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H I S T 6 R I A - Geographyestudo sobre a historia do arroz na diaspora afri-cana da a essa versao uma base historica: o livro Black rice (Arroz negro), langado em 2001 por uma das

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no A/oi/o MundoOs escravos trazidos da Africa para as Americasnao contribufram apenas com sen trabalhopara a cuttura agrfcola e alimentar do chamadoNovo Mundo. Evidencias botanicas e historicas revelam,por exemplo, que os africanos sao responsaveis pelaintrodufdo no continente americano de inumeras plantasque hoje sao importantes na dieta de seus habitantes.Entre essas plantas esta o arroz: uma especie africanachegou as Americas - inclusive ao Brasil- muito antes que se espalhassem as plantafdesdo arroz asidtico consumido na atualidade*

Judith Ann CarneyDepartamento de Geogmfia,Universidade da Californiaem Los Angeles (Estados Unidos)

Rosa Acevedo MarinNucleo de Altos Estudos Amazonicos,Universidade Federal do Para

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0 cultivo do arroz na Carolina do Sul,nos Estados Unidos, no seculo 19,

foi iniciado pelos escravose seus descendentes (a direita)

A historia da agriculture dos continentes americano, asiatico, africa-no e europeu sofreu uma profunda mudanga entre osseculos 16 e 18. A intensidade e a riqueza das trocasde saberes entre as sociedades que entao se confron-tavam, de modo desigual, no processo de conquista ecolonizagao sao o objeto de inumeras analises, teoriase pesquisas, parte delas incluida na nogao do 'inter-cambio de Colombo'. Tal nogao descreve a transforma-gao da vida da humanidade decorrente da imensa tro-ca de plantas, animais, doengas e tecnologias entre os

w diferentes continentes provocada pela descoberta da| America em 1492.I Nos estudos sobre essas trocas, porem, em geral e| enfatizado o conhecimento a respeito das culturas agri-O

g colas de origem americana, asiatica e europeia (enfase•o relacionada diretamente ao seii valor economico) e| ressaltado o papel dos europeus em sua dispersao mun-| dial. Poucas culturas de origem africana recebem des-s taque, em fungao do reduzido papel das especies na-

tivas desse continente - como quiabo (Ahelmoschusesculentus], feijao-macassar (Vigna unguiculata),guando (Cajanus cajan), inhame (Dioscorea caye-nensis.}, milheto (Pennisetum glaucum) ou sorgo(Sorghum bicolor) - nos cultivos extensivos volta-dos para o comercio (agricultura de plantation)ou devido a informagoes que atribuem apenas umaorigem a certas especies cultivadas. E o caso doarroz: ainda se mantem a crenga de que seria ori-ginario somente da Asia (de onde e nativa a espe-cie Oryza sativa).

Pesquisa recente sobre o inicio do cultivo doarroz no sul dos Estados Unidos, entretanto, con-testa a visao de que a Africa contribuiu somentecom o trabalho para a agricultura nas Americas. Aintegragao de informagoes de fontes botanicas ehistoricas sobre a historia do arroz na AmericaLatina vem fornecendo novos indicios de que outraespecie desse cereal - Oryza glaberrima - foi

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/ Americado Norte

Golfo doMexico

^Carolina do SulOeeanoJAtlantico

CahojVerde....

: jlegiaode plantip)1 dearrozna Alii*;I ocidental

i Caiena

I

• O. glaberrima encontrado emcolecoes botanicas

Evidencias de 0. glaberrima emrelatos botanicos

Figura i. Rotas do arroz africano(Oryza glaberrima) para asAmericas e locals onde, segundoevidencias botanicas e historicas,ele era plantado no Novo Mundo

Unidos no seculo 18 (figura 2).E preciso ressaltar, portanto,

que o cultivo do arroz tambemfaz parte da ampla contribuigaoafricana para a agricultura doNovo Mimdo. As plantas que ospovos da Africa levaram consigoem sua diaspora (a dispersaopelo mimdo como escravos), parasustentar sua identidade cultu-ral, chegaram ate a atualidadecomo um valioso aporte para acultura das Americas. A agricul-tura tambem deve ser vista comoum produto da cultura de socie-dades em ambientes especificos,tanto quanto as relagoes sociaise de poder.

domesticada e cultivada por milenios em muitasregioes da Africa ocidental e de que os escravosafricanos trazidos dessas regioes, que conheciamas tecnicas inerentes a sen cultivo, tiveram umpapel crucial em sua propagagao nos diversifica-dos ambientes do Novo Mundo e em sua adaptagaocomo produto basico no regime alimenticio ame-ricano (figura 1).

Importantes descobertas foram realizadas, noseculo 20, sobre a domesticagaodo arroz no oeste da Africa, in-dependente daquela ocorrida naAsia, considerada por muito tem-po a unica regiao onde teria seiniciado o cultivo dessa planta.Alem disso, estudos feitos nosanos 70 confirmaram a impor-tancia da contribuigao africanapara a adaptagao do cultivo doarroz no estado norte-americanoda Carolina do Sul, onde a pro-dugao desse cereal representoua mais lucrativa economia deplantation do sul dos Estados

Figura 2. Mulher afrodescendenteem fazenda de arroz no estadonorte-americano da Carolinado Sul, em 1900

A chegada do arroznas AmericasOs escravos vindos da Africa ocidental ja deti-nham o conhecimento associado ao cultivo do ar-roz e se alimentavam desse grao em suas areas deorigem. Assim, sua introdugao nas Americas, comoum cultivo de subsistencia, ocorreu por motivesculturais. A memoria da importancia cultural doarroz permanece hoje nas lendas dos quilombolasdo Suriname, da Guiana Francesa e, em especial,do Brasil. Nessas lendas, a mulher africana traz osgraos entre os cabelos e os escravos sao os respon-saveis pela introdugao do cultivo.

No Para, na comunidade de Itancoa (municipiode Acara, perto de Belem), uma mulher de 87anos, D. Luiza Antonia de Deus (figura 3) narroua introdugao do arroz com palavras quase identi-cas as de outra mulher quilombola na regiao deItapecuru Mirim, no Maranhao: "Uma mulher daAfrica viu seus dois filhos serem vendidos porum traficante e, prevenida, colocou na cabega dascriangas sementes de arroz. Essas sementes foramdescobertas pelo 'branco' que comprou as crian-gas, ja no Brasil, quando comegou a mexer noscabelos dos meninos" (as entrevistas foram reali-zadas em trabalho de campo no Para e noMaranhao, em 2002).

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Figura 3. No povoado de Itancoa (Acara, PA),remanescente de quilombo, D. Luzia Antoniade Deus (87 anos) alnda conta as lendasda chegada do arroz nos cabelos dos escravose mostra como era feito o plantio

Esses e outros relates frisam que os escravoscomegaram o cultivo no Brasil: ao fugir para osquilombos, eles levaram consigo os graos paraplanta-los nessa terra de conquista. Outra versaoregistrada na regiao de Itapecuru Mirim, onde seformaram plantagoes de arroz em meados do secu-lo 18, difere em apenas um detalhe: o senhor quecomprou os escravos do navio da Africa encontrouos graos de arroz e os usou para fazer a plantagaopor sua conta.

As duas versoes, porem, dizem que o arroz foitrazido para as Americas pelos africanos, desde osprimeiros momentos do trafico de escravos. As-sim, isso teria ocorrido ja no seculo 16, no Brasil,e no seculo 17, no sul dos Estados Unidos. Umestudo sobre a historia do arroz na diaspora afri-cana da a essa versao uma base historica: o livroBlack rice (Arroz negro), langado em 2001 poruma das autoras deste artigo (J. A. Carney), de-monstra que inicialmente o arroz foi plantado pa-ra subsistencia e que a especie africana (O. glaber-rima) foi a preferida dos escravos das Americas.Vinte anos depois da chegada dos primeiros escra-vos e brancos, em 1670, foram iniciadas as plan-tagoes de arroz comercial na Carolina do Sul (fi-gura 4). A partir dai o arroz asiatico passou a serconsiderado o mais adaptado as exigencias domercado. No Maranhao, no Bra-sil, onde o cultivo do arroz pelosescravos comegou em 1619, asplantagoes que adotaram o arrozasiatico da Carolina do Sul - avariedade chamada 'Branco daCarolina', de maior interesse co-mercial - datam de 1750. --*,

Entre 1755 e 1777, a Compa-nhia Geral do Grao-Para e Mara-nhao introduziu nesse estadomais de 20 mil escravos, comum importante percentual vin-do da Guine portuguesa, o quetinha um motive evidente: o co-nhecimento dos escravos dessa

Figura 4. Apos a colheita do arroz,a primeira limpeza, nas antigaspianta0es, era feita com os pes(desenho do inicio do seculo 20)

regiao sobre o cultivo do arroz. Documentos dessaepoca fazem frequentes referencias ao cultivo dearroz em terras brasileiras, citando em especialuma especie 'de casca vermelha', plantada em umagrande area do nordeste da Amazonia. Essa espe-cie provavelmente era a O. glaberrima.

Existem outras evidencias de que esse arrozafricano cruzou o Atlantico durante o trafico de es-cravos. Botanicos franceses observaram, nos anos

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30, um tipo de arroz com a cas-ca macia e de cor vermelho-es-cura em Caiena (Guiana France-sa). Em El Salvador, botanicosdescobriram o arroz vermelho,em estado semi-selvagem, emareas antes cultivadas com cana-de-agucar (Saccharum ofiicina-rum) e indigo ou anileira (Indigo-fera anil). O arroz O. glaberrimaanalisado em Caiena foi coleta-do em areas de antigos quilom-bos. A importancia do arrozcomo base de alimentagao dascomunidades de escravos aqui-lombados no seculo 18 e revelada ainda por mer-cenaries europeus mandados para recaptura-los.Nos quilombos da Guiana holandesa (hoje Suri-name), o arroz era cultivado em areas descampadase em pantanos interiores.

As duas historiesdo arrozO significado do arroz na historia dos quilombolasna America colonial esta bem claro nas lendas dosseus remanescentes. Essa historia oral interpreta achegada do cereal ao Novo Mundo de forma dife-rente do que e contado na historia escrita peloscolonizadores: a versao dos quilombolas diz que osriegros escravos o trouxeram de suas terras de ori-gem e iniciaram sen cultivo, com objetivos ali-menticios e de acordo com sua cultura. A versaodos colonizadores credita aos Portugueses a in-trodugao de uma planta da Asia pelo 'intercambiode Colombo' em fungao do comercio. As lendasquilombolas na America, portanto, fornecem umaperspectiva critica da versao historica dos coloni-zadores: foram os africanos escravizados que intro-duziram e cultivaram o arroz para sua subsisten-cia nas Americas, mas quando as grandes planta-goes foram iniciadas os brancos receberam o cre-dito por sua introdugao. O ato do 'senhor' de reti-rar as sementes dos cabelos dos meninos escravi-zados e planta-las por sua conta e um simbolo dasmesmas relagoes de poder e forga que fizeramcom que o comercio redefinisse a origem do cul-tivo do arroz.

Na verdade, o arroz do tipo asiatico ganhou apreferencia nas plantagoes do seculo 18 porquepermitia a mecanizagao na limpeza do arroz, re-duzindo o tempo de trabalho, antes mais longo emfungao do uso dos piloes. Mas os quilombolas,mestigos livres e escravos continuaram a cultivar

Figura 5. Mulheres descendentesde escravos pilando o arrozno estado norte-americanoda Georgia, em 1915

o arroz vermelho, para subsis-tencia. Erradicar esse cultivo foio objeto de uma mensagemdirigida a corte portuguesa, emmaio de 1771, pelo governadordo estado do Maranhao, Joaquimde Mello e Povoas. O arroz afri-cano so podia ser descascadocom pilao, metodo usado pelos

escravos em todo o continente americano. Apilagem era feita principalmente pelas mulheres(figura 5).

Uma antigacultura na AfricaA historia do arroz e a de um cultivo culturalmen-te africano que tomou conta de todas as Americas.Esse saber, que os escravos ja praticavam em suaagricultura de subsistencia na Africa, atravessou oAtlantico para o Caribe e o Brasil no seculo 15 edai estendeu-se as Guianas e a America Central,chegando finalmente a Carolina do Sul no final doseculo 17, onde foi aproveitado pelos brancos nasplantagoes extensivas. Esse cultivo africano esta-beleceu-se em todas as areas tropicais onde vigo-rava o regime de escravidao.

'

Figura 6.0 arroz ainda e um cultivo comum no Senegal,na Africa, na regiao da costa da Guine - a imagem(de 1987) mostra area em que sao cultivados,ao mesmo tempo, o arroz africano e o asiatico

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Flgura 7. Regioes onde o arrozOryzaglaberrima-ou arrozvermelho - foi dornesticadoe cultivado na Africa, e de ondese difundiu para as Americas

Guine BissauDocumentos historicos com- || ( G u i n e

provam a presenga do arroz naAfrica. Diversos comentarios es-critos por Portugueses e outroseuropeus descrevem campos dearroz localizados na chamadacosta da Guine, as margens dorio Gambia (figura 6). O maisantigo desses registros data de1446. No seculo 15, os portugue-ses compravam os excedentesagricolas das sociedades locais,o que Ihes permitia realizar suasviagens pela costa africana e, mais tarde, ate asIndias (no Oriente) e as terras sul-americanas.

A existencia desse arroz africano foi ignoradapor mais de 400 anos. Somente na segunda metadedo seculo 20 os cientistas aceitaram as provas deque O. glaberrima e uma especie diferente daque-la domesticada na Asia. A regiao africana onde ocultivo do arroz ocorria no passado correspondehoje a costa da Guine (do Senegal a Liberia) e a umcorredor de mais de 1.500 km rumo ao interior,ate o atual Chade (figura 7).

Pesquisas demonstraram que esse arroz foidomesticado entre 4 mil e 4,5 mil anos atras pelospovos da familia linguistica Mande (incluindo osMandinga). Os povos Mande ocuparam um doscentres geograficos mais importantes de forneci-mento de escravos, e o aumento do trafico fezcrescer tambem a demanda por produtos agricolaspara alimentar os cativos. A elevada mortalidadedos africanos, nos navios, era vista pelos trafican-tes como uma perda de 'capitals', mas eles cons-tataram que, alimentando-os com produtos de suadieta normal, essa perda diminuia. Portanto, o usodo arroz africano lias caravelas foi a solugao maisinteressante, sobretudo para aqueles negociantesque atuavam na costa da Guine.

Sao encontradas muitas referencias a compradesse arroz, mas poucas vezes os documentosmencionam se foi adquirido em casca ou ja pilado.No primeiro caso, o cereal teria que ser debulhadonos navios, pelas mulheres escravizadas, e assimsementes com casca (em condigoes de germinar)poderiam chegar as Americas. O arroz ja pilado,porem, nao germina, e nesse caso os navios naoconstituiriam o meio de introdugao do cereal nocontinente americano. Duas fontes documentais

Mauritania

Liberia

esclarecem a questao, indicando claramente queos traficantes utilizavam as mulheres escravizadaspara pilar o arroz durante a viagem transatlantica(figura 8).

Na segunda metade do seculo 18 desenvolveu-se um sistema de plantagao do arroz branco namargem norte do rio Amazonas, em Macapa eMazagao (hoje no Amapa), com apoio da corteportuguesa. O objetivo era implantar cultivos deexportagao para Portugal e terras adjacentes, redu-zindo a dependencia em relagao ao arroz da Caro-lina do Sul. Pela mesma razao foi implantado,ainda na decada de 1760, o cultivo de arroz demare irrigada no Para e no Maranhao, usando-se avariedade 'Branco da Carolina', altamente produ-tiva, moendas movidas a agua para processar ocereal e importando-se mais de 17 mil escravospara o trabalho nessas plantagoes. A primeiraexportagao de arroz moido para Portugal ocorreuem 1767.

Figura 8. Escravas pilando arroz no conves do naviodinamarques Fredensborg II, em 1785

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Potico depots, o cultivo do'arroz vermelho' tornou-se umapreocupagao oficial. Em decretode 1772, Portugal instituiu a pe-na de um ano de prisao e multapara os brancos que plantassemesse arroz, e de dois anos paraescravos e indios. As razoes paraessa medida legal nao estao es-clarecidas, mas, admitindo-seque essa variedade Vermelha'era a especie O. glaberrima, su-gere-se que foi proibida porqueseus graos quebram-se mais fa-cilmente na debulha. Assim, amistura desse arroz com o dotipo branco resultaria em maiorpercentual de graos quebrados, reduzindo os pre-gos do cereal nos mercados europeus.

Entre os descendentes de antigos cultivadorese coletores de arroz do Amapa, alguns perderamesse conhecimento. O agricultor Joaquim Ramos,de 81 anos, entrevistado em Curiau (AP) em 1997,tinha recordagoes dessas plantagoes, onde seusavos trabalharam. Em Mazagao Velho, tambem pro-ximo de Macapa, tambem existe a lembranga docultivo do arroz. Hoje, ja nao se planta o arroznessa regiao.

Outros contribuifdesdos escravosO arroz foi apenas um dos aportes dos africanos aagricultura das Americas. Outras plantas entaocultivadas na Africa - alem das ja citadas inhame,guando, quiabo, feijao-macassar, sorgo e milheto -foram trazidas pelos escravos. Entre elas, segundolistas elaboradas por autores como o economistavenezuelano Rafael Cartay (no livro Historia de laalimentation del Nuevo Mundo, de 1992) e outros,estao, bambarra (Vigna subterranea), cafe (Coffeaarabica ou C. robusta], calabaga (Lagenaria sice-raria), coleira (Cola acuminata ou C. nitida, tam-bem chamada de noz-de-cola, obi e orobo), dende(Elaeis guineensis), gergelim (Sesamum indicum),melancia (Citrullus lanatus), pimenta-malaguetaou da-guine (Aframomum melegueta), tamarindo(Tamarindus indica] e muitas outras.

O naturalista espanhol Fernando de Oviedo yValdez (1478-1557) cita o inhame em escritos doseculo 16 sobre suas viagens pelas ilhas espanho-las (no Caribe). Nessa epoca, o gergelim foi intro-duzido no Brasil por escravos africanos, assimcomo o aki ou akee (Blighia sapida], originario da

costa da Guine, e o guando. Procedentes da India,o gengibre (Zingiber officinale) e a jaca (Artocarpusheterophyluus) tiveram seu cultivo estendido paraa Africa, de onde foram trazidos pelos portugue-ses para o Brasil no primeiro seculo da coloni-zagao, mas sua propagagao por todo o pais e pelasAntilhas foi feita pelos escravos negros. Nao sesabe se as bananas (Musa spp.), plantas com nomede origem africano, foram trazidas pelos negros,mas tornaram-se elementos fundamentals em suadieta.

Muitas outras plantas africanas chegaram aoBrasil atraves dos escravos: cara-de-angola (Dios-corea spp.), azedinha (Rumex spp.), jilo (Solanumgilo), ginguba (nome africano do amendoim,Arachis hypogeae, que, embora seja nativo daAmerica do Sul, foi levado cedo para a Africa eteve seu cultivo ampliado nas Americas gragasaos escravos), pimenta-malagueta ou da-guine equitoco (Pluchea quitoc). As palmeiras - o dendee a rafia (Raphia farinifera) - e o sorgo chegaramao pais no seculo 18, em navios negreiros ou entreas especies transportadas por viajantes durante ex-pedigoes cientificas.

O fato mais importante e menos conhecido,porem, e o numero de analises que afirmam queescravos africanos introduziram nas Americas, deforma direta, cultivos como quiabo (ou okra],guando e feijao-macassar. Tais plantas, que faziamparte das culturas de subsistencia dos escravos,criaram habitos de alimentagao que garantiram asobrevivencia de muitos cultivos africanos nasAmericas. Habitos que, com o tempo, passaramdos grupos negros para toda a populagao.

Trata-se de saberes referidos a 'modos de cul-tivo' que exigiram conhecimentos sistematizadosdo solo, de experimentagao. Tais saberes culturaise sua pratica na agricultura de subsistencia foramignorados pela enfase historica na monocultura e

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nos cultivos de exportagao. O regime de escravi-dao solapou o saber anterior dos cultivos africanos(como o do arroz vermelho) e o seii papel na sub-sistencia, mas esse saber mantem-se presente, hoje,na grande importancia do arroz e de outros ali-mentos africanos na dieta brasileira.

O cultivo do arroz, por exemplo, estava associa-do a um complexo conhecimento do manejo daagua, do sistema de pilagem, do cozimento e dapreparagao de pratos (com feijao e outros ingre-dientes africanos). No entanto, apesar da impor-tancia desse aporte dos escravos, por longo tempoa adaptagao de cultivos realizada pelos africanosnas Americas foi esquecida nas pesquisas sobre ahistoria da agricultura no Novo Mundo. Hoje, po-rem, a partir de registros fragmentados, e possivelreescrever essa historia, mostrando como tecno-logias e praticas culturais trazidas pelos negroscativos permanecem nas bases da alimentagao nasAmericas.

Sobrevivenciae resistenciaEsses registros fornecem a conexao com a lendaquilombola das mulheres e criangas trazendo es-condidos nos cabelos os graos de arroz, estabele-cendo nessas terras um cultivo que viria a ser taoimportante para os camponeses brasileiros. Pode-se dizer que as 'rogas' dos indios - a mandioca(Manihot esculenta), o feijao-preto (Phaseolus vul-garis) e o milho (Zea mays) - incorporaram essecultivo vindo da Africa, o que enriqueceu o conhe-cimento agricola e os saberes de um campesinatomestigo.

O arroz chegou as terras americanas, nascaravelas que trouxeram os escravos, como um

Figura 9. No povoado de SantaMaria dos Pretos (Itapecuru Mirim,MA), um antigo q uilom bo,Francisco da Concei ao mostrao arroz colhido em sua ro^a comfaca, e Delmira dos Santos,sua filha e sua neta demonstramo corte, a limpeza e a pilagemdo cereal

alimento. Depois foram introdu-zidas muitas outras plantas ori-ginarias da Africa. A diasporaafricana, portanto, trouxe para aAmerica as pessoas e as plantasque elas haviam domesticado, oque permitiu a sobrevivencia dosescravos e suas familias e a re-

sistencia dessa cultura no Novo Mundo.Esses homens e mulheres tambem trouxeram

sistemas e instrumentos de cultivo (enxada), de co-Iheita (faca) e de beneficiamento (pilao e balaio) e aarte de cozinhar essas novas plantas (separadamen-te ou em pratos combinados, como arroz com feijao,quiabo com camarao e outros). Do arrozal ate a co-zinha, a cultura africana esta entranhada em nossacultura americana. O arroz e uma heranga deixadaa todos nos pelos africanos e seus descendentes -um presente, apesar das condigoes inimaginaveisque Ihes foram impostas na escravidao.

Nos quilombos do Maranhao - que hoje somam403, segundo o Projeto Vida de Negro - e possivelencontrar as linhas mestras dessa historia do negrono Brasil (figura 9), que hoje vein conquistandoespago politico com a luta pela titulagao coletivadessas terras. Uma historia que eles mesmos con-tarn, como nesses versos retirados da literatura decordel do quilombo de Frechal, no Maranhao:

Povos de origem mandinga...Tmzidos nas tais caravelasMaltratados como animalsPlanejaram para as matas fugirE erguer seus mocambos

A Africa veio dentro da genteNa alma, no sangue, na menteNo batuque, canto e dangaE veio na decisao urgente:Lutar para viver como genteSem perder a fe e a esperanca:

E aqui podemos acrescentar: gragas as mulhe-res africanas, que trouxeram graos de arroz nosseus cabelos e alimentaram o seu povo e os seusdescendentes (e mesmo os descendentes dos bran-cos) no Brasil de hoje. •

SUGESTOESPARA LEITURA

CARNEYJ.&ACEVEDO,R. E. 'Aportesdos escravosna historia docultivo do arrozafricano nasAmericas',in EstudosSodedade eAgricultura, nQ 12(abril), p. 113,1999.

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