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VINÍCIUS LIEBEL GUERRA E HUMOR A formação da opinião pública pela mídia no período da Segunda Grande Guerra – o caso das charges – Monografia de conclusão de curso entregue ao Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFPR. Orientadora: Profa. Dra. Marionilde Brepohl Magalhães. CURITIBA 2004

GUERRA E HUMOR

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Page 1: GUERRA E HUMOR

VINÍCIUS LIEBEL

GUERRA E HUMOR

A formação da opinião pública pela mídia no período da Segunda Grande Guerra

– o caso das charges –

Monografia de conclusão de curso entregue ao Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFPR. Orientadora: Profa. Dra. Marionilde Brepohl Magalhães.

CURITIBA

2004

Page 2: GUERRA E HUMOR

II

AGRADECIMENTOS

Abro este trabalho agradecendo a meus pais, que não mediram esforços para que eu

pudesse estar hoje concluindo esse curso. Agradeço pelo apoio financeiro e principalmente

emocional. Espero que este trabalho agrade a ambos, pois no final das contas, é a vocês que

busco orgulhar com ele.

Agradeço muito à Silvia, minha amada companheira, que me tem “agüentado” há

alguns anos e que sempre me confortou e apoiou em todos os momentos, bons ou ruins.

Obrigado pela sua constante e importante presença.

Devo muito também à minha orientadora, Dra. Marionilde Brepohl de Magalhães,

que buscou sempre me ajudar nesta pesquisa, leu incansavelmente este trabalho, deu suas

preciosas opiniões e me amparou em minha recém iniciada carreira acadêmica. Sem sua

amizade e sapiência, este trabalho não seria possível.

Ao Ramon, pelo apoio e amizade incondicionais, pelas inúmeras conversas e

momentos de descontração, pelo apoio técnico no trato das imagens, meus mais sinceros

agradecimentos.

Agradeço o apoio financeiro da Proec/UFPR, que através de uma bolsa de pesquisa

e extensão, ajudou o sustento desta pesquisa. Ao Instituto Goethe, pelo fornecimento de

uma bolsa-trabalho para que o aprendizado da língua alemã não fosse mais árduo do que já

é. Também aos Institutos de Imigração de São Paulo e Martius-Staden pela atenção com

que me atenderam no decorrer da pesquisa. Meu sincero agradecimento ao professor

Randall Bytwerk que, gentilmente, permitiu a utilização das imagens alemãs oriundas do

“German Propaganda Archive”, acervo por ele organizado em conjunto com a Calvin

College de Michigan, EUA.

Finalizo em reverência ao meu avô, Marcos Liebel, que infelizmente não pôde ler

este trabalho. Pelos momentos de alegria, pelo companheirismo e pela amizade, pelo

exemplo de pessoa e pelo constante incentivo, com imensa saudade agradeço.

Page 3: GUERRA E HUMOR

III

SUMÁRIO

1) Introdução

1.1)Da Imprensa

1.2) A Indústria Cultural

1.3) Imprensa e Humor

2) Da Natureza da Charge

2.1) As características técnicas da charge

2.2) O humor das charges e as

explicações psicanalíticas

3) Primeiro caso: as charges de Belmonte

3.1) Características do Traço de

Belmonte

3.2) O desenho de Belmonte e a Guerra

4)Segundo caso: as charges de Chichorro

4.1) Características do Traço de

Chichorro

4.2) O desenho de Chichorro e a Guerra

5) Terceiro Caso: as charges no Terceiro

Reich

5.1) Característica do Traço de Fips

5.2) O Desenho de Rupprecht e o

Nazismo

6) Conclusão

P. 01

P. 01

P. 03

P. 05

P. 08

P. 10

P. 15

P. 23

P. 24

P. 29

P. 45

P. 46

P. 51

P. 67

P. 69

P. 72

P. 89

Page 4: GUERRA E HUMOR

IV

7) Bibliografia

P. 98

Page 5: GUERRA E HUMOR

1

1) INTRODUÇÃO:

O desenho humorístico, especialmente no século XX, tem papel garantido na

crônica dos grandes acontecimentos. Tal como um jornalista – e por quê não dizer também

como historiador – o chargista observa e remonta criticamente os fatos relevantes de sua

época. O papel do desenhista ganha ainda mais relevância em governos ditatoriais, sejam

autoritários ou totalitários, quando a liberdade de expressão é suprimida e a charge surge

como um dos únicos canais de protesto.

Constatando a peculiaridade das fontes iconográficas, vislumbramos a possibilidade

de trabalharmos com as charges e suas significações no período do maior conflito armado

da história contemporânea, qual seja, a Segunda Guerra Mundial.

O presente trabalho busca analisar, portanto, o papel da charge e da caricatura na

formação da opinião pública. Os objetos da pesquisa são as charges veiculadas em jornais e

revistas nas décadas de 30 e 40, em especial, as referentes ao regime nacional socialista de

Adolf Hitler.

O tema exige algumas considerações para além do interesse que o próprio tema

evoca, - a linguagem crítica que burla a censura, o discurso jornalístico como formador da

opinião pública, a iconografia como alternativa ao discurso argumentativo na propagação

política, entre outros. É necessário que nosso objeto seja entendido a partir do campo de

poder político em que se insere. Para tanto, analisaremos a seguir três fatores:

1.1) Da Imprensa:

Muito se fala nos dias atuais sobre o papel da imprensa na sociedade. A missão de

transmitir a notícia com imparcialidade (missão praticamente impossível) esbarra nas

opiniões e crenças do próprio jornalista, quando não na posição e tendência política do

veículo de comunicação.

Não se trata de falta de ética, mas sim da própria condição humana. Ao relatar um

determinado fato, naturalmente as palavras tendem, ainda que em grau mínimo, a

direcionar a notícia. Não raro, matérias jornalísticas (principalmente as de cunho político),

destinadas, em sua essência, a informar seu público leitor, são influenciadas pela ideologia

pessoal do jornalista.

Page 6: GUERRA E HUMOR

2

Da mesma forma o jornal tem que defender sua história e sua tradição (seus acordos

políticos e/ou sua linha editorial). Se o leitor compra o jornal, obviamente espera uma

determinada posição do veículo, e isso acaba refletindo no mercado consumidor, afinal,

cada instituição comercial faz parte de um mercado que tem fatias muito bem definidas

para cada segmento. Para chegar a tal percepção, empresas gastam quantias cada vez

maiores em consultorias e pesquisas, onde são apontadas desde características

demográficas e sócio-econômicas do mercado até as crenças e valores dos consumidores,

isso tudo com o objetivo de conhecer o campo comercial e tornar seu produto mais

padronizado e atraente.

A produção jornalística, pode-se dizer, sofre influências em quatro direções. Em

primeiro lugar, como já mencionado, da consciência do jornalista, suas opiniões, sua

formação e sua subjetividade. Outro fator externo que influencia no texto da notícia é a

atuação do Chefe de Redação do veículo. Os cortes, censuras ou direcionamentos dados por

este acaba determinando o tom da notícia. Também influencia o jornalista a pressão

exercida por dois elementos econômicos do mundo da mídia: o mercado e o patrocinador.

O primeiro acaba por determinar a linguagem a ser utilizada na linha editorial, fazendo-se

assim a diferenciação dos impressos destinados às classes A, B, C, etc. O nível de vendas,

medido pelo mercado, acaba também determinando a forma de tratar alguns temas (com

mais paixão, raiva, etc.). Além disso, determina a presença ou não do segundo elemento: o

patrocínio. O patrocinador é guiado pelos números (vendagem) e pela posição do veículo.

A defesa de alguns temas ou detração de outros acaba por atrair ou afastar este elemento, de

acordo com seu próprio interesse.

Os jornalistas que aceitam passivamente este sistema e, principalmente, ajudam a

propagá-lo, são obrigados a fazê-lo ou o fazem pelo prazer de serem parte do “quarto

poder”? O sociólogo Alain Accardo pode nos ajudar a responder esta questão:

... os financistas e comerciantes que se apropriam de uma parte substancial da

mídia não tem necessidade de ditar aos jornalistas o que eles devem dizer ou

mostrar Não precisam violentar suas consciências, nem transforma-los em

propagandistas. O senso de dignidade jornalística jamais o aceitaria. Para garantir

uma informação fiel ao melhor dos mundos capitalistas, nada melhor (salvo

circunstâncias e casos particulares) que deixar os jornalistas trabalharem

Page 7: GUERRA E HUMOR

3

livremente ou, para ser mais exato, deixa-los acreditar que seu trabalho não

obedece a nenhum outro imperativo, a nenhum outro limite, senão os impostos

pelas regras específicas do jogo jornalístico, aceitas por todos. Deve-se confiar na

“consciência profissional”.1

Assim, segundo Accardo, os jornalistas não propagam as idéias defendidas por seus

empregadores, superiores e, acrescentamos, suas ideologias políticas, por estarem

“maquiavelicamente preocupados em manipular o público para aumentar o lucro dos

acionistas das empresas em que trabalham” ou arrebanhar adeptos a alguma corrente

política, mas porque estão eles mesmos inseridos, de uma forma mais profunda, no sistema

“imperialista” da Indústria Cultural, da qual, está claro, a imprensa é parte integrante e

primordial.

Não podemos assumir uma posição maniqueísta quanto à imprensa e sua relação

com o consumidor, mas é inevitável a constatação de que a mass media acaba por gerenciar

ou direcionar tanto a cultura de massa quanto a necessidade consumista da sociedade e a

opinião pública, gerando, em certo grau, um neo-imperialismo, onde, além dos “bolsos”

dos consumidores, suas “almas” são colonizadas.

1.2) A Indústria Cultural:

A Indústria Cultural pode ser interpretada, de acordo com a escola frankfurtiana,

como um novo método de colonização, um neocolonialismo, no qual, diferente daquele

difundido nos séculos XVI e XVII, o colonizador invade a alma do colonizado e não o seu

território ou suas riquezas.

Industrial no sentido de assimilação, ao produzir o consentimento direto de seus

consumidores a Indústria Cultural abole o exame crítico, revelando seu objetivo final: a

dependência, e seu caráter dominante aponta o grau de importância para a formação de

consciências. A cultura e as informações são totalmente assimiladas por essa indústria, e

suas produções tornam-se mercadorias.

Edgar Morin traça um estudo comparativo entre a indústria cultural de caráter

comercial e a indústria cultural estatal. É interessante atentarmos para a distinção destas

1 ACCARDO, A. A estranha ética dos jornalistas. Le Monde Diplomatique, jan. 2003. Disponível

em: <http://www.diplo.com.br/aberto/0005/24.htm> Acesso em: 12 fev. 2003.

Page 8: GUERRA E HUMOR

4

duas vertentes: enquanto a comercial está voltada ao consumismo, ao lucro e aos valores

impostos à “alta cultura” e à diversão, a estatal, por outro lado, busca “convencer, educar,

tende a propagar uma ideologia”2 sobre a população. Quando essa propagação de uma

determinada ideologia ou de um modo de vida rompe as barreiras da fronteira nacional e

invade outros países e povos na tentativa de convertê-los e/ou introjetar neles suas idéias,

dá-se início ao neocolonialismo, à dominação ideológica-cultural.

Essa dominação se daria através dos meios de comunicação em massa e da difusão

de certos ideais, como por exemplo, nas revistas de histórias em quadrinhos, desenhos

animados, nos filmes e nos almanaques. Tomemos como modelo explicativo desta atuação

as histórias do Superman, analisada com brilhantismo por Umberto Eco3. Segundo o autor,

as histórias do Superman passam em suas entrelinhas o anti-comunismo norte-americano.

Datado de 1938, o herói teria em sua personalidade dois opostos psicológicos encontrados

na própria sociedade humana: na figura de Clark Kent, o estereótipo assumido é o do ser

humano normal, relegado a uma posição mediana intelectual e profissionalmente, sendo

mesmo reprimido pelos seus semelhantes e por seu amor não correspondido (Louis Lane).

De outro lado, assume o ideal do homem onipotente, capaz de grandes feitos em favor da

humanidade, reconhecido e amado por todos.

Fonte: SUPERMAN Arrives. Jerry Siegel, 1938. Selo emitido pelo U.S. Post, em setembro de 1998.

2 MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 23. 3 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970.

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5

A semelhança entre Clark Kent e os indivíduos comuns do planeta faz com que a

identificação seja imediata, causando um estreitamento nas relações entre o leitor e a

história. Da mesma forma, o Superman é simpático àqueles que acompanham suas histórias

pela projeção existencial desses que sonham em transformar-se, como Clark Kent, o

indivíduo reprimido que libera seu verdadeiro eu quando a humanidade vê-se ameaçada e a

destruição do planeta é eminente.

Essa afinidade leva o leitor a assumir, inconscientemente, alguns valores

introjetados nas histórias narradas, como, por exemplo, a concepção de bem e mal que são

trazidas nas tiras. Ora, se o herói persegue malfeitores de todas as ideologias e que praticam

qualquer tipo de crime, o leitor adquire uma consciência relativamente ampla do bem e do

mal e uma linha ética delimitada. Porém o que ocorre nas histórias do Superman é um

direcionamento ideológico. Na ilustração do próprio Eco:

No âmbito da sua little town, o único mal a combater, se lhe configura sob a

espécie de partidários do underworld, do mundo subterrâneo da malandragem, de

preferência ocupado não em contrabandear estupefacientes, nem – é evidente – em

corromper administradores ou políticos, mas em esvaziar bancos e carros

pagadores. Em outros termos, a única forma visível que assume o mal é o atentado

à propriedade privada. (...) o underworld é (...) mal endêmico, como que uma

espécie de filão maldito, que invade o curso da história humana, claramente

dividida em zonas pela incontrovertibilidade maniquéia – onde toda autoridade é

fundamentalmente boa e incorrupta, e todo perverso, perverso desde as raízes, sem

esperança de redenção.4

Desta forma, o leitor é induzido a relacionar o “mal” àqueles que pregam contra a

propriedade privada (comunistas), e tende a incorporar esse “valor” ao seu caráter,

enquanto o “bem” segue relacionado aos consumidores capitalistas, sendo o ambiente ideal

para seu desenvolvimento a sociedade consumista.

Da mesma maneira que observamos no caso acima citado, valores e ideologias são

passados subliminarmente por vários meios de comunicação em massa. Especificamente no

período a que este estudo se presta, a Alemanha nazista não conteve esforços transformar

todo meio de comunicação, desde revistas, cinema, livros e até mesmo cartões-postais, em

4 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 276.

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6

instrumento de propaganda dos ideais nacional-socialistas. Assim, podemos indicar o

regime nacional-socialista como pioneiro no campo da propaganda ideológica de massas,

onde a indústria cinematográfica e a imprensa serviam como carros-chefe de seu

armamento propagandístico.

1.3) Imprensa e Humor:

“A Imprensa não prescinde da colaboração da caricatura e do humorismo.”

Com esta frase Délio Freire dos Santos abre a edição fac-similar do periódico

humorístico Cambrião, editado originalmente nos anos de 1866 e 1867, em São Paulo. Sua

afirmação leva-nos a alguns questionamentos, como por quê essa colaboração se faz

imprescindível, e de que forma ela se dá?

Comecemos analisando a segunda questão. O humor, como forma de crítica ou

persuasão é, comprovadamente, utilizado largamente nos meios de comunicação de massa.

Este tipo de humor crítico, ácido, ou, como bem definiu Peter Gay (1995), “mordaz”,

tornou-se marca registrada da imprensa5.

Fonte: PAIXÃO. il. Gazeta do Povo. 13 fev. 2003.

5 Elias SALIBA demonstra isso em Raízes do Riso, seu estudo sobre o humor na Belle Époque

brasileira, quando as críticas mais causticantes aos poderosos e políticos da época eram feitas por humoristas em seus jornais e revistas, como era o caso de Juó Bananére, José Agudo e Belmonte, entre outros.

Page 11: GUERRA E HUMOR

7

O jornalismo traz ao público a notícia, o acontecimento ou o personagem, e o

humorismo trata de dar uma feição mais amena e engraçada do mesmo. Neste sentido, a

presença de caricaturas e charges nos principais jornais diários do país é a prova

contundente do que acabamos de expor.

Devemos considerar também o apelo comercial do humor. Pelo fato dos jornais e

demais periódicos estarem inseridos no fenômeno da Industria Cultural, a aceitação, por

parte do público leitor, das caricaturas o torna mais atraente e colabora na vendagem do

produto e, numa sociedade capitalista, como já discutido, este é o fator preponderante para

a inclusão ou não do produto no mercado.

Retomando a primeira questão, veremos que o humor se faz necessário na imprensa

contemporânea por dois motivos principais, e o primeiro está associado à natureza

humorística. O humorista, em especial o chargista, tem o dom de cativar o expectador com

uma imagem, numa fração de segundo. O humor, seja ele crítico, mordaz ou leve, consegue

prender a atenção do leitor e fazê-lo refletir sobre o objeto da sátira. Neste momento, o riso

provocado traz a imediata aceitação e simpatia pela idéia passada, afogando ou

extravasando o sentimento de angústia, raiva ou medo causado pela situação retratada.

Assim, o riso acaba por orientar a opinião das pessoas de uma forma velada. A influência

do riso na psique dos expectadores será melhor analisada no próximo capítulo.

O segundo fator que faz do humor parceiro constante da imprensa é o fato das

charges e piadas darem um contraponto às críticas e matérias mais pesadas do periódico.

Enquanto as colunas opinativas, matérias e artigos veiculados pelo periódico tratam de

passar a notícia e, no caso das primeiras, demonstrar a opinião defendida pelo autor, a

charge traz a crítica velada e acaba por fazer comentários e críticas ferrenhas ao objeto de

sátira sob o disfarce humorístico e o consentimento do riso. As colunas e matérias que

defendem um determinado ponto de vista primam por causar no leitor sentimentos

extremos (ou o êxtase gerado pela concordância ou a raiva da discordância), já as opiniões

expostas pelas charges carregam consigo o estigma da simpatia acarretada pelo riso, o que,

em alguns casos, banaliza a notícia, pois a risada também pode servir, dependendo do

propósito do autor e da forma com que a charge é feita, para passar a idéia de

insignificância do fato ou do personagem nele envolvido.

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Levando-se em conta esses três fatores, quais sejam, a Imprensa e seus autores, a

Indústria Cultural e os imperativos do mercado, e considerando o humor como um discurso

que realiza uma transversal no tempo da notícia (realizando-se em um tempo e um espaço

que lhe são próprios), é que analisaremos o objeto dessa pesquisa.

A importância do estudo deste tema reside na influência das charges na opinião

pública. O chiste, obviamente, não forma por si só a opinião do indivíduo que dele ri,

porém age como complemento a uma matéria veiculada ou como “orientador” de

tendências e simpatias. Em um momento conturbado como o vivido durante as décadas de

30 e 40, o menor direcionamento ideológico, viesse de onde viesse, era extremamente bem-

vindo.

Page 13: GUERRA E HUMOR

9

2) DA NATUREZA DA CHARGE:

Neste capítulo buscaremos analisar as técnicas de desenho concernentes à charge e

de que forma ela atinge a “alma” do ser humano, como um desenho pode, em certa

medida, influenciar e tocar uma pessoa.

Ao iniciar este capítulo, uma diferenciação se faz necessária. É importante

percebermos as características próprias da caricatura e da charge.

A primeira tem como propriedade o exagero e a acentuação de traços marcantes de

uma personalidade. Através dessa satirização, o autor da caricatura cria uma imagem

humorística da pessoa retratada. O humor desta modalidade artística pode trazer uma crítica

velada ao objeto de escárnio. Exemplo clássico de caricatura é o desenho de Honoré

Daumier satirizando o rei Luís Filipe, que depois da publicação desta figura, ficou

conhecido como rei-pêra.

Fonte: DAUMIER, Honoré. Passado Presente e Futuro. La Caricature. 1834. In. GAY. Peter. A experiência

Burguesa da Rainha Vitória a Freud – O Cultivo do Ódio. São Paulo. Cia das Letras, 2001.

Page 14: GUERRA E HUMOR

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Joaquim da Fonseca, em seu livro Caricatura – A Imagem gráfica do humor, expõe

de maneira bem-humorada o alcance que uma caricatura pode ter:

Conta-se que o generalíssimo ditador de certa república tropical

americana, preocupado em vestir-se de acordo com a augusta imagem que fazia

de si mesmo, resolveu criar um uniforme que o distinguisse visualmente.

Tomando como modelo uma gravura européia da época, que mostrava seu ídolo,

o imperador Napoleão I da França, chamou o alfaiate e mostrou-lhe o recorte.

Queria um traje exatamente igual àquele do modelo.

O alfaiate não contestou o figurino e caprichou ao confeccionar a farda. O

que resultou daí provavelmente estabeleceu o modelo que passou a ser imitado

com orgulho por outros ditadores de outras repúblicas tropicais, um vistoso e

colorido uniforme engalanado de dourado e medalhas, com faixas coloridas,

bordados, botões brilhantes e divisas. No entanto, o ditador deste caso não levou

em conta que tomara como modelo uma caricatura ridicularizando Napoleão e

exagerando sua forma de vestir, desenhada por um de seus inclementes algozes

gráficos, quem sabe Cruikshank, Rowladson ou Gillray.6

O exemplo acima demonstra claramente a natureza da caricatura. Ao exagerar os

traços de Napoleão, seus críticos criaram uma imagem humorística, estigmatizada para a

posteridade. Esta imagem aponta os defeitos e vícios de Napoleão, deixando um documento

de época para análise de historiadores e outros pesquisadores. A caricatura, portanto,

deforma seus alvos para melhor criticá-los, mas tem como característica principal, a nosso

ver, objetivar e satirizar uma pessoa.

A charge, por sua vez, tem como fim representar humoristicamente uma situação,

um contexto social ou político. O termo, que deriva do francês charger (exagerar, atacar,

carregar), remete à satirização de um acontecimento, normalmente político, e que faça parte

do universo popular, ou seja, um acontecimento que tenha repercussão e que possa ser

imediatamente reconhecido após a visualização do desenho. Desta forma, podemos julgar a

charge um trabalho imediatista, algo que é veiculado no jornal do dia e que perde seu valor

no dia seguinte. Porém, aos olhos do historiador, a charge identifica um momento histórico,

e como outros documentos de época, ela se torna uma fonte produzida por um espectador

6 FONSECA, Joaquim. Caricatura – A imagem Gráfica do Humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios,

1999. P. 11.

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privilegiado e informado quanto aos fatos e acontecimentos do universo presente, e que,

diferentemente do jornalismo escrito, imprime maior autonomia em sua mensagem.

Da mesma forma que uma reportagem jornalística, uma narrativa ou uma crônica

devem ser analisadas levando em consideração seus autores, o veículo de divulgação e o

momento político, bem com o mercado consumidor, uma charge ou uma caricatura deve

também sofrer este mesmo cuidado interpretativo.

2.1) As características técnicas da charge:

Ao longo da história o homem tem lutado para aprimorar sua expressão e a forma de

se comunicar com o mundo e com outras gerações. Além da escrita, o meio mais

importante de comunicação do homem é a arte. A música, a pintura e o desenho são

expressões universais que conseguem atingir pessoas de diferentes épocas e de diferentes

idades. Neste trabalho deter-nos-emos na evolução pictórica, nas técnicas do desenho e nas

características próprias da charge e da caricatura.

A forma e a idéia transmitida pela imagem dependem da conjunção de alguns

fatores para que consigam atingir seu objetivo. É necessário que o autor da obra tenha

domínio sobre a textura, a tonalidade certa da cor e a iluminação que o trabalho deverá ter

para conseguir passar a mensagem desejada. No caso das charges, dois fatores serão mais

importantes: a estruturação do ambiente que o fato será retratado e a fisionomia dos

personagens.

O segundo fator é o mais importante, pois é no reconhecimento da personagem da

sátira que se verifica a interação do público com a mensagem, principalmente no caso das

charges políticas. Como a representação dos envolvidos na situação acaba também sendo

carregada de humorismo e exageros, podemos afirmar que a caricatura é parte integrante da

charge. Desta forma, a charge consegue atingir seu alvo duas vezes: a primeira ao

caricaturar a personalidade vítima do escárnio e a segunda ao tornar humorístico um ato por

ela praticado.

O caminho entre a caricatura e a charge, entretanto, é longo e difícil de percorrer.

Para que o chargista consiga atingir da maneira desejada o público leitor é preciso que seus

personagens adquiram a simpatia ou a repulsa do público. A tarefa do desenhista fica

duplamente difícil, pois não basta exagerar os bigodes de Hitler e Stalin ou a “robustez” de

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Churchill e criar suas caricaturas. É necessário dar vida a esses personagens, embutindo-

lhes emoções e dando-lhes uma ocupação (a situação retratada na charge), tornando-os

assim quase humanos.

Para conseguir esse efeito sobre o leitor, é necessário que algumas questões técnicas

do desenho sejam consideradas. Quando o artista faz a caricatura do personagem que será o

alvo da charge, além de exagerar as características mais marcantes do rosto desta pessoa, a

fim de que ela seja reconhecida pelo público, as emoções que ela esteja sentindo no

momento, que darão o tom da comicidade ou da crítica que se deseja passar, devem ser

consideradas prioritárias na criação. A divisão dessas duas características pode ser, de

modo genérico, feita da seguinte forma:

• Traços Permanentes: Indicam o caráter e as características físicas do personagem em

traços simples. No exemplo abaixo, os traços permanentes seriam a calvície,

sobrancelhas grossas e orelhas de abano.

• Traços não-permanentes: São os traços que indicam a emoção por que passa o

personagem. Abaixo notamos que as alterações das posições das sobrancelhas, dos

lábios, dos olhos e da testa acabam por apontar a emoção que ele sente.

Fonte: EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo. Martins Fontes, 1995. P. 109.

Page 17: GUERRA E HUMOR

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Assim, observamos que os traços não-permanentes acabam por demonstrar a

condição momentânea da personagem, suas emoções e estado de espírito. Aliada aos traços

não-permanentes do rosto, a linguagem corporal acaba por complementar a idéia formulada

sobre o caráter instantâneo do desenho:

Fonte: EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo. Martins Fontes, 1995. P. 102.

O exemplo acima demonstra, em traços bastante simples, de que forma a postura da

personagem pode influir na concepção da idéia formada sobre ela. A determinação da

emoção pelo corpo do desenho apenas vem a reforçar o demonstrado pelo rosto da

Page 18: GUERRA E HUMOR

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caricatura, mas pode acabar favorecendo a simpatia ou antipatia do leitor diante daquele

personagem.

Existem ainda dois elementos que agem como acessórios no entendimento da

ilustração. São a contextualização e a textualização do desenho. O primeiro se refere à

notícia jornalística na qual o desenhista se inspirou para produzir a charge. No momento

por nós estudado (décadas de 30 e 40), era comum que acompanhasse a charge uma nota do

autor onde este demonstrava onde buscou referências para a produção do desenho.

Normalmente era escrito, ao pé da ilustração, “Dos Jornais” e a notícia à que ela se referia.

A intenção deste artifício é localizar o leitor no contexto da ação retratada. Auxilia

na compreensão do momento, juntamente com a caracterização pictórica do cenário, das

vestes dos personagens e das próprias caricaturas. Além disso, essa técnica acaba por suprir

alguma eventual diferença nas experiências do autor do desenho e do leitor, pois a

compreensão de uma imagem requer uma comunidade de experiências7 que devem ser

inerentes a ambos. Assim, para que sua charge atinja o maior número de pessoas e para que

a ignorância do espectador quanto ao assunto a que se refere a ilustração não prejudique seu

entendimento, os autores utilizam este artifício.

As experiências comuns também são determinantes na utilização de símbolos

gráficos nos desenhos. Além da óbvia barreira da língua, mesmo nas relações ator/leitor

ocorridas em países com a mesma língua materna, os regionalismos inerentes às diferentes

culturas e países podem acabar atrapalhando a compreensão. Também na utilização de

símbolos na substituição de diálogos entre os personagens, as experiências devem ser

compartilhadas entre o desenhista e espectador.

Existem símbolos que são reconhecidos em praticamente todos os países. São os

símbolos universais, como o cifrão ($) e a interrogação (?). A utilização destas

representações facilita a compreensão do leitor, esteja ele onde estiver, seja ele da classe

social que for. Estes sinais já fazem parte do imaginário coletivo, tendo assim sua

assimilação facilitada (de nada adiantaria o autor utilizar a letra grega alfa [α] em uma

charge destinada a um público que, em sua maioria, nunca teve contato com o alfabeto

grego).

7 EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo. Martins Fontes, 1995. P. 13.

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Devido ao caráter momentâneo da charge, diferentemente das histórias em

quadrinhos que têm caráter seqüencial, a brevidade passa a ser fundamental. A substituição

dos diálogos por uma simbologia que atinja o leitor é um artifício comum dos chargistas

para que a idéia possa ser passada e assimilada de forma instantânea.

As falas dos personagens e os diálogos por eles travados fazem parte do segundo

elemento de apoio ao chargista na confecção de seu produto, a textualização. Este artifício é

utilizado quando o desenho não se basta para transmitir a mensagem desejada. Não raro a

caricatura, que tem como uma de suas características o humor irônico, não passa

diretamente a crítica ou situação desejada.

Fonte: EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo. Martins Fontes, 1995. P. 110.

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16

Acima visualizamos uma série de expressões que, acompanhadas por uma caixa de

diálogo, assumem significações bastante diversificadas. Como podemos observar, silhuetas

idênticas aliadas a diferentes frases podem mudar completamente a impressão tida referente

ao desenho e, dessa forma, chamar a atenção do leitor para a crítica velada.

A charge, como buscamos destacar, exige alguns conhecimentos técnicos para que o

desenho consiga passar ao leitor a mensagem ou a crítica desejada pelo chargista. Vemos

que esta modalidade de desenho não depende de uma rigidez detalhista, pois ela mesma se

impõe como resultado do exagero e da simplificação, tornando-se, em certo grau, uma

forma de arte impressionista.

O desenho humorístico, como já destacamos, é a forma mais simples de transmitir

uma opinião ou um julgamento, pois atua de forma rápida e eficiente, atingindo pessoas de

todas as classes sociais e com todos os níveis de conhecimento. Baseados nisso, podemos

concluir que as “charges perfeitas” são aquelas que dispensam as “muletas” textuais,

classificadas neste trabalho como textualização e contextualização do desenho, para

conseguir o efeito desejado pelo autor.

Esse efeito causado pelas técnicas de desenho diz respeito ao reconhecimento do

leitor da situação retratada na charge. Porém, para que a alma do observador seja afetada

pela ilustração de forma completa, a relação humorística deve causar nele um impacto

ainda maior que a perfeição técnica, como veremos a seguir.

2.2) O humor da charge e as explicações psicanalíticas:

Freud, em sua obra O Chiste e sua relação com o Inconsciente, traz-nos um tratado

psicanalítico sobre a natureza do humor, suas ações e influências no inconsciente.

Considerando as charges como uma das manifestações contemporâneas mais correntes de

humor, buscaremos nos apropriar deste discurso clássico e analisar como a charge pode

repercutir na consciência de um indivíduo, pela produção do chiste e pelo riso.

O riso, para Freud, seria um liberador das emoções reprimidas. Desta forma, por

trazer o prazer da liberação do stress emocional, o riso seria uma manifestação individual e

egoísta. “O riso compensa, em seus efeitos, o dispêndio contínuo de energia, exigido para

Page 21: GUERRA E HUMOR

17

manter as proibições que a sociedade impõe e os indivíduos internalizaram.”8 Porém, para

que a risada possa exercer essa função, é necessário que haja a motivação humorística.

Essa motivação humorística nada mais é que a formulação de uma piada, de um

chiste. Tal processo de criação possui, segundo Freud, a característica marcante da

abreviação de idéias, ou seja, algo que seria dito em “longos discursos” é abreviado e

colocado de forma cômica. Neste sentido o exemplo das charges é bastante preciso, pois

representa, com um discurso cômico, um momento determinado em um contexto.

Algumas técnicas de formulação de chistes são apresentadas no estudo de Freud. A

aglutinação de palavras, a alusão a outros elementos que causam a sensação de nonsense no

espectador e o cinismo são as principais técnicas destacadas pelo autor. Além de analisar

estas técnicas, Freud lembra das discussões filosóficas a respeito do assunto, e estas dizem

que as piadas são parte do cômico, e o cômico, parte da estética, definindo a idéia de

estética como “qualquer coisa através dela, não necessitando dela para satisfazer qualquer

de nossas necessidades vitais, mas contentando-nos na contemplação e na fruição da

idéia”9. Porém, a estética não tem finalidade, ou melhor, tem um fim em si mesma,

enquanto que o chiste tem como fim proporcionar prazer ao ouvinte.

Quanto aos diferentes prazeres proporcionados pelo chiste, Freud faz a

diferenciação segundo o humor empregado. Podemos encontrar a produção de prazer no

humor moderado das piadas inocentes, no humor forte dos chistes hostis (agressividade,

sátira ou defesa) e no humor obsceno, ou seja, cada um desses tipos de humor produzem

um diferente prazer e “tornam possível a satisfação de um instinto, seja ele libidinoso ou

hostil”10. Referindo-se à hostilidade, o autor austríaco sustenta a tese de que esta condição

natural do ser humano está tão reprimida no mundo moderno quanto à sexualidade, graças

às leis implantadas para conter a violência11. Assim sendo, os chistes hostis teriam a

“função social” de extravasar esta agressividade reprimida.

8 Cf. SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso – A representação humorística na história brasileira: da

Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo. Cia das Letras, 2002. P. 23. 9 FREUD, Sigmund. O Chiste e sua relação com o Inconsciente. Rio de Janeiro. Imago, 1977. P.

115. 10 Ibid. P. 121. 11 Freud destaca a violência como um instinto natural e inerente ao ser humano. As leis e regras

contra a violência física, segundo o autor, teriam sido fruto do assassinato do “Pai-primitivo”, ou seja, nos primórdios existiria um macho que usufruiria de todas as fêmeas da tribo, causando a inveja e o ciúme dos outros machos. Numa ação natural, os outros machos mataram o “Pai-primitivo” para se libertarem de seu domínio e poderem também buscar o prazer sexual. O assassinato, porém, causara o sentimento de remorso e,

Page 22: GUERRA E HUMOR

18

O motivo primordial da produção do chiste, segundo Freud, é a obtenção do prazer.

Porém, o autor busca em alguns exemplos outras causas, como no chiste do poeta Heine

(Sentei-me ao lado de Salomon Rothschild e ele me tratou como um igual – bem

familionariamente12). A causa deste chiste seria a amargura do poeta para com a parte rica

de sua família, que sempre o desprezou. Outro fator seria os instintos reprimidos,

principalmente de caráter sexual (chistes agressivos / sadismo reprimido). Os chistes

inocentes, por exemplo, seriam fruto de uma necessidade de exibicionismo intelectual.

Analisando a produção das sátiras por este ângulo, este processo toma um caráter

duplamente egoísta. O autor da piada sente prazer ao extravasar seus instintos na fala, mas

também o sente ao proporcionar alegria ao ouvinte. A certeza de que o riso também trouxe

prazer ao ouvinte dá ao primeiro sujeito a satisfação do “dever cumprido”, de que o produto

de sua oratória e de sua imaginação conseguiu dar prazer ao segundo.

Pelo fato do chiste ser uma forma de busca da aprovação e do prazer, o produtor da

piada não pode passar por inculto ou imbecil. As palavras usadas e a piada a ser proferida

devem ser cuidadosamente articuladas e devem passar por uma crítica antes de sair da boca

ou da pena. Baseado nisso, Freud indica dois momentos na concepção do chiste: o jogo e o

gracejo. O jogo refere-se ao momento em que as palavras (absurdas ou não) “brincam” na

mente, como as palavras na criança. Porém, o jogo logo perde a graça e passa a ser

condicionado à crítica, onde será julgado absurdo ou não. Passando pelo processo seletivo,

vem o gracejo, com a formulação e a prática do chiste. Trata-se de um processo consciente

que visa à fuga da crítica. E, se depois de proferido, o chiste nos faz rir, é porque tomamos

uma posição favorável à crítica a que o chiste se dispõe (pois todo chiste hostil é uma

forma de crítica velada).

É neste ponto da teoria freudiana que encontramos a influência que o humor pode

causar nos indivíduos.

Como já analisado, o humor causa a risada, o riso, e este traz a liberação das

emoções e frustrações reprimidas no cotidiano do indivíduo, ou seja, o prazer por, em

poucos momentos, sentir-se livre das amarras sociais a que estava atado. Essa sensação

a fim de não mais sentirem tal sensação, os machos teriam baixado leis e regras contra a violência e, assim, evitar novos assassinatos.

12 Este chiste de aglutinação ortográfica (familiarmente e milionário) denuncia o “esnobismo” dos ricos. Desta forma, Rothschild teria recebido o poeta da maneira mais gentil que uma pessoa em sua posição social consegue, nem amigável ou familiarmente nem rudemente, mas “familionariamente”.

Page 23: GUERRA E HUMOR

19

prazerosa causa no ouvinte/leitor um sentimento de “dívida” para com o comediante.

Assim, inconscientemente, o espectador acaba por assimilar as idéias transmitidas pelo

chiste como certas pela simpatia que a própria piada traz ao provocar a gargalhada. Nas

palavras do próprio Freud:

Ele (o chiste) ademais subornará o ouvinte com sua produção de prazer,

fazendo com que ele se alinhe conosco sem uma investigação mal detida,

exatamente como em outras freqüentes ocasiões fomos subornados por

um chiste inocente que nos levou a superestimar a substância de uma

afirmação expressa chistosamente. Tal fato é revelado à perfeição na

expressão “die Lacher auf seine Seite ziehen” (trazer os que riem para

nosso lado).13

Conforme observamos, o humor seria uma das formas de protesto ou propaganda

mais eficientes que podemos utilizar. As charges, por serem veiculadas em jornais e na

grande mídia, têm um alcance maior que um gracejo contado numa roda de amigos. Por seu

caráter mordaz, têm também a natureza da crítica e da revolta, e é nessa característica que

resulta, em grande parte, a simpatia natural que sentimos por estes desenhos, pois “rimos

delas, mesmo se mal-sucedidas, simplesmente porque consideramos um mérito a rebelião

contra a autoridade”14, o que nos passa a idéia de poder satirizar, por alguns instantes, um

poder central. O chargista poderá tratar, através de seus desenhos, de características e

críticas que não poderia tratar abertamente, seja por conta da censura ou de convenções

morais. Ao passá-las para o desenho, está promovendo uma pequena “rebelião” contra o

objeto da crítica, e, muito provavelmente sem saber, arrebanhando adeptos de suas opiniões

pelo poder do riso.

Observaremos melhor essas colocações analisando uma de nossas fontes e

verificando tais características nesse desenho.

13 FREUD, Sigmund. O Chiste e sua relação com o Inconsciente. Rio de Janeiro. Imago, 1977. p.

123. 14 Ibid. p. 125.

Page 24: GUERRA E HUMOR

20

O desenho acima reflete claramente antipatia ante os três principais membros do

Terceiro Reich: Goebbels, Ministro da Propaganda do Reich, Goering, considerado, até

1945, o segundo homem do governo alemão, e Hitler, o Führer nazista. Veiculado em

cartões postais ingleses a partir de 1941, o desenho sobrepõe as caricaturas de Goebbels e

Goering a corpos de macacos, sugerindo que ambos pensariam e agiriam como tal, bem

como teriam semelhanças físicas. Outro aspecto satirizante, este referido à figura de

Goering, é a ostensiva coleção de medalhas em seu peito, característica marcante que foi

utilizada por vários dos caricaturistas do Comandante em Chefe da Luftwaffe.

A caricatura de Hitler, por sua vez, revela um julgamento quanto ao seu instinto

belicoso. A caracterização do Führer na figura universalmente reconhecida da morte traz

um aspecto muito mais crítico que a simples ridicularização de seus comparsas no mesmo

desenho, contando também com o caráter cômico.

Os psicanalistas defendem que o riso causado pela figura facilitaria a apropriação

destas caracterizações no julgamento pessoal do indivíduo que a observa. Desta forma, a

idéia do autor da gravura, de que Hitler é a personificação da morte e do mal e de que seus

comandados não passam de animais seria apropriada pelo observador15.

15 O observador que a apropria, obviamente, tem de estar inserido no contexto da gravura, ou seja,

vivenciar o momento da crítica e reconhecer os sujeitos ali representados. Também é óbvio que a apropriação da idéia atinge os indivíduos que ainda não tinham tomado posição quanto a Hitler e o Nacional Socialismo.

Page 25: GUERRA E HUMOR

21

O humor aqui utilizado tem, portanto, um propósito: o de desmobilizar a crença

pública quanto ao personagem histórico Adolf Hitler e o sistema político que ele representa.

Por sua vez, Pierre Ansart nos coloca uma diferenciação dual na relação do humor com a

esfera política: em um sistema pluralista como a Democracia, no qual as paixões políticas

são constantemente reprimidas e cortadas a fim de manter o equilíbrio do sistema, o humor

tem como função promover a multiplicidade de opiniões e a descrença quanto aos

elementos nocivos, mas, principalmente, evitar as demonstrações apaixonadas das massas

para com esses mesmos elementos. Sua ridicularização estabelece uma situação de

inferioridade, um julgamento de valores no qual o ser político torna-se bizarro e ridículo,

afastando os indivíduos pela descrença causada. Segundo o próprio autor:

As técnicas de descrença alimentam-se da atualidade e das sutilezas

da cultura política. A finalidade aqui não é refutar, através de sólidos

argumentos racionais, a fraqueza dos argumentos adversários, mas de

conduzir os ouvintes a estabelecerem distância com relação às pessoas e

teses rivais. Revela-se eficaz, por exemplo, tornar suspeitas as teses

adversárias insinuando que elas conformam-se a interesses

inconfessáveis, são simpáticas a uma potência estrangeira ou impiedosa

com os fracos. Contra os chefes políticos, será oportuno, em uma

sociedade ciosa das competências, mostrar a incompetência do adversário

e a incoerência de suas proposições.16

Em contrapartida, em um sistema autoritário ou totalitário, o humor tem a mesma

função de escárnio e de ridicularização, mas nesse contexto já não existe a busca a

desestabilização do elemento alvo visando o equilíbrio do sistema e a desvinculação

apaixonada do indivíduo do sistema político, ao contrário, a degeneração do elemento alvo

é efetuada para ostentar o sistema imperante e colocar o satirizado em uma condição de

sub-humanidade, de nocividade à sociedade e promover justamente o desequilíbrio do

sistema, alimentar paixões políticas em favor do governante.

Fica claro que um nazista radical não mudaria suas opiniões por visualizar a caricatura, ao contrário, poderá cultivar um sentimento de ódio contra o desenho e o autor.

16 ANSART, Pierre. Mal-estar ou fim dos amores políticos?. Revista História & Perspectivas, No. 25 e 26, Jul. 2001/Jul. 2002. Uberlândia, 2002.

Page 26: GUERRA E HUMOR

22

Nossas fontes principais referem-se a charges e caricaturas produzidas em dois

sistemas e conjunturas distintas, porém, próximas se levarmos em conta a relação entre

humor e política atentada por Ansart: o regime autoritário no Brasil de Getúlio Vargas e o

regime totalitário alemão de Adolf Hitler. A natureza dessas fontes, entretanto, apesar de

pertencerem a conjunturas semelhantes, são diferentes. Enquanto os desenhos brasileiros

são produzidos por indivíduos e veículos desligados do Estado, onde a crítica velada,

característica própria das charges, poderia encontrar espaço, as charges alemãs têm seu

lugar em um jornal controlado pelo Estado nazista, o Der Stürmer.

Acreditamos encontrar, nas charges e caricaturas veiculadas à época, um reflexo da

sociedade naquele momento. Centrando nosso trabalho nas alusões ao Nazismo e suas

figuras principais, e utilizando na análise desenhos por nós selecionados como mais

significativos e ilustrativos dos diversos momentos, buscaremos entender como esses

elementos eram concebidos em diferentes momentos e localidades no período.

Page 27: GUERRA E HUMOR

23

3) A SUBLIME CHARGE DE BELMONTE:

Benedito Bastos Barreto, o Belmonte, nasceu em 15 de maio de 1896, na cidade de

São Paulo. Teve infância pobre, mas sua aptidão para o desenho surgiu ainda quando

garoto, entre rabiscos na escola e nos muros do bairro da Liberdade. Chegou a cursar

Medicina na Faculdade de Medicina de São Paulo, mas largou o curso para dedicar-se ao

desenho e ao jornalismo no jornal “Folha da Noite”, fundado na capital paulista em 1921.

Neste diário publicou, nas duas décadas seguintes, desenhos e sátiras dos costumes

paulistas e do cotidiano brasileiro. Seu brilhantismo, entretanto, revela-se nos desenhos

políticos. Neste campo, foi feroz combatente dos governos de Getúlio Vargas, a quem

acusava de ditador e incompetente.

Fonte: BELMONTE. Nada de Novo... São Paulo: Linotipo Tipografia, 195-.

Na charge acima, por exemplo, o desenhista mostra um Getúlio Vargas combativo,

discursando pela democracia e contra o despotismo e a “hypertrophia” do poder. Ao lado

destes desenhos, com um semblante mordaz, aparece Washington Luís17, presidente

17 Detalhe incorporado à ilustração na década de 50, pela filha do gravurista, por ocasião do

lançamento da referida obra em homenagem póstuma.

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24

deposto por Vargas na Revolução de 30, dizendo “Veja quem está apregoando!”. O

personagem de Washington Luís é claramente passado pela consciência de Belmonte, que

diz para Getúlio: “Quem te viu e quem te vê”.

Belmonte foi responsável pela criação de dois dos mais famosos personagens do

desenho brasileiro: deu vida ao Jeca Tatu de Monteiro Lobato ao ilustrar os livros do autor

e, em suas tiras na Folha da Noite, concebeu Juca Pato, talvez a mais popular personalidade

paulista do período. A boa receptividade do público ao novo cidadão paulista podia ser

percebida nas ruas da cidade, onde bares, cigarros e restaurantes ostentavam seu nome.

Criado em 1925, Juca Pato, “concebido careca “de tanto levar na cabeça”, adotou

o lema “podia ser pior”, encarregando-se, assim, de traduzir as críticas e aspirações da

classe média”18, foi presença constante nas charges de Belmonte, ora como espectador

passivo, ora como alvo das manobras de um governo autoritário e da dinâmica política e

econômica global. Suas ações e falas refletem o pensamento e a visão de seu criador que,

oriundo da classe média-baixa de São Paulo, observa as ações governamentais com os

mesmos olhos de seus leitores, causando a aceitação imediata de suas reflexões.

Juca Pato é, portanto, o alter-ego de Belmonte, nada mais que um espectador dos conflitos e da

política interna e externa, mas com bagagem intelectual e discernimento suficientes para analisá-los e tecer

críticas e observações agudas sobre eles. Em um período ditatorial, no qual a presença do DIP (Departamento

de Imprensa e Propaganda) era constante nas redações dos diários e aplicava com rigor a censura, o pincel de

Belmonte torna-se uma poderosa arma na crítica de um momento conturbado, tanto no plano interno quanto

no externo. Para tanto, seus desenhos acerca da conjuntura externa também serviam para fomentar o debate

sobre a situação interna do país, satirizando, pois, os Fascismos, satirizava também o Getulismo e, desta

forma, driblava com eficiência os censores.

3.1) Características do Traço de Belmonte:

Poucos como Belmonte conseguiram sintetizar, em um único desenho, tantas

considerações e análises de um determinado fato ou situação. Utilizando-se do semblante

do personagem retratado ou do ambiente em que se encontra, dos objetos que o rodeiam ou

das manchetes de jornais que evocam o assunto, o autor condensa sua opinião e sua visão

em um quadro de alguns centímetros quadrados e a apresenta ao leitor.

18 Belmonte, o criador do Juca Pato. Folha de São Paulo. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/belmonte.html> Acesso em: 30 out. 2003.

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25

Fonte: BELMONTE. Folha da Noite, 18 jul. 1936. In: Caricatura dos Tempos.

A charge acima reúne algumas destas características. O desenho mostra um conjunto de casas a beira

mar que são observadas por Juca Pato, recém chegado na Europa. A primeira casa tem arquitetura russa e

possui uma bandeira soviética desfraldada. Ao seu lado, uma construção típica germânica com uma flâmula

nazista, seguida por uma casa com colunas em estilo romano ostentando a bandeira italiana. Todas as três

estão bem cuidadas e aparentemente abandonadas. Ao seu lado encontra-se um pequeno castelo francês, que

se destaca pelo varal de roupas e o escudo com a flor-de-lis caído em sua fachada. No casebre ao lado, ao

contrário da tranqüilidade dos anteriores, parece ter uma briga terrível em seu interior, e a bandeira hasteada

ostenta um ponto de interrogação. Em frente às habitações está Juca Pato, que pergunta a um pescador: “Mas

não há gente nestas casas?”, ao que o cidadão responde: “Qual o que! Estão se divertindo ali na casa da

vizinha...”.

O desenho retrata o início da Guerra Civil Espanhola, na qual nacionalistas e republicanos lutaram

pelo poder (daí a bandeira estar com uma interrogação). O fato das três primeiras casas estarem em silêncio

faz alusão à participação ativa das três potências referidas no conflito na Espanha – a quinta casa, onde a

bagunça está instalada. O aparente descaso dos moradores da quarta casa, a França, para com o conflito é

representado pelo varal de roupas. Assim, Belmonte critica a omissão dos franceses, que assistiram ao

conflito e cederam apenas algumas dezenas de aviões de tecnologia obsoleta aos republicanos. O escudo

caído denota a decadência francesa, que até há poucos anos, anteriormente a este conflito, era a principal

potência do continente europeu19.

19 SILVA, 1995.

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26

Desta forma, o chargista consegue em um único desenho, abarcar uma série de

informações (através de analogias) que delineariam o jogo internacional dos próximos três

anos. Coloca de maneira clara a situação de cada potência naquele momento, faz críticas à

inoperância da França e expõe o campo de treinamento para a Segunda Guerra Mundial que

a Guerra Civil Espanhola20 se tornou. Tais analogias são feitas através da representação dos

países europeus por um grupo de casas vizinhas, imagem que, a princípio, não evoca a

situação retratada. Aí talvez se encontre a chave para o brilhantismo de Belmonte;

transformar um assunto sério e de difícil compreensão em uma situação cotidiana para a

grande população (uma briga de vizinhos ou um jogo de futebol) tornando-o, desta forma,

compreensível para o leitor do diário.

Além dos elementos acima descritos, deve-se observar também a qualidade das

caricaturas de Belmonte. Ao mesmo tempo em que exagera os traços de suas “vítimas”, a

quantidade de detalhes não deixa dúvida alguma sobre quem é o retratado. Os bigodes de

Hitler e Stalin, por exemplo, não são grosseiramente destacados, fazendo com que os alvos

das caricaturas parecessem personagens do próprio Belmonte. Apesar de caricaturarem as

personalidades envolvidas no conflito, os desenhos mantêm uma proporcionalidade em

relação a seus correspondentes reais, evitando o caminho “fácil” da desproporção entre

corpos e cabeças. Os desenhos do autor paulista parecem utilizar-se de miniaturas dos

próprios envolvidos no jogo internacional, deixando a comicidade a cargo da situação

retratada e dos elementos utilizados na composição da charge.

20 Para maiores informações acerca da Guerra Civil Espanhola, ver HENNINGER, Laurent. Guerra

Civil Espanhola: um campo de provas para Hitler. In: História Viva. São Paulo: Duetto, nov. 2003. n. 1. p. 34-39; e BEEVOR, Antony. The Spanish Civil War. New York: Penguin, 2001.

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27

Fonte: BELMONTE. A Guerra do Juca. São Paulo: Folha da Noite, 1941.

O desenho acima é exemplo do que acabamos de escrever. Os personagens das

charges de Belmonte não são desproporcionais, fazendo parecer mesmo que são pessoas

reais que “passaram” para o papel (no caso, Churchill, primeiro-ministro inglês, e

Roosevelt, presidente norte-americano). A charge é emblemática ainda na técnica

recorrente na obra do autor de transpor fatos cotidianos para analisar o complicado jogo

internacional da guerra. A alegoria evoca a dependência inglesa do capital e da indústria

norte-americana mesmo antes dos EUA entrarem no conflito. Para que a Inglaterra contasse

com as “mercadorias” (leia-se armamentos) americanas era necessário que estes

emprestassem o capital necessário para que a transação se efetuasse, pois a economia

inglesa já estava em frangalhos no final de 1940 (a charge é datada de 21 de dezembro do

referido ano) e as indústrias britânicas sofriam com os constantes ataques da Luftwaffe, a

Força Aérea Alemã.

Outra interessante característica das charges de Belmonte é a evocação de idéias e alegorias que

poderíamos definir como pertencentes à área de discussão culta ou acadêmica. Tais alegorias evocavam

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28

citações de intelectuais, fatos históricos e mitologia grega, como é o caso da lenda de Sísifo, constantemente

utilizada pelo autor quando precisa passar a idéia de um grande fardo sendo sustentado por um personagem.

Fonte: BELMONTE. A Guerra do Juca. São Paulo: Folha da Noite, 1941.

É o caso da charge acima, na qual Belmonte modifica a lenda grega, segundo a qual

Sísifo teria sido condenado a empurrar eternamente uma rocha montanha acima por ter

traído a confiança de Zeus21, adaptando-a ao contexto da derrota francesa frente aos

alemães em 1940. No desenho, o general Pétain, presidente francês, tem de suportar sua

rocha, que, convenientemente, tem o formato do rosto de Hitler.

As características acima citadas moldam a arte das charges de Belmonte. Com elas

o autor encontrou uma forma de aproximar seus desenhos e suas idéias do leitor de classe

média de São Paulo, transmitindo seu ponto de vista acerca da guerra, bem como o de seu

21 Sobre o assunto, ver SCHWAB, Gustav. As Mais Belas Histórias da Antiguidade Clássica. São

Paulo: Paz e Terra, 1996.

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29

jornal, para o consumidor do diário e, assim, como discutido no capítulo 2, influenciar suas

opiniões a respeito do conflito.

Verificaremos a seguir alguns exemplos de charges de Belmonte que foram

produzidas e publicadas na Folha da Noite durante a guerra, em especial as referentes ao

nosso objeto de estudo, ou seja, os desenhos que fazem alusões ao regime nacional-

socialista alemão.

3.2) O desenho de Belmonte e a Guerra:

Ao atentarmos para as fontes por nós coletadas, poderemos traçar um quadro geral

das idéias e opiniões de Belmonte e, baseados nas considerações propostas no item 1 da

introdução deste trabalho, também do diário para o qual o autor produzia seus desenhos, no

caso, a Folha da Noite.

Consideraremos também, como fator preponderante na análise, o contexto do

período de guerra, a posição brasileira neste e a visão da imprensa diante do Nazismo.

Podemos dividir o período em três momentos: no primeiro, entre 1933 e 1942, encontramos

o Brasil assumindo uma posição neutra perante o desenrolar do jogo diplomático e a

imprensa do país, em sua maioria, evita tecer comentários ásperos diante do governo

hitlerista, exceção feita quanto à perseguição nazista frente aos judeus. Em alguns

momentos, artigos são escritos de forma elogiosa ao regime alemão, principalmente diante

da luta deste contra o comunismo no mundo22.

O segundo momento tem início quando o Brasil declara guerra contra o Eixo por

ocasião do afundamento de navios brasileiros no Oceano Atlântico23. A imprensa passa

então a criticar severamente o regime nazista, colocando-o na posição de inimigo que lhe é

conferida. A partir da segunda metade de 1944, entretanto, com a proximidade do final do

conflito, a imprensa em geral passa a apenas noticiar factualmente os acontecimentos da

guerra, dando maior destaque às críticas contra a URSS e os comunistas, que já são vistos

como o grande inimigo a ser combatido no futuro próximo.

22 GÓES, Maria da Conceição Pinto et al. 1933 – A Imprensa Brasileira ante o Fascismo. Rio de

Janeiro: Inst. Goethe, 1983. 23 Sobre o assunto, ver BONALUME NETO, Ricardo. A Nossa Segunda Guerra. Rio de Janeiro:

Expressão e Cultura, 1995.

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30

Tais tendências da opinião pública brasileira encontram reflexo nos desenhos de

Belmonte, entretanto, o autor não se furta de tecer críticas e expor algumas questões

inerentes aos atores do jogo internacional. No pré-guerra, por exemplo, o chargista coloca

em seus trabalhos qualidades morais e de caráter dos líderes alemão e inglês reveladas nas

discussões acerca do delineamento do mapa europeu e das exigências alemãs de que

territórios fossem anexados ao Reich.

Fonte: BELMONTE. Folha da Noite, 13 dez. 1938. In: Caricatura dos Tempos.

A charge acima, tendo como legenda a frase “Estejam sob que mãos estiverem, a

Alemanha tem direito a todas as suas antigas colônias”, proferida por Hitler, coloca frente

a frente o Führer alemão e o primeiro-ministro inglês Chamberlain, o primeiro defendendo

a expansão do Reich em busca de seu Lebensraum e o segundo a manutenção do maior

império do mundo naquele momento. Dentre as antigas colônias alemãs, que passam a ser

reivindicadas por Hitler na frase que ilustra a charge, encontram-se territórios sob

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31

administração inglesa ou de aliados ingleses, daí a posição difícil que se encontra o

primeiro-ministro diante da fala do líder alemão.

O diálogo travado entre os dois políticos coloca ao público leitor um julgamento de

valores quanto aos dois líderes feito por Belmonte. Ao tomar conhecimento da frase que

serve de legenda ao quadro, Chamberlain pergunta a Hitler: “Mas e o nosso tratado de

amizade?”, ao que o Führer responde: “Continua de pé! Amigos amigos, negócios à

parte.” Com estas frases o autor impinge a Hitler um mau caráter ao deixar claro que nada

está acima da ambição do líder alemão, nem mesmo valores como amizade ou honra.

Quando questionado sobre a validade do tratado, que evoca estes princípios, o personagem

tem uma resposta típica da “malandragem” brasileira: “amigos amigos, negócios à parte”.

A posição alemã, porém, só é possibilitada perante as características do líder inglês que

Belmonte expõe no desenho, quais sejam, a ingenuidade e a covardia.

Ao retomarmos as discussões acerca das técnicas de desenho relativas às expressões

faciais e à silhueta (momentâneo corporal) dos personagens, podemos concluir que Hitler

tem um posicionamento autoritário (os detalhes do apoio na mesa e da mão no quadril

denunciam) e um rosto “fechado”, nitidamente nervoso. Ao mesmo tempo o ministro inglês

está em uma posição submissa, na qual sua face demonstra um tato excessivo no trato com

o líder alemão, beirando ao medo. O detalhe das duas bombas colocadas sobre a mesa

alerta para o perigo de um conflito armado eclodir na Europa graças às reivindicações do

Führer. Da mesma forma, um mapa africano na parede remonta ao imperialismo do século

XIX, quando a Alemanha reivindicou territórios no continente para sustentar sua economia

industrial em constante desenvolvimento24.

A conclusão da análise do desenho pode ser feita com o título da charge: “E

agora?”. A pergunta é feita para Chamberlain, que deve tomar uma posição após a

reivindicação e a resposta de Hitler. Seria o momento da eclosão de uma nova guerra ou o

líder inglês se curvaria novamente aos caprichos do Führer? E agora?

A resposta à pergunta, obviamente, é a continuidade da política inglesa de ceder às

reivindicações alemãs. A atitude corrente do primeiro-ministro Chamberlain de evitar a

qualquer custo uma nova guerra na Europa reflete os traumas que o povo inglês havia

24 Para maiores informações acerca do Imperialismo e da conjuntura da época, consultar

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

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32

adquirido com os horrores do conflito de 1914. Fora uma geração inteira que, apesar da

vitória, foi fortemente abalada, tanto física quanto psicologicamente. Justificam-se assim as

ações de Chamberlain, que só encontraram seu fim quando das manifestações alemãs

buscando incorporar o corredor de Danzig ao Reich.

O caminho que as relações diplomáticas percorreram antes de chegar a tal ponto

renderam a Belmonte uma das alegorias mais utilizadas por ele neste período: a do guarda-

chuva de Chamberlain. Tal alegoria trazia implícita a idéia da fuga da luta, ou seja, sempre

que um personagem surgia em cena segurando um guarda-chuva, a verdadeira mensagem

era de que ele estava buscando, de qualquer forma, escapar da guerra. Durante as

negociações anglo-alemãs referentes à fronteira da Alemanha, tal alegoria era

constantemente evocada; em charge publicada em 15 de maio de 1939, Chamberlain é

retratado observando um cartaz que anunciava uma luta de boxe. O panfleto mostra um

lutador nocauteando seu oponente. Segurando seu guarda-chuva, o primeiro-ministro

pensa: “Assim é que eu devia fazer! Mas o diabo é este guarda-chuva, que me atrapalha.”.

Da mesma forma, enquanto Hitler busca a promoção do Pacto Nazi-soviético, é

retratado com um guarda-chuva a tira-colo. Em desenho de 25 de agosto de 1939, Belmonte

satiriza a luta entre alemães e ingleses pelo apoio da União Soviética, porém, dando-nos a

idéia de que os nazistas estavam muito mais próximos de um acordo com esta que seus

opositores. O desenho mostra Hitler guiando um carro muito veloz, segurando o guarda-

chuva, e seguindo uma placa que indica o caminho da URSS. No caminho, ultrapassa

Chamberlain, que se dirige também para a União Soviética, mas ao contrário do Führer,

guia um burrico.

Page 37: GUERRA E HUMOR

33

Fonte: BELMONTE. Folha da Noite, 16 set. 1939. In: Caricatura dos Tempos.

Hitler, é claro, “chega” antes do primeiro-ministro inglês à URSS e promove o

pacto com o país. O desenho acima denuncia as condições do acordo: Stalin diz ao líder

alemão: “Eu vou comer estes coelhinhos, mas não dispenso a metade daquele outro”. Os

“coelhos” que estão à frente do líder soviético respondem pelos nomes de Ucrânia,

Finlândia, Estônia, Letônia, Lituânia e Bessarábia. O outro coelho, que está, já morto, atrás

de Hitler, refere-se à Polônia. O Führer tem um olhar descontente, mas, como todo

portador do guarda-chuva, acaba cedendo aos pedidos do líder comunista. Alguns detalhes

da charge chamam a atenção do leitor, como o revólver que Stalin segura longe da visão de

Hitler. Tal detalhe revela o pensamento do autor, que julgava as intenções soviéticas

escusas, prevendo uma possível traição por parte do Exército Vermelho. Outro detalhe

interessante é o primeiro-ministro inglês chegando atrasado no horizonte, confirmando a

projeção que Belmonte fizera cerca de 20 dias antes.

A síntese natural das duas charges anteriores é o desenho abaixo, que põe em dúvida

a validade e a durabilidade do Pacto Nazi-soviético. De um lado, o bolchevique Stalin, tido

pelo desenhista como traiçoeiro no desenho de 16 de setembro de 1939, e do outro Hitler,

caracterizado como desonesto, em 13 de dezembro de 1938.

Page 38: GUERRA E HUMOR

34

Fonte: BELMONTE. Folha da Noite, 22 set. 1939. In: Caricatura dos Tempos.

O desenho ilustra um encontro fictício entre os dois personagens no qual satirizam

as opiniões que eram publicadas nos diários que diziam não ter futuro o pacto por não se

poder saber as intenções dos dois líderes políticos. Assim, na charge, Hitler diz, em tom de

deboche, para Stalin: “Boa piada! Ninguém conhece nossas intenções, hein?” Ao que o

líder soviético responde, às risadas: “É verdade! nem nós...” Os detalhes da charge ficam

por conta das adagas que ambos escondem às costas, sugerindo que um ataque, de qualquer

um dos lados, viria cedo ou tarde, graças às diferenças gritantes existentes tanto nas

ideologias seguidas por ambos quanto nas pregações feitas pelos líderes tempos antes de

celebrarem o acordo.

A visão de Belmonte diante dos fatos e suas conclusões sobre a figura de Hitler já

eram explicitadas em seus desenhos de 1939 e anteriores. Já existia a convicção de que o

Führer, assim como os demais líderes fascistas – incluindo-se aqui, talvez, Getúlio Vargas

– não era digno de confiança. Assim, ainda antes da guerra, o humor já era utilizado pela

Page 39: GUERRA E HUMOR

35

mídia, de forma sublimar, na influência da opinião pública a respeito do Nacional-

Socialismo e seu líder.

No período que compreende os anos de 1939 a 1942, ou seja, quando a Segunda

Guerra Mundial já havia sido irrompida, mas o Brasil ainda não tomara posição no conflito,

as críticas de Belmonte continuaram a ser feitas de forma indireta, porém, pouco a pouco

tomaram mais consistência e passaram a ter um posicionamento mais claro e definido

diante dos acontecimentos.

Neste período, por exemplo, podemos observar a constante referência à batalha

travada entre Inglaterra e Alemanha25. Iniciado em maio de 1940, o conflito entre as duas

potências foi considerado por muitos historiadores como o ponto decisivo da guerra. A

resistência inglesa teria, segundo estes pesquisadores, obrigado Hitler a abrir uma segunda

frente de batalha contra a URSS e, desta forma, determinado a sua derrota, que seria

sacramentada cinco anos mais tarde.

Fonte: BELMONTE. Música Maestro. São Paulo: Folha da Noite, 1940.

25 Sobre a guerra entre Alemanha e Inglaterra, ver LUKACS, John. O Duelo Churchill x Hitler – 80

dias cruciais para a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

Page 40: GUERRA E HUMOR

36

Na charge acima, veiculada no dia 24 de julho de 1940, Belmonte utiliza-se da sua

tática mais prolífera: a transposição de um fato ou contexto internacional para uma situação

cotidiana e comum ao leitor, que pode melhor compreender o objetivo do desenho. No

caso, uma partida de futebol entre Hitler e Churchill representa a intrincada guerra que

Alemanha e Inglaterra travavam naquele momento. A dificuldade que os alemães

enfrentaram na tentativa de invasão da ilha britânica tem como alegoria a dificuldade que o

Führer tem em marcar um gol. Não por acaso, na trave superior da meta defendida pelo

primeiro-ministro inglês está escrito “Britânia Futebol Clube” e tinha dimensões muito

menores do que as esperadas.

Hitler então demonstra sua surpresa com o inusitado fato e exclama: “Diabo! Como

é que se poderá marcar um “goal” naquele “gólsinho”!!!”. Aliado ao semblante incrédulo

do líder alemão, podemos observar a tranqüilidade esboçada por Churchill no seu rosto e na

sua pose, escorado junto à trave e de mãos à cintura, como se a vitória já estivesse

garantida. Na arquibancada, vários torcedores assistem ao “jogo”. A expressão corporal de

tais observadores, sentados, de mãos cerradas e apreensivos, dão-nos a impressão de que

desejam que o Führer perca a penalidade, ou seja, que a invasão alemã à Inglaterra

fracasse. Apenas um torcedor, entre todos, parece torcer pelo acerto do cobrador da

penalidade ficando em pé e agitando os braços. O desejo da maioria da “torcida” pode ser a

mesma de Belmonte, que, apesar de “torcer” pelos ingleses, tinha de conviver com opiniões

divergentes, que apoiavam a vitória alemã no conflito.

Referente ao mesmo conflito, travado entre Inglaterra e Alemanha, Belmonte faz

referência ao lado belicoso de Hitler, numa charge que podemos considerar uma pioneira

entre muitas outras que fariam críticas diretas e agudas em relação ao líder alemão e sua

ideologia. Neste desenho, datado de 09 de agosto de 1940 e publicado na Folha da Noite, o

Führer é retratado como maior fomentador do conflito, acusado de alimentar a morte

através de uma grande carnificina, mantida através dos vários bombardeios aéreos que

atingiram o território britânico.

Page 41: GUERRA E HUMOR

37

Fonte: BELMONTE. Música Maestro. São Paulo: Folha da Noite, 1940.

O título do desenho, “No Restaurante ‘Ao Relâmpago’”, é uma referência direta à

Blitzkrieg promovida pelos alemães principalmente no início do conflito mundial. Hitler

como chef do restaurante, atende aos pedidos da Morte, que exige que seu pedido seja

atendido rapidamente: “Então, como é? Essa comida vem ou não vem?!”. No menu do dia,

escrito no quadro abaixo da janela da cozinha, encontramos prato não usuais, como

“consome de Bombas, Filet de Granadas, Salada de dinamite à Krupp Stukas e

Paraquédas, RAF em churrasco, Gazes e micróbios, Whisky fervendo, Guarda-chuva

torrado, etc, etc etc, surprezas.”.

Os pratos servidos no restaurante “Ao Relâmpago” trazem nomes de armamentos

utilizados durante a guerra, como bombas e granadas, e de divisões das forças armadas

alemãs, como os pára-quedistas e os Krupp Stukas. Há ainda a referência ao guarda-chuva

de Chamberlain, que no restaurante é servido torrado. Desta forma, Belmonte coloca a

impossibilidade de paz naquele momento e a guerra como o fracasso definitivo das

negociações diplomáticas que visavam a paz, promovidas pelo ex-primeiro-ministro inglês.

A partir de 1942, com o ingresso brasileiro no conflito, as charges passam a ser

muito mais claras e contundentes nas críticas ao Nacional-socialismo. O rompimento de

Page 42: GUERRA E HUMOR

38

relações e a declaração de guerra do Brasil para com os países do Eixo se dão em agosto

deste ano e já em novembro pode-se perceber as observações criticamente efetuadas nos

desenhos de Belmonte.

Fonte: BELMONTE. Folha da Noite, 11 nov. 1942. In: Caricatura dos Tempos.

A força do discurso de Hitler é discutida na charge acima. O ímpeto com que o

Führer fazia seus discursos no período pré-guerra e no início do conflito é demonstrado no

primeiro desenho, onde o semblante do líder alemão demonstra força e autoridade. O

entusiasmo do povo alemão e dos partidários nazistas é representado pelo Comandante-em-

chefe da Luftwaffe Hermann Goering, que observa a fala do Führer com expressão ávida e

Page 43: GUERRA E HUMOR

39

motivada. A bandeira do NSDAP, que aparece inflada e posicionada ao fundo, representa a

ideologia nazi-fascista que estava em ascendência naquele momento histórico.

Já no segundo quadro, o “grande discursador”, como se refere o título do desenho

ao líder nazista, aparece fatigado e despenteado, apresentando sinais claros de desgaste. O

ímpeto inicial de sua fala já não mais existe e sua platéia já não se emociona mais com suas

palavras, ao contrário, parece entediada com elas. Mesmo a bandeira nazista, antes vistosa,

aparece agora murchando e sem destaque. É o início da derrocada de Hitler, que é melhor

representado no desenho seguinte.

Fonte: BELMONTE. Folha da Noite, 04 dez. 1942. In: Caricatura dos Tempos.

O título da charge acima, “Crepúsculo”, indica a derrocada do exército nazista no

front oriental, no momento que a batalha de Stalingrado26 já se arrastava por dois meses e

dava provas de que as tropas alemãs não eram invencíveis, como até então se acreditava.

26 Mais sobre a batalha de Stalingrado, verificar BEEVOR, Antony. Stalingrado – o cerco fatal. Rio

de Janeiro: Record, 2002; e PIEKALKIEWICZ, Janus. Stalingrad - Anatomie einer Schlacht. Südwest: München, 1982.

Page 44: GUERRA E HUMOR

40

Belmonte, porém, aponta para uma tendência que só seria comprovada cerca de três meses

mais tarde, quando a batalha acima citada é encerrada com a vitória soviética. A síntese da

idéia acerca da posição de Hitler e da Alemanha naquele momento neste desenho

demonstra a criatividade do autor, ao trazer como alegoria à opulência anterior do Reich a

figura do sol, que, como sempre, tem que se pôr. A queda prenunciada do regime nazista

fica assim simbolicamente retratada num pôr-do-sol, um sol que traz a face triste de Hitler,

que já pressente seu fim.

Na guerra, outra característica presente nas charges é a ridicularização do inimigo a

fim de, através do riso, colocá-lo em posição inferior, conforme pudemos discutir no

capítulo 2 desta dissertação. Tal especificidade não fugiu à obra de Belmonte. Ainda em

fins de 1942, quando já se percebia a derrocada nazista, um desenho faz alusão à bizarra

lógica nazista:

Fonte: BELMONTE. Folha da Noite, 26 dez. 1942. In: Caricatura dos Tempos.

Page 45: GUERRA E HUMOR

41

A charge satiriza a paranóia com o poder judaico que a alta cúpula nazista

encarnava desde suas campanhas pelo poder, ainda na década de 20, e que acabou

solidificando-se como uma das linhas mestras no pensamento nazista na formulação da

teoria da “Facada pelas Costas”27. Tal teoria evoca a frustração alemã da derrota na

Primeira Guerra Mundial e incute nos judeus a responsabilidade por ela, supondo que a

retirada de circulação de capitais oriundos de empresas pertencentes a judeus em solo

alemão seria a principal causa do colapso da economia e, conseqüentemente, do Exército

daquele país.

Tal teoria é novamente evocada neste momento da guerra, quando novamente os

soldados alemães passam a sofrer fragorosas derrotas. Satirizando esta “neurose” alemã,

Belmonte coloca Hitler acusando um rabino ancião de ser o culpado pela situação em que

seu país e seus exércitos se encontravam. “É êle! Êle é que está derrotando as nossas

tropas!” diz o Führer, apontando para o judeu prisioneiro. A dinâmica do chiste deste

desenho aponta para a zombaria de Hitler e de suas idéias, pois o nonsense causado pelo

pensamento de que um velho possa derrotar um exército de centenas de milhares de

soldados exaustivamente treinados se mostra ridícula. A transposição do ridículo desta idéia

para a figura do líder alemão e de todos os demais pensamentos que são por ele apregoados

se dá de forma instantânea no inconsciente individual, levando o leitor ao menosprezo pelo

personagem em questão. Desta forma, a charge alcança seu intento, qual seja, o de levar o

público a uma posição antagônica à do Führer.

Outras estratégias para chegar a este efeito são utilizadas pelo chargista paulista.

Uma das principais é a demonstração da incoerência existente entre o discurso e a prática

nazista. Fator facilmente utilizado, pois a incoerência parece ter guiado vários aspectos da

política externa alemã, principalmente no caso das relações com a URSS, que fora de

ataques inflamados ao Comunismo e ao Socialismo nos anos de ascensão, passando por um

tratado de não-agressão que possibilitou o início da Segunda Guerra e retornando aos

ataques inflamados quando da invasão alemã ao território soviético, na conhecida operação

Barbarossa.

27 Mais sobre a teoria da “Facada pelas Costas” e demais pensamentos raciais formulados pelos

nazistas, ver GOODSPEED, D. J. Ludendorff. Rio de Janeiro: Bibliex, 1968; e POLIAKOV, Leon. O Mito Ariano. São Paulo: Perspectiva, 1974.

Page 46: GUERRA E HUMOR

42

Fonte: BELMONTE. Folha da Noite, 20 fev. 1943. In: Caricatura dos Tempos.

Na charge acima encontramos um exemplo para o que acabamos de escrever. Na

legenda do desenho observamos uma frase proferida por Goebbels, Ministro da Propaganda

do Reich, relacionado à posição alemã relativa à URSS. “O povo compreende agora por

que adotamos o ‘slogan’:”Lutar contra o bolchevismo”!”, disse o ministro no início de

1943. A zombaria vem da argumentação de Juca Pato, que assiste ao discurso: “Que é isso,

doutor? O senhor anda com a memória muito fraca!”. Na corroboração da fala de Juca, o

leitor encontra um grande retrato, colocado como pano de fundo da manifestação, no qual

Hitler é mostrado apertando a mão de Stalin, tendo o quadro como legenda “Acordo teuto-

russo: 24-8-1939”. Apontando-se, assim, a incoerência das ações nazistas, mina-se também

a confiança e o respeito do leitor pelos “camisas-pardas”.

Em meados do ano de 1944, já estava claro o destino do conflito. Surgem então, a

partir dos traços de Belmonte, charges que mostram um destino apocalíptico para os

alemães e seus líderes, um destino que, naquele momento, já estava próximo.

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43

Fonte: BELMONTE. Folha da Noite, 18 abr. 1944. In: Caricatura dos Tempos.

Fonte: BELMONTE. Folha da Noite, 27 jan. 1945. In: Caricatura dos Tempos.

Page 48: GUERRA E HUMOR

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As duas charges acima são exemplos desta “fase sombria” das charges de Belmonte,

situada no final da guerra. A primeira mostra uma cena baseada na Divina Comédia, de

Dante Alighieri. Nela, Heinrich Himmler, Reichführer da SS (Schutzstaffel), organização de

elite que, entre outros, era responsável pelos campos de concentração, aparece carregando

vários esqueletos enquanto caminha pelo Inferno. O líder nazista profere: “Eu? Eu fui o

verdugo da Gestapo”. Duas questões pertinentes são levantadas no desenho: a primeira se

refere à culpa da guerra. Belmonte exime o povo alemão da culpa, que é atribuída apenas

aos líderes nazistas, entre eles, Himmler. A segunda, através da representação do Inferno, o

autor coloca a seriedade da situação alemã naquele momento, em abril de 1944. O caos e a

desesperança reinariam no solo germânico, prenunciando o fim que chegaria um ano

depois.

O segundo desenho tem como alegoria o texto bíblico referente a Caim e Abel,

filhos de Adão e Eva. Segundo a narrativa, Caim teria matado seu irmão por inveja da

relação deste com Deus, cometendo assim o primeiro assassinato do mundo desde a

Criação. No desenho de Belmonte, Hitler é representado como Caim, porém, ao invés do

assassinato de um único irmão, o Führer é acusado de levar à morte milhares de irmãos, ou

seja, de assassinar milhares de alemães na guerra por ele provocada. Tal como na Bíblia,

Deus aponta para o Caim moderno e pergunta: “Que fizeste dos teus irmãos?”.

Ao final do mês de abril de 1945, a Alemanha nazista assina a rendição, colocando

um ponto final no front ocidental da Segunda Guerra Mundial. Pudemos constatar, nas

análises acima, a forma com que o chargista paulista delineia o discurso em seus desenhos,

utilizando para tanto algumas das técnicas de chiste descritas por Freud, como o cinismo, o

nonsense e a alusão. Na crítica ao contra-senso das decisões tomadas pelos líderes nazistas

e das posições que sustentavam referentes aos mais variados assuntos, encontramos a chave

para o pensamento de Belmonte, para a linha editorial de seu jornal e para a opinião

formada por seus leitores.

Page 49: GUERRA E HUMOR

45

4) CHICHORRO – A CHARGE PARANAENSE E O CONFLITO MUNDIAL:

Alceu Chichorro, alvo deste capítulo, marcou profundamente a sociedade

paranaense, em especial a curitibana, entre as décadas de 1920 e 1970. Suas ações são

pioneiras e destacadas em vários ramos sociais, como na poesia, no jornalismo e no

desenho humorístico.

Nascido em 21 de junho de 1896, Alceu foi uma criança precoce, aprendendo a ler e

escrever com sua mãe e ingressando já alfabetizado no Colégio Santa Júlia. Prossegue seus

estudos em outros estabelecimentos, dentre os quais se destacam a Escola Americana e o

Ginásio Curitibano. Sua veia artística é marcante nesta trajetória, de modo que, ao terminar

os estudos ginasiais, procura orientação nesta área. Encontra-a na Escola de Aprendizes e

Artífices do Paraná, onde estuda escultura, e com Andersen, que lhe ministra aulas de

desenho.

Sua vida profissional é iniciada aos dezessete anos, em 1913, quando começa a

trabalhar no diário A Tribuna. Neste jornal, inicia uma frutífera carreira de jornalista e de

fotógrafo. Em 1916, no decorrer do primeiro conflito mundial, a faceta artística pela qual

Chichorro seria conhecido é revelada nas páginas do diário: uma charge do autor é

publicada, fazendo referência à abdicação do czar russo. No desenho, “o nosso humorista

caricaturiza o Kaiser com o queixo dentro de um copo de chope e a seguinte legenda:

vendo as barbas do vizinho arder, pôs as suas barbas de molho. Um sucesso a charge,

reproduzida até num jornal londrino”28. Sucesso que também rendeu a publicação diária

dos desenhos de Chichorro a partir do ano seguinte, quando as charges passam a ser

assinadas com o pseudônimo que lhe acompanharia até a morte: Eloy.

No mesmo ano, entretanto, A Tribuna fecha suas portas, levando Alceu a migrar

para o diário Comércio do Paraná, onde ficou até 1919. O itinerário de Chichorro pelos

jornais curitibanos continua, passando pelos diários O Paraná (1919), Diário da tarde

(1920), Gazeta do Povo (1923) e O Dia (1926). Este último é o berço do principal

personagem do autor, o Chico Fumaça, presença constante das charges de Eloy e peça

primordial na análise dos desenhos de Alceu, análise que será efetuada nas próximas

páginas.

28 BÓIA. Wilson. Alceu Chichorro. Curitiba: Secretaria da Cultura, 1998. p. 18.

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4.1) Características do Traço de Chichorro:

Fonte: ELOY. O Dia. 23 mai. 1926. Curitiba. In Alceu Chichorro.

No desenho acima, podemos observar a estréia de Chico Fumaça nos jornais

curitibanos. Na legenda29, a história do nascimento de Fumaça, na qual o autor coloca a

própria situação de oprimido pela sociedade e pelas ações governamentais, transpondo-a

assim para seu novo “calunga”. Seria a partir de então, Chico Fumaça o exteriorizador das

opiniões de Chichorro e do Jornal o Dia. A exemplo do Juca Pato, analisado no capítulo

anterior, Fumaça representa também as aspirações e as frustrações da classe média urbana,

no caso, a curitibana, quando leva um problema municipal, nacional ou mundial ao debate

público.

Chico Fumaça se tornaria o principal personagem de Chichorro30. Comparecerá

29 “Depois de tão rudes golpes que soffrera Eloy, entrou hontem em seu “attelier”. Lá estavam os

seus bonecos riscados do scenario da vida. Eloy pensou como o arlequim Dominico – Castigat ridendo mores, e rabiscou um novo boneco. Apromptou-o convenientemente, mandou-o para a rua lêr jornaes e tratar da vida nesta macacolandia... Elle, porem, em chegando proximo a um canno d´agua teve uma idéia. Amassou os jornaes e metteu-os pelo cano, riscando um phosphoro. E quando viu que o fôgo irrompera, poz-se a correr assustado, medroso, emquanto a cidade alarmada baptisava-o: - Chico - Fumaça! – Chico – Fumaça! – Pega o Fumaça! Elle já ia longe, quando o capitão Scheriffe, do Corpo de Bombeiros segurou-o e fincou o cacêtête na cabeça. E assim, Chico Fumaça nasceu... levando na cabeça!”

30 O autor ainda criaria outros, como Tancredo, Minervino, e alguns que contracenariam com Fumaça, como Dona Marcolina e Totó, seu fiel cachorro de estimação.

Page 51: GUERRA E HUMOR

47

com freqüência nas charges de Eloy no O Dia, tendo como arma principal o humor em

suas lutas contra o descaso governamental ou na simples exposição de um fato marcante na

sociedade curitibana. Servirá ainda como garoto-propaganda em vários momentos,

alardeando promoções ou novidades das principais casas comerciais que patrocinavam seu

jornal.

Fonte: ELOY. O Dia. 25 jun. 1939.

No desenho acima encontramos um exemplo desta utilização de charges com fins

propagandísticos. Nele, Fumaça exorta seus conterrâneos31 a se dirigirem a uma casa

comercial curitibana para comprarem seus produtos. É o uso de um produto da Indústria

Cultural (as charges de Fumaça, veiculadas no Jornal O Dia) com propósitos, não

ideológicos ou políticos, mas sim, comerciais. Da mesma forma, a dinâmica do prazer do

riso32, causado não apenas pela presença do personagem, mas também por sua fala, que faz

alusão à dinâmica política na Europa, causa no leitor a simpatia pela casa comercial em

31 “Vamos pessoal! Si esfriar o fogo na guerra na Europa, certamente aqui também vão esfriar e

precisaremos nos esconder nas trincheiras de lãs e fianeiros do Louvre que resistem a todas as temperaturas de inverno.”

32 FREUD, Sigmund. O chiste e sua relação com o Inconsciente. São Paulo: Imago, 1976.

Page 52: GUERRA E HUMOR

48

questão. Trata-se, portanto, de uma eficiente forma de propagandear o produto, no caso,

cortes de tecido e roupas.

A utilização do “calunga” em propagandas comerciais demonstra o prestígio que

este já gozava na sociedade curitibana ainda antes da Segunda Guerra. Sua presença nas

tiras é constante, sendo sempre um observador das ações dos políticos e por vezes

contracenando com os mesmos.

Característica interessante dos desenhos de Chichorro é a inconstância nas

caricaturas dos retratados. Ao contrário das charges de Belmonte, que vimos no capítulo

anterior, as feições e os traços permanentes dos caricaturados mudam constantemente, o

que acaba por não proporcionar ao leitor uma aproximação com eles, diferentemente de

Fumaça, que sempre com seu chapéu coco, bigode quadrado e barriga proeminente,

transmite confiança e familiaridade. Nas caricaturas de Hitler, por exemplo, o nariz, os

olhos e o formato do rosto são metamorfoseados durante o período que é retratado, ato que,

pensamos nós, não podemos julgar ser consciente ou não.

Não se trata, entretanto, de falta de aptidão artística do autor, visto que suas

qualidades nesta área são comprovadamente reconhecidas. Talvez a pressa e os afazeres de

Alceu Chichorro não lhe disponibilizassem o tempo necessário para que as caricaturas

fossem constantes e, novamente em comparação com os traços de Belmonte, criassem uma

aura própria, ou seja, que dessem a impressão nos leitores de se tratarem de personagens do

próprio artista. Esta característica, entretanto, lega aos desenhos do chargista paranaense

uma distância dos caricaturados, legando às falas e às ações de Fumaça a verdadeira “aura”

da charge, transferindo, em grande parte dos desenhos, o papel de protagonista a seu

personagem, não aos atores do cenário político do período.

Algumas situações são recorrentes nas charges de Chichorro. Uma delas é a

formação de uma “marchinha” de carnaval, na qual os integrantes são os protagonistas das

manchetes do jornal. Assim, em um só desenho, vários aspectos do contexto retratado são

abordados pelas rimas proferidas pelos “foliões”. Chico Fumaça, é claro, também é

presença certa no “baile”, e em suas palavras verificamos a síntese do pensamento do autor,

a opinião colocada após a apresentação das quadras satíricas creditadas aos outros

personagens que participam da charge.

Page 53: GUERRA E HUMOR

49

Fonte: ELOY. O Dia. Sem data. In Alceu Chichorro.

No desenho acima, dividido em duas partes a fim de obtermos uma melhor

visualização, estão representados, pela ordem, Getúlio Vargas, que estava deixando o

governo brasileiro e promovia as primeiras eleições presidenciais em quinze anos, uma

foliona que carrega uma cobra, com a palavra “Democracia” inscrita, o Tio Sam,

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50

representante maior no imaginário coletivo dos EUA, carregando uma bomba atômica, uma

coreana fortemente armada, Stalin, e os candidatos à presidência nas eleições de 1945

Eduardo Gomes e Gaspar Dutra, além de Fumaça, Dona Marcolina e Totó.

Com uma legenda33 compassada, o desenho abrange vários aspectos do contexto

nacional e internacional já no fim do ano de 1945. Nas duas primeiras estrofes, a retirada de

Getúlio do poder e o movimento queremista são enfocadas. A possibilidade de Vargas dar

continuidade a seu governo é colocada na frase “Vamos por conta do atôa que esta terra é

do barulho”. A foliona que segue o ditador reconhece a habilidade do governante para

joguetes políticos – “malandragem há de sobra” – mas também adverte para a volta da

Democracia, a cobra que pode “morder Gegê”. A política nacional volta a ser motivo de

reflexão nas sexta e sétima estrofes, nas quis são representados os dois candidatos

presidenciáveis. Aqui Chichorro lega a Eduardo Gomes um suposto favoritismo (que pode

ser observado também na pose do candidato) sobre Dutra, quando o primeiro “canta”:

“Esta baiana ao meu lado, sabe que o meu santo é forte...” enquanto o segundo, delatando

um desconforto quanto à situação, reclama do jogo político: “agora essa fuzarca

destemperou o meu passo.”

O âmbito internacional é contemplado na charge pelas figuras do Tio Sam,

de uma coreana e de Stalin. O primeiro, dançando com um pacote de dinheiro e uma bomba

às mãos, ameaça: “si houver fecha entro com minha maromba.. (...) Tenho o dólar, tenho a

bomba!” A advertência já é reflexo da Guerra Fria que era delineada com o final da

Segunda Guerra. Na quinta estrofe é apresentado Stalin, o “malandro sarado do cordão

Foice e Martelo”. Sua roupa, típica da “malandragem brasileira”, faz referência às

33 “Recomeça a farra boa. Sou do povo, é meu orgulho. Vamos por conta do atôa que esta terra é do

barulho. Malandragem há de sobra. Já não há quem não concorde. Seu Gegê – olha esta cobra, feche o

corpo que ela morde... Vou na onda, si houver fecha entro com minha maromba. Teço a trama, mando a mecha... Tenho o

dólar, tenho a bomba! Coréia quer dizer – dansa. Coréia quer dizer – samba. Para o meu lado quem avança deve ser afoito

e bamba. Eis o malandro sarado, do cordão Foice e Martelo. Um vermelho camuflado no pagode do amarelo. Marujo, tenho viajado pelejei de sul a norte. Esta baiana ao meu lado, sabe que o meu santo é

forte... Eu dansei conforme a marca, nunca fugi ao compasso. Mas agora essa fuzarca destemperou o meu

passo. Rasga a saia Marcolina que este mundo é sempre o mesmo. Pegar fogo é a nossa sina. Temos que

virar torresmo.”

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51

manobras políticas do líder soviético no pós-guerra, assegurando grande parte da Europa e

da Ásia para sua zona de influência. A segunda metade da quadra coloca ao leitor o grande

problema que era colocado na “divisão do mundo”: a Coréia. O país, representado na quarta

estrofe, fora dividido em 1945 após o conflito mundial conforme o estabelecido na

Conferência de Potsdam. Separado na altura da linha 38 de latitude norte, o país foi legado,

a metade norte para a URSS e a parte ao sul para os EUA. O autor consegue vislumbrar os

problemas que uma zona tão diminuta, separada por duas formas tão distintas de governo e

de ideologia, inserida na dinâmica da Guerra Fria, poderia causar. O caráter beligerante da

natureza da situação é retratado pela figura da coreana, que leva consigo um rifle,

convenientemente apontado para Stalin, e um revólver, que mira na direção do Tio Sam.

Porém, o ponto principal das charges de Chichorro é mesmo a presença de Chico

Fumaça. Posicionado no fundo da fila, o personagem canta a síntese de toda a conjuntura

retratada no desenho, ou seja, como a população se enquadra na situação. O resultado não

poderia ser outro: “Rasga a saia Marcolina que este mundo é sempre o mesmo. Pegar fogo

é a nossa sina. Temos que virar torresmo”. A frase esboça claramente a frustração da

classe média: sai governo, entra governo; começa guerra, finda guerra, para ela a situação

não muda: acaba sempre “pegando fogo”.

Sob essas características gerais é que versam as charges de Alceu Chichorro no

jornal “O Dia”. Veremos a partir do próximo item deste capítulo de que forma o Nacional-

socialismo e seus líderes eram caracterizados pela pena do desenhista paranaense e como

Chico Fumaça via-os e “interagia” com os mesmos.

4.2) O Desenho de Chichorro e a Guerra:

Ao atentarmos para as charges produzidas por Chichorro que fazem referências ao

regime nacional-socialista, podemos observar dois momentos distintos: no primeiro, que

compreende o período entre os anos de 1933, data de ascensão de Hitler ao cargo de

chanceler, e 1942, ano da entrada do Brasil no conflito, a visão daqueles elementos é

bastante branda. A origem de tal amenidade no trato do assunto tem várias possibilidades,

que vão desde uma orientação editorial voltada ao público curitibano, que tinha visões

otimistas acerca do regime alemão, até uma possível simpatia velada do autor para com a

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52

ideologia nazista. As razões para este comportamento de seus desenhos, entretanto, não

passam de conjecturas. Contudo, retornaremos ao assunto na conclusão deste trabalho.

O segundo momento que podemos visualizar é iniciado no ano de 1942, quando o

Brasil ingressa no conflito junto aos Aliados. A partir de então, como era de se esperar, os

desenhos passam a criticar e satirizar o regime de Adolf Hitler e suas ações. Interessante

nesta fase de Chichorro é a sutileza das críticas, não lançando mão do horrendo em suas

charges, mas se utilizando sim de um humor sadio, que beira à inocência.

Fonte: ELOY. O Dia. 15 jan. 1943.

Na charge acima, produzida no ano de 1943, já situada, portanto, na segunda fase de

Chichorro, podemos visualizar o humor singelo do autor. Baseada em notícia de diários

estrangeiros, no caso, de Estocolmo, que noticiavam que “o estado de saúde de Hitler é

precário. A conselho médico, o füehrer (sic.) está usando óculos pretos”, a charge mostra

Page 57: GUERRA E HUMOR

53

um Hitler de postura autoritária, demonstrando deter (ou com a ilusão de deter) o poder

sobre a África34. A situação é denunciada, além pela pose do líder alemão, pela placa que

no plano superior do desenho aponta para o continente africano. A ilusão do domínio do

continente negro é causada pelo uso dos óculos escuros, que, como o título da charge

proclama, causa uma “ilusão ensombrada” à vista do Führer.

O complemento do desenho é feito pelo diálogo travado entre Chico Fumaça e dona

Marcolina, que observam Hitler: “ – Mas porque (sic.) os óculo pretos, Fumaça? – É para

ter uma ilusão da conquista da.... África!...”. Aqui, Fumaça cumpre seu papel de

observador e de humorista, ao satirizar a atitude do ditador e, de forma indireta, sua

ambição de conquistar aquela região.

Como tantos outros intelectuais e analistas do período, Alceu previu que o

intrincado jogo diplomático que era travado na Europa iria desembocar em um novo

conflito armado. Já no início do ano de 1939, ano de eclosão da guerra, é publicada uma

charge em O Dia na qual Chico Fumaça visualiza a “mudança de tempo”:

Fonte: ELOY. O Dia. 11 fev. 1939.

34 Mais sobre a campanha alemã na África, ver MITCHAM, Samuel. Rommel´s Desert War: The life and death of the África Korps. New York: Book Sales, 1987.

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54

Abaixo do título, “Vem Tempestade”, pode-se observar a previsão de Chichorro: “A

situação política européia parece cada vez mais complicada, prevendo-se novas

surprezas”. A imagem mostra Chico Fumaça preocupado, junto de seu cachorro Totó,

contemplando a paisagem que denuncia a formação do temporal. Na fala de Fumaça35,

podemos constatar a utilização da analogia do guarda-chuva, já comentada no capítulo

anterior. Aqui, porém, o personagem pensa em ele próprio pedir o utensílio para o

primeiro-ministro inglês, visto que ele não mais precisará dele em breve.

Esta seria uma das primeiras situações em que Fumaça se depara com a realidade da

guerra. A partir de então, entre seus interlocutores, surgem as figuras de Adolf Hitler,

Benito Mussolini e Joseph Stalin. Desta forma, o personagem de Chichorro passa a fazer

parte do cotidiano destes líderes e, assim, a transmitir para o leitor de maneira mais

próxima suas observações e as opiniões de seu criador.

No mesmo ano de 1939, a complicada questão das reivindicações da região de

Danzig pelos alemães é tema de várias charges de Eloy.

Fonte: ELOY. O Dia. 20 mai. 1939.

35 A tempestade está se armando... Vou ver si o sr. Chamberlain me empresta o guarda-chuva.

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55

Fonte: ELOY. O Dia. 26 mai. 1939.

As duas charges por nós escolhidas para ilustrar este momento trazem interessantes

posicionamentos do autor e de seu personagem. Na primeira, datada de 20 de maio de 1939,

Chico Fumaça observa, incógnito, Hitler com uma indumentária que lhe caracteriza como

um verdadeiro chef de cusine, preparando uma mistura, que já está “fervendo”, e que leva o

nome de Dantzig. Acima do desenho, podemos ler a esperança de que os jornais

divulgavam de que a questão se resolvesse ainda naquele mês. Diante desta afirmação, o

artista reconhece as vitórias do Führer no campo diplomático nas questões da

Tchecoslováquia e da Áustria e prevê uma futura vitória do líder alemão neste novo intento,

quando Fumaça reconhece que “o homem, pelo que se vê, tem jeito para preparar as

comidas”.

Menos de uma semana depois, Chichorro satiriza as pretensões de Hitler de

dominação. Ao contrário da anterior, na qual Hitler é representado como um cozinheiro

experiente, esboçando, talvez, alguma admiração pela forma com que conduzia as

negociações diplomáticas, desta feita um diálogo travado entre o líder alemão e Fumaça

acusa uma teimosia infantil em suas pretensões. No diálogo, podemos ler: “ – Quero

porque quero, Fumaça! E hei de conseguir tudo para fazer da Alemanha o maior país do

Page 60: GUERRA E HUMOR

56

mundo”. Fumaça replica então com um antigo dito popular: “ – Bobagem seu Hitler. .. do

mundo nada se leva!...”.

Esta interessante aparente dicotomia apresentada em um curto espaço de tempo

aponta para a característica marcante de Alceu de produzir charges referentes aos mais

diversos assuntos, sempre com um humor ponderado e não ofensivo aos retratados. Na

primeira charge, um elogio ao Hitler diplomata, intrínseco ao desenho, revela uma

admiração velada. A segunda representação, produzida diante das primeiras tentativas de

acordo fracassadas, já prevê uma possível guerra no horizonte. Perante o contexto, Fumaça,

em diálogo com o Führer, tenta persuadí-lo a desistir desta reivindicação. Portanto, a

charge, além de uma crítica ao posicionamento alemão, seja talvez principalmente um

pedido pela manutenção da paz.

Com o decorrer do tempo e o fracasso das negociações, o exército alemão invade a

Polônia e dá início à Segunda Guerra Mundial. As charges de Chichorro acompanham o

processo, dando especial atenção às ações alemãs no continente europeu. Em 1940, um fato

que passaria desapercebido pela História é retratado pelo desenho de Eloy:

Fonte: ELOY. O Dia. 31 mai. 1940.

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57

Trata-se da rendição do rei da Bélgica, Leopoldo III, às tropas nazistas. Segundo os

jornais, como podemos ler na parte superior do desenho, o rei “que se entregou às forças

alemãs encontra-se numa cadeia por ele próprio escolhida”. A alegoria escolhida para

retratar a situação é um informal jogo de pôquer entre Hitler e Chico Fumaça. Nele, o

personagem de Eloy reclama: “Mas “Fuehrer”, eu ganhei a partida. Tenho três “reis”!”.

O líder alemão, entretanto, responde: “Impossível, HERR Fumaça... Onde foi você arranjar

tantos reis sem eu saber?...”. Observam a cena, além do cão Totó, Stálin, escondido atrás

da cortina à esquerda, e Mussolini, da mesma forma escondido à direita.

Detalhe interessante é a feição sarcástica de Hitler ao falar com Fumaça, a qual

delata uma sensação de superioridade para com o personagem. A ambigüidade marca

também este desenho, pois não há uma crítica ao líder nazista (nem a seus “comparsas”, no

fundo do ambiente). Em contra-partida, também não há elogios velados, donde podemos

concluir que as charges, mesmo em momentos conturbados, também podem ter como

propósito único a diversão do leitor.

Entretanto, como já pudemos colocar, 1942 é o ano do fim da neutralidade (ou da

dubiedade) não só na política externa brasileira, mas também no desenho de Chichorro. A

mudança pode ser constatada já na charge de final de ano, como observamos abaixo:

Fonte: ELOY. O Dia. 31 dez. 1942.

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No desenho, notamos um senhor que ostenta o número 1942 presenteando um

garoto que, da mesma forma, tem o número 1943 escrito no chapéu. Trata-se, está claro, de

alegorias para o ano que estava acabado e para o que se iniciava, respectivamente. O

presente do “Ano Velho” para o “Ano Novo” é um abacaxi, também alegoria referente à

conjuntura de guerra na Europa. Ao fundo, Chico Fumaça ri da situação e da frase do

garoto para o idoso: “Para que isto, meu Velho?”. Também ao fundo, encontram-se

abraçados Hitler e Mussolini, com especial referência ao primeiro, que tem uma expressão

desolada frente à cena.

Fica evidente a intenção do autor de anunciar antecipadamente a derrota das Forças

do Eixo, bem como denunciar a apatia que se instaurava nos exércitos inimigos. O

derrotismo do líder alemão é transpassado, ao contemplar a passagem de ano, no desenho

de Chichorro. Ao abraçar Mussolini, leva consigo seus aliados para a derrota certa e

incontestável. É no detalhe dos líderes europeus que reside o agente inconsciente de

formação de opinião. Ao defrontar-se com a feição derrotista de Hitler no desenho

humorístico, o leitor tende a ver o líder alemão como “carta fora do baralho” e, assim,

recobra os ânimos para organizar e promover a vitória dos exércitos aliados, bem como o

patriotismo, pois o Brasil seria um dos agentes que levariam Hitler a tal situação.

Assim, observamos a utilização de um humor que beira à inocência, colocado na

charge a partir do gesto do “Ano Velho” em presentear seu sucessor com um abacaxi e da

frase proferida pelo “Ano Novo”, sendo utilizado para causar o prazer do riso e,

conseqüentemente, uma certa simpatia do leitor para com o desenho. Ao mesmo tempo, a

feição do líder alemão finaliza a intenção do desenho de Chichorro, conforme discutimos

no parágrafo anterior.

Na esteira deste desenho, outros vieram com o mesmo intuito e, como não poderia

deixar de ser, as marchinhas de carnaval também estiveram presentes nesta fase dos

desenhos de Eloy. Nesta modalidade das charges do autor paranaense as críticas eram

muito mais nítidas, principalmente quando expostas nas quadras compostas pelo chargista

paranaense para acompanhar o desenho. Selecionamos, para ilustrar esta faceta do desenho

humorístico de Chichorro, duas charges, as quais analisaremos a seguir:

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59

Fonte: ELOY. O Dia. Sem data. In Alceu Chichorro.

Como podemos observar, a fila é conduzida por uma besta representando Marte,

deus romano da guerra, que segura um bastão e tem na cintura um facão, evidenciando seu

caráter belicista. Na quadra dedicada ao líder do cordão, Chichorro coloca a condição de

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60

feroz, sedento de sangue que caracteriza a guerra. As demais quadras36 são dedicadas a

ridicularizar os líderes do Eixo, o que pode ser constatado pelas denominações que dá a

Hitler (Adolfito) e a Hiroyto (Pirolito e Papa Arroz). Com essa estratégia, o autor não

aproxima o leitor ou mesmo sua visão dos atores do cenário mundial, ao contrário, relega-

os a um plano inferior e causa o escárnio pela utilização de codinomes.

Com o passo da ridicularização do inimigo efetuado, segue o da previsão do

resultado do conflito. Para assim proceder, Chichorro se utiliza da alegoria da Paz, que

observa, consternada, os três líderes do Eixo serem levados pelo seu antagonista, Marte. A

jovem Paz é caracterizada pela roupa branca e por segurar uma pomba da mesma cor, seus

símbolos máximos. Sua fala profética, direcionada ao imperador japonês, “Na roda em que

o Eixo te pôs você perde até os pauzinhos”, vislumbra a derrota total de Alemanha, Itália e

Japão.

O terceiro elemento da charge é a explicitação da opinião do autor, transposta,

obviamente, para as figuras de seus principais personagens, Chico Fumaça e Dona

Marcolina. O primeiro, retomando o ditado popular, profere: “Quem ri por derradeiro é o

que ri sempre melhor”. Desta forma, faz alusão tanto a sua posição no “cordão de samba”

quanto ao histórico do conflito mundial, que teve início com seguidas vitórias nazistas e

terminava com uma estrondosa vitória aliada. Assim, o riso inicial dos nazistas dava lugar

ao riso vitorioso dos Aliados. Já sua tia, Dona Marcolina, é muito mais incisiva e explícita

na sua opinião. Na abertura de sua quadra, de imediato, sua posição quanto aos três líderes

representados é colocada: “Marcolina, que é da farra, torce contra esse complot.”.

Também ela, como a Paz, prevê para o trio “que o seu fim já começou”.

A constituição desta charge se mostra bastante profícua ao ser examinada, pois

pudemos perceber que, constituída de três “módulos”, o desenho carrega em si algumas das

principais características que fazem do desenho humorístico um instrumento poderoso na

36 Seus comparsas – o Adolfito, o veloz campeão (no peito?) e o imperador Pirolito vão dançando já

sem jeito... A valsa virou samba, com o barulho do batuque. E agora é na corda bamba... Papagaio! Muque é

muque. A Paz olha o Papa Arroz e diz, visando os vizinhos, - Na roda que o Eixo te pôs você perde até os

“pauzinhos”... Marcolina, que é da farra, torce contra este complot. Essa turma vai à garra, que o seu fim já

começou. O Fumaça, furzarqueiro, que é, do amor, um chefe mor, diz – Quem ri por derradeiro, é o que ri

sempre melhor...

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constituição da opinião pública, a saber, a ridicularização do inimigo, a previsão vitoriosa e

a expressão da idéia do autor ou do veículo de comunicação a respeito do assunto.

Fonte: ELOY. O Dia. Sem data. In Alceu Chichorro.

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A charge acima, também produzida já no final do conflito, tem como principais

agentes os líderes do Eixo e os personagens de Chichorro. Da mesma forma que a anterior,

mais que o desenho humorístico, as quadras37 “cantadas” pelos caricaturados conduzem a

intencionalidade do quadro.

Podemos observar no desenho acima que Hitler, dançando, comanda a fila do

“Rancho das Caveiras”. Na quadra, ele próprio admite a queda do Reich, a retirada das

tropas (hoje avanço em blitz para as trazeiras (sic.)) e a carnificina a que a Alemanha foi

levada ao dizer que sua dança vitoriosa “virou Rancho das Caveiras”. Segue o Führer o

ministro da propaganda nazista, Goebbels, que, também contaminado pela derrocada alemã,

reflete sobre sua queda como orador e propagandista, constatando que já não tem mais

sobre o que discursar, pois a glória já está distante.

O terceiro da fila é o comandante-em-chefe da Luftwaffe, Hermann Göering, que é

fortemente ridicularizado pelo desenhista ao trazer uma falsa esperança de vitória, baseado

em uma nova arma secreta que seria sua barriga proeminente (uma bomba de cerveja). Isso,

aliado à expressão patética e de desconsolo no semblante do aviador, denunciam o caráter

derrotista da situação alemã no desenho de Chichorro. O último alemão da lista é Heinrich

Himmler, comandante das SS, vestido no uniforme negro que caracteriza o destacamento

por ele liderado. Em sua quadra, denuncia-se uma nova condição que o líder alemão já

visualiza para o futuro: a de prisioneiro das Forças Armadas Soviéticas, condição esta tão

certa ele já treina a “continência que fará para o José (Joseph Stalin)”.

Segue os alemães o imperador Hiroito, caracterizado pelas vestimentas japonesas e

pelo codinome satírico Pirolito. Em seus versos, o líder japonês afirma que cometeu um

grande erro ao seguir os alemães, e que, pelo desenrolar dos acontecimentos, ele deverá ser

37 HITLER: Senhores – eu hoje avanço em “blitz” para as trazeiras. O Rancho “Passo de Ganso”,

virou – “Rancho das Caveiras”. GOEBELS: Já tenho medo da “glória” e o que digo não percebo. O meu farol, de oratória, tornou-se

vela de sebo... GOERING: Calma. Resta inda a esperança numa arma que nos proteja. É esta aqui – a minha pansa,

que é uma bomba... de cerveja. HIMLER: Com remorso da violência peço “louça” ao russo e até trêno já na continencia que farei

para o “José”... PIROLITO: Errei o pulo esta vez, Creio que irei a Pekin ser “comida de chinês”, com dois pausinhos

assim... FUMAÇA: O fascismo deu barréla! Deixa pessoal que eu violine agora – uma tarantéla no papo do

Mussolini. MARCOLINA: Aguenta negrada frouxa, pinga fogo no batuque. Ta chegando a hora roxa...

Papagaio... muque é muque!

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preso pelos chineses, servindo de comida para eles. Todos os cinco líderes são

representados em posições satíricas ou que denunciem sua derrota, como é o caso de

Himmler, que apesar de ter uma espada desembainhada em uma mão, na outra segura uma

caveira.

O sexto da fila, entretanto, é desenhado em uma posição, além de satírica,

desconfortável. Mussolini é “montado” por Chico Fumaça, que tem um arco de violino nas

mãos e busca manobrá-lo no queixo do líder italiano e tocar uma Tarantela, música típica

italiana. Ao fazê-lo, Fumaça anuncia a queda do Fascismo nos principais países em que o

sistema vingou e, talvez assim, anunciasse também a queda do regime autoritário de

Getulio Vargas. Finaliza o cordão a tia de Fumaça, Dona Marcolina, que por sua vez

anuncia a chegada do momento final da guerra.

O exemplo acima demonstra a trajetória que a visão dos estrangeiros a respeito de

Hitler, de seus seguidores e do Nazismo seguiu no decorrer do conflito. Da visão de um

líder que irradia autoridade, como demonstra a figura da página 54, ou ainda confiante,

caso da imagem localizada na página 56, para figuras patéticas que demonstram extrema

insegurança e auto-piedade já no fim da guerra. A opinião, no caso, como já havíamos

anteriormente colocado, é do autor da charge e/ou do veículo noticioso que expõe o

desenho. A intenção desta exposição e a eficácia dela é que são alvos deste estudo, diante

do que podemos constatar que a própria intenção sofreu modificações no período ou, no

mínimo, intensificou-se.

Os exemplos deste segundo momento da obra de Chichorro no decorrer do conflito

mundial de 1939 são vários e diferenciados. Praticamente todos eles apontam para uma

proclamação antecipada da derrota alemã, o diferencial destes desenhos está no grau de

satirização ou de ridicularização de que se utilizam, bem como nos assuntos por eles

abordados.

Um exemplo interessante, no qual a ridicularização dos líderes fascistas chega ao

ápice nas charges de Eloy é o desenho seguinte, publicado em setembro de 1943. Trata-se

de uma sátira à operação nazista de resgate do líder italiano Benito Mussolini, que era

mantido preso pelas forças italianas desde 24 de julho de 1943, quando o Conselho Italiano

decidiu depor Mussolini. Diante da situação, os lideres nazistas organizaram um resgate,

visando à utilização do líder fascista no comando da região norte da Itália, área ainda

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comandada pelas forças do Eixo. Assim, no dia 12 de setembro daquele ano, os alemães

enviaram uma força especial para resgatar o líder italiano na região montanhosa de Gran

Sasso d´Italia. Combinando o trabalho dos pára-quedistas e da SS, os alemães conseguiram

promover a missão e restabelecer então Mussolini no comando da Itália do norte.

Aproveitando o inusitado fato, Chichorro produz a seguinte charge, uma semana

depois do ocorrido:

Fonte: ELOY. O Dia. 19 set. 1943.

A alegoria utilizada é de um casamento entre Hitler e o líder fascista italiano. O

primeiro, caracterizado como o noivo, porém, em uniforme militar, é representado

sorridente e parecendo apaixonado por Mussolini. Este, por sua vez, adquire o papel da

noiva, estando devidamente trajado e de braços dados com o líder alemão. Fumaça, que

sorrindo assiste a cena, ouve o diálogo38 travado pelos noivos. Nas falas podemos observar

uma sátira em relação aos motivos que levaram os nazistas a providenciar a fuga do ditador

38 - E se me raptarem outra vez, querido? - Não te preocupes, meu amor! Farei outra guerra-relâmpago para te proteger!...

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italiano. Quando Mussolini aventa para a possibilidade de um novo rapto ocorrer, Hitler

promete “outra guerra-relâmpago” para salvá-lo.

Outro exemplo de charge do ano de 1943 se mostra ainda mais imperativo na crítica

contra Hitler e o Terceiro Reich. Nela, Chichorro antevê o trágico futuro que aguardava o

ditador alemão:

Fonte: ELOY. O Dia. 19 fev. 1943.

Na imagem, observamos Hitler, em posição que remete a um estado de luto ou de

lamento, mirando uma sepultura e, na cruz que está posicionada sobre este túmulo, aparece

inscrita uma suástica, símbolo máximo do Nazismo. A notícia39 que inspira a charge trata

da possibilidade de um acordo de paz em separado entre Itália e Inglaterra, que obrigaria os

39 Zurich: “Uma irradiação informa o artigo de Virgínia Gaidas, aventando a idéia de uma paz em

separado entre a Itália e a Inglaterra; causou impressão na Alemanha.”

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alemães a lutarem sozinhos. Diante dessa possibilidade, Hitler já prevê que a única

possibilidade de paz que encontrará é a “paz eterna”, como podemos constatar na frase40 a

ele atribuída no desenho.

O principal detalhe do desenho, entretanto, é a presença de Chico Fumaça ao fundo

da cena. Ali, na feição do personagem, é anunciada a conotação que a charge toma. Sua

face demonstra raiva para com o Führer, principalmente se atentarmos para a posição da

sobrancelha direita do calunga. Já pelo conjunto geral do rosto de Fumaça, constatamos que

a mensagem transmitida no desenho é séria, ou seja, esta charge não é uma piada ou um

chiste. O futuro apregoado a Hitler nesta ilustração é, na verdade, o desejo, a visão ou

mesmo a opinião que o autor tem sobre o desencadear do processo beligerante na Europa.

Com os exemplos acima, podemos observar de que forma Chichorro expõe suas

opiniões acerca do conflito mundial e do Nacional-socialismo. Algumas características de

seus desenhos, como a inconstância da feição dos caricaturados, bem como o humor

simples e, como já definimos anteriormente, quase infantil empregado nas charges, fazem

de seus traços humorísticos uma forma eficiente de comunicação de idéias e de opiniões. A

simpatia que o personagem Fumaça emanava nas tiras aumentava ainda mais a eficácia do

empreendimento de formação da opinião pública curitibana naquele período, em que pese,

obviamente, o público receptor deste trabalho, formado em grande parte por teuto-

brasileiros e por simpatizantes do regime organizado por Hitler, fator este que será ainda

colocado em destaque na conclusão deste trabalho.

40 Será o Sacy Pererê? Terei que submeter-me a uma paz eterna?

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5) O DER STÜRMER E A PREPARAÇÃO PARA O HOLOCAUSTO:

Muito já se havia falado na Alemanha sobre Hitler e seu Partido Nacional-Socialista

dos Trabalhadores Alemães quando ele assumiu a chancelaria, nomeado pelo presidente

Hindenburg, em 30 de janeiro de 1933. Durante o período que se chamou de República de

Weimar, as lutas político-partidárias eram parte integrante da vida cotidiana dos cidadãos

alemães, prova disso são os inúmeros confrontos ocorridos entre os camisas-pardas nazistas

e os comunistas. Na descrição de Eve Rosenhaft:

Com a crise econômica, os bairros operários de Berlim, dominados pela miséria,

ficam à mercê dos militantes nazistas e de suas seções de assalto, que tentam

roubar a supremacia aos comunistas. Daí resultam os atentados incessantes e os

combates de rua – não sem sucesso para os nazistas. (...) Ao longo da história da

República de Weimar, a política foi sempre mais do que uma simples questão de

voto; envolvia slogans, passeatas, desfiles com uniforme das seções paramilita-res.

Mas nos anos de crise, entre 1929 e 1933, a vida cotidiana foi submetida a uma

politização geral e uma das conseqüências foi o aumento inquietante da violência

política.41

Neste contexto, a ascensão de Hitler e de seu partido era combatida por vários

seguimentos políticos, bem como por vários meios de comunicação. A luta partidária, como

era de se prever, passaria do campo das idéias para as folhas de jornal, para as transmissões

radiofônicas e para as ruas. Assim, era natural também que se estendesse para as charges,

um campo onde não só comunistas, mas também social-democratas e liberais,

comprometeram-se em promover uma campanha contra o NSDAP e seus líderes. A

ridicularização e o humor mordaz eram então constantemente empregados na campanha

contra o crescimento do poder dos nazistas, como podemos observar no exemplo abaixo:

41 ROSENHAFT, Eve. Guerra nas Ruas. In RICHARD, Lionel (org). Berlim 1919-1933 – a

encarnação extrema da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 149.

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68

Fonte: “Vlk”, 21mar 1932. Berlim. In German Propaganda Archive

O desenho, sob o título Hitlers Traum42, ridiculariza as pretensões de Hitler de

assumir o governo alemão. Nele, o futuro Führer desfila triunfante em Berlim, com pompas

de chefe de Estado, seguido por nazistas ilustres, como o general Ludendorff. A

ridicularização do líder do NSDAP é feita no próprio título, que julga toda a situação

impossível, não sendo mais que um sonho de Hitler. Como sabemos, a situação não era tão

absurda como fora mostrada na ilustração e, em menos de um ano, a cena se repetiria, desta

feita, a ascensão ocorria realmente.

Fator importante na guerra entre os partidos alemães era a comunicação e a

divulgação de suas idéias para os cidadãos. O arsenal propagandístico era composto por

panfletos, comícios, cartazes e jornais entre outros elementos de comunicação. Aos nazistas

também se fazia necessária a produção de meios eficientes de propaganda. Assim, após a

adesão de Julius Streicher ao NSDAP e a articulação de um forte comitê nazista em

Nuremberg, cidade de atuação política do recém convertido Streicher, no ano de 1923, o

principal jornal nazista, o Der Stürmer, iniciava suas atividades.

42 Trad. “O Sonho de Hitler”.

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69

O semanário, criado em maio de 1923, tinha como função exaltar as ações e a

ideologia nacional-socialista, porém, seu foco principal recaiu sobre o anti-semitismo. No

mesmo ano, entretanto, ocorre o Putsch que levou os principais líderes do partido, entre

eles Streicher, à prisão. Após a soltura de seu editor, o jornal volta a ser produzido em

1925. Seu público-alvo era os adolescentes de Nuremberg43, a quem buscava “educar” com

suas posições racistas e matérias extremistas.

Um dos elementos mais nocivos das páginas da publicação, no entanto, eram as

charges. Pelo fato da assimilação do leitor, diante das imagens publicadas na primeira

página do jornal, ser praticamente imediata, as opiniões nazistas acerca de determinados

fatos ou mesmo a ideologia nacional socialista era passada facilmente nos desenhos,

revelando-se assim um importante elemento propagandístico em favor do anti-semitismo de

Hitler. A responsabilidade de produzí-las fora delegada a Philippe Rupprecht, cujos

cartoons eram assinados com o pseudônimo Fips.

Seguindo a metodologia empregada neste trabalho nos capítulos anteriores,

verificaremos as características mais marcantes nos desenhos de Fips a seguir:

5.1) Características do Traço de Fips:

O desenhista oficial do Der Stürmer, Philippe Rupprecht, refugiou-se na Argentina

após o término da Primeira Guerra Mundial. Trabalhando nos ranchos argentinos,

conseguiu seu sustento até seu retorno à Alemanha no ano de 1924. Sua carreira de

chargista teve início no Fränkische Tagespost, jornal ligado ao Partido Social Democrata

Alemão. Já no ano seguinte, foi contratado pelo semanário de Streicher, onde seguiria

profícua carreira, finalizada em 1945 com o fechamento do impresso.

As charges de Rupprecht se caracterizam, ao contrário dos traços de Chichorro e de

Belmonte anteriormente analisados, por uma busca pelo realismo nas representações de

pessoas e de ambientes. Ao dar esta entonação aos seus desenhos, Fips busca a analogia

com a realidade, ou seja, ao desenhar um judeu, um bolchevique ou um padre, procura que

seu desenho seja assimilado como uma situação real, garantindo assim a impressão de

43 Mais tarde o jornal atingiria toda a Alemanha e boa parte da colônia teuta em territórios

estrangeiros, visto que o jornal chegou a ser enviado aos quatro cantos do globo, inclusive para o Brasil. Esta situação, obviamente, manifestou-se na tiragem do semanário, que denunciava 14.000 exemplares produzidos em 1927 e aproximou-se dos 500.000 em 1935. (Fonte: BYTWERK, Randall. Julius Streicher – Nazi Editor of the notorious anti-semitic newspaper Der Stürmer. New York, Cooper, 2001. p. 57).

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70

veracidade das críticas e insultos que estão implicitamente – e por vezes explicitamente –

colocadas em suas charges. Assim, os desenhos publicados no Der Stürmer não possuem

semelhanças com cartoons ou histórias em quadrinhos; são charges que se utilizam de

traços firmes e consistentes, que transparecem a intenção do autor em retratar rostos,

objetos e ambientes da maneira mais fiel possível.

Fonte: FIPS. Der Stürmer, fev 1932. Nuremberg. In German Propaganda Archive

O exemplo acima demonstra esta característica do traço de Fips. O chargista tenta, a

todo custo, retratar os personagens tal como seriam na realidade, buscando impor uma

similitude ao desenho com uma fotografia. As feições dos personagens são construídas a

partir da utilização de técnicas de retrato, seguindo uma proporcionalidade que lhes dá

aparência real, conforme havíamos descrito anteriormente. Da mesma forma, o ambiente e

os objetos inseridos na charge acusam a técnica usada, na qual o abuso dos detalhes se faz

presente.

Outra característica dos desenhos de Rupprecht é o papel importante do elemento

textual, ou seja, do título e da legenda da charge. Normalmente estes elementos

proporcionam ao leitor o entendimento da intenção da ilustração, que por vezes não pode

Page 75: GUERRA E HUMOR

71

ser tido somente com o gráfico. No exemplo acima, temos o título Die Impfung44 e a

legenda Es ist mir sonderbar zu Mut, denn Gift und Jud tut selten gut.45 Analisando a

gravura, podemos constatar que a frase teria sido proferida pela mãe da criança que está

sendo vacinada. O fato da vacina ser produzida através de pequena quantidade de veneno

causa estranheza à senhora, que também vê com estranheza e receio o fato do médico que

lhe atende ser judeu.

A identificação da etnia do médico pode ser feita através do conhecimento de outro

elemento presente nos desenhos de Fips, qual seja, a grotesca representação caricatural do

povo judeu. O desenho abaixo nos dá uma idéia melhor do que acabamos de colocar:

Fonte: FIPS. Der Stürmer, fev 1934. Nuremberg. In BYTWERK, Randall. Op. cit. p. 86.

A ilustração, que tem como título “Quatro faces judias”, tem como intenção

justamente caracterizar, para os leitores do jornal, as feições do povo judeu. O exagero na

composição das orelhas e principalmente dos narizes acabaram por produzir um estereotipo

do povo israelita. Aliado a esta caracterização física, também era corrente nos desenhos

humorísticos a comparação dos judeus com vermes e insetos ou ainda com sanguessugas e

morcegos. Estas alegorias tinham como claro intuito moldar a imagem popular do povo

44 Trad. “A Vacinação”. 45 Trad. “ Parece estranho para mim, veneno e judeu raramente soam bem”.

Page 76: GUERRA E HUMOR

72

israelita, acusando-os de usurpadores, traiçoeiros ou aproveitadores, utilizando-se para

tanto das alegorias que tais animais representam.

Da mesma forma que o anti-semitismo era passado abertamente nas páginas do Der

Stürmer, outras características do discurso nazista podem ser observadas nos desenhos,

como o nacionalismo exacerbado ou ainda o anti-comunismo. Nada disso, porém, pode ser

comparado ao grau de virulência que era empregado no discurso anti-semita do semanário.

Neste quesito, tanto as matérias escritas como as charges atingem seu grau máximo,

delimitando assim a linha editorial do jornal.

5.2) O Desenho de Rupprecht e o Nazismo:

Tendo como foco principal a defesa das idéias nazistas e servindo de aparato na

máquina de propaganda nacional-socialista, é de se esperar que o Der Stürmer tenha ganho

um caráter quase oficial a partir de 1933. De fato, porém, o prestigio do jornal junto ao

Führer atingia níveis estratosféricos, tendo o próprio Hitler anunciado certa vez que o

semanário de Streicher era o único que lia por inteiro, independente dos afazeres que

tomavam seu tempo. Até mesmo Streicher caiu nas graças do Führer, o que causou ciúmes

na alta cúpula nazista, como descreve Ron Rosenbaum ao se referir a um interrogatório

efetuado pela OSS à princesa Hohenlohe, oriunda de uma casa real austríaca e que teria

estreito relacionamento com Hitler:

Apesar de tudo – diz ela, querendo se referir tímida adoração mútua entre heróis de Goering e Hitler, eles nunca chegaram ao estágio da brüderschaft, a camaradagem em que se dirigem um ao outro com o familiar du. (...) Existe apenas um nazista, além de Hess, a quem foi concedido este privilégio, e esse era, quem diria, Julius Streicher, o editor do Der Stürmer.46

Outra referência ao relacionamento entre Hitler e Streicher é feita por Rosenbaum

ao citar como fonte a memória escrita por Frederick Oechsner, um jornalista

correspondente na Alemanha no período comandado pelos nazistas. A citação demonstra

não apenas o grau de intimidade da relação de Streicher e Hitler, mas também a influência

que o primeiro exercia sobre o Führer:

46 ROSENBAUM, Ron. Para entender Hitler – a busca das origens do mal. Rio de Janeiro: Record,

2002. p. 312.

Page 77: GUERRA E HUMOR

73

“Der Führer é sempre influenciado em seus sentimentos anti-judaicos por seu contato com o notório Julius Streicher. É possível perceber que, após ter passado algum tempo com o Dr. Streicher, ele começa a sair com alguma nova medida ou novo discurso contra os judeus.” O que temos aqui é uma reversão do famoso efeito FührerKontakt – a inúmeras vezes narrada experiência de que o contato pessoal com a presença carismática de Hitler causava um profundo efeito transformador naqueles que a ela se expunham. Aqui, o próprio Führer é descrito como vulnerável ao que poderia ser chamado de Streicherkontakt.47

Boa parte desta influência que o Der Stürmer ganhou na Alemanha, atingindo até

mesmo o próprio Führer, era devida aos cartoons de Fips publicados no semanário. Assim

sedo, dentre todos os jornais que serviram de base para a consolidação das idéias nacional-

socialistas, dentre todos as formas de propaganda que os nazistas utilizavam, o Der Stürmer

acabava tendo destaque especial e, conseqüentemente, as charges nele veiculadas.

Grande parte da juventude alemã daquele período teve no semanário de Streicher

um condutor para a formação de princípios morais e comportamentais, bem como um guia

para a absorção da ideologia nazista e do anti-semitismo nela intrínseca. Também nesse

sentido, as charges eram parte essencial na dinâmica propagandista do nazismo, visto que

tais desenhos e gravuras contêm um forte apelo para os jovens e as crianças do Reich.

Dessa forma, através de desenhos atrativos para a juventude e das organizações para-

militares denominadas Juventude Hitlerista, estava completa a aparelhagem estatal

necessária para moldar as mentes futuras.

Da mesma forma, do outro lado da guerra, as crianças e os jovens dos países

Aliados eram moldados e em suas mentes eram incutidos os valores anti-nazistas. O

material utilizado por Inglaterra e Estados Unidos, entretanto, era mais elaborado e em

vários aspectos mais eficiente. Tratava-se dos desenhos animados produzidos por grandes

empresas como os Estúdios Disney e Warner Brothers, que aproveitavam-se do carisma de

seus personagens (Pato Donald, Patolino, Pernalonga etc.) para manter um diálogo mais

próximo às crianças. Às crianças alemãs, que não contavam com a magia produzida pelas

indústrias cinematográficas infantis, restavam os desenhos caricatos dos jornais.

As charges publicadas no Der Stürmer muitas vezes se utilizavam do humor fácil e

quase infantil para aproximar-se dos jovens alemães, como o exemplo abaixo demonstra:

47 Ibid. p. 314.

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Fonte: FIPS. Der Stürmer, jul. 1936. Nuremberg. In German Propaganda Archive

Na charge acima, lemos a legenda Sie gestatten gutigst ... daß ich Blau nehme

48.

Abaixo, encontramos uma pequena nota que diz que os judeus, como o exemplo acima, se

aproveitam dos arianos de bem em todas as ocasiões na vida. Na representação pictórica,

visualizamos, no primeiro quadro, um judeu característico (atentemos para o detalhe do

nariz) pedindo cortesmente um lugar no banco público para um senhor ariano. Após a

concessão do alemão, o judeu se apropria da maior parte do banco, deixando o senhor que

já estava ali sentado anteriormente extremamente desconfortável.

As feições de ambos denunciam a intenção do autor ao produzir o desenho. No

primeiro quadro o alemão, sério, assiste o judeu, de olhos fechados (sinal de falsidade) e

polidamente, pedir licença para sentar-se no banco. Já no segundo, a expressão do ariano é

de espanto e desconforto, enquanto a do judeu é de descaso com a situação que ele próprio

promoveu. Algumas características creditadas aos personagens estereotipados são correntes

tanto nas matérias do Der Stürmer quanto nos discursos e panfletos nazistas, tal como as do

judeu falso e egoísta e do ariano bondoso e sério.

48 Trad. O senhor permite bondosamente ... então eu me aproveito.

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Fonte: FIPS. Der Stürmer, ago 1934. Nuremberg. In BYTWERK, Randall. Op. cit. p. 84.

No exemplo acima visualizamos a técnica da associação sendo utilizada na

difamação do povo judeu. Aqui, um morcego que carrega a estrela de Davi no peito e que

tem as feições características do indivíduo judeu representado nas charges de Fips, surge

nos céus espalhando terror e morte no seu caminho. O título, Der Vampyr49, já demonstra a

conotação que a charge pretende imprimir: a do judeu sugador e aproveitador. A legenda

ratifica esta idéia ao dizer Vom Teufel in die Welt gesegt er stets die Völker quält und

hekt50

. Em linhas gerais, o significado da frase evoca a qualificação dos judeus como povo

do inferno, cuja principal ação no mundo abençoado, o mundo germanizado, é a de

atormentar e sugar os cidadãos arianos.

49 Trad. O Vampiro. 50 Trad. Do demônio no mundo abençoado ele sempre agita e atormenta o povo.

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Fonte: FIPS. Der Stürmer, jul 1934. Nuremberg. In BYTWERK, Randall. Op. cit. p. 97.

Da mesma forma, o desenho acima se utiliza de alegorias que evocam animais

peçonhentos para caracterizar o povo israelita e sua condição de traiçoeiros e venenosos.

Aqui, uma jovem ariana parece seduzida pela aranha que, da mesma forma que o morcego

da ilustração anterior, tem a face caracterizada pelo semblante judeu – além do rosto, a

estrela de Davi confirma esta intenção. O título, Der Spinne51, faz menção à alegoria

utilizada, bem como a legenda, que traz os seguintes versos: Manch Opfer blieb im Netze

hangen/ Von Schmeicheltönen eingefangen/ Zerreikt das Netz der Heuchelei/ Ihr macht die

deutsche Jugend frei52

.

Como podemos observar a partir dos exemplos acima, a difamação do povo judeu

passa pela utilização de alegorias, dentre as quais a alusão a animais nocivos é a mais

direta. Desta forma, a idéia do perigo judeu está posta com força, pois o cuidado que os

leitores têm com os animais peçonhentos seria o mesmo que deveriam ter com os israelitas

(e com sua lábia, como observamos na legenda do desenho anterior).

51 Trad. A Aranha. 52 Trad. Muitas vítimas caíram presas/ na teia da bajulação/ Rasgues a teia da hipocrisia/ e fazes livre

a juventude alemã.

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77

Outra forma encontrada pelo semanário e por Rupprecht de denegrir ainda mais a

imagem dos judeus era mostrar o judeu como um ser degenerado e decadente, propenso à

promiscuidade e pouco afeito à cultura, como observamos na ilustração a seguir:

Fonte: FIPS. Der Stürmer, jul 1934. Nuremberg. In BYTWERK, Randall. Op. cit. p. 98.

Aqui, outras faces do povo judeu seriam mostradas pelo chargista. Sobre a inscrição

Fort mit der Kultur! Her mit der Hure Unnatur!53, podemos visualizar uma meretriz de

traços físicos judeus sendo carregada por dois indivíduos, um negro e o outro também

judeu. A intenção é denunciar a suposta perversão natural destes povos – aqui incluídos

também os bolcheviques, representados pela estrela na lapela do judeu – desqiualificandoos

moralmente perante o leitor.

Outro detalhe importante são as imagens que servem de pano de fundo para a cena.

Nelas observamos ícones importantes da arquitetura alemã, à direita, e uma figura

representativa da cultura à esquerda, fazendo menção de que está partindo diante da

situação. Aqui, a mensagem passada é de que, enquanto tais elementos perdurarem no

53 Trad. Fora com a cultura! Viva a meretriz afetada!

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78

ambiente cotidiano alemão, tanto a cultura quanto a moral e os bons-costumes estarão

ameaçados.

Fonte: FIPS. Der Stürmer, jul. 1936. Nuremberg. In German Propaganda Archive

Já no exemplo acima, podemos observar que não só os judeus eram perseguidos nas

páginas do Der Stürmer. Nesta ilustração, que traz o título Unfruchtbar54, vemos duas

situações representadas: na primeira, um padre e uma freira rezam, tendo a subscrição Der

Kierche zu eigen55. Já na segunda, uma jovem se encontra nos braços de um judeu,

entregando-se aos prazeres terrenos (representados pelo álcool, o fumo e pelo abraço que

seu parceiro lhe dá). A inscrição, Dem Satan verichwore56, indica que ela já estaria

contaminada pelo veneno judeu.

Dois aspectos são importantes de se salientar na observação deste desenho. O

primeiro se refere à visão do Der Stürmer e do movimento nazista em geral sobre a Igreja

Católica. Apesar de se aproveitarem da posição da Igreja como unificadora e de seu papel

54 Trad. Inútil. 55 Trad. A Igreja deles se apropriou. 56 Trad. Ela se perdeu para Satã.

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79

de autoridade para grande parte dos alemães, papel este cultivado desde tempos remotos,

quando da formação do Sacro Império Romano-Germânico, os nazistas abominavam esta

instituição.

O próprio Führer, apesar de ter nascido católico, renegou esta religião. Segundo

Louis Snyder57, Hitler teria proferido em determinada ocasião que a Antiguidade era

melhor que os tempos modernos, pois a humanidade ainda não conhecia o Cristianismo e a

sífilis. Ainda na explicação de Snyder, as críticas do líder alemão à Igreja Católica eram:

1. Christianity was a religion that defended the weak and the low. 2. It was purely Jewish and Oriental in origin. It forced people “to bend their

backs to the sound of church bells and crawl to the cross of a foreign God”. 3. It began 2,000 years ago among sick, exhausted, and despairing men who had

lost their belief in life. 4. The Christian tenets of forgiveness of sin, resurrection, and salvation were

plain nonsense. 5. The Christian idea of mercy was a dangerous, un-German idea. 6. Christian love was a silly concept because love paralyzed men. 7. The Christian idea of equality protected the racially inferior, the ill, the weak,

and the crippled.58

Assim, a ilustração de Fips acima reflete um pensamento dominante, ao menos na

cúpula e no centro organizacional do Estado Nazista. Era então lícito que o desenho

afirmasse que aqueles que se entregavam ao clero tinham se perdido para o Reich ao

complementar und beide der Volksgemeinschaft verloren59.

A segunda personagem perdida para a sociedade alemã é a ariana representada na

ilustração à esquerda. Ela, como já expusemos, está dando provas de sua degeneração

através do comportamento libidinoso e teoricamente amoral. Perdeu-se, entretanto, não

apenas por seu comportamento, mas principalmente por entregar-se ao próprio Satã, aqui

57 SNYDER, Louis L. Encyclopedia of the Third Reich. New York: Marlowe & Company, 1976. p.

291. 58 Trad. 1. O Cristianismo era uma religião que defendia o fraco e o inferior. 2. Ele era puramente judeu e oriental em sua origem. Forçava o povo a “curvarem suas

costas ao som dos sinos da igreja e rastejar para a cruz de um Deus estrangeiro”. 3. Surgiu 2000 anos atrás entre homens doentes, exaustos e desesperados que tinham

perdido sua crença na vida. 4. Os princípios cristãos de remissão dos pecados, ressurreição e salvação eram francamente

um absurdo. 5. A idéia cristã de clemência era perigosa, uma idéia anti-germânica. 6. O amor cristão era um conceito simplório, pois o amor paralisou os homens. 7. A idéia cristã de igualdade protegia os racialmente inferiores, os doentes, os fracos e os

aleijados. SNYDER, Louis. Op. cit. p. 291. 59 Trad. E ambos foram perdidos para a comunidade.

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80

personificado na figura de um judeu sedutor. O porque de uma ariana, por se relacionar

com um judeu, perde-se para o Reich, encontra-se na idéia de pureza racial que os nazistas

pregavam abertamente. Porém, a garota em questão seria pura, sem pai nem mãe judeus.

Por que estaria ela então marcada? A resposta vem em um ensaio pseudo-científico

produzido por Streicher, no qual o editor do Der Stürmer escreve:

“Alien albumin” is the semen of a man of another race. As a result of intercourse, the male semen is partially or totally absorbed by the female body. A single incident of intercourse is sufficient to poison her blood forever. She has taken in the alien soul along with the “alien albumin.” Even if she marries an Aryan man, she can no longer bear pure Aryan children, but only bastards, in whose breasts dwell two souls, and who physically look like members of a mixed race…60

Desta forma, observamos dois conceitos próprios do Nazismo sendo abordados e

defendidos em uma só charge, quais sejam, o anticatolicismo e a pureza da raça ariana, em

especial quando referida ao povo judeu. O poder da charge como elemento propagandístico

mostra aqui toda a sua síntese no passar a mensagem e eficiência. Outro exemplo da crítica

a uma série de elementos malquistos no sistema nazista em um único desenho é o trabalho

de Fips abaixo.

60 Trad. “Albumina estranha” é o sêmen de um homem de outra raça. Como resultado do intercurso,

o sêmen masculino é parcial ou totalmente absorvido pelo corpo feminino. Um simples incidente no intercurso é suficiente para envenenar seu sangue para sempre. Ela é levada na alma estranha com a “albumina estranha”. Mesmo se ela casar com um homem ariano, ela não pode mais parir crianças arianas puras, mas apenas bastardos, em cujos peitos viverão duas almas, e que fisicamente parecerão membros de uma raça mista. STREICHER, Julius. Deutsche volksgesundheit aus Blut und Boden, III. Jan, 1935, 3. In BYTWERK, Randall. Op cit. p. 145.

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Fonte: FIPS. Der Stürmer, jul. 1936. Nuremberg. In German Propaganda Archive

Na charge acima, um pequeno verso acompanha e faz referência ao desenho:

Das ist die Freiheit, die uns zugedacht,

Wie seh´n es dort, wo Juda hat die Macht,

Wie hinter Herfermauern, Gittersfangen

Im finsteren Gefängnis sigt gefangen

Die Menschheit, die nach wahrer Freiheit stöhnt

Und sich nach Rettung und Befreiung sehnt.61

A ilustração mostra um ariano prisioneiro numa cela. Com a face visivelmente

desesperada, observa as barras da janela que trazem gravadas símbolos que remetem a

instituições que levariam a Alemanha, segundo os nazistas, à decadência. São elas,

dispostas da esquerda para a direita na gravura: o Cristianismo, representado pela cruz, o

61 Trad. Esta é a liberdade a nós destinada / A liberdade que nós vemos onde Judah tem autoridade. /

Aprisionada, atrás das grades, / em escura prisão permanece prisioneira / a humanidade, que conserva seu gemido por liberdade / e busca a salvação e a libertação.

Page 86: GUERRA E HUMOR

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Capitalismo, que tem no cifrão seu símbolo, o Judaísmo, com a estrela de Davi, e o

Comunismo, que tem na representação da foice e do martelo seu arquétipo.

A alegoria do prisioneiro encarcerado é, obviamente, uma metáfora da prisão que as

ideologias e sistemas criados pelos judeus manteriam os cidadãos do mundo, em especial,

os arianos. Segundo os nazistas, o Cristianismo, como já vimos anteriormente, seria uma

religião criada por judeus que teria como intento primeiro dominar os seres superiores em

favor dos inferiores, sendo, portanto, uma religião antiariana.

O Capitalismo, por sua vez, seria o sistema no qual os judeus se desenvolveram e

conseguiram “dominar o mundo”. Era comum se ouvir o discurso proferido pelos nacional-

socialistas, baseado nos “Protocolos dos Sábios de Sião”, referindo-se aos judeus como

donos das redes de comunicação, das indústrias e de todos os campos estratégicos da

economia62. A mesma acusação era dirigida ao Comunismo, que buscava uma sociedade

igualitária, com exceção dos judeus, que continuariam controlando a dinâmica mundial.

Quanto ao Judaísmo, cremos não ser necessário comentários, uma vez que seria o berço de

todas as outras “mazelas” citadas.

Todas estas explicações, que encontravam no cotidiano alemão das décadas de 30 e

de 40 seu terreno mais fecundo, eram resgatadas pelos leitores ao visualizarem a charge. A

utilização de símbolos arquetípicos na ilustração acaba tornando ainda mais expressiva a

interação da informação com o inconsciente do leitor, que automaticamente associa as

correntes explicações nazistas à situação de encarcerado, tornando esta situação uma

“verdade virtual”.

O Comunismo, como pudemos observar no exemplo acima, era um dos perigos que

rondavam a vida dos cidadãos alemães. Não por acaso, antes mesmo dos nazistas

assumirem o controle do país, estes já eram apontados pelos nacional-socialistas como

principais inimigos a serem combatidos depois dos judeus. O Der Stürmer, como não

62 A esse respeito, uma anedota corrente entre os judeus na Alemanha nazista fazia referência ao

próprio Der Stürmer. Nela, “um judeu encontra, num café, um de seus amigos lendo Der Stürmer, jornal violentamente anti-semita. ‘Como você pode ler este horror?’, pergunta. O amigo lhe responde: ‘Quando leio um jornal judeu, só encontro notícias tristes e catástrofes. Por toda parte, anti-semitismo, perseguições, portas que se fecham para os judeus que querem deixar seu país. Neste jornal, ao contrário, fico sabendo que dominamos o mundo, que controlamos os bancos, as finanças, a imprensa. É altamente reconfortante’”. (Relatado por KLATZMANN, J. L´humour juif. Paris: 1998. p.42. In MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Unesp, 2003. p. 566.

Page 87: GUERRA E HUMOR

83

poderia deixar de ser, dedicou grande espaço de suas páginas para combatê-lo, inclusive

nas charges de Fips.

Fonte: FIPS. Der Stürmer, 194?. Nuremberg.

A charge acima, sob título de Mãe Europa (Mutter Europa) é um caso. Nela

visualizamos um russo comunista (caracterizado pela estrela vermelha sobre o capacete)

observando uma senhora, identificada como Europa. O olhar do bolchevique indica raiva e

cobiça, levando a “Mãe Europa” a pensar: und sollte ich diesem Teufel nur eines meiner

Kinder überlassen müssen, es wäre mein Tod.63 Desta forma, Fips expõe o perigo

comunista e o coloca não mais como um problema a ser enfrentado pelos alemães, mas por

todo o continente.

A solução para a angústia da realidade comandada pelos judeus, que os nazistas

proclamavam como verdadeira e presente, e para o perigo comunista era apontada pelo

próprio semanário de Streicher: Hitler e seu Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores

Alemães. Apesar da figura do Führer não ser retratada nas charges do Der Stürmer, a idéia

de que ele e seu partido seriam a salvação da Alemanha era latente. Menos de dois meses

63 Trad. Tendo eu de entregar apenas um dos meus filhos a este demônio, seria minha morte.

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após a indicação de Hitler à chancelaria, o semanário já declarava o início de uma nova era

na Alemanha e, como não poderia deixar de ser, Fips também participou da empreitada.

Fonte: FIPS. Der Stürmer, mar 1933. Nuremberg. In BYTWERK, Randall. Op. cit. p. 99.

Aqui, sob o título Sieg

64, um ariano é retratado em dois momentos: um antes da

ascensão dos nazistas, sendo representado como um período sombrio, no qual o medo

transparece na feição do cidadão alemão. Os fantasmas que o afligem têm feições que

remetem aos comunistas, aos judeus, à morte e ao próprio Satã. Palavras são murmuradas,

trazendo ainda mais desespero ao personagem, tais como Dawes Plan, Young Plan,

Fotmord, Korruption, Versailles65

. Outro detalhe importante que visualizamos na gravura é

a representação de um judeu na Lua que observa o cidadão ariano. A legenda, entretanto, é

alentadora: Der Spuk ist zu Ende66

.

Ao lado temos a confirmação – Der Tag ist erwacht67. Um Sol brilha radiante para o

mesmo cidadão alemão e, convenientemente, o astro traz inscrito em seu interior a cruz

64 Trad. Vitória. 65 Trad. Plano Dawes, Plano Young (dois planos econômicos de auxílio à Alemanha para o

pagamento das dívidas ocasionadas pelo Tratado de Versailles e pelos demais acordos pós-Primeira Guerra), assassinato, corrupção, Versailles.

66 Trad. A assombração está acabando. 67 Trad. O dia está despertando.

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gamada, insígnia que caracteriza o movimento nacional-socialista. Rupprecht foi feliz na

colocação do antagonismo existente entre o Nazismo e os judeus, representando-os sob as

alegorias do Sol e da Lua. Entretanto, a mensagem mais importante talvez seja a de que

agora o cidadão não está mais sozinho; uma multidão se junta a ele para celebrar a ascensão

nazista. O espírito de coletividade e de participação é passado ao leitor, que acaba ele

mesmo se colocando naquele contexto de ovação.

Fonte: FIPS. Der Stürmer, jun 1933. Nuremberg. In BYTWERK, Randall. Op. cit. p. 98.

Em outro exemplo da utilização do Nazismo como sinônimo de Nacionalismo nas

charges de Fips, vislumbramos um ariano empurrando um judeu para um abismo. Tendo

como título Bergeltung68, a ilustração mostra o cidadão do Reich dizendo para o judeu

Fahre hin, wohin Du mich haben wolltest, Du Ungeist69, sendo o abismo claramente uma

alegoria para uma situação de miséria e desespero para a qual, supostamente, os judeus

intencionavam conduzir a Alemanha. O grande destaque do desenho é novamente o Sol

com a suástica gravada. Ele parece impulsionar e dar forças para que o alemão empurre o

68 Trad. Encerramento, Salvação. 69 Trad. Vá para onde você queria que eu fosse, desalmado.

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86

judeu no abismo, dando a impressão que é o astro, ao fim ao cabo, o real responsável pela

mudança da situação. A mensagem passada acaba sendo, novamente, que a força

(individual ou coletiva) é proporcionada aos alemães pelo Nacional-Socialismo e pelo

Führer.

A guerra, que tivera um início vitorioso para as forças do Eixo, dando a impressão

mesmo da correção das previsões e das afirmações nacionalistas do Der Stürmer, passava a

pender, a partir de meados de 1942, para os Aliados. A derrota dos alemães em Stalingrado

e uma série de erros táticos da cúpula do Exército Alemão, juntamente da entrada dos

Estados Unidos no conflito, o que proporcionou um aumento substancial na quantidade de

material bélico disponibilizada aos exércitos aliados, garantiram a derrocada nazista.

Diante desta situação, uma nova realidade passa a imperar também nas charges do

Der Stürmer. O grande objetivo das ilustrações, bem como das matérias veiculadas no

semanário, é justificar a derrota que se mostra iminente. Conforme as tropas nazistas

recuavam no front, mais necessárias eram as justificativas e o trabalho de Rupprecht com

suas charges. Fato interessante é que o movimento nazista ganhou impulso com a teoria da

“facada pelas costas”, já referida no capítulo 03, e também tinha nela a principal

justificativa para os seguidos fracassos ocorridos depois de meados de 1943, como

podemos visualizar no desenho seguinte.

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87

Fonte: FIPS. Der Stürmer, mai. 1944. Nuremberg. In German Propaganda Archive

Aqui, sob a pergunta Wofür?

70, encontram-se dois soldados alemães tombados no

campo de batalha. O ambiente soturno que envolve a charge faz referência à atuação

escamoteada que os nacional-socialistas creditavam aos judeus, ou seja, que secretamente

ajudavam os aliados a vencer a guerra através de traições e boicotes, a exemplo do que teria

ocorrido em 1918. A figura do judeu surge no céu, tendo um ponto de interrogação à sua

frente, dando a impressão no leitor de que seu olhar é onisciente (e como não seria, visto

que, segundo os nazistas, os judeus controlariam o comércio, a imprensa e a política?).

Na quadra que acompanha a ilustração, lemos:

Wofür, warum, vergießen sie ihr Blut?

Im Hintergrung der Frage grinst der Jud.

Und somit ist die Antwort schon gegeben:

70 Trad. Para quê?

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88

Für Judes Ziele halten sie ihr Leben!71

A retomada da questão da “facada pelas costas” mostra-se uma ação desesperada em

face ao destino trágico que aguardava a Alemanha. Trata-se, porém, também de uma

justificativa derradeira para a “Solução Final” ou a tentativa de eliminação total dos judeus

que Hitler tentou empreender as pressas após a constatação da derrota.

Pudemos observar, a partir dos exemplos acima analisados, a constância das

acusações aos judeus nos assuntos tratados nas charges. Fips se utilizava, para tanto, de

uma forma de humor que não visa apenas a ridicularização do seu alvo, mas também a sua

degradação moral. A técnica utilizada não é a simples exageração de características que por

si só já denigrem o retratado ao colocar em evidência aspectos “tortos” de seu físico ou de

seu comportamento72. É, na verdade, a acusação direta de deturpações morais que o

chargista e seu jornal julgavam próprios dos judeus em desenhos que buscavam incutir no

inconsciente do observador estes julgamentos.

As charges do Der Stürmer se prestam, portanto, para a degeneração do alvo (os judeus)

através da utilização de um humor grosseiro, com alusões diretas, valendo-se de títulos e

legendas para melhor transparecer sua intenção. Trata-se de um produto destinado a um

público muito definido, qual seja, o ariano adepto das idéias nazistas, em especial do anti-

semitismo, e predisposto a acatar as opiniões expostas.

71 Trad. Para que, por quê, derramam vocês seu sangue? / Ao fundo, ri o judeu da pergunta. / E assim

a resposta é dada: / pelos propósitos judeus vocês perderam suas vidas. 72 FREUD, Sigmund. O Chiste e sua relação com o Inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1977. p.

228.

Page 93: GUERRA E HUMOR

89

6) CONCLUSÃO:

Este trabalho se propôs a analisar o efeito da propaganda, em especial, da charge e

dos desenhos humorísticos, no inconsciente individual e na formação da opinião pública.

Pudemos notar, através dos exemplos examinados, de que formas o leitor é atingido e

transformado pela simples visualização de uma gravura ou ainda pelos efeitos causados por

uma risada.

O gesto e o ato do riso são exaustivamente estudados no campo social,

comportamental e médico. Neste último aspecto, podemos tomar os estudos do pioneiro

nesta área, o Dr. William Fry, que defende a utilização da risada como meio auxiliador no

tratamento de doenças e do estresse. Segundo Fry, algumas das reações do corpo à

gargalhada, como o relaxamento muscular e a queda da pressão arterial, produzem efeitos

benignos em todo o organismo do indivíduo, gerando uma sensação prazerosa73. Unida ao

discurso médico, a Psicanálise complementa e também contribui com nosso estudo.

Observamos, com o auxílio da teoria freudiana acerca dos chistes e sua relação com

o inconsciente, que o riso promove a sensação de prazer no espectador ou ouvinte da piada,

aproveitando-se desta situação para angariar adeptos às idéias por ele transmitidas.

Conforme já analisado no capítulo 02 deste trabalho, ao rir de determinado gracejo o

receptor revela ter automaticamente concordado com a crítica nele embutida – e não

podemos perder de vista que qualquer piada é uma forma de crítica velada. Resumindo, nas

palavras do próprio Freud:

Um chiste nos permite explorar no inimigo algo de ridículo que não

poderíamos tratar aberta ou conscientemente, devido a obstáculos no caminho;

ainda uma vez, o chiste evitará as restrições e abrirá fontes de prazer que se

tinham tornado inacessíveis.74

Desta forma, somos levados à conclusão de que a piada e a crítica que ela carrega

consigo são direcionadas a um público específico, uma vez que as características e as

73 Mais sobre a ação do riso no metabolismo, ver FRY, William. Sweet Madness: A Study of

Humor. New York: Pacific Book Pub, 1968. 74 FREUD, Sigmund. O Chiste e sua relação com o Inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1977. p.

123.

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90

opiniões do espectador são determinantes na aceitação da idéia. Porém, não podemos nos

esquecer que o alvo deste estudo, as charges, são veiculadas em jornais e revistas com

grande circulação, destinadas, portanto, a um público amplo e muitas vezes heterogênea.

Neste sentido, ela se presta também a tornar mais “clara e elucidativa” a idéia que o leitor

por ventura venha a ter do acontecimento ou da idéia retratada no desenho. Em outras

palavras, se presta a aproveitar-se das propriedades do riso para direcionar a formação das

opiniões do leitor, moldando-as conforme a do chargista e do meio de comunicação.

Os desenhos ganham em força se somados a símbolos presentes no inconsciente

coletivo75. A utilização de imagens arquetípicas remonta a idéias ainda mais fortes e

impregnadas no imaginário coletivo, levando o indivíduo, pelo próprio trabalho

inconsciente que desenvolve, a incutir um maior valor à idéia exposta.

Fonte: Daily Express, Londres. 14 nov. 1938. In. German Propaganda Archive.

75 Em Freud, o princípio do inconsciente surge apenas como algo reprimido ou esquecido no

indivíduo, sendo, portanto, algo baseado nas experiências e memórias individuais. O coletivo, por sua vez concebido por Carl Jung, compreende uma experiência global, sendo compartilhada por toda a humanidade. É uma espécie de identidade psíquica humana, “povoada” por símbolos reconhecidos por todos os indivíduos, denominados arquétipos.

Page 95: GUERRA E HUMOR

91

Acima, podemos observar uma cruz suástica, símbolo que acabou se tornando um

arquétipo do Nazismo e, em certa medida, da própria essência do Mal, comprimindo um

indivíduo que, pelos trajes, remonta ao povo hebreu, e que se ajoelha sobre uma estrela de

David, outro símbolo que faz parte do inconsciente coletivo, remetendo-nos ao Judaísmo.

Toda a situação tem como pano de fundo labaredas incandescentes que parecem consumir o

ambiente. A charge tem um propósito claro: o de alertar sobre o anti-semitismo exacerbado

pregado pelos nacional-socialistas.

A utilização do desenho como meio de predizer um futuro sinistro que se apresenta

ou de alertar a população para o mal que se desenha é contraposta à utilização plenamente

humorística (ou propagandística) das charges nos diários. Nelas podemos visualizar a

comparação seguida da determinação de uma hierarquia na qualificação dos objetos alvos

do chargista. Baudelaire, escrevendo sobre a natureza superior do riso76, registra-o como

unicamente proveniente do escárnio, do “sarro” e da sujeição do inferior ao superior. Tal

superioridade pode advir da capacidade intelectual, do caráter monetário ou das

circunstâncias trágicas. Nesta sujeição, os artifícios utilizados podem ser vários, desde a

comparação com o estado de aparente perfeição daquele que podemos chamar de “herói”

na charge até a ridicularização do nonsense.

Na técnica do nonsense o autor fantasia uma situação absurda ou ainda denuncia

uma posição ou idéia desconexa defendida pelo anti-herói da charge. Pudemos observar

essa situação na charge de Belmonte analisada na página 40 deste trabalho. Ali, em meio a

um soldado alemão e um Hitler histérico, um judeu fraco e idoso é acusado de derrotar os

exércitos nazistas. A idéia de que um senhor naquela situação pudesse, sozinho, destruir

todas as divisões militares alemãs é, no mínimo, bizarra. Obviamente Hitler não acusou

realmente um único judeu pelo destino desafortunado que seus exércitos encontravam.

Porém, utilizando-se desta técnica, o autor busca mostrar o disparate das acusações do

Führer, absurdo tal que pode ser comparado à acusação retratada no desenho humorístico.

Se acaso Belmonte, ao invés desta ilustração, produzisse uma nos mesmos moldes, mas que

mostrasse Hitler com uma face serena e equilibrada e um judeu forte e saudável, a

ilustração teria o efeito de proclamar uma verdade. O riso viria sim, mas seria um riso

76 BAUDELAIRE, C. De l´essence du rire et généralement du comique dans les arts plastiques. In.

MINOIS, George. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Unesp, 2003. p. 533-535.

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92

comparado ao do cientista que vislumbra uma nova idéia revolucionária: “Eureca! Os

judeus são realmente os culpados pelo desastre alemão”.Essa seria a fórmula para alcançar

o efeito necessário utilizada por Fips na maioria de seus desenhos.

Fonte: Labor Front. 17 fev. 1936. In. HILLENBRAND, F.K.M. Underground Humour in Nazi Germany 1933-45. New York: Routledge, 1995. p. 37.

Outro exemplo do nonsense nas charges é a ilustração inglesa acima. Nela, Hitler é

descrito como “the greatest educator of the German nation”77 e surge ministrando uma aula

para alguns soldados alemães. O tema da aula é “An Aryan is:”78 e segue com a descrição

de um típico ariano: “tall like Goebbels, slim like Goering, blonde like Hess and heroic,

like me”79. A intenção do desenho é clara; pretende demonstrar o absurdo das crenças

raciais pregadas pela cúpula nazista quando ela mesma não correspondia a tais requisitos. A

charge tem, desta forma, o valor não apenas de utilizar-se da técnica do nonsense, mas

também de denunciar o nonsense existente nas próprias idéias raciais nazistas, jogando-as

para uma realidade bizarra e “torta”.

77 Trad. O maior educador da nação alemã. 78 Trad. Um ariano é: 79 Trad. Alto como Goebbels, magro como Goering, loiro como Hess e heróico como eu.

Page 97: GUERRA E HUMOR

93

Outra técnica de humor que pudemos analisar em nossas fontes é o humor inocente

ou infantil, que parece demonstrar pouca ou nenhuma pretensão de crítica. Esta

característica pudemos observar principalmente no capítulo dedicado a Chichorro, que

através da figura de Chico Fumaça tece comentários aparentemente ingênuos e por vezes

favoráveis ao regime nacional socialista. Porém, seria esta característica de seus desenhos

apenas uma técnica utilizada ou era movida por outros propósitos?

Conforme visualizamos, as charges de Eloy encontram dois momentos principais:

antes da declaração de guerra do Brasil às forças do Eixo e após este ato. Em cada uma

destas fases, o desenho encontra características distintas, sendo que na primeira as críticas

eram escassas e ralas, tendendo por vezes à complacência para com os nazistas, enquanto

na segunda os comentários se tornam mais mordazes, criticando vários aspectos da

ideologia de da conduta nacional-socialista. Fica claro que o tratamento de Chichorro para

com os alemães está de acordo com o tratamento diplomático dispensado pelo próprio

governo brasileiro naquele período. Porém, quando comparados aos desenhos de Belmonte,

notamos algumas omissões de Chichorro – por quê elas ocorriam?

Algumas possibilidades são lançadas na busca desta resposta. A primeira é a de que

o autor teria alguma forma de simpatia pelo sistema Fascista e em especial o Nazista. Nada

impossível, uma vez que Alceu Chichorro estava inserido na sociedade curitibana,

historicamente conservadora e com fortíssima presença ítalo-germânica na sua população.

Além disso, a admiração pela organização e pela competência alemã em reformar seu

Estado era corrente em vários países, o que era impulsionado pela máquina de propaganda

nazista e pelo afastamento destes observadores do sistema totalitário alemão80. Porém, as

aspirações políticas de Alceu e sua luta pela Democracia e pelo fim da ditadura de Vargas

denunciam o oposto.

Alguns desenhos do chargista paranaense, entretanto, reforçam a teoria da simpatia

pessoal de Chichorro para com o sistema nazista. O primeiro exemplo que analisaremos

80 Caracteriza-se por autoritário o regime que centraliza o poder nas mãos de uma só pessoa, diminuindo o poder do senso comum ou da opinião pública e colocando numa posição secundária as instituições representativas. As ideologias autoritárias primam pela desigualdade entre os homens, colocando de forma decisiva os princípios hierárquicos por elas definidos. Já o Totalitarismo pretende instalar uma postura extremamente autoritária no Estado e se utiliza do terror (violência física e psicológica) para isolar o indivíduo do restante da sociedade, o que facilita o controle. Busca também através da violência eliminar qualquer oposição aos seus métodos. Segundo a filósofa Hannah Arendt, existem dois exemplos clássicos de Estado totalitário: a União Soviética de Stalin e a Alemanha nazista. (ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo : Cia. Das Letras, 2000.)

Page 98: GUERRA E HUMOR

94

mostra Chico Fumaça conversando com um membro da colônia alemã de Curitiba. Este

aparece com um “broche” ostentando a cruz suástica, apoiando a candidatura de Gustavo

Wenske, importante industrial curitibano que concorria à deputação estadual. Uma pequena

anedota81 acompanha a ilustração, porém, a intenção de Alceu vai além do apoio a um

membro da colônia alemã: seu apoio é direcionado á candidatura paranaense, numa luta

simbólica que Chichorro travou nas páginas dos jornais contra os adventistas, candidatos

paulistas que buscavam se eleger no Paraná.

Fonte: ELOY. O Dia. Curitiba. In Alceu Chichorro.

O segundo exemplo faz parte da coleção de desenhos de Chico Fumaça que

serviram para propósitos propagandísticos comerciais. Como já pudemos visualizar no

81 - Que tal nosso candidato, Herr Fumaça? - Magnífico! O senhor Wenske será um deputado consciencioso. Pelo menos não desmentirá que

sabe fazer fitas!... (em alusão á fábrica de fitas que o candidato possuía na cidade).

Page 99: GUERRA E HUMOR

95

capítulo 04, o calunga de Chichorro era freqüentemente procurado para ilustrar as

propagandas dos anunciantes do jornal. Um destes anunciantes foi a cerveja Atlântica, que

teve um desenho a ela dedicado no dia do trabalho. Nele, Fumaça está discursando para

uma grande multidão82, proclamando o valor da bebida. Chamam a atenção do leitor o

título: “Fumaça Hitlerista” e a suástica ostentada pelo personagem.

Fonte: ELOY. O Dia. Curitiba. In Alceu Chichorro.

Mais uma vez, entretanto, a idéia de Chichorro como simpatizante do Nazismo pode

ser desfeita quando procuramos alguma referência à cervejaria em questão. A Atlântica

fazia parte da “Câmara de Comércio Teuto-brasileira em Curitiba”, sendo inclusive uma

das várias empresas patrocinadoras da “Semana Allemã” na capital paranaense. Podemos

supor, assim, que o desenho acima tenha sido encomendado pela empresa e que Alceu o

tenha produzido apenas como cumprimento do dever. Desta forma, Chichorro estaria

82 Senhores, no dia consagrado ao trabalho, eu vos aconselho a trabalhar! E como o trabalho dá força,

vigor e saúde, deveis beber a “Bock-Bier”, da Atlântica, que nella encontrareis tudo isso!...

Page 100: GUERRA E HUMOR

96

apenas buscando seguir a orientação editorial d´O Dia, que visava ser neutro na transmissão

da notícia e da opinião, bem como a missão do jornalista, o que já foi discutido na

introdução deste trabalho.

O mercado curitibano também poderia ter influenciado os desenhos de Eloy, uma

vez que a presença alemã na cidade era marcante e relevante. Assim, visando uma maior

vendagem entre a população teuto-brasileira simpatizante do nazi-fascismo, as charges não

criticariam o regime e os líderes alemães abertamente. Porém, se esta fosse a verdadeira

razão da leveza das críticas de Chichorro ao Nazismo nos primeiros anos da guerra e

anteriores, esta política possivelmente teria sido mantida após 1942. Desta forma, para

acompanhar a possibilidade da orientação pretensamente isenta do jornal e do jornalista,

uma quarta idéia se apresenta – e é esta, em nossa opinião, a mais forte delas – a da atuação

da censura do DIP durante o Estado Novo. Esta hipótese explicaria a duração das críticas

brandas e a mudança de ênfase a partir da declaração de guerra brasileira.

Esta extensa análise dos desenhos de Chichorro presta-se a nos relembrar as

intenções que se escondem por detrás do humor das charges, em especial das políticas. O

terceiro caso analisado nesta monografia, o das charges do Der Stürmer, também teria um

propósito bem definido. Através de um humor por vezes negro e grotesco ou de uma

simples panfletagem política e racista, o semanário proporcionava uma grande assistência

ao governo hitlerista na busca do fomento ao anti-semitismo da nação alemã. Em outros

termos, o humor de Rupprecht serviu como uma alavanca para o ódio dos arianos para com

os judeus, não se dirigindo à “inteligência pura”83, como pregava Bergson, mas a um dos

sentimentos mais recônditos do ser humano, qual seja, o ódio.

A forma com que se deu esta ação pudemos visualizar no capítulo 06. A

demonização e a satirização dos elementos supostamente nocivos à sociedade (os israelitas,

comunistas e em muitas situações os católicos) tinham a função de alertar os cidadãos sobre

o caráter supostamente anômalo destes grupos. A busca era por uma uniformização das

idéias raciais e da moral do povo alemão, negando nesse processo a moral cristã, judaica ou

qualquer outra e impondo a moral do Partido Nazista, processo acelerado e intensificado

pelo Terror empreendido pela polícia secreta e pelas outras formas de propaganda

empregadas, como panfletos e discursos radiofônicos.

83 BERGSON, Henri. O Riso. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 4.

Page 101: GUERRA E HUMOR

97

Verificamos, assim, a ratificação da validade da teoria de Bergson a respeito da

utilização (consciente ou não) do riso como regulador social. A idéia do filósofo francês é

de que o humor, enquanto estimulador do riso, visa principalmente o ponto de ruptura da

harmonia social, ou seja, visa aquele indivíduo ou grupo que, seja por seus costumes, por

sua natureza ou por sua índole, mostra-se diferente daquilo que é entendido como normal

naquela sociedade. Desta forma, o chiste causa o riso ao abordar o “anormal” e

automaticamente o sentimento de humilhação no indivíduo ou no grupo alvo da crítica, o

que o leva a se corrigir ou ao menos a não demonstrar mais o erro. Nas palavras de

Bergson:

Se Harpagon84 nos visse rir de sua avareza, eu não lhe digo que se corrigiria,

mas a mostraria menos, ou a mostraria de outro modo. Podemos dizer desde já: é

nesse sentido, sobretudo, que o riso “castiga os costumes”. Ele nos faz tentar

imediatamente parecer o que deveríamos ser, o que, sem dúvida, acabaríamos

um dia por ser de verdade.85

Com o Der Stürmer a população alemã passou a “ver” a quebra da harmonia social

que os judeus promoveriam e, como não havia a possibilidade deste “erro” se corrigir

sozinho, passou-se a aceitar a idéia da extirpação deste “corpo estranho” da sociedade. Da

mesma forma, através do riso, Chichorro buscou convencer a sociedade paranaense da

desarmonia que os adventistas traziam para o Estado do Paraná, bem como Belmonte

buscava transmitir a visão da ruptura que os nazistas e suas idéias impunham à harmonia

européia e mundial.

Neste sentido, as charges têm seu lugar no espaço público, na arena de discussões.

Sua função de expositora e de formadora de opiniões permanece marcante, seja como

crítica a um governo ou como apoio ao mesmo, seja em Democracias ou Ditaduras. Da

mesma forma que os chargistas atuaram nas décadas de 30, combatendo ou alicerçando

políticas governamentais, hoje ainda se destacam na formação da opinião popular, aliando-

se ao poder vigente ou a ele se opondo, as charges continuam tendo grande atração para os

leitores e ainda possuem a capacidade de influenciar, de alguma forma, a sociedade.

84 Personagem da peça L´Avare, de Molière, cuja característica principal é a avareza. 85 BERGSON, Henri. Op Cit. p. 13.

Page 102: GUERRA E HUMOR

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