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A defensora pública esta- dual de São Paulo Anaí Arantes Rodrigues, que acompanha processos de remoções e desapropria- ções na capital paulista, avalia que a lei que trata do tema deveria ter sido atualizada há tempos. “Nossa legislação tem que ser urgentemente re- formulada e modernizada para, principalmente, reco- nhecer a posse em caso de desapropriação. Isso já re- solveria boa parte dos pro- blemas, porque as famílias receberiam uma indeniza- ção mais justa”, avalia. Para ela, é preciso um pacto nacional. “É neces- sário um marco legal na- cional que determine re- quisitos e premissas des- sas desapropriações de co- munidades. Como funcio- na, o que o Estado tem que garantir às famílias em caso de deslocamento forçado”, diz. Legislação precisa mudar no país Educação para escanteio Bruno Moreno [email protected] Enquanto se questiona qual será o legado dos megaeventos no Bra- sil, em especial o da Co- pa do Mundo, o direito à educação de milha- res de crianças e ado- lescentes foi colocado para escanteio e está sendo lesado. Desde 2010, en- tre 57,3 mil e 76,5 mil pes- soas residen- tes em vilas e favelas, com idade entre 0 e 19 anos, foram afetadas direta- mente e tiveram que mudar de escola ou cre- che em função das de- sapropriações ou remo- ções para as obras dos megaeventos. O cálculo é feito com base no número de pes- soas afetadas, aplican- do-se o percentual de moradores dessa faixa etária que residem em vi- las e favelas no Brasil (38%), segundo o Censo de 2010, do IBGE. Não há informações oficiais, apenas estimati- vas de quantas pessoas teriam sido desapropria- das ou removidas. Uma das mais confiáveis é a do Observatório das Me- trópoles, núcleo nacio- nal de pesquisadores das cidades. De acordo com o coorde- nador da pesquisa “Metropolização e Megaeventos: impactos da Copa do Mun- do de 2014 e Olimpíadas de 2016 sobre as metrópoles brasi- leiras”, Orlando Al- ves dos Santos Jr, é possí- vel estimar entre 150 mil e 200 mil o número de pes- soas (de todas as faixas etárias) que tiveram que deixar suas casas em fun- ção dessas obras. Foram utilizados dados de gover- nos e dos Comitês dos Atin- gidos pela Copa de cada ci- dade. MIGRAÇÃO O processo migratório pe- lo qual o Brasil passou nos últimos cinco anos foi um dos maiores da história, se não o maior, em movi- mentação intraurbana – dentro da própria cidade. Geralmente, as famílias foram para mais longe da área central. A ação, promovida pe- lo poder público, teve pouco ou nenhum supor- te para que houvesse a continuidade da vida es- colar das crianças e ado- lescentes afetados. Foi o que constatou o Hoje em Dia em visita a sete das 12 cidades-sede da Copa do Mundo, onde se concentraram maior nú- mero de remoções. A série de reportagens que começa hoje mostra- rá casos de jovens que não se adaptaram à nova realidade ou não conse- guiram vagas em escolas e largaram os estudos. Há situações em que a ajuda de conhecidos e a sorte foram determinan- tes para que os jovens pu- dessem continuar a estu- dar, outras em que esco- las comunitárias estão ameaçadas de fechar ou já pararam de funcionar. Foram mais de 10 mil quilômetros percorri- dos, centenas de telefo- nemas e e-mails nos últi- mos três meses em busca dessas pessoas nas capi- tais Belo Horizonte, Cuiabá, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Ja- neiro e São Paulo. MT MINAS GERAIS RS RJ CE PE Cuiabá Porto Alegre* São Paulo** Rio de Janeiro* SP BH Recife Fortaleza* 1.421 km 1.361 km 498 km 1.373 km 1.132 km 338 km 1.881 km 752 km 1.644 km 2.285 R$ 119,7 milhões 459 R$ 102,5 milhões 700 R$ 128,2 milhões 708 R$ 234 milhões 10.000 R$ 300 milhões 161 R$ 40,8 milhões 3.270 R$ 99,6 milhões Desapropriações/remoções/reassentamentos Valor gasto * Dados oficias não repassados de forma completa ** O Metrô SP se recusou a responder à demanda. Os dados foram retirados do Ministério do Esporte e do site do Metrô SP, e podem estar desatualizados Fontes: Governos locais, Ministério do Esporte, Observatório das Metrópoles, Defensoria Pública do Estado de Pernambuco e Comitês dos Atingidos pela Copa PESSOAS DESAPROPRIADAS Em função dos megaeventos: entre 150 mil e 200 mil Em idade escolar (0 a 19 anos): entre 57,3 mil e 67,5 mil ROTEIRO DA REPORTAGEM Situação nas cidades visitadas > Obras para o Mundial de futebol e Olimpíadas deixaram milhares de jovens sem aula no país O projeto que deu origem a esta reportagem foi vencedor da Categoria Impresso do VII Concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, realizado pela Andi, Childhood Brasil e o Unicef, com o apoio da OIT, da Fenaj e da Abraji. FIM DE HISTÓRIA – No Rio de Janeiro, menina observa operários derruba- rem a casa onde morava, na Vila Autódro- mo, ao lado do Parque Olímpico SAIBAMAIS O Hoje em Dia percorreu 10 mil quilômetros em sete cidades-sede da Copa do Mundo > COPA SEM ESCOLA COPA SEM ESCOLA PRIMEIRA DE UMA SÉRIE FOTOS SAMUEL COSTA 22 BeloHorizonte,segunda-feira,12.5.2014 HOJEEMDIA hojeemdia.com.br Minas

[HED - 22] DIARIOS/MINAS/1 MATERIAL 12/05/14 em... · 2019. 8. 6. · do de 2014 e Olimpíadas de 2016 sobre as metrópoles brasi-leiras”, Orlando Al- ... Os dados

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Page 1: [HED - 22] DIARIOS/MINAS/1 MATERIAL 12/05/14 em... · 2019. 8. 6. · do de 2014 e Olimpíadas de 2016 sobre as metrópoles brasi-leiras”, Orlando Al- ... Os dados

Adefensorapública esta-dual de São Paulo AnaíArantes Rodrigues, queacompanhaprocessosderemoções e desapropria-ções na capital paulista,

avalia que a lei que tratado tema deveria ter sidoatualizada há tempos.“Nossa legislação tem

que ser urgentemente re-formulada e modernizadapara,principalmente, reco-nhecer a posse em caso dedesapropriação. Isso já re-solveria boa parte dos pro-blemas, porque as famíliasreceberiam uma indeniza-

ção mais justa”, avalia.Para ela, é preciso um

pacto nacional. “É neces-sário um marco legal na-cional que determine re-quisitos e premissas des-sasdesapropriaçõesdeco-munidades.Como funcio-na, o que o Estado temque garantir às famíliasem caso de deslocamentoforçado”, diz. l

Legislaçãoprecisamudar no país

Educação para escanteio

BrunoMoreno

[email protected]

Enquanto se questionaqual será o legado dosmegaeventos no Bra-sil, em especial o da Co-pa doMundo, o direitoà educação de milha-res de crianças e ado-lescentes foi colocadopara escanteio e estásendo lesado.Desde2010, en-

tre 57,3 mil e76,5 mil pes-soas residen-tes em vilase f a ve l a s ,com idadeentre 0 e 19ano s , f o r amafetadas direta-mente e tiveram quemudar de escola ou cre-che em função das de-sapropriações ou remo-ções para as obras dosmegaeventos.O cálculo é feito com

base no número de pes-soas afetadas, aplican-do-se o percentual demoradores dessa faixa

etária que residem emvi-las e favelas no Brasil(38%), segundo o Censode 2010, do IBGE.Não há informações

oficiais, apenas estimati-vas de quantas pessoasteriam sido desapropria-das ou removidas. Umadas mais confiáveis é ado Observatório dasMe-trópoles, núcleo nacio-nal de pesquisadoresdas cidades.De acordo como coorde-

nador da pesquisa“Metropolizaçãoe Megaeventos:impactos daCopa do Mun-do de 2014 eOlimpíadas de2016 sobre as

metrópoles brasi-leiras”, Orlando Al-

ves dos Santos Jr, é possí-vel estimar entre 150mil e200 mil o número de pes-soas (de todas as faixasetárias) que tiveram quedeixar suas casas em fun-ção dessas obras. Foramutilizados dados de gover-nos edosComitêsdosAtin-gidos pelaCopa de cada ci-dade.

MIGRAÇÃOOprocessomigratório pe-loqual oBrasil passounosúltimos cinco anos foi umdos maiores da história,se não o maior, em movi-mentação intraurbana –dentro da própria cidade.Geralmente, as famíliasforam para mais longe daárea central.A ação, promovida pe-

lo poder público, tevepouco ou nenhum supor-te para que houvesse acontinuidade da vida es-colar das crianças e ado-lescentes afetados. Foi oque constatou o Hojeem Dia em visita a setedas 12 cidades-sede daCopa doMundo, onde seconcentraram maior nú-mero de remoções.A série de reportagens

que começa hoje mostra-rá casos de jovens quenão se adaptaram à novarealidade ou não conse-guiram vagas em escolase largaram os estudos.Há situações em que a

ajuda de conhecidos e asorte foram determinan-tes para que os jovens pu-dessem continuar a estu-dar, outras em que esco-las comunitárias estãoameaçadas de fechar oujá pararam de funcionar.Foram mais de 10 mil

quilômetros percorri-dos, centenas de telefo-nemas e e-mails nos últi-mos três meses em buscadessas pessoas nas capi-ta i s Be lo Hor izonte ,Cuiabá, Fortaleza, PortoAlegre, Recife, Rio de Ja-neiro e São Paulo. l

MT

MINASGERAIS

RS

RJ

CE

PE

Cuiabá

Porto Alegre*

SãoPaulo**

Rio de Janeiro*

SP

BH

Recife

Fortaleza*

1.421 km

1.361 km498 km

1.373 km

1.132 km

338 km

1.881 km

752 km

1.644 km

2.285

R$ 119,7 milhões

459

R$ 102,5 milhões

700

R$ 128,2 milhões

708

R$ 234 milhões

10.000

R$ 300 milhões

161

R$ 40,8 milhões

3.270

R$ 99,6 milhões

Desapropriações/remoções/reassentamentos

Valor gasto

* Dados oficias não repassados de forma completa

** O Metrô SP se recusou a responder à demanda. Os dados foram retirados do Ministério do Esporte e do site

do Metrô SP, e podem estar desatualizados

Fontes: Governos locais, Ministério do Esporte, Observatório das Metrópoles, Defensoria Pública do Estado de

Pernambuco e Comitês dos Atingidos pela Copa

PESSOAS DESAPROPRIADAS

Em função dos megaeventos:

entre 150 mil e 200 mil

Em idade escolar (0 a 19 anos):

entre 57,3 mil e 67,5 mil

ROTEIRO DA REPORTAGEM

Situação nas cidades visitadasl> Obras para oMundial de futebol eOlimpíadasdeixarammilhares de jovens semaula no país

Oprojetoquedeuorigemaestareportagemfoi vencedordaCategoria ImpressodoVIIConcursoTimLopesdeJornalismo Investigativo,realizadopelaAndi, ChildhoodBrasil e oUnicef, comoapoiodaOIT, daFenaj edaAbraji.

FIMDEHISTÓRIA–

NoRiodeJaneiro,meninaobserva

operáriosderruba-

remacasaonde

morava,naVila

Autódro-mo,ao ladodoParqueOlímpico

SAIBAMAIS

OHoje emDia

percorreu 10mil

quilômetros

em sete

cidades-sede da

Copa doMundo

l>

COPA SEM ESCOLACOPA SEM ESCOLA

PRIMEIRADEUMA SÉRIE

FOTOS SAMUEL COSTA

22BeloHorizonte,segunda-feira,12.5.2014

HOJEEMDIA

hojeemdia.com.brMinas

Page 2: [HED - 22] DIARIOS/MINAS/1 MATERIAL 12/05/14 em... · 2019. 8. 6. · do de 2014 e Olimpíadas de 2016 sobre as metrópoles brasi-leiras”, Orlando Al- ... Os dados

Emcontraposição às di-ficuldades que enfren-tou com a remoção emfunção da duplicaçãoda avenida Pedro I, naregião de Venda Nova,emBeloHorizonte, a fa-mília da salgadeiraAlédia Aparecida OttoPereira,de37anos, con-tou com a sorte e a soli-dariedade de pessoasquenemconhecia. Prin-cipalmente para conse-guir vaga na escola pa-ra os quatro filhos.A família foi desapro-

priada em setembro doano passado e, como ti-nha pouco tempo parasair, escolheu uma casa

em um bairro de SantaLuzia, na Grande BH. Aintenção era ficar o maisperto possível dos paren-tes, já que alguns perma-neceram próximo à anti-ga residência.Na mudança, Alédia e

família perceberam queo local era muito perigo-so. Três dias depois, ochefe do marido dela oviudesesperadono traba-lho e ajudou a conseguiruma casa para alugar nomunicípio de Confins.Assim, em menos de

uma semana eles fize-ramduasmudanças. De-pois de arrumar o tetoparamorar, faltava a es-

cola das crianças. Assim,com ajuda atémesmo doprefeito da cidade, con-seguiram vaga para to-dos os filhos. “Não tive

ajuda lá em Belo Hori-zonte, mas aqui me rece-beram mui to bem emeus filhos não ficaramfora da escola. Foi sorte,

solidariedade e Deus”,aponta a salgadeira.

FAMÍLIAComo a casa em SantaLuzia está para venderoualugar, eles não conse-guiram ainda utilizar osrecursos da indenizaçãopara comprar outro imó-vel, e estão arcando como aluguel, o que nuncahavia feito parte dos gas-tos da família.Apesar disso, estão to-

dos satisfeitos. “Aqui eles(os filhos) têmmuita ami-zade.As pessoas nos rece-beram muito bem, temosumavista linda.Masapar-te ruimé que ficamos lon-ge da nossa família. Ago-ra está cada um em umlugar”, lamenta Alédia. l

Morar relativamenteperto do Centro de BeloHorizonte, em frente àUniversidade Federald e M i n a s G e r a i s(UFMG),naavenidaAn-tônio Carlos, na Pampu-lha, era um sonho paraaestudanteRejianeSan-tos Rodrigues, de 18anos. Filha de um casalde ex-moradores derua, que ocuparam aárea há pouco mais deuma década, ela viu suafamília ser desapropria-daparaumaobradaCo-pa doMundo, em 2011.A casa que foi possível

ser comprada com o di-nheiro da indeniza-ção,nobairroAl-to Boa Vista,v iz inho aoCitrolândia,em Betim,na GrandeBH, f ica aaproximada-mente40quilô-metros de onde afamília morava.O casal, quando deci-

diu sair das ruas e mon-tar uma família, pensouem dar tudo o que fossepossível para a filha queviria. E foi com isso emmente que, assimque semudaram para Betim,os pais procuraramumaescola para que Rejianepudesse continuar os es-tudos. Entretanto, de-morou para conseguirescola.“No começo foi difícil.

Fiquei dois meses paraconseguir vaga. Eu emi-nha mãe ficávamos ten-tando. Quando conse-

gui, era no turno da noitee ficava com um poucodemedo ao voltar pra ca-sa. Hoje já me acostu-mei”, lembra a garota.

VILAUFMGSegundo a Prefeiturad e B e l o Ho r i z o n t e(PBH), na Vila RecantoUFMG, 130 famílias fo-ram remov idas , em2011, para a constru-ção de um viaduto dea c e s s o à a v e n i d aAbrahão Caram. Outrasobras na capital foramfeitas em função da Co-pa do Mundo e deman-daram remoções, comoa duplicação da aveni-da Pedro I e a Via 210(no bairro Betânia). Nototal, na capital minei-ra, foram 708 famíliasremovidas, de acordocom a PBH.Rejiane é uma das cer-

ca de 900 crianças e ado-lescentes em idade esco-lar em Belo Horizonteque foram afetadas dire-tamente pelas obras daCopa do Mundo.

PREFERÊNCIAHoje, passados três anosda mudança, ela estáacostumada com a vizi-nhança e gosta de ondemora. “Não queria ir paraumapartamento por cau-sa dos cachorros”, conta.Mas, ao mesmo tempo,

lamenta estar longe daUFMG, já que ela deve seformar neste ano no ensi-no médio. “Quero cursarpsicologia. Se ainda mo-rasse em frente à UFMG,seria ótimo”, afirma. l

Solidariedade para superar as dificuldades

l> Família sai de BeloHorizonte para Betim e peregrinação embusca de vaga emescola foi sofrida

Recomeço a 40quilômetrosde distância do antigo lar “Oqueéo

devido

atendimen-

to,nonosso

entender?A

pessoatem

quesairda

situaçãoem

quese

encontraeir

parauma

outraigual

oumelhor.

Elanunca

podepiorar

aqualidade

devidaem

razãodessa

intervenção

pública”

AnaíArantes

Rodrigues,

defensora

pública

estadualem

SãoPaulo

“Nósfomos

muitobem

recebidos

aqui(na

cidadede

Confins)e

estamos

gostando.

Contamos

comaajuda

demuita

gente.Mas

sentimos

faltada

nossa

família,que

ficou

separada”

AlédiaPereira,

salgadeira,

desapropriada

nasobras

daavenida

PedroI

DESAPROPRIADA–Rejianedemoroudoismesesparaencontrarumavaganaescolapróximaàsuanovacasa,distante40quilômetrosdeondemorava

“No começo foi

difícil. Eu e

minhamãe

ficávamos

tentando vaga”,

diz Rejiane

DIFÍCILADAPTA-ÇÃO–A

famíliadeAlédianãoconseguiu

vivernacasa

compradacomo

dinheirodaindenizaçãoefoiprecisoajudapara

serestabele-

ceremConfins,naGrandeBH

hojeemdia.com.br 23BeloHorizonte,segunda-feira,12.5.2014

HOJEEMDIAMinas