim abandonar uma coisa e pegar outra de uma

vez assim sabe, porque a gente pegou muito, muito [...] Então, nessa

transição, nessa transição a gente sempre procurava o melhor e, e, e... fazer

daquelas duas coisas né, o melhor visando o aluno. [...] E outra, a gente não

deixava assim o aluno só ou o aluno ir buscar as coisas... porque nem sempre

ele era capaz disso. A gente tava sempre junto, sempre orientando,

procurando ajudá-lo. A gente não contava com a família pra ajudar na tarefa

da escola. Então a escola procurava suprir todas as necessidades do aluno.

(ARQUIVO 43, p. 8).

O “interesse do aluno” era sempre colocado como o norteador do trabalho do

professor segundo a psicologia educacional.

No programa de ensino de Lourenço Filho, então professor da Escola Normal de

Piracicaba de 15 de janeiro de 1922, lemos o seguinte: “d) A atividade intelectual dos alunos é

condicionada pelo jogo dos seus próprios interesses. Uma classe bem dirigida é uma classe

em que o regente espicaça nos alunos, a cada momento, o interesse oportuno à lição”.

(LOURENÇO FILHO, 2001, p. 65).

Considerar o interesse do aluno era, de fato, algo ensinado nos cursos normais e

aplicado na prática escolar como forma eficaz na condução da aprendizagem do aluno. Dentro

dessa visão o aluno passou a ser o centro em torno do qual a educação deveria orbitar. “A

gente achava importante era acompanhar o aluno de acordo com o seu desenvolvimento, de

acordo com a aprendizagem dele, e buscando sempre o aluno em primeiro lugar.”

(ARQUIVO 43, p. 8). Como já comentado no Capítulo 1, não havia nada de novo neste

conceito escolanovista. O que ocorria era apenas um resgate da pedagogia defendida por

Comenius, revestida com uma nova roupagem. O aspecto do desenvolvimento cognitivo do

aluno passou a ser considerado. As normalistas deviam procurar „os meios [ou métodos] mais

eficazes pro aluno aprender‟. Esses métodos giravam em torno dos materiais oferecidos pelo

Page 154: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

152

Estado e amplamente utilizados na época: “buscando uma cartilha nova ou buscando,

introduzindo outra coisa junto, outro método junto.” (ARQUIVO 43, p. 8).

A colaboradora citou a dificuldade de adaptação às transições pedagógicas que

surgiriam, modelos metodológicos diferentes no ensino: “Então, nessa transição, nessa

transição, a gente sempre procurava o melhor e, e, e... fazer daquelas duas coisas [o método

anterior e o atual], o melhor visando o aluno.” (ARQUIVO 43, p. 8).

Outro aspecto que fica evidente nesse fragmento é que a escola passou a assumir para

si o dever de formar integralmente o indivíduo, tarefa anteriormente dividida com a família.

“A gente não contava com a família pra ajudar na tarefa da escola. Então a escola procurava

suprir todas as necessidades do aluno.” (ARQUIVO 43, p. 8). De fato, ao assumir o controle

sobre a educação do sujeito, o Estado passou a ter um maior domínio sobre o tipo de homem

que se pretendia formar.

Em classes heterogêneas onde os testes ABC não eram aplicados havia, porém, uma

divisão organizacional em fileiras de alunos fracos, médios e fortes. Desta forma, era possível

que a professora atendesse os alunos de acordo com o seu grau de aprendizado. Continuando

o relato, D. Leila contou:

Porque às vezes um aluno aprendia, tinha mais facilidade pra aprender, então

ele ia bem naquilo. O outro já era mais difícil, então você tinha que usar um

outro método, uma outra maneira pra ele adquirir o conhecimento né. Então

a gente às vezes assim ensinava o aluno individual, porque cada um tinha um

aprendizado, principalmente na primeira série né, que uns aprendiam mais

fácil, outros demoravam mais, outros coisos. Mas a gente procurava uma

hora fazer, por exemplo, dar uma lição da classe maioria, mas não queria

dizer que todos já sabiam né. Mas a gente no momento que dava uma lição,

dava pra todos os meninos, todos os alunos. E depois a gente ia em particular

com aquele que tava mais pra, que não conseguiu. Então existia esse

trabalho todo e eu acho que a gente tinha um pouco mais assim da psicologia

da criança né. Então a gente olhava muito, via muito essa parte da

aprendizagem de um, de outro, então a gente procurava às vezes de outra

maneira, ou um ou outro método, ver se o aluno [...] Aprendia. [...] Todo um

desenvolvimento cognitivo, as coisas né. [...] Porque às vezes você dava

assim, também tinha que ter muito assim um cuidado porque às vezes a

cartilha o aluno decorava né. Então a gente tinha que ter o cuidado na hora

de ver ali se ele ta decorando, se ele ta lendo. [...] Então a gente tinha que

usar métodos assim né, pra verificar mesmo a aprendizagem do aluno. Então

a gente usava, é o que eu falo assim que nós estudamos assim o normal,

ofereceu assim uma psicologia pra gente, nós estudamos psicologia, mas eu

acho assim que foi uma psicologia assim quase de uma faculdade mesmo

viu. [...] Nossa, e como, e como. E a gente pode aplicar isso tudo no dia a

dia, de cada criança, de cada um. Então era muito, isso era muito importante.

(ARQUIVO 43, p. 8-9).

Page 155: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

153

Entender “um pouco mais da psicologia da criança” dava à normalista condição de

observar o “desenvolvimento cognitivo” do aluno e perceber qual o método mais eficiente

para ensiná-lo. É interessante que a colaboradora faz menção de métodos de „verificação da

aprendizagem do aluno‟, porque alguns decoravam a lição da cartilha, mas não sabiam ler.

Neste sentido, pôde concluir, “eu falo assim o Normal, ofereceu assim uma psicologia pra

gente, nós estudamos psicologia, mas eu acho assim, que foi uma psicologia assim, quase de

uma faculdade mesmo viu.”.

Algumas normalistas procuravam inovar os métodos de ensino costumeiramente

utilizados o que causava certa estranheza nas demais colegas de trabalho. D. Cleuza relatou:

Lá, [no Grupo Escolar] vendo as professoras trabalhar, foi um céu pra

mim. Foi um estágio verdadeiro né. Aprendi muito com a professora

Yolanda Guedine já falecida. E aí eu assumi uma classe lá como efetiva de

primeira série com quarenta e cinco alunos que era sempre assim né. E tinha

que alfabetizar, concorrer com um monte de professora famosa sabe, aí eu

pensava, falava, “como que eu vou fazer?” Tinha a cartilha, mas eu queria...

era Caminho Suave [o nome da cartilha] que tinha né. Aí eu tinha também

aquela Sodré: “o pato nada, a pata pá, nada na...”, e a Caminho Suave,

“barriga bá, cachorro ca”, daí eu, como eu tinha muito recurso na música,

que eu estudei música a vida inteira, eu, e como eu sempre fui, tive

dificuldade pra ficar feito boba, escutando alguma coisa alguma coisa, eu

falei “eu vou pôr a música nisso daí”. Aí comecei através da música a fazer

letrinhas pra eles cantarem que era a alfabetização. Aí eu comecei naquele

ano assim do jeito que eu inventei, cantando sabe [RISO]. E aí chegou no

final do ano, que foi um samba... valia ponto por aluno promovido. Ponto

pra você escolher a classe do ano seguinte, pra você manter o seu lugar, um

monte de coisa, valia ponto. Cada aluno valia um ponto. Aí, uma professora

famosíssima, que depois se tornou uma grande amiga minha, a dona Alzira...

como é que era o sobrenome dela? Esqueci o sobrenome dela, ela na hora

dessa avaliação de classificação de pontos o diretor falou: “quem quer falar

alguma coisa?”, “eu quero saber que vantagem eu levei esse ano, porque eu

trabalhei feio, garrei, lutei e promovi X alunos, estou lá com X pontos. A

dona Cleuza chegou esse ano, pegou a classe, ela cantou o ano inteirinho,

toda a vez que ia na classe dela era cantando e dançando com menino

pirolando, passou o mesmo tanto de alunos que eu... gostaria de entender...”.

Aí eu não expliquei nada, ninguém explicou, mas eu ganhei ela. Então foi

assim que eu comecei, cantando e eu sempre fui continuando e usando

recursos da música, você sabe. E a gente fez uma coisa tão linda sem saber,

que foi integração. Era o nosso diretor o seu Dante Guedini e eu tinha uma

amiga que trabalhava na classe ao lado, Neusa Morelli Barbosa com uma

facilidade incrível em matemática, e eu com uma dificuldade incrível em

matemática. E ela com dificuldade incrível na alfabetização e eu com

facilidade porque eu usava esse recurso. Daí ele concedeu que a gente

trocasse. Na hora da matemática ela vinha pra cá e no português na

alfabetização. E vice e versa. (ARQUIVO 12, p. 17).

Page 156: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

154

Nesse relato D. Cleuza admitiu que “foi um estágio verdadeiro” aprender “vendo as

professoras trabalhar”. Quando deparou com uma classe de alfabetização pensou: “como eu

vou fazer?”. Por não querer trabalhar apenas com o recurso da cartilha Caminho Suave, a

colaboradora lançou mão do que sabia fazer bem: “eu tinha muito recurso da música, que eu

estudei música a vida inteira”. Aí decidiu: “vou por música nisso daí”, se referindo às lições

da cartilha, que eram repetidas incansavelmente pelos alunos a fim de serem memorizadas.

“Aí comecei através da música a fazer letrinhas para eles cantarem que era a

alfabetização”. Como observamos, o recurso da memorização começou a ser utilizado, porém

de maneira lúdica, com a utilização da música. Qual foi o resultado desse trabalho? D. Cleuza

contou com entusiasmo: “E aí chegou no final do ano, que foi um samba... valia ponto por

aluno promovido. Ponto pra você escolher a classe do ano seguinte, pra você manter o seu

lugar”. Esse mecanismo de controle e estímulo que o Estado oferecia ao professor que

conseguisse o maior índice de aproveitamento dos alunos, causou polêmica entre as

professoras que não entendiam como alguém que só “cantou o ano inteirinho [...] passou o

mesmo tanto de alunos” que elas.

Mais tarde, com o apoio do Diretor Dante Guedini, ela, juntamente com a professora

Neuza Morelli trabalhariam por disciplina nas classes de primeira série, revezando aulas de

alfabetização com matemática.

Todas as entrevistadas comentaram que na prática faziam uma junção dos métodos

educativos e abordagens teóricas a fim de tirar o que cada um deles oferecia de melhor:

É. Então o meu método de alfabetização que eu sempre colocava na época

era misto né. Porque ao mesmo tempo era, eram analíticas, sintético,

analítico-sintético, misturava... como é que era, o fonético lá, era tudo né.

Depois trabalhei na Dinâmica Espiral l com Montessori. Lá era monitório

quando eu peguei, fiquei no Estado e lá. (ARQUIVO 12, p. 18).

Construtivismo... olha, eu sempre me interei de tudo, porém, na minha

prática, eu nunca defini, assim dizer “eu agora estou seguindo isso”. Não. Na

minha sala de aula, como se diz? Miscelânea. Misto tudo aquilo que eu li,

que eu aprendi de bom em cada um, em cada coisa, você entendeu? Que nem

falava construtivismo, que ninguém sabia o que é que era e todo mundo pá,

pá, pá [onomatopéias de repetição]. Então sem saber como fazer. Porque a

gente precisa ter segurança não é? Então eu nunca pendi assim, dessa forma

né, nunca. Eu sempre aprendia, sabia e aplicava. Porém dentro daquilo que

eu conhecia, que eu já fazia e dava certo, então sempre que eu fui perguntar

em metodologia eu falava isso, misto, é misto. E principalmente agora, de

uns anos pra cá, vinte anos pra cá, mais assumi a educação libertadora né.

Que é justamente isso, ajudar o aluno a se libertar né. (ARQUIVO 27, p.

21).

Page 157: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

155

Notamos nesse fragmento que os métodos de ensino e as abordagens pedagógicas se

confundem na fala da colaboradora, o que é muito comum na medida em que muitos

conceitos, apropriados pelos teóricos educacionais, tiveram sua origem em outras áreas do

conhecimento como é o caso dos estudos de Maria Montessori (1870-1952) e Jean Piaget

(1896-1980). No entanto, não cabe aqui neste trabalho discutirmos a origem e a natureza das

abordagens pedagógicas utilizadas pelas normalistas em sua prática escolar e sim,

percebermos como se apropriavam desses conceitos e os introduziam em sua prática

pedagógica.

Com o tempo, a colaboradora afirmou ter assumido “a educação libertadora” a fim de

“ajudar o aluno a se libertar”. Essa visão de educação que teve em Paulo Freire (1921-1997)

um dos seus maiores defensores no Brasil propõe uma prática diversa da assimilada pelas

normalistas durante o curso Normal, através do currículo escolar e oculto ali ministrado.

Em artigo escrito por Paulo Freire em que compara a “educação bancária”, recebida

nos bancos da escola tradicional à educação libertadora, o autor descreveu assim o papel do

educador:

Sua ação, identificando-se desde logo com a dos educandos, deve orientar-se

no sentido da doação, da entrega do saber. Sua ação deve estar infundida da

profunda crença nos homens. Crença no seu poder criador. [...] A educação

libertadora, problematizadora, já não pode ser mais o ato de depositar, ou de

narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos

educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato

cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o objeto cognicível, em

lugar de ser término do ato cognoscente, educador, de um lado, educandos,

de outro, a educação probematizadora coloca, desde logo a exigência da

superação da contradição educador-educando [...] Em verdade, não seria

possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais

característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade,

sem superar a contradição entre o educador e os educados. Como também

não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo. É através deste que se opera a

superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando do

educador, mas educador-educando com educando-educador. (PATTO,

1997 apud FREIRE, p. 66, 71-72).

É possível notarmos, nos depoimentos da colaboradora, alguma influência desse

pensamento. O que propomos aqui é fazer alguns recortes na evidência oral e analisá-los à luz

do que Paulo Freire caracterizou como o perfil do educador-educando, dentro da visão da

educação libertadora.

Comparando como foi educada e como procurou educar, a colaboradora disse:

Page 158: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

156

A forma que eu fui educada eu te expliquei, agora como eu eduquei, eu senti

que eu dei mais abertura e eu vi mais o ser humano assim, eu fui mais

humana, acredito assim. Embora no início muito da minha vida, da minha

história tenha influenciado pra eu ser assim mais rígida, sabe. Eu sou assim,

eu cobro até, eu me cobro também, eu sou assim comigo. Nesse ponto eu

não mudei, eu exijo que as pessoas sejam responsáveis e compromissadas,

ou então comigo é difícil de trabalhar, é bem difícil. Então, talvez porque eu

tenha sido criada num compromisso entendeu? Tinha que assumir

compromisso. Então eu acho que eu levei pra lá a alegria que eu tinha lá, as

festas, o teatro, a música, o civismo, as exigências... algumas não tão

exageradas né, não tão exageradas. Agora, eu senti assim, que eu tinha um

crescimento agora que eu digo assim, eu não sou mais aquela Cleuza, a cada

dia eu sou uma outra Cleuza. Eu costumo falar muito, ela escuta muito isso...

que eu não sou mais aquela Cleuza, porquê? Porque a gente começa a ter

uma visão diferente, é um novo olhar, um novo olhar do mundo, do ser

humano, até do sofrimento, porque nem todos são assim, como que eu quero

dizer? Você prepara um copo de água... não pode ser dado pra todos na

mesma quantidade né. Pra uns uma dose, pra outros metade, pra outros um

copo inteiro. Então nós temos que descobrir essas diferenças né. Eu, eu acho

que a gente fica mesmo mais humanizada, sabe. (ARQUIVO 12, p. 19).

Como percebemos neste fragmento, embora a colaboradora admitisse ser “rígida”,

“exigente”, acredita que hoje tem uma postura mais “humanizada”. Isso permitiu que ela

passasse a ver o aluno com outros olhos, ver “mais o ser humano”. Neste sentido, é possível

observar uma adesão à visão libertadora que coloca a criança como alguém que pode criar,

por ser humano e não um mero depositário de informações. No entanto, existe o perigo de, ao

perceber as diferenças individuais e buscar humanizar o sujeito, cair na tendência religiosa

fortemente arraigada nas normalistas, e ver a educação como redentora e não, libertadora.

Esse pareceu-nos o caso em outra entrevista, em que a mesma colaboradora disse:

Você sabe que hoje todo mundo quer só bom aluno não é? Isso é muito

comum em todo lugar. Aquele aluno que... porque ser professora de bons

alunos é tão fácil. Agora ser professora de quem tem dificuldade – sejam

elas quais forem as dificuldades – esse é o verdadeiro professor, sabe. Que

não reclama, que não queixa, que busca saber por que, que busca ajudar, que

busca compreender, que tem misericórdia, compaixão sabe, que estende a

mão, que dá o ombro, então é... (ARQUIVO 12, p. 7).

Nesse relato o professor aparece como aquele ser dotado de um perfil quase que

divino: ele tem „misericórdia, compaixão, compreensão, estende a mão, dá o ombro‟. Ele não

está no mesmo patamar que o aluno no sentido de aprender e ensinar ao mesmo tempo, num

processo dialético como propõe Freire. O professor está acima do aluno e, por isso, pode

„estender-lhe a mão‟, num ato de misericórdia. Ele não é um colaborador do seu aluno na

busca do conhecimento e sim alguém dotado de poder para ampará-lo, „dar o ombro‟. Há

Page 159: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

157

nessa fala sempre uma posição vertical na relação aluno-professor em que o primeiro está em

condição superior de auxílio, enquanto o outro precisa urgentemente de sua bondade, ou como

quer a colaboradora, „compaixão‟. No entanto, em outro depoimento a normalista comentou:

“Ser professor é uma riqueza muito grande. Você aprende. A lição que a criança te dá é uma

coisa linda”. (ARQUIVO 42, p. 9).

Assim, podemos concluir que houve certa contradição na fala da colaboradora que,

embora tenha se colocado como adepta da educação libertadora, em muitos aspectos da

evidência oral reforçou os pensamentos oriundos de sua formação escolar-religiosa.

Isso de modo algum desqualifica a evidência oral como uma fonte propensa a grandes

contradições e, por isso mesmo, inválida. Ao contrário, percebemos que a fonte oral por ser

captada em diferentes situações e ocasiões, tem a capacidade de coletar informações variadas

que, quando trazidas à nossa atenção e, cuidadosamente comparadas, podem nos revelar o que

de fato pensam as pessoas que as produziram. Não queremos dizer com isso que existe

intencionalidade por parte das colaboradoras em ocultar dos depoimentos as verdadeiras

motivações que induziram o seu trabalho docente. Embora em algumas pesquisas possa haver

essa intencionalidade devido o teor do tema em pauta, não é esse o caso de nosso trabalho. O

que ocorre é que, de fato, muitas de nossas colaboradoras presenciaram diversas mudanças de

abordagens teóricas e metodológicas aplicadas à educação, o que levou à confusão e à

dificuldade de posicionar-se diante de outra corrente pedagógica.

É fato, porém, que como temos observado em todo trabalho, os valores introjetados

nas normalistas através de sua educação familiar, profissional e religiosa, marcaram

sobremaneira seu modo de ver a educação e sua prática profissional. Isso ficou evidente neste

relato em que notamos a presença do pensamento cristão na ação pedagógica da colaboradora.

Outro aspecto que merece nossa atenção, no tocante aos valores aprendidos pelas normalistas

durante sua formação e, mais tarde, reproduzidos na sua prática profissional, diz respeito ao

conceito sobre a educação.

Como já dissemos anteriormente, para que a normalista realizasse com eficiência sua

tarefa de educar as futuras gerações de trabalhadores, era preciso que adquirisse um novo

conceito de educação.

O novo contexto social, econômico e político, exigia que os futuros trabalhadores

assimilassem novos valores, ligados à vida urbana e ao ambiente fabril, e ao mesmo tempo,

num processo de desenraizamento, rejeitassem os valores e a cultura das gerações passadas,

ligadas ao campo, que representavam o velho, o ultrapassado e que, por isso, deviam ser

Page 160: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

158

substituídos urgentemente pelo progresso, que só viria através do letramento da maior parte

da população brasileira.

De fato, a desvalorização de cada geração de trabalhadores se dá na medida em que a

próxima geração consegue maior qualificação, via sistema escolar, para a realização de uma

determinada tarefa que exige habilidades específicas e, portanto, maior tempo de trabalho

incorporado à sua formação. (BERNARDO, 1989, p. 8-9). Isso explica o processo de

desvalorização da cultura do homem do campo e analfabeto dentro do contexto estudado,

embora não estejamos afirmando que isso tenha ocorrido apenas naquele período

especificamente, visto que é uma característica inerente ao sistema capitalista e, por isso

mesmo, sempre presente.

Na visão da rede, a educação é fundamental, é transformadora:

[A educação] Fundamental, pra mim está em primeiro lugar. Depois da

educação vem a saúde porque você tendo a educação você procura a saúde,

você procura o seu bem estar, procura um trabalho. Pra mim a educação é

fundamental, fundamental. (ARQUIVO 15, p. 15, grifo nosso).

Era pra ter um mundo melhor né. Era pra ser feliz, que todo mundo tem

direito a ser feliz, de estar em paz, de ter lazer, de ter trabalho, de ter comida.

E sempre meu motivo foi mesmo essa razão social, essa responsabilidade

social de estar formando gente feliz, você entendeu? O que adianta educar só

pra aprender a ler, escrever e contar. É pra melhorar a vida, não é? E eu

usava sempre aquilo que eu tinha facilidade, que eu te falei, a música e a

organização de apresentações. Meus alunos aprenderam a coisa mais linda

do mundo. E nessas músicas, nessas poesias, nesses teatrinhos estava tudo

incluído. Era esses assuntos. (ARQUIVO 42, p. 1).

A educação é colocada como fundamental, pois dá o suporte necessário para o

indivíduo de modo geral: „na procura da saúde, do bem estar, do trabalho‟. O homem, por

meio da educação, passa a ser produtivo. Há também uma “razão social” para formar: “a

responsabilidade social de estar formando gente feliz”. Essa convicção de que educar era um

meio de promover a felicidade, de „melhorar a vida‟ do próximo é o que moveu muitas

normalistas à ação, a usar o que tinham aprendido da melhor forma possível.

Outra colaboradora comentou não só o papel da educação, mas o papel da escola e do

professor do seu tempo de magistério:

Eu, eu acho assim, o que talvez seja o objetivo da escola além de transmitir

conhecimentos né, ela também eu acho que influi muito na formação né, na

formação. Porque principalmente aquelas crianças já, desde assim, vamos

supor, dos primeiros anos da escola, do ensino fundamental, ele tem muita

influência né. Além do desenvolvimento normal ele tem influência de

Page 161: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

159

outros, outros professores, outros alunos, o meio que, é muito importante na

formação. [...] Ela é formativa também. Então não é só transmitir o

conhecimento, ela forma também, ela forma. Ele adquire muita coisa,

valores né. Então, por isso que precisa ter muito cuidado né, isso tudo.

Porque de qualquer maneira, mesmo transmitindo conhecimento, o

professor, ele ta transmitindo, ta formando o aluno, ta transmitindo valores.

[...] É. Agora, a verdade, a família influi na educação dos filhos e coisa e tal

né, mas eu acho que a escola também tem um papel muito importante né.

Não sei hoje, não posso falar nada de hoje, a escola de vinte anos atrás e esta

eu não posso falar nada né. [...] Eu não posso falar nada né, eu não posso

falar. Mas na época que eu trabalhei, o que eu vi, a escola era muito... muito

formativa também e muito informativa. [...] Cumpria as duas funções sim.

Agora não posso falar. [...] É. Porque além da parte do patriotismo, depois

de tudo que era muito relevante na escola, eu acho assim que a gente

procurava também a formação moral né, do aluno e eu não sei, eu acho

assim que a maneira, o exemplo do professor, eu acho que na época ele era

muito, muito forte, eu acho que era muito assim, o professor era objeto assim

de observação sabe, parece assim que os alunos olhavam com muito carinho

pro professor, e era um modelo, um modelo. Então houve época em que era

modelo mesmo. (ARQUIVO 43, p. 9-10).

Como já fora dito anteriormente, dentro da pedagogia tradicional a escola tinha por

objetivo „transmitir conhecimentos‟. Nesse aspecto, podemos concluir que o aluno era um

sujeito passivo no processo ensino-aprendizagem, mero depositário de conhecimentos

sistematizados, acumulados pela sociedade. A colaboradora reconheceu a influência que os

professores, os alunos e o meio tinham sobre a formação do indivíduo nos primeiros anos

escolares e, por isso, concluiu: “[a educação] é formativa também”. O professor tem que ter

cautela, “precisa ter muito cuidado [...] porque de qualquer maneira [...] o professor [...] tá

formando o aluno, ta transmitindo valores”. O exemplo do professor falava mais alto na

„formação moral, na parte do patriotismo‟. “O professor era objeto assim, de observação [...]

que os alunos olhavam com muito carinho [...] houve uma época em que ele era modelo

mesmo”.

Isso evidencia que ainda na época de exercício da profissão da colaboradora, a questão

do modelo do professor era muito valorizada como método eficiente de ensino. Na sua leitura

a escola cumpria, de fato, dois papéis: o de formar e o de informar, sendo que o primeiro,

como procuramos reforçar em toda a pesquisa, é o que a instituição escolar tem conseguido

maior sucesso.

Um comentário muito interessante sobre o papel da educação foi feito por outra

colaboradora da rede:

A educação é política. E é justamente na parte política refere-se à formação

do cidadão, certo? É lógico que você não pode descuidar do conteúdo e de

Page 162: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

160

tudo isso, mas então o professor tem que estar a par da situação econômica,

da situação política, enfim... para ele ir orientando os alunos, né? [...] Eu

sempre falo Cristina, primeiro eu falo em dever pra depois ter direitos.

Porque você primeiro, você tem que cumprir o seu dever, pra depois você ter

os seus direitos. Certo? Então essa é a parte política. Nada de ficar

defendendo fulano ou cicrano. Não, de jeito nenhum. (ARQUIVO 28, p. 9-

10).

De acordo com a visão da colaboradora “a educação é política”, ou seja, o professor

deve „orientar o aluno‟ para que ele esteja a par dos seus deveres e direitos. A ordem das

coisas deve ser esta: “primeiro eu falo o dever para depois ter direitos [...] Você tem que

cumprir o seu dever, pra depois ter os seus direitos. Certo?” Essa é a lógica que a escola em

que as normalistas estudaram e, mais tarde atuaram, desejava imprimir na mente das crianças:

se você não cumpre bem os seus deveres, não terá direitos, ou melhor, o trabalhador não tem

direitos porque não cumpre bem os seus deveres. Assim, esse conceito, legitimou as injustiças

econômicas e sociais desviando o foco do verdadeiro responsável – o sistema capitalista –

para o trabalhador, que passou a ocupar o lugar deste, no sentido de assumir toda a culpa pelo

seu insucesso, já que este estava diretamente relacionado ao nível de educação que conseguiu

obter. Neste sentido, a instituição escolar cumpre sua função na sociedade caracterizada pelas

desigualdades sociais, a saber, legitimá-las e sancioná-las, responsabilizando o indivíduo pelo

seu fracasso escolar e pelas consequências advindas dele. Bourdieu e Passeron (1970), assim

explicaram a função da instituição escolar:

[...] a Escola detém simultaneamente a função técnica de produção e de

comprovação das capacidades e uma função social de conservação e de

consagração do poder e dos privilégios [...] Delegando cada vez mais

completamente o poder de seleção à instituição escolar, as classes

privilegiadas podem parecer abdicar, em proveito de uma instância

perfeitamente neutra, do poder de transmitir o poder de uma geração à

outra e renunciar assim ao privilégio arbitrário de transmissão hereditária

dos privilégios. Mas, por suas sentenças formalmente irrepreensíveis que

servem sempre objetivamente as classes dominantes, pois não sacrificam

jamais os interesses técnicos dessas classes a não ser em proveito de seus

interesses sociais, a Escola pode melhor do que nunca e, em todo o caso,

pela única maneira concebível numa sociedade que proclama ideologias

democráticas, contribuir para a reprodução da ordem estabelecida, já que ela

consegue melhor do que nunca dissimular a função que desempenha. Longe

de ser compatível com a reprodução da estrutura das relações de classe, a

mobilidade dos indivíduos pode concorrer para a conservação dessas

relações, garantindo a estabilidade social pela seleção controlada de um

número limitado de indivíduos, ademais modificados por e pela ascensão

individual, e dando assim uma credibilidade à ideologia da mobilidade social

que encontra sua forma realizada na ideologia escolar da Escola libertadora.

(BOURDIEU, PASSERON, 1970, p. 175-176, grifo nosso).

Page 163: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

161

É relevante o fato que a elite não se contentou em transferir para a escola a

responsabilidade de ser transmissora “dos privilégios” por ela conquistados, como “instância

perfeitamente neutra”, que devia estar acima de qualquer interesse de grupos sociais – ela

garantiu seu lugar dentro dessa instituição colocando as normalistas como suas porta-vozes, a

fim de reproduzirem o discurso legitimador das desigualdades sociais. O tópico frasal tantas

vezes repetido nas entrevistas de que a função da educação era „vencer na vida”, é mais uma

das ideologias impregnadas na fala das colaboradoras. É interessante o argumento de

Bourdieu e Passeron (1970) de que mesmo os poucos indivíduos oriundos das camadas

populares que conseguem burlar o sistema de seleção e alcançarem a mobilidade social via

educação, são “modificados por e pela ascensão individual”, legitimando assim „as

ideologias democráticas da Escola libertadora‟.

Entretanto, a maioria dos que introjetaram a idéia de que através do estudo era

possível „vencer na vida‟, perceberam da maneira mais cruel possível que essa teoria, quando

aplicada ao filho do trabalhador, não funcionava da mesma maneira. Um exemplo típico é o

próprio magistério, que teve durante o período aqui abrangido, seu apogeu de glória e

declínio. Isso se deu, como já comentamos no capítulo anterior, porque a partir da lei 5692/71,

o magistério foi destituído de sua posição, tornando-se um curso preparatório em nível de 2°

grau (atual Ensino Médio), funcionando até em período noturno, podendo assim receber entre

os aspirantes a professores primários, trabalhadores que desejavam melhor colocação no

mercado de trabalho. No entanto, quando esta geração alcançou a tão sonhada escola Normal,

seus sonhos de „melhorar de vida‟ se desfizeram porque, junto ao ingresso desse novo

contingente social na Educação, o Magistério perdeu o seu caráter de profissão valorizada,

respeitada como percebemos na fala das colaboradoras citada outrora.

Na prática, ficou difícil perceber a veracidade desse conceito impregnado na cultura

social e repetido no discurso dos professores que, por meio dele, procuram valorizar seu

trabalho.

As crianças, por sua vez, desde muito cedo ouvem que devem ir para a escola para ser

alguém na vida, mas, após anos de esforço, driblando todos os obstáculos que a escola impõe

ao filho do trabalhador que insiste em se qualificar cada vez mais, exigindo um espaço que é

seu por direito nas universidades públicas, percebe que a história não é bem assim. Ser

alguém na vida não depende somente da educação escolar obtida e do esforço individual de

cada um, como a ideologia dominante quer fazer acreditar. E é percebendo esses mecanismos

de dominação que alguns indivíduos se insurgem contra a instituição escolar, como vimos na

introdução, o fragmento oral em que uma empregada da fazenda questionou o valor da

Page 164: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

162

educação e o porquê seu filho deveria frequentar a escola. Para ela era difícil compreender

como a educação é o caminho para alcançar o sucesso, se isso não era facilmente observável

em seu meio, com quem se relacionava.

Por último, falaremos aqui sobre a formação continuada das professoras primárias e

como isso afetou sua experiência profissional.

3.3 Formação Continuada: O Curso de Pedagogia e a Experiência na Gestão Escolar

Como vimos no Capítulo 1, com a implantação da Lei 5692/71 o sistema de ensino

passou por profundas transformações. Um de seus artigos, o de nº. 39, direcionou a história

profissional de nossa rede, ao instituir a remuneração do professor segundo sua qualificação,

independente do grau escolar em que atuasse.

Podemos dizer que esse incentivo por parte do Governo foi um fator preponderante

para que as professoras primárias, que já se encontravam bem próximas à aposentadoria,

ingressassem nos cursos de Pedagogia. Da rede entrevistada, composta de cinco normalistas,

apenas uma abandonou o magistério, indo dedicar-se ao jornalismo e aos programas de Rádio.

Esta, porém, logo depois de casada, concluiu o curso de História na então Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras de Franca, sendo da primeira turma de formandos. As demais, que

atuaram na rede pública de ensino como professoras primárias, neste período ingressaram no

curso de Pedagogia, a fim de conquistarem progressão acadêmica e salarial.

Para a época isso representava um grande esforço, pois o curso Pedagogia, que

anteriormente existia na cidade de Franca, foi transferido para outra cidade no ano de 1976,

com a integração da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Franca à UNESP, o que

obrigou muitas normalistas a viajarem até a cidade mais próxima – Ribeirão Preto12

– que

oferecia o curso em universidades particulares.

D. Edna, a veterana da rede, chegou a se formar em Pedagogia na Faculdade de

Filosofia Ciências e Letras de Franca, fazendo apenas as especializações em Ribeirão Preto, já

na época da extinção do curso na cidade. Ela contou:

Eu me formei primeiro [que a Cleuza], eu devo ter formado em setenta e

dois [...]. Mas foi lá no Moura Lacerda, foi lá em Ribeirão Preto [...] lá foi

especialização. A pedagogia eu fiz aqui. Ainda não era UNESP, era

Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. [...] Desde que a pedagogia veio

12

Ribeirão Preto está situada a 98 km de Franca.

Page 165: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

163

aqui pra Franca, que foi em sessenta... sessenta e sete, por aí mais ou menos,

nem não era aqui, ali no prédio não [...]. Acho que era no Homero Alves,

não sei. Funcionava lá... não sei. Eu tinha vontade de fazer. Aí minha filha,

mas o meu marido não queria que eu fizesse, aí chegou numa época que eu

falei: “não, eu vou fazer...” Certo? E acabei fazendo o curso muito bom, a

pedagogia aí foi muito boa. Embora um pouco tradicional mesmo, mais na

leitura, decorada... Hoje não! Hoje a coisa é diferente, mas foi um curso

muito bom, com professores muito bons [...] Em Ribeirão [Preto]. Na Barão

de Mauá... fiz na Barão de Mauá [especialização] e uma na Moura Lacerda.

E fiz a supervisão também na Moura Lacerda... Barão de Mauá”.

(ARQUIVO 28, p. 11-12).

Neste relato ainda fica evidente a sobrevivência da postura tradicional machista do

homem, que não incentivava que a mulher, que já se encontrava atuante no mercado de

trabalho, continuasse a se especializar através da educação. Em contraponto, notamos que a

mulher oriunda dos grupos mais abastados, educada a se calar diante da vontade do marido,

ao sair para trabalhar, mudou sua postura, se posicionando diante das situações, como um ser

com vontade própria: “Aí minha filha, mas o meu marido não queria que eu fizesse

[Pedagogia], aí chegou numa época que eu falei: „não, eu vou fazer...‟ Certo? E acabei

fazendo o curso”. Era inimaginável para a geração das progenitoras das normalistas a mulher

afrontar a vontade soberana do marido.

Caso inverso contou-nos D. Cleuza, de como ela e o marido acordaram sobre o

revezamento para estudar mais após casados:

Aconteceu também na nossa vida uma coisa, na vida adulta que marcou

tanto o meu esposo quanto eu, é que ele também vem de uma família simples

e que não pode assim prosseguir os estudos, que ele tinha um grupo de

colegas da sala dele, de alunos assim brilhantes. E todos eles tinham o ideal

de fazer faculdade no Largo São Francisco em São Paulo, a de Direito. E

todos foram e ele não pode ir porque ele não tinha condições, o pai dele de

manter ele em São Paulo, então ele era solteiro né, mas nós já estávamos

quase pra casar também. Quase não, depois nós fomos casar daqui uns três

ou quatro anos. E ele começou já a trabalhar. Trabalhar. Como ele formou

também no magistério, ele fez contabilidade, magistério, ao mesmo tempo.

Então ele começou a dar aula. E aí estruturando nossa vida e tudo, quando as

minhas filhas já estavam assim com três, quatro, cinco aninhos que abriu

faculdade de Direito aqui em Franca; ele prestou vestibular e ele fez a

faculdade de Direito aqui, e ele conseguiu se formar brilhantemente, passar

em concurso, que ele foi delegado de polícia aqui na cidade, muitos anos até

aposentar. E isso também foi um motivo muito grande na nossa vida que eu

também fui fazer. Ele falou: “primeiro eu, que você vai ficar com as crianças

e tal, e agora você.” Então eu também fui fazer faculdade em Ribeirão Preto

né, que aqui não tinha pedagogia. [...] E aí eu viajava de van todas as noites.

A gente, aí que eu deixava minhas filhas e viajava pra fazer faculdade. Então

esse acontecimento foi marcante na nossa vida porque a gente mudou nosso

padrão de vida, uma série de coisas porque meu marido passou a ser

Page 166: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

164

delegado de polícia e eu prestei concurso pra ser diretora de escola.

(ARQUIVO 27, p. 4-5).

Percebemos mudanças na cultura social tradicional, em que já se fazia presente a

divisão de tarefas e acordos mútuos entre os cônjuges. Também notamos neste fragmento que

a ampliação dos estudos estava diretamente relacionada a busca de melhor posição social e

econômica, haja vista que o marido da colaboradora, de professor, tornou-se delegado de

polícia e ela, por sua vez, diretora, o que a permitiu concluir: “mudou nosso padrão de vida”.

Após concluir o curso de Pedagogia a alternativa de continuidade dos estudos estava

nos cursos de especialização. Foi nessa época que a rede toda se encontrou, estudando juntas:

Você pensa que nós contentamos só com terminar a pedagogia? A gente

voltou no ano seguinte porque sabe essas habilitações? Hoje você se forma

com todas né, supervisão, magistério, orientação. Naquele ano voltava pra

fazer um ano. Naquele tempo, você terminou a pedagogia e você voltava pra

fazer um ano inteirinho de supervisão. Toda a sexta à noite e sábado dia

todo. E depois voltei pra fazer orientação, voltei pra fazer inspeção, eu fiz

todas as habilitações. Depois as disciplinas para o Magistério, e depois, o

que mais? São cinco orientações, sabia? (ARQUIVO 27, p. 13).

Nós íamos de, arrumávamos van. Não era van na época, era [...] É. Kombi.

E tinha muita gente né, muitos que queriam fazer, a gente ia pra lá. [...] Dois

anos. Nós tínhamos que fazer, fizemos dois anos lá. Aí depois ainda ficamos

fazendo, fizemos o curso de administradores que nós saia pra administrar.

Daí fizemos a, depois foi mais um ano pra gente fazer supervisão, orientação

escolar. Todas aquelas habilidades né, habilitações que tinha nós fizemos

também. Então ficamos com todos os títulos né, da pedagogia. Logo surgiu o

concurso pra diretor, fazia muitos anos que não tinha concurso pra diretor e

logo surgiu. Nós fomos fazer né. Aí conseguimos aprovação... (ARQUIVO

30, p. 22-23).

A disposição das normalistas ficou evidente em todo o relato de experiência

profissional. As adversidades enfrentadas no início de carreira nas escolas da zona rural, como

transporte difícil, longas distâncias a percorrer em lugares ermos, o frio, a chuva, a distância

da família não foram obstáculos suficientemente grandes para abandonarem a profissão. Após

dois terços da carreira profissional cumprida, as normalistas, com a mesma disposição,

enfrentaram trabalhar a semana toda em suas salas de primeira a quarta série e, na sexta feira,

viajarem de Kombi para a cidade de Ribeirão Preto, ficando ali sexta à noite e sábado

estudando. Por alguns anos as normalistas abdicaram, por assim dizer, do descanso para

continuarem a estudar.

Como vimos nos relatos, após concluírem a Pedagogia e as especializações

envolvidas, as normalistas prestaram concurso para Diretor escolar. É digno de nota que das

Page 167: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

165

quatro normalistas que fizeram Pedagogia, apenas uma não quis sair da sala de aula para

assumir cargo de gestão escolar. Explicou que não tinha vocação para cargos de gestão e que

fez a Pedagogia apenas para aumentar o salário:

[aposentou] Como professora. Não, eu não prestei [concurso para

diretora]. Porque quando saiu esse negócio de diretora, que começou todo

mundo de primeiro era só diretor, diretor, diretor, não tinha quase diretora.

Eu já tava quase pra aposentar. Eu falei: “eu vou mexer com isso? Eu não

vou mexer é nada.” E eu não tinha vocação. Esse negócio de papel, ir nessa

Delegacia, essa amolança. Outra coisa que eu não tive vocação é essa

Coordenadora Pedagógica. [...] Não quis [ser diretora]. Porque é muita

antipatia. Eu fiz pedagogia eu sei como é que é, sabe. Você não aprende. Ah

eu tenho dó de quem fala “Ah eu vou fazer pedagogia”. Eu tenho dó, porque

não vira nada, nada, nada, nada. Só pra ter uma coisa. Uma pedagoga no

estabelecimento e não. Uma coisa que não dá certo é o tal de pedagogia. [...]

[Fez a Pedagogia só para] Aumentar salário. Você pode por aí.

(ARQUIVOS 35-36, p. 3).

Como já dissemos anteriormente, as demais colaboradoras prestaram junto o concurso

de Direção Escolar. D. Leila lembrou:

A Edna, a Cleuza... nós fizemos juntas. Pedagogia lá em Ribeirão [Preto] eu

fiz até junto com a Cleuza, lá nós éramos até do mesmo grupo, estudando

mesa, a gente fazia os trabalhos, a gente fez juntas... fiz junto com a Cleuza.

[...] Aí eu fiquei muito bem assim classificada e eu consegui ficar aqui em

Ribeirão Corrente. [...] Então eu fiquei, eu fui pra Ribeirão Corrente. Como

eu já tinha tempo até pra aposentar na época, porque eu já tava com muito

tempo de serviço. [...] É. Mas eu já tava com mais, eu já tava com vinte e

nove quando eu peguei direção de escola. Porque era trinta e de repente

passou pra... aí eu prestei o concurso, aí juntou tudo e eu acabei ficando. [...] Fiquei dois anos e... dois anos, três anos? Fiquei três em Ribeirão Corrente.

Aí vim pra cá, eu vim aqui pro Leporace. [...] Removi pro Leporace, fiquei

lá na escola do Antônio Fachada. (ARQUIVO 30, p. 23-24).

Eu removi pro Antonio Fachada e, tava começando o “Antonio Fachada”, fui

a primeira diretora de lá. Ainda tava o prédio, assim ainda em construção.

[...] Fiquei lá dois anos, dois anos. Porque aí eu completei os cinco anos que

eu precisava pra ficar na jornada integral [...] Por causa da jornada que eu

fiquei. Como professora a minha jornada era parcial. [...] E eu peguei como

diretora a jornada integral. Teria que ficar cinco anos pra receber os

vencimentos integrais né. E fiquei até junho, junho... julho de oitenta e

quatro quando eu aposentei. [...] Acabei ficando, vou dizer, porque como

diretora acabei ficando cinco anos e meio e, como professora, vinte e nove e

meio né. Porque aí eu fiquei mais um pouco como diretora porque eu já ia

completar trinta e cinco anos de magistério. Então eu já esperei completar e

aposentei. Então ao todo, trabalhei trinta e cinco anos. (ARQUIVO 31, p.

1).

Page 168: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

166

Como vimos a colaboradora lecionou durante um período de vinte e nove anos,

dedicando aproximadamente mais seis anos de sua vida à gestão escolar. Durante os trinta e

cinco anos de trabalho no magistério público D. Leila fez o seguinte balanço:

Então nós estávamos sempre atualizando sabe, sempre fazendo curso. E eu

gostava demais de, pra mim, a escola foi tudo pra mim sabe, o magistério...

eu posso falar assim com orgulho que eu me dediquei todo esse tempo como

diretora, como professora, eu me dediquei muito, procurava sempre me

atualizar, sempre métodos novos, modernos, sempre me atualizando. E eu

posso assim lhe dizer com sinceridade que foi um trabalho, que foi uma

época muito boa e que eu fiz com muito carinho e com muito amor. [...] Muito. E eu vou te falar uma coisa... que às vezes a gente fica até assim. Eu

tirei aquele afastamento de dois anos né, sem vencimento. Mas depois disso

eu consegui todas as licenças prêmio que tinha... porquê? Eu nunca tirei uma

licença pra tratamento de saúde, durante trinta e cinco anos minha filha.

Nunca tirei uma licença pra nada, nem pra tratamento meu, nem dos meus

filhos, nada. A única coisa que eu tirava era a licença especial gestante. [...]

E licença prêmio que eu tinha [...] Que eu tinha direito, sabe? Só. Então eu

consegui as licenças prêmio, depois do afastamento eu consegui todas as

licença prêmio que eu tinha direito. E eu nunca tirei bem, nenhuma licença

pra tratamento de saúde, nem minha nem dos meus filhos. Olha, eu levanto

as mãos pro céu e eu agradeço toda a hora isso. Então eu acho que eu me

realizei de todo o jeito. De toda a maneira eu me sinto realizada, sinto assim,

muita paz interior. Eu tenho assim muito... agradecida mesmo a Deus por

tudo que eu fiz. (ARQUIVO 31, p. 1-2).

A busca pelo conhecimento, „por novos métodos de trabalho, mais modernos‟ que

permitissem se atualizar durante sua carreira, deram à colaboradora a sensação de ter feito um

bom trabalho. O senso de responsabilidade, incutido desde a infância pela educação familiar,

escolar e religiosa, levou a colaboradora a assimilar o papel que devia assumir diante seus

alunos e diante a sociedade, como modelo de auto-disciplina e diligência no trabalho. Assim

pode falar com orgulho: “nunca tirei uma licença pra nada, nem pra tratamento meu, nem dos

meus filhos, nada. A única coisa que eu tirava era a licença especial gestante [...] e a licença

prêmio que eu tinha direito”. Esse aspecto da memória das normalistas é muito interessante

porque foi repetido por outras colaboradoras da rede. D. Edna fez o seguinte balanço de sua

carreira:

Eu tenho a dizer a você assim que eu me considero uma pessoa realizada

profissionalmente, certo? Não posso dizer pra você que sou a tal. Eu me

considero cumpridora do meu dever. Nunca deixei de, aliás, falei pra você

faltas... eu não tinha faltas. [...] Eu não tinha falta. Eu não faltava. Nós

tínhamos o direito de seis faltas por ano. Não, eu não faltava. Quando estava

trabalhando, nem férias eu tirava, porque constantemente entrando, como

diretora né. Voltando na escola, então... uma formação meio tradicional,

trabalhei de uma forma meio tradicional, depois fui me atualizando, certo, e

Page 169: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

167

estou parando de trabalhar, mas não é porque eu quero não. Eu gostaria de

continuar. (ARQUIVO 28, p. 20).

A sensação de haver „cumprido com o dever‟, de „nunca ter faltado‟, dá ao discurso da

normalista um tom épico de quem fez algo sobrenatural, digno de heroínas. No entanto, é

mais coerente concluirmos que isso se deve ao fato de que a própria educação por elas

recebida, engendrou-lhes valores de excelência de produtividade no trabalho, que foi exigida

não só de seus alunos, mas delas próprias, como é evidente no depoimento oral.

Uma das normalistas de nossa rede chegou a ser supervisora de ensino. Ela contou:

Pouco tempo. Eu ingressei em setenta, setenta e nove... É. Fevereiro de

setenta e nove. Então eu fiquei setenta e nove, oitenta. Aí eu prestei concurso

pra supervisor. Porque do [colégio] Jorge Falleiros eu vim para o CEDE,

Davi Carneiro Ewbank. Lá eu fiquei um ano e meio mais ou menos, aqui

fiquei um ano. Aí prestei o concurso pra supervisor e fui pra Ituverava.

Escolhi Ituverava. E como eu já tinha o tempo para aposentar, trinta e cinco

anos bem, aposentei com trinta e cinco anos. E de modo que foi pouco

tempo. (ARQUIVO 28, p. 12-13).

Após aposentar-se no ensino público como supervisora, nossa colaboradora continuou

até os 80 anos a lecionar no curso de Pedagogia da UNIFRAN, tendo concluído Mestrado e

Doutorado. Entretanto, quando foi questionada em que função mais gostou de atuar, ela

respondeu “Para ser sincera, foi na sala de aula. [...] Alfabetização. [...] Com alfabetização eu

devo ter trabalhado assim uns quatro anos, quatro anos”. (ARQUIVO 15, p. 16).

Apesar das colaboradoras terem, em sua maioria, exercido cargos de gestão escolar,

houve uma unanimidade em reconhecer a sala de aula como o lugar da normalista por

excelência. Foi para educar crianças que elas foram preparadas e isso ficou evidente em suas

histórias de vida e trabalho.

Page 170: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

168

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa aqui empreendida teve por objetivo trabalhar a memória de uma

categoria social e profissional representativa na história da educação brasileira: as

normalistas. Um estudo pormenorizado sobre como se desenvolveu o sistema de ensino no

Brasil, permitiu-nos traçar um fio condutor através do qual desenvolvemos a pesquisa, a

saber, a educação como meio de produção das condições necessárias para a manutenção da

hegemonia de determinados grupos.

A dualidade do sistema de ensino, que prevê um tipo de educação para os filhos

oriundos da elite, e outro, para os filhos dos trabalhadores, têm suas raízes no modelo

educacional colonial excludente. Tal modelo oferecia aos índios e filhos de colonos – os

braços responsáveis por manter o sistema colonial em funcionamento até a chegada do negro

africano, que ficou alijado do sistema educacional – uma educação adequada às atividades

que ocupariam na sociedade. Como vimos, bem outra era a situação dos filhos dos grandes

latifundiários, que recebiam uma educação literária, com pouco sentido prático, mas que

chancelava seu status quo.

Esse mesmo modelo se repetiu durante o Império e, com a introdução da República,

passou a sofrer algumas alterações, não na estrutura dualista propriamente dita, que

permaneceu inalterada, mas nos discursos liberais introduzidos na medida em que os grupos

emergentes começavam a ver na educação, um meio de alcançar maior poder. Por outro lado,

os velhos grupos hegemônicos buscavam na educação uma forma de não perder seu status,

anteriormente garantido economicamente, como foi o caso da elite cafeeira em decadência, a

partir da década de 1930.

Podemos verificar, por meio dos relatos orais, como se deu de fato, na mentalidade

desses dois grupos, a busca da educação como instrumento de poder. Para as normalistas,

filhas de fazendeiros decadentes, estudar significava manter o status outrora adquirido

economicamente, no auge do café. Já para as normalistas, filhas de comerciantes e alfaiates

economicamente emergentes, a mentalidade era outra: estudar garantiria o reconhecimento

que seus pais – em alguns casos com menos estudo que elas – não tinham da elite cafeeira

local. Apesar de, com o crescimento da cidade, ocorrer um grande impulso no comércio, e

florescer uma nova elite urbana, esta não era considerada pelos cafeicultores como seus pares,

talvez por não ter o requinte que a formação tradicional exigia. Assim, para sentirem-se

membros desse grupo, era preciso absorver sua cultura social, seus costumes, sua tradição, e a

escola era o melhor lugar para aprender tal conteúdo. Vale lembrar que muitos desses

Page 171: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

169

profissionais, por serem imigrantes, tinham como única via de acesso à língua e às tradições

locais, os filhos, que eram enviados para a escola a fim de aprender e, depois ensiná-los em

casa. Dona Leila contou-nos como seus pais, de origem síria aprenderam o português:

[Aprenderam] A falar [português], mas não aprenderam. [...] A escrever.

[...] Porque na época eles não tinham oportunidade pra isso né. Porque só

vieram assim, numa situação muito difícil pra trabalhar mesmo. Então

lutaram muito no começo, pra conseguir sustento e tudo, então eles não

sabiam nem ler e nem escrever o português assim.

Cristina: Então eles tinham uma certa, eu to perguntando isso pra saber se

eles tinham uma certa dificuldade na orientação dos filhos quando os filhos

estavam na escola. Na realidade o que vocês aprendiam é que vocês levavam

pra casa. Não era o contrário, não eram os pais que conseguiam auxiliar

vocês nas tarefas...

D. Leila: É. Porque na ocasião também a escola era também uma, oferecia

assim... tudo pro aluno [INAUDÍVEL]. Com as explicações dos

professores e tudo mais, não só eu, mas todos da época não tinham a

necessidade dos pais orientarem nada quanto a aprendizagem. Acho que a

gente já adquiria na escola [...] Com aquilo de adquirir hábitos bons né. A

escola colaborava com tudo. (ARQUIVO 30, p. 2-3. grifo nosso).

Ter filhas bem criadas, com a educação das filhas dos grandes fazendeiros, dava a

esses homens ligados ao comércio e às profissões liberais, em sua maioria imigrantes ou

descendentes diretos deles, a sensação de pertencimento ao grupo, e o status que talvez não

tivessem, por não pertencerem a um família rica, tradicional. Esse status não era alcançado

apenas pelo sucesso econômico, mas, sobretudo, pelo diploma, o que as normalistas tinham

com muito orgulho: “Mas isso [ser a primeira na família a se formar como normalista] foi

uma honra, para a família, certo. E ela, a mamãe sentia assim gloriosa de ter conseguido com

que eu me formasse como normalista”. (ARQUIVO 15, p. 4).

As transformações econômicas e políticas ocorridas no limiar do século XX no

Brasil foram responsáveis pelas disputas de poder entre os grupos emergentes e a elite

dominante, ligada ao sistema agrário-exportador. A educação tornou-se a pauta das discussões

entre intelectuais, dando origem ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que lançou

temas pertinentes como a laicidade, a obrigatoriedade e a coeducação dos sexos, que foi

retomado nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional dando um caráter liberal a

elas.

É importante observar que estas transformações legislativas foram todas vivenciadas

pelas normalistas, ora como alunas, ora como professoras e gestoras, o que nos ajuda a

compreender como foram sentidas na prática, no cotidiano escolar. Isso permitiu-nos uma

discussão pertinente sobre o abismo existente entre os modelos educacionais discutidos e

Page 172: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

170

definidos pelos intelectuais e legisladores que pensam e escrevem sobre educação e o ponto

de vista de quem vivencia a prática pedagógica. Percebemos a incompreensão das normalistas

com respeito às mudanças ocorridas nas leis, como foi o caso da reorganização do ensino

(LEI 5692/71) que, do ponto de vista delas, causou uma desordem, “Então, era uma coisa

muito, muito, não sei como vou te falar, assim, desorganizada e não tinha jeito de organizar

aquilo. Então a escola ficou assim, saturada sabe? Ela não comportava aquele número de

alunos.” (ARQUIVO 32 p. 3).

O modo como as normalistas foram educadas ditou a forma como elas se portaram,

como porta-vozes dos interesses de uma elite dominante, que tinha no sistema educacional,

uma função determinada: a formação de braços operantes e mentes dóceis para o sistema

fabril então em desenvolvimento no Brasil.

A escola precisava se abrir, tornar-se obrigatória, formar tanto homens como

mulheres, eliminar o exame de admissão (LEI 5692/71) para garantir ao jovem alcançar a

educação técnica que a lei anterior (4.024/61 art. 1º) previa, como fundamental para o

desenvolvimento econômico do país. Foi difícil para as normalistas assimilar e compreender

tantas mudanças.

A educação recebida no lar, inspirada na organização da família patriarcal

tradicional, adicionada que foi aos valores religiosos e morais ministrados nos colégios

confessionais que ofereciam o Curso Normal, com suas marcantes características de civismo,

obediência, ordem, moral e religião, foi a base sobre a qual se formou a identidade das

normalistas.

Ficou evidente nos relatos a força do currículo oculto na formação dos conceitos das

normalistas e na sua prática pedagógica. Percebemos isso em tópicos frasais como „o

professor modelo‟, em que a descrição da normalista, feita por diferentes colaboradoras se

confunde. Nesse momento, diferentes memórias se mesclam, como se fizessem parte do

mesmo depoimento, mostrando-nos quão forte era a presença e a postura do professor, como

meio ou instrumento de ensino, pois isso ficou marcado, tanto na memória, como na sua

prática profissional.

A „escola de qualidade‟, alardeada pelas normalistas nas entrevistas, com educação

de altíssimo nível, nada mais era que uma instituição reforçadora de modelos tradicionais, que

a elite devia cultuar a fim de se distinguir dos demais grupos sociais e, ao mesmo tempo,

dominá-los. Percebemos através dos relatos orais, a ausência de conhecimentos científicos no

currículo das normalistas, que não citam conteúdos relativos às grandes áreas do

conhecimento (exatas, biológicas, humanas) ministrados no curso. O que certificamos foi o

Page 173: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

171

quanto o currículo escolar, principalmente do curso Normal, priorizava a formação da mulher

enquanto cuidadora do lar e dos filhos, sendo a escola, uma extensão da casa, e os alunos a

continuidade da família. Isto justificava a inclusão de disciplinas como artes manuais, polidez

e música, em detrimento de outras, mais consistentes para formação das futuras professoras.

De fato, o que ficou para as normalistas, gravado como que com ferro de marcar sua memória,

foi o currículo oculto, reforçador das ideias dos grupos dominantes e o currículo escolar,

baseado na formação do perfil da normalista; estes se tornaram a base sobre a qual foi

desenvolvido todo o discurso hegemônico que deviam tomar para si e apregoar durante sua

prática pedagógica.

Neste sentido, é impossível não pensar que a educação das normalistas, forjadas

sobre a égide das ideias de igualdade e democracia, foi eficiente em reproduzir as

desigualdades de um sistema dualista de ensino e sociedade, na medida em que priorizou um

currículo vazio de conteúdo e recheado de conceitos, modelos e práticas reforçadoras do

status do grupo.

No entanto, quando levantamos a questão da prática pedagógica das normalistas

como reprodutora de um sistema de exclusão, no qual os grupos sociais, através da educação,

continuam a ocupar o espaço que lhes é conferido na sociedade, não estamos de modo algum

afirmando que as normalistas tinham plena noção do papel que ocupavam nesse jogo de

interesses. De fato, as normalistas receberam uma educação eficiente tanto no lar, quanto na

igreja, assim como na escola, o que permitiu a elas formar um conjunto de valores

correspondente à ideologia que deviam transmitir, e por crerem nela, o fizeram com grande

eficácia.

Notamos na evidência oral a importância que as normalistas davam à educação, que

demonstra-nos o quanto absorveram o discurso liberal de que a educação era uma forma clara

de ascensão social ou, nas palavras das normalistas de „vencer na vida‟. Neste aspecto a

pesquisa mostrou que as normalistas, como porta-vozes do sistema, assimilaram o discurso

liberal e o legitimaram em sua prática pedagógica sem, no entanto, notarem quão

contraditório é o discurso da realidade que se vê no cotidiano escolar, permeado pela

exclusão, em que nem sempre estudar, significa vencer na vida.

Quando convocadas a lembrar, as normalistas tratam com serenidade o passado,

como quem tem a certeza que cumpriu com a tarefa que lhe foi conferida:

Eu acho que é o que eu queria fazer, que eu gostei de fazer e que. [...] Eu me

senti realizada na profissão. Realizada e muita paz. Não tenho nada de

arrependimento, nem nada assim, nada. Pra mim o tempo foi muito bom,

Page 174: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

172

valeu. Eu acho que eu fiz aquilo que tava ao meu alcance fazer, eu fiz o

melhor possível. Eu deixei as coisas que eu deixei por fazer, não por

omissão, ou porque não quis, nada. Naturalmente eu não tinha condições de

fazer. Mas tudo o que eu pude fazer, eu fiz. Então eu me sinto mesmo

realizada. Já tô fazendo quase vinte e cinco anos que eu aposentei né. Vai

fazer agora, esse ano, vinte e cinco que eu aposentei. (ARQUIVO 32, p.

25).

Não apenas no breve trecho citado acima, mas também em outras frases ditas é

possível compreender até que ponto as normalistas tinham noção de seu papel no sistema

educacional. Fica evidente que o que reproduziram em sua prática pedagógica foi o conjunto

de crenças e valores fortemente enraizados na cultura do grupo social onde tiveram origem, e

que, justamente por isso, foram tão eficientes em cumprir o papel de educadoras. Narcisismo

educacional, é verdade, educação pelo espelho: educar no outro aquilo que vê em si.

Durante as entrevistas, foi possível perceber que quando sua memória, conjunto de

valores e crenças foram confrontados com fatos, demonstrando as contradições existentes

entre a ideologia apregoada por elas, e a prática no cotidiano escolar, em muitos casos houve

momentos de choque e tentativa de elaboração do próprio discurso, a fim de adequá-lo ao

real, sanando as discordâncias evidenciadas.

Esses foram os casos de temas polêmicos como a eliminação do exame de admissão

ou a democratização do ensino, que provocaram um discurso elitista que defendia que a

escola de qualidade e não quantidade, como se estes conceitos fossem excludentes. No

entanto, ao serem confrontadas com a ideia de exclusão social da educação anterior à

democratização do ensino, as normalistas, nas próprias entrevistas ou em conversa à parte,

com gravadores desligados, justificaram que a abertura da escola para todos teve sua parte

positiva, ao dar maior condição de acesso à grande massa alijada do processo educacional.

Contudo, as normalistas não compreenderam que a escola, mesmo após reformas

como a 5692/71, continuou excludente, pois embora a lei garanta a obrigatoriedade do ensino

até a 8° série (atualmente 9° ano), a exclusão se dá no seio da escola, durante o processo

educacional, direcionando os grupos para ocuparem suas respectivas funções na sociedade.

Como vimos, tentar burlar tal seleção, na maior parte das vezes, resulta em insucesso, como é

o caso hoje do magistério, antes considerado profissão de status e atualmente pouco procurada

por membros da elite, e reconhecido por muitos, como trabalho para quem não conseguiu

sucesso em carreira melhor, dado o nível de desqualificação e desvalorização do professor na

sociedade brasileira.

Page 175: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

173

As reformulações dos discursos por parte das normalistas, longe de desqualificar a

História Oral como método capaz de resgatar a memória de um grupo, mostrou, pelo

contrário, que é flexível. Através dela é possível penetrar no passado, trabalhar com o vivido

no tempo distante, e retrabalhar ideias e pontos de vista que pareciam fossilizados no tempo,

mas que, pela ação do pensamento e do relembrar de pesquisador e colaborador, são

chamados novamente à arena das ideias no tempo presente. Debater, questionar e reformular

na medida em que o sujeito se permite lembrar.

Page 176: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

174

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Jane Soares de. A formação docente ao longo da história da educação.

Pedagogia Cidadã: Cadernos de Formação. 3. ed. São Paulo: UNESP, Santa Clara Editora,

2005. p. 111-126.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença, 1974.

120 p.

ANTONIL, André João. Cultura e opulência no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.

APPLE, Michael W. Educação e poder. Maria Cristina Monteiro (Trad.). Porto Alegre:

Artmed, 1989. 201 p.

_____. Ideologia e currículo. Carlos Eduardo Ferreira de Carvalho (Trad.). São Paulo:

Brasiliense, 1982. 246 p.

ARQUIVO Permanente da FHDSS da Universidade Estadual Paulista. Jornal Comércio da

Franca. 2 mar. 1941 e 25 set. 1949. p. 1, 3, 5.

ARQUIVO Permanente da FHDSS da Universidade Estadual Paulista. Poliantéa

Comemorativa dos 50 anos do Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Franca, 1938. rolo 28.

AZEVEDO, Fernando de. A Cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil. 4.

ed. rev. e amp. Brasília: UnB, 1963. (Biblioteca básica brasileira, v. 4).

_____. A reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo: o manifesto dos

pioneiros da Educação Nova (1932). Revista HISTEDBR, Campinas, n. especial, ago. 2006.

p. 188-204. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/doc1-22e.pdf>. Acesso em:

2 mai. 2009.

_____. Manifesto dos educadores: mais uma vez convocados (janeiro de 1959). Revista

HISTEDBR, Campinas, n. especial, ago. 2006. p. 205-220. Disponível em:

<http://www.histdbr.fae.unicamp.br/doc2_22e.pdf>. Acesso em: 17 mai. de 2009.

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.

Paulo Neves da Silva (Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1990. 204 p.

BERNARDO, João. A produção de si mesmo. Educação em Revista, Belo Horizonte n. 9,

jul. 1989. p. 8-9.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos 3. ed. São Paulo: Companhia das

Letras, 1994. 484 p.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria

do sistema de ensino. Reinaldo Bairão (Trad.). 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1970.

BRASIL. Ato adicional de 12 de Agosto de 1834. Disponível em:

<http://www.fernandodannemann.recantodasletras.com.br/visualizar.php/idt=1033609>.

Acesso em: 11 abr. 2009.

Page 177: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

175

BRASIL. Constituição da república dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de

1834. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%c3%A7ao34.htm>. Acesso em:

22 jul. de 2009

BRASIL. Constituição da república dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de

1937. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%c3%A7ao37.htm>. Acesso em:

22 jul. 2009.

BRASIL. Constituição da república dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de

1946. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%c3%A7ao46.htm>. Acesso em:

22 jul. 2009.

BRASIL. Constituição da república dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de

1891. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em:

10 abr. 2009.

BRASIL. Constituição política do império do Brasil, de 25 de março de 1824. Disponível

em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso

em: 10 abr. 2009.

BRASIL. Escriptura da Constituição da Sociedade Civil “Escola Normal Livre” de Franca.

Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 31 jun. 1930.

BRASIL. Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961 – Fixa as diretrizes e bases da

educação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4024.htm>. Acesso

em: 22 jul. 2009.

BRASIL. Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971 – Fixa diretrizes e bases para o ensino de

1º. e 2º. graus. Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/5692_71.htm>. Acesso

em: 22 jul. 2009.

BRASIL. Lei Orgânica do Magistério de 1946, decreto 8. 530, de 2 de janeiro de 1946.

Disponível em: <http://www.soleis.adv.br/leiorganicaensinonormal.htm>. Acesso em: 20 jul.

2009.

CALEIRO, Hygino Jacintho. Hygino de Oliveira Caleiro: um exemplo. 1967. 33 f.

Monografia de Conclusão de Curso (História) – Universidade Estadual Paulista, Franca, 1967.

COMENIUS, João Amós. Didática magna, 1627. Disponível em:

<http://www.culturabrasil.pro.br/didáticamagna/didáticamagna-comenius.htm>. Acesso em: 6

jun. 2009.

FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. A educação no Brasil nos anos 60: o pacto do silêncio.

São Paulo: Loyola, 1985. 46 p.

FERNANDES, Mariano Enguita. Face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo.

Porto Alegre: Artmed, 1989. 255 p.

Page 178: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

176

FERREIRA, Marieta de M. História oral e tempo presente. In: (Re) Introduzindo a história

oral no Brasil. José Carlos Sebe Bom Meihy (Org.). São Paulo: Xamã, 1996. p. 11-21.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Raquel Ramalhete (Trad.).

Petrópolis, Vozes, 1987. 288 p.

FREIRE, Paulo. Educação “bancária” e educação libertadora. In: Introdução à psicologia

escolar. Maria Helena Souza Patto (Org.). 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

FREITAS, Myrtes Palermo C. de. A diversificação das atividades econômicas no

município paulista de Franca (1900 – 1930). 1979. 197 f. Dissertação (Mestrado) –

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 1979.

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 507 p.

_____. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 417 p.

GIGANTE, Marcos Antônio. História oral de idosos asilados em São Carlos – SP: velhice,

asilo e memória da cidade. 2008. 225 f. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual Paulista,

Franca, 2008.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. 189 p.

IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002. 95 p.

LEMME, Paschoal. O manifesto dos pioneiros da Educação Nova e suas repercussões na

realidade educacional brasileira. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 86,

n. 212, jan./abr. 2005. p. 163-178. Disponível em:

<http://www.inep.gov.br/download/70Anos/texto_Paschoal_Lemme.pdf>. Acesso em: 5 mai.

2009.

LOURENÇO FILHO, Manoel Bergström. A formação de professores: da Escola Normal à

Escola de Educação. Ruy Lourenço Filho (Org.). Brasília: INEP, 2001. Disponível em:

<http://www.undime.org.br/htdocs/download.php?form=.pdf&id=32>. Acesso em: 2 mai.

2010.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 1996.

MONARCHA, Carlos. Lourenço Filho e a organização da psicologia aplicada à educação:

São Paulo, 1922-1933. Brasília: INEP, 2001. Disponível em:

<http://www.inep.gov.br/download/cibec/2001/colecao_lourenco_filho/psicologia_aplicada_e

ducacao.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2010.

PETITAT, André. Produção da escola / produção da sociedade: análise sócio-histórica de

alguns momentos decisivos da evolução no ocidente. Eunice Gruman (Trad.). Porto Alegre:

Artmed, 1994.

REGISTROS e memórias. Michele Meletti de Sant‟Ana Aimoli, Analice A. Silva (Org.).

Franca: Diretoria de Ensino, 2007. 985 p.

ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. A história da educação no Brasil (1930/1973).

Petrópolis: Vozes, 1978.

Page 179: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

177

SANFELICE, José Luís. O manifesto dos educadores (1959) à luz da história. Educação e

Sociedade, Campinas, v. 28, n. 99, maio/ago. 2007. p. 542-557. Disponível em:

<http://www.scielo.br/pdf/es/v28n99/a13v2899.pdf>. Acesso em: 19 mai. 2009.

SANTOS, Oder José dos. Pedagogia dos conflitos sociais. Campinas: Papirus, 1992.

SKIDMORE, Thomaz E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1988.

TEIXEIRA, Wagner da Silva. Educação e poder local: a formação do sistema de ensino em

Franca e os limites da cidadania (1889 – 1928). 2000. 135 f. Dissertação (Mestrado) –

Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Franca, 2000.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

XAVIER, Maria Elizabete Sampaio Prado. Capitalismo e escola no Brasil: a constituição do

liberalismo e as reformas do ensino (1931-1961). Campinas: Papirus, 1990.

Page 180: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

178

ANEXO

Questionário pelo qual os praticantes guiam a crítica das aulas dadas pelos seus colegas

(4º ano)

I. Higiene

1) Os utensílios e o material didático empregados e a maneira de empregá-los corresponderam

às boas normas da higiene pedagógica?

2) O tempo destinado à aula podia por si só provocar a fadiga?

II. Governo dos alunos

1) O professor soube provocar e manter a atenção de toda a classe?

2) De que recurso usou para isso?

3) Teve palavras ou gestos de persuasão aos desatentos e aos tímidos? Soube usar de pausas?

Movimentou bem o material didático?

III. Método

1) O assunto estava perfeitamente delimitado? Para a classe, cabia no tempo?

2) O material usado foi o melhor de que podia dispor? Foi pouco? Foi demasiado? Mostrado

muito apressadamente?

3) O desenvolvimento do assunto seguiu os passos formais do método?

a) o professor exigiu a atividade dos alunos?

b) a apresentação dos novos conhecimentos foi feita com base nos conhecimentos já

adquiridos?

c) o trabalho mental (análise e generalizações) estava adequado à idade e ao desenvolvimento

da classe?

d) o professor apressou-se a dar alguma conclusão que podia e devia esperar dos alunos?

e) não divagou inutilmente?

f) não ensinou pelo erro? Se o fez, como e quando?

4) A atitude do professor foi sempre correta e conveniente? Havia entusiasmo na lição, sem

exagerado calor que a tornasse ridícula? A linguagem esteve clara? A pronúncia foi correta e

elegante?

5) Que utilidade teve a aula? Foi meramente instrutiva? Abusou da memória das palavras?

Page 181: “GUARDIÃS DO SABER”: A MEMÓRIA DAS NORMALISTAS DE … · 1.3.4 Embates ideológicos em torno do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação ... Diretrizes e Bases da

179

6) Que coisas novas diria, ou que coisas não diria, se a aula estivesse em suas mãos? No seu

plano organizado para a mesma aula há alguma particularidade interessante? Qual?

Escola Normal de Piracicaba, 15 de janeiro de 1922.

O professor:

M. Bergström Lourenço Filho