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Entrevista para IHU - Quem foi o Irmão Vicente Cañas? Pode nos contar um pouco sobre a trajetória e atuação dele tanto na Companhia de Jesus quanto no Brasil de modo geral? Vicente Cañas Costa nasceu em Alborea (Albacete) em 22 de outubro de 1939, numa família de 10 irmãos, filho de Miguel e Angela. O Irmão Vicente (conhecido pelos indígenas como Kiwxi) foi um jesuíta autêntico. Ingressou na Companhia de Jesus, em Raimat, na Espanha, no dia 21 de abril de 1961 e fez os votos de castidade, pobreza e obediencia em 22 de abril de 1963. Depois do Juniorado, renovou os votos e recebeu o crucifixo de missionário em 3 de dezembro de 1965 na Igreja dedicada ao missionário São Francisco Xavier e veio para o Brasil. Aqui começou os trabalhos na Casa de Retiros em Baturité (no Ceará) e ainda hoje os vizinhos recordam como ele socorria as pessoas da redondeza em épocas de penúria por causa das secas periódicas. Como desejava trabalhar com os indígenas veio para a Missão de Diamantino (MT) em 1968 e ali atuou primeiro como cozinheiro. Assim foi sendo iniciado na vida de missionário nos trabalhos com os indígenas especialmente pelos Padres Thomaz e Iasi. Era a época em que a Igreja do Vaticano II pedia uma forma diferente de estarmos neste mundo, transformar a sociedade estabelecida com visíveis traços de injustiça enraizada na América Latina. Uma das formas gritantes da injustiça era desalojar os indígenas e tomar seus espaços para estabelecer novas colonizações, formar novos municípios. Com isso, os indígenas que não eram mortos passavam a morar nas periferias das cidades ou a trabalhar nas fazendas em busca de migalhas. Com esta análise de conjuntura, fechou-se o Internato de Utiariti em 1968, depois da visita do Padre Pedro Arrupe. E os missionários foram morar nas aldeias com os indígenas para ali aprender com eles o bem viver e garantir a demarcação dos seus territórios tradicionais. O Irmão Vicente iniciou esta inculturação quando auxiliou a socorrer os Ivetin (Tapayunas); depois foi morar com os Parecis, na aldeia Rio Verde ainda próximo de Utiariti. Com a intermediação dos jesuítas se conseguiram as primeiras identificações de terras para os Parecis e Rikbaktsa, em 1968. Neste tempo é que vive com o Padre Thomaz um tempo com os Ivetin (1970) que sobreviviam do contato com os seringueiros e os que fundaram a cidade de Porto dos Gaúchos no rio Arinos. Em seguida, os amigos Thomaz e Vicente fizeram os primeiros contatos com os Mÿky (1971) e com os Enawenenawe (1974), com quem passaram a conviver, segundo os princípios do Vaticano II e as orientações da Companhia de Jesus e do CIMI. - Como Irmão Vicente começou a trabalhar com as comunidades indígenas? Qual era a relação dele com as comunidades, em particular com os Ivetin (Tapayunas), os Parecis, os Mÿky e os Enawenenawe? Que tipos de atividades ele realizou junto a esses povos? No final da década de 60 e na primeira metade da década de 1970, no noroeste do Mato Grosso os jesuítas fizeram a grande mudança no trabalho indigenista missionário. O Irmão Vicente Cañas participou intensamente destes momentos e foi tentar auxiliar os Ivetin (Tapayunas ou Beiço de Pau) em 1969, com quem começou um trabalho sério e cheio de desafios. No dia 26 de novembro de 1969, escreveu ao Provincial: Hace 8 días regresé de una tribu de indios, Beiço de Pau. Estamos comenzando la pacificación y, gracias a Dios, todo sigue bien. Tenemos un grupo de 33 que están menos bravos, aunque uno no puede confiar mucho, sobre todo en los más viejos que, de un

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Entrevista para IHU

- Quem foi o Irmão Vicente Cañas? Pode nos contar um pouco sobre a trajetória e atuação dele tanto na Companhia de Jesus quanto no Brasil de modo geral?

Vicente Cañas Costa nasceu em Alborea (Albacete) em 22 de outubro de 1939, numa família de 10 irmãos, filho de Miguel e Angela. O Irmão Vicente (conhecido pelos indígenas como Kiwxi) foi um jesuíta autêntico. Ingressou na Companhia de Jesus, em Raimat, na Espanha, no dia 21 de abril de 1961 e fez os votos de castidade, pobreza e obediencia em 22 de abril de 1963. Depois do Juniorado, renovou os votos e recebeu o crucifixo

de missionário em 3 de dezembro de 1965 na Igreja dedicada ao missionário São Francisco Xavier e veio para o Brasil. Aqui começou os trabalhos na Casa de Retiros em Baturité (no Ceará) e ainda hoje os vizinhos recordam como ele socorria as pessoas da redondeza em épocas de penúria por causa das secas periódicas.

Como desejava trabalhar com os indígenas veio para a Missão de Diamantino (MT) em 1968 e ali

atuou primeiro como cozinheiro. Assim foi sendo iniciado na vida de missionário nos trabalhos com os

indígenas especialmente pelos Padres Thomaz e Iasi. Era a época em que a Igreja do Vaticano II pedia

uma forma diferente de estarmos neste mundo, transformar a sociedade estabelecida com visíveis

traços de injustiça enraizada na América Latina. Uma das formas gritantes da injustiça era desalojar os

indígenas e tomar seus espaços para estabelecer novas colonizações, formar novos municípios. Com

isso, os indígenas que não eram mortos passavam a morar nas periferias das cidades ou a trabalhar nas

fazendas em busca de migalhas.

Com esta análise de conjuntura, fechou-se o Internato de Utiariti em 1968, depois da visita do

Padre Pedro Arrupe. E os missionários foram morar nas aldeias com os indígenas para ali aprender com

eles o bem viver e garantir a demarcação dos seus territórios tradicionais. O Irmão Vicente iniciou esta

inculturação quando auxiliou a socorrer os Ivetin (Tapayunas); depois foi morar com os Parecis, na

aldeia Rio Verde ainda próximo de Utiariti. Com a intermediação dos jesuítas se conseguiram as

primeiras identificações de terras para os Parecis e Rikbaktsa, em 1968. Neste tempo é que vive com o

Padre Thomaz um tempo com os Ivetin (1970) que sobreviviam do contato com os seringueiros e os que

fundaram a cidade de Porto dos Gaúchos no rio Arinos. Em seguida, os amigos Thomaz e Vicente

fizeram os primeiros contatos com os Mÿky (1971) e com os Enawenenawe (1974), com quem passaram

a conviver, segundo os princípios do Vaticano II e as orientações da Companhia de Jesus e do CIMI.

- Como Irmão Vicente começou a trabalhar com as comunidades indígenas? Qual era a relação dele

com as comunidades, em particular com os Ivetin (Tapayunas), os Parecis, os Mÿky e os Enawenenawe?

Que tipos de atividades ele realizou junto a esses povos?

No final da década de 60 e na primeira metade da década de 1970, no noroeste do Mato Grosso

os jesuítas fizeram a grande mudança no trabalho indigenista missionário. O Irmão Vicente Cañas

participou intensamente destes momentos e foi tentar auxiliar os Ivetin (Tapayunas ou Beiço de Pau)

em 1969, com quem começou um trabalho sério e cheio de desafios. No dia 26 de novembro de 1969,

escreveu ao Provincial:

“Hace 8 días regresé de una tribu de indios, Beiço de Pau. Estamos comenzando la

pacificación y, gracias a Dios, todo sigue bien. Tenemos un grupo de 33 que están menos

bravos, aunque uno no puede confiar mucho, sobre todo en los más viejos que, de un

Page 2: Hace 8 días regresé de una tribu de indios, Beiço de Pau ...paroquiadorosariomt.hospedagemdesites.ws/site/2017 - Cañas ihu.pdf · Ingressou na Companhia de Jesus, em Raimat, na

momento á otro, pueden ‘revoltarse’ y hacer cualquier cosa contra nosotros. También de la

misma tribu hay más en la selva, pero no sabemos dónde están y como todavía no

entendemos el idioma de los indios que tenemos es el motivo de no encontrar a los otros.

Estos indios son de la raza cayapó. Duermen en el suelo con un trozo como cabecera. Son

grupos de 3 a 5 familias en las malocas, distribuidos por la selva. Lo que comen es toda

clase de animales y peces. De higiene nada: la mayor suciedad del mundo, El último trabajo

que hice para ellos fue el -hacer dos malocas de paja para que ellos se sintiesen como en un

palacio; y también otra para el Padre y para mí. Dos días antes de terminarlas, se apoderó

de mí la malaria: de dos a cuatro días con fiebre, seis días sin comer nada y siete días sin

dormir. Quedé hecho un esqueleto. Ya soy delgado y perdí siete kilos! Tuve que regresar a

Diamantino e internarme en el Hospital. Después de seguir el tratamiento y recuperar

fuerzas espero volver otra vez con los mismos indios, dentro de unos 10 días”.

O Padre Adalberto já havia sido flechado na perna pelos Ivetin no rio Arinos. Com o fechamento de Utiariti, o Irmão Vicente havia estabelecido moradia entre os Parecis. No começo de 1970, aprendeu entre os Ivetin, o drama de uma etnia arrasada pelos contatos com a sociedade envolvente que invadia o norte do Mato Grosso pelo rio Arinos. Depois da experiência acima indicada na carta, foi novamente, a pedido do Padre Antônio Iasi a da FUNAI, para salvar cerca de 7% dos Ivetin (conforme texto: Um diário que não quer falar1). Uma reportagem encomendada pela FUNAI para registrar a “pacificação” foi o golpe fatal para os que ainda restavam dos contatos catastróficos com as frentes de expansão no vale do rio Arinos. O repórter disseminou uma epidemia de gripe entre os indígenas. O Ir. Vicente Cañas com o Pe. Thomaz Lisbôa foram para este trabalho e ali ficaram com os 41 Ivetin (Tapayunas) sobreviventes até abril de 1970, quando os Ivetin foram transferidos no avião da FAB para o Parque Indígena do Xingu, onde se mesclaram com os Kinsêdjê (Suyás). O Estado estava no projeto de distribuir as terras

tradicionais indígenas para a iniciativa privada e precisava liberar estes espaços, colocando os indígenas num Parque como num zoológico para que pudessem ser vistos e apreciados de forma exótica.

Vicente entre os

Pareci (1973)

Durante os 05 anos seguintes o Ir. Vicente Cañas se dedicou aos Parecis, no noroeste do Mato

Grosso. A partir desta experiência dramática, a decisão foi fazer os primeiros contatos com mais cuidados com os povos em situação de isolamento. Os missionários, fundadores do CIMI e da Operação Anchieta (OPAN), decidiram acessar os grupos por conta das frentes de colonização que se

1 Assim acabaram os Beiço-de-Pau, ou Tapayuna ou Ivetin indo de caminhão até Cuiabá e ali pegaram o kamri titá

para o Xingu. Por isso o Irmão Vicente Cañas deixa registrado uma frase no final do Diário que mais parece uma

incógnita. Como até homens iluminados, com intuição do que deve ou não ser feito, podem ser induzidos a fazer

o que não querem? “Tem que notar que o índio ficó como bobo e sem minha iniciativa” (em 01/05/1970).

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aproximavam cada vez mais das áreas indígenas. Sabiam como fora trágica a aproximação dos Rikbaktsa, dos Ivetin... pois uma estratégia de ocupação pelas frentes de expansão era exterminar os indígenas para ficarem com suas terras. Os jesuítas Kiwxi e Thomaz Aquino Lisbôa encontraram 23 Mÿky e alcançaram os primeiros contatos pacíficos em 13 de junho de 1971 e com eles passaram a conviver, sem baixas para os índios. Em 1977 recebeu dos Mÿky o nome de Kiwxi.

Primeiros contatos com os Enawenenawe, Vicente Cañas com um Pareci e Salvador Rikbaktsa. O Pe.

Thomaz Lisbôa está tirando a fotografia.

Esta dupla de amigos consegue, com o auxílio dos indígenas Tapema Rikbaktsa e Roberto

Nambikwara também os contatos pacíficos com os Enawenenawe em 28/07/1974, uma aldeia única

com 97 pessoas vivendo em 7 casas comunais, falando língua parecida com a dos Parecis. Em fins de

1975 o Irmão Vicente passou a se dedicar mais aos Enawenenawe, da mesma família linguística dos

Parecis (língua aruaque). Passou a ser um deles numa convivência intensa que marcou sua vida

definitivamente. Inseriu-se

neste novo mundo

participando dos seus

rituais, pescarias, trabalhos

de roça, coletas de mel, de

frutas e de tubérculos,

confeccionando cestarias e

outros artefatos próprios

da habilidade masculina...

Dedicou-se ao profundo

aprendizado da sua língua,

meio privilegiado para

transmitir sua cultura. Seus

diários mostram os

cuidados com as pequenas

coisas, anotava as

finalidades de cada parte do habitat tradicional Enawenenawe.

Os contatos pacíficos por parte dos missionários e o mapeamento dos territórios tradicionais dos povos indígenas tornavam a colonização menos agressiva, mas não a sustaram porque o governo

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projetava incorporar esta parte amazônica como fonte de renda para o Estado. As posturas proféticas dos jesuítas questionavam duramente as frentes de colonização que viam os indígenas como empecilhos para a implantação de seringais, das madeireiras, das fazendas, dos garimpos... E assim muitos que viam suas oportunidades de enriquecer rapidamente prejudicadas tomavam a peito o projeto de civilização e se tornavam inimigos violentos e sanguinários dos que com os indígenas se identificavam. Isso deve ser dito também para dentro da igreja, pois muitos católicos eram os que queriam enriquecer desta forma. Apareceram assim na vida de Kiwxi também pessoas dispostas a fazê-lo desaparecer, mas o Irmão Vicente Cañas se tornou um mártir do nosso tempo, por causa da sua identificação com os indígenas e do seu sangue derramado em nome de Cristo! Os sinais de que foi assassinado: barraco todo desarrumado indicando luta corporal, óculos e dentes quebrados, tira do chinelo rasgado, uma perfuração acima do estômago, lesões no crânio etc. Qual pode-se dizer que é o legado de Vicente Cañas?

O Irmão Vicente Cañas era um homem despojado, pronto para o trabalho, não havia tempo nem hora ruim para auxiliar o próximo. Tinha um senso de justiça que é próprio da época e percebia com clareza que o modo capitalista de exploração do mundo que vinha se aproximando das populações indígenas que ainda viviam na Amazônia o bem viver. Tratava-se de um homem prático, capaz de pensar as coisas no dia a dia e sempre a serviço, algo que é próprio da vocação de muitos Irmãos jesuítas que não quiseram ser padres para poder se dedicar a questões mais práticas na construção do Reino de Deus. Por exemplo, não teve dúvida em arrancar ele mesmo seus próprios dentes, quando a auxiliar em saúde (Rosa) que estava com ele na Missão não aceitou fazer esta proeza pois ele tinha ainda os dentes bons. Fez isso para não ter que sair durante dias para ir ao dentista na cidade e assim aprender em si mesmo a fazer moldes de dentadura para os indígenas que tinham muito problemas com a queda dos dentes. Com estas e outras podemos ver que procurou viver de forma inculturada entre os indígenas, como vimos acima, trabalhar para contactar de forma pacífica os que ainda não estavam em relação com a nossa sociedade e trabalhar para demarcar as terras que tradicionalmente estas populações ocupavam.

Por outro lado, sabia compreender as diferenças culturais de uma forma intuitiva, mais que reflexiva. Para estar com os indígenas não havia dificuldade, estava sempre pronto, manifestava grande capacidade de compreender o diferente, possuía um amor que impressionava e era o ideal que sustentava seu modo despojado de vida. Percebia no modo de vida tradicional dos índios as experiências mais plenas de vida humana, por isso talvez era desprendido de si mesmo para estar com eles a maior parte do tempo, segundo as suas necessidades, sempre pronto para servir. Destemido na inculturação junto aos Enawenenawe, enfrentava os grileiros que passaram a reivindicar como propriedade sua parte das terras indígenas. O Irmão Vicente Cañas chegou a ir na Fazenda Londrina conversar com os peões para deixarem esta vida de exploração, procurando “conscientizá-los” de que estavam sendo usados pelo fazendeiro e que a terra pertencia aos Enawenenawe.

Com isso também podemos perceber que os indígenas sabem discernir quem quer de fato dar a vida para eles e perceberam que muitos missionários que assumiram com eles suas lutas foram capazes de transmitir a vida como Cristo. Assim perceberam que dar a vida como estes missionários vale mais do que todo ouro, diamantes ou qualquer bem nesta terra. Assim fica mais fácil aprender com os que nos precederam e recolher os tesouros para os céus onde a traça não come e a ferrugem não corrói. Contudo, o legado que considero mais importante é a capacidade que o Irmão Vicente tinha de se modificar. Não somos de modo algum pessoas fixas e os indígenas são extremamente pacenciosos conosco. Ao lermos o que o Irmão Vicente escrevia nos inícios da sua vinda para o Brasil e a visão que tinha da Missão Indígena, impressiona o aprendizado que teve com os outros jesuítas e outros missionários, mas principalmente com os indígenas. Ele progressivamente foi modificando o seu modo de pensar e agir, na medida em que foi se relacionando com as pessoas, ou seja, se deixava impactar pelos dramas que as pessoas viviam e nas relações humanas foi aprendendo o que realmente importava na vida missionária.

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- Como, por que e em que contexto Irmão Vicente foi assassinado?

Esta pergunta foi feita no Seminário que fizemos no início de abril deste ano e foi duro perceber que houve maldade extrema dos que planejaram e organizaram os detalhes deste assassinato. Ou seja, a morte do Irmão Vicente Cañas foi preparado, a longo prazo: primeiro criaram falatórios negativos sobre o Irmão Vicente, dizendo que ele não era um jesuíta autêntico, que não vivia a castidade, que não ia na Missa etc e etc, o que poderia justificar sua morte ou ao menos dar a entender que esta morte era necessária numa igreja que se pensava mais autêntica, fundamentalista. Quando vamos nos aproximando da verdade, a vontade é vomitar para ver se podemos superar tamanha atrocidade atingindo um inocente como o Irmão Vicente que estava sozinho. E o mesmo vemos que foi feito com Jesus de Nazaré, pois todos o abandonaram, ficou sozinho no suplício final.

Conforme as provas e depoimentos, o delegado agenciou os capangas para o serviço sujo, emboscaram o missionário em seu barraco, na margem do rio Juruena. O Irmão Vicente Cañas foi brutalmente assassinado no dia 06 de abril de 1987, quando tinha 46 anos de idade. Seu corpo foi encontrado mumificado pela natureza no dia 16 de Maio de 1987. O laudo médico-legal apontou que foi atingido a golpes de porrete na cabeça e uma peixeira foi fincada no abdômen com a finalidade de atingir o coração. As investigações indicam um acordo entre o delegado da Polícia Civil de Juína na época2 com os fazendeiros da região que não aceitavam a posição firme do jesuíta defendendo que a demarcação do território tradicional indígena deveria ser na quantidade que os indígenas indicassem.

Sua atuação era inquestionavelmente na defesa e garantia dos direitos indígenas. Como missionário jesuíta, integrava os quadros do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da Operação Anchieta (OPAN) e, à época do crime, membro do Grupo de Trabalho da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para a demarcação do território Enawenenawe, trabalho que implicava de modo especial na retirada de alguns fazendeiros que já tinham invadido a terra dos Enawenenawe. Mas a FUNAI, herdeira de mais de uma década de ditadura militar e então presidida pelo hoje senador Romero Jucá, já naquela época não conseguia fazer frente a todo tipo de invasão dos territórios indígenas.

Corpo mumificado do Ir. Vicente Cañas, junto a um pé de caju que ele mesmo plantara.

Reconstruindo os fatos do crime, conforme o processo, os assassinos recrutados pelo delegado e pagos pelo então proprietário da Fazenda Londrina e outros, armaram uma tocaia para o missionário jesuíta que estava no barraco

2 Os outros envolvidos no crime “morreram” ou tiveram a punibilidade extinta em razão da idade.

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esperando para ver se tinha alguma doença e não ir a aldeia com perigo de epidemia entre os Enawenenawe. Chegaram por uma picada na mata da sede da fazenda e esperaram o Irmão Vicente Cañas sair para tomar banho no rio no amanhecer. Os jagunços entraram no barraco e esperaram o retorno do jesuíta. Quando este retornou sem ainda se vestir, foi rendido facilmente porque estava de mãos limpas e atingido na cabeça com a mão de pilão. Em seguida, os assassinos o mataram com faca, provavelmente segurado pelos braços. Depois de atingido mortalmente, o corpo foi arrastado para o quintal e colocado atrás do barraco para ser devorado pelos animais. Quando os jesuítas e outros do CIMI perceberam que o missionário não entrava no rádio por muito tempo, foram procurá-lo e encontraram seu corpo mumificado.

- Como se deu o processo do julgamento do assassinato dele ao longo desses 30 anos? É triste falar, mas participei do júri anterior iniciado em 24/10/2006, dez anos atrás e não foram

levadas em consideração as provas do crime. No recurso contra o resultado do primeiro julgamento, o MPF argumentou que o Conselho de Sentença desconsiderou provas substanciais colhidas durante o processo, envolvendo testemunhos e o laudo cadavérico. Por isso o resultado do Júri foi pala absolvição dos réus no Tribunal do Júri Federal de Cuiabá, por 06 votos a 01. Mas o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região determinou a realização de um novo júri e, assim estamos novamente aqui.

Conseguir que este crime passasse do Fórum da Comarca de Juína/MT, para ser julgado na Justiça Federal em Cuiabá, em 1997, foi fundamental para que se pudesse avançar na busca da verdade e colocar no banco dos réus os responsáveis por este crime bárbaro. Isso tem que ser dito por que, se o próprio delegado envolvido presidia o inquérito, pode-se concluir que as provas fossem sumindo na medida em que aparecessem. Isso foi possível porque Kiwxi integrou o grupo interministerial para a

demarcação das terras Enawenenawe, da qual necessitam para sua sobrevivência enquanto etnia diferenciada no mosaico multicultural e pluriétnico que é o Brasil.

Tivemos o tempo na Igreja dos anos 1960 no qual tínhamos que mostrar que o engajamento político e social; era importante que não fôssemos alienados a uma vida mais justa e fraterna na terra pensando somente no Reino dos céus. Foi neste momento que o os jesuítas Padre João Bosco Burnier (12/10/1976) e o Irmão Vicente Cañas (06-04-1987) deram a vida, pois sabiam que os indígenas poderiam cuidar melhor do seu território tradicional do que os fazendeiros que os invadiam.

Este tempo passou e vimos que o socialismo ou pior ainda, o comunismo era uma idolatria e oprimia igualmente grande parte da população. Por isso o muro de Berlim tinha que cair. Agora temos por obrigação lutar contra o capitalismo e o “desenvolvimento” de forma mais engajada e articulada, estabelecendo um diálogo com toda a sociedade para que o envolvimento religioso que guarnecia o nosso mundo fosse mantido e nem tudo se tornasse mercadoria para enriquecer parte da sociedade em detrimento de poucos e também a custa dos recursos do planeta que são finitos. Por isso é tão importante o chamado do Papa Francisco para o cuidado da nossa casa comum (cf. Laudato Si), para

que não destruamos a floresta amazônica e o cerrado para acumular capital.

Os vários volumes do Processo 2006.36.00.003829-6 protocolado na Justiça Federal em 20/10/1998 cujo réu Marinez Abadio da Silva e outro (19983600064875) são acusados do homicídio do Irmão Vicente Cañas Costa sJ podem ser acessados para ver mais detalhes destes meandros da justiça humana.

- Qual é a situação dos indígenas com quem o Irmão Vicente trabalhou, especialmente a Terra Enawenenawe, causa da sua morte?

Os Parecis estão com parte do seu território tradicional assegurado. A Terra Indígena Juininha e

Uirapuru possuem processos judiciais de questionamento de sua tradicionalidade naqueles lugares

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próximos da BR 364. A Terra Indígena Paresi (identificada em 1968; demarcada em 1984; registrada no

CRI e SPU em 1987 e DH 287 de 29/10/91) tem quinhentos e sessenta e três mil e quinhentos e oitenta e

seis hectares (563.586 ha) e é habitada pelos Parecis (Haliti) dos subgrupos Waimaré, Kózarini, Kazíniti e

Warére; a Terra Indígena Utiariti (identificada em 1982; demarcada em 1984; registrada no CRI 85; no

SPU 87 e DH 261 de 29/10/91) tem quatrocentos e doze mil e trezentos e quatro hectares (412.304 ha)

e é habitada pelos Parecis dos subgrupos Waimaré, Kózarini, Kazíniti e Warére e a Terra Indígena

Tirecatinga (identificada em 1982; demarcada em 1983; registrada no CRI 85; no SPU 87 e DH 291 de

29/10/91) tem cento e

trinta mil e quinhentos e

setenta e cinco hectares

(130.575 hectares) e é

habitada

majoritariamente pelo

povo Nambikwara

(subgrupos Wakalitesu e

Halotesu), além de

alguns habitantes

Iranche (Manoki) e

Pareci.

A Terra Indígena Enawenenawe foi demarcada extra-oficialmente logo após a morte de Vicente Cañas

pelos próprios indígenas. Eles mesmos foram pregando as placas da FUNAI no seu entorno e assim se manteve o que eles puderam fazer, mostrando que não era o Irmão Vicente que queria esta demarcação que encontra-se nas divisas dos municípios de Juína, Comodoro e Campo Novo dos Parecis, foi identificada com 742.089 hectares em 1984; demarcada oficialmente somente em 1995; registrada no CRI 96; no SPU 98 e DH s/n de 02/10/96. Atualmente os Enawenenawe reivindicam o Rio Preto, afluente do Juruena, que é parte do território tradicional, onde eles ficam dois meses por ano fazendo as barragens para as pescarias, local que precisa ser demarcado porque o desmatamento cresce a cada ano na região. Os Enawenenawe ainda sofrem principalmente nas relações interétnicas e nas relações com a sociedade envolvente, onde acontecem vários tipos de agressões de ambos os lados. A instalação das Pequenas Centrais Hidroelétricas nos rios da região impedem as migrações dos peixes para as cabeceiras e interferem diretamente nos seus

rituais tradicionais3.

Os Mÿki também possuem sua terra demarcada, mas reivindicam uma região onde possuem tucum e castanha. Os Manoki (Iranches) estão na justiça para conseguir o outro lado do rio Cravari onde moravam e que a carta de 1971 do Irmão Vicente mostra escancarada. Mas o caso

3 Os rituais de pescarias coletivas estão apresentados de forma bela no vídeo Yãkwa: Banquete dos Espíritos, CTI.

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mais grave no momento são os Ivetin (Tapayunas ou Beiços de Pau) que estão retornando do Parque Nacional do Xingu e querem de volta a sua terra tradicional entre o rio do Sangue e o rio Arinos. Esta luta merece atenção especial, pois o governo já tinha uma região reservada para estes indígenas e a sua remoção “forçada” para o Xingu permitiu que muitos grileiros tomassem esta parte do território indígena. O sangue derramado destes índios nestas terras do Mato Grosso também clama por justiça. A memória de Kiwxi tem fecundado a todos nós e nos despertado para a responsabilidade de continuar a sua luta.

As críticas que o Irmão Vicente fazia à sociedade ocidental e à Igreja eram contundentes, servia como um profetismo da classe operária que observa o enriquecimento do patrão com o fruto do seu trabalho. Sendo mais claro, o Irmão Vicente não criou uma Igreja Católica dentro da aldeia, nem batizou

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nenhum Enawenenawe porque considerava que a vida que levavam tradicionalmente era plena de tudo que eles precisavam. Assim uma Igreja institucionalizada lá dentro só atrapalharia. Hoje, com o recurso mensal que entra da indenização por causa da instalação de PCHs na região, o pedido deles por uma Escola, a estrada construída pelo prefeito de Juína dentro de sua terra e as dezenas de barcos a motor que receberam em troca deste “favor” que precisam de gasolina, o uso indiscriminado de refrigerantes só para dizer um dos produtos que eles levam da nossa sociedade e que prejudica enormemente sua saúde, já não sei se a Igreja mais formalmente entre eles atrapalharia tanto ou auxiliaria para o diálogo e o discernimento.

Claro que tem que ser uma Igreja serviço, uma Igreja comunhão, Católica que sabe acolher as diferenças, se alegrar com o progresso espiritual dos fiéis e assim acolher a todos sob o seu telhado de palha de buriti como vemos agora entre os Wapichanas, formando assim uma grande orquestra para tocar e cantar a paz e a justiça, cada um tocando seu instrumento que mais se adapta aos seus dons e à sua cultura. Não uma igreja crente, fanática que fecha as pessoas aos demais e ao próprio Deus que é Espírito e Verdade para construir a sua igreja que é egoísta, não se alegra com o progresso espiritual das outras denominações, que quer lucrar em cima dos fiéis etc. coisas que Jesus já muito criticou na forma dos fariseus, saduceus e sacerdotes conduzir a religião judaica.

Contudo, mesmo de longe, o CIMI tem acompanhado para ver como caminhar junto com eles, mas é difícil encontrar alguém que queira estar com eles dia e noite, mês a mês, ano a ano, dando a vida. O que eles pedem é que alguém fique com eles como o Irmão Vicente Cañas ficava. Pois eles sabem que o prefeito de Juína que pediu para abrir a estrada também tinha interesse em explorar o minério nas suas terras. E o que fazer? Quais as instâncias de decisões que se manterão neste momento em que eles estão encantados com o mundo ocidental e os seus “bens” e possibilidades? Quem auxilia a pensar, quem realmente se aproxima deles de forma gratuita e que não esteja atrelado aos poderes que querem explorá-los e ao seu território?

Muitas são as pessoas e entidades indigenistas4 que se juntaram aos jesuítas no empenho para que este assassinato não passasse impune. A todos agradecemos a vida doada pelo Reino da vida eterna que é a ressurreição! A participação no plenário do Júri que está aberto ao público o tempo todo é algo que impressiona, mas é frio, desgastante. Por isso juntar-se para rezar nas dependências da Justiça Federal em Cuiabá às sete horas da manhã para abençoar o dia torna-se necessário e no pôr do Sol, às 18 horas, novamente para recordar a caminhada do dia e rememorar Kiwxi faz muito bem para o coração.

A presença de cinco sobrinhos do Irmão Vicente, 8 Enawenenawe, 4 Mÿky; 2 Kawaiweté (Kayabis), Chiquitanos e outros indígenas, de vários missionários do CIMI entre eles o presidente Dom Roque Paloschi e o secretário Cleber, quatro advogados, entre eles Carol e Irmã Michael e muitos jesuítas, entre eles o Superior regional Padre Tabosa etc. indica que estamos entrelaçados na busca por justiça. As nossas velas acesas, os artefatos indígenas e outros símbolos da resistência indígena servem como metáforas do que não conseguimos dizer com palavras.

A saga desenvolvimentista tem trazido a contaminação por agrotóxicos e as pequenas centrais hidrelétricas nas cabeceiras dos rios ameaçam a sobrevivência física e cultural de agricultores familiares, comunidades tradicionais e povos indígenas, entre eles as pescas tradicionais dos Enawenenawe. A luta do Irmão Vicente Cañas continua no martírio dos irmãos e irmãs que até hoje lutam pelo direito à terra. Assim vamos alcançando alento e a solidariedade ao Irmão Vicente Cañas atualmente passa pelo respeito aos povos indígenas e pela demarcação urgente das terras dos povos Chiquitanos e Ivetin e tantas outras ainda pendentes em todo o Brasil.

- Qual é a expectativa para o novo Júri dos assassinos de Vicente Canãs?

4 O CIMI e a OPAN estiveram sempre juntos nesta Missão.

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O Seminário feito por ocasião dos 30 anos é mais importante que este Júri, penso eu. Bartomeu Melià Lliteres que viveu com o Irmão Vicente entre os Enawenenawe, assim se expressou: “Los tres días de conmemoración de Vicente Cañas y el libro Provocando rupturas, me hicieron conocer detalles que ignoraba, y en ciertos aspectos despertaron mi examen crítico. La Misión Anchieta vivía en gran soledad y aislamiento, casi como hueso descoyuntado, y creo que esto no era bueno. Sin embargo, se hizo camino y se abrieron las puertas para el protagonismo de los indios, que es lo deseable. La empresa es enorme.” O vídeo que se produziu a partir do Seminário Kiwxi: Memória, Martírio e Missão de Vicente Cañas expressa o que fazemos enquanto se deixou de punir ou dar àqueles que planejaram o assassinato o que eles merecem.

Sabemos que nem todos os cidadãos são tratados com igual consideração quando buscam o

serviço público da justiça. O que se vê no caso do Ir. Vicente é mais um exemplo deste descaso que acontece em nosso país. Só não vê quem não quer! Passados mais de 30 anos, ainda não temos uma sentença definitiva sobre o caso. De fato, as várias maquinações dos réus para dificultar o processo investigativo e esconder as provas do homicídio acontecido com intenções propositais de matar trouxe uma influência nociva e fez a justiça agir tardiamente. E, como dizem os sábios juristas, “a justiça que tarda, falha”. A justiça que não tem compromisso com sua eficácia é justiça que impacta direta e negativamente sobre a vida do cidadão, permitindo que se reproduza a impunidade.

Entretanto, para quem ingressa nas fileiras do discipulado de Jesus Cristo não existe fracasso. Aprendemos com Dom Pedro Casaldáliga que “quanto maior a crise tanto maior deve ser a nossa esperança”. E, mesmo com toda lentidão da justiça, queremos aproveitar da ocasião, mais uma vez, para reafirmar o desejo de restaurar a verdade e ver os responsáveis pelo terrível crime punidos. Estamos confiantes e queremos que se faça Justiça. Por outro lado, estamos agora diante de um Processo judicial e nos embrenhando nos seus meandros. Como Processo, trata-se de uma floresta ou de um manancial e a gente tem que encontrar o que queremos, ou seja, uma árvore de buriti, pupunha, açaí, castanha etc para alimentar a nossa esperança, vamos continuando em busca de uma compreensão do que realmente importa e, a longo prazo, chegar a futuro melhor.

Quando do acontecido, uma atrocidade sem limites, não se podia pensar no sofrimento que os indígenas estavam passando por verem seu território invadido, nem podia-se pensar nas dores que o Irmão Vicente passou ao ser atingido tão barbaramente por pessoas cruéis - que Deus os tenha para que percebam o mal que fizeram, e assim possam interceder por nós que ficamos – com isso conseguiremos

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que ninguém mais sofra desta forma tão cruel. Este é um dos objetivos que temos como jesuitas para levar avante este Processo judicial que custa tanto em esforço humano e também em termos de recursos financeiros.

Em relação à perspectiva dos resultados práticos, parece que não vamos conseguir que um novo Júri pense tão diferente do anterior. Contudo, não podemos saber, pois não somos adivinos do futuro, mas podemos anunciar alguns dados que poderiam influenciar neste momento. Há dez anos atrás tínhamos um governo no Brasil que era popular e que pensava em distribuir a renda do país, mas o Papa era avesso a toda a crítica. Por isso as críticas do Irmão Vicente à Igreja eram guardadas como uma afronta. Por isso tínhamos que internamente tomar todo o cuidado dentro da própria Igreja, e a atitude das críticas que o Irmão Vicente Cañas fazia à Igreja não pareciam soar bem como profecia. Hoje temos o contrário, o Papa Francisco abre a possibilidade de ordenar padres casados na Amazônia e isso o Irmão Vicente já falava abertamente que deveria acontecer para poder atender aos indígenas de forma adequada às suas culturas.

Quando a justiça dos seres humanos não levou em consideração as provas da morte deste Irmão jesuíta que são contundentes para quem quer ver, ela se tornou pequena demais. Só não vê quem não quer todas as maquinações para esconder as provas de que aconteceu homicidio com intenção de matar, pois é evidente que o Irmão Vicente Cañas foi morto… trata-se de um absurdo jurídico pensar que o Irmão Vicente Cañas morreu com dor de barriga ou outra coisa que o valha que foi usado com requintes de teatro para induzir o júri a não condenar ninguém.

Quando encontro ainda hoje escritos de pessoas sérias com equívocos propositais ou ignorâncias, penso que temos que nos ocupar com a verdade dos fatos. Um exemplo sério disso é o caso do Padre João Bosco Burnier, SJ que teria sido morto “por engano” no dia 12 de outubro de 1976. Ao ler o que Dom Pedro Casaldáliga deixou escrito, testemunha ocular dos fatos, sabemos que foi o Padre Burnier que disse ao soldado que estava indo a Cuiabá e o denunciaria aos seus superiores. Foi este fato que levou o soldado a dar uma coronhada na sua cabeça e depois dele ter caído, disparar o tiro fatal de revólver na sua cabeça. Assim, não poderia ser por engano esta norte e nem poderia ser que os soldados quisessem matar o bispo e pensavam que o padre fosse o bispo porque se vestia de forma mais formal. O assassinato deste outro missionário jesuita foi resultado da sua forma contundente de defender as mulheres, denunciar as torturas que elas estavam sofrendo, ou seja, foi a consequência da defesa que este jesuíta fez das mulheres na Delegacia de Ribeirão Cascalheira, como Cristo que estavam sendo torturadas, isso me leva a buscar de todas as formas elucidar os fatos para que fique declarada a verdade dura e crua, doa a quem doer…

Nestes momentos de dúvida em relação às provas materiais do crime que motivou este Júri, todo o contexto do Processo tem que ser levado em consideração, pois o Irmão Vicente Cañas estava ameaçado. Optou por não tirar as férias como estava planejado na Espanha e foi para o seu barraco para proteger os indígenas; ficaria assim com seu povo, pois a situação era tensa neste momento chave da demarcação das suas terras e por isso foi morto. Darci Pivetta expressou num momento de santa revolta por ter sugerido ao irmão uma atitude semelhante a Malinowski, ter um barraco um pouco distante como estratégia para preservar os indígenas das doenças, mas não podia imaginar o que aconteceria no futuro: “maldito barraco!”

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Assim, recorrer do Júri anterior de 2006 é o mais lógico, pois a justiça se mostrou muito superficial. Chegou-se no Processo do júri a dizer que não haviam provas de que o Irmão Vicente Cañas foi morto. E, em decorrência de que foi o delegado de Juína que articulou este horror, e ele mesmo presidia o inquérito, parece óbvio que as provas tendiam a desaparecer. Ali, desta forma tão ingênua, a

justiça humana falhou lamentavelmente! Contudo sempre é possível retornar ao Processo de busca da Justiça e é isso o que estamos fazendo. Colocar num mural esta dor que perpassa todos nós para que nunca mais se tome atitude semelhante de eliminar o outro. Creio que isso é o mínimo que podemos fazer. Quem sabe um dia nossa justiça pequena chegue mais próxima do que deveria ser, e, talvez assim, encontremos algo da Justiça de Deus já aqui na terra, pois esta seguramente vai além deste tempo e transcende a todos nós seres humanos.

O sepultamento definitivo do corpo do Irmão Vicente envolto em sua rede, como é costume tradicional dos indígenas, ocorreu em 22 de maio de 1987 e o Padre Iasi presidiu os ritos funerários com os missionários do CIMI, os índios Rikbaktsa e Enawenenawe. Em comunhão também seguimos com os peregrinos que vão seguir as pegadas do Irmão Vicente Cañas, passando por Diamantino e rezando no

sepulcro do Padre João Bosco Burnier, depois seguindo para a aldeia dos Mÿky e depois para o sepulcro do Irmão Vicente Cañas junto ao barraco que foi reformado e depois para os rituais dos Enawenenawe.

- Deseja acrescentar algo?

Como a massa no tapiti5 sendo amassada para se tornar farinha de mandioca, como a palha trançada na esteira para abrigar o corpo nos rituais funerários definitivos dos Boe (Bororos), ou mesmo como os fios trançados em uma rede de tralha (fios do broto do tucum ou do buriti) que abrigou o corpo do Irmão Vicente para ser sepultado pelos jesuitas, Enawenenawe e demais indigenistas… assim a vida e a morte do nosso Irmão não foi em vão porque ele ressuscitou, fecundou a terra. O corpo do Irmão Vicente foi desidratado pela própria natureza para que se pudesse ter uma idéia dos principios pelos quais Kiwxi viveu e como ele morreu dando a vida para que os Enawenenawe tivessem mais vida, em especial, sua terra demarcada. Assim, com pessoas nobres desta natureza temos esperança, pois nós, a Igreja, podemos sonhar em bem viver, ter mais vida, alcançar a vida plena.

5 Os indígenas de Roraima acreditam em Kanaimé, uma entidade que foi popularizada na cultura local, muitas vezes associada ao mal. Assim, quando alguém da comunidade falece, geralmente este acontecimento seria causado por Kanaimé, algo semelhante ao Bope, entre os Boe (Bororos) no Mato Grosso. Quando uma pessoa mostra traços de perversidade seria por causa do espírito de Kanaimé que assim a inspira e, geralmente, a acusação de feitiçaria recai em alguém. Os Wapichana afirmaram-me que no caso de feitiço, é necessário pegar água e passar esta água por dentro do tapiti na hora do banho para tirar o feitiço da pessoa. Neste sentido, o princípio de reciprocidade exige a vingança. No caso dos Boe, eles matam uma onça para retornar ao equilíbrio diante desta perda.

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Uma convicção nos acompanha: muitas Missões não desejavam matar a alma dos indígenas; o genocídio e o etnocídio não era de forma alguma um desejo dos missionários. Foi importante Pierre Clastres alertar para estas possibilidades, pois assim ficamos mais alertas, mas quem deseja a morte dos indígenas é o capetalismo.

Ritual funerário do Ir. Vicente Cañas realizado pelos Enawenenawe e Rikbaktsa. Se o grão de trigo não cai na terra e é sepultado, fica só um grão de trigo, mas

plantado produz muito fruto, disse Jesus Cristo.

Para quem pesquisa mais a fundo, fica claro nas opções que a maioria dos jesuítas faziam pelo trabalho com os indígenas tinha como objetivo a vida cada vez mais plena para os indígenas, que esta vida plena tinha em vista a “salvar almas”, isso estava associado a auxiliar para que chegassem aos céus, pois a vida não é somente na terra. Isso é algo que os missionários tinham claro, pois não se pode querer o bem viver somente num momento da vida, mas transcender estes momentos do Reino de Deus na terra com irradiações para a eternidade. Ou seja, com a alegria da comunhão, da partilha e vida em abundância, a graça de Deus poderia levar aos lugares mais distantes, aos céus.

Esta viagem se dá, tanto para dentro de nós mesmos, tanto quando vemos e compreendemos nossas possibilidades enquanto seres humanos abertos ao Transcendente, quanto nas viagens que fazemos para fora de nós, passando pelo cuidado da criação, pela vida fraterna com outros seres humanos para chegar ao Deus Criador, uma compreensão que traz equilíbrio e vida plena. Assim nos afastamos da ganância e outros vícios que nos levam ao acúmulo de capital e a nos sobrepor aos outros destruindo a criação e corrompendo a sociedade, pois, como diz Santo Inácio de Loyola, somos criados para louvar, reverenciar e servir a Deus e aos nossos irmãos.

Com disposição e discernimento podemos chegar ao lugar onde Deus nos quer, sem pretensão de tomar o lugar do outro, ir além de nosso egoísmo para se tornar indiferentes para estar somente onde o Deus Criador nos quer. Assim o Pai Criador nos enviou Jesus Cristo que nos chamou para estar com ele, para experimentar como Ele a alegria e a dor de sermos o que somos, filhos de Deus encarnados neste mundo de pecado, que nos atrai para a morte. Contudo, depois desta presença sagrada na terra toda a criação geme em dores de parto pela manifestação deste Filho e Deus e de todos os seres humanos, também os indígenas, por isso estamos cheios de esperança porque Deus já venceu o pecado e a morte em Cristo Jesus e nos chama a fazer a mesma experiência no dia a dia.

Neste momento, como jesuítas, estamos vivendo um kayros, fazendo o nosso discernimento para pensar o que podemos fazer na Missão indígena com os pés no chão e pensando alto, num projeto da CPAL e da Igreja a partir de Laudato Si. A presença dos jesuítas nas fronteiras por iniciativa do Padre Fernando Lopes tem que chegar a criar raízes como diz o Padre Roberto Jaramillo, criar vínculos dentro de um programa mais interligado e orgânico na SJ e na Igreja. No Mato Grosso o kayros do trabalho com os indígenas possui um aprendizado histórico que era mais intuitivo que reflexivo e os passos dados com

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coragem e desprendimento feito pelos indigenistas missionários jesuítas, articularam este resto de Israel que ainda está nesta Missão desafiante. Penso que deram o tiro errado, o inimigo era outro, pois se destruímos o planeta com agrotóxicos, todos vamos morrer, os fazendeiros também. A casa comum que é o planeta terra, associada à mãe-terra nas palavras do grande pajé Davi Kopenawa:

“Direito do nosso lugar, onde vivemos, precisa conhecer nossa mãe-terra. Precisa explicar

porque índios quer terra! Nosso mundo, Machitaoriri [...]. Nossos antepassados já conheceu nossa terra, nossa mãe que cuida da água, dos rios, das cachoeiras, dos pássaros... Escolheu caminho bom para nós. [...] Terra carrega a água que a gente usa, bebe... Não é para ficar sujando rio, ficar doente. Nossa Mãe é generoso para todos os povos do nosso planeta... Vocês aprende, cuidar primeiro dos direitos da floresta amazônica [...]. Precisa aprender olhar longe, árvore em pé... pele da terra!” (Seminário 10 anos da Declaração dos Direitos Indígenas, UFRR, 21-11-2017).

Para os Enawenenawe, o mundo começa no pátio de sua aldeia Halataikiwa, agora com 22 casas comunais (hakolo) e uma Casa de Flautas (Yãkwa ehakolone), onde são armazenados os instrumentos musicais e algumas indumentárias rituais. Este é o lugar onde começa propriamente o bem viver, a rituais que equilibram todos os seres vivos na terra e os espirituais. Dali brota a iniciativa das pescarias, da roça, as plantações de mandioca, de milho etc.

Os Macuxis falam da casa geral (yewî´ta) e os Wapichanas falam da nossa casa como udapu. Os Waraos que estão em situação de calamidade na Venezuela, por isso vêm para o Brasil para ter comida, saúde e educação. Na visita aos abrigos dos venezuelanos, encontrei mais de 400 crianças Waraos e Panares em situação de vulnerabilidade em Pacaraima, Boa Vista e Manaus. Na parece do abrigo do município de Pacaraima, divisa entre Roraima e Santa Elena (Venezuela), está o letreiro ilustrativo em língua Warau: janokoida... “nossa casa grande”, a casa comum. Isso lembra o alerta de Davi Kopenawa que os céus vão cair se continuarmos a destruir o planeta terra. Está chegando o Natal e parece que não tem mais lugar para os indígenas, como a Sagrada Família não encontrou hospedagem em Belém teve que retornar par a gruta que abrigava os animais!