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IL MOMENTO IDEALE NELL' ECONOMIA E SULLA ONTOLOGIA DEL MOMENTO IDEALE Georg Lukács Tradução para o português de Maria Angélica Borges com a colaboração de Silvia Salvi 1. O momento ideal na economia. As nossas pesquisas demonstraram que o fato mais fundamental, mais material da economia (o trabalho) tem caracteres de uma posição teleológica. Nossos leitores recordam o ponto ontológico da determinação dada por Marx: "Mas o que desde o começo distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que ele construiu o favo na cabeça antes de construi-lo na cera. Ao fim do processo de trabalho, emerge um resultado que já estava presente desde o início na idéia do trabalhador, que portanto estava presente idealmente. Não que ele efetue somente uma mudança de forma do elemento natural; ele realiza no elemento natural, ao mesmo tempo, sua própria fínalidade, por ele bem conhecida, que determina como lei o seu modo de operar e à qual deve subordinar a sua vontade." 1 Isto significa claramente que no trabalho - e o trabalho não é somente o fundamento, o fenômeno basilar de cada práxis econômica, mas também, como o sabemos, o modelo geral da sua estrutura e dinâmica - a posição teleológica produzida na consciência (isto é, o momento ideal) deve preceder a realização material. É verdade que isso acontece no quadro de um complexo real e inseparável: do ponto de vista ontológico, não se trata de dois atos autônomos, um ideal e outro material, que de alguma maneira se interligam, não obstante, esta ligação mantenha a própria estrutura de cada um deles; ao contrário, a possibilidade da união de cada um dos dois atos, isoláveis apenas no pensamento, é vinculada à necessidade ontológica do ser do outro. Isto é, o ato da posição teleológica, somente por meio da real efetivação da sua realização material, torna-se um verdadeiro ato teleológico; sem isso, torna-se um mero estado psicológico, uma imaginação, um desejo, etc., que tem com a realidade material, no máximo, uma relação de espelhamento. E, por outro lado, a específica corrente causal que é movida teleologicamente, e na qual consiste a parte material do trabalho, não pode produzir-se por si mesma, a partir da causalidade produzida em-si no ser natural, não obstante nela operem exclusivamente momentos causais naturais, essência-em-si (as leis da natureza, por exemplo, nunca produziram uma roda, ainda que os caracteres e as funções desta sejam totalmente reconduzíveis às leis da natureza). Se é verdade então, que na análise do trabalho, os atos que o constituem podem ser considerados teoricamente e podem ser examinados na sua separação, todavia - ontologicamente - eles adquirem o seu verdadeiro ser somente enquanto componentes do complexo concreto representado pelo trabalho. Disso deriva também, que a contraposição gnosiológica entre teleologia e causalidade, como Versão italiana de Alberto Scarponi, a partir da cópia datilográfica da redação em alemão, preparada por Ferenc Bródy e Gábor Révai e revista por G. Lukács, Editori Riuniti, 1ª ed., Roma, 1981. Professora Colaboradora do Departamento de Letras da Universidade de S. Paulo. 1 K. Marx, Das Kapital , I, cit., p.140 (trad.it.cit.m p.212). 1

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IL MOMENTO IDEALE NELL' ECONOMIA E SULLA ONTOLOGIA DEL MOMENTO IDEALE

Georg Lukács

Tradução para o português de Maria Angélica Borges com a colaboração de Silvia Salvi

1. O momento ideal na economia.

As nossas pesquisas demonstraram que o fato mais fundamental, mais material da economia (o trabalho) tem caracteres de uma posição teleológica. Nossos leitores recordam o ponto ontológico da determinação dada por Marx: "Mas o que desde o começo distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que ele construiu o favo na cabeça antes de construi-lo na cera. Ao fim do processo de trabalho, emerge um resultado que já estava presente desde o início na idéia do trabalhador, que portanto estava presente idealmente. Não que ele efetue somente uma mudança de forma do elemento natural; ele realiza no elemento natural, ao mesmo tempo, sua própria fínalidade, por ele bem conhecida, que determina como lei o seu modo de operar e à qual deve subordinar a sua vontade." 1 Isto significa claramente que no trabalho - e o trabalho não é somente o fundamento, o fenômeno basilar de cada práxis econômica, mas também, como o sabemos, o modelo geral da sua estrutura e dinâmica - a posição teleológica produzida na consciência (isto é, o momento ideal) deve preceder a realização material. É verdade que isso acontece no quadro de um complexo real e inseparável: do ponto de vista ontológico, não se trata de dois atos autônomos, um ideal e outro material, que de alguma maneira se interligam, não obstante, esta ligação mantenha a própria estrutura de cada um deles; ao contrário, a possibilidade da união de cada um dos dois atos, isoláveis apenas no pensamento, é vinculada à necessidade ontológica do ser do outro. Isto é, o ato da posição teleológica, somente por meio da real efetivação da sua realização material, torna-se um verdadeiro ato teleológico; sem isso, torna-se um mero estado psicológico, uma imaginação, um desejo, etc., que tem com a realidade material, no máximo, uma relação de espelhamento. E, por outro lado, a específica corrente causal que é movida teleologicamente, e na qual consiste a parte material do trabalho, não pode produzir-se por si mesma, a partir da causalidade produzida em-si no ser natural, não obstante nela operem exclusivamente momentos causais naturais, essência-em-si (as leis da natureza, por exemplo, nunca produziram uma roda, ainda que os caracteres e as funções desta sejam totalmente reconduzíveis às leis da natureza). Se é verdade então, que na análise do trabalho, os atos que o constituem podem ser considerados teoricamente e podem ser examinados na sua separação, todavia - ontologicamente - eles adquirem o seu verdadeiro ser somente enquanto componentes do complexo concreto representado pelo trabalho. Disso deriva também, que a contraposição gnosiológica entre teleologia e causalidade, como dois momentos, elementos, etc., do ser, do ponto de vista ontológico; não tem sentido. A causalidade pode existir e operar sem teleologia, enquanto que esta pode assumir ser real apenas no jogo agora indicado com a causalidade, somente como momento de tal complexo, presente só no ser social.

Antes de examinar este caráter teleológico, comum a todos os atos e complexos econômicos, temos que ver brevemente quais foram até agora intencionalmente as concepções gerais dos marxistas, embora sem tentar, tampouco, uma reconstrução histórica, não essencial aqui. Na sua prática, tem predominado em geral um certo dualismo metódico, no qual o campo da economia foi apresentado como subordinado a uma legalidade, necessidade, etc., interpretada em termos mais ou menos mecanicistas, enquanto que aquele da superestrutura, da ideologia, resultava o único setor no qual apareciam as forças motrizes ideais, muito freqüentemente vistas em termos psicológicos. Isto é claríssimo em Plekhanov2. Mas este dualismo metódico predomina em geral, prescindindo-se do modo no qual venha colocada a relação entre base e superestrutura; se em uma ótica mecanicista, ou com germes de uma certa dialética. Uma espécie de unificação do método - mas falsificando radicalmente a essência do ser social - é tentada por Kautsky, quando na sua tardia fase teórica reconduz a totalidade do ser social à categoria de substância biológica; assim, segundo ele "a história da humanidade constitui apenas um caso especial da história dos seres Vivos"3. Este desconhecimento da constituição real da práxis econômica e social o leva a tomar acriticamente, dos manuais acadêmicos, a mais superficial concepção da relação entre teleologia e causalidade, onde a primeira, considerada uma forma de pensamento dos estágios primitivos, com o progresso do conhecimento, acaba por fazer desaparecer a vantagem da causalidade4. Em Max Adler desaparece, ao invés do ser social, cada momento material; também as

Versão italiana de Alberto Scarponi, a partir da cópia datilográfica da redação em alemão, preparada por Ferenc Bródy e Gábor Révai e revista por G. Lukács, Editori Riuniti, 1ª ed., Roma, 1981. Professora Colaboradora do Departamento de Letras da Universidade de S. Paulo.1 K. Marx, Das Kapital, I, cit., p.140 (trad.it.cit.m p.212).2 G. W. Plekanow, Die Grundprobleme des Marxismus, Stuttgart, 1910, ´p.77.3 K. Kautsky, Die materialistische Geschichtsauffassung, II, Berlin, 1927, pp.630-631.4 Ivi, pp.715-717.

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relações econômicas são "em substância relações espirituais" por isso, a totalidade da sociedade dos homens transforma-se em um produto - kantianamente entendido - da consciência; "... e disso deriva, finalmente, que a socialização não surge simplesmente no curso do processo histórico-econômico ... a socialização já é dada na consciência individual e com ela, e por esse meio, torna-se o pressuposto de todas as ligações históricas de uma maioria de sujeitos singulares".5 Por fim, a economia política e a teoria da sociedade estalinista operam, em parte, com categorias idealístico-subjetivas, voluntaristas, onde a subjetividade social apresenta-se definitivamente como um resultado das resoluções do partido; e, em parte, quando a pressão dos fatos obriga o reconhecimento de alguma maneira da validade objetiva da teoria do valor, opera-se com o dualismo da necessidade entre a posição mecânico-materialista e a das decisões voluntaristas. Em cada caso todas estas teorias não souberam explicar nem a unidade dinâmico-estrutural e a peculiaridade do ser social, nem as diferenças e contradições que se verificam em tal esfera.

Depois desta breve digressão, podemos voltar ao nosso verdadeiro problema. A seu tempo, vimos como as posições práticas, freqüentemente mediatizadas de maneira fortemente complexa, que a divisão do trabalho produz, trazem um caráter teleológico-causal, com uma única diferença, importantíssima, com relação ao trabalho a que as finalidades que são suscitadas e que, ao se realizarem, não visam diretamente a um caso concreto da troca orgânica da sociedade com a natureza, mas ao contrário, tendem a influir sobre outros homens, de modo que eles cumpram por si só os atos de trabalho desejados pela posição do sujeito. Não tem importância decisiva, aqui a extensão da cadeia de mediações em cada caso concreto; o importante é que a cada momento, a posição teleológica volte a direcionar a consciência de um outro homem (ou mais homens) em uma determinada direção, querendo induzi-lo a cumprir a posição teleológica desejada. Se várias podem ser aqui as finalidades e os meios (a começar pelo uso direto da violência na escravidão e na servidão da gleba, até as manipulações de hoje), seu "material" não é absolutamente homogêneo como no próprio trabalho, no qual só existe a alternativa objetiva, se a consciência captou a realidade objetiva corretamente ou não. Aqui, o "material" da posição da finalidade é o homem, que deve ser induzido a tomar uma decisão alternativa. A resistência em tomar a decisão desejada, é que há uma estrutura ontológica diversa daquela que desempenha o material natural do trabalho, onde o que conta é só ter captado, corretamente ou de maneira errada os nexos do ser da natureza. O "material" é qualitativamente mais oscilante, "doce", imprevisível, que no trabalho. Quanto mais indireta for a ligação destas posições com o trabalho, que em definitivo representa sua finalidade, tanto mais evidente aparecerá este seu caráter. Mas qualquer que seja o grau de diversidade a que se pode chegar, não se elimina o elemento comum, em última análise decisivo; isto eqüivale dizer que, em ambos os casos, trata-se de posições teleológicas, cujo sucesso ou insucesso depende do conhecimento que o sujeito que põe tenha da constituição das forças que devem ser postas em movimento; da precisão com a qual o sujeito correspondentemente esteja em condições de atualizá-las da maneira desejada nas seqüências causais nela imanentes.

É preciso ter claro, então, que todas as posições econômicas têm uma estrutura análoga. Na economia desenvolvida - e tanto mais, quanto mais explicitamente ela tenha como base uma totalidade de atos práticos tornados sociais - é fácil manifestar a aparência de que se trata não de atos humanos, mas de um automovimento de coisas. Assim, em geral, fala-se de movimento das mercadorias num processo de intercâmbio, como se não fosse evidente que as mercadorias não podem mover-se por si, que o seu movimento pressupõe sempre atos econômicos por parte de comprador e vendedor. E embora seja um jogo de ver como estão as coisas, Marx também nesse caso não se furta de dissolver a aparência reificada, para mostrar que se trata de atos teleológicos da práxis humana. O capítulo sobre o processo de intercâmbio começa com as palavras: "As mercadorias não podem ir sozinhas ao mercado e não podem, trocar-se. Devemos então procurar os seus tutores, os possuidores das mercadorias. As mercadorias são coisas, portanto, não podem resistir ao homem".6 O processo de troca, corresponde, então, na sua dinâmica complexa, àquela do trabalho, enquanto que também mediante atos prático-teleológicos alguma coisa de ideal é transformada em real. Isto aparece em cada ato de troca: "O preço - diz Marx -, ou seja, a forma monetária das mercadorias, é, como a sua forma de valor em geral, uma forma distinta da sua forma corpórea tangível e real; portanto, é somente a forma ideal, ou seja, representada".7 Essa dialética entre ideal e real traduz-se numa polaridade dinâmica, quando se considera o processo de troca no seu automovimento, como processo relativamente total de um complexo. Marx dá-nos uma detalhada descrição analítica: "A mercadoria é realmente valor de uso, a sua existência como valor aparece apenas idealmente no preço, o qual equivale ao ouro que está a sua frente como sua figura real de valor. Ao contrário, o material ouro vale somente como materialização do valor, dinheiro. Portanto, é valor de troca. Seu valor de uso aparece agora somente, idealmente na série das expressões relativas de valor, nas quais ele se refere às mercadorias que ficam à sua frente como as órbitas das suas figuras reais de uso".8

O desdobramento da esfera econômica da produção em sentido mais restrito e verdadeiro, do intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza, até as formas mais mediadas e complexas, nas quais e por meio das quais efetua-se a socialização da sociedade, torna essa. relação entre ideal e real sempre mais, dinâmica e dialética. Já vimos

5 M. Adler, Grundlegung der materialistischen Geschishtsauffassung, Wien, 1967, pp.92, 158-159.6 K. Marx, Das Kapital, I, cit., p.50 (trad.it.cit.,117).7 Ivi, p.60 (ivi, p.128).8 Ivi, p.69 (ivi, p.137).

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como aqueles atos teleológicos que somente mediatizados se referem ao intercâmbio orgânico com a natureza, de imediato são dirigidos para influenciar a consciência sobre as decisões de outros. Isto quer dizer que, neste caso, o momento ideal está presente como motivação e objeto, tanto na posição quanto no objeto dessa intenção; por isso, o peso do momento ideal aumenta em confronto com as posições originárias do trabalho, e cujo objeto é necessariamente real (sobre as múltiplas questões que nascem da peculiaridade destas posições nos deteremos ainda longamente adiante). Mas, pouco antes vimos como aquelas inter-relações puramente econômicas entre os homens que, do mesmo modo que a troca de mercadorias ora em questão, decorrem diretamente do trabalho social, vimos também que existem posições teleológicas específicas voltadas uma em direção a outra, postas em movimento idealmente, (que são) transformações do ideal no real e vice-versa. Aqui porém, não temos apenas uma coisa, o momento ideal, que é finalidade teleológica da outra, puramente material, mas temos, ao invés, duas posições teleológicas que se dirigem uma para a outra e provocam uma interação na qual, de ambos os lados, verifica-se uma transformação do ideal em real. Marx examinou com exatidão também esse processo: "A oposição entre valor de uso e valor de troca subdivide-se polarmente sobre as duas extremidades de M-D, sendo que a mercadoria, em relação ao ouro, é um valor de uso que deve primeiro realizar no ouro o seu valor de troca ideal; o preço, assim como o ouro, nas relações das mercadorias, é um valor de troca que materializa o seu valor de uso formal somente na mercadoria. Apenas mediante esta duplicidade da mercadoria em mercadoria e ouro, e mediante a relação por sua vez dialética, na qual cada extremidade é idealmente o que seu oposto é realmente, e é realmente o que seu oposto é idealmente então somente mediante a representação das mercadorias como antíteses da dupla polaridade, resolvem-se as contradições contidas no processo de troca das mercadorias".9 No exame da esfera econômica, então, é preciso partir do fato de que temos à nossa frente um complexo social da legalidade objetiva, cujos "elementos", por sua essência ontológica, são diferentes complexos que determinam cada uma daquelas posições teleológicas cuja totalidade comporta a reprodução do ser social. Mesmo que a unidade desse processo global, como sempre no âmbito do ser social, seja de caráter histórico, os complexos, os processos singulares que compõem a totalidade de cada formação, no campo da economia, adquirem um caráter sempre mais social. O recuo da “barreira natural" não somente transforma o conteúdo e o modo de operar das posições teleológicas singulares, mas também ilumina um processo que cria entre elas ligações sempre mais internas, complexas e mediatizadas. Sabemos que somente com o capitalismo surge uma esfera econômica na qual cada ato reprodutivo singular, mais ou menos mediado, exerce um certo influxo sobre cada um dos outros. Por isso, se por um lado, Marx observou que determinadas categorias simples, por exemplo o trabalho concreto como produtor de valores de uso, não podem encontrar-se em cada formação,10 por outro lado demonstrou como as relações recíprocas entre as categorias, suas funções no processo global, não apenas estão sujeitas a uma mudança histórica, mas também recebem o lugar adequado na totalidade num estágio avançado e somente agora adquirem a sua constituição adequada: assim o dinheiro, embora existindo já em sociedades relativamente primitivas,. só com o capitalismo assumiu no processo global a função correspondente à sua essência;11 do mesmo modo, o trabalho é uma categoria muito antiga, mas, considerada na sua simplicidade puramente econômica "é uma categoria tão moderna quanto o são as relações que produzem estas simples abstrações".12 Esta historicidade das categorias econômicas com os efeitos que ela produz sobre sua constituição, estrutura, dinâmica e modo de operar - elimina da esfera econômica, corretamente entendida em sentido ontológico, cada reificação que tenha introduzido o fetichizado pensamento burguês. Marx já escrevia na Miséria da Filosofia: "As máquinas não são uma categoria econômica mais do que o boi que puxa o arado. As máquinas não são senão uma força produtiva. A fábrica moderna, que se baseia no emprego das máquinas, é uma relação social de produção, uma categoria econômica".13 Isto esclarece porque somente os complexos dinâmicos, que são o fundamento da economia, devem ser considerados categorias da esfera econômica; logo, a concepção muito difundida - proclamada por Bukhárin, mas até hoje popular -, segundo a qual deveria se ver na técnica o "elemento" fundamental da economia, é de todo insustentável. Muito cedo, Marx, em Trabalho assalariado e capital, pesquisando um caso particular, nos dá um quadro plástico desta complexidade de fundo da esfera econômica, com seus efeitos sobre o ser social em geral: "Um negro é um negro. Somente em determinadas condições ele se torna um escravo. Uma máquina fiadora de algodão é uma máquina para fiar algodão. Somente em determinadas condições ela se torna capital. Subtraída dessas condições, ela não é capital, do mesmo modo que o ouro em si não é dinheiro, ou o açúcar não é o preço do açúcar. Na produção, os homens não agem só sobre a natureza, mas também uns sobre os outros. Eles produzem somente quando colaboram de um determinado modo e trocam reciprocamente a própria atividade. Para produzir, entram uns com os outros em determinadas ligações e relações, e a sua ação sobre a natureza, a produção, só se dá no quadro dessas ligações e relações sociais".14

9 K. Marx, Zur Kritik der politischen Okonomie, Sttutgart, 1919, p.77 (trad.it. di E. Cantimori Mezzamonti, Per la critica dell´econmia política, Roma, Editori Riuniti, 1972, p.70).10 K. Marx, Das Kapital, I, cit., p.9 (trad.it.cit.,p.75).11 K. Marx, Grundrisse, cit., p.23 (trad.it.cit., I, p.29).12 Ivi, p.24 (ivi, p.30).13 K. Marx, Das Elend der Philosophie, cit., p.117 (trad.it.cit.,p.192).

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Assim sendo, quando a esfera econômica é considerada ontologicamente, longe de preconceito, aparece logo sua importância, para compreender a totalidade e os grandes complexos parciais, assumindo como ponto de partida os complexos que funcionam, de modo elementar, ao invés de querer entender suas leis isolando artificiosamente alguns "elementos" e concatenando-os de maneira mecânico-metafísica. Onde conduz este último caminho, pode-se ver com facilidade considerando-se a crítica dirigida por Marx a tese de James Mill, segundo a qual, sendo cada compra uma venda (e vice-versa), com isso assegura-se "metafisicamente" um permanente equilíbrio na troca de mercadorias. Mil1 diz: "Nunca pode haver insuficiência de compradores para todas as mercadorias. Quem quer que ponha à venda uma mercadoria, exige receber uma outra em troca, e é então comprador somente pelo fato de ser vendedor. Compradores e vendedores de todas as mercadorias tomadas no seu conjunto, devem então equilibrar-se em virtude de uma necessidade metafísica". Marx contrapõe de saída o simples fato da circulação das mercadorias: "O equilíbrio metafísico das compras e das vendas limita-se ao fato de que cada compra é uma venda e cada venda é uma compra, o que não constitui um grande conforto para os portadores das mercadorias, os quais não conseguem vender, tampouco comprar".15 A tese de Mill baseia-se precisamente na idéia da isolabilidade e no isolamento típico da ação dos "elementos" do mundo econômico. Em sentido gnosiológico ou lógico, abstrato-formal, pode-se também afirmar com aparente segurança que cada compra é uma venda e vice-versa. Na circulação real das mercadorias, ao contrário, acontece que a mais simples, a mais elementar forma de troca é uma corrente, cujo elo mais simples é representado pelo nexo mercadoria-dinheiro-mercadoria ou dinheiro-mercadoria-dinheiro. E já nessa forma elementar aparece a contradição: "Ninguém pode vender, sem que outro compre. Mas ninguém precisa comprar logo, só pelo fato de ter vendido".16 Na vida econômica, isto é, quando se considera o ser autêntico e não uma figura artificialmente isolada, deformada na abstração, não existe nenhuma necessidade "metafísica" pela qual venda e compra devam ser idênticas. Ao contrário. E isto no plano ontológico depende mais uma vez do fato de que cada ato econômico apóia-se numa decisão alternativa. Quando alguém vendeu sua mercadoria e está na posse do dinheiro, deve decidir se compra ou não com esse dinheiro uma outra mercadoria. Quanto mais desenvolvida a economia, quanto mais socialmente determinada a sociedade, tanto mais complexa se torna essa alternativa, tanto mais indispensável se torna a causalidade, a relação heterogênea entre compra e venda. De fato, a divisão do trabalho "é um organismo natural espontâneo de produção, cujos fios foram tecidos e continuam a ser tecidos à revelia dos produtos de mercadoria".17

Ela torna tão unilateral o trabalho, quanto tornam-se multilaterais as necessidades. Para o produtor singular isso significa que a sua produção é o resultado de posições teleológicas que - seja pela quantidade, seja pela qualidade, podem ser justas ou falsas em relação às necessidades sociais que devam satisfazer e em relação ao trabalho socialmente necessário -, diz respeito àquela produção. O momento ideal, isto é, o complexo de idéias que determinam as posições teleológicas, constitui também aqui o momento da iniciativa, mas é ao mesmo tempo o momento da realidade (concordância ideal com o real) e o critério da realização.

Anteriormente vimos como tal papel do momento ideal não elimina absolutamente a legalidade objetiva do processo global. No momento em que cada posição teleológica pretende pôr em movimento cadeias causais reais, a legalidade desenvolve-se como síntese da sua dinâmica objetiva, na qual se afirma necessariamente, à revelia dos produtores singulares, prescindindo-se das suas idéias e intenções. Isto não significa, porém, que a contradição descrita seja irrelevante. Ao contrário. Precisamente, a diversidade das formas fenomênicas, dos efeitos, etc. que nas diferentes formações econômicas são diferentemente suscitadas pelo complexo elementar M-D-M, representa um momento de grande relevo no processo econômico global. Marx sustenta ainda que, em estágios mais avançados da economia, tornados sempre mais sociais, está implicitamente contido o germe das crises econômicas. Mas somente o germe, porque o realizar-se da crise "exige todo um conjunto de relações que, do ponto de vista da circulação simples das mercadorias, ainda não existe".18 Assim sendo, embora tais nexos entre "elementos" dinâmico-simplistas do ser social constituam decisões alternativas teleológicas e o processo econômico global seja considerado por Marx com grande cautela crítica, a sua análise revela com clareza que as leis econômicas objetivas, independentemente da decisão individual, aliás independente também da somatória social, definitivamente são na sua estrutura e dinâmica reconduzíveis a esses "elementos", às características das posições, à sua dialética de ideal e real. Por meio da crítica ontológica das generalizações teóricas de fatos econômicos elementares, concretiza-se em Marx a característica de última instância das conexões mais gerais na sua relação com as respectivas leis concretas. Como vimos, estas têm sempre o caráter histórico-concreto, de "se ... então". A sua forma generalizada, a sua elevação ao conceito, todavia, não é - em contraste com Hegel - a forma mais pura da necessidade e, nem mesmo, como pensam os kantianos ou os positivistas, uma mera generalização intelectual; ao contrário, no sentido meramente histórico, é uma possibilidade geral, um campo real de possibilidades para as realizações legais concretas de "se ... agora". Em uma das suas exposições sobre a teoria da crise, Marx sublinha fortemente esta diferença: "A possibilidade geral da crise é a 14 K. Marx, Lohnarbeit und Kapital, Berlin, 1931, p.28 (trad. It., in K.Marx-F.Engels, Opere scelte, Roma, Editori Riuniti, 1966, pp.340-341).15 K. Marx, Zur Kritik etc., cit., pp.86-87 (trad.it.cit. pp.77-78).16 K. Marx, Das Kapital, I, cit., p.77 (trad. It.cit., p.146).17 Ivi, pp.70-71 (ivi, p.139).18 Ivi, p.78 (ivi, p.146).

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metamorfose formal do capital mesmo, a separação temporal e espacial de compra e venda. Mas esta não é jamais a causa da crise. Porque não é senão a forma mais geral da crise, eqüivale dizer a crise mesma na sua expressão mais geral. Procura-se a sua causa, quando se quer saber por que esta é a sua forma abstrata, na forma da sua possibilidade, da possibilidade tornada realidade".19 Sobre, a importância decisiva desta concepção da legalidade, voltaremos a falar ainda profundamente no capítulo dedicado à ideologia. No momento, nos limitamos a observar que Marx, também nesse caso, entende a possibilidade no sentido da dynamis aristotélica e não simplesmente como uma categoria gnosiológica da modalidade.

Aparece claro, então, como a estrutura que, se exprime na recíproca polaridade dialética de ideal e real, por nós agora indicada, atravessa de um ponto a outro toda a esfera econômica e - sem ao menos prejudicar o objetivo dos nexos legais - exerce uma influência determinante sobre o conteúdo e sobre o modo de apresentar-se das suas realizações. A objetividade e a legalidade específicas da realidade econômica têm como sua base indispensável o fato de ser e Marx sublinha muitas vezes - um processo histórico, que é criado pelos próprios homens que estão interessados e constituem a sua história, realizada por eles mesmos. Aqui, também, a teoria marxiana do ser social, discutindo precisamente a problemática do seu fundamento material, a economia, põe luz à interdependência dialética, à referência recíproca, à indissolubilidade ontológica na economia entre as atividades humanas preparadas de forma ideal e a legalidade econômico-material desenvolvida a partir delas. Analisando a ontologia do trabalho, Marx demonstrou que é insustentável a tradicional contraposição entre teleologia e causalidade. Disso resulta que a dinâmica do ser natural é determinada pela causalidade sem a teleologia. Conclui-se disso que a interligação da causalidade e teleologia é uma característica ontológica primária do ser social. Por um lado a representação ou a intenção subjetiva de uma posição teleológica torna-se algo puramente mental, ou seja, uma intenção humana sem eficácia, quando não põe em movimento - diretamente ou de modo fortemente mediado - as correntes causais da natureza inorgânica ou orgânica. Na ontologia do ser social não há teleologia enquanto categoria do ser, sem uma causalidade que a realize. Por outro lado, todos os fatos e eventos que caracterizam o ser social enquanto tal são resultados de elos causais postos em movimento teleologicamente. Como é óbvio, há eventos causais que não são postos teleologicamente (terremotos, tempestades, o clima, etc.), que muitas vezes têm efeito relevante para o ser social concreto; e não somente em sentido destrutivo, mas também positivo (uma boa colheita, um vento favorável, etc.). Nos confrontos de determinados fenômenos naturais desse tipo, até a sociedade mais desenvolvida, ainda encontra-se vulnerável. Isto não exclui, porém, que o desenvolvimento econômico do ser social tenha uma força decisiva no domínio de forças naturais de qualquer tipo. Por outro lado, aqueles mesmos eventos naturais que, de alguma maneira não são dominados, provocam posições teleológicas e resultam assim inseridos a posteriori no ser social. E também se esse domínio da natureza pode apresentar-se apenas como tendência em contínuo progresso é nunca como estado modificado, é contudo evidente que a origem teleologicamente posta dos eventos e das objetividades constitui o elemento ontológico específico do ser social.

A análise até agora conduzida a respeito da constituição ontológica da esfera econômica dá a esta união dialética entre causalidade e teleologia - embora heterogeneamente - uma figura mais concreta do que a inter-relação acenada entre momento ideal e real. A concretização ontológica depende objetivamente do fato de que diante da causalidade natural não existe mais somente a posição teleológico-humana que a move mas, ao invés, já no campo da economia pura, o ser social também, menos composto, é movido pelas atividades humanas. Quando a troca de mercadorias realiza-se, temos um processo que acontece diretamente e no terreno do ser social, onde obviamente a intervenção teleológica na causalidade natural - não importa quando mediado - é a base suprimível, o que porém não elimina o caráter essencialmente social da troca de mercadorias, a índole social das suas categorias. Aqui, de fato, no campo da economia pura, não precisamos dizer que isto se verifica sempre no intercâmbio orgânico com a natureza, onde são movidas aquelas posições teleológicas cuja finalidade é a de influenciar outros homens. Atrás da fórmula M-D-M esconde-se, em cada caso, a realidade de um grande número de posições teleológicas desse feitio; algumas se realizam, outras não. O homem que cumpre a posição teleológica no âmbito da economia, está também diante da totalidade do ser, e enquanto o ser social aí desenvolve um decisivo papel de mediações, pois o confronto com o ser natural nunca pode ser totalmente imediato, mas passa sempre pela mediação econômica, no curso desse desenvolvimento torna-se sempre mais mediatizado. O momento ideal da posição econômica, aquele que agora nos interessa, tem como seu oposto polar o momento real, que tais mediações tornam predominantemente social. Isto retroage no tipo de decisões alternativas que intervém, em relação à componente ideal. Como o simples fato da interligação entre teleologia e causalidade ter significado uma ruptura radical com todas as velhas soluções filosóficas sobre esta relação, então a situação geral que existe no âmbito da economia nos fornece um ulterior ponto de apoio para iluminar as relações da atividade humana, da práxis humana, com a legalidade daquele ser que para esta representa o pressuposto, o ambiente e o objeto. A partir do momento em que, tanto neste caso, como também no trabalho, temos que lidar com a gênese do complexo de problemas constituído pela liberdade e necessidade, a questão não pode mais ser tratada aqui, no seu nível máximo de desenvolvimento.

19 K. Marx, Theórien über den Mehrwert, II, 2, cit., p.289 (trad.it.cit.p.557).

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E, embora a possibilidade e necessidade ontológicas de decisões alternativas representem a base de toda liberdade - para aqueles seres que não devem e nem podem ter alternativas como fundamento prático da própria existência, a questão da liberdade não se põe tampouco -, as duas coisas não são idênticas entre si. Sem entrarmos por ora no problema da liberdade, podemos todavia dizer, como resultado da ontologia marxiana do ser social, que na práxis não existe nenhum ato que não tenha como seu fundamento uma decisão alternativa. Uma contraposição metafísica entre necessidade (não liberdade absoluta) e liberdade jamais existiu no ser social. Existem simplesmente estágios de desenvolvimento da práxis humana, que se podem individualizar na sua gênese, determinados pela dialética histórico-social que, em correspondência as suas condições e exigências, com modos diferentes de apresentar-se, com formas e conteúdos diferentes, não produzem, reproduzem, desenvolvem, problematizam, etc., socialmente a essência, sempre e em cada caso fundada sobre decisões alternativas. Isto deriva da constituição ontológica do ser social, na qual nunca aparece uma necessidade não determinada na gênese por atos conscientes. Evidentemente, como vimos na análise do trabalho, as conseqüências causais dos atos teleológicos afastam-se das intenções dos sujeitos que põem aliás, indo muitas vezes até em sentido oposto. Mas quando, só para repetir um exemplo do qual nos servimos freqüentemente, a tentativa de obter um super-lucro num estágio determinado de desenvolvimento capitalista determina a queda da taxa de lucro, defrontamo-nos com um processo que ontologicamente difere daqueles que se realizam, determinados pelas leis naturais, como as diferentes constelações, uma pedra rolando de cima para baixo, ou alguns vírus provocando uma doença no organismo.

Assim, a totalidade do ser social, nos seus traços ontológicos fundamentais, é construída sobre as posições teleológicas da práxis humana; isto, no seu sentido formal, sem levar em conta o grau de correção com o qual o ser, falando em geral, é captado pelos conteúdos teóricos destas posições, dado que elas podem somente realizar suas finalidades imediatas, e, obviamente sem levar em conta a correspondência ou não entre as intenções dos sujeitos que põem e seus efeitos causais. Do ponto de vista objetivo, o que conta são quais as cadeias causais postas em movimento por estas posições e quais efeitos produzam na totalidade do ser social. Para vermos com toda clareza os problemas ontológicos que daí derivam, nos parece necessário considerar um pouco mais de perto estas posições teleológicas, com referência seja à sua constituição objetivo-estrutural, seja à sua ação sobre os sujeitos que põem. Já que sobre este ponto, os simples fatos da ontologia do ser social contradizem absolutamente algumas veneradas tradições fìlosóficas que, partindo dos fenômenos mais evoluídos e complexos, os examina no seu isolamento metafísico, lógico, gnosiológico; consequentemente, jamais conseguirão penetrar na sua gênese, no real fundamento do ser, na chave para decifrar a sua ontologia. No plano objetivo, os "elementos" do ser social aqui indagados não implicam em outra coisa que: cadeias causais reais podem ser movidas por uma posição teleológica. As interligações causais existem completamente independentes de qualquer teleologia; esta, ao contrário, pressupõe uma realidade que, seja movida pela primeira: as posições teleológicas são possíveis só num ser determinado causalmente. De fato, são realizáveis só quando podemos contar de maneira absoluta com o funcionamento contínuo de uma cadeia causal cujo conhecimento prático seja concreto. Embora isso resulte simples, este nexo entre causalidade e teleologia na história da filosofia, só foi visto por Aristóteles e Hegel. E mesmo assim de modo parcial e não em todas as suas conseqüências. Nìcolai Hartmann foi o único filósofo burguês de nossos dias que, dentro de certos limites, viu o sentido real dos problemas do ser; ele tentou recolocar para o público filosófico a análise de Aristóteles, embora trazendo exemplos tirados do campo do trabalho, da arquitetura e da medicina, para iluminarem concretamente a maneira de ser da teleologia; no entanto, incorreu na incoerência de fundar sua teleologia do mesmo modo que a sua concepção da natureza. Hartmann vê, com justo sentido crítico, que na teleologia aristotélica estão excluídos todos os processos "que não são guiados pela consciência"; consequentemente, as concepções da natureza e da história têm somente caráter teleológico. Hartmann, além disso, completa a análise aristotélica, que distinguia noesis e poiesis, subdividindo posteriormente o primeiro ato em "posição da finalidade" e o outro em "seleção de meios". Com isso, ele realiza um progresso real na aproximação do fenômeno, dando passos essenciais em direção à visão concreta da posição teleológica, quando nos mostra que o primeiro ato contém em si um endereçar-se do sujeito ao objeto (somente pensado), enquanto que o segundo é uma "determinação retroativa", enquanto são construídos retroagindo, a partir do novo objeto planificado, os passos que lá conduzem.20 Os limites da concepção de Hartmann mostram com a máxima evidência que ele não analisa posteriormente o ato da posição da finalidade e contenta-se em afirmar, não incorreta mas insuficientemente, que esta posição parte da consciência, em direção ao futuro, em direção a alguma coisa que ainda não existe. Mas na realidade, a posição da finalidade tem uma gênese e uma função social muito concretas. Estas provêm das necessidades dos homens, não simplesmente das necessidades em geral, mas de desejos explícitos, particulares, de obter a satisfação efetiva; por isso, são estes desejos junto a circunstâncias e aos meios concretos e possibilidades socialmente existentes, que determinam de fato a posição da finalidade, e fica claro que a seleção de meios, assim como a forma de realização, tornaram-se ao mesmo tempo possíveis e são delimitadas pela totalidade das circunstâncias. Somente assim, a posição teleológica pode tornar-se o veículo central do homem - seja no plano individual, seja genérico -, só assim ela se mostra categoria específica elementar que distingue qualitativamente o ser social do ser natural.

20 N. Hartmann, Teleologisches Denken, cit., pp.65-67.

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Uma tal concretização - que se coloca muito além das considerações abstrato-gnosiológicas, como aquela segundo a qual o movimento parcial entre este complexo iria do sujeito ao objeto, ou vice-versa - é absolutamente necessária para compreender que também uma outra questão secular ainda não resolvida na história da filosofia, pode encontrar a correta resposta ontológico-genética, precisamente a partir deste complexo. Referimo-nos ainda ao problema da liberdade. Igualmente para a relação entre causalidade e teleologia, de acordo com a maneira de ver precedente, temos que sublinhar que o problema da liberdade pode ser posto de maneira sensata apenas numa relação de complementaridade com a necessidade. Se na realidade não existe nenhuma necessidade, tampouco seria possível a liberdade, a qual não existiria no mundo dominado pelo determinismo de Laplace, do "eterno retorno" de Nietzsche, e assim por diante. Já temos acentuado várias vezes a característica, existente de fato, do "se .:. então" da necessidade e estamos certos de que o problema da liberdade pode ser posto de modo correto e colado na realidade somente partindo do ser deste complexo, da forma normal de seu funcionamento e da sua gênese enquanto parte constitutiva do ser social. No entanto, é evidente que aqui podemos discutir e dar resposta apenas à última questão. O complexo global da liberdade pode ser estudado adequadamente somente no quadro da Ética. Mas de qualquer forma, para colocar o problema corretamente, essa questão precisa ser analisada através do esclarecimento da sua gênese. Nesse caso, a gênese, da qual de fato temos falado, é a decisão alternativa, sempre e necessariamente presente no processo de trabalho. Na verdade, também em seu sentido primordial, é incorreto simplificar a coisa e limitar-se a vê-la somente na posição da finalidade. Indubitavelmente esta é uma decisão alternativa, mas a sua realização, tanto nos preparativos mentais quanto no seu traduzir-se em prática, unicamente, não é um simples evento causal, a simples conseqüência causal de uma precedente deliberação. Nos devidos termos da sua realização, esta deliberação assume o significado de um programa concreto, isto é, de um campo de possibilidade real, delimitado e consequentemente tornado concreto.

Não é necessária uma análise profunda - isto pode ser confirmado por cada experiência cotidiana - para ver que tanto nos preparativos mentais do trabalho, sejam eles científicos ou apenas empírico-práticos, quanto na sua execução efetiva, nos encontramos sempre diante de uma completa cadeia de decisões alternativas. Desde a escolha entre os gestos da mão, dos quais cada vez procura-se aquele mais oportuno e recusa-se aquele menos apto, até a escolha entre procedimentos parecidos efetuados no curso da planificação mental, é sempre visível, com toda evidência, esta série de deliberações, igualmente entre o campo concreto do plano concreto global. O fato é que na cotidianidade média esse processo, que nem sempre é considerado por todos, deriva diretamente da experiência do trabalho, a qual baseia-se substancialmente na fixação em reflexos condicionados e também em atos "inconscientes" de ações singulares que já se mostram eficazes; mas, geneticamente, cada reflexo condicionado foi alguma vez objeto de decisões alternativas. Naturalmente isso não anula o processo causal como conseqüência da posição teleológica; simplesmente este não vem movido novamente por uma única posição teleológica, mas vem, ao contrário, continuamente diferenciado, ajustado, melhorado, ou piorado, pelas decisões singulares da realização objetiva, obviamente dentro da linha de fundo estabelecida pela posição da finalidade geral. E cada um pode verificar que esta estrutura é válida em todos os campos nos quais apareçam posições teleológicas, observando qualquer colóquio: de inicio, pode-se também ter um objetivo geral e que se quer perseguir por meio deste colóquio, mas a cada frase pronunciada, seu efeito ou a sua falta de efeito, a réplica e talvez o silêncio do interlocutor, etc., dão lugar forçosamente a uma série de novas decisões alternativas. No entanto, quer seu campo de possibilidades seja maior, mais extenso, etc. do que aquele que se tem em sentido restrito no trabalho. físico, não será nenhuma surpresa para qualquer um que saiba o que estamos falando sobre os dois tipos de posições teleológicas.

Assim sendo, já delineamos nos seus traços mais elementares o "fenômeno originário" da liberdade no ser social dos homens. Isto é, todos os momentos do processo da vida sócio-humana, quando não têm uma característica biológica totalmente espontâneo-necessária (respirar), são resultados causais de posicionamentos e não simplesmente anéis de cadeias causais. Naturalmente, a decisão alternativa dos homens não se restringe simplesmente ao nível do trabalho; de fato, vimos que as posições teleológicas que não se destinam ao intercâmbio orgânico com a natureza, mas são direcionadas à consciência de outros homens, com relação a este aspecto revelam a mesma estrutura e dinâmica. E embora sejam complexas as manifestações da vida produzidas pela divisão social do trabalho que se elevam até as máximas atividades espirituais dos homens, na sua base funcionam as decisões alternativas. Naturalmente isto significa que a especificidade da gênese conserva-se em termos extremamente gerais e consequentemente abstratos. Conteúdo e forma sofrem continuamente mudanças qualitativas radicais e, por isso, não se pode e nem se deve simples mente "deduzi-los" da forma originária da gênese, entendendo-os como suas meras variantes. Mas o fato de que esta forma originária, apesar de todas as mudanças, permanece presente, revela que se trata de uma forma elementar e fundamental do ser social, da mesma maneira como, por exemplo, a reprodução do organismo, que apesar de todas as suas mudanças qualitativas, permanece analogamente uma forma continuamente da natureza. Sabemos ainda, como sublinhamos anteriormente que o desenvolvimento e a constituição dos tipos fenomênicos superiores de decisões alternativas, ainda que possam ser discutidos de maneira adequada, sobretudo na Ética, todavia, também neste lugar é possível antecipar algumas observações muito gerais, podendo-se dizer alguma coisa a respeito da essência e da sua realização real. Desde o início, para não haver mal-entendido, revelamos que a usual generalização filosófica de uma única e - metafisicamente - indivisível liberdade é para nós uma construção intelectual vazia. O desenvolvimento da sociedade produz sempre novos campos da práxis humana, nos quais o que

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vem geralmente chamado de liberdade em geral, aparece repleto de conteúdos diferentes, plasmado em estruturas diferentes, operando com diferentes dinâmicas, etc. Entretanto, esta multiplicidade não leva a algo de heterogêneo e descontínuo, nem do ponto de vista da sucessão histórica, nem mesmo da presença simultânea numa mesma sociedade; estas diversas encarnações relacionam-se umas com as outras, sem porém nunca se fundirem completamente numa unidade (por exemplo, a liberdade jurídica com a moral). Apesar de todas as modificações históricas e sociais, permanece o dado da multiplicidade, e isto significa que no refletir sobre ela, quando não se quer violentar os fatos como são, precisa-se respeitar sempre a especificidade das esferas, do campo, etc. Por isso, temos que adiar a exposição e a análise na Ética, onde este crescimento em direção da complexidade poderá ser tratado em termos histórico-sociais, em direção do nível - de imediato - puramente espiritual e individual; onde este pluralismo das liberdades poderá receber uma fundamentação ontológica, ao invés de mero conceito abstrato, metafisicamente unitário, da liberdade como tem sido aceita em muitos sistemas filosóficos.

Apesar disso - embora permanecendo plenamente nesta concepção pluralista -, tem sentido ontológico discutir em geral as decisões alternativas. Quando falamos que a decisão de um homem primitivo, ao polir uma pedra, ao colocar a mão um pouco para o alto à direita e não em baixo à esquerda é uma decisão, alternativa tanto quanto aquela de Antígona que sepultou o irmão contra a proibição de Creonte, não registramos simplesmente uma peculiaridade abstrata comum a dois processos fenomênicos completamente heterogêneos, mas enunciamos alguma coisa que capta seus importantes aspectos comuns. O lado objetivo desta ligação interna entre fenômenos completamente heterogêneos é constituído pelo fato de que seus atos são repletos de valores. Já dissemos, falando do trabalho, que seu produto é por necessidade ontológica bem sucedido ou não, útil ou inútil, etc.; com isso temos que, no ser social, os objetivos têm uma constituição completamente estranha a cada objetividade natural; sua base é formada exclusivamente pelo processo de reprodução social. Todas as transformações que o trabalho, primordialmente, exerça sobre os objetos naturais são mediadas pela relação formada entre seu decurso e seus resultados por um lado, e o processo de reprodução pelo outro; e a aplicação desta medida tem uma ineliminável característica de valor que quer dizer que existe objetivamente a polaridade alternativa entre válido e não válido. Que a valorização aparece imediatamente como um ato subjetivo, não nos deve induzir a errar. O juízo subjetivo da aptidão ou não desta ou daquela pedra para polir outras pedras baseia-se no fato objetivo da sua aptidão; em casos singulares, o juízo objetivo pode também não considerar a validade ou não-validade objetiva, mas o critério real de qualquer forma possui caráter objetivo. E o desenvolvimento social consiste precisamente na afirmação tendencial na práxis do que é objetivamente válido. Igualmente, sempre nos cursos dos movimentos desiguais e sempre no quadro de que para as ações dos homens é cada vez realizável pelo hic et nunc histórico-social. O motivo de tal insuprimibilidade das valorizações está no fato de que os objetos do ser social são, não simplesmente objetividade, mas sempre objetivações. E isto vale também para aqueles eventos naturais não transformados que intervém no ser social (talvez porque não sejam transferíveis). O vento é um fator da natureza que por si só não tem nada a ver com as idéias de valor. Os navegantes, porém, desde tempos antiquíssimos, sempre falaram de ventos favoráveis ou desfavoráveis; de fato, pois no processo de trabalho da navegação à vela, do lugar "x" para o lugar "y", há uma força e direção do vento e o mesmo rumo que, em geral, tem as propriedades materiais do meio e do objeto do trabalho. Nesse caso, então, o vento favorável ou desfavorável é um objeto no âmbito do ser social, do intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza; e a validade e não-validade fazem parte das suas propriedades objetivas, enquanto momentos de um complexo concreto do processo de trabalho. O fato de que o mesmo vento seja considerado favorável por um navegante e desfavorável por outro não introduz nenhum subjetivismo na valorização: o vento, de fato, somente num determinado processo concreto torna-se momento de uma objetivação social; só dentro desse complexo essencial suas propriedades podem ter valor ou desvalor, e seu modo de manter-se inteiramente nesta conexão é precisamente objetivo e não subjetivo.

Se podemos então dizer que nas decisões alternativas do trabalho se esconde o "fenômeno originário" da liberdade, é porque ele põe em movimento os primeiros atos nos quais e por meio dos quais surgem as objetivações, as quais, de um lado, conforme seu ser diferem-se das simples transformações espontâneas de um ente em um ser-outro e, de outro lado, podem tornar-se, consequentemente, o veículo através do qual surge alguma coisa de realmente novo; podem tornar-se algo que não apenas transforma objetivamente o ser social, mas que torna a transformação objeto de uma posição desejada pelo homem. Assim sendo, o "fenômeno originário" não consiste na simples escolha entre duas possibilidades - algo parecido acontece também na vida dos animais superiores -, mas na escolha entre o que possui e o que não possui valor, eventualmente (em estágios superiores) entre duas espécies diversas de valores, entre complexos de valores, precisamente porque não se escolhe entre objetos de maneira biologicamente determinada, numa definição estática, mas ao contrário, resolve-se em termos práticos, ativos, se e como determinadas objetivações podem vir realizadas. O desenvolvimento da sociedade humana - considerada sob o ponto de vista dos sujeitos humanos - consiste substancialmente no fato de que todos os passos da vida do homem, desde aqueles mais cotidianos aos mais elevados, são dominados por estas decisões. Qualquer que seja a consciência que os homens têm deste fundamento de todas as suas ações - em cada sociedade a vida produz continuamente circunstâncias que podem ocultar esse estado de coisas -, eles têm de qualquer forma alguma sensação, embora muito indistinta, de fazer a própria vida, por si só, por meio dessas decisões alternativas. Por isso, nunca pode desaparecer completamente da sua vida emotiva aquele complexo de experiências anteriores nas quais apoia-se a idéia filosófica da liberdade; consequentemente, as

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idéias de liberdade e as tentativas de traduzi-las em prática são uma constante na história humana e aparecem, em parte, em primeiro plano, em cada tentativa dos homens de esclarecerem eles mesmos as suas atitudes em relação ao mundo, assim como aparece também, em parte, no primeiro plano, no seu pólo oposto, ou seja, a necessidade, ela também experimenta continuamente na vida cotidiana. Mas nossas considerações tencionavam chegar só até o ponto em que o problema resultasse visível na sua generalidade. As exposições concretas poderão ter lugar somente na Ética.

Então, se queremos entender em termos ao menos aproximadamente adequados a estrutura essencial e dinâmica interna da economia no ser social, devemos - especialmente aqui, onde nosso interesse à dirigido à colocação e função ontológica do momento ideal e, mais adiante, da ideologia - dar uma olhada no problema ontológico do fenômeno e da essência no ser social. Não é este o lugar para analisarmos esta relação nas outras formas de ser. Existe de fato uma especificidade, uma diferença qualitativa, ou seja, que o mundo fenomênico do ser social constitui o fator pelo qual é posta em movimento a maior parte das posições teleológicas que determinam imediatamente sua constituição e desenvolvimento, assumindo também uma parte importante na dialética objetiva do fenômeno e essência; a natureza, ao contrário - a natureza em-si, não enquanto terreno do intercâmbio entre sociedade e a natureza -, mostra-se completamente indiferente às reações suscitadas pela sua essência e pelo seu modo de apresentar-se. Resta um mero problema cognitivo, privado de conseqüência ontológica, aquele de saber se os observadores da natureza de se detêm no fenômeno (apenas na aparência), ou se penetram até a essência. Isto, para dizer a verdade, não se refere mais à natureza como objeto. do intercâmbio orgânico com a sociedade, mas também aqui o conhecimento e a posição teleológica daí derivada podem influenciar somente os efeitos provocados no mundo sócio-econômico das legalidades naturais e não estas mesmas legalidades. Para evitar qualquer mal-entendido, repetimos com toda energia o caráter "se...então", já várias vezes sublinhado, de todas as relações necessárias entre as legalidades. De fato, quando se absolutiza abstratamente termos lógicos ou gnosiológicos, o conceito de necessidade, nos casos em que a ciência natural produz (por exemplo, de modo experimental) fenômenos que não aparecem na natureza por nós conhecida, pode-se ter a falsa aparência de que se trata de fenômenos novos em relação à natureza. Na verdade, pode-se afirmar somente que, por exemplo, uma experiência iluminou uma nova relação "se ... então" por nós ainda não encontrada na realidade conhecida até hoje; isto comprova a real possibilidade ontológico-natural precisamente desta relação "se ... então", enquanto por ora não haja prejuízo se e, eventualmente, quando e onde a natureza mesma produza uma tal relação "se ... então" prescindindo do homem. Qualitativamente diferente é, pelo contrário, o papel da natureza no intercâmbio orgânico com a sociedade. Aqui os conhecimentos acerca da essência de alguma conexão natural podem ter efeitos sociais revolucionários, seja no desenvolvimento das forças produtivas (vapor, eletricidade, etc.), seja, da mesma forma, na ideologia (os efeitos da astronomia copérnica na imagem do mundo possuída pelos homens).

Depois desta rápida e obrigatória digressão, podemos voltar ao ser social mesmo, iniciando nosso discurso com a importante enunciação metodológica de Marx - que se refere contudo à totalidade complexa do problema fenômeno-essência - a qual soa: "Toda ciência seria supérflua se a aparência das coisas coincidisse diretamente com sua essência"21. No célebre capítulo sobre o caráter do fetiche da mercadoria, Marx ilumina, pode-se dizer, a estrutura originária do mundo fenomênico da economia, em contraposição com a essência que está na sua base: "O mistério da forma das mercadorias consiste simplesmente no fato de que tal forma, como no espelho, restitui aos homens a imagem dos caracteres sociais do seu próprio trabalho, fazendo-lhes aparecer como caracteres objetivos dos produtos do seu próprio trabalho, como propriedades sociais naturais daquelas coisas, e então restabelece também a imagem das relações sociais entre produtores e trabalho existente fora deles".22 Este é naturalmente só um caso típico mais originário do movimento do ser social que estamos examinando por ora, no setor da práxis econômica. Quanto mais evoluída, quanto mais social se torna a vida econômica, tanto mais. claro nela .se torna o predomínio desta relação entre fenômeno e essência. No conjunto com o seu fundamento ontológico, isto resulta visivelmente claro quando Marx discute a forma fenomênica, difundidíssima no capitalismo, do dinheiro que, aparentemente, gera dinheiro. Ele conclui sua análise com esta caracterização do fenômeno: "Mas isto é expresso apenas como resultado, sem a mediação do processo, do qual este é o resultado".23 Vem assim precisado com exatidão no plano ontológico um importante traço comum dos modos fenomênicos no processo econômico: no ser social e antes de tudo no campo da economia, onde cada objeto é, por sua essência, um complexo processual; este, porém, no mundo fenomênico, apresenta-se muitas vezes como um objeto estático, firmemente definido; o fenômeno, aqui, torna-se fenômeno precisamente fazendo desaparecer, de imediato, o processo ao qual deve sua existência de fenômeno. E é de grande importância social essa maneira de a essência apresentar-se, isto é, do processo econômico. Em outro lugar, Marx nos oferece um panorama em que vemos quais relevantes orientações teóricas dos pensadores de primeiro plano, quais decisivas orientações práticas de períodos culturais inteiros são decorrentes de um tal modo de apresentação do dinheiro. A gênese real do dinheiro, em nada misteriosa, foi descrita por Marx, no âmbito da análise da relação da mercadoria, de modo ontologicamente restrito como simples, óbvia necessidade de sua gênese econômica. Ele de fato mostrou como a forma geral do valor transformou em figura independente da vida econômica a sua encarnação já

21 K. Marx, Das Kapital, III, 2, cit., p.352 (trad.it.cit., p.930).22 K. Marx, Das Kapital, I, cit., p.38 (trad.it.cit., p.104).23 K. Marx, Das Kapital, II, cit., p. 21 (trad.it., p.49).

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adotada na prática, o dinheiro: "O ouro apresentase como dinheiro nas relações das. outras mercadorias só porque já anteriormente tinha se apresentado como mercadoria nas suas relações. Ele também funcionou como eqüivalente, como todas as outras mercadorias: seja como equivalente singular em atos isolados de troca, seja como equivalente em particular ao lado de outros equivalentes de mercadorias. Aos poucos ele tem funcionado, em esferas mais ou menos amplas, como equivalente geral; logo que conquistou o monopólio dessa posição na expressão do valor no mundo das mercadorias, tornou-se mercadoria-dìnheiro, e somente no .momento em que ele tornou-se dinheiro ... a forma geral do valor foi transformada na forma de dinheiro". 24 Bem, esta clara perspicácia da real gênese econômica da essência está em contraste no mais alto grau com a opacidade fetichizadora, muitas vezes mítica, do mundo fenomênico que a ela corresponde. Também nesse ponto Marx nos oferece uma clara exposição sintética que devemos citar, apesar de sua amplitude, para tornar visível concretamente o contraste entre a relativa simplicidade da gênese e a constituição da essência, ao invés da confusão do mundo fenomênico da economia. Diz Marx: o dinheiro "não é uma forma simplesmente mediadora da troca de mercadorias. E uma forma do valor de troca surgida do processo de circulação, um produto social que se produz por si, através das relações em geral que os indivíduos estabelecem entre si na circulação. Não apenas ouro e prata (ou qualquer outra mercadoria) desenvolvem-se como medida de valor e meio de circulação ... Eles tornam-se dinheiro sem a intervenção e sem a vontade da sociedade. O seu poder aparece como um fato, e a consciência dos homens, especialmente em situações sociais que determinam o mais profundo desenvolvimento das relações do valor de troca, rebela-se contra o poder que um objeto, uma coisa obtém frente a ele, contra a autoridade do metal maldito, que aparece como mera loucura. E somente no dinheiro, nesta que é a forma mais abstrata, mais absurda, mais inconcebível- uma forma em que cada mediação é superada - e no dinheiro as relações sociais recíprocas aparecem transformadas numa relação social que fixa, domina, e assume sob si os indivíduos. Fenômeno tanto mais duro quando surge do indivíduo privado, atomisticamente e arbitrariamente livre, que está em relação com outra pessoa na produção somente através de necessidades recíprocas ... Os filósofos antigos, mesmo Boiguillebert, consideram isto como uma perversão e um abuso do dinheiro, o qual de servo torna-se patrão, despreza a riqueza natural, suprime a simetria dos equivalentes. Platão na República quer constranger o dinheiro a ser simples meio de circulação e medida, não quer que se torne dinheiro enquanto tal. Aristóteles, na forma M-D-M, em que o dinheiro funciona somente como medida e moeda, vê então o movimento que ele chama econômico e que considera como natural e racional; enquanto condena como antinatural, contrário à finalidade, a forma D-M-D, chamada por ele de cremástica. O que aqui é combatido, é só o valor de troca como tal; o fato de que o valor como tal se torne finalidade da troca e adquira forma independente, antes de tudo na forma simples e manifesta do dinheiro". 25

Pior que superficial seria ridicularizar como preconceito da época primitiva a mitificação do poder do dinheiro, a sua fetichização na vida cotidiana, e orgulhar-se das visões maduras das formações superiores. De fato, a formação capitalista desenvolvida produz uma análoga forma fenomênica distorcida, que para os homens práticos na sua ação e para os portavozes teóricos desta práxis é tão pouco transparente, quão pouco o era para os gregos o enigmático poder do dinheiro. Referíamo-nos ao ocultamento econômico espontâneo da práxis capitalista inevitável da mais-valia por obra do lucro; aquele mundo fenomênico capitalista, em que a mais-valia desaparece completamente atrás do lucro e que a conseqüente reificação, que deforma a essência do processo torna-se a sólida base real de cada práxis capitalista. Marx descreveu com a máxima exatidão também esse processo: "A mais-valia, enquanto é posta pelo capital mesmo e medida pela sua relação numérica com o valor global do capital, é o lucro. O trabalho vivo apropriado e captado pelo capital apresenta-se como força vital do capita1 mesmo; como sua força auto-reprodutora, além disso modificada pelo mesmo movimento do capital, a circulação, e pelo tempo conexo ao seu movimento, o tempo de circulação. Somente assim o capital é posto como valor que se renova perenemente e se multiplica, enquanto se distingue, como valor pressuposto, por si mesmo como valor posto. No momento em que o capital entra inteiramente na produção, e como capital suas várias partes constitutivas distinguem-se apenas formalmente uma da outra, são, isto é, todas na mesma medida, soma de valor; a criação do valor é imanente na mesma medida a. elas todas. Além disso, do momento em que a parte do capital que se troca com trabalho tem efeitos produtivos apenas junto às outras partes do capital- e a relação desta produtividade pela grandeza do valor etc, pela determinação recíproca diferente destas partes (como o capital fixo, etc.) - a criação da mais-valia, do lucro, apresenta-se determinada na mesma medida para todas as partes do capital. Por um lado, porque para uma parte, as condições do ,trabalho são postas como e1ementos objetivos do capital, e por outro lado, o trabalho mesmo é posto como uma atividade nele incorporada, o processo de trabalho inteiro é posto como processo próprio do capital e a criação da mais-valia se apresenta como mais um de seus produtos, cuja grandeza por isso mesmo não é medida por meio do mais-trabalho que ele obriga o operário a fazer, mas com a produtividade majorada que ele confere ao trabalho. O produto verdadeiro e próprio do capital é o lucro. Nesse sentido, o capital é agora posto como fonte de riqueza". 26

24 K. Marx, Das Kapital, I, cit., pp.36-37 (trad.it.cit.,p.102).25 K. Marx, Grundrisse, cit., pp.928-929 (trad.it. di M. Tronti, Frammento del texto primitivo (1858) di “Per la crítica dell’economia política, in K. Marx, Seritti inediti di economia política, Roma, Editori Riuniti, 1963, pp. 105-107.26 Ivi, pp.706-707 (trad.it., Lineamenti ecc., cit., II, pp. 562-563).

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Ainda mais uma vez temos de lidar com um mundo fenomênico surgido da dialética própria da produção econômica, com um mundo fenomênico que no seu ser-próprio-assim é a realidade, não a aparência; e, de fato, na prática cotidiana do capitalismo constitui-se a base real imediata das posições teleológicas, sem que estas últimas - como aconteceria se fossem embasadas numa aparência não correspondente a nenhuma realidade - acabassem por rebocar a si mesmas, uma vez que põem alguma coisa de irreal. Ao contrário: a constituição assim dada deste mundo fenomênico é o fundamental real e imediato de todas aquelas posições pelas quais a reprodução real do sistema econômico inteiro pode-se conservar e crescer ulteriormente. Também aqui a verdade sobre o mundo fenomênico pode iluminar apenas a indagação ontológico-genética a respeito da essência; apesar disso, como já observamos analisando o trabalho, pode constituir um sólido fundamento imediato para as posições teleológicas da práxis cotidiana. Marx descreve essas relações da seguinte maneira: "Mais-valia e taxa de mais-valia são, em sentido relativo, o invisível, o essencial a descobrir, enquanto a taxa de lucro e então o lucro, forma da mais-valia, mostram-se na superfície do fenômeno". 27 É claro que a constituição aqui descrita do mundo fenomênico da economia domina o complexo problemático inteiro, já lembrado muitas vezes, das taxas médias de lucro; e, de fato, sua base econômico-ontológica foi dada pelo desaparecimento da mais-valia atrás do lucro. A relação essencial, aqui decisiva, que no mundo fenomênico desaparece, é iluminada por Marx da seguinte maneira "A progressiva tendência à diminuição da taxa geral de lucro é tão somente uma expressão peculiar ao modo de produção capitalista,, do desenvolvimento progressivo da força produtiva social. do trabalho". 28

Do processo econômico do capitalismo, desenvolve-se necessariamente, a reificação da objetividade social como mundo fenomênico objetivo; e, naturalmente também o espelhamento deste correspondente na consciência dos homens que cumprem suas posições práticas neste mundo fenomênico imediato que vivem neste mundo, cujas ações são respostas às perguntas que ele subleva. A transformação da mais-valia em lucro é aqui fator decisivo. Marx o descreve nestes termos: "Na mesma medida em que a imagem do lucro esconde seu núcleo interno, o capital assume uma figura sempre mais coisificada; de uma relação, se transforma sempre numa coisa, uma coisa que se confronta assim mesmo com uma vida e uma autonomia fictícia, um ser sensivelmente ultra-sensível; e nesta .forma de capital e lucro aparecem na superfície, como um pressuposto acabado. É a forma de sua realidade, ou melhor sua verdadeira forma de existência".29 Tal realidade impõe-se em cada relação que nasce nesse terreno. Assim acontece pois, a causa da distorção da reificação: é que a renda fundiária apresenta-se como um produto do solo: "A renda, como cada figura criada da produção capitalista, aparece ao mesmo tempo como um pressuposto fixo, dado, presente em cada instante e, então, para o indivíduo independente. O arrendatário deve pagar uma renda, em particular um tanto para uma unidade de medida conforme a qualidade do terreno".30 No momento em que, no mundo fenomênico do capitalismo desaparece a mais-valia, aparecem entidades reificadas deste tipo, nas quais sua subjetiva unidade comum, propriamente a mais-valia, "torna-se sempre mais irreconhecível e não se revela no fenômeno, mas deve ser descoberta como um mistério escondido". 31

Esta distorção fenomênica da essência, produzida pelo desaparecimento do verdadeiro processo produtivo, não pode ter lugar também na produção direta da mais-valia. Sabemos que a essência do progresso econômico consiste, antes de tudo, no fato de que o trabalho necessário à reprodução da vida daqueles mesmos que trabalham, representa pouco a pouco uma porcentagem sempre menor do trabalho global que eles socialmente prestam. Este desenvolvimento da essência verifica-se, embora em muitos aspectos desiguais, a partir do momento em que surgiu a escravidão. E a estrutura das formações econômicas é, na substância, determinada pelo modo no qual - sob tais condições, entre tais determinações econômicas - tem lugar o nascimento e a apropriação do trabalho excedente (mais-valia). Ora, Marx demonstra que não apenas neste desenvolvimento econômico existem desigualdades substanciais, mas que os modos de apropriação presente nas diferentes formações ou revelam, ou escondem esta relação. E interessante notar como o feudalismo é a única formação na qual a relação entre o trabalho prestado para a reprodução própria e a mais-valia vem à luz, em termos separados e distintos, enquanto que, tanto na escravidão como no capitalismo, embora de maneira contraposta, esta diferença desapareça sob as formas de exploração. Marx expõe esta diferença da seguinte maneira: "A forma do salário esconde cada vestígio da divisão da jornada de trabalho em trabalho necessário e trabalho excedente; entre trabalho remunerado e trabalho não remunerado. Todo trabalho aparece como trabalho remunerado. Nas prestações de trabalho feudais, o trabalho do servo feudal por si mesmo é distinto no espaço e no tempo, de maneira tangível e sensível, do trabalho coercitivo para o proprietário fundiário. No trabalho escravo, até a parte da jornada de trabalho em que o escravo só reintegra o valor dos próprios meios de subsistência, em que ele então trabalha na realidade para si mesmo, aparece como trabalho não remunerado". 32

27 K. Marx, Das Kapital, II, 1, cit., p.17 (trad.it, cit., p.69).28 Ivi, p.193 (ivi, p.261).29 K. Marx, Theorien liber den Mehrivert, III, cit., p.555 (trad. It. Di C. Pennavaja, Teorie sul plusvalore, III, in K. Marx & F. Engels, Opere Complete, XXVI, Roma, Editori Riuniti, 1979, p.518).30 Ivi, p.557 (ivi, p.519).31 Ivi, p.558 (ivi, p.520).32 K. Marx, Das Kapital, I, cit., p.502 (trad.it.cit., p.590).

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Também neste caso, para colher a verdadeira essência diretamente das formas fenomênicas, é necessária a gênese sócio-ontológica em termos objetivos, científicos.

Da economia de Marx, nós escolhemos aqui apenas alguns dos complexos problemáticos mais importantes. Poderíamos continuar à vontade, mas acreditamos que o discurso até aqui conduzido seja suficiente para clarear a dinâmica real da esfera econômica e refutar os freqüentes juízos errôneos que se dão a seu respeito. Principalmente entre aqueles que não desvalorizam o significado da economia no contexto global do ser social - incluindo um grande número de intelectuais burgueses -, em especial entre marxistas que fundam sua metodologia, ou sobre o período da Segunda Internacional, ou sobre o período do stalinismo, é difundida a idéia segundo a qual a esfera da economia constituiria uma espécie de segunda natureza, que distinguir-se-ia qualitativamente pela estrutura e dinâmica das outras partes do ser social, do que é chamado superestrutura, ideologia, e teria com esta uma relação de rígida contraposição, de exclusão recíproca (Basta recordar as visões de Plekanov ou de Stalin). Nosso discurso tem mostrado, precisamente, a refutação desses preconceitos. O trabalho, enquanto elemento último da esfera econômica, não ulteriormente cindível, é fundado de fato numa posição teleológica e, como mostramos sob diferentes pontos de vista, todos os momentos que produzem a estrutura e a dinâmica da esfera econômica, são também estes atos teleológicos direta ou indiretamente orientados em direção ao processo de trabalho, ou postos em movimento por ele. Por este aspecto fundamental a esfera econômica não se diferencia em nada dos outros campos da práxis social. Em particular, e isto acontece necessariamente nas posições teleológicas, que são os movimentos essenciais do processo, cada uma delas tem como ponto de partida um momento ideal. Neste sentido, portanto, a totalidade do ser social tem uma construção ontológica unitária. Quando a realidade é pensada com profunda coerência e é concebida nos termos dialéticos marxianos, não se pode sustentar uma bi-repartição em esferas, numa estrutura e dinâmica rigidamente contrapostas. E não se chegaria a resultados satisfatórios mesmo querendo ver princípios absolutamente contrastantes, de um lado, no intercâmbio com a natureza e, de outro lado, na práxis internamente à sociedade. É verdade que nas esferas ideológicas altamente desenvolvidas existem tipos de posições que, por via de regra, só indiretamente influem sobre a ação material dos homens; mas precisa-se pensar que, neste caso, o processo de mediação apresenta somente uma diferença qualitativa. Quanto mais desenvolvida, quanto mais social é uma formação econômica, tanto mais complexos são os sistemas de mediações que essa deve construir em si e em volta de si; mas estes interagem todos de alguma maneira com a auto-reprodução do homem, com o intercâmbio orgânico com a natureza, ficando em relação com esta, e são ao mesmo tempo tais que retroagem sobre esta, no sentido de que podem favorecê-la ou obstaculizá-la. Nestes casos, é também evidente que partes importantes da superestrutura, basta pensar o direito e a política, estão intimamente conexas e tem uma estrita relação recíproca com o intercâmbio orgânico.

As posições teleológicas que nascem com o trabalho e deste se desenvolvem são, portanto, componentes fundamentais do ser social do homem; mas este último, na sua totalidade, tem ligações múltiplas e tão incindíveis com a sua existência física e a sua reprodução, que uma bi-repartição absoluta não pode ser possível. Isto não significa porém, que as interações, no interligar e unificar, tenham em cada 1ugar a mesma força e intensidade. Ao contrário. Tampouco no interior das várias partes da esfera econômica conseguem ter uma proporção constante a respeito. A historicidade da economia, enquanto se manifesta definitivamente, não apenas numa permanente transformação da estrutura e intensidade dos seus complexos singulares, mas também na sua mudança de função, que por sua vez tem importantes efeitos de retorno nestas proporções (Lembre-se a diferente função, aliás freqüentemente contraposta, do capital comercial e monetário nas formações pré-capitalistas e no capitalismo). Apesar de todas essas passagens extremamente complexas, se não podemos contrapor em termos metafísicos absolutos, sem escalas, a esfera econômica à superestrutura, não podemos tampouco falar que o complexo das posições teleológicas entre o ser social é um conjunto uniforme, indiferenciado. Como vimos há pouco, é preciso ter presente também na esfera econômica, e com efeitos significativos nos outros complexos, a distinção de grande relevo ontológico entre fenômeno e essência. Temos mostrado como, em contraste com os preconceitos ideológicos, ambos devem ser considerados em si, e não simplesmente determinações ideais, simples distinções do pensamento. Além disso, fica-nos claro que estas duas formas do ser, unidas entre si por uma infinidade de interações, constituem uma unidade dinâmica, na qual porém as determinações concretas do seu ser processual, não obstante, apresentam-se muito diferentes.

Para entender corretamente na economia a unidade e a diversidade ontológica de cada fenômeno, é preciso partir, em termos ontológicos-críticos, do tratamento hegeliano deste complexo problemático. Já na sua obra relativamente juvenil, Propedêutica Filosófica, Hegel caracteriza o fenômeno, a aparência, como algo que não é "por si, mas somente num outro". E, como determinação decisiva da relação entre essência e fenômeno, acrescenta a seguir: "A essência deve manifestar-se". 33 Onde, por um lado, a essência vem apresentada ontologicamente como momento a mais da interação e, por outro lado, a relação igualmente ontológica entre as duas coisas vem concretizada no fato de que do ser deve necessariamente derivar o fenômeno. A unidade dinâmica entre eles - mas isso não está presente com toda clareza nas considerações de Hegel, que são somente ontológicas e não conscientemente orientadas para o ser social - depende do fato de que no ser social está fundada a derivação de ambas as posições teleológicas, isto é, em cada posição singular deste tipo da esfera econômica, essência e fenômeno são objetivamente postos de modo

33 G.F.W.Hegel, Philosophische Propüdeutik, in Sämtliche Werke, ed. Glockner, Stuttgart, 1949, pp.124-125.

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simultâneo, e só quando as séries causais entram em movimento, desenvolvem-se em complexos de ser separados, com fisionomias específicas, e, embora na persistência da contínua interação, distinguem-se - de imediato e relativamente - uma da outra, somente se houver uma diferenciação mais clara. Hegel caracterizou de maneira genial os traços mais genial desta divergência entre coisas que finalmente formam um todo; entretanto, uma ontologia da dialética materialista deve corrigir um pouco suas caracterizações, para torná-las mais concretas. "O reino das leis é a imagem calma do mundo existente ou fenomênico",34 afirma ele. Como infelizmente acontece muitas vezes com Hegel, também aqui um estado de coisa, ontológico decisivo é expresso não em seu ser em-si ontologicamente objetivo, mas em termos subjetivados de um ponto de vista gnosiológico-lógico (imagem). O que Hegel propriamente entende, adquire maior clareza e plasticidade quando o mundo fenomênico é posto em confronto com aquilo que a essência, assim, caracteriza. Desta identidade entre identidade e não-identidade em relação à essência e ao fenômeno, Hegel oferece o seguinte quadro: "O reino das leis é o conteúdo calmo do fenômeno. O fenômeno é o mesmo conteúdo, mas enquanto se apresenta no inquieto processamento e é refletido em outro. É a lei como existência negativa absolutamente mutável, o movimento do passar no oposto, do tirar-se e do voltar na unidade. A lei não contém esse lado da forma inquieta, ou da negatividade. Então, frente à lei, o fenômeno é a totalidade; porém, contém a lei mesma também algo mais, isto é, o momento da forma que se move".35 Observada a integração na qual Hegel caracteriza o reino da necessidade como conteúdo, já de modo mais ontológico do que anteriormente, embora sua caracterização permaneça lógico-gnosiológica e não considere o nexo ontológico decisivo, do momento, e apesar de ter também esses dois complexos entre eles uma relação reflexiva no plano do ser, a essa relação específica entre complexos, ele aplica de maneira formal uma relação reflexiva tomada na sua generalidade (conteúdo-forma). Em sentido ontológico rigoroso, o fenômeno não é a forma da essência, assim como esta última não é simplesmente o seu conteúdo. Cada um desses complexos é, no plano ontológico, por sua natureza, a forma do próprio conteúdo e, conseqüentemente, sua ligação é aquela de duas relações forma-conteúdo em si homogêneas.

É necessário fazer-se estas críticas às formulações de Hegel, pois nelas são colhidas de modo fundamentalmente correto alguns traços decisivos desta diferença dentro da incindível unidade. Para penetrar até esta última, devemos antes de tudo reconduzir à sua autêntica natureza ontológica o adjetivo calmo, usado para caracterizar a essência. Como primeira, relativa aproximação dos fatos, temos que a "imagem calma" põe luz, decerto nos lados importantes das leis que governam a essência, que não constituem a essencialidade, mas ao mesmo tempo aproxima demais a sua dinâmica ontológica a uma estática gnosiológica. De fato, a "calma" da imagem ideal é certamente uma conotação que sintetiza algumas propriedades reais do processo existente - a continuidade das suas tendências principais, a proporção legal de seus componentes -, ao mesmo tempo porém obscurece o fato de que aqui se tem antes de tudo um real processo de desenvolvimento. Que esta indagação transforma muito menos quando se trata de ilegalidade que diz respeito à natureza, antes de tudo inorgânica, é coisa que se entende por si só; e, de fato, no ser social, se por um lado o caráter histórico de cada lei, a sua gênese e seu findar exprimem-se com uma evidência toda diversa, por outro lado a reação humana pode adquirir significado ontológico somente em termos sociais. Os limites das caracterizações hegelianas, portanto, dependem da sua generalidade, da sua pretensão de determinar de modo lógico-unitário a essência e o fenômeno do ser global. No ser social, por isso, a característica "calma" da essência não é senão uma continuidade tendencial daqueles processos que constituem sua determinação mais fundante. Esta continuidade deriva, no plano ontológico, do fato de que nela e a partir das posições humano-teleológicas, que ininterruptamente põem e mantêm em movimento as séries causais do ser social, sempre, provavelmente são os momentos objetivos-causais a serem dominantes, do fato, isto é, que o protagonista aí é o princípio conhecido por nós já faz tempo, segundo o qual os resultados vão além das posições das intenções humanas. De maneira claríssima, isto resulta visível na tendência à diminuição contínua pôr parte daquele trabalho que é irremediavelmente necessário à reprodução do indivíduo, em comparação ao trabalho global que ele, gradativamente, executa no curso do desenvolvimento histórico-social. A irresistibilidade desta tendência surge no momento do novo, que caracteriza ontologicamente o trabalho como posição ontológica. Também este novo tem um caráter dinâmico a partir do momento em que, na posição teológica, ele não somente opera entre os respectivos atos singulares imediatos da realização, mas precisamente através desta mediação advém o princípio, permanentemente na obra que suscita as inovações. A essência ontológica das inovações, embora a sua estrutura técnica possa aparecer infinitamente uma miscelânea - consiste substancialmente sempre em reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário para a reprodução direta dos trabalhadores, e dar livre curso a prestações e resultados laborativos à estrutura social - geral. Desta linha de desenvolvimento do trabalho deriva, pelo trâmite de crescimento contínuo para ela suscitada da eficiência laborativa, por um lado, o retroceder da barreira natural torna-se sempre mais social na sociedade um processo para nós já repetidamente descrito em outros contextos; por outro lado, um crescimento das sociedades singulares e o ininterrupto intensificar-se da inter-relação econômica que se tem entre elas, cujo vértice é constituído até agora pelo mercado criado pelo capitalismo, mas já tem inequívocos sinais de um desenvolvimento ulterior quantitativo e qualitativo.

34 G.F.W. Hegel, Wissenschaft des Logik, cit., IV, p.145 (trad.it.cit.II, p.564).35 Ivi, p.146 (ivi, p.565).

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Ora, apesar de ter razão por considerar estas três séries evolutivas, que são estritamente ligadas entre si, como conteúdo de um complexo processual unitário, todavia podemos contejar-lhes duas partes diferentes que iluminam, como certamente Hegel estaria autorizado, embora isso acabasse induzindo a um erro, ao ver na essência o princípio do repouso e da unitariedade, em contraposição à inquietude, dinâmica, multiformidade do mundo fenomênico. Isto é, enquanto que, em primeiro lugar, o mundo dos fenômenos sociais apresenta o quadro de uma inexaurível variedade, de uma cadeia de formas cada vez únicas, inconfrontáveis, heterogêneas e contraditórias entre si, de um processo continuamente desigual, em segundo lugar, nas suas mudanças ou rigidez, a atividade humana parece tocar uma parte, por certo não onipotente, mas sem dúvida co-determinante; ao contrário, o mundo econômico da essência revela caminhos, tendências, univocamente determinados que mostram uma autonomia muito ampla das intenções das posições. A "calma" de Hegel deforma, porém, alguma coisa de extremamente importante, precisamente também a processualidade da essência, mas todavia põe em relevo com clareza as diferenças de fundo, aliás, as contradições entre as esferas da essência e do fenômeno. E esta diversidade, quaisquer que sejam as críticas que se faça em relação ao ponto de vista hegeliano, deve ser mantida, se se quiser chegar a conhecer de modo adequado o ser autêntico da economia no âmbito do ser social. Temos, porém, que avançar uma posterior reserva complementar (não abolida). A maior autonomia dos movimentos entre toda a esfera da essência em relação às intenções das posições, atribui a elas como uma "aparência" de naturalidade - com tanta freqüência, quanto ambigüidade - e quando se fala da sociedade como de uma "segunda natureza", no mais das vezes, se quer referir-se precisamente a essa autonomia do sujeito. Com isso, quando se tem uma suficiente concretização dialética, é enunciada uma propriedade real desse ser. Todavia, não devemos nos esquecer de que esta independência dos atos conscientes, após, os pressupõe como própria base do ser, isto é, do ser social, também quando consegue a sua máxima e mais pura objetividade, não pode possuir a completa independência do sujeito, que é característica dos eventos naturais. Ficar firme nessa objetividade "natural", embora assumindo uma suficiente distância crítica em relação a cada analogia com a natureza, constitui ao mesmo tempo uma garantia gnosiológica contra a concepção enraizada, ainda presente em Hegel, de uma teleologia real na história da humanidade. Esta esfera efetivamente revela ser uma espécie de "segunda natureza", dado o seu decisivo caráter não teleológico, e como ela é regulada unicamente pela necessidade causal. A diferença qualitativa determinante está no fato de que, sendo ontologicamente fundada sobre posições humano-teleológicas, isto comporta que o caráter tendencial das legalidades, seu afirmar-se como linha de tendência - com inevitáveis oscilações - exprima-se na universal estrutura de "se...então". A natureza não teleológica do processo global esclarece também esta característica de "se...então" da legalidade da essência. Se suas manifestações fossem as de um processo finalístico visando sua realização, não poderiam existir nem desvios, nem vias de desenvolvimento sem saída. Mas precisamente Marx tem mostrado que aquelas formações por ele indicadas como relações de produção asiáticas revelam, por todos os aspectos decisivos, os traços de um beco sem saída; e precisamente no sentido de que as tendências fundamentais da economia aqui relacionadas possam desenvolver-se só até um certo ponto, e depois, no máximo possam gerar de novo o mesmo nível que foi conseguido, na forma de reprodução simples, sem nunca passar para níveis qualitativamente superiores36.

Reconhecer na economia a esfera ontológica específica da essência, porém, não quer dizer fixar-se na idéia de que se trata de um mundo em-si, o qual, embora determinando a fundo outras esferas, acha - se com estas numa relação de real interação. Isto vale antes de tudo para o mundo fenomênico. Partindo aqui também, como sempre, da gênese ontológica, devemos ter sempre presente que ambas, igualmente, no plano do ser, são produtos das mesmas posições teleológicas. Seria simplesmente impossível imaginar que tenha determinadas posições de trabalho das quais venham sintetizar-se a esfera da essência e outras posições laborativas, diferentes das primeiras, que formariam a base do seu mundo fenomênico. Não. Não pode não ser evidente para qualquer um que no ser social exista somente um único processo de trabalho, ontologicamente unitário, cujos elementos são sempre em cada lugar constituídos pelos atos produtivos singulares de grupos humanos singulares e unidos no trabalho coletivo. Destas posições laborativas em si unitárias, surgem simultaneamente e indissolúveis, a essência e o fenômeno da respectiva formação econômica. Esta unidade na dualidade, ou dualidade na unidade não é, em termos de ser, em nada misteriosa. Da análise do trabalho sabemos que o ato da posição teleológica, inevitavelmente, nunca realiza apenas o que ele se propõe, mas ao invés, atua sempre sobre alguma coisa a mais e diferente (pressupondo que a posição não falhe). O trabalho, de fato, precisamente enquanto constitui o modo de cada praxis, não se subtrai à situação fundamental de cada práxis humana, isto é, de ser induzido ou até obrigado a agir em condições qye nunca são completamente conhecidas pela consciência. É pois, o caráter de cada posição teleológica pôr em movimento séries causais cuja importância, eficácia, etc., vão além do ato de pôr.

Esse ir-além é ele mesmo um fenômeno extremamente complexo, que vem à luz em todas as questões objetivas do processo e dos seus produtos, mas que, embora nessa infinita multiformidade, mantém uma própria

36 Entre as lacunas do marxismo do período estaliniano, acha-se também o fato de que o passado econômico dos povos asiáticos e africanos nunca foi indagado; assim sendo, hoje não há ninguém que saiba alguma coisa de cientificamente utilizável sobre a sua história. E no momento em que a comparação entre formas econômico-sociais desenvolvidas e estes países ilumina tendências economicamente novas, inexploradas pela ciência marxista, o marxismo de hoje não tem nada a dizer sobre esta problemática central do desenvolvimento da nossa época de cientificamente argumentável.

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unitariedade do ser. A dialética ontológica entre essência e fenômeno seria impossível se eles surgissem desta gênese fundamentalmente unitária e esta unitariedade não fosse conservada dinamicamente. Para voltar a um exemplo, já muitas vezes apresentado, a essência da queda da taxa média do lucro é constituída pelo desenvolvimento das forças produtivas (rebaixando no quadro do trabalho global a parcela do tempo de trabalho necessário para reproduzir o trabalhador); agora, esse desenvolvimento verifica-se no curso do processo que visa produzir estas taxas médias e sua queda tendencial é o modo fenomênico deste processo que constitui a essência. Neste caso, como em outros, é evidente que se trata de alguma coisa que, no plano do ser, é em última análise, unitária e indivisível. Todavia, o que distingue entre si a essência e o fenômeno, também aqui em termos de ser, não é outra coisa senão um simples modo diferente de considerar os momentos idealmente distinguíveis. O desenvolvimento das forças produtivas é uma tendência real do processo assim como a queda da taxa de lucro; ambos têm sua existência nos complexos objetivos do processo. O que ontologicamente os separa, mesmo nessa insuprimível unidade objetiva do processo, e o que faz de um a essência, e de outro o fenômeno, é o modo de relacionar-se ao processo: de um lado, na sua continuidade global e do outro, no seu concreto hic et nunc histórico-econômico. Seria errado entender, de um lado, os traços constitutivos, gerais, do processo simplesmente como generalizações de uma realidade sempre irrepetível na sua concretude, e de outro, atribuir a elas um ser "superior" independente da realização, que por força das circunstâncias seja sempre irrepetível.

Nunca podemos perder de vista que, tanto a generidade como a singularidade são categorias ontológicas dos objetos e processos: que tanto a generização quanto a singularização são, em primeiro lugar, processos reais, cujos resultados são mimeticamente reproduzidos nas formas correspondentes de pesamento. Mas, a constelação ontológica que deriva disso, isto é, do fato de que a essência vê o predomínio da generidade, enquanto que no fenômeno se verifica um movimento em direção à singularidade e à particularidade, seria superficial concluir que nesta relação estaria claramente expressa a verdadeira relação da essência e do fenômeno. Além de tudo, também generidade e singularidade são determinações reflexivas, isto é, elas aparecem em cada constelação concreta de modo simultâneo e bipolar: cada objeto é sempre ao mesmo tempo um objeto geral e singular. Por isso, o mundo fenomênico - se referido à essência entendida como alguma coisa de permanente - embora represente o mundo da singularidade dinâmica, não pode produzir no plano do ser as próprias generidades, assim como as generidades apresentam-se continuamente também como singularidades. De fato, as generidades na economia burguesa não são outra coisa, no máximo, senão generizações fixadas no pensamento de objetividades específicas da esfera fenomênica. Nisso não existiria nada de desviante, se a orientação por princípio anti-ontológico do positivismo, da cientificidade manipulatória, não significasse o deter-se definitivamente neste nível.

A generidade de uma singularidade pode ser então a determinação reflexiva de objetividades que pertencem a um complexo, mas também de dois complexos. Este caso, que é precisamente aquele que nos interessa, foi descrito com riqueza de conteúdo e realismo por Goethe na bela poesia Duração na Mudança. Embora não toque absolutamente o nosso problema como tal, ou quem sabe mesmo por isso, o quadro que lhe dá é próprio para iluminar o que nele existe de específico. Goethe desenha poeticamente e com grande precisão ontológica, os contornos de duas relações que, no plano formal, estão muito próximas àquelas indicadas por nós, mas que, pelo tipo particular de sua processualidade, distinguem-se absolutamente: a relação entre a duração e a mudança na natureza e na personalidade humana. Quanto à primeira relação, porém, para tratá-la filosoficamente, é preciso fazer de imediato uma ressalva que a concretize. Goethe parece falar da natureza em-si, mas na realidade discute somente a relação entre o desenvolvimento do organismo, sobretudo nos estágios inferiores, e o seu ambiente, que por sua vez é expressamente entendido como pertencente à natureza inorgânica. Destas interações nasce um movimento cíclico que, de modo particularmente evidente no âmbito do mundo vegetal, e também em setores determinados do mundo animal (por exemplo, no caso de muitos insetos), liga o processo da vida às contínuas mudanças cíclicas que se verificam na natureza (estações). Isto é, temos que tratar com processos em que a indissolúvel interação entre as duas esferas - aqui o organismo e o seu ambiente - exprime-se como a dialética de duração e mudança. Em conformidade com a mesma concepção de mundo, o mesmo Goethe ultrapassa diretamente ilustrando a vida humana à altura de seu máximo nível de autoformação. Aqui também se tem imediatamente - em termos gerais - um movimento de caráter cíclico, mas que não se trata mais da repetição de determinações cíclicas objetivas do mesmo complexo, como por exemplo na relação das plantas com as estações. Trata-se, ao invés, de uma ligação criada pelos homens mesmos, desejada ou pelo menos posta por eles, entre o princípio e o fim da própria, da respectiva vida, cujos fundamentos, em si, são ineliminavelmente dados pela natureza do organismo humano, mas no curso do desenvolvimento do homem são submetidas a um peculiar processo plasmatório. "O princípio com o fim juntam-se numa unidade", diz Goethe, formulando assim numa poesia, uma das teses principais de sua ética, que em prosa, por outro lado, expressou da seguinte maneira: É o mais feliz dos homens aquele que consegue ligar o fim da própria vida com o princípio". Aqui a duração já é alguma coisa que em momentos importantes está posta como o resultado de uma série coerentememte realizada por parte do homem (embora não seja absolutamente necessário que isso aconteça conscientemente), de decisões alternativas no âmbito de uma vida inteira. Seja o decurso biológico da vida - as suas determinações puramente sociais e aquelas biológicas mais socializadas -, assim como o ambiente no qual ela se desenvolve, formando um complexo cuja atividade que põe contrapõe-se enquanto criadora de duração, formadora de continuidade

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na pessoa que se torna si mesma. O resultado é uma determinada forma real de vida, que precisamente no seu ser, e exclusivamente no plano do ser, é algo que possui valor.

As diferenças que são intercorrentes entre esses complexos e aquele do qual estamos discutindo neste trabalho nos dão a possibilidade de clarear a sua autênctica especificidade. Antes de tudo, no nosso caso, trata-se de uma relação reflexiva interior de um complexo social. No seu fundamento, no trabalho, acha-se um intercâmbio orgânico com a natureza, que não muda as coisas quanto ao essencial, porque precisamente através do trabalho, a natureza vem mediada socialmente, enquanto o nascimento, o desenvolvimento e o fim da vida, num segundo caso tratado por Goethe parece, embora na socialização das suas formas, permanecer fenômenos naturais. Todavia, não é casual que a esfera da essência, a encarnação da duração na mudança, seja precisamente aquela em que as categorias deste intercâmbio orgânico têm a maior parte no que diz respeito àquelas das relações meramente sociais. De fato, somente nesta esfera o princípio do novo, fundado na essência do trabalho, opera de modo relativamente retilínio e, na segunda das situações, com relativa liberdade. Quanto mais mediadas se tornam as posições teleológicas, iste é, quanto mais de longe atuam sobre o processo originário do trabalho, tanto mais vêm ao primeiro plano aqueles fatores que introduzem neste desenvolvimento desigualdades (também estagnações, regressos, etc.). O intercâmbio orgânico direto da sociedade com a natureza é então, ao contrário das formas mais mediadas, o fundamento de um crescimento irreprimível das forças produtivas: mas somente quanto é considerado como linha de tendência histórico-mundial. Como essência, duração na mudança, por isso, aqui não temos os processos como um princípio e um fim, ou como retornos cíclicos, similarmente ao que acontece nos casos discutidos por Goethe, mas ao invés, uma linha de tendência em permanente ascensão - no plano histórico mundial. Apenas onde, por exemplo, nas relações de produção asiáticas, o mundo fenomênico cria obstáculos insuprimíveis por esta permanente elevação da produtividade, retornando aos processos cíclicos do processo global. Marx fala de "comunidades auto-suficientes que se reproduzem constantemente nesta mesma forma e, quando por acaso são destruídas, reconstroem-se no mesmo lugar, com o mesmo nome".21 (37) É fácil compreender-se como deste estado decoisas, muitas vezes, tenha sido (e ainda seja) tirada a conclusão fetichizante de que este desenvolvimento se moveria conforme uma necessidade "natural", exatamente quando, ao invés, sua base ontológica seja precisamente a saída do homem da natureza, o seu fazer-se homem, o seu tornar-se social através do trabalho. Também para este desenvolvimento vale a sentença de Marx, por nós muitas vezes citada: os homens fazem para si a própria história.

Mas, é preciso acrescentar: não porém em circunstâncias escolhidas por eles. De fato, ainda que a essência mais geral do trabalho, a posição teleológica, no intercâmbio orgânico com a natureza subsista o princípio fundante e - considerada em si - permaneça igual a si mesma, sem ter, por princípio, em alguma medida, que mudar o seu próprio caráter de fundo, ela pode realizar-se no plano do ser somente no respectivo hic et nunc concreto do ser histórico-social. Este hic et nunc, no início, prevalece determinado pela natureza, mas com o desenvolvimento da divisão social do trabalho, que este último necessariamente dá lugar, torna-se sempre mais social: de uma parte, pelas formas que a divisão social do trabalho cada vez assume e fixa; por outra parte, pelo desenvolvimento das faculdades humanas que nascem do processo produtivo, entendido no sentido mais amplo, e que enquanto vem determinado pelo sistema de mediações constituído pela divisão social do trabalho, por sua vez age sobre esta última, modificando-a. Este sistema de circunstâncias não escolhidas pelos homens, que vai cada vez mais envolvendo o inteiro âmbito de suas vidas, não pode tampouco tornar-se efetivo e eficaz independentemente das atividades humanas. O recuo da barreira natural reforça duplamente, como uma interação permanente, a participação ativa da práxis humana e este sistema, enquanto essas atividades exercem uma influência cada vez mais forte sobre as formas e os conteúdos dos complexos que vão se estruturando em termos sempre mais mediados, mas ao mesmo tempo em todas as suas determinações são condicionados pela socialidade auto-criada, como "mundo exterior" social, como campo real de cada atividade. Estas forças e tendências múltiplas, heterogêneas entre si, coagulam-se nas formações econômicas, as quais - no plano histórico-mundial - acontecem e ultrapassam, e nas quais assumem a expressão plástica que Hegel, em contraposição à essência, chama fenômeno; e Goethe, em contraposição à duração, mudança.

Hegel, na caracterização do mundo fenomênico, sublinhando sua autonomia e os múltiplos conteúdos novos em relação à essência, aproxima-se bastante de algumas partes importantes da situação, como realmente se verifica na mudança do ser social. Como temos visto, ele justamente põe em evidência que o fenômeno tem conteúdos diferentes da essência, que este possui uma força inquieta, móvel, que não pode ficar estranha à essência. Com isso, Hegel vem dizer, com razão, que a esfera do fenômeno, a causa desta peculiar fisionomia nitidamente distinta daquela da essência precisamente pela sua variedade, mobilidade, irrepetibilidade, até fugacidade, é o verdadeiro terreno da historicidade na sua imediaticidade. Se aqui, a diversidade em relação à essência - como antes, a propósito da essência, a calma - é excessivamente sublinhada, a razão está na concepção de fundo idealista de Hegel. Precisamente sobre este problema, Marx pôs em evidência seu limite idealístico, depois de ter revelado que a grandeza de Hegel está no fato de que ele "entende o autoproduzir-se do homem como um processo ... que ele então capta a ess6encia do trabalho e concebe o homem objetivo, o homem verdadeiro porque homem real, como resultado do seu próprio trabalho". Marx acrescenta

21 K. Marx, Das Kapital, I, cit., p. 323 (trad. It., cit., p. 401).

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criticamente: "O trabalho que Hegel concebe e reconhece é somente o trabalho espiritual abstrato".22 (38). Todas as catacterísticas corretas que Hegel enuncia derivam do reconhecimento de que o trabalho é a base do ser e do desenvolvimento do homem; todas as extremizações e, consequentemente, os erros, surgem do fato de que ele, de modo inconsciente e espontâneo, pensa o trabalho como algo puramente espiritual. Se corrigindo a interpretação de Hegel, voltarmos ao trabalho real, veremos que aqui, o novo, o diverso, o que aparece autônomo em relação à essência, não desaparece completamente, mas simplesmente resulta no seu lugar apropriado na totalidade das inter-relações com a essência. A "calma" da essência, nesta visão ontológica não falsificada pelo idealismo, transforma-se na tendência contínua, última, que se realiza no processo global constitutivo pelo desenvolvimento do ser social, enquanto a autonomia do mundo fenomênico reduz-se ao fato de que ele possui uma - relativa - autonomia no interior da interação com a essência, isto é, não é seu simples produto mecânico. Essa autonomia, porém, existe apenas no quadro de interação com a essência, certamente como campo de manobra muito amplo, rico de níveis e de lados, mas somente como campo de auto- expansão entre uma interação na qual a essência tem um papel de momento superador.

O confronto desta situação ontológica nos induz a tirar conseqüências importantes em dois sentidos. Em primeiro lugar, temos que romper com o preconceito idealista segundo o qual a unicidade, a multiforme particularidade dos objetos da história, de que é constituído o mundo fenomênico também no mundo da economia, seria algo de definitivo no plano do ser, de não reduzível ao conceito, a uma causa externa, pela qual a matizada factualidade do mundo historicamente existente seria algo de último, de fundado somente em si mesmo. Em segundo lugar, temos que recusar também o preconceito oposto, do materialismo vulgar (também quando se autodefine marxista), segundo o qual cada momento singular do mundo fenomênico seria um efeito direto, mecânico, da essência, de cuja legalidade ele seria deduzível em simples termos causais também em relação à sua unicidade. O discurso, embora ainda muito geral, que temos feito sobre a relação ontológica entre essência e fenômeno, revela a completa fragilidade dos dois modos de ver. Não é difícil compreender que um campo de manobra no qual a causa da interação entre dois complexos nasça num deles, não possa chegar a uma auto-legalidade total, completamente repousante sobre si mesma. A possibilidade de se ter uma autonomia relativa nos campos de manobra cada vez existentes, permite que ela seja determinada de modo decisivo pelos princípios e pelas leis que, em última instância, condiciona este campo de manobra. Mas, precisamente por isso, é impossível que as leis da essência determinem de modo direto, com causalidade retilínia, os momentos singulares do mundo fenomênico e suas concepções causais imanentes. Nas suas interações com o mundo fenomênico, a essência produz nestes últimos campos "livres", cuja liberdade só é possível no interior da legalidade do campo. Basta para comprovar este fato, um rápido olhar à história das formações econômicas. Está claro que a existência, o florescimento e a decadência de Atenas, Esparta e Roma, pressupõem, como base, a escravidão; assim, é evidente que cada uma delas não poderia ter uma história específica, qualitativamente diferente das outras. Não há necessidade de se demonstrar que esta constelação, no capitalismo da Inglaterra, da França, da Alemanha, etc. apresente a mesma estrutura de dependência da essência e da especificidade fenomênica. Como se supõe, o modo concreto de operar destas interações entre essência e fenômeno no ser social poderá ser discutido somente quando estudarmos a fundo os problemas da ideologia. Entretanto, não é inútil revelar desde já o quanto temos acenado também mais acima que, segundo Marx, a forma geral da essência relaciona-se com as próprias realizações concretas da práxis no mundo fenomênico - também na área econômica e com maior razão na área ideológica - como possibilidade, como campo concreto de possibilidade.

Se, com isso, a dialética geral da essência e do fenômeno esclareceu-nos no setor da economia, a relação geral entre forças produtivas e relações de produção, quando passarmos aos problemas da ideologia, que são precisamente aqueles sobre os quais agora tentaremos iluminar, temos que integrar o que agora estabelecemos. Ocorre-nos repetir mais vezes que, quanto mais se estende a divisão social do trabalho, quanto mais social se torna a sociedade mesma, tanto mais numerosas e complicadas são as mediações que se tornam necessárias para manter o curso normal do processo reprodutivo. Constatamos, através de muitos exemplos, que isso se verifica na economia. E só repetimos o óbvio, ao dizermos que o processo de reprodução econômica, a partir de um estágio determinado não poderia funcionar, nem no plano econômico, se não se formassem campos de atividade não econômica que tornassem possível o desenvolvimento desse processo no plano do ser. Não acenamos tampouco aos problemas concretos e essenciais que disso derivam, mas é claro que chegamos a falar da esfera da superestrutura, da ideologia. O que no momento podemos falar disso é muito simples. Embora a fome da mais-valia (mais-valor) seja uma força motriz central dos acontecimentos sociais, é evidente que ela pode atuar realmente apenas no respectivo hic et nunc fenomênico. O campo de manobra cada vez criado pelo respectivo desenvolvimento das forças produtivas é o único teatro existente, o único objetivo realmente possível pela práxis dos homens. Está claro então que as atividades não econômicas, mas organizadoras da sociedade, o resultado e o sistema das quais constituem a superestrutura - Marx põe em evidência o jurídico e a política -, devem se ligar de modo direto ao mundo fenomênico da esfera econômica. Esta ligação é tão estreita, tão íntima, que em alguns casos singulares não seria absolutamente fácil estabelecer quando o conteúdo das posições teleológicas que aí se tem é prevalecentemente econômico e quando, ao contrário, vai além da mera

22 MEGA, III, 1. Pp. 156-157 (trad. it. Manoscritti economico-filosofici, cit., pp. 360-361.

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economia. No mais das vezes, elas visam por em movimento ambos os complexos conjuntamente, plasmando o mundo fenomênico da economia (e o conteúdo pode ser naturalmente tanto a conservação, quanto o desenvolvimento ou também a destruição) segundo as suas imediatas necessidades, com o objetivo imediato de plasmá-lo, mas ao mesmo tempo na intenção de chegar na esfera da essência. Por isso, não se trata apenas formalmente das mesmas posições teleológicas que se têm na esfera da economia, mas além disso, os conteúdos destas posições freqüentemente coincidem em amplos trechos.

No entanto, seria errado, como vamos demonstrar detalhadamente em seguida, se isso provocasse o desaparecimento total do limite que passa entre a base econômica e a superestrutura ideológica; é difícil também, em certos casos, traçar com exatidão este limite, que existe porém na realidade e têm conseqüências relevantes para a constituição do ser social. O que a análise conduzida até aqui queria simplesmente assegurar é, antes de tudo, a estrutura fundamental unitária, a unitariedade última no plano do ser, dos seus "elementos", das suas forças ativas, motrizes. É de suma importância conscientizar-se de que nada pode acontecer de socialmente relevante, que não tenha como próprio motor as posições teleológicas dos homens. Naturalmente, têm-se catástrofes naturais, etc., mas desde as crises do período glacial até o terremoto de Lisboa, elas entram na história depois das reações - realizadas em posições teleológicas - dos homens nos seus confrontos. Também aqui se demonstra que o homem é um ser que responde. Isto é, somente uma versão concentrada do sujeito da tese marxiana, segundo a qual os homens fazem por si a própria história, mas não em circunstâncias escolhidas por eles. Afirmar isso, porém, significa ir além da simples enunciação formal de que as posições teleológicas são os "elementos" fundamentais últimos do ser social. De fato, posição teleológica significa ao mesmo tempo, que nela, o ponto de partida é sempre constituído pelo momento ideal. E se imediatamente devemos precisar que ela não pode de maneira nenhuma, nem do ponto de vista do conteúdo, nem daquele da forma, ter caráter autônomo, mas encarna uma resposta a perguntas feitas para o ser social e para o ser natural mediado por este último, tornado objeto de intercâmbio orgânico com ele, temos que acrescentar também, imediatamente, que uma ameaça causada pelo ser, ou uma possibilidade de nutrição, etc., no seu imediato ser-em-si, não são ainda uma pergunta. Para poder "responder" ao vento abrindo as velas, é necessário que o momento ideal intervenha novamente, que entre em atividade prática. Somente este transforma os fatos da natureza (e, depois, da sociedade), que põe em movimento as reações, em perguntas do ser social, em primeiro lugar da reprodução social, econômica, dos homens mesmos, aos quais se deve e se pode responder. Também a natureza orgânica chegada ao seu máximo grau de complexidade alcança reações - às vezes acompanhadas pela consciência - aos dados do mundo circundante. Pergunta e resposta, ao invés, pressupõem uma elaboração ideal desse estado de coisas, que surge somente com o trabalho e cujo universalizar-se - com um salto e, junto, gradativamente - põe como existente o ser social, a nova forma de reprodução, como o seu fundamento econômico. Por isso, antes de nos adentrarmos pelos problemas da ideologia, temos que dar uma olhada naquele processo ao longo do qual surgem ontologicamente perguntas e o modo de responder a elas.

2. SOBRE A ONTOLOGIA DO MOMENTO IDEAL

O resultado da nossa exposição anterior é, primeiramente, que o ser social, na sua estrutura ontológica essencial, é unitário: seus "elementos" finais são as posições teleológicas dos homens, que na sua constituição ontológica basilar, não mostram diversidade de princípio dentro e fora da esfera econômica. Naturalmente, isto não significa que tais posições são todas do mesmo gênero. Em outro contexto, várias vezes colocamos em relevo que entre aqueles que objetivam diretamente a transformação orgânica entre a sociedade e a natureza, tais posições se lhes apresentam com diferenças essenciais, tanto subjetiva como objetivamente, daquelas cuja intenção direta é transformar a consciência de outras pessoas, por outro lado, mesmo que estas últimas possam revelar diferenças qualitativas em torno das profundas mediações que se colocam na transformação, da consciência desejada com os problemas da reprodução do homem circunscritos a essas transformações. Sobre a importância de tais divergências, já acenamos mais de uma vez em outra ocasião; e sobre esse importantíssimo complexo de problemas devemos retornar em seguida. O objeto de nosso interesse não é somente a estrutura diferente das posições singulares, mas sobretudo quais diferenças resultam quando se observam quais sínteses são formadas no socializar-se necessário de cada tipo de ser e que relação ilumina as ulteriores alterações entre uma série de conseqüências sociais que se realizam. Mas, por mais importante que seja fazer essa distinção do modo mais preciso possível, não podemos todavia esquecer os traços comuns das bases ontológicas gerais. E isto é de importância decisiva quando se trata da relação entre a base econômica e a superestrutura ideológica. De um lado, a gênese ontológica de tais relações aparece em cada ato do trabalho, de cuja análise a economia e a superestrutura precisam sistematicamente evidenciar as ramificações, as afinidades e as mudanças de funções. Por outro lado, este complexo imaginário da sociedade tem por sua essência caráter histórico. O trabalho mesmo, enquanto motor decisivo da humanidade e do homem, não é um estado de coisas fixas, mas um processo histórico; assim também todos os momentos do desenvolvimento da humanidade, embora apresentem diferenciações aparentemente independentes, mas na realidade estão fortemente mediatizados e galgados

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de uma autonomia relativa, devendo estas ser respeitadas como estágios em movimento do processo histórico da humanização.

Várias vezes temos insistido em um ponto metodológico decisivo do marxismo, segundo o qual todas as formas complexas do ser social nascem objetivamente da força primitiva da sua gênese ontológica; pense-se quando Marx, no início de O Capital, mostra como o dinheiro nasce da dialética interna do desenvolvimento da circulação das mercadorias. Temos que proceder do mesmo modo e tentar ver que as premissas e conseqüências ontológicas da posição teleológica estão na, sua forma inicial, no trabalho, para entendermos a partir do desenvolvimento da própria coisa, saindo dela, a essência das mediações, das afinidades, etc.. Sobre tal questão já dissemos algo no capítulo sobre o trabalho; agora se trata de ulteriormente concretizar, com referência ao nosso problema atual, se tudo aquilo a que nos referimos naquele momento está claro. Antes de tudo, é preciso observar que Engels tem razão quando concebe a gênese da linguagem como um processo simultâneo à gênese do trabalho e quando, como recordamos, deriva a linguagem do fato de que, devido ao trabalho, os homens precisam dizer alguma coisa uns para os outros. 23 Este novo conteúdo está em correspondência a esta nova forma, um novo meio de comunicação, exatamente adequado ao novo complexo de relações do homem com a realidade, de seu novo modo de reagir a ela; é nesse sentido que se pode dizer que o homem é um ser que responde. Em tal contexto, temos também dito que uma resposta pressupõe sempre uma pergunta, mas esta não pode ser um dado originário; as suas bases são constituídas, por assim dizer, por determinações exercidas sobre o homem pela realidade que o circunda (natural e social); todavia, elas devem sofrer uma transformação ideal, antes de apresentarem-se diante do outro homem como pergunta a ser respondida e suscitarem nele posições teleológicas. É evidente que um tal modo de reagir à realidade, para o qual ocorrem estes preparativos ideais, deve ter uma longa pré-história. Esta começa, como muitas vezes temos indicado, com a estimulação que o ambiente suscita no organismo, induzindo-o antes a determinadas reações só físicas ou químicas. A tendência imanente, intrínseca ao desenvolvimento dos organismos, para uma adaptação sempre mais gradual, para um aumento da possibilidade de uma melhor e mais segura reprodução ontogenética e filogenética, provoca no organismo um crescente diferenciar-se das estimulações através de um diferenciar-se dos órgãos receptivos e reativos. Não é nossa tarefa descrever este processo, nem mesmo sumariamente - nem eu tenho de fato competência científica para escrever estas linhas; a nós interessa apenas colocar em relevo o abismo que separa as formas mais elevadas de desenvolvimento, daquelas operações laboriosas mais primordiais do homem. E esse abismo é possível de ser superado somente com o salto representado pelo trabalho e pela linguagem. As experiências feitas com animais mais evoluídos e as observações das características desses animais que se encontram em estrito contato com os homens demonstram esse abismo de maneira evidente. Depois de havermos colocado os animais em ambiente seguro, no qual estes não têm necessidade de procurar para si a comida e nem se proteger dos inimigos, o homem pode lhes ensinar novos comportamentos, às vezes até complicados, pode até "perguntar-lhes", depois de breves ou longos exercícios e estes estão em condições de "responder" e amiúde com grande habilidade: mas não acontece que o animal generalize uma situação, em si neutra, transformando-a em uma verdadeira pergunta, e nem encontre por si mesmo uma resposta (Os macacos podem procurar um pau para alcançar uma banana, mas somente se o pau for posto pelo homem na jaula, etc.). Naturalmente estes resultados são extremamente instrutivos e demonstram que determinados animais superiores possuem potencialidades até aquele momento latentes; isto é, de diferenciar mais que as próprias reações ao ambiente; e que num estado de segurança, essas potencialidades se liberam e eles podem atuar de maneira extraordinária. Todavia, o salto que separa o homem trabalhador do animal que reage ao ambiente dentro do quadro das suas possibilidades biológicas, embora fortemente desenvolvidas, repousa sempre sobre um salto qualitativo que não se pode agarrar em termos adequados mediante aproximações (é interessante poder confrontar os comportamentos humanos no período da simples coleta, isto é, antes do aparecimento do trabalho no seu sentido próprio, com aqueles animais mais desenvolvidos. Talvez assim possamos colocar um pouco de luz em torno do que é "descartado" pela humanidade).

Conhecer as possibilidades e os limites da reação biológica ao ambiente, assim que se tornam visíveis, não significa portanto ter clareza em torno do salto representado pelo trabalho e pela linguagem, mas certamente nos colocamos em condições de entender mais concretamente a especificidade do seu ser. Com salto quero dizer justamente que o homem é capaz de trabalhar e falar, continuando a ser um organismo biologicamente determinado, desenvolvendo atividades de novo tipo, cuja constituição essencial não pode ser compreendida em nenhuma categoria da natureza. Tratando-se do trabalho, já vimos como mediante este nascem, tanto do ponto de vista subjetivo como objetivo, as conexões, processos, objetividades, etc., que, com respeito à natureza, representam algo qualitativamente novo, de onde, porém ocorre ter presente que todas essas coisas novas são possíveis somente quando elas realizam as leis da natureza em novas combinações. O trabalho apresenta assim uma dupla face: de um lado, a sua execução é sempre de modo absoluto ligada à leis naturais, que devem ser empregadas; de outro lado, porém, este produz alguma coisa qualitativamente nova com respeito à natureza. Isto significa que na sociedade, as inter-relações entre organismo e ambiente se enriquecem e se transformam pela inserção de outro elemento, a consciência, a qual adquire a função de aproveitar mais satisfatoriamente, as reações nascidas do estímulo imediato, mediando-as. Esta inserção transforma

23 F. Engels, Dialektik der Natur, cit., p. 696 (trad. It. cit., p. 462).

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por isso a relação imediata entre as necessidades do organismo e os meios para satisfazê-las em uma relação mediatizada. Para compreender porém este fenômeno, não basta simplesmente ver no trabalho o momento intermediário. Isto não é de todo um erro; trata-se antes de um fenômeno originário, mas para poder ser individualizado na sua verdadeira constituição, antes, cumpre desagregá-lo nos seus momentos. De fato, os diversos momentos, de cuja cooperação só deriva o complexo constituído do trabalho, os quais têm função diversa, heterogênea, e que vamos conhecer especificamente, só podem ser compreendidos sob a luz da sua totalidade concreta.

A necessidade originária pertence ao organismo humano assim como ao do animal. Quando porém, como Marx revela várias vezes, sua satisfação não se desenvolve mais de modo biológico imediato, isto é, deixa de guiar diretamente (dentro de um campo de manobra biológico) as ações que conduzem a realizá-la, mas que todavia não derivam imediatamente desta, não são ligadas a ela de modo direto, e portanto podem ser usadas também por outras necessidades. Coloquemos, por exemplo, que o fogo originalmente serviu à necessidade de afastar os animais ferozes; uma vez disponível, porém, pode ser utilizado para ferver, cozinhar; etc.; e nem a sua utilização deveria parar por aí, mas estender-se à fabricação de melhores armas, equipamentos, etc.. As mediações que intervêm na satisfação das necessidades, portanto, podem conduzir a uma extensão aparentemente sem limites no intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza. O caminho biológico, nos animais, ao contrário, procede em sentido único e permanece ligado às suas funções originais; mesmo quando existe uma certa elaboração, como na "fabricação" do mel pelas abelhas, esta, tanto no processo como no resultado, tanto subjetiva como objetivamente, continua a ser um evento biológico não ampliável. Em segundo lugar, cada novo meio para satisfazer uma necessidade retroage sobre esta última, modificando-a. Uma vez iniciada a mudança, a necessidade original pode rápida ou lentamente, segundo o ritmo da respectiva produção social, até mesmo desaparecer completamente, ou modificar-se tanto, a ponto de tornar-se irreconhecível. Em terceiro lugar, dentro desta conexão sócio-dinâmica, a possibilidade real de satisfazer as necessidades adquire um caráter econômico-social sempre mais profundo. A partir do momento em que há satisfação das necessidades desenvolve-se no consumo, quando a circulação das mercadorias socializou esta satisfação somente uma necessidade "pagante" poderá obtê-la. Obviamente a necessidade biológica natural continua existindo no organismo humano, mas só será efetivamente satisfeita quando for mediada por determinações puramente econômico-sociais.

O processo econômico descrito, que se coloca entre necessidade e satisfação, já é suficiente para esclarecer o significado ontológico no processo laborativo da "questão" sublinhada por nós. Pensemos na assimilação da comida por parte de qualquer animal: é claro que tanto nos herbívoros quanto nos carnívoros, um acúmulo de experiências deve ter precedido essa satisfação já fixada no instinto, mas esta experiência, mesmo quando se trata de caçar uma presa, move-se dentro da esfera da satisfação biológica de uma necessidade. Se, ao contrário, observarmos o uso ainda mais primitivo do fogo pelo homem, mostra-se evidente que nem o fogo contêm no seu imediatismo a capacidade de ferver ou cozinhar, nem a carne ou o vegetal tendem a tornarem-se fervidos ou cozidos; os instrumentos para a realização deste processo devem ser apropriadamente criados pelo homem trabalhador. A sua combinação é portanto uma síntese de elementos heterogêneos, que devem ser plasmados novamente e de forma apropriada para estas funções. A peculiaridade deste fato novo é, justamente na sua estrutura decisiva, a forma de ser da atividade humana, ao passo que a combinação de momentos reais e ideais conservam-se nos seus fundamentos ontológicos, quaisquer que sejam as diversidades manifestadas por esses estados evolutivos. A insuprimível prioridade do ser do momento real surge do fato de que - para produzir, por exemplo, com o fogo, a carne, o espeto, etc. um alimento humano - as propriedades, as relações, etc. destes objetos que são apresentados objetivamente em-si de modo absolutamente independente do sujeito ativo devem ser corretamente conhecidas e corretamente usadas. É verdade que já a expressão "corretamente" mostra a dupla face de tal relação. As propriedades existentes-em-si do real devem ser conhecidas corretamente, isto é, a práxis humana deve colocar em movimento tudo aquilo que através desses objetos realize as posições teleológicas. Por isso, o homem trabalhador com o seu pensamento não deve geralmente só conduzir-se até este existente-em-si, mas deve ao contrário descobrir estas propriedades, relações, etc., talvez nem mesmo perceptíveis imediatamente, que tornam tais objetos adequados à sua finalidade. Um bastão, por exemplo, tem certamente em-si a aptidão para ser usado como espeto para cozinhar, mas o ser-em-si nunca poderia mostrar espontaneamente esta propriedade. Por isso, para poderem os objetos, processos, etc., existentes-em-si obter uma "resposta" da realidade à necessidade que move a posição teleológica, é necessário que esta venha precedida por uma "pergunta" racionalmente baseada sobre estas verdadeiras conexões. O antílope tem no seu ser real imediato - não em sentido teleológico; mas em termos causais, ao mesmo tempo, necessária e casualmente - a possibilidade de se tornar alimento para um leão, enquanto o galho, mesmo que seja reto, não tem possibilidade de servir de espeto nas mãos do homem.

Depois desta relação entre "pergunta" e "resposta", surge no trabalho, no ser social em geral, aquela ligação indissolúvel entre momentos reais e ideais que caracteriza esse tipo de ser. Não será demais sublinhar que nesta associação, o real constitui o momento concretamente predominante: na posição teleológica nada pode operar que não tenha como seu fundamento a constituição real do ser: o ideal deve porém colocar em movimento o real no sentido desejado; ele pode retirar aquilo que no ser natural nunca seria realizado espontaneamente, mas este abrir caminho a possibilidades reais em-si já deve estar presente - independentemente de qualquer posição teleológica -como

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possibilidade real. O ser-em-si material da natureza, portanto, não pode - enquanto em-si - sofrer nenhuma mudança por obra de quaisquer que sejam estas posições. Esta propriedade do real domina indiscutivelmente no reino da natureza. O ser social está fora disso só através de seus objetos, que surgem no interior orgânico com a natureza; o processo de colocar em movimento agora descrito constituiu um pressuposto absolutamente indispensável. Quando as leis da natureza - sem mudar a própria essência - são capazes de produzir no âmbito do ser social também objetos, movimentos, etc. diferentes daqueles que o seu mero ser-em-si costuma manifestamente produzir, quando essas entram em relações que a natureza por si, nunca teria criado, só então surge o ser social como forma específica de ser.

Mas, o que é afinal este momento ideal? Enquanto força motriz, criadora do novo no ser social, é justamente a intenção que conduz aquele movimento material do trabalho que, no intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza, traz para essas transformações, ou melhor, estas atuações de possibilidades reais. Mas é a força material do trabalho que age sobre o ser material da natureza (a situação não muda, quer se trate da força de trabalho imediatamente humana, quer se trate do trabalho "morto", armazenado em instrumentos e máquinas, que originalmente, porém, é também imediatamente humano). Também neste caso, portanto, é claro que o mundo material não é superado, muito menos abandonado. O que, de outra maneira seria impossível, porque aquilo que não pode - diretamente ou com mediações mesmo amplas - ser realizado materialmente, nem mesmo existe. Isto todavia determina somente o campo real, dentro do qual o momento ideal pode operar no âmbito do ser social. Fora deste momento ideal, não existe; dentro do seu âmbito, ao contrário, está o insubstituível pressuposto de tudo o que surge e existe socialmente. Para chamar a atenção do leitor para este estado de coisas nem sempre reconhecido, tentamos mostrar em relação à esfera econômica, como tudo o que lá acontece tem como pressuposto um momento ideal. Isto não contradiz o que acabamos de expor: na verdade, a especificidade do ser social consiste justamente no fato de que as interações materiais neste são postas em movimento por posições teleológicas e estas só podem operar como tentativas de transformar em realidade um fim colocado idealmente. O momento ideal pode ter este papel nas posições teleológicas, não somente porque neste a posição mesma do fim é amplamente concretizada, mas além disso porque todos os modos reais para traduzi-la em realidade devem ser fixados no pensamento, antes de poderem tornar-se ações prático-materiais na atividade real material do homem que realiza o trabalho.

Como vimos, o poder, em si inseparável, do ser material não vem nem mesmo arranhado na sua essência pelo momento ideal. Este último pode dominar as leis da realidade somente na medida em que as reconhece como dominantes em absoluto, mas descobrindo nestas, proporções, combinações, etc., por cujo meio de seu operar legal pode surgir também qualquer coisa qualitativamente diversa do que se teria no seu funcionamento ser-em-si, sem a intervenção da posição teleológica. Enquanto a essência não sofre nenhuma influência, o mundo fenomênico, ao invés, estende-se e diversifica-se fortemente. A novidade ontológica de tal intervenção na gênese do ser social, portanto, é que na consciência do homem surge uma imagem que corresponde à realidade objetiva, e é somente a análise atenta desta imagem e a sua aplicação sempre mais diferenciada à realidade, que tornam possível a práxis material, a realização das posições teleológicas. Esta imagem, este espelhamento da realidade na consciência dos homens, atinge por isso uma autonomia imediata na consciência, que está adiante como objeto próprio e específico; e é só por isto que se tornam possíveis tais análises irrenunciáveis e o contínuo confronto entre os resultados destas e a realidade mesma. A posição teleológica demanda, por isso, uma determinada distância da consciência em relação à realidade, isto é, demanda que a relação do homem (da consciência) com a realidade seja colocada como relação sujeito-objeto.

O novo surge antes de tudo do lado do objeto. O estímulo originariamente dá lugar a reações físico-químicas do organismo. Quando estas diferenciam-se e são percebidas, separadamente como luz, som, etc., não podem se destacar nem do objeto existente, nem do organismo perceptivo numa autonomia como a que foi descrita. Estas permanecem incrustadas, como momentos, no processo de reprodução do organismo, na sua concreta inter-relação com o ambiente, inseparável de tal processo. Neste sentido, podemos afirmar várias vezes que a consciência surgida e operante em tal contexto é um epifenômeno do processo real e da reprodução biológica. Na posição teleológica do trabalho, ao invés, a imagem da realidade objetiva que se forma na consciência atinge uma forte autonomia. No sujeito esta se afasta sempre mais decididamente da ocasião prática que impulsiona a percepção, que a faz entrar na esfera biológica, reproduz em termos crescentes, em uma dimensão sempre mais diferençada, a imagem do objeto (compreendido no sentido mais amplo) como esse é realmente, em-si, independentemente das relações que o ligam à vida do homem. A práxis tornada consciente através da posição teleológica, e por isso a práxis mesma em sentido estrito, pode surgir, portanto somente quando a consciência do agente vai além dos laços biológicos imediatos que nascem espontâneamente das suas inter-relações vitais com o ambiente, radicando-se na consciência como reações instintivas a essas. Isto é, a consciência pré-humana liga, com extraordinária fineza de detalhes, um determinado fenômeno do ambiente com uma determinada reação, em geral correta. Pense-se por exemplo nos sinais que muitos animais emitem na presença de aves de rapina que estão aproximando-se no ar. Mas, mesmo que a galinha choca e os pintinhos em geral reajam a esses sinais prontamente e de maneira adequada ao fim, isto não quer dizer absolutamente que eles tenham uma imagem do que a ave de rapina é em-si. Nem é garantido que em uma situação completamente diferente a reconheçam.

No trabalho e na linguagem, justamente é superada esta ligação entre a capacidade receptiva da consciência e os fatos do ambiente que acontecem freqüentemente e que são importantes para a vida. O trabalho mais primitivo

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pressupõe uma distância entre a percepção da coisa que serve como objeto, instrumento do trabalho, etc., e estas referências, como justamente descrevemos. Para serem usadas no trabalho, as propriedades das coisas devem ser conhecidas de vários lados, qual sua capacidade de reagir de diversos pontos de vista, isto é - tendencialmente -, é necessário conhecer o ser-em-si das coisas segundo certas determinações objetivas essenciais. Disto deriva um processo de abstração que atua de maneira espontânea e certamente é verificado - durante longo tempo - que está fora de qualquer consciência. Por exemplo, se quisermos usar uma pedra para cortar, temos em primeiro plano determinações gerais como dureza, possibilidade de ser afiada, etc., que podem estar presentes em pedras muito diferentes, à primeira vista, no exterior, e faltar, ao invés, em pedras de aparência muito semelhantes. O trabalho, mesmo o mais primitivo, deve ser precedido, na prática, de generalizações, as abstrações das espécies mais variadas. Que o homem que pratica tais atos tenha a suspeita ou não de fazer abstrações, não atinge a coisa-em-si. O que vigora é a verdade marxiana por nós freqüentemente citada: os homens "fazem, mas não o sabem". Fazem, porém, não cada um por sua conta, mas em sociedade. A pedra trabalhada de maneira primitiva, até mesmo um pedregulho escolhido simplesmente para trabalhar, já são objetos do mundo e para o mundo do ser social: podem ser usados por qualquer um. Esta torna-se assim uma propriedade, inerente ao objeto mesmo, que os objetos da natureza no seu ser originário não possuíam. Sob esse ponto de vista, a sua utilidade social é casual (o que não exclui, como é óbvio, que esta seja determinada de maneira causal). A objetividade social é portanto sempre uma objetividade universal.

Este processo espontâneo de generalização objetiva-se praticamente durante o seu emprego na práxis laborativa e "teoreticamente" na linguagem. É evidente como até mesmo a palavra mais simples, mais cotidiana, é uma abstração. Quando dizemos "mesa" ou "andar" conseguimos em ambos os casos expressar lingüisticamente só o aspecto geral dos objetos, processos, etc. Para especificar, porém, necessitamos operações sintáticas, freqüentemente muito complicadas, uma vez que justamente a simples palavra expressa sempre e tão somente uma generalização. Anteriormente já destacamos como a linguagem no seu sentido próprio distinguia-se dos sinais que alguns animais, em situações importantes da sua vida, são capazes de transmitir uns aos outros. Estes sinais, porém, estão presentes na vida social dos homens, até em estágios mais evoluídos. Todavia, os sinais estão sempre ligados a uma situação; as, palavras nunca. Os sinais visam obter, e de uma maneira direta, um comportamento exatamente determinado em uma situação exatamente determinada, enquanto as palavras, justamente por causa do seu caráter abstrato, tem uma aplicabilidade universal e, tomadas isoladamente, expressam só a natureza geral de um objeto; por isso, não contêm ainda, neste nível da consciência, a demanda de um comportamento determinado. Em si, no enunciado lingüístico, manifesta-se somente a fixação no pensamento de um estado de coisas, primeiramente independente na aparência, da tomada de posição do homem nos seus confrontos. Aparentemente, porque também a gênese ontológica das palavras é sempre prática. E o convite ao comportamento tem necessidade de formas de expressões lingüísticas específicas que, justamente por pretenderem objetivações também, não podem ir além do mero sinal. Quando com a linguagem digo: você não deve roubar (ou uma outra proibição), eu viso obter um comportamento geral dos homens na sociedade. O mero sinal, por exemplo, a luz vermelha na esquina da rua, proíbe simplesmente de atravessar esta parte determinada de uma rua determinada, de um período determinado. Isto é, está rigorosamente ligado a uma situação.

Naturalmente também esta estrutura é o resultado de um processo histórico-social. Os primeiros passos sobre este caminho não os conhecemos e tememos que permaneçam desconhecidos. Com relação à evolução dos instrumentos, a Arqueologia já recolheu muito material e, além disso, datando, estabelecendo sucessões, analisando o modo de trabalho, a divisão do trabalho, etc., caracterizando o nível e as linhas de desenvolvimento das ferramentas, pode esclarecer muitas coisas sobre a história do mundo. Some-se a isso o fato de que os depoimentos humanos também esclarecem muito a respeito da transformação do homem dentro e mediante o processo evolutivo do trabalho (desenvolvimento do cérebro humano com relação à história das ferramentas, do trabalho). Porém, sobre o início da linguagem, não podemos encontrar um conjunto semelhante de documentos. Os estágios iniciais onde a etnografia pode estudar as línguas primitivas já estão há muito tempo apagados. Todavia, pensamos, as reais tendências evolutivas das línguas poderiam ser concretizadas muito mais do que hoje, uma vez que se seguissem as verdadeiras linhas de tendências das transformações, relacionando-as com o crescimento da produtividade do trabalho, mais do que baseando-as em mitos do passado e do presente, e projetando-os na pré-história. As linhas de tendência já são decifráveis com o material até agora conhecido: as formas lingüístiças movem-se do nível da representação (ligação de uma situação concreta com e estágio concreto do sujeito e do objeto lingüísticos) para o do concreto. Pode-se notar, por exemplo, que comparações aproximativas baseadas em representações do tipo “como um corvo” etc., gradualmente esgotam-se dando lugar à palavra e ao conceito "negro"; ou surgem termos que expressam um nível maior de abstração em relação a fenômenos singulares, os quais, no plano lingüístico, já formam generalizações naquele nível: pense-se em palavras como grãos, fruta, etc.; pense-se como da conjugação vai sempre desaparecendo cada vez mais a ligação com o gênero, o número, a direção do movimento, etc. dos sujeitos e se reduz a uma generalidade abstrata (o dual e os seus escassos resíduos remetem ainda a tais passagens).

Para nós, porém, interessa somente o problema ontológico encerrado em tais desenvolvimentos. E consiste no fato de que, tanto no trabalho como na linguagem, a força fundante da nova forma do ser social é o homem. A ferramenta e o processo do trabalho, a palavra e a proposição são momentos dinâmicos do processo no qual o homem - sem perder jamais a determinação biológica da sua vida - edifica uma nova forma própria de ser, a sociedade. A ênfase

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é baseada na atividade. O homem tornado social é o único ente que - sempre mais – produz e desenvolve ele próprio as condições de sua interação com o ambiente. Os instrumentos dessa atividade devem por isso ser feitos de tal maneira que, através deles, os objetos e as forças da natureza possam ser colocados em movimento de um modo novo, correspondente às posições que venham realizar-se. Isto já foi descrito para todos os momentos do trabalho, os subjetivos e os objetivos.

Se quisermos sair do nível geral, até agora inevitável, devemos indicar os movimentos dos fatos ontológicos já estabelecidos, e acima de tudo: tanto do lado subjetivo como do lado objetivo, temos que lidar com complexos onde a posição, teleológica e o ser-em-si dos objetos e processos naturais colocados em movimento formam por sua vez um novo complexo, indissolúvel e unitário no seu ser - e isto o diferencia substancialmente dos complexos que surgem na interação biológica entre organismos vivos e seu ambiente inorgânico. Também é verdade que todos os seus momentos são objetivados no pensamento e portanto tornam-se autônomos, sem no entanto por isso destruir de fato a unidade ontológica do complexo processual. Para traduzir no ser os resultados de tais análises dos momentos, é preciso uma nova posição teleológica, a qual faz nascer um outro complexo (uma variante do primeiro ou um complexo totalmente plasmado de novo), que porém, quanto à sua estrutura ontológica geral abstrata, não se diferencia em princípio daquela antiga que sofreu a transformação: ambos são seus objetivos. A consciência que realiza a preparação, portanto, pratica atos analíticos e sintéticos, cujo resultado é uma nova posição teleológica que, ou repete, ou modifica, ou de novo plasma radicalmente a precedente. Análises e sínteses são por isso produtos da consciência e não momentos reais daquele processo real, sobre o qual a posição teleológica procura influir de várias maneiras. Portanto, para servir de base a esta última, os seus resultados devem corresponder às leis de movimentos complexos que esses tentam captar. Devem portanto de alguma maneira reproduzir - mesmo sendo algo além da cópia direta - estes seus momentos duradouros. Ora, tal obra de reprodução nos revela alguns traços novos e essenciais, que devemos fixar bem, se pretendermos colher adequadamente o ser social na sua especificidade ontológica. Em primeiro lugar, a prioridade do ser nos é revelada pelo fato de que a posição teleológica realiza-se, ou seja, pode tornar-se um momento do ser social, somente quando é capaz de colher de maneira aproximativamente adequada os momentos mais essenciais do ser que se prepara para transformar. Somente a pedra que foi trabalhada de maneira apropriada para cortar, torna-se um elemento ativo do trabalho, da produção, do ser social. Se a operação não tem sucesso, a pedra permanece um objeto da natureza e não pode, portanto, fazer parte do ser social. Aqui manifesta-se em termos bastante concretos a estrutura da nova forma do ser, da sociabilidade. De fato, ainda que o produto do trabalho que não teve sucesso permaneça um objeto da natureza e não atinja o ser social, nem por isso o processo da sua fabricação possui um caráter social - negativo; trata-se, isto sim, de um dispêndio de energia desperdiçada.

Aqui vem à luz uma nova categoria - categoria no sentido marxiano de "forma de ser, determinação de existência" - do ser social: os produtos do trabalho são, em termos objetivos, válidos ou não-válidos (com passagens intermediárias muito gradativas). Quer dizer, o valor objetivo, a avaliação subjetiva suscitada por este, a posição de valor, a concordância ou a discordância a respeito de um valor, não são resultados de uma civilização humana amplamente evoluída, que permanecem indubitavelmente no "ser natural" do homem, que estão com este último numa relação de contraposição inconciliável, como dizia a filosofia idealista. Trata-se, ao invés, de componentes ontologicamente necessários do ser-homem, do seu ser-social em geral; e somente enquanto momentos do trabalho contrapõem-se à mera existência natural, que não conhece valor objetivo. Todavia, porque no ser do organismo, no seu processo reprodutivo, aparecem necessariamente os momentos favorável e desfavorável, estes podem ser, sem dúvida, considerados formas preparatórias, da passagem. Mas o salto representado pelo trabalho destaca estes momentos do processo de reprodução biológica, fazendo deles objetos da consciência, da práxis consciente, que nas consciências podem adquirir uma certa autonomia - relativamente elevada - em relação ao sujeito imediato; e, justamente em virtude de tal autonomia, podem influir decisivamente sobre a sua práxis. Para o nosso discurso atual, o determinante é o momento da consciência com a realidade existente-em-si. O valor não surge da posição de valor, mas sim a partir da realidade objetiva, a partir da função objetiva vital do valor enquanto índice do trabalho bem sucedido, que desenvolve as reações avaliativas subjetivas em relação à sua bem sucedida ou mal-sucedida realização, em relação ao processo que produz o sucesso ou o insucesso (somente na Ética poderemos ver como esta estrutura, apesar de amplas modificações, mantém-se também na relação de valor mais elevado).

Aqui nos interessa um outro lado desses fenômenos: a relação das formas de consciência assim surgidas, com a realidade objetiva; e, em estreitíssima relação com isso, as novas funções assumidas pela consciência. Com o trabalho e no trabalho, os modos de agir do homem perdem a sua ligação com as situações singulares concretas, assim como os seus produtos podem ser sempre mais desligados da utilização original. Com os mesmos gestos apropriadamente modificados, podem-se fabricar sempre coisas diferentes e também as ferramentas podem ser usadas ou adaptadas de maneiras as mais variadas. Este fato liga-se estreitamente à possibilidade de se aperfeiçoar sempre mais o processo do trabalho e seus produtos, pois a experiência de um modo concreto de fabricação, uma vez generalizadas as suas bases e concretizadas novamente as abstrações assim obtidas, pode-se tornar eficaz e fecunda em campos absolutamente novos (é claro que em tal passagem, os atos da consciência de que falamos antes, a análise e a síntese, heterogêneos em si, mas de fato relacionados um com o outro, sofrem um contínuo e constante aperfeiçoamento). Tudo tem como premissa e efeito na consciência do sujeito da práxis um autonomizar-se da imagem

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da realidade. Tal autonomia não se baseia, como é óbvio, sobre a autonomia do ato da consciência do objeto da sua intenção, dos objetos da natureza, das suas leis, dos tipos de procedimento objetivamente possíveis para o sujeito na práxis. Ao contrário. De um lado, estes objetos estão diante do sujeito na dura imobilidade do seu ser-em-si; de outro lado, o sujeito da práxis deve, isto sim, submeter-se sem restrições a tal ser-em-si, tentando conhecê-lo em termos os mais livres possíveis de preconceitos subjetivos, de projeções da subjetividade no objeto, etc., mas justamente por esta via, ele descobre no objeto, até então desconhecido, a transformação que realiza no meio, no objeto do trabalho, etc. que dá vida ao intercâmbio orgânico entre homem (sociedade) e natureza, não só sobre o seu fundamento, mas na produção do novo em geral. Tal prioridade do ser-em-si demonstra-se incontestável pelo fato de que um trabalho (práxis) bem sucedido é possível somente quando a consciência percebe, reproduz no pensamento, capta os objetos do mundo externo de maneira correspondente ao ser-em-si. A difusa resistência contra esta elementar e insuprimível relação do homem com o mundo que o circunda, sobre o qual ele age, tem origem afinal na interpretação mecanicístico-gnosiológica de tal relação, onde este processo de reprodução bastante complexo é transformado numa espécie de operação fotográfica efetuada pela consciência do objeto. A crítica juvenil ao materialismo de Feuerbach já se concentra no fato de que nele, tal relação não é concebida no sentido da práxis, mas simplesmente como "intuição", não subjetivamente.24 Mas o que significa subjetivamente, neste caso, o complexo processo sujeito-objeto do trabalho? Certamente não é a negação desta correta reprodução da imagem em concordância com o objeto de que estamos falando. A respeito de sua gênese, apenas acrescenta-se que ontologicamente nunca se trata de uma simples contemplação, de um acolhimento passivo do objeto por parte da consciência, mas ao invés, nessa compete ao sujeito um papel ativo, uma iniciativa: sem a posição teleológica não existe nem percepção, nem reprodução da imagem, nem conhecimento praticamente relevante do mundo objetivo. Somente a posição teleológica orientada para atuar, para transformar o mundo objetivo produz aquela seleção, entre a infinitude extensiva dos objetos e processos naturais, que tornam possível um comportamento prático nos seus confrontos. Naturalmente o ser-em-si permanece imutável, mas não ocorre nenhum comportamento prático em direção ao mundo dos objetos, cuja intenção se limita a esta imutabilidade. A posição teleológica provoca não só uma delimitação e uma seleção no ato de reproduzir a imagem, mas no seu âmbito - e além desse âmbito - provoca também uma orientação em direção àqueles momentos do existente-em-si, os quais, por seu meio, devem e podem ser colocados na relação desejada, na conexão desejada, etc. Esta orientação, enquanto modo concreto de posicionar-se, é diversamente organizada nas diversas posições teleológicas, e não só por aquilo que concerne ao conhecimento intelectual, no qual tal posição atinge o seu ápice no quadro da consciência, mas em cada percepção, em cada observação cujos resultados são elaborados e recolhidos conjuntamente na unidade da posição pela consciência que pensa e que põe. No mesmo bosque, o caçador, o lenhador, o coletor de cogumelos, etc. espontaneamente (mas que se tornaram conhecedores pela prática) perceberão objetos qualitativamente bem diversos, apesar de que o ser-em-si do bosque não sofre nenhuma mudança. Muda somente a ótica segundo a qual tem lugar a seleção de conteúdo e forma da reprodução da imagem na consciência. Mas também neste caso, devemos evitar o mecanismo por via mecanicista: não é que os momentos isolados sejam destacados do complexo total; por exemplo o bosque, sucessivamente é colocado mecanicamente, lado a lado numa série. Nesta percepção, ao invés, tem-se uma reprodução da imagem do bosque como totalidade complexa, aliás subespécie da posição teleológica cada vez desejada e do comportamento por ela ditado. Não se tem portanto uma abolição do espelhamento, mas simplesmente no seu interior verifica-se um deslocamento de ênfase segundo a importância: os momentos que são importantes para a posição teleológica são percebidos com precisão, fineza, sutileza, etc. sempre crescentes, enquanto aqueles que se encontram fora deste campo acabam por afastar-se num vago horizonte. Não obstante, tal seleção e classificação produzidas na reprodução da imagem por obra do sujeito, que elaboradas de modos sempre mais sistematizados, constituem o veículo mais importante do processo inicial; cada refinamento neste sentido da imagem representa um passo adiante, uma aproximação maior do original. A teoria dialética do espelhamento é uma ampla ontologia da gênese e ao mesmo tempo do aperfeiçoamento: essa põe luz na dinâmica que opera na inter-relação entre sujeito e objeto da práxis, na qual vêm de fato conhecidos e praticamente colocados em movimento aqueles momentos da infinidade extensiva e intensiva, que levam à realização posições teleológicas sempre mais adequadas à consciência.

Com o que temos, resulta colocada de lado prática e teoricamente a concepção mecanicista do espelhamento, mas não a dependência geral materialista da posição do ser-em-si da realidade. A diferença entre essas duas coisas está "só" no fato de que a teoria mecanicista do espelhamento pressupõe uma misteriosa capacidade do homem de fixar de modo adequado, fotograficamente, o seu ambiente mediante os seus sentidos, enquanto que a concepção dialética de Marx, não é senão uma reprodução, uma conceituação do processo que sempre ocorre necessariamente no trabalho, na sua preparação. Esta contém em si todas as contradições que tornaram este processo determinante para o destino da humanização do homem. A prioridade do momento material apresenta-se, como já vimos, principalmente no caráter de alternativa da posição teleológica: esta pode obter sucesso ou falhar, e o primeiro pressuposto do sucesso é que a percepção, a observação que desta deriva, a consciência que lhe ordena, enquanto ato teórico-prático tornado unitário, colhem efetivamente o ser-em-si do objeto. Todavia esta estrutura, se assumida em termos gerais abstratos, não nos dá

24 MEGA, I, 5, p. 533 (trad. It., Tesi su Feuerbach, cit., p.3).

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a especificidade do ato de trabalho. Toda interação entre um organismo e seu ambiente, de fato, pressupõe que os seus modos de reagir sejam adequados ao ser-em-si de ambos. Já vimos porém que onde estas reações são reguladas por uma espécie de consciência, como nos animais superiores, no processo prático não existe aquela autonomia da imagem do objeto existente-em-si, que já descrevemos aqui. As funções da consciência reduzem-se às reações que são suscitadas para uma situação concreta bem determinada. As experiências com os animais em cativeiro fornecem um quadro exato do modo pelo qual eles reagem, das tentativas fracassadas que antes ou depois podem (não: devem) conduzir a um comportamento correto. Instrutivo em tais experiências é, não somente o processo que leva a este resultado e à sua assimilação através do exercício, mas além disso, também o fato de que o devir não é mais posto pelo próprio animal: nas experiências ele é colocado pelo homem e na natureza pelas transformações do ambiente. No homem que trabalha, justamente o devir é um produto direto da consciência.

Somente por tal via pode surgir a relação sujeito-objeto na posição teleológica de que falamos antes. O papel ativo desta, tal como foi descrito até agora, não esgota tudo o que há de novo aqui. O novo está sobretudo no fato de que a imagem produzida pelo sujeito, cuja fidelidade é desejada, mas que não é "fotográfica" sob qualquer ponto de vista, adquire sua autonomia no processo vital desse mesmo sujeito. A imagem do objeto fixa-se no homem como objeto da consciência, que de um lado pode também ser levada em consideração, como freqüentemente acontece, separada do local da realidade objetiva que a suscitou; de outro lado, está numa relação de forte autonomia com a própria consciência. Trata-se de um objeto para a consciência que analisa a aplicabilidade a casos imediatamente diversos e cuja correção submete a contínuas provas, à completude e à utilidade, etc. E sob a base desses repetidos exames da imagem será depois decidido se as posições teleológicas futuras serão simples repetições daquelas já efetuadas, ou baseando-se na práxis sucessiva será uma posição teleológica mais ou menos modificada ou até totalmente reestruturada. Já vimos anteriormente que a maioria tem a linguagem como a generalização do espelhamento singular espontâneo diante dos nomes, mediante a atribuição de nomes a objetos e processos.

Nunca será suficientemente sublinhada a importância desse fato novo, dessa mudança da estrutura e da função da consciência. De fato, o comportamento especificamente humano em relação ao mundo exterior, por nós assim circunscrito, onde pela primeira vez se tem uma relação sujeito-objeto no sentido próprio, pode ser compreendido na sua peculiaridade concreta só quando for clara a real estrutura e dinâmica deste duplicar-se do mundo dos objetos, a sua divisão em objetos reais e imagens para a consciência. De um lado, a autonomia, a concretude, a legalidade, etc., dos objetos podem tornar-se operantes para o sujeito somente quando existir tal autonomia da imagem. Antes de tudo, o objeto na sua multiformidade pode revelar ao sujeito o seu verdadeiro ser - de existência unitária -, somente na elaboração da consciência, na concordância que esta intui entre os diferentes modos de aparecer, etc., isto é, como resultado de um processo de análise e síntese realizado pelo pensamento. Assim, o autonomizar-se da imagem é o pressuposto para que a consciência possa captar o objeto na sua diferençada identidade, existente-em-si, consigo mesmo. As reações, muitas vezes extraordinariamente finais e diferenciais, dos animais em relação a um objeto do ambiente limitam-se sempre a situações concretas, dependentes daquela situação, daquele fenômeno com as condições da auto-conservação daquele organismo. Essas portanto - como já vimos - não se relacionam com a totalidade do objeto. Ao contrário, a autonomia da imagem, aqui descrita, pretende justamente passar dos variados modos de apresentar-se à identidade do próprio objeto, à unidade objetiva dos seus modos de ser, das suas propriedades. O trabalho, o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento são possíveis somente porque as posições teleológicas dispõem sempre mais de um elenco cada vez mais amplo e seguro, mais refinado; são os conceitos a respeito das coisas e dos processos da realidade. De fato, somente assim a posição teleológica pode entender, usar e aperfeiçoar estes como meio de trabalho, etc. Quando dissemos conceitos, falamos ao mesmo tempo de palavras e proposições. O nascimento simultâneo do trabalho e da linguagem tem aqui a mesma base ontológico-genética. Como demonstra o discurso feito até agora, aqui vem à luz o momento basilar do ser social e devemos ocupar-nos detalhadamente do seu caráter geral: a objetivação do objeto e a alienação (Entäusserung) do sujeito, que formam como processo unitário a base da práxis e da teoria humana. Este complexo de problemas assume um lugar central em uma parte da filosofia contemporânea, ao passo que é considerado fundamento do estranhamento (Entfremdung). Uma ligação e bastante íntima existe aí, indubitavelmente: o estranhamento pode originar-se somente da alienação; se a estrutura do ser não colocar esta última no centro, determinados tipos de estranhamento não podem manifestar-se em caso algum. Mas, quando se enfrenta este problema, nunca se deve esquecer que ontologicamente a origem do estranhamento e da alienação não significa absolutamente que estes dois complexos sejam unívoca e condicionalmente um só: é verdade que determinadas formas de estranhamento podem nascer da alienação, mas esta última pode muito bem existir e operar sem produzir estranhamentos. A identificação entre as duas coisas, tão difundida na filosofia moderna, deriva de Hegel. Nos Manuscritos econômico-filosóficos escreve Marx contra a concepção hegeliana: "O que vale como a essência posta e superada do estranhamento não é que o ente humano se objetiva desumanamente em oposição a si mesmo, mas que este se objetiva diferentemente do pensamento abstrato e em oposição ao pensamento abstrato".25 Por isso, é um equívoco considerar Marx um precursor das tendências "modernas", como fazem alguns existencialistas: a concepção hegeliana da alienação e do estranhamento lhes parece a filosofia do jovem Marx (muitas vezes transmitida como

25 MEGA, I, 3, p.155 (trad. It.cit., p.359).

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visão contraposta àquela do Marx posterior), e isto apesar de que ele mesmo tenha então criticado as conseqüências do idealismo hegeliano com a mesma decisão com que as criticará mais tarde. Para afastar o problema deste estado de confusão e reportá-lo de volta aos seus fundamentos corretos, achamos útil excluir por enquanto o tema do estranhamento (o próximo capitulo, em todo caso, é dedicado a isto) e limitarmo-nos agora à crítica marxiana da alienação. Neste ponto, a crítica de Marx a Hegel é radical e extremamente precisa. Ele contrapõe a originariedade ontológica da objetividade à concepção hegeliana, segundo a qual a objetividade surge da alienação e o seu cumprimento verdadeiro e autêntico só pode ser dado pela superação de toda objetividade: "Um ente que não tenha um objeto fora de si não é um ente objetivo. Um ente que não seja ele mesmo objeto para um terceiro não tem nenhum ente como seu objeto, isto é, não se comporta objetivamente, o seu ser não é nada objetivo. Um ente não objetivo é um 'não-ente'".26 Isto quer dizer que o processo que o idealismo hegeliano concebe como gênese da objetividade (e correspondentemente como anulação da objetividade no sujeito) desenvolve-se na realidade, e segundo Marx, em um mundo já desde a origem objetivo, como reação de entes reais, ou seja, objetivos, à própria realidade primária, imprescindivelmente objetiva.27 A oposição dinâmica do ser social com a natureza, da qual este desenvolve-se exclusivamente e em interação, com a qual tem a possibilidade de existir, não assume, por isso, o ponto de vista da contraposição hegeliana entre objetividade alienada e sua superação mediante a anulação do sujeito, mas ao contrário, o ponto de vista da posição na qual o homem, já objetivo, mesmo enquanto mero ente natural, no trabalho progride até objetivar esta vida genérica,28 na sua dinâmica, consciente, na genérica inter-relação com a objetividade da natureza. Com a objetivação temos a categoria fundamental objetiva do ser social, que expressa junto à identidade ontológica última de cada ser (objetividade em geral) e a não-identidade na identidade (objetivação no ser social versus mera objetividade no ser natural). Aquilo que no capítulo sobre o trabalho - quando falando de um problema insolúvel, nem mesmo formulável em termos adequados, naquela fase inicial - simplificamos, definindo como a realização em oposição à realidade, somente neste momento recebe a sua determinação conceitual precisa. Esta novidade em relação a todo ser pré-social vem à luz de modo mais claro naquilo que dissemos precedentemente a respeito da relação entre o em-si e o para-nós. As objetividades da natureza formam enquanto tais, a base da troca orgânica da sociedade com esta. Em tal contexto, é inevitável que o seu em-si, continuamente, de maneira crescente, de modo sempre mais variado, seja transformado em um para-nós. Isto acontece no sujeito do trabalho pelo seu caráter teleologicamente posto, no momento quanto ao objeto natural em que este sofre uma transformação e depende das suas propriedades que sobre este possa ser completado o processo em questão: mas do ponto de vista da objetividade geral abstrata, não se verifica senão um mero devenir-outro, tem-se simplesmente uma nova forma de objetividade pensada, em relação à qual esta permanece absolutamente indiferente (e até o termo "indiferente" é muito antropomórfico para expressar de maneira adequada o verdadeiro estado de coisas). Todo produto do trabalho, ao invés, vem objetivado para poder ser usado para certas finalidades. Na objetivação experimentada mediante o trabalho, este tornou-se utilizável para determinados fins, isto é, o ser-para-nós constitui agora um momento material da sua estrutura. Mediante a objetivação de um complexo objetual, o ser-para-nós fixa-se como propriedade existente do objeto objetivado; o sujeito portanto não tem necessidade de realizar sobre este uma análise e uma síntese criativas para colher o para-nós em geral. Não tem nada a ver com a nossa questão, que na maior parte dos casos seja necessário apreendê-lo.

Um outro lado ontológico tão importante desta situação foi revelado, e isto é interessante, precisamente por Hegel, embora ele não soubesse como tratar tal argumento. Na análise das determinações reflexivas ele nota que as determinações forma-conteúdo e forma-matéria são absolutamente diferentes. Em primeiro lugar, ele fixa a sua colocação no sistema das formas de objetividade: o conteúdo tem como base a relação forma-matéria do objeto e somente esta relação é algo de posto.29 Hegel pensa em discutir nesse ponto as relações meramente lógicas - está elaborando a categoria dos fundamentos - mas, como freqüentemente lhe sucede, de passagem põe luz a uma importante diferença ontológica, ou seja, precisamente aquela entre ser natural e ser social, quando contrapõe ao caráter posto de conteúdo o caráter natural da matéria e da forma, entendendo a "atividade da forma" como o próprio movimento da matéria mesma.30 Disso segue-se que o movimento da matéria comporta o nascimento de sua forma, da qual o exterior devenir-outro é justamente o ficar-idêntico da natureza enquanto relação forma-matéria; enquanto ao contrário, no âmbito da relação forma-conteúdo, da qual ela está como fundamento enquanto conteúdo, entendido como unidade de matéria e forma, o fato ontologicamente típico é precisamente o caráter posto da forma, isto é, não surgido de modo espontâneo da mobilidade imediata. Hegel observa com bastante atenção as diferenças que disso derivam; nota também que a preservação da falta de forma pode ser feita somente no âmbito da relação forma-conteúdo - que cada matéria tenha uma forma é óbvio - mas já como conceito de valor; e isto põe luz ainda mais fortemente, por um lado, ao seu caráter posto. Falta de forma significativa “não há ausência de forma em geral, mas somente que não está presente a forma justa”.31

26 Ivi, p. 161 (ivi, p.365).27 Ivi, p.160 (ivi, p.364).28 Ivi, p.89 (ivi, pp.303-304).29 G. F. W. Hegel, Wissenschaft der Logik, IV, cit., pp.85-86 (trad. it. cit., II, p.50a).30 Ivi, p.83 (ivi, p. 506).31 G. F. W. Hegel, Enzyklopüdie, parágrafo 133, aggiunta.

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Não há dúvida de que, nesta forma, fica determinado com precisão do ponto de vista do ser, a relação forma-conteúdo de cada produto do trabalho, de cada objetivação material. Não se pode esquecer porém, que também todas as posições teleológicas de tipo ideal mostram a, mesma estrutura. Enquanto na comunicação, por meio de sinais se expressa, na vida dos animais, a relação forma-matéria enquanto inter-relação entre organismo e ambiente (naturalmente os sinais da sociedade são também eles postos), na linguagem, o princípio dominante até nas palavras singulares é, ao invés, a relação posta formaconteúdo. A linguagem por isso não é somente uma imagem ideal das objetividades, mas simultaneamente sua objetivação na consciência. E isso deriva não somente do caráter espontâneo de valor de qualquer expressão lingüística, a qual se move sempre dentro da alternativa entre certo ou errado, mas também do fato de que o conteúdo (ou seja, a relação forma-matéria) pode elevar-se sempre mais acima das relações forma-matéria reais sem perder a própria unicidade sintética, a possibilidade de ser a expressão correta. Pense-se, já na vida cotidiana, as abstrações como o mobiliário, grãos, frutas, etc., cujo conteúdo conserva sempre de modo único a unidade objetiva de forma e matéria, até o desenvolvimento, e contribui para o progresso nos homens e pelos homens do processo de sua socialização, reproduzindo no pensamento a expansão do mundo objetivado e não mais simplesmente objetivo. Quanto mais alto o nível de desenvolvimento dessas formas, momentos, modos de aparecer, etc., ideais da posição teleológica, tanto mais explícito o seu caráter de objetivação.

Dado este predomínio da objetivação como categoria central do ser social fundado nas posições teleológicas, aparecem refutadas todas as reviravoltas idealistas derivadas da concepção hegeliana da alienação. Mas, precisamente quando se assume incondicionalmente uma atitude tão radical, nós podemos e devemos nos perguntar se aquilo que Hegel visou (e não conseguiu) apreender com a alienação, não seria compreendido também como um momento real do processo que, uma vez levado à luz com clareza, nos daria um quadro da situação mais articulado do que tinha sido até então, sem porém destruir sua unicidade, à qual devemos precisamente a radical crítica marxiana nos confrontos com Hegel. Ora, nunca se deve esquecer que a objetivação representa um ente realmente objetivado e de conseqüências realmente objetivas para o ser social; qualquer práxis social, sempre e ao mesmo tempo revela também uma atividade de sujeitos sociais, que - precisamente na sua atividade - não somente agem sobre um mundo objetivo objetivando-o, mas simultaneamente transformam o ser mesmo de sujeitos que põem objetivações. Temos lembrado muitas vezes que, conforme Marx, a riqueza espiritual de um indivíduo depende da riqueza das suas relações com o mundo, concepção que em substância coincide com a imagem que Goethe maduro fazia de si mesmo. E também aqui vem à luz um aspecto de fundo, já por nós tocado, do ser social. Isto é, o fato de que, por um lado, a totalidade da sociedade no seu processo histórico de reprodução e, por outro lado, o homem envolvendo-se da mera singularidade à individualidade, formam os dois pólos cuja inter-relação é a característica essencial desse complexo do ser, pelo fato de que precisamente neste torna-se visível a essência não mais muda do gênero humano. Se considerarmos mais de perto as relações das quais fala Marx, aparece claro que elas não podem ser entendidas como algo de "exterior" ao homem, com o qual sua "interioridade" se encontraria numa relação de mera contraposição, de exclusão recíproca. Do momento em que todas as expressões do homem, começando pelas fundamentais como o trabalho e a linguagem, até as objetivações de mais alto valor, são sempre necessariamente posições teleológicas, a relação sujeito-objeto, enquanto relação típica do homem com o mundo, é uma inter-relação na qual se tem uma ação inovadora, transformadora, permanente do sujeito sobre o objeto e do objeto sobre o sujeito, na qual nem uma, nem outra componente podem ser concebidas isoladas, separadas do par opositivo, isto é, como autônoma. Porém, isso não foi levado em conta nem pelo marxismo vulgar, nem em geral pela filosofia burguesa. Que o homem seja simplesmente visto como "produto" da sua base social, ou que se parta, por exemplo, como Gundolf, dos seus "atemporais" Urerlebnisse, ou como Heidegger da sua "dejeção" no ser, é no plano ontológico igualmente sem fundamento. Quando, ao invés, tem-se presente a indissolubilidade ontológica - mesmo na sua imediata heterogeneidade - destes dois pólos sólidos do ser social, torna-se claro que cada ato de objetivação do objeto da práxis é ao mesmo tempo um ato de alienação de seu sujeito.

Não é nossa tarefa descrever aqui, nem mesmo resumidamente, a relação histórica em contínua mudança, também qualitativa, entre objetivação e alienação. Está certo que, no início, dominavam as componentes da objetivação, embora predominantemente o trabalho objetivado tivesse notáveis efeitos retroativos e transformadores sobre seu sujeito; e embora seja quase impossível que diferenças como a habilidade, a criatividade, etc., não tenham, já nos estágios mais primitivos, deixado também no produto traços materiais da subjetividade auto-alienante-objetivante. Foi porém necessário um longo desenvolvimento, muito desigual, para que a alienação de um lado se elevasse a um certo patamar de autoconsciência, e de outro, tivesse garantida no processo global uma atuação sua, que não coincidisse mais com a mera validade ou não-validade objetiva (hábil/inábil), que aparece já no estágio da simples singularidade, mas onde esta se tornava a alienação real de uma existência humana presente (mesmo em termos relativos no plano social) realmente. E, para ficar também neste caso nos fenômenos de fundo: se observarmos o trabalho material, nos simples produtos laborativos, freqüentemente é possível reconhecer "a mão" (a personalidade) de seu produtor e isto desde os primeiros tempos até os nossos dias. Unicamente com a desantropomorfização do trabalho, iniciada como uma forma em si não ainda conseqüente, atada à divisão do trabalho existente na manufatura, é que o momento da alienação está aos poucos desaparecendo destas objetivações. Mas também neste caso somente tendencialmente, porque, embora a presença objetiva da alienação em geral apareça nos últimos atos laborativos

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executados pelos trabalhadores em geral a projeção geral de um tipo de produto, o seu "estilo", pode todavia expressar a marca de uma alienação. Também na linguagem expressa-se a desigualdade deste desenvolvimento, mas em termos bem diversos. O aumento do grau de sociabilidade, a integração crescente, aqui não produz de imediato alguma uniformidade desantropomorfizante. É verdade que a maior socialização cria freqüentemente estereótipos lingüísticos, etc., completamente despersonalizados, mas ao mesmo tempo acresce-se também o caráter de alienação individual da linguagem. Diferentemente dos estágios precedentes, torna-se mais fácil reconhecer as pessoas, captar sua individualidade, a escolha das palavras, do seu vocabulário, dos seus modos sintáticos, etc.

Naturalmente, não é possível marcar um limite preciso entre esferas da vida, tendo como critério o fato de que, em formações que são ontologicamente unitárias, a alienação e a objetividade exercem, uma ou a outra, o papel de momento predominante. Pois trata-se de um processo ontologicamente unitário, no qual se verifica simultaneamente o socializar-se da sociedade, o dirigir-se da humanidade a uma generidade real, no sentido da essência-em-si, e o desdobramento da individualidade humana. A separação entre produção, ou de forma mais abrangente, entre manifestações da vida econômica, por um lado, e formas de expressão dos homens ativos que não são imediatamente dirigidas à sua verdadeira e própria reprodução material-social, por outro, não provoca uma clara divisão conceitual. De fato, antes de tudo, são as ciências naturais, ainda que desenvolvidas pelo intercâmbio orgânico com a natureza, que cumprem a desantropomorfização de modo mais coerente; e mesmo aqui, a função predominante da socialização afirma-se com a máxima força nos confrontos da alienação. Por outro lado, trata-se também do fato de que nenhuma alienação, enquanto expressão de uma personalidade, pode tornar-se operante, isto é, existente, se por algum motivo não se objetiva. Os pensamentos, os sentimentos, etc. não alienados das pessoas são meras possibilidades; o que eles realmente significam é comprovado somente no processo do seu objetivar-se. Todavia, o confronto desta identidade, enquanto identidade e não-identidade da objetivação e da alienação, resulta incompleto se não esclarecermos a sua relação com o valor. De um ponto de vista meramente ontológico, esta questão é simplíssima: os valores surgem somente por meio da objetivação-alienação. A mera objetividade é, por princípio, indiferente ao valor. Só quando é posta no sistema das objetivações-alienações ela pode adquirir um valor: por exemplo, quando uma parte da natureza se torna passagem para os homens. Que este ser-posto tenha a sua base material nos muitos momentos realmente objetivos tirados da natureza em questão, não há dúvida; mas isso não muda a situação: as montanhas altas já existiam há muito tempo antes que um determinado desenvolvimento social as transformasse em passagens no sentido social. Seria, porém, completamente errado ver esses momentos da posição como plenos de valor. Eles são simples momentos ontológicos do ser social, logo podem, da mesma forma, ter ou não ter valor; existem, isto é, por força de coisas ligadas a um processo consciente, cujo êxito porém depende do seu concreto ser-propriamente-assim, enquanto o seu caráter de ser - no interior do ser social - não é prejudicado. Pode-se dizer: unicamente porque cada objetivação-alienação é em-si um componente do ser social, ela necessariamente dá lugar, junto com o próprio tornar-se existente, aos valores e, consequentemente, às avaliações.

Na discussão desta questão, precisa-se, então, ao mesmo tempo, partir do fato de que objetivação e alienação, no plano ontológico, são produtos de um ato unitário, mas que sua necessária distinção no plano histórico-social não é simplesmente o resultado de uma análise do pensamento; aliás, esta é possível apenas porque na distinção dos dois momentos desse ato unitário vem à luz diferenças ontológicas reais. Afirmamos: a sua essência é que a relação em-si unitária sujeito-objeto, que está na base de sua unidade, na objetivação atua como uma mudança do mundo dos objetos no sentido da sua socialização, enquanto que a alienação é o veículo que promove o desenvolvimento do sujeito na mesma direção. Agora, o fazer-social do objeto é um processo muito mais homogêneo do que aquele do sujeito. A pedra rudemente polida da pré-história está certamente fora da mera objetividade natural; tanto quanto a máquina mais complicada. Neste sentido fundante-ontológico, o salto do ser natural, o social, é único e definitivo. Mas não se segue disso que os progressos econômicos e técnicos obtidos no curso do desenvolvimento sejam indiferentes no plano ontológico. Ao contrário, são de grande relevância para a totalidade da sociedade que se desenvolve. Por isso, os efeitos, os estágios, etc. desenvolvidos das objetivações têm um papel decisivo na transformação do ser social, tanto quanto à essência, como quanto ao fenômeno. Mas isso não muda o dado fundamental pelo qual a socialização, como ato que transforma o ser, já na sua forma mais primordial, chega a uma constituição ontológica que, limitadamente para o seu ser-em-si geral, apresenta-se já como definitiva.

Diferentemente acontecem as coisas através da alienação. Sua presença introduz exclusivamente o problema da humanização do homem, da sua generidade no interior de um gênero não mais mudo. A possibilidade de sair do mutismo significa precisamente que ontologicamente, o gênero humano em-si, procedendo além deste estágio, pode ser. Ao contrário: a generidade muda da natureza implica um ser-em-si no sentido mais literal do termo. Pois nos espécimes pertencentes ao mesmo gênero, mesmo quando estes últimos, como os animais superiores, reagem informados pelo mundo exterior, isto não pode nunca entrar enquanto tal na consciência. O gênero reproduz-se nos exemplares singulares os quais, embora reagindo ao próprio ambiente sempre conforme o gênero, nunca porém têm consciência de si mesmos como pertencentes àquele gênero. Este gênero mudo salta com o trabalho e a linguagem para a generidade em-si do ser social. Já a objetivação, que substitui a mera objetividade do ser natural, articula em-si o reconhecimento do seu pertencer a um gênero. Quanto mais progride a socialização da sociedade, tanto mais ricas, multiformes, graduadas, coligadas por mediações, etc. tornam-se estas determinações e com mais evidência emerge,

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embora limitadas pelas velhas contradições do desenvolvimento, do estágio singular concreto - o caráter não mais mudo da generidade. Marx, todavia, e muito razoavelmente, chama todo esse decurso simplesmente de "pré-história" da sociedade humana, isto é, do gênero humano. Esta pré-história, a história do devenir-homem-do-homem, do fazer-se expressão adequada do gênero humano por parte da sociedade, poderá acabar somente quando os dois pólos do ser social, indivíduo humano e sociedade, cessarem de atuar espontaneamente de modo antagonístico um sobre o outro: quando a reprodução da sociedade promover o ser-homem, quando o indivíduo na sua individualidade realizar-se conscientemente como membro do gênero humano. Este será o segundo grande salto no desdobrar-se do ser social, o salto da generidade em-si para a generidade para-si, o início da verdadeira história da humanidade, na qual a - insuprimível - contraditoriedade interna à generidade, aquela entre indivíduo e totalidade social, cessará de ter um caráter antagônico. Da mesma maneira que o desenvolvimento da humanidade do ser-em-si do gênero para o ser-pa ra-si é um processo que se desenvolve nos homens, e em última análise em cada homem singular, como separação do homem particular sozinho naquilo em que - embora ainda em termos primitivos e distorcidos - o ser-para-si do gênero humano luta por existir. Que o salto seja definitivo aparece no fato de que o homem particular também é genérico. À sua generidade, embora ainda em-si, expressa-se já em atos teleológicos; não é mais mera aparência biológica do exemplo singular ao próprio gênero. Isso conduz por força das coisas aos atos de objetivação; nos quais os homens coincidentemente produzem alguma coisa de social, embora sem consciência de o fazerem, como Marx muitas vezes tem demonstrado através da atividade social geral média, dos homens. Gradualmente, cada uma destas atividades recebe uma expressão lingüística; a objetivação nela concluída começa também a apresentar-se como alienação, o que eqüivale dizer, embora num estágio inicial, num nível ainda baixíssimo, que adquire o caráter da auto-objetivação do sujeito. As finalidades, os sentimentos, as condições, as capacidades, etc. de cada homem tornam-se para ele mesmo objetivações avaliadas no sentido positivo ou negativo, que depois da sua elementar socialidade, ao seu ser comum entre os homens - embora com todas as diferenças que se têm desde o início.-, incidem sucessivas posições teológicas dos sujeitos.

Neste ponto, porém, temos unicamente o homem particular, que com efeito já foi separado por meio de um salto da generidade muda, meramente biológica, dos seres viventes da natureza. Esta nova generidade, todavia, manifesta-se diretamente com a realidade somente no seu em-si. Ela contém em si a possibilidade (de novo no sentido da dynamis aristotélica), uma intenção dirigida ao ser-para-si do gênero humano, mas neste caso a desigualdade do desenvolvimento resulta particularmente forte. Sabemos: a desigualdade domina todas as séries causais que se desenvolvem na sociedade, e por isso - em correspondência à diversidade no concreto ser-precisamente-assim - variam as formas nas quais se realizam os momentos necessários da essência. Todavia, não se deve esquecer de que nestas desigualdades dos desenvolvimentos, falando-se em termos gerais, vem à luz o que no processo global tem mero caráter causal e que, embora posto em movimento por posições causais, na sua totalidade não manifesta tampouco a sombra de uma teleologia. Em relação às desigualdades, enquanto sínteses sociais, apresentadas entre totalidades parciais e o influxo ontológico das posições singulares, podemos achar suas expressões - nos estágios tendencialmente progressivos das suas inter-relações com o todo - somente através do médium destas totalidades parciais. A alienação porém, apesar da sua sociabilidade, essencialmente possui os traços da singularidade, da objetivação de uma posição singular, e mediada por esta objetivação retroage no desenvolvimento da individualidade humana na sociedade. Esta estrutura ontológica da alienação multiplica espontaneamente aqueles meios através dos quais têm lugar o movimento e a mediação; e a partir do momento em que eles estão relativamente certos, mas concretamente muito independentes um do outro, a heterogeneidade recíproca que disso deriva provoca um aumento das desigualdades no desenvolvimento. Está claro que também neste caso não se pode falar de tendências teleológicas evolutivas. A desigualdade de fato nasce precisamente das séries causais, quando estas têm uma direção tendencial determinada, que se afirma espontaneamente em circunstâncias mais ou menos heterogêneas. A alienação deve, sim, deixar-se fluir no desenvolvimento social global, todas as séries por ela postas em movimento, mas fica porém sempre ligada ao ato singular de porque as produz, enquanto retroage infalivelmente sobre o autor da posição, tornando-se fator decisivo de desenvolvimento na sua individualidade em cada direção: no horizonte, na poliedricidade, na profundidade, na qualidade, etc. Dado este ineliminável momento da sua posição, na alienação, a desigualdade do desenvolvimento acaba por manifestar-se com força qualitativamente maior em relação aos outros processos sociais.

Ora, embora lembrando todos os argumentos que se colocam contra uma localização das alienações, não tanto com relação à sociedade, quanto nas fases do seu desenvolvimento, não podemos, todavia, deixar de arriscar alguma observação sobre o modo pelo qual elas operam fora do processo reprodutivo material da sociedade. Somente deste modo, o momento agora posto em relevo da retroação sobre a individualidade do autor da posição ilumina-se e assume o seu lugar na dinâmica evolutiva do processo social. Na próxima seção deste capítulo sobre a ideologia, discutiremos por extenso esse problema, embora até agora nós tenhamos muitas vezes acenado suas bases. E trata-se disso: o desenvolvimento social produz necessariamente o em-si do gênero humano como forma real do ser social; ao invés, o seu ser-para-si somente pode ser produzido por um processo objetivo como possibilidade, e isto, em todas as fases nas quais o em-si cada vez obtido torna-se (ou não se torna) um relativo para-si, como no período da grande virada que objetivamente pode conduzir ao reino da liberdade. Naquela seção, nos ocuparemos a fundo das visões de Marx a propósito disto. Agora podemos e devemos limitar-nos a observar que este caráter da possibilidade, para Marx,

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implica em estar fora da esfera na qual tem lugar a reprodução material do gênero humano. Esta última, enquanto "reino da necessidade", formará sempre a base do que e do como destas possibilidades, pois se fosse separada destas, restariam forçosamente pensamentos e sentimentos sobre o plano prático-social impotentes, ineficazes por princípio. Este vínculo absoluto e insuprimível tem unicamente um caráter negativo: fica excluída a real eficácia social das posições (alienações) que visam exclusiva e subjetivamente o ser-para-si, nesta possibilidade ligada à época. A determinação positiva, a ligação destas posições com a situação, não pode todavia fixar nada além do campo da possibilidade. Este campo de manobra é por princípio extremamente rico em dimensões. Já revelamos que o ser-em-si do gênero humano relaciona-se objetivamente a ambos os pólos do ser social, seja a uma determinada estrutura da sociedade no seu todo, seja .simultaneamente ao conteúdo, ao tipo, etc. da superação possível para os homens singulares da sua particularidade; e isto, por sua vez, pode, e na realidade deve ser também ele multiforme quanto à direção, o nível, etc.

Apesar disso, este campo de possibilidade, embora tão amplo que, aliás, de imediato aparece infinito, na realidade não é privado de limites. Já o fato de que o homem, como vimos muitas vezes, é um ser que responde, resulta que existem limites precisos, embora neste caso esses limites apareçam mais dilatáveis, mais elásticos que no restante da vida social. Mesmo que no momento nos limitemos somente à transformação do homem particular em generidade e autêntica individualidade, é claro que os obstáculos são criados pela vida social e as perspectivas por ela delineadas - eventualmente de forma negativa - para esta superação que já produz um concreto campo de possibilidades. Ainda nas visões utópicas, nas práticas absolutamente irrealizáveis, a realização da possibilidade da alienação realmente adequada ao homem na sua concretude não é certamente tão múltipla e ilimitada, como se pensada abstratamente. As forças que estabelecem esses limites são, de um lado, as "perguntas" postas pelo mesmo desenvolvimento objetivo do qual as alienações apresentam-se como respostas; por outro lado, e em correlação com este, o fato de que objetivação e alienação, em última análise, desenvolvem-se conjuntamente. E este último fato, apesar da elasticidade dos seus efeitos, introduz neste campo de forças uma tendência que resulta que o concretamente possível atue como princípio de seleção espontânea. No plano psicológico, e mais ainda no lógico, existem naturalmente outras inumeráveis possibilidades, mas para que uma alienação possa de qualquer maneira operar como tal, deve se mover entre os limites agora ditos, pois de outra forma resulta patológica, isto é, irrelevante do ponto de vista social.

Levando-se em conta, nesse caso, a alienação do sujeito humano nesta singularidade para a sociedade, elaborada na sociedade, operante sobre a sociedade, aparece-nos com clareza a sua grande importância para o desenvolvimento do gênero humano, pois consideramos que o homem só pode ser socialmente ativo como indivíduo mediante as suas alienações, nas quais, no seu edifício e conteúdo internos, enquanto formas expressivas da sua pessoa, manifesta-se o seu verdadeiro modo de relacionar-se com a sociedade na qual vive. É um problema decisivo para a relação do homem com a sociedade; e nesse caso, para aquele do singular com a generidade, que as atividades objetivantes de sua praxes econômica e extra-econômica promovem, freiam, ou até impedem completamente o seu fazer-se individualidade. No capítulo seguinte, nos ocuparemos a fundo dessa questão: o problema do estranhamento, hoje largamente discutido, torna-se compreensível somente partindo daqui. Agora devemos antecipadamente limitar-nos a lembrar o que já acenamos em termos extremamente gerais, que a alienação, vale dizer, é então a forma geral inevitável de cada atividade humana, e por isso obrigatoriamente na sua base está sempre o mínimo de sociabilidade da pessoa que põe; e, todavia esta generidade seja não apenas um dos momentos dinâmicos do homem que se faz homem, mas precisamente aquilo em cujo meio se decide esse processo evolutivo. Todas as condições objetivas do "reino da liberdade", desde o início da verdadeira história da humanidade, podem estar também presentes, mas permanecem meras possibilidades, se os homens são, ainda incapazes de expressar nas suas alienações uma generidade autêntica, positiva, cheia de conteúdo, e não simplesmente uma generidade-formal-particular. Desse modo, tal desenvolvimento verifica-se nos homens singulares, mas o marxismo vulgar habitualmente não o considera, cobrindo-o de um silêncio depreciador. Marx e Engels, porém, pensavam isso de outra forma. Diz Engels, falando da práxis social em geral: "Mas visto que as vontades singulares cada uma das quais quer o que a fazem querer a sua constituição fisica e as circunstâncias externas, que em última instância são as circunstâncias econômicas (mesmo as pessoais, ou gerais e sociais) - não alcançam o que querem, mas fundem-se numa média geral, em uma resultante comum; logo, não se pode concluir que elas devam ser igualadas a zero".32 Isso vale ainda mais, no caso que estamos discutindo, onde se coloca o desenvolvimento interior dos homens em direção à generidade autêntica, em direção do seu ativo expressar-se em sons.

Tentaremos agora caracterizar precisamente aquele médium social, através do qual as mediações e as avaliações singulares tornam-se algo socialmente operante. Este médium, a vida cotidiana dos homens, precisamente no seu concreto ser-mesmo-assim, é determinado em grande medida diretamente dos atos de alienação dos homens que tomam parte nisso. No momento de fato que estes atos objetivam a interioridade dos homens, mesmo quando esta objetivação seja somente lingüística, tem-se tanto para quem se aliena, quanto para o ambiente em que se dá a

32 K. Marx-F. Engels, Ausgewühlte Briefe, cit., p.375 (lettera de Engels a J.Bloch del 21 de settembre 1890, trad.it.in K. Marx- F. Engels, Opere scelte, cit., pp.1243-1244).

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alienação, um quadro mais ou menos claramente definido da sua essência pessoal que, embora movendo-se em perenes contradições internas, produz todavia uma certa continuidade de acordo com ele mesmo e com seu ambiente. Naturalmente o processo biológico da reprodução do organismo cria uma continuidade processual. Porém, é somente por meio do trâmite da objetivação que a alienação mostra em cada homem a tendência a coagular o em-si em um para-si, numa continuidade controlável, criticável, relativamente regulável, etc. da auto-realização e também do autoconhecimento. Este último, já na antiga Grécia, se achava no centro da conduta do homem, mas tornou-se possível somente depois destas objetivações. Os pensamentos, os sentimentos, etc. que permanecem subjetivos, que não são objetivados como nos organismos naturais que funcionam como uma consciência -, podem ter simplesmente uma continuidade em-si. Somente com a alienação objetivam-se todas as expressões vitais para o homem que as experimenta, assim como para o seu próximo. Somente através dessa objetivação, as duas coisas adquirem uma continuidade, humano-social, tanto pelo homem que as cumpre, como para aqueles com os quais, ele entra em contato; e é somente nesta continuidade que surge a personalidade do homem como substância portadora de tais atos, ainda que seja para si mesmo do que para os outros. As complexidades que se têm neste campo não podem ser descritas aqui detalhadamente; pertencem à Ética. Em termos absolutamente gerais, temos de um lado, cada homem singular considerando determinadas posições como reveladoras do próprio caráter e outras como reações causais a circunstâncias externas, como algo não desejado, ao qual foi constrangido, etc.; por outro lado, as pessoas que lidam com ele selecionam de maneira análoga suas manifestações. Que ambas as seleções tenham bases ambíguas, que cada homem possa encontrar-se em situações nas quais age de modo completamente diverso daquele que supunha serem até então suas idéias sobre si mesmo, que estas surpresas sejam ainda mais freqüentes quando se trata dos outros, tudo isso revela somente que a consciência dos homens, do próprio interior ou do exterior, permanece por força das circunstâncias muito mais incerta que os conhecimentos por eles adquiridos a respeito do material com o qual lidam no processo do trabalho.

Esta incerteza de julgamento pode ser compreendida de maneira adequada somente no plano ontológico. A continuidade da vida que se fundamenta na biologia e na fisico-psicologia apóia-se numa continuidade natural, em-si, e portanto, na medida em que resulte ontologicamente isolada, só é possível entendê-la como outro fenômeno natural (comportamento dos animais). Na vida cotidiana que nasce sobre a base dos atos de alienação, ao invés, existe uma continuidade de outro tipo, cujos atos fundantes têm caráter teleológico (objetivante-alienado); desta maneira, a substância que se conserva na continuidade do processo social da vida tem uma estrutura de valor. Enquanto atribuímos substância a uma pessoa - com razão neste nível de generalidade, mas com fortes possibilidades de errar nos casos singulares concretos -, podemos, quando se trata de outra pessoa, duvidar ou mesmo negar a substancialidade da sua essência. Estes julgamentos - embora freqüentemente errados nos casos concretos - são ontologicamente fundados, enquanto a substância humana autêntica, a substância de um caráter humano, não é um dado da natureza, mas o produto do homem mesmo, o resultado global dinâmico dos seus atos de alienação. Embora todas as circunstâncias nas quais o homem age, às quais ele responde, não sejam produzidas por ele, mas pela sociedade, embora as características psíquicas e físicas do homem sejam dadas e não, ao invés, feitas por ele, todavia o jogo global de todos esses fatores surge para ele somente como perguntas às quais ele mesmo - com decisões alternativas, isto é, aprovando ou negando ou adaptando-se, etc. - deve dar resposta. Então, a continuidade formada pelos seus atos de alienação é, neste sentido, o produto da sua própria atividade, das suas decisões; o importante é que cada uma dessas decisões, uma vez tomada, seja traduzida na prática, tornando-se para o homem que a executa um fato de sua vida tão imutável, quanto cada outro fato de seu itinerário que é, ao invés, determinado pelo exterior. Nos sucessivos atos de alienação ele, sabendo ou não, liga-se a isto, apesar de que novamente com decisões alternativas, isto é, ou avaliando como algo que deve ter continuidade, ou pelo contrário, procurando afastar-se, para cancelá-lo da continuidade da sua vida (entre estes dois pólos, obviamente existem na prática inúmeros graus intermediários). A tese geral do marxismo segundo a qual os homens, embora em circunstâncias não escolhidas por eles, fazem por si a própria história, vale então não apenas para a humanidade no seu conjunto e para os complexos sociais que a formam, mas também para a vida de cada indivíduo.

Com isso estamos de novo no secular problema filosófico da liberdade. Embora neste ponto ainda não seja possível aprofundar tal problema, podemos de qualquer forma ressaltar que se pode impostá-lo em termos racionais somente olhando a sua gênese ontológica. Vimos que os atos objetivadores do trabalho pressupõem cada vez decisões alternativas, assim como sua função ontológica. O olhar, embora rápido e genérico que temos dado ao modo de apresentar-se do complexo da alienação no interior destes atos, mostra não somente a necessidade das decisões alternativas, mas também a sua nova função, determinante para que a sociedade se torne sempre mais social: seu relacionar-se através do homem que põe, do sujeito da decisão alternativa na objetivação. A este propósito podemos estabelecer, neste estágio da análise, antes de tudo, que estes atos em geral ultrapassam o próprio conteúdo prático imediato. De fato, também nos atos do trabalho em sentido estrito, aparentemente visando somente a objetivação, aparece sempre, como é inevitável, a alienação: controlando o próprio trabalho o trabalhador julga também o próprio comportamento, a habilidade dos seus movimentos, etc. E avaliando, examinando, controlando, etc. estes últimos, ele cumpre continuamente atos de alienação, aparentemente diversos das objetivações, mas na realidade intimamente ligados a elas. A novidade do complexo problemático agora por nós enunciado consiste somente no fato de que os atos

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de alienação relacionam-se ao comportamento do homem na sua totalidade, definitivamente no seu caráter, plasmado no seu caráter, enquanto que no trabalho mesmo o correspondente relacionar-se atrás do sujeito - na maioria dos casos - comporta somente a correção dos comportamentos singulares. Com um olhar mais aproximado, porém, percebemos que uma coisa não exclui a outra. Porque, por um lado, no trabalho a alienação pode também relacionar-se ao caráter global do homem, por exemplo, a tenacidade em tarefas dificeis, a diligência, a coragem na caça a animais perigosos, etc.; e por outro lado, existem só na vida cotidiana dos homens, fora do trabalho mesmo, inúmeros casos nos quais a alienação produz somente uma correção, digamos, técnica dos modos específicos de comportamento. Também neste caso, o limite não é individualizável de maneira metafisicamente precisa, embora sem dúvida o limite exista, se olharmos a tendência de fundo dos diversos setores da vida, onde nos atos teleológicos dos homens, ora é a objetivação, ora é a alienação o momento tendencialmente predominante na maioria das decisões. O limite preciso, a causa principal da insolúvel ligação entre esses atos, mesmo a causa da sua diferença, nunca poderá existir.

As múltiplas confusões que se tem na interpretação desse complexo problemático derivam do fato de que o intelecto, mesmo ao nível científico, freqüentemente - aliás este último mais resolutamente que nunca -, procura chegar no fundamento da separabilidade conceitual, à separação ontológica daquilo que é inseparável. Isso acontece nos níveis mais elementares, onde as relações verdadeiras são mais visíveis que nos setores mais desenvolvidos, mais complexos, que se originam da divisão do trabalho e da diferenciação social. Se no trabalho, o momento da alienação é freqüentemente ignorado, com maior razão o é aquele da objetivação nas formas de vida que não contém diretamente este intercâmbio orgânico com a natureza: é assim falsificada a constituição desses atos que, de modo, abstrato, são vistos erroneamente como estando por si só. Quanto mais elevado é o nível da divisão social do trabalho, tanto mais evidente são as deformações que nascem quando um desses indissociáveis componentes é visto como autônomo. Bastará citar o dilema entre ética da intenção e ética da conseqüência, freqüentemente posto no centro dos discursos ético-políticos na época contemporânea, por exemplo, por Max Weber. Para quem seguiu a análise por nós conduzida até agora, está claro que aqui se trata somente de uma contraposição mecânico-metafísica entre alienação e objetivação em determinados atos éticos que são vistos como reciprocamente excludentes, mas que, até naqueles casos extremos, nos quais o primeiro momento parece não existir, se tem precisamente uma simples aparência. Precisamente Kant, um representante fanático da relevância exclusiva da intenção, logo que se põe a falar de fenômenos éticos, em alguma medida concretos, é obrigado a reintroduzir pela porta dos fundos, na dialética ética, as conseqüências. Já Hegel, com seu espontâneo sentido da realidade, embora não enxergando com clareza o problema na sua peculiaridade ontológica, revelou com ênfase a fragilidade de tal contraposição.33 Uma contraposição que, porém, reaparece continuamente nos mais diversos discursos éticos e que é um forte obstáculo para se entender a ética como parte orgânica do desenvolvimento da humanidade em direção a um gênero existente-para-si, chega assim a uma visão social da individualidade e ao mesmo tempo, a uma visão humana da sociabilidade. O sublinhar ontológico da ligação entre objetivação e alienação não exclui naturalmente a existência entre elas de conflitos concretos. Aliás, esses conflitos, como veremos no próximo capítulo e como se tornará visível na fundação da Ética, podem mesmo crescer até o ponto de constituir o caráter típico de determinados períodos. Eles derivam, porém, sua profundidade e aspereza, precisamente da unidade ontológica de objetivação e alienação enquanto momentos de um mesmo processo, num mesmo indivíduo. É precisamente freqüente no desenvolvimento social que sejam próprias as contradições entre motivos estritamente unidos, que desencadeiam conflitos profundos e plenos de conseqüências.

A socialização da sociedade, o recuo da barreira natural, cumprem-se do ponto de vista material imediato, através do jogo social dos atos de objetivação. Quanto mais numerosos resultam os objetos e as relações que, de objetos transformaram-se em objetivações e inseridas em sistemas de objetivações, tanto mais o homem acha-se longe do estado de natureza, tanto mais o seu ser é social e tendencialmente humano. Se a este ponto vamos ponderar a tendencialidade, não fazemos isso como concessão àqueles pontos de vista - por nós considerados errados - para os quais as desigualdades de desenvolvimento e os regressos demasiadamente freqüentes em direção a situações que justamente são ditas inumanas, seriam movimentos que, embora temporariamente, fazem retroceder o progresso na direção do nascimento do gênero humano. O fato é que este desenvolvimento é objetivamente necessário, inelutável, apenas porque diz respeito ao em-si da sociedade e nela do ser-homem. A linguagem cotidiana (e as concepções cotidianas do mundo que a movem) para indicar esses fenômenos usa, aparentemente com legitimidade, expressões como "bestial", "inumano" etc. Mas quando olhamos estes fenômenos com clareza em termos ontológicos, temos de reparar que se tratam simplesmente de expressões metafóricas. Tomemos, por exemplo, a crueldade: esta é humano-social, não bestial. Os animais não conhecem a crueldade. Quando o tigre, por exemplo, rasga e destroça um antílope, faz isso com a mesma necessidade genérico-biológica com a qual o antílope, mesmo "pacificamente", "inocentemente", pasta e então tritura plantas vivas. A crueldade e cada gênero de inumanidade, que estão presentes de modo socialmente objetivo ou mesmo como sentimentos subjetivos, nascem exclusivamente da execução de atos teleológicos, de alternativas condicionadas da sociedade, isto é, de objetivações e alienações do homem que age na sociedade (o fato de que os homens julgam em si mesmos e nos outros, como oriundos da natureza, alguns modos da objetivação e da alienação, particularmente persistentes, não muda as coisas quanto à situação ontológica). Estes atos,

33 G. F. W. Hegel, Rechtsphilosophie, parágrafo único 118 (trad. it. cit.).

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porém, somente adquirem dimensões massivas e tornam-se operantes em escala social quando - direta ou indiretamente, por necessidade econômica imediata ou como tentativa de dar resposta política a uma fase econômica da transição por vários motivos não compreendidos - são chamados a atuar no desenvolvimento econômico. O ressurgimento da escravidão na idade moderna na "acumulação originária" é exemplo do primeiro caso, assim como o período hitleriano o é do segundo. Reconhecer que se trata de fenômenos sociais que pertencem ao desenvolvimento da humanidade, não quer dizer naturalmente que sejam menos criticáveis no plano sócio-econômico. De fato, esses complexos fenomênicos, que necessariamente estão na gênese do gênero humano em-si, ao mesmo tempo constituem obstáculos que devem ser superados no desenvolvimento do ser-para-si. Somente uma visão ontológica correta das verdadeiras conexões objetivas revela qual é o campo real de manobra para a superação social desses complexos fenomênicos: se a crueldade tivesse que ser atribuída à nossa origem do reino animal, precisaríamos aceitá-la como um dado biológico, do mesmo modo que aceitamos a necessidade do nascimento e da morte no organismo. Enquanto é, ao contrário, conseqüência de posições teleológicas, ela pertence à longa série daqueles fenômenos do desenvolvimento da humanidade, que o ser põe socialmente - mas somente sobre a forma de possibilidade – as vias e os métodos para serem superados.

Para as finalidades a que nos propomos agora, este caso vale somente como exemplo. O motivo determinante, a ligação e a contraditoriedade simultâneas entre generidade em-si e generidade para-si só poderá ser exposto adequadamente na Ética. Mesmo que no próximo capítulo toquemos em alguns aspectos deste complexo de problemas, isso não significa que ele possa ser discutido a fundo no quadro de uma ontologia do ser social. O que nos interessa agora é a função da objetivação e sobretudo da alienação no complexo quadro ontológico do ser social. Por isso, devemos agora examiná-las como componentes de uma esfera infelizmente pouco considerada pelos marxistas: a vida cotidiana do homem. Quando, como é metodologicamente perceptível, o estudo das relações econômicas e também histórico-gerais limita-se a conexões mais gerais, mais típicas do desenvolvimento objetivo e das reações das massas frente a estas, em muitos casos - apesar das iluminantes e exauridas indicações de princípio de Marx mesmo - tem-se a aparência de uma ligação por demais retilínea e simples entre as duas esferas; tanto o marxismo vulgar, como a crítica burguesa ao marxismo tiraram proveito desse comportamento, cada um a seu modo. Temos várias vezes sublinhado que estes dois fatores no ser, na vida de cada homem singular, acham-se num interligamento concreto, rico de interações e de contradições. Na seção seguinte deste capítulo, na qual trataremos do problema da ideologia, tentaremos analisar os caracteres específicos, determinados pelos eventos, econômico-sociais-históricos, que se realizam no ser. Ainda neste ponto, num nível abaixo da possibilidade de dar um tratamento concreto, mas precisamente por isso, podemos iluminar um pouco mais claramente esta faixa mais ampla, mais determinante, matriz-fundante, precisamente a esfera da vida cotidiana dos homens, naturalmente não na sua totalidade extensiva e intensiva, mas somente com referência às questões de mediação que aqui especificamente nos interessam.

Já acenamos para o fato de que a posição teleológica retroage nas pessoas que as cumprem. Aqui, porém, não podemos ficar no homem singular, artificialmente isolado. Do ponto de vista ontológico, de fato, ele enquanto tal, enquanto "homem" da psicologia, é em última análise, o produto de uma abstração. No plano ontológico concreto ao invés, o homem trabalha em algum lugar e seus atos laborativos pressupõem um coletivo e desembocam na vida desse coletivo; enquanto membro de uma família vive e opera nesta comunidade, prescindindo-se se é o educador ou o educado, etc., etc. À vida real dos homens não se desenvolve somente, quase sempre com mediações mais ou menos amplas, na sociedade como um todo; a sua vida imediata tem como terreno um grupo de pequenas comunidades do gênero acenado. Da mesma forma, certamente seríamos unilaterais e deformaríamos os fatos essenciais, se isolássemos este tipo de ligação entre os homens e a vida do todo, como às vezes acontece nas pesquisas sociológicas específicas. Nos estágios mais primitivos da civilização, isto aconteceu naturalmente; aliás, freqüentemente este é o estado normal de grande parte da sociedade: por exemplo, existem inúmeros vilarejos e até pequenas cidades que chegaram a conhecer com atraso, ou nunca conheceram os grandes eventos do seu tempo. A socialização da sociedade não consiste, em última instância, no fato de que a sociedade inteira venha permeada por um processo de ininterruptas correntes de opiniões, de chegada e de partida, etc. A vida cotidiana dos homens tem uma extrema importância na reprodução da totalidade, mesmo porque, de um lado, existem contínuas correntes que chegam até as periferias, as quais os envolvem nas tentativas de resolver os grandes problemas da sociedade, nela suscitando reações a essas tentativas; por. outro lado, estas reações não somente refluem até o centro, até a sociedade inteira, mas ao mesmo tempo tornam operantes, por esta via, "em direção ao alto", aqueles problemas particulares que ocupam as comunidades locais menores, exigindo uma tomada de posição nos seus confrontos. Temos evitado o mais possível usar o termo que hoje se tornou quase um fetiche, a "informação". A informação torna-se, de fato, um fator social apenas quando suscita uma tomada de posição. Os fatos dos quais se é simplesmente informado, têm esse significado no máximo em sentido potencial, como motores de eventuais tomadas de posições sucessivas.

Esta corrente recíproca de tomadas de posições nos parece o complexo problemático mais importante da vida cotidiana. Em torno à incidência do centro sobre as periferias, tem-se aqui e acolá algumas pesquisas (existem muitas pesquisas sobre o modo pelo qual alguns bens de consumo "descem", isto é, sobre o modo pelo qual operam do "alto" para "baixo"). Absolutamente inexplorado, pelo contrário, ficou o movimento oposto, porque o aristocratismo doutoral das pessoas cultas as predispõem a considerar irrelevantes esses efeitos, e a considerar que tudo o que é pensado,

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sentido, vivido, etc. em "baixo" pode ser somente um produto de impulsos provenientes do "alto". Aqui não temos a possibilidade de nos aprofundarmos, por exemplo, no caso das artes, onde os impulsos que originalmente eram necessidades cotidianas, muitas vezes tiveram uma função decisiva, embora apresentando-se como problemas expressos de maneira primitiva, somente em termos de vida, como elementos e tendências primitivas; todavia, gostaria de lembrar em tempo que, na Estética,34 indiquei como estas tomadas de posições prático-cotidianas na direção de questões cada vez mais atuais, decorrem continuamente de "cima" para "baixo" e de "baixo" para "cima" e, consequentemente por isso, não somente necessidades pouco expressas podem ter um efeito promotor sobre a maior parte das objetivações da vida social; e que podem ser muito mais relevantes do que se julga normalmente; mas, além disso, porque a vida cotidiana média é permeada por determinadas objetivações - cheias de valor ou desvalor, progressistas ou reacionárias, etc. - muito mais intensamente do que se possa supor pelo conhecimento direto das "fontes". Para quem possa surpreender-se com o fato de que tais comunicações tenham lugar também em sociedades pouco desenvolvidas, a resposta é extremamente simples: o pensador, o político, o artista, etc., ainda que o mais significativo, vivem pessoalmente uma vida cotidiana cujos problemas, através dos fatos de cada dia, ou seja, da cozinha, do quarto das crianças, do mercado, etc., recaem continuamente sobre si, atraem sua atenção e provocam em si decisões também de natureza espiritual.

Marx põe em relevo este aspecto lembrando como, em geral, reprovam-se os economistas por não verem a unidade dos momentos singulares; a propósito, afirma: "Como se esta dissociação fosse passada não da realidade aos livros, mas vice-versa, dos livros à realidade".35 Subvalorizar-se-ia o significado desta observação, se a compreendêssemos como simples crítica às idéias erradas em economia, no âmbito da ciência econômica. Nós pensamos que Marx, falando da realidade em contraposição aos livros, referia-se aos pontos de vista geralmente difundidos na vida cotidiana, suscitados pelo modo imediato, massivo, cotidiano de apresentar-se a economia do capitalismo, e que depois, inadvertidamente não avaliados, passam para os "livros". É este um fenômeno muito freqüente em todas as ciências, mas é comum relevá-los apenas em períodos históricos longínquos, com um ar de superioridade. Por exemplo, quando os gregos falavam de leis diferentes para a realidade terrestre (sublunar) e para o mundo estrelar (supralunar), assumiam como base as experiências mais difundidas, que permeavam inteiramente a vida cotidiana, de um mundo aqui em baixo caótico, infinitamente multiforme, submerso pelas acidentalidades; e de um mundo lá em cima organizado segundo uma legalidade simples, clara, ordenada. Este preconceito derivado do imediatismo da vida cotidiana era tão arraigado que, podemos dizer, funcionava como um a-priori para todas as idéias concernentes a esses argumentos, tanto que também os intelectuais, nas suas pesquisas cientificas, partiam desse dualismo, considerando-o como um fato basilar da realidade (e não como uma idéia derivada das experiências ligadas ao seu tempo). Assim mesmo acontece com a questão do movimento, onde até Aristóteles não conseguiu ir além da concepção de um motor imóvel; ele lutou com este problema, elaborou uma hipótese depois da outra, e cada uma em si contribuiu, mas nunca chegando a pôr em dúvida a posição de fundo. Como é óbvio, estas duas idéias dependiam, em última análise, do grau de desenvolvimento das forças produtivas daquele período. Estas determinavam um tipo a elas adequado de intercâmbio orgânico com a natureza, cujas experiências depois permeavam a vida cotidiana e seu mundo de idéias; como conseqüência, aquela estrutura determinada, imediata do mundo significava para o homem a verdade ao seu redor. Somente uma transformação profunda do intercâmbio orgânico com a natureza abriria o caminho para a crítica às relações dessas visões solidamente arraigadas durante a vida. Estas, em geral, fixam-se na consciência cotidiana dos homens (em larga medida também na ciência) por um tempo muito longo. Pense-se o quanto a ciência natural do Renascimento teve de lutar contra as orientações aristotélicas, com que dificuldade elas desapareceram da consciência dos homens; ainda no século XVIII, em vários ambientes, tinha-se a idéia de que as leis que regulam o universo astronômico eram as de que deus tivesse dado corda ao "relógio-cosmo" e assim o tivesse posto em movimento, segundo leis rigorosas.

Desenvolvimentos de tal natureza não são, como geralmente se pensa, tarefa propriamente das ciências. Obviamente o intercâmbio orgânico entre a natureza e os conhecimentos mais relevantes que disso derivam acerca dos nexos naturais obstaculizam a matéria para as reviravoltas radicais neste campo, sendo motivos da conservação ou da mudança de tais opiniões. Consideramos, porém, que esta relação de causa e efeito não seja assim unívoca como aparece à primeira vista. Naturalmente os resultados aí obtidos operam forçosamente na "concepção do mundo" da vida cotidiana, mas quando elas funcionam como pressupostos conceituais das objetivações do intercâmbio orgânico com a natureza, "mundo" e "concepção de mundo" da vida cotidiana apresentam-se profundamente. É verdade que no trabalho, e tanto mais nas ciências que se desenvolvem a partir dele, as objetivações singulares saem muito cedo do seu isolamento de posições singulares e combinam-se em nexos organizados, em sistemas. Isso é possível e necessário somente porque, como freqüentemente falamos, a sua natureza de objetivações acompanha-se sempre de generalizações. E que, sejam estas sínteses que promovam a práxis, também isto se compreende por si. Todavia, significaria não reconhecer o caráter fundamental dessa maneira de pôr, ver nestas funções algo que tenha valor somente neste campo particular. Ao contrário, faz parte do caráter de todas essas posições, desde a linguagem, que elas

34 G. Lukács, Ästhetik I, Die Eigenart des Ästhetische, cit., pp.45, 78, ecc. (trad.it.cit., I, pp. 14-15, 46-47, ecc.).35 K. Marx, Grundrisse, cit., p.11 (trad.it.cit., I, p.13).

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operem neste sentido em todo lugar. Consequentemente, as objetivações e as alienações que a elas são ligadas provocam na vida cotidiana um efeito análogo àquele que há no intercâmbio com a natureza, isto é, generalizam, sistematizam o ambiente que de fato resulta relevante para o homem, e que por ele é vivido como tal, num "mundo" cujas imagens ideal e sentimental adquirem na consciência dos homens o caráter de uma "concepção de mundo" (colocamos entre aspas os dois termos para ressaltar como o primeiro constituía objetivamente apenas uma parte mais ou menos casual dentro da autêntica totalidade do gênero humano, enquanto o segundo, pelo mesmo motivo e além disso pelo imediatismo da vida cotidiana, possui somente em germe, apenas tendencialmente, as peculiaridades de uma concepção de mundo). Apesar disso, é natural que a imagem possua em geral um acentuado caráter cósmico, embora, obviamente conforme as épocas, as estruturas de classes, etc., os "mundos" possam e devam ter extensões muito diferentes e as "concepções de mundo", capacidades muito diferentes de aproximação à realidade objetiva. O "mundo" da vida cotidiana distingue-se daquele do trabalho antes de tudo porque nele, o aspecto da alienação das posições tem um peso muito maior, no sentido tanto extensivo, quanto intensivo. A personalidade do homem explicita-se objetivamente antes de tudo na práxis do trabalho, mas a essência da vida humana é tal, que as tendências ao ser-para-si, o auto-conhecimento, via de regra exprimem-se aberta e diretamente na esfera da cotidianeidade, no âmbito da atividade do homem como um todo. A isso acrescenta-se que a crítica por parte dos fatos objetivos nas relações das posições dos homens é muito fraca, mais incerta na vida cotidiana que no trabalho; e é um fato que reforça essas tendências e introduz uma problematicidade maior nos seus efeitos. Isto liga-se à diversidade, já por nós conhecida desde há muito tempo, entre as posições do intercâmbio orgânico com a natureza e aquelas que visam obter mudanças na conduta dos outros homens. Este menor controle por obra da "resistência da matéria" resulta que opiniões erradas, preconceitos, falsas interpretações da realidade, etc. na vida cotidiana possam permanecer mais que no trabalho. Nenhum instrumento, por exemplo, resistiria ao tratamento ao qual em muitas famílias são submetidas mulheres e crianças, que, embora recebendo disso danos interiores, permanecem todavia de pé. É ontologicamente diverso que o objeto da posição funcione somente como objeto ou mesmo que as objetivações reajam por sua vez como objetivações (alienações).

Esta diversidade não deve contudo ser unilateralmente exagerada. Antes de tudo, como já acenamos muitas vezes, não se deve esquecer de que a reação precisa dos objetos a um tratamento certo ou errado apresenta-se sempre limitada às finalidades objetivas e imediatas do trabalho. O que, além da práxis do trabalho, o pensamento do trabalhador não tem nenhuma influência sobre ela. Por isso, as idéias mágicas, etc. que no início acompanhavam os processos laborativos podem conservar-se como hábito, de várias maneiras, por séculos. Não apenas abandona-se a esfera do trabalho em sentido material estrito, mas encontra-se uma situação que é muito parecida com a cotidianeidade fora do trabalho. De fato, quando os objetos de tais posições não fundadas sobre a realidade são objetos naturais e não pessoas, como na maioria das vezes acontece na vida cotidiana, a "resistência" é ainda mais frágil. No caso das pessoas, normalmente com a mudança das circunstâncias têm-se reações de oposição em relação às posições tradicionais agora infundadas, enquanto que no outro caso os objetos ficam obviamente neutros. Perceber estes traços comuns é importante num duplo perfil. Em primeiro lugar porque, como já vimos várias vezes, cada práxis humana desenvolve-se, sendo que o sujeito que põe é obrigado a tomar decisões alternativas, embora inicialmente ele não possa dominar com o olhar todo o campo das suas premissas, conseqüências, etc. E do momento em que a causa do caráter objetivação-alienação das proposições teleológicas dos homens, as decisões concretas, não estão ligadas à situação no sentido como acontece com as atividades dos organismos animais que funcionam como uma consciência, mas ao invés, possuem intrinsecamente desde o início a tendência à generalização, que de modo espontâneo e necessário levam a entender as ações singulares como momentos de um "mundo", a consciência do homem atuante, principalmente nos casos que normalmente se repetem, não pode parar simplesmente diante da ignorância, mas tem que procurar inserir a todo custo no plano ideal esta ação no seu "mundo"; e, como desde o início e depois por longo tempo isto se faz prioritariamente em termos "mágicomísticos", deste fato foram dadas interpretações ontológicas de várias espécies. Não podemos parar aqui para analisar criticamente essas considerações, seja no fato de que elas instituem uma contraposição mecânica entre períodos mágicos e períodos científicos, como no que, ao invés, idealizam e veneram aquelas tentativas primordiais de dominar a realidade com a magia. Em termos ontológicos gerais, pode-se dizer que a causa da extensiva e intensiva infinidade do mundo dos objetos, este horizonte desconhecido que circunda cada práxis também em estágios mais evoluídos, é que isto se trata de um fenômeno universal. Por outro lado, depende também de cada problema com o qual a humanidade venha a confrontar-se, inclusive os que no curso do tempo recebem uma resposta aproximadamente completa, e na origem apresentam-se sempre como desconhecidos; a primeira aproximação com eles acontece sempre como uma tentativa através de analogias, tiradas do “mundo” já dominado no pensamento e de tentativas de enquadrá-los como algo de agora em diante conhecido. Justamente diz Goethe: “O homem deve crer com firmeza que o incompreensível seja compreensível; de outro modo não indagaria”.36 Que o analogizar ingênuo das origens tenha elevado em geral a um melhor conhecimento de conexões causais, que tenha provocado o enorme progresso do conhecimento humano, não elimina de qualquer forma este fato ontológico fundamental.

36 J. W. Goethe, Werke, Cotta Jubiläumssausgabe, XXXIX, p.70.

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O instrumento intelectual decisivo desse processo é a desantropomorfização, ou melhor, a tendência desantropomorfizadora do pensamento humano, a qual nasce do caráter objetivante do trabalho (e da linguagem), do devenir-homem-do-homem através da separação do vínculo e da situação própria das reações animais ao ambiente. Como sempre em complexos problemáticos desse tipo, costuma-se perceber e reconhecer esta tendência somente nos estágios mais desenvolvidos (matemática). Mas se nos aproximamos também desta questão em termos ontológico-genéticos, temos que reconhecer que a tendência à desantropomorfização já aparece no momento em que o homem, nos objetos da sua práxis (das suas objetivações), descobre uma independência de constituição, de propriedade, nexos, relações, etc. O fato de que no trabalho primitivo isso aconteça sem um auto-reconhecimento do seu fazer, não muda as coisas em si, mas corrobora, ao invés, a opinião de Marx, por nós muitas vezes citada, segundo a qual os homens podem cumprir praticamente também os atos conscientizáveis sem saber o que fazem.

A desantropomorfização, como vimos, pressupõe a objetivação. Vale dizer que os atos desantropomorfizantes assumem sempre uma forma objetiva, a qual apenas torna possível sua ulterior aplicação, seu ulterior desenvolvimento no pensamento. Surgem assim com a matemática, geometria, técnica racional, lógica, etc. aparatos conceituais internos, por cujo meio podem vir sujeitos ao conhecimento desantropomorfizante, campos sempre mais vastos. Seria ridículo duvidar de que sob este perfil tenham sido obtidos enormes progressos. Mas é necessário aperfeiçoar a crítica ontológica também para este estado de coisas. E, precisamente, é necessário criticar a ilusão de que inventar e usar de maneira tecnicamente correta os aparatos conceituais agora citados, já constitua uma garantia de que todas as posições ulteriores sejam cumpridas como desantropomorfizantes. Que estes aparatos em-si e para-si operem uma desantropomorfização dos objetos por eles espelhados, não podemos negar. Mas é preciso acrescentar que isso refere-se somente ao lado técnico do ato, o ato enquanto tal, ao invés - apesar dessa execução técnica poder permanecer ainda antropomorfizante, ou pelo menos poder conservar como suas componentes essenciais de relevo, caracteres antropomorfizantes. A história do pensamento humano apresenta contínuos exemplos do modo pelo qual elementos desantropomorfizantes podem nascer de um complexo conceitual antropomorfizante. Pense-se a prova ontológica da existência de deus. Do ponto de vista da sua lógica imanente, ela é construída corretamente. E esta correção não é atacada - embora disso resulte destruída a construção complexiva - pelo fato de que ao ser é atribuído, de maneira ontologicamente errada (antropomorfizando) um caráter de valor e correspondentemente, uma escala de valores de perfeição. Ainda mais claro é o exemplo metodológico, já por nós citado, da astrologia. Aqui, a "técnica" inteira é desantropomorfizante, mesmo as observações astronômicas que resultam da expressão matemática dessas relações. Antropomorfizante é "somente" o argumento de fundo segundo o qual existiria uma ligação entre o destino dos homens singulares e o respectivo estado do mundo estrelar. Esta "minúcia" porém é suficiente para a totalidade do aparato matemático da astrologia a serviço espiritual de um antropomorfismo extremo. A simples elaboração de formas de pensamento desantropomorfizantes não basta porém para encaminhar o pensamento humano numa estrada realmente desantropomorfizante. Somente quando a impostação principal da sondagem a respeito de algo até aquele momento desconhecido visa a constituição do real, do ser, do objeto, no ato global, pode realmente vir superada a procura antropomorfizante de analogias. Mas, por isso, é inevitável uma avaliação ontológica da impostação conceitual.

Trata-se porém de um processo muito complicado, do desenvolvimento desigual. Também aqui aparece evidente que, pela sua desigualdade, o desenvolvimento - apesar de conter as suas desigualdades, possua pelo menos como tendência uma determinada direção - não tenha, porém, nenhum caráter teleológico. Isto, no que concerne à questão que agora teremos que discutir, tem como conseqüência, de um lado, que alguns momentos que desenvolvem uma parte importante no movimento que avança para frente, podem em determinadas condições, tornar-se fatores de freio; por outro lado, o desenvolvimento mesmo pode deixar o caminho livre para forças que complicam o desenvolvimento retilíneo da linha de tendência, que o atrapalhem ou freiem, mas que na totalidade do seu ser constituem de qualquer forma, fatores importantíssimos deste desenvolvimento. E com isso chegamos ao segundo ponto do nosso discurso. Até agora examinamos os atos de objetivação dos homens somente nos seus efeitos objetivos; mas eles são também, como sabemos, indissociavelmente atos de alienação, que neste processo de objetivação agem sobre o sujeito que põe. A espécie humana é feita precisamente de homens singulares. Sua reprodução então não pode ser simplesmente social-geral, uma reprodução das unidades sociais por eles construídas, mas é justamente e antes de tudo aquelas dos homens singulares. A reprodução humana do singular diferencia-se da reprodução biológica dos simples organismos, não somente porque se cumpre na base de posições teleológicas, mas também porque, conseqüentemente, estas posições têm uma força, que retroage sobre o desenvolvimento do sujeito mesmo, e por isso o sujeito, neste processo, pode chegar a realizarse como verdadeiro sujeito e desenvolver-se como o fator decisivo para o nascimento do gênero existente-para-si, não mais mudo. Do ponto de vista da questão que nos ocupa neste momento, porém, surge então uma complicação ulterior. De fato, entre a desantropomorfização do pensamento e do desenvolver-se do sujeito até uma personalidade, parece existir - pelo menos de imediato - uma contradição. Já Goethe nos advertiu de que nunca sabemos até que ponto somos antropomorfizadores. É verdade que logo que nos aproximamos um pouco mais da essência da questão, também achamos tendências em contrário. A mais importante destas tendências torna-se visível, quando se reflete que o par oposicional desantropomorfizante-antropomorfizante não é sinônimo de objetividade-subjetividade. A desantropomorfização não afasta os princípios que

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guiam o desenvolvimento do homem que se faz homem, nem representa um conceito oposicional em relação à humanidade, como freqüentemente afirmam os irracionalistas; ela é, ao contrário, uma das condições e um dos veículos para o humanizar-se do homem. Há pouco tinhamos visto como conceitos e categorias desantropomorfizantes podem ser colocados a serviço de uma tendência exclusivamente fundada sobre o subjetivismo. Mas, vice-versa, também é possível que com categorias desantropomorfizantes obtenha-se a objetividade na reprodução e elaboração ideal da realidade. Se não fosse assim, realmente seria impossível orientar-se no ser social. De fato, centralmente existe nele, antes de tudo na economia, nexos cuja expressão mais adequada é a matemática; mas por um lado, ela é aplicável segundo o objeto entre limites mais restritos que, por exemplo, na física; por outro lado, aqui o imperativo de uma permanente referência à qualidade, à particularidade histórico-social é ainda mais rigoroso do que nos fenômenos meramente naturais. A objetividade é mesmo uma tendência do pensamento ao em-si dos objetos e das suas conexões não falsificadas com acréscimos, projeções, etc. subjetivas, e aqui a qualidade tem o seu. lugar no mesmo momento da quantidade. A maneira pela qual elas se realizam depende por isso da aptidão dos objetos dos quais é preciso colher o ser-em-si e da adequação do tipo de posição em relação a esta aptidão.

É evidente que os atos objetivantes resultam diferentes quando são dirigidos a simples objetos e não a objetivações. Esta diferença aumenta posteriormente na vida cotidiana, onde em cada ato de objetivação o caráter de alienação adquire maior importância ontológica. De fato, aqui não aparece apenas o modo pelo qual ele age sobre o mundo exterior composto por homens e objetos, mas também se e o quanto ele reforça ou enfraquece, promove ou freia a existência pessoal interior e exterior daquele que põe. Temos então uma diferença relevante, que porém não deve ser exageradamente considerada, nem uma vez, com deformações unilaterais. No momento, por um lado, o que é necessário ter presente é que cada ato objetivante, mesmo no trabalho, em última análise, vem posto em movimento por necessidades, interesses, etc.; o que aparece como elemento fundante do ser social, não é a falta de um interesse, mas o fato de que este interesse - para ser satisfeito de maneira adequada - põe por outro.lado em movimento o ato laborativo, mas no curso da preparação e execução deste último, deve ser suspenso. Naturalmente esta estrutura não deve se perder completamente nos atos da.vida cotidiana, mesmo quando neles exista uma preponderância da alienação. Cada ato de alienação visa também realizar uma determinada finalidade, a qual nunca pode faltar completamente, por princípio, nem a suspensão do interesse quando se prepara e ou executa-se, posto que não temos nada a ver com ações puramente patológicas. Hegel costumava dizer: não é preciso ser sapateiro para se saber onde é que dói um sapato; isto quer dizer que, também neste caso, a suspensão das necessidades imediatas é o fato ontologicamente decisivo para podermos mais acertadamente satisfazer pela via indireta de uma justa avaliação dos objetos, mesmo sem preparação cientifica ou especializada. Obviamente as diferenças são importantes: mas no trabalho, a suspensão dos interesses tem levado às ciências exatas, ao invés, por exemplo, no conhecimento dos homens da vida cotidiana, a ter na melhor das possibilidades, experiências acumuladas, controladas ao nível pessoal; enquanto no trabalho, em detrimento do sucesso da totalidade das posições, esta suspensão deve ser total, na vida cotidiana, ela é continuamente contrastada pelos afetos, que podem ter a intensidade da paixão.

Mas também este contraste, em si justificado, simplifica o estado das coisas - se o generalizamos de maneira mecânica -, ao ponto de facilmente chegarmos a desconhecer os momentos essenciais. Referimo-nos à clara oposição instituída entre a consciência adequada do objeto intencionado e os interesses, os afetos, que costumam transformar essa orientação de tal maneira, que uma coisa exclui a outra. Sob esse perfil, não se podem considerar idênticas a atitude em relação aos objetos e aquela em relação às objetivações. A suspensão absoluta dos afetos pode ter lugar somente nos casos, em que, para o trabalho (e para a ciência que dele se desenvolve), considera-se exclusivamente o mero ser-em-si do objeto. Já na economia, onde vários objetos, por exemplo, como possível matéria-prima de uma futura objetivação, são sujeitos a um projeto de posições, os interesses e também os afetos não são mais elimináveis. E quanto mais sociais tornam-se estes atos, tanto menos a suspensão da necessidade conserva o seu caráter absoluto. Necessidades, interesses e até paixões podem desenvolver um grande papel, muitas vezes até positivo. O completo "desinteresse" do cientista, expresso assim em geral, é um verdadeiro dogma das convenções catedráticas. A paixão que quer desmascarar - ou ao invés, atuar como fator de progresso, etc. - uma formação econômica, um sistema jurídico, uma forma estatal, e a conexa avaliação positiva ou negativa do passado histórico, etc. pode também trazer à luz verdades científicas, nas relações às quais o objetivismo dogmático-acadêmico resultava cego. Lênin afirma, com razão, que o partidarismo assim expresso pode alcançar um nível de objetividade mais alto que o mero objetivismo.37

Não é este o lugar para se discutir o lado epistemológico desse complexo de problemas fortemente contraditório, das relações, processos, etc. sociais; isso, porém, deve ficar claro para nós, pelo menos nos seus contornos mais gerais, se quisermos em certa medida compreender a situação do homem na cotidianeidade, o seu "mundo" e a sua "concepção de mundo". Já sabemos que estas últimas coisas, numa vida ordenada de objetivações, existem necessariamente como mundo material e espiritual, que de imediato circunda a práxis. A vida cotidiana tem como especificidade, que a relação entre a teoria (enquanto preparação, dentro da consciência, da práxis) e a práxis

37 V. I. Lênin, Ausgewühlte Werke, XI, Moskau, 1938, p.351 (trad.it. do A. Carpitella, Il contenuto economico del populismo, in V. I. Lênin, Opere complete, I, Roma, Editori Riuniti, p.412).

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tem um caráter imediato; mas, em cada caso, cada outra esfera da vida supera tal imediatismo. 38 Isto está conexo de maneira muito estrita - no momento mais como premissa e como conseqüência - com o fato de que a vida cotidiana é aquele setor em que cada homem desenvolve e afirma diretamente o que as suas "formas de existência" pessoais lhe permitem, onde por aspectos importantes é por ele decidido o sucesso ou a falência dessa conduta de vida. Disso deriva que, em todas as objetivações, a componente da alienação assume uma importância maior que em outro lugar. Muitas decisões são tomadas, não exclusivamente, não porque o homem em questão considere concreta e absolutamente certa a objetivação tratada, mas se e quanto ela .vai introduzir-se organicamente naquele sistema de alienações que ele, edificou para si mesmo. Também neste caso é preciso fazer-se uma dupla ponderação: por um lado, os homens - na média da cotidianeidade - raramente pressionam o predomínio das alienações sobre as objetividades das objetivações, até o ponto de pôr em jogo sua existência; por outro lado, na maior parte dos casos em que existem conflitos, tem-se dentro da consciência um deslize, pelo qual o homem, via de regra, considera objetivamente existente tudo o que concorda com sua conduta de vida, e objetivamente não-existente o que a contradiz. Não podemos nos deter agora sobre o infinito número de variações, passagens, etc. que se verificam neste contexto. É preciso apenas lembrar o fato de que estas passagens cumpridas mediante atos de alienação não se limitam às decisões singulares, imediatamente pessoais, mas na maioria dos casos revelam uma tendência generalizante, que pressiona a transformação também do que é meramente pessoal numa realização, pessoalmente cumprida, de leis, normas, tradições, etc. gerais. Nas sociedades primitivas, as visões generalizantes dominam imediatamente a conduta de todos os seus membros; somente quando o desenvolvimento crescente da divisão social do trabalho torna mais multiformes e intrincadas as relações entre os homens e destes com os processos sociais, somente quando, consequentemente, o momento individual torna-se nos homens sempre mais desenvolvido e, sempre mais determinante por sua práxis, é que aparecem no ser e, de maneira cada vez mais relevante, as tomadas de decisões das quais acabamos de falar. Nas suas contradições exprime-se o caráter social deste desenvolvimento em direção à individualidade: a individualidade pode encontrar, nas suas alienações, por si mesma e com maior razão pelo próprio ambiente, a auto-confirmação, somente quando eleva a auto-aprovação nelas contida à representação de um estrato social, de uma corrente social por ela aprovada. Obviamente, não se deve tratar obrigatoriamente de um consenso nos confrontos do respectivo status quo da sociedade: os excêntricos dos séculos XVIII e XIX, os individualistas existencialistas e mesmo os beatniks do século XX sempre negam o próprio presente percebam eles isso ou não -, do ponto de vista social generalizante. O "mundo" e precisamente a "concepção de mundo" dos indivíduos que se alienam desta maneira são amplamente determinados pelo conteúdo, pela direção destas alienações. Repetimos: não porque eles estejam a ponto de criar um "mundo" a partir de si mesmos, mas porque os homens, enquanto seres que respondem, nas suas alienações tomam posições acerca de problemas, condicionados pela época, pela existência na respectiva sociedade, isto é, em nome das necessidades da sua personalidade, decidem positiva ou negativamente as suas alternativas.

No âmbito dessa interação entre homem e ambiente, verifica-se uma mescla peculiar de ser e valor. O caráter específico do ser do valor é uma das últimas categorias do ser social compreendida adequadamente. A ciência tornada autônoma quer, sob vários aspectos, subjetivar a avaliação, tendendo a ver nesta apenas o ato de por e não o objeto socialmente existente que põe em movimento a posição. Consequentemente - e na filosofia isso se dá com freqüência - acontece que o caráter do ser do valor é assumido como algo transcendente. Ao contrário, no imediatismo da vida cotidiana, há a tendência de fundir completamente, no plano ontológico, o ser (tanto na objetividade como na subjetividade) e o valor; e esta intencionalidade espontânea geralmente encontra uma sustentação intelectual na concepção transcendente do valor levada adiante pelas religiões e pelas filosofias idealistas. No predomínio do imediatismo da vida cotidiana forma-se, com esta mescla entre ser e valor, uma base de vida aparentemente indestrutível, na qual os seus componentes reforçados reciprocamente são também sustentados pelos sentimentos, etc.. Quando a história das ciências é considerada simplesmente através de preconceitos, superados pelo progresso da consciência, as concepções do ser, como aquelas do mundo sublunar e supralunar, têm uma certa justificação do ponto de vista de uma história científica estritamente delimitada ao seu campo específico. Quando, porém, examinamos o mesmo desenvolvimento no quadro da totalidade da vida dos homens que vivem em sociedade, mesmo ante ao como numa ótica científica, vem definido o puro preconceito, as idéias falsas, etc., temos que lembrar a observação de Marx: os preconceitos tampouco passaram dos livros à realidade, mas da realidade aos livros.

Esta passagem é provocada por dois fatores independentes entre si, mas em contínua interação na práxis social. O primeiro é, obviamente, o progresso das ciências, requerido pelas relações econômicas para achar as respostas satisfatórias às suas necessidades. Todavia, não se deve esquecer de que este processo nunca acontece num espaço social vazio, isto é, existem contínuas hipóteses, com a ajuda das quais as questões exigidas podem ser resolvidas praticamente, mas acontece com freqüência que - mesmo em muitas questões decisivas ontologicamente concernentes ao conhecimento do mundo através de um determinado complexo fenomênico, obtém-se mais explicações possíveis que do mesmo modo permitem (ou quase) a sua previsão; logo, o seu domínio prático, do ponto de vista prático formal, pode ser considerado de igual valor. Porém, diferencia-se por um duplo aspecto: de um lado, pela sua capacidade de tornar-se dominável para fins práticos durante um maior ou menor conjunto de fenômenos; de

38 G. Lukács, Ästhetik, I, Die Eigenart des Ästhetischen, cit., I, pp.44 sgg. (trad.it.cit., I, pp.13 sgg.).

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outro lado, pelo seu grau de concordância com aquelas idéias a respeito do ser que, por motivos freqüentemente diversos do ponto de vista sócio-humano, sustentam ou então minam o "mundo" da vida cotidiana dos homens naquele estágio histórico. Pense-se no exemplo em que a astronomia heliocêntrica aparece como teoria científica já na Antigüidade tardia. Todavia, ela permanece inoperante em relação à geocêntrica, em função dessa contradição com o "mundo" da cotidianeidade. Tal resistência - fundada no desejo (imaginário do ponto de vista ontológico, mas extremamente importante na prática da vida cotidiana) de maior segurança dos homens num cosmo cujo centro fosse a nossa Terra - demonstrou-se de maneira tenaz que, no momento em que as necessidades reais da práxis social puseram como resolução na ordem do dia o sistema heliocêntrico, houve, defensores perspicazes do estado de coisas existente, como o cardeal Bellarmino, que sustentou a linha de uma dupla verdade: na práxis econômica e científica se aceitaria o heliocentrismo como instrumento útil mas, ao mesmo tempo, no plano ontológico, para o "mundo" da cotidianeidade (ao qual em substância existe também a religião) continuar-se-ia a considerar a Terra como centro do cosmo. A força desta resistência fica bem visível se, por exemplo, pensarmos em Pascal, que aguçadamente iluminou as conseqüências ontológicas desta reviravolta para a cotidianeidade humana; e se também considerarmos por volta do início do nosso século, como Duhem e Poincaré assumiram, o primeiro de modo claro e o segundo, de fato, a posição do cardeal Bellarmino.

Isto naturalmente nada muda quanto aos resultados de cada ciência. Ao contrário, reflete muito sobre a maneira pela qual eles, com a merecida autoridade que possuem em termos meramente científicos, atuam no pensamento da cotidianeidade, mesmo porque obscurecem necessidades que se desenvolveram no território da vida cotidiana; porém, isto é assim mesmo, devido a razões histórico-sociais. Por outro lado, estas necessidades, por sua vez, retroagem sobre a maneira pela qual os cientistas interpretam ontologicamente o próprio método e os resultados que disso derivam. Que se possam verificar grandes diferenças e talvez fortes contraposições entre o trabalho científico enquanto tal e esta sua auto-interpretação com referência ao ser, já o revelou Lênin, ao observar que esta discrepância existe continuamente entre os estudiosos mais significativos das ciências naturais que, de um lado, encontram-se em relação direta com os objetos reais do seu estudo e, por outro lado, procuram dar uma expressão teórica geral, definitivamente ontológica ao método e aos resultados das suas interpretações.39 As enunciações desse último tipo poderiam ser, tranqüilamente ignoradas quando se fala dos problemas singulares, já qua parecem não incomodar o curso das pesquisas científicas em si.40 Para nós interessa somente o lado desse complexo problemático, no qual vem à luz o nexo ontológico entre o "mundo" e "concepção de mundo" da cotidianeidade de um lado, e a imagem do mundo expressa pelas ciências modernas, do outro. Ora, independentemente do, que estas suas enunciações tenham influído na sua concreta atividade prático-científica, a seguinte declaração de Heisenberg parece-nos significativa à luz do nosso problema: "Quando partindo do estado de coisas que se tem na ciência moderna, procura-se tatear os fundamentos hoje tornados causas, tem-se a impressão de que talvez não seja simplificar demais, a grosso modo, a situação que, pela primeira vez no curso da história, o homem encontra-se sobre a terra somente frente a si mesmo, ele não encontra mais outros partners ou adversários... Também na ciência o objeto da pesquisa não é mais a natureza em si, mas a natureza oferecida à demanda do homem, assim que o homem aqui encontre de novo consigo mesmo.41 É evidente que estas frases nada têm a ver com a metodologia prática dos problemas atinentes à física propriamente dita; seu conteúdo é uma generalização filosófica, cuja base real, na melhor das hipóteses, pode ser constituída por experiências interiores, subjetivas, que acompanham a práxis de um estudioso. De fato, a situação em que o mundo natural pesquisado tem caráter macroscópico não incide minimamente sobre a questão do ser-em-si. Apesar de muitas novidades concretas trazidas à ciência pela física atômica, isto em nada mudou a relação ontológica entre o sujeito humano e o ser natural objetivo.

A união pessoal do estudioso renomado com o banal, modernístico-neopositivístico, negador do ser-em-si, dá a estas declarações um significado social geral. Nota-se que tanto Heisenberg não é o único estudioso mundialmente famoso que sustenta tais visões ontológicas, quanto Boltzmann ou Planck, por exemplo, nos ásperos contrastes com a sensatez crítica da geração anterior (pense-se os numerosos pronunciamentos de Einstein). Este significado nasce do fato de que nestas tomadas de posições vem à luz, sob um dúplice perfil, o entrelaçamento do "mundo" e da "concepção do mundo" da cotidianeidade com a ampliação da ciência no plano da concepção de mundo. Por um lado, aqui os resultados do desenvolvimento científico não se apresentam na sua imanente cientificidade, mas por um trâmite de interpretações que no seu conteúdo - generalizado em termos ontológicos - relacionam-se a determinadas ideologias dominantes, atribuindo a elas a aparência (e a autoridade) de uma fundação científica exata. Por outro lado, estas manifestações de significativos intelectuais não devem ser entendidas como meros discursos subjetivos e, menos ainda, como simples adequações a modismos. Na realidade, também estas concessões pessoais do mundo brotam do mesmo terreno que produz a "concepção de mundo" da cotidianeidade e que é, ao mesmo tempo, a base social da 39 V. I. Lênin, Sümtliche Werke, XII, Wien, Berlin 1927, p.250 (trad.it. di F. Platone, Materialismo ed empiriocritismo, in V.I. Lênin, Opere complete, XIV, Roma, Editori Riuniti, 1963, p.256).40 Somente especialistas que tenham um claro sentido do ser poderiam estabelecer definitivamente entre quais limites isso acontece. É interessante, de qualquer forma, que Lênin já tenha revelado a relação na física entre a extremização do método matemático puro e o desaparecimento (ou pelo menos o atenuar-se) do ser físico. Ivi, p.311 (ivi, p.292).41 W. Heisenberg, Das Naturbild der heuting Physik, Hamburg, 1955, p.17-18.

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filosofia da moda e com ampla difusão. Também seria um absurdo apenas relacionar o físico Einstein com um filósofo da moda do tipo Spengler, mas o que teve ressonância como "concepção de mundo" da teoria da relatividade é um sintoma espiritual daquela etapa do desenvolvimento social, tanto quanto o Declínio do Ocidente mesmo. Referimo-nos a uma necessidade social comum, a uma espécie de mandato social, mas não devemos fixar este fato em uma fórmula simplista. Esta necessidade é fortemente facetada e complexa, mesmo se sua tendência de fundo - em última análise, mas somente em última análise pressiona numa direção determinada. Esta depende da colocação do indivíduo no capitalismo atual: a manipulação generalizada torna-o um plasmador soberano de todas as coisas; ante a tal vontade plasmatória não existe qualquer modo do ser que resulte independente, mas, ao mesmo tempo cada homem torna-se um nada impotente da manipulação. Não é este o lugar para descrever as multíplices visões, em que se exprime este contraditório sentimento do mundo. Para o nosso problema, o aspecto relevante é o coexistir de uma onipotência abstrata com uma concreta impotência. E isso leva, por um lado, às várias tentativas filosóficas de anular idealmente o ser do ser e, por outro lado, o contato que deriva disso advém de uma tal "filosofia da natureza" e de importantes tendências da teologia moderna. O fato é que quase ninguém mais acredita na ontologia tradicional das religiões; e este aniquilamento teórico do ser possibilitou a formulação da necessidade religiosa atual em termos tais que produziram um acordo com a ciência mais moderna acerca do não-ser do ser (pense-se em Teilhard de Chardin e Pascual Jordan). Esta ligação é tão forte que mesmo o ateísmo, que hoje passa por moderno, sente-se substantivamente chamado a satisfazer uma necessidade religiosa e não a combater a religião, como acontecia nos últimos séculos.

Para a pesquisa que estamos conduzindo não são de interesse substancial os detalhes e as nuances desse complexo de fenômenos mas, ao invés, o fluxo que corre da vida cotidiana manipulada às interpretações das ciências exatas e daqui de volta à vida cotidiana, o irresistível espelhar-se destas visões entre a elite intelectual e a falta de uma atitude crítica nos confrontos destas tendências. A coisa que mais me impressionou - e vale a pena parar um momento para observá-la - é que a teoria do conhecimento não subleva objeções; aliás, no complexo estas tendências são muito mais apoiadas por ela quando a sua crítica não lhes obstaculiza. Isto parece paradoxal somente a quem não tem examinado suas funções no passado e, consequentemente, não viu que a gnosiologia em geral costuma canonizar acriticamente as formas metódicas: dominantes nas ciências do próprio tempo e então imaginam-se - como fundamento da sua crítica do conhecimento - tipos de ser que possam dar uma base ontológica ao modo cognitivo canonizado. Basta pensar em Kant. A pergunta inicial "como são possíveis" anuncia esta estrutura de método. Depois, se vamos às questões essenciais, vemos que Kant, afrontando a "coisa em si", parte corretamente da autonomia de cada conhecimento, para derivar disso porém a conclusão, logicamente possível mas ontológica e perfeitamente infundada, que ela por isto deva ser incognoscível. Já Hegel observou que o incognoscível pode fundar-se somente na abstração vazia - que prescinde de cada concretude ontológica, que se reporta ao mero em geral -, mas logo que a coisa possua algum conteúdo do ser, por exemplo das propriedades, esta incognoscibilidade derivada da abstração acaba.42 E, por outro lado; atribuir ao conhecimento do mundo fenomênico o monopólio da produtividade da consciência, por sua vez, não significa outra coisa que absolutizar abstratamente o fato de que a sua função em relação ao ser é mais um espelho passivo ("fotográfico"); a delimitação ao mundo fenomênico é uma conseqüência lógica desta extremização abstrata da produtividade criativa da consciência. Da combinação destas abstrações nasce, novamente por via lógica (não ontológica), a contraposição entre mundo existente e mundo aparente que se excluem reciprocamente; e também aqui Hegel viu a falsidade abstrativa. Então não é chegar a uma sombria crítica ontológica que o domínio da gnosiologia necessariamente esconde: a uma crítica ontológica de cada ciência, dos seus métodos e dos seus resultados, confrontando-os com o ser, ao invés de "deduzir" este último pela via abstrata das necessidades da ciência. Mas para esta finalidade devem existir na cotidianeidade mesma tendências aptas a promoverem esta orientação. Seu nascimento e seu desenvolvimento são determinados pela constituição econômico-social da respectiva sociedade. E por causa do entrelaçamento imediato entre teoria e práxis que se tem na vida cotidiana, aqui tem importância não somente as legalidades fundamentais, mas também a relação instituída entre essência e fenômeno. A práxis imediata reage ao mundo fenomênico não sem razão, já que precisamente é ele que representa a realidade imediata. Já examinamos tais divergências no interior da economia; agora nos deteremos naquelas entre economia e superestrutura. As falsas ontologias que tão freqüentemente encontramos têm aqui, por assim dizer, a sua "base de ser".

Falta à nossa época uma verdadeira crítica ontológica. Como já mostramos, Nicolai Hartmann é o único que se aventurou nesta temática com competência e acuidade e, pelo menos na ontologia do ser natural, também com sucesso. Todavia, em princípio, com cautela e reserva de juízo, sobre as questões concretas e especializadas, suas exposições mostram conscientemente ou não - que a penetração da ontologia cotidiana na ciência da natureza vai muito além do que pensam os que julgam de todo irrelevante as interpretações filosóficas na questão em si, mesmo de quem opera nesse campo, inclusive os melhores. A partir de Marx foi superado o dualismo entre filosofia e ciência, que ainda era predominante em Hegel e que não obstante algumas geniais observações críticas em torno de importantes problemas singulares, todavia conduzia uma inaceitável arrogância da filosofia em relação à ciência. A filosofia, porém "não deve renunciar a considerar criticamente os resultados da pesquisa científica". E o ser representa para ela o ponto de apoio de Arquimedes. Não, se pode mais, então, como freqüentemente em Hegel, por simplesmente em, confronto alguma

42 G. F. W. Hegel, Wissenschaft der Logik, cit., IV, p.121 sgg. (trad.it., II, pp.542 sgg.).

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afirmação definitivamente ontológica da ciência, com as exigências conceituais da filosofia, mas ao invés - suponhamos -, se nos movemos no campo da física, sucede confrontar o ser físico com os enunciados científicos da física. A filosofia pode e deve requerer apenas que cada ciência não entre em contraste com a especificidade do ser cujas leis ela esforça-se para iluminar. Hartmann, como sabemos, a este propósito revelou muito corretamente a importância da intentio recta, que da cotidianeidade através da ciência conduz à filosofia, em contraposição à intentio obliqua, da gnosiologia e da lógica; no entanto, e já o havíamos assinalado a tempo, também nesta questão ele não foi sempre suficientemente concreto e conseqüente como crítico. Mas, como já discutimos os princípios ontológicos de Hartmann, podemos nos limitar, para ilustrar a situação, a alguns casos particularmente evidentes.

Se relembrarmos o discurso de Heisenberg acima mencionado, podemos utilmente contrapor o sóbrio quadro ontológico que Hartmann nos oferece a respeito da posição do pesquisador: "O investigador que pesquisa uma determinada lei, sabe, por antecipação, que esta, se subsiste em geral, subsiste independentemente da sua procura e do seu resultado. Não lhe ocorre acreditar que o resultado surja apenas por este fato: ele sabe perfeitamente que existe sempre e que não muda enquanto resultado. O investigador vê na lei um ente em si".21 Hartmann refere-se, porém, somente aos cientistas naturais de velho estilo, que distinguem rigorosamente o que era por eles pensado (seu aparato de idéias) do ser que aspiravam a conhecer. Assim Hartmann admite sem reservas que Einstein, quando diz que a simultaneidade em determinados fenômenos físicos não é aceitável, baseia-se em fatos físicos reais e por nada cai vítima do subjetivismo. Completamente outra é a situação quando o problema é generalizado em termos ontológicos. A simultaneidade é ontologicamente um fato insuprimível, que "nada tem a ver com os limites da contabilidade”.22 A crítica ontológica de Hartmann, então, não está dirigida contra as tentativas de medir a simultaneidade, contra os métodos especiais da física usados nestas mensurações, mas somente contra a sua generalização ontológica; e por isso o decurso objetivo e real do tempo tornar-se-ia mais rápido ou mais lento segundo as circunstâncias. Existem filosofias contemporâneas que acreditam poder apreender o curso da história com particular "conformidade ao tempo", se estivéssemos embasados sobre uma tal ontologia. Assim por exemplo, Ernst Bloch, o qual quer introduzir na história um tempo "riemanniano" (Riemann é para Einstein a grande autoridade da relativização ontológica do espaço), pelo qual, em explícita polêmica contra Hartmann, estabelece que, por exemplo, entre pré-história e história sucessiva, ou ainda mais, entre natureza e história há diferenças qualitativas no decurso do tempo, que se desenvolvem com maior rapidez ou maior lentidão.23 Onde se pode constatar aquela ontologia da atual cotidianeidade que, usando teorias físicas, criou uma nova filosofia correspondente às necessidades ontológicas dos intelectuais que vivem no capitalismo do século XX.

Apesar da importância desta questão, agora não podemos entrar em maiores detalhes. Interessa-nos exclusivamente evidenciar as interações entre pensamento cotidiano e teorias científico-filosóficas de uma época. A seu tempo, criticamos por extenso a incompletude e as contradições da doutrina hartmanniana, numa linha de princípio muito fecunda, da intentio recta; nela reprovamos o não ter condicionado o problema – extremamente relevante precisamente do ponto de vista ontológico – da gênese. No contexto atual, vê-se como são deletérias as conseqüências daquela atitude errada, já que somente a gênese pode iluminar as formas, tendências do movimento, estruturas, etc. ontogicamente concretas de um determinado tipo de ser no seu concreto ser-próprio-assim, e, por este caminho, penetrar até as suas legalidades específicas, enquanto que, quando se parte do que na sua espécie já está desenvolvido ou até concluído, facilmente acontece que se pesquisem e se comparem não mais as espécies particulares do ser, mas ao invés, seus tipos conceituais generalizados. Desse modo, desaparecem também aquelas motivações histórico-sociais que, num determinado período, são dominantes ou desagregam e contradizem na vida espiritual um determinado modo de ver, ontologicamente certo ou errado. O lado social geral deste problema será discutido a fundo na próxima seção do presente capítulo. Aqui interessam-nos somente as forças que determinam a "concepção de mundo" do homem singular na sua vida cotidiana, onde nunca se deve esquecer de que cada corrente social é a síntese (não porém a soma mecânica) de posições singulares de homens singulares. Que as forças aí operem, e como fazem isso, apesar de que os nexos sejam intrincados, é também um problema social geral, o qual, por motivos que já enumeramos adequadamente, não é absolutamente considerado por Hartmann. Por isso, seus próximos passos, por mais significativos que sejam em alguns aspectos, acabam por encalhar.

Marx viu o problema com toda clareza. Escreve numa ocasião a Engels acerca de Darwin: "Divirto-me com Darwin, ao qual dei novamente uma olhada, quando diz que aplica a 'teoria de Malthus' também às plantas e aos animais, como se o suco do senhor Malthus não consistisse precisamente no fato de que esta não venha aplicada às plantas e aos animais, mas ao invés - com geométrica progressão -, somente aos homens, em contraste com as plantas

21 N. Hartmann, Zur Grundlegung der Ontologie, Mesenheim am Glam, 1948, p.163 (trad.it.di. F. Barone, La fondazione dell’ontologia, Milano, Fabbri, 1963, p.258) Aqui há concordância com a opinião de Lênin por nós mencionada acima. Esta contradição, na realidade, já foi revelada precedentemente outras vezes. E também sob a ótica da gnosiologia: por exemplo, Rickert lamenta-se de que os cientistas naturais não pensem “ciriticamente” (isto é, nos termos idealísticos da gnosiologia), mas são, ao invés, “realistas ingênuos” sustentando que este comportamento, em contraste com aquele “crítico” (gnosiológico) do filósofo, é tirado da “vida”. H. Rickert, Der Gegenstand der Erkenntnis, Tübigen, 1928, p.116.22 N. Hartmann, Philosophie der Natur, Berlin, 1950, pp.237-238.23 E. Bloch, Differenzierungen im Begriff Fortschritt, Berlin, 1956, pp.32-33.

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e os animais. E notável o fato de que, nos animais e nas plantas, Darwin reconhece sua sociedade inglesa, com sua divisão do trabalho, a concorrência, a abertura de novos mercados, as 'invenções' e a malthusiana ‘luta pela existência’. É a guerra de todos contra todos de Hobbes, e faz lembrar Hegel na 'Fenomenologia', onde representa a sociedade burguesa como 'um reino animal ideal', enquanto em Darwin, o reino animal é configurado como a sociedade burguesa".24 Já Marx e Engels estão porém muito longe de sub-avaliar; por esta relação, o significado científico, ou seja, ontológico, de Darwin. Engels, de fato, depois de ter lido o livro deste, escreve a Marx: "Por um certo aspecto, a teleologia não tinha ainda sido eliminada, e agora se tem feito isso". E, muito tempo depois, Marx afirma: "Eis aqui o livro que, embora desenvolvido gnosiologicamente à moda inglesa, contém os fundamentos histórico-naturais do nosso modo de ver". 25 Do ponto de vista da avaliação ontológica do nexo entre "concepção de mundo" da cotidianeidade e teoria científica, não há contradição entre estes dois discursos. Tanto mais que Marx, na primeira carta, põe a questão da gênese intelectual da imagem do mundo darwiniana sem uma atitude avaliadora; simplesmente revela as. sugestões, aliás admitidas pelo próprio Darwin, provenientes de Malthus (e sobretudo da realidade econômica do capitalismo). Avaliação aqui não significa, naturalmente, simples comparação de uma relação, como nas ciências da natureza, mas sim que interações desse gênero entre cotidianeidade e ciência (também filosofia e arte), conforme as circunstâncias, o período, a personalidade, etc. podem ter efeitos válidos e não-válidos. A sugestão por parte de Malthus tem certamente, para Darwin, no conjunto, conseqüências válidas, do momento em que a guerra de todos contra todos tornou mais aguda a sua visão para determinados fenômenos naturais (não é este o lugar para se indagar se aqui também não há exageros, etc.). A propósito de um escrito de F. A. Lange, para cada caso Marx sublinhou o aspecto dessa ligação que não vem em proveito do caráter científico: do momento em que para Lange, "a história inteira pode ser resumida numa grande lei da natureza", isto é, a lei da "luta pela existência", esta última transforma-se numa frase vazia.26 Para o marxismo então, é necessário entender estas inter-relações na sua concretude social e submetê-las à crítica ontológica. Somente através da análise concreta da situação concreta, como costumava falar Lênin, pode vir à luz a verdadeira concretude e se demonstrar válido ou não-válido o verdadeiro conteúdo, que de imediato é certamente individual, já que exprime a relação de uma pessoa com um complexo de problemas objetivos, embora - e ao mesmo tempo - ele avance na pretensão de objetividade (não fosse outra, a causa do seu caráter de alienação). Também por isto, nos clássicos do marxismo, contrariamente aos seus epígonos, estas conexões apareceram muito complicadas e fortemente desiguais. É característico, por exemplo, que Lênin, em pleno debate a respeito do empiriocriticismo, durante o qual ele combate com paixão o idealismo na interpretação da natureza, escreva uma carta a Gorki na qual admite que um artista possa receber impulsos positivos também da filosofia idealista.27 Na relação entre teoria e arte, essa desigualdade manifesta-se naturalmente nos termos mais evidentes, mas está presente em todos os campos do pensamento e da experiência humana.

É preciso, então, clareza crítica nas análises da intentio recta entre vida cotidiana e formas superiores de objetivação da consciência social dos homens. A forma originária da intentia recta aparece no trabalho. No intercâmbio orgânico com a natureza, não apenas torna-se um ente social mediante objetivações e alienações, como também cria um meio comum para se entender com os outros, para acumular e comunicar experiência, cumprindo todas essas coisas na relação prática, coisas essas nas quais o objeto da práxis exercita ininterruptamente uma crítica prático-ontológica em direção às representações e aos conceitos que precedentemente os homens deliberaram. Ora, não nos encontraríamos diante de nenhum problema, se esta forma da práxis não constituísse o modelo geral da sua realização, mas fosse, ao invés, um modelo concreto para todos os objetos cujo conhecimento é imposto aos homens pela divisão social do trabalho. Mas, analisando o trabalho, já vimos que não pode ser assim, ao passo que a sua crítica infalível exercida em direção às idéias do sujeito trabalhador possui esta infalibilidade somente com referência à finalidade imediata do trabalho. Quando há uma ampla generalização, mesmo o processo laborativo dá apenas respostas incertas. A atividade conhecida, que - imposta pela dinâmica da divisão do trabalho - tornou-se autônoma, teve por sua vez que elaborar maneiras de operar e possibilitar o controle autônomo. Neste ponto, o problema da crítica ontológica voltou a ser central. A filosofia grega, com sua espontaneidade veemente e fascinante, nada pode contra sua força; tampouco a doutrina platônica das idéias. Quando lemos a crítica desta em Aristóteles já encontramos a pergunta inicial sobre a possibilidade de que a essência exista separada daquilo que é a essência e isso constitui a preparação ontológica da resposta: "Como as idéias poderiam ser separadas das coisas, precisamente quando elas são a sua substâncìa?”.28 Esta não é mais uma discussão entre fìlosofias com argumentos tirados dos seus específicos aparatos conceituais; é, ao invés, a intentio recta na obra, a qual, partindo da vida cotidiana, pressiona em direção ao próprio complemento conceitual, controlado pelo ser.

Naturalmente aqui não é possível seguir nos pormenores a história dessa maneira de comportar-se. Mas, sem dúvida, é evidente que o domínio do cristianismo, o qual quer regular dogmaticamente a vida cotidiana dos homens 24 MEGA, III, 3, pp.77-78 (lettera del 18 giugno 1862, trad.it. in K. Marx – F. Engels, Opere complete, XLI, cit. P.279).25 MEGA, III, 2, p.447 (lettera dell’11 o 12 dicembre 1859, trad. It. In K. Marx – F. Engels, Opere complete, XL, cit., p.551) e p.533 (lettera del 19 dicembre 1860, trad. It. In K. Marx – F. Engels, Opere complete, XLI, cit. P.145).26 K. Marx, Briefe na Kugelmann, Berlin, 1924, p.75 (trad. it. cit., p.146)27 Lenin und Gorki (Documente), Berlin-Weimar, 1964, p.96 (trad.it. di I. Ambrogio, in Gorki, Lenin, Editori Riuniti, 1975, p.87).28 Aristoteles, Metaphysik, cit., A, 9, p.43 (trad.it.cit.,p.40).

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por meio de uma ontologia transcendental que promete garantir a salvação de suas almas, não criou um território favorável a uma crítica ontológica da intentio recta da cotidianeidade. Somente com o Renascimento tem-se na vida e no pensamento um movimento libertário unilateral; e neste processo de emancipação rico em lutas, podemos ver que de Maquiavel a Hobbes existem nessa direção movimentos os mais diversos. Mas o impulso mais apaixonado e mais penetrante - na medida em que isso, era possível nas condições histórico-sociais de então – nós o encontramos na doutrina baconiana das idola. Na história da filosofia Bacon aparece sobretudo como sustentador dos métodos indutivos. Na doutrina das idola, trata-se porém, de outra coisa, de algo a mais, do oposto. Bacon afirma que a realidade é mais complicada, mais multiforme que os dados imediatos por nós obtidos, seja com a nossa sensibilidade, seja com o nosso aparato de pensamento. Aqui ele quer referir-se àquilo que sucessivamente a dialética tem designado como a infinitude extensiva e intensiva do mundo dos objetos e ao que ela tem reagido, afirmando o caráter por princípio aproximativo de cada conhecimento. É verdade que Bacon está somente nos primórdios desse processo; mas ele já vê com grande clareza o primitivismo das aproximações baseadas na sensibilidade, e ainda mais claramente vê que os aparatos conceituais tradicionais muito freqüentemente, mesmo porque perseguem idéias racionais, acabam perdendo de vista este complicado ser-mesmo-assim da realidade. E, quando mais tarde, a função geral de fiscalizar criticamente o processo cognitivo e seus resultados vem confiada a uma gnosiologia baseada na análise dos métodos científicos até aquele momento revelados eficazes (e isto, a partir de Berkeley, pode variadamente ser utilizado também para defender idealmente os momentos da imagem do mundo religioso que eram ainda vivos e operantes), Bacon põe em confronto a atividade científica do homem com o seu viver e pensar na cotidianeidade. Descobre assim no pensamento do homem cotidiano todo um sistema de preconceitos, por ele chamados idola, que está em condições de impedir, aliás de anular completamente, no processo cognitivo, a atitude do homem que se põe frente à natureza sem obstáculos e produtivamente. A crítica das idola serve então para eliminar estes freios cognitivos no homem mesmo.29 Sobre tal base, Bacon fornece uma tipologia dos idola, da sua origem e do seu modo de operar. Agora não vale a pena analisar nos pormenores estes momentos concretos do seu método. Ele estava precisamente no começo deste novo desenvolvimento e isto significa que, desde então, mudaram radicalmente, qualitativamente, não somente os métodos do conhecimento científico, mas sobretudo os caracteres essenciais da vida cotidiana. Marx indicou com eficácia o lugar de precursor que cabe a Bacon na sua esplêndida grandeza e no seu primitivismo: "Em Bacon, enquanto o seu primeiro criador, o materialismo engloba em si, de um modo ainda ingênuo, os germes de um desenvolvimento unilateral, a matéria, no seu esplendor poeticamente sensível, sorri ao homem inteiro”.30

Seqüencialmente alude-se às suas contradições. Mas o esplendor da natureza em relação ao homem todo mostra com evidência que aqui se está falando da vida dos homens, da sua vida pessoal, subjetiva, como se desenvolve nesse âmbito. Na tipologia das idola vemos então que Bacon, já que procura distinguir entre ídolas puramente pessoais, induzidas por indagações cognitivas erradas, e ídolas puramente sociais, ainda não está em condições de entender o homem singular da cotidianeidade diretamente como ente social (nem o será, séculos mais tarde Nicolai Hartmann). Assim, a crítica ontológica da vida cotidiana, do seu influxo sobre o conhecimento científico e da influência que este exercita sobre ela seria possível somente com o marxismo. E mesmo agora não a temos; no entanto, está implicitamente contida no seu método. Mas nos parece útil lembrar os precursores de maior peso, se não por outra coisa, porque assim torna-se visível que o significado do marxismo não deve ser limitado à sua ruptura radical com determinadas tendências metafísicas e idealísticas da filosofia burguesa, como se proclama no pensamento de Stalin-Zdanov, mas para usar uma expressão de Lênin, está no fato de que ele tem "assimilado e reelaborado o que havia de mais válido no desenvolvimento mais que bimilenar da cultura e do pensamento humano".31 Também assim estão as coisas para o tema de que falamos, o qual, por si mesmo, não nos ofereceu uma resposta à pergunta do que seja a ideologia e como funciona; todavia, criou-nos uma possível base social real para poder fazê-lo, facilitando em muito a tarefa de quem quiser levá-la à luz e compreendê-la no plano ontológico.

29 F. Bacon, Neues Organon, Berlin, 1870, I, 38, sgg. (trad.it. di E. De Mas, Nuovo orgono, in F. Bacone, Opere filosofiche, Bari, Laterza, 1965, I, pp. 264 sgg.).30 MEGA, I, 3, p. 305 (trad.it., La sacra famiglia, cit., p.142).31 V. I. Lênin, Sümtliche Werke, XXV, cit., p.510 (trad.it. di I. Ambrogio, Sulla cultura proletaria, in Lênin, Opere complete, XXXI, Roma, Editori Riuniti, 1967, p.301).

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