1. Hesodo, junto a Homero, o mais antigo poeta grego cujas
obras chegaram a ns. Este livro se compe da traduo integral da
Teogonia de Hesodo, e do ensaio em que este poema estudado como um
documento do pensamento religioso grego, sob quatro aspectos
interligados, a saber: 1)A noo mtica da linguagem como manifestao
divina. As Deusas Musas, filhas de Zeus e de Mnemosne ("Memria"),
manifestam-se no canto e na dana e em forma de canto e de dana.
Elas constituem o fundamento transcendente dos cantos e, ao mesmo
tempo, a garantia divina da verdade que nesses cantos se revela.
2)A noo mtica da verdade como "revelaes" (aletha). A epifania das
Musas a Hesodo coloca em termos mticos o problema lgico e ontolgico
da verdade. Entre "muitas mentiras smeis aos fatos", as Musas,
quando querem, sabem dizer a verdade, ou melhor: "revelaes"
(aletha). Quem poderia distinguir entre tais "mentiras" e
"revelaes"? - Para a piedade hesidica, a Verdade um dom dos Deuses,
e assim depende da vontade deles se ela se apresenta ou no aos
homens -, mas, apresentando-se, ela traz consigo o sinal inequvoco
de sua autenticidade: o esplendor divino. Quem poderia jamais
deixar de perceb-lo, se assim querem as Deusas? 3)A noo mtica do
tempo como temporalidade da Presena divina. Os gregos hesidicos
vivem na proximidade dos Deuses, num tempo cujos dias no se deixam
medir por quaisquer nmeros, pois cada dia ento se mostra com as
caractersticas e qualidades mesmas do Deus que nesse dia se
manifesta e se comemora. 4)A noo mtica do mundo como um conjunto
nico, uno e mltiplo de teofanias. O mundo, para os gregos
hesidicos, um conjunto nico de inesgotveis aparies divinas
(teofanias); no entanto, um mundo lgico, em termos mticos e na
lgica prpria do pensamento mtico - um mundo real e perigoso, que se
deixa conhecer atravs das genealogias divinas, das linhagens e
famlias de Deuses ciosos de suas prerrogativas e vigilantes de que
elas sejam observadas. A presente traduo, em versos livres, busca
reproduzir no s a riqueza potica, mas ainda as noes e o movimento
prprios do pensamento grego arcaico.
2. Jaa Torrano professor de Lngua e Literatura Grega na
Universidade de So Paulo, e autor de outro grande estudo do
pensamento mtico grego: O Sentido de Zeus: O Mito do Mundo e o Modo
Mtico de Ser no Mundo, que ser em breve reeditado pela Iluminuras.
BIBLIOTECA PLEN Para quem no quer confundir rigor com rigidez,
frtil considerar que a filosofia no somente uma exclusividade desse
competente e titulado tcnico chamado filsofo. Nem sempre ela se
apresentou em pblico revestida de trajes acadmicos, cultivada em
viveiros protetores contra o perigo da reflexo: apropria crtica da
razo, de Kant, com todo o seu aparato tecnolgico, visava,
declaradamente, libertar os objetos da metafsica do "monoplio das
Escolas". O filosofar, desde a antigidade, tem acontecido na forma
de fragmentos, poemas, dilogos, cartas, ensaios, confisses,
meditaes, pardias, peripatticos passeios, acompanhados de infindvel
comentrio, sempre recomeando, e at os modelos mais clssicos de
sistema (Espinosa com sua tica, Hegel com sua lgica, Fichte com sua
doutrina-da-cincia) so atingidos nesse prprio estatuto sistemtico
pelo paradoxo constitutivo que os faz viver. Essa vitalidade da
filosofia, em suas mltiplas formas, denominador comum dos livros
desta coleo, que no se pretende disciplinarmente filosfica, mas,
justamente, portadora desses gros de antidogmatismo que impedem o
pensamento de enclausurar-se: um convite liberdade e alegria da
reflexo. Rubens Rodrigues Torres Filho
3. Hesodo TEOGONIA A ORIGEM DOS DEUSES Estudo e traduo Jaa
Torrano 3a edio Biblioteca Plen Dirigida por Rubens Rodrigues
Torres Filho Copyright da traduo: Jaa Torrano Ttulo original do
poema: Theogona Reviso desta edio: Ana Paula Cardoso Composio:
Iluminuras ISBN: 85-85219-22-X 1995 EDITORA ILUMINURAS LTDA. Rua
Oscar Freire, 1233 01426-001 - So Paulo - SP Tel.: (011) 852-8284
Fax:(011)282-5317
4. NDICE O Mundo como Funo de Musas I. Discurso sobre uma Cano
Numinosa........................................8 II. Ouvir Ver
Viver a
Cano.........................................................10
III. Musas e
Ser...............................................................................16
IV. Musas e
Poder...........................................................................31
V. A Qudrupla Origem da
Totalidade...........................................31 VI. Trs
fases e trs
linhagens.........................................................40
VII. Memria e
Moira.....................................................................57
VIII. A temporalidade da Presena
Absoluta..................................69 IX. A presena do
nume-nome........................................................79
Eplogo............................................................................................84
Teogonia, a origem dos
Deuses......................................................87
Bibliografia....................................................................................120
Somente h chave que d o sentido do smbolo para quem compreende a
simblica mtica. Somente h via que conduza ao sentido sagrado do
smbolo para quem vive a simblica inicitica. BERTEAUX, Raoul La Voie
symbolique. Paris, Lauzeray International, 1978, p. 61.
5. DEDICATRIA Quando Herclito viu perfeito o seu livrinho,
depositou-o no templo de rtemis Senhora das Feras, a Deusa de
muitos beres. Agora que vejo concludo o meu, a Deusa no tem mais
templos, nem as feras tm Senhora, nem as feras so mais ferozes,
ainda que sejam piores: contagiosas, poluentes. Como Herclito ps em
seu livrinho os aforismas de sua Sabedoria Arcaica, tentei pr neste
meu as dicas das vises que vi e da Senda que tenho trilhado e pela
qual penso alcanar o tlos de meu Destino. Outros j passaram por
esta Senda; por isso a novidade de tudo o que eu digo de novo est
na fora da repetio. A fora do Sbio est em saber dizer o j dito com
o mesmo vigor com que foi dito pela primeira vez. Evocada ou no,
contemplada ou sem templo, a Deusa Me est presente e nos nutre. As
feras, ainda que tenham perdido a inocncia e a natural crueldade,
so sempre as suas crias. To perverso como as ex-feras minhas
contemporneas, de cujo convvio no poderei me apartar seno quando me
sentir prximo do fim de meus dias, vivo nos ltimos anos desta Idade
de Ferro preditos por Hesodo e confio este meu livrinho aos que
tiverem prazer em falar e ouvir falar dos Deuses sempre vivos, e
aos que com Eles vivem.
6. O MUNDO COMO FUNO DE MUSA
7. I DISCURSO SOBRE UMA CANO NUMINOSA O que se lera neste livro
um discurso sobre o nefando e sobre o inefvel, i.e., um discurso
sobre a experincia do Sagrado, um discurso sobre o que no deve e no
pode ser dito, quer por ser motivo do mais desgrao horror (o
Nefando), quer por ser motivo e objeto da mais sublime vivncia (o
Inefvel). Portanto, o trabalho aqui apresentado (con)centra-se num
problema metodolgico insolvel, j que este trabalho se prope a
executar o inexeqvel, ou seja: se prope como um discurso sobre a
experincia do Sagrado. Se essa experincia for apreendida e
compreendida (talvez fosse mais adequado dizer no com-preendida,
mas con-vivid) em seu mais prprio sentido e vigor, ento este
discurso que se prope apresent-la deve necessariamente frustrar-se
enquanto discurso. Um discurso que se prope dizer com rigor a
essncia do que em seu vigor indizvel (nefando e/ou inefvel) no pode
cumprir-se a rigor. Se ele se fizer como um discurso rigoroso, ele
dever para isso falsificar a apresentao de seu objeto e, portanto,
ele dever, para ser rigoroso, ser tambm falso. Este discurso,
portanto, mais do que se resignar a seu prprio fracasso j que tem
por escopo realizar a impossibilidade enquanto ela vigora como
impossibilidade dever programar o seu prprio fracasso e dever, na
avaliao que fizer de sua prpria eficincia e efetividade, estar
atento a que s pode computar como xito e consecuo do objeto
perseguido os seus momentos de fracasso, momentos nos quais no
atingiu o objeto ao qual perseguia. Mas o Sagrado (ou melhor: o
Numinoso), sobre o qual este trabalho prope-se constituir um
discurso, uma qualificao especial a que podem servir de suporte
determinados objetos. Se esta qualificao especial constituda pelo
Numinoso que indizvel (e, por conseqncia, a especial qualidade da
experincia humana desta qualificao constituda pelo Numinoso), no
absolutamente indizvel o objeto que suporta a qualificao de
numinoso; esse objeto pode ser dito, descrito e definido. Por
conseguinte, alm de se propor a consecuo do que no se deve
(porque
8. no se pode) conseguir (i.e., dizer o indizvel), este
trabalho se prope apresentar, por meio de uma descrio, determinados
objetos enquanto suportes desta inexprimvel qualificao que o
numinoso. Assim, este trabalho se prope descrever a linguagem
enquanto objeto de uma experincia numinosa arcaica. Esta experincia
da linguagem est profunda e inextricavelmente ligada a uma certa
concepo arcaica da linguagem, a uma certa concepo arcaica de tempo,
a uma certa concepo arcaica de Ser e de Verdade. O objetivo a que
se programa este trabalho , alm de seu prprio fracasso (entendido
como a mais adequada medida para o seu xito), descrever como foi
vivida e apresentada na Teogonia hesidica a complexo das concepes
arcaicas de linguagem, de tempo, de Ser e de Verdade. A linguagem ,
neste caso, a linguagem do aedo, i.e., a cano uma cano que ao mesmo
tempo veculo de uma concepo do mundo e suporte de uma experincia
numinosa.
9. II OUVIR VER VIVER A CANO A poesia de Hesodo arcaica e, a
meu ver, s podemos apreci-la em sua plenitude e vigor se estivermos
atentos ao sentido em que ela o e s suas implicaes. Na afirmao
segundo a qual a poesia de Hesodo arcaica, devemos levar em conta o
sentido historiogrfico da palavra arcaico ("poca Arcaica"), o
sentido que aponta a anterioridade e a antigidade (uma cano
composta quando o pensamento racional comeava a pr-figurar-se), e
ainda um sentido etimolgico, que envolve a idia de arkh, de um
princpio inaugural, constitutivo e dirigente de toda a experincia
da palavra potica. Se meditarmos nessas trs direes implicadas no
arcaico do poema hesidico, talvez nos aproximemos com maior clareza
das condies em que esta poesia se deu pela primeira vez aos homens
e possamos compreender a funo, natureza e sentido com que ento ela
se fazia presente. Os estudiosos designaram Arcaica a poca em cujos
umbrais Hesodo viveu e comps seus cantos. Na Grcia, os sculos VIII
-VII a.C. testemunharam a germinao ou transplante de instituies
sociais e culturais cujo florescimento ulterior transmutaria
revolucionariamente as condies, fundamentos e pontos de referncia
da existncia humana: a polis, o alfabeto e a moeda. No entanto, a
poesia de Hesodo anterior ao florescimento dessas trs invenes
catastrficas e, ainda que j tenha sido escrita ao ser composta,
toda ela se orienta e vigora dentro das dimenses anteriores s
condies paulatinamente trazidas por essas trs. A polis e a moeda
esto ausentes ou s pressentidas no poema a que, por sua envergadura
social, agrcola e mercantil, mais elas interessariam: Os trabalhos
e os dias. E o uso do alfabeto e suas conseqncias (cujo carter
deletrio para a Memria Scrates acusa no Fedro) esto ausentes e
afastados da concepo de poesia que exposta na Teogonia (no hino s
Musas, versos 1 a 115) e que subjacentemente fundamenta tanto a
elaborao como a devida fruio do poema. A marca da oralidade no est
somente nas caractersticas exteriores e formais da Teogonia, a
saber: 1) nas frmulas e frases pr-fabricadas que, combinando-se
como mosaicos, vo compondo os versos em seqncias salpicadas por
palavras e expresses inevitavelmente retornantes;
10. 2) na justaposio com que as seqncias narrativas se associam
sem que nenhuma delas se centralize articulando em torno de si as
outras, mas antes tendo cada seqncia narrativa um igual valor na
sintaxe da narrao total e podendo portanto sempre e ao arbtrio do
poeta articular-se a um nmero quase indefinido de novas seqncias;
3) nos catlogos (listas de nomes prprios) que se oferecem como um
espetacular jogo mnemnico, que s a habilidade do poeta redime do
gratuito e lhe confere uma funo motivada e significativa dentro do
contexto do poema. A marca da oralidade est tambm na prpria concepo
de linguagem potica que Hesodo tem e expe nos prologais 115 versos
do hino s Musas, e sobretudo no uso que ele faz desta linguagem e
na plena certeza que ele tem do poder de presentificao de seu
canto. Nesta comunidade agrcola e pastoril anterior constituio da
polis e adoo do alfabeto, o aedo (i.e., o poeta-cantor) representa
o mximo poder da tecnologia de comunicao. Toda a viso de mundo e
conscincia de sua prpria histria (sagrada e/ou exemplar) , para
este grupo social, conservada e transmitida pelo canto do poeta.
atravs da audio deste canto que o homem comum podia romper os
restritos limites de suas possibilidades fsicas de movimento e
viso, transcender suas fronteiras geogrficas e temporais, que de
outro modo permaneceriam infranqueveis, e entrar em contato e
contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do canto se
tornam audveis, visveis e presentes. O poeta, portanto, tem na
palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios
e distncias espaciais e temporais, um poder que s lhe conferido
pela Memria (Mnemosyne) atravs das palavras cantadas (Musas).
Fecundada por Zeus Pai, que no panteo hesidico encarna a Justia e a
Soberania supremas, a Memria gera e d luz as Palavras Cantadas, que
na lngua de Hesodo se dizem Musas. Portanto, o canto (as Musas)
nascido da Memria (num sentido psicolgico, inclusive) e do mais
alto exerccio do Poder (num sentido poltico, inclusive). O aedo
(Hesodo) se pe ao lado e por vezes acima dos basiles (reis), nobres
locais que detinham o poder de conservar e interpretar as frmulas
pr-jurdicas no-escritas e administrar a justia entre querelantes e
que encarnavam a autoridade mais alta entre os homens. Esta extrema
importncia que se confere ao poeta e poesia repousa em parte no
fato de o poeta ser, dentro das perspectivas de uma cultura oral,
um cultor da Memria (no sentido religioso e no da eficincia
prtica), e em parte no imenso poder que os povos grafos sentem na
fora da palavra e que a adoo do alfabeto solapou at quase destruir.
Este poder da fora da palavra se instaura por uma relao quase mgica
entre o nome e
11. a coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez
pronunciado, a presena da prpria coisa. Nascida antes que o veneno
do alfabeto entorpecesse a Memria, a poesia de Hesodo tambm
anterior elaborao da prosa em seus vrios registros e diversificao
da experincia potica em seus caractersticos gneros. O aedo canta
sem que ao exerccio de seu canto se contraponha outra modalidade
artstica do uso da palavra. Seus versos hexmetros nascem num fluxo
contnuo, como a nica forma prpria para a palavra mostrar-se em toda
a sua plenitude e fora ontofnicas, como a mais alta revelao da
vida, dos Deuses, do mundo e dos seres. De nenhum outro modo a
palavra libera toda a sua fora, nenhuma outra forma potica se pe
como alternativa em que o canto se configura. S quase um sculo
depois de Hesodo surge, com Arquloco de Paros, a poesia lrica que,
tematizando o aqui e agora, os sentimentos, atitudes e valores
individuais do poeta, constitui-se com os seus metros vrios um novo
gnero, uma nova gnese, uma nova forma de manifestao da palavra,
nascida e prpria das novas condies trazidas pela polis, pela
reforma hopltica, pelo uso do alfabeto. Ao mesmo tempo e
solidariamente ao nascimento da lrica, os primeiros pensadores
jnicos e os loggrafos (autores de registros de fundaes de
cidades-colnias e de genealogias da nobreza) comeam a elaborao da
prosa; a lngua grega comea a adquirir palavras abstratas (sobretudo
pela substantivao de adjetivos no neutro singular); e o pensamento
racional comea a abrir novas perspectivas a partir das quais impor
novas exigncias. Com os pensadores a linguagem pe-se a caminho de
tornar-se abstrato-conceitual, racional, hipottica e desencarnada
(na perfeio do processo, o nome se torna um signo convencionado
para a coisa nomeada, cf. Crtilo de Plato). Com os poetas lricos a
linguagem perscruta a realidade do indivduo humano, examina seus
sentimentos, valores e motivaes, at comear a transmut-los e
transport-los, de foras divinas e csmicas que eram (v.g. ros, ris,
Aids, Apte, te, Lyssa, etc.) para um interiorizado pthos humano
(amor, rivalidade, pudor, engano, loucura, furor, etc.). Poetas
lricos e pensadores colaboram inicialmente (sculos VII e VI) na
grande tarefa de elaborar uma linguagem abstrato-conceitual e apta
como instrumento de anlise tanto do cosmos como da realidade
humana; e em verdade nos prdomos deste processo multi-secular de
transformao da linguagem em instrumento est Hesodo. A tentativa
globalizadora de sinopse dos mitos com a qual a Teogonia se esfora
por organiz-los em torno da figura e da soberania de Zeus de fato o
primeiro (ou um dos primeiros) alvor da atividade unificante,
totalizante e subordinante do
12. pensamento racional. Perseguir a totalidade unificada, o
Todo-Uno (Pn Hn), a aspirao extrema do pensamento racional e da
prosa, que um ao outro se elaboram e se trabalham, a partir das
novas condies oferecidas pelo alfabeto para se aprisionar as
palavras pela arte da escrita, despoj-las paulatinamente de seu
poder encantatrio e de sua magia musical e imagtica, despoj-las do
domnio que exercem numinosamente sobre o homem e domestic-las no
cativeiro da escritura e torn-las instrumento seco, fixo e preciso.
Em Hesodo as palavras so foras divinas, Deusas nascidas de Zeus e
Memria (as Musas), mas Hesodo j ouve o apelo do Todo-Uno e
claramente perceptvel na Teogonia a tendncia de toda a polimorfa
realidade e os mltiplos mbitos do Divino convergirem subordinados
realeza de Zeus Pai dos homens e dos Deuses. A luta de Zeus pelo
poder e a manuteno do poder por Zeus uma o pice e o centro da viso
do mundo apresentada na Teogonia; isso e ainda ser a Teogonia uma
sinopse no s de mitos de diversas procedncias mas uma sinopse do
prprio processo cosmognico e mundificante mostram que neste canto
arcaico pulsa j o primeiro impulso do pensamento racional. Em Os
trabalhos e os dias Hesodo tematiza o seu aqui e agora o que a
radical descoberta e inveno dos lricos gregos. E se por um lado,
como vimos, a Teogonia se liga a uma ulterior corrente da poca
Arcaica, a do pensamento com o qual a Razo se manifestou atravs da
elaborao do discurso em prosa, por outro lado tambm se liga a
certas prticas inauguradas pela poesia lrica: Hesodo se nomeia a si
mesmo no seu canto sobre o nascimento dos Deuses (v. 22) e d, nos
seus dois principais poemas suprstites, a respeito de sua prpria
vida todas as notcias de que hoje dispomos sobre ela com maior
segurana (Trabalhos, vv. 27-41, 631-40, 650-62; Teogonia, 23-34).
Assim arcaica a poesia hesidica: ligada formalmente pica homrica
(hexmetros, estilo prprio composio oral), ligada prenunciai e
prefiguradoramente s duas mais importantes correntes culturais
ulteriores a ela (a dos pensadores e a da poesia lrica), expondo
uma concepo caracteristicamente grafo-oral de poesia e expondo-se
rigorosamente segundo essa concepo. (Analisaremos adiante mais
ampla e pormenorizadamente que concepo esta e como o .) No que
concerne ao sentido historiogrfico ("poca Arcaica") e ao sentido
usual (antigo, anterior) deste adjetivo arcaico, a poesia hesidica
pertence a uma outra poca por tudo diversa e distante da nossa e de
nossos hbitos, pertence a um outro mundo mental, para ns sem
interesse porque com nenhum ou s escassos pontos de contato com o
nosso prprio mundo mental. E se fosse apenas pelos dois primeiros
sentidos do arcaico, a leitura
13. da Teogonia seria deveras estudiosa e trabalhosa, do
interesse e competncia apenas da pesquisa erudita e acadmica. Mas
no nada disso, porque no s arcaica nesses dois sentidos. A leitura
da Teogonia ultrapassa e extrapola o interesse da mera erudio
acadmica, porque o mundo que este poema arcaico pe luz, e no qual
ele prprio vive, est vivo de um modo permanente e enquanto formos
homens imortal. Um mundo mgico, mtico, arquetpico e divino, que
beira o Espanto e o Horror, que permite a experincia do Sublime e
do Terrvel, e ao qual o nosso prprio mundo mental e a nossa prpria
vida esto umbilicalmente ligados. Porque tambm num sentido
etimolgico a poesia hesidica arcaica. Durante milnios, anteriores
adoo e difuso da escrita, a poesia foi oral e foi o centro e o eixo
da vida espiritual dos povos, da gente que reunida em torno do
poeta numa cerimnia ao mesmo tempo religiosa, festiva e mgica a
ouvia. Ento, a palavra tinha o poder de tornar presentes os fatos
passados e os fatos futuros (Teogonia, vv. 32 e 38), de restaurar e
renovar a vida (idem, vv. 98-103). Mas sobretudo a palavra cantada
tinha o poder de fazer o mundo e o tempo retornarem sua matriz
original e ressurgirem com o vigor, perfeio e opulncia de vida com
que vieram luz pela primeira vez. A recitao de cantos cosmognicos
tinha o poder de pr os doentes que os ouvissem em contato com as
fontes originrias da Vida e restabelecer-lhes a sade, tal o poder e
impacto que a fora da palavra tinha sobre seus ouvintes.Na solidria
colaborao dos homens com a Divindade, o rei-cantor na antiga
Babilnia devia entoar, nas festas de Ano Novo, o poema narrativo de
corno a ordem csmica divina e humana surgiu prevalecendo sobre as
anteriores trevas amorfas, e por meio desta declamao do canto
prover que o novo crculo do Ano, o novo ciclo do Mundo, tendo
retornado a suas fontes originais, se refizessem de novo no Novo
Ano. Este poder ontopotico que a palavra cantada teve
multimilenarmente nas culturas orais se faz presente na poesia de
Hesodo como um poder ontofnico. O mundo, os seres, os Deuses (tudo
so Deuses) e a vida aos homens surgem no canto das Musas no Olimpo,
canto divino que coincide com o prprio canto do pastor Hesodo, a
mostrar como surgiu e a fazer surgir o mundo, os seres, os Deuses e
a vida aos homens. Este poder ontofnico da palavra perdura ainda
hoje em nossa experincia potica e em nossa experincia bem mais
vulgar de temor a certas palavras aziagas. Desde sempre e ainda
hoje e creio que assim ser sempre o maior encanto da poesia reside
no seu poder de instaurar uma realidade prpria a ela, de iluminar
um mundo que sem ela no existiria. Para Hesodo, este mundo
instaurado pela poesia o prprio mundo; por isso certos Deuses
monstruosos e terrveis no devem ser
14. nomeados, so no-nomeveis (ouk onomasto, Teog. v. 148), o
domnio do nefando, o que no deve ser dito (otiphatein, idem v.
310). Em Hesodo as palavras cantadas no so uma constelao de signos
abstratos e vazios, mas foras divinas nascidas de Zeus Pai e da
Memria, que sabiamente fazem o mundo, os Deuses e os fatos
esplenderem na luz da Presena, e implantam, na vida dos homens, um
sentido que, com o vigor do eterno, centra-a e ultrapassa-a. Neste
sentido de que nela est total e vigorosamente encarnado o que a
maior fora de encantamento da poesia ainda hoje e
multimilenarmente, a poesia hesidica arcaica, porque nela mais
plena e claramente se manifesta a arkh da poesia: o seu poder
ontofnico.
15. III MUSAS E SER A primeira palavra que se pronuncia neste
canto sobre o nascimento dos Deuses e do mundo Musas, no genitivo
plural. Por que esta palavra e no outra? Dentro da perspectiva da
experincia arcaica da linguagem, por outra palavra qualquer o canto
no poderia comear, no poderia se fazer canto, ter a fora de trazer
consigo os seres e os mbitos em que so. preciso que primeiro o nome
das Musas se pronuncie e as Musas se apresentem como a numinosa
fora que so das palavras cantadas, para que o canto se d em seu
encanto. Pois dentro desta perspectiva arcaica, o nome das Musas so
as Musas e as Musas so o Canto em seu encanto. O nome das Musas o
prprio ser das Musas, porque as Musas se pronunciam quando o nome
delas se apresenta em seu ser, porque quando as Musas se apresentam
em seu ser, o ser-nome delas se pronuncia. Elas so o princpio do
canto, tanto no sentido inaugural como no dirigente-constitutivo
(da arkh). A exortao "pelas Musas comecemos a cantar" diz tambm que
tenhamos nelas o princpio por que nos deixar guiar e exprime ainda
a vontade de que seja pela fora delas que se cante. No nem a voz
nem a habilidade humana do cantor que imprimir sentido e fora,
direo e presena ao canto, mas a prpria fora e presena das Musas que
gera e dirige o nosso canto1. Assim o canto irrompe e se manifesta,
a partir do nome que o nomeia em sua fora numinosa, e os versos que
seguem ao verso inicial so desdobramentos e explicitaes do que
neste nome (Mouson = Pelas Musas) se diz no incio e como o
Princpio: o pronome Elas (vv. 2 e 22), a indicar sempre este
nome-ser do Canto, retoma-o como sujeito das clusulas descritivas e
narrativas das atividades habituais deste Canto (i.e., das Musas)
que pelo nome numinoso se evoca e se faz presente. 1) O
genitivo-ablativo Mouson ("Pelas Musas") e o subjuntivo
mdio-passivo arklimetha ("comecemos"/"sejamos dirigidos") tm um
nuanceamento semntico maior do que o podem suportar as palavras
portuguesas de nossa traduo e mesmo maior do que o podem suspeitar
os nossos hbitos lgico-analticos. A distino entre o sentido prprio
voz mdia ("comecemos") e o prprio passiva ("sejamos dirigidos")
aqui neste verso principiai muito menor do que o nosso rigor
analtico apreciaria ver; a noo de arkh contida no verbo arklimetha
rene numa unidade indiscernvel o sentido de princpio-comeo e o de
princpio-poder-imprio. "Elas tm grande e divino o monte Hlicon." O
verbo grego khousin ("tm") conserva a dupla acepo de
ter-ocupar-habitar e a de ter-manter- suster2. Como as Deusas o tm
por habitao, elas o mantm na grandeza e
16. sacralidade em que ele se mostra. pela presena delas que
ele, o Hlicon, se d em sua presena imponente e sagrada. Mantendo o
Hlicon como sua habitao, elas o mantm como uma hierofania como
mantm no encanto do canto o poder de presentificar o que sem elas
ausente. 2) No nos esqueamos de que habitare ("habitar") um
freqentativo de habere ("ter"), que tambm conserva em latim essa
dupla acepo. Presentes, as Musas so um poder de presena e de
presentificao. Isto o que se vai mostrando em inmeros momentos e de
vrios modos neste hino que abre a Teogonia e neste canto teognico
assim aberto. A dana em volta da fonte (vv. 3-4) uma prtica de
magia simpattica com que o pensamento mtico analgico cr garantir a
perenidade do fluxo da fonte. O crculo ininterrupto, que a dana
constitui, comunicaria por contgio o seu carter de renovao
constante e de inesgotvel infinitude ao fluxo da gua, preservando-o
e fortalecendo-o. Nestes dois versos justapostos (3-4), as Musas
danam em torno da fonte violcea e do altar do fortssimo Zeus. Como
centros criados pela circunferncia da dana, a fonte e o altar se
equivalem. E todo o contexto deste Promio mostrar que, como a fonte
fortalecida e mantida pela dana, o altar do bem forte filho de
Crono (i.e., a presena da prpria fora de Zeus) mantido pelo canto e
dana das Musas. O fluxo recebe da dana a sua fora, e o altar de
Zeus, fora suprema, tambm a recebe da voz e da dana das Musas. Um
verbo como mlpomai (= "cantar-danar"), donde o nome Melpomne para
uma delas, indica o quanto eram sentidos pelos gregos antigos como
uma unidade os atos de cantar e danar, a voz e o gesto. Voz e
gestos que, executados pelas Musas, tornam aqui presente a Fora de
Zeus entre os homens. A seqncia dos versos 5-21 descreve as Deusas
ambiguamente com os hbitos das mortais gregas e uma como potestades
ontofnicas que so. Banham-se antes de formarem os coros, como as
gregas cuidadosas de se mostrarem mais belas no espetculo;
banham-se nos crregos e fontes e danam sobre os cimos das
montanhas, como se ninfas desses lugares. Mas elas so sobretudo a
belssima voz que brilha no negror da noite (do No- Ser). "Ocultas
por muita nvoa" frmula pica para indicar a invisibilidade: as
Musas, invisveis, manifestam-se unicamente como o canto e o som de
dana a esplender dentro da noite. A procisso noturna, invisvel, de
cantoras-danarinas faz surgir por suas vozes os Deuses da "atual"
fase csmica e os das duas "anteriores", como se neste catlogo (vv.
11-21) se desse uma teogonia "ascendente"3, a remontar dos Deuses
"atuais", Zeus, Hera, Apoio, s Divindades de geraes "anteriores",
at as foras originrias donde tudo saiu luz: "a Terra, o grande
Oceano, a Noite negra".
17. A irrupo da voz, impondo-se Noite negra, traz consigo os
Deuses senhores de cada fase csmica, a ordem csmica que estes
Deuses determinam e em si mesmos so, e traz ainda consigo a prpria
noite circundante dentro de que as Musas surgem como belssima voz e
fazem surgir mltiplo o cosmo divino. Fecham este catlogo a Noite
negra (expresso do No-Ser, filha do Khos, a noite circunstante e a
solitria geradora de todas as foras que marcam pela privao e no-ser
a vida do homem) e a referncia sagrada gerao (= ser) dos outros
imortais sempre vivos. Assim, enantiologicamente, as potncias
ontofnicas (Musas) situam- se no meio da potncia do no-ser e da
privao (Noite) e mais: trazem junto sua plenitude configuradora da
Ordem e da Vida esta Fora originria da Negao. 3) Cf. Mautis,
George. "Le prologue a la Thogonie d'Hsiode" In: Revue des tudes
Grecques, L II, 1939, pp. 573-83. A manifestao das Musas no apenas
um esplendor e diacosmese que se opem ao reino das trevas e da
carncia, mas sobretudo tem no antinmico reino da Noite o seu
fundamento e, ao esplender em seu fundamento, d a este mesmo reino
antinmico a sua fundamentao. Nesta sabedoria arcaica, que encontrou
em Herclito a sua expresso mais clara (e mais obscura), cada
contrrio, ao surgir luz da existncia, traz tambm, por determinao de
sua prpria essncia, o seu contrrio. Na oposio em que se opem, os
opostos vigoram no mesmo vigor em que um contra o outro os ope a
unidade que na essncia deles os rene a um e outro. Assim a epifania
diacosmtica das Musas (filhas de Zeus Olmpio e da Memria) se d nas
trevas menticas da Noite (geradora do sono, da morte, dos massacres
e do esquecimento) e, ao nomear as geraes (=os seres) divinas
fazendo-as presentes por fora da belssima voz, nomeia tambm a
Noite, dando-lhe por fundamento o ser-nome. Esta tenso enantiolgica
aduzida pela viso aguda da unidade dos opostos penetra e perpassa
toda a Teogonia e todo o Mito e Religio gregos. Na primeira
epifania das Musas a Hesodo, quando estas lhe outorgam com o cetro
o dom do canto, outras oposies e identidades (ou, talvez, melhor:
mesmitudes) so postas em relevo pelas palavras mesmas das Musas.
Primeiro, as Deusas reveladoras de todos os seres e de todos os
acontecimentos se contrapem, enquanto plenitude de vida e de viso,
vida meramente gstrica de pastores cegos, sendo o que ultrapassa as
suas possibilidades corpreas; a estes pastores elas se revelam: "
pastores agrestes, vis infmias e ventres s" (v. 26). Esta epifania
numinosa uma
18. consagrao: inspiram ao pastor Hesodo o canto que elas
prprias cantam e o poder de torn-las presentes pelo canto ("e a
elas primeiro e por ltimo sempre cantar", v. 34). Depois desta
epifania, o pastor agreste encarna, de certa forma e parcialmente,
o Poder numinoso das Musas,o qual , em qualquer de seus aspectos e
partes, sempre o Poder numinoso das Musas. As Deusas sublinham
ainda a ambigidade do Poder que so elas. A fora de presentificao e
descobrimento que pe os seres e fatos luz da Presena a mesma fora
de ocultao e encobrimento que os subtrai luz e lhes impe a ausncia:
"sabemos muitas mentiras dizer smeis aos fatos "e sabemos, se
queremos, dar a ouvir revelaes". (vv. 27-28) Dizer mentiras smeis
aos fatos furt-los luz da Presena, encobri-los. As mentiras so
smeis aos fatos enquanto s os tornam manifestos como manifestao do
que os encobre. As mentiras so smeis (= homoia) aos fatos enquanto
se dissimula a unidade que, por estar na raiz da similitude, une
simultaneamente em um s lugar o smil e o ser-mesmo. Smil (lat.
similis) e o grego homoia tm a mesma raiz etimolgica, que indica
como idia fundamental da similitude a unidade4. Por meio tambm
desta raiz podemos apreender e pensar a similitude que une as
mentiras e os fatos, unidade- similitude em que a mentira e o
ser-mesmo se do como smeis. Ao dar-se como smil, o ser-mesmo se
dissimula pela simulao desta similitude que, na fora do assemelhar
e do simular, apresenta-o como simulacro (a mentira smil). O Smil
mesmo j Outro ao dar-se como smil, pois a o ser-mesmo se oculta sob
a similitude que o une ao Outro. Assim, na unidade desta
similitude, esto unidos as mentiras e os fatos, pois os fatos,
enquanto smeis, ocultam-se eles mesmos sob a similitude com outra
coisa, subtraindo-se enquanto ipseidade. 4) Boisaq, mile.
Dictionnaire tymologique de Ia Langue Grecque. 2" ed.
Heidelberg-Paris, Winter-Klincksieck, 1923, pp. 230-l(/im) e 701-2
(hmoios/homs). E se a presena de um Deus vige e impe-se
essencialmente como ipseidade (i.e., como Ele-Mesmo), o encobrir-se
da ipseidade por sob a similitude faz com que a prpria Presena se
esconda e se subtraia sob o simulacro verbal de mentiras smeis. A
similitude com que os fatos se dissimulam e se ocultam sob a
simulao das mentiras smeis a prpria fora da ocultao. E esta fora no
outra seno as Musas, i.e., apropria fora da desocultao,
presentificao. Como desocultao que os gregos antigos tiveram a
experincia
19. fundamental da Verdade. A palavra grega altheia, que a
nomeia, indica-a como no-esquecimento, no sentido em que eles
experimentaram o Esquecimento no como um fato psicolgico, mas como
uma fora numinosa de ocultao, de encobrimento. Desde as reflexes de
Martin Heidegger5 estamos afeitos a traduzir altheia por re-velao
(como fiz no v. 28), des-ocultao, ou ainda, no-esquecimento. Isto
porque a experincia que originariamente os gregos tiveram da
Verdade radicalmente distinta e diversa da noo comum hodierna que
esta nossa palavra verdade veicula. 5) Cf., por exemplo, "Altheia"
em Os Pr-Socrticos (seleo de textos e superviso do Prof. Jos
Cavalcante de Souza). So Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 129-42. As
mentiras smeis aos fatos opem-se, portanto, s revelaes como a fora
da simulao ocultadora se ope da presena manifesta e so, no entanto,
uma s e mesma fora. Para bem compreendermos o sentido dos versos
27-28, em que as Musas indicam que saber constituem, devemos evitar
a mera contraposio de verdade e mentira e ainda mais evitar
entender verdade e mentira como adequao (ou no) do intelecto coisa
ou como a confirmao (ou no) que a verificao emprica traz ao que a
palavra afirma. As revelaes que as Musas, se querem, sabem dar a
ouvir so des-velaes, o retirar-se seres e fatos do reino noturno
(i.e., me-ntico) do Esquecimento e fund-los como manifestao e
Presena. O que passa despercebido, o que est oculto, o no-presente,
o que resvalou j na reino do Esquecimento e do No-Ser. O que se
mostra luz, o que brilha ao ser nomeado, o no-ausente, o que Memria
recolhe na fora da belssima voz que so as Musas. No entanto, Memria
gerou as Musas tambm como esquecimento ("para oblvio de males e
pausa de aflies", v. 55) e, fora numinosa que so, as Musas tornam o
ser-nome presente ou impem-lhe a ausncia, manifestam o ser-mesmo
como lcida presena ou o encobrem com o vu da similitude,
presentificam os Deuses configuradores da Vida e nomeiam a Noite
negra. O prprio ser das Musas geradas e nascidas da Memria as
constitui como fora de esquecimento e de memria, com o poder entre
presena e ausncia, entre a luz da nomeao e a noite do oblvio.
Porque as Musas so o Canto e o Canto a Presena como a numinosa fora
da parusia: este o reino da Memria, Deusa de antigidade venervel,
que surge da proximidade das Origens Mundificantes, nascida do Cu e
da Terra (v. 135). O que as Musas fazem, quando assim falam (vv.
26-8), , tanto quanto a fala, explicitao da natureza delas: "por
cetro deram-me um ramo, a um loureiro vioso "colhendo-o admirvel, e
inspiraram-me um canto
20. "divino para que eu glorie o futuro e o passado,
"impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos "e a elas
primeiro e por ltimo sempre cantar". Loureiro rvore de Apoio, a
forma que assume no reino vegetal a cratofania de Apoio, este Deus
que juntamente com as Musas atribui o dom do canto e da citarodia
(execuo de citara). Colherem as Musas um ramo a um loureiro vioso
(v. 30-1) indica esta proximidade confluente destas duas foras
divinas, como confluem o canto e a citara. O cetro , entre os
gregos, smbolo de competncia e autoridade com que se pronuncia esta
palavra que se impe e atua eficazmente, quer nas assemblias
guerreiras, quer nas reunies onde os reis (basilis) decidem litgios
entre o povo, quer nos crculos de ouvintes a deleitarem-se com a
voz do aedo. O cetro a insgnia que, socialmente, mostra no poeta um
senhor da Palavra eficaz e atuante; um aspecto material do dom do
canto. Ao receb-lo das Musas, o poeta por elas inspirado a cantar
os Deuses, os heris e os fatos presentes, passados e futuros. Elas
lhe outorgam o poder que so elas prprias, ou, dito de outro modo,
mais usual e menos ntido, o poder de que elas so as detentoras. Que
significa gloriar o futuro e o passado? Gloriar expor um ser ou um
fato luz da manifestao, tal como a essncia mesma deste ser ou fato
o exige e impe. Glria (klos) esta fora de desvelao prpria do que
glorioso, i.e., do que por sua essncia mesma reclama a desvelao; e
esta fora Klei, Glria, uma das Musas. Por isso, o poeta, consagrado
pelo poder das Musas ao exerccio deste mesmo poder, tem por funo
gloriar, i.e., desvelar o que por essncia reclama a desvelao. Mas
por que o futuro e o passado? Porque esta proclamao desveladora que
o poeta exerce como o seu poder prprio por excelncia a profecia.
Para a percepo mtica e arcaica, o que na presena se d como presente
ope-se, uma, ao passado e ao futuro, os quais, enquanto ausncia,
esto igualmente excludos da presena. Assim, passado e futuro,
equivalentes na indiferena da excluso, pertencem do mesmo modo ao
reino noturno do Esquecimento at que a Memria de l os recolha e
faa-os presentes pelas vozes das Musas. O poeta, portanto, pelo
mesmo dom das Musas, o profeta de fatos passados e de fatos
futuros. S a fora nomeadora e ontofnica da voz (das Musas) pode
redimi-los, aos fatos passados e futuros, do Esquecimento, i.e., da
Fora da Ocultao, e presentific-los como o que brilha ao ser
nomeado, o que se mostra luz: re-velao. A voz das Musas esplendor,
jbilo e expanso da Presena nomeada. O
21. grande esprito de Zeus Pai se compraz no interior do Olimpo
com os hinos que se hineiam. O grande esprito de Zeus a grande
percepo (mgan non) da totalidade deste Canto que, impondo-se alm de
toda interrupo e dos limites temporais, coincide com o Ser, "ao
dizer o presente, o futuro e o passado" (v. 38). O Canto se
expande, jubiloso e esplndido, na interioridade do Olimpo (ents
Olympou, v. 37) e faz com que a Casa da Divindade seja jbilo e
esplendor (geli... dmata patrs, v. 40). Voz infatigvel, suave,
lirial e imperecvel espalha-se a onde tem a sua residncia a
Divindade e a voz mesma esta residncia, porque por esta voz que se
revela a glria divina, e a prpria voz se revela glria divina (vv.
36-52). Revelando-se a glria divina, revela-se tambm o que a ela se
ope: o ser dos homens e dos poderosos (ou cruis: o adjetivo kraters
ambguo) gigantes. Os homens se opem ao jubiloso esplendor da vida
divina enquanto eles tm por destino a misria, a penria, o
sofrimento e a morte. E os poderosos gigantes se opem triunfal
plenitude da vida olmpica enquanto so adversrios derrotados e
submetidos. Este o sentido da palavra atis que inicia o v. 50: atis
marca a oposio entre Deuses e homens, e entre a harmonia da paz
olmpica e os poderosos e por ora vencidos adversrios dessa
harmonia. Neste hino s Musas que o hino das Musas (bem como toda a
Teogonia o hino das Musas a Zeus Pai), revela-se que o Ser o
encanto das Vozes (i.e., as Musas) e as Vozes no outra coisa que a
mltipla Presena do Divino.
22. IV MUSAS E PODER Com a narrao do nascimento das Musas
inicia-se a segunda metade do hino-promio da Teogonia. A primeira
parte (vv. 1-52) concentra-se em torno da relao entre linguagem e
ser, ou seja: entre o Canto em seu encanto e a apario do que se
canta, e conseqentemente entre a Revelao (aletha) e o Esquecimento
(lesmosyne). A segunda parte (vv. 53-103) narra o nascimento das
Musas e descreve, como decorrncia deste nascimento e da natureza
dos progenitores, os diversos aspectos e implicaes do poder
presentificante (o poder que so as Musas) e das funes desse poder.
Uma conseqente evocao e splica s Musas (vv. 104-115) completa o
hino- promio e serve de transio ao corpo do poema. A rigor, no h na
Teogonia uma relao entre linguagem e ser, mas uma imanncia recproca
entre eles. Na Teogonia o reino do ser o no- esquecimento, a apario
(aletha); toda negao de ser vem da manifestao da Noite e seus
filhos, entre eles o Esquecimento (lthe, lesmosyne). A linguagem,
que concebida e experimentada por Hesodo como uma fora mltipla e
numinosa que ele nomeia com o nome de Musas, filha da Memria, ou
seja: deste divino Poder trazer Presena o no- presente, coisas
passadas ou futuras. Ora, ser dar-se como presena, como apario
(aletha), e a apario se d sobretudo atravs das Musas, estes poderes
divinos provenientes da Memria. O ser-apario portanto d-se atravs
da linguagem, ou seja: por fora da linguagem e na linguagem. O
ser-apario o desempenho (= a funo) das Musas. E o desempenho das
Musas ser-apario. na linguagem que se d o ser-apario e tambm o
simulacro, as mentiras (v. 27). na linguagem que impera a apario
(aletha) e tambm o esquecimento (lesmosyne v. 55). O ser se d na
linguagem porque a linguagem numinosamente a fora-de-nomear. E a
fora-de-nomear repousa sempre no ser, isto , tem sempre fora de ser
e de dar ser. No se trata portanto de uma relao mas de uma imanncia
recproca: o ser est na linguagem porque a linguagem est no ser (e
vice-versa). Na expresso de Hesodo: as Musas falam as aparies (e
tambm os simulacros de aparies) porque (= todas as vezes que) as
Musas se fazem presentes como fora numinosa que so das palavras
cantadas. Enquanto experimentada como mltiplas foras numinosas, a
linguagem uma estrutura que encerra para o homem no s todos os
eventos e todas as relaes possveis entre eles, mas ainda a prpria
conscincia que o homem tem de si e do mundo. A conscincia o crculo
absoluto que encerra todos os eventos e entes possveis: o mbito da
conscincia, na imediatez concreta
23. do pensamento mtico, cinge o mbito do mundo. As relaes
entre os entes e a prpria presena (ou ausncia) de cada ente so, em
cada momento e em cada situao, determinadas pela linguagem e de um
modo mais sensvel pelo nome e pela nomeao. A fora de coerncia da
linguagem mantm em seus liames relacionais a coerncia do mundo; a
fora presentificante do nome (ou melhor: da nomeao) que mantm a
coisa nomeada no reino do ser, na luz da presena, o no-nomeado
pertence ao reino do oblvio e do no-ser. O homem arcaico sente que
a fora da linguagem o subjuga e que sua conscincia se firma sobre a
linguagem e por ela dirigida. No caso de um cantor, que
diuturnamente trabalha sua conscincia das palavras e das estruturas
lingsticas, esta percepo do poderio avassalador e governante da
linguagem torna-se ainda mais intensa e mais ntida. Eis ento a
experincia numinosa que constitui a epifania das Musas. No caso de
Hesodo, a linguagem por excelncia o sagrado. No hino- promio da
Teogonia ele exprime esta piedade e venerao pelas Palavras. O
Sagrado a pletora de ser. A experincia do sagrado a mais viva
experincia do que o mais real, e a mais vivificante experincia de
Realidade. A partir de sua experincia da epifania das Musas, Hesodo
se torna Cantor, servo das Musas, o vigia da Palavra.
Espiritualmente ele passa a habitar nesta proximidade do mais real.
Mas o que aqui, no caso de Hesodo, o mais real, especificamente as
Palavras. E as Palavras falam do que real e do que no real,
apresentando-os quando e como elas querem ("se queremos..." v. 28).
As Palavras falam tudo, elas apresentam o mundo. Sendo as Palavras
por excelncia o mais real e consistindo o poder delas
especificamente num poder de presentificao, nas Palavras que reside
o ser. Esta imbricao recproca de linguagem e ser no seno a recproca
imbricao de linguagem e poder. As Musas tm e mantm o domnio do ser
enquanto poderes que so provenientes de Memria. Enquanto filhas de
Memria que as Musas fazem revelaes (aletha) ou impem o esquecimento
(lesmosyne). Este poder sobre o ser e o no-ser, este poder decidir
entre a revelao e o esquecimento, em verdade a raiz originante de
todo poder, porque este o poder que configura o mundo e que em cada
momento e em cada situao configura portanto todas as possibilidades
de existncia do homem no mundo assim configurado. Se na Teogonia h
uma imanncia recproca entre linguagem e ser, esta imanncia se d
pela recproca imanncia entre linguagem e poder o poder de
configurar o mundo e de decidir quais possibilidades nele se
oferecero em cada caso ao homem.
24. As Musas tm e mantm o domnio da revelao (ser) e do
esquecimento (no-ser) e este domnio o da raiz originante de todo
poder e exerccio de poder. Na expresso mtica de Hesodo isto se diz:
as Musas so filhas de Memria e de Zeus. Zeus a expresso suprema do
exerccio de poder. Toda a cosmogonia, na viso de Hesodo, converge e
centra-se na assumpo da realeza universal por Zeus. A Teogonia em
verdade um hino s faanhas e excelncia guerreiras de Zeus; nela,
tudo se dispe na convergncia para esta perfectiva diacosmese que a
assumpo deste ltimo e definitivo Soberano divino, (re-)Distribuidor
de todas as honrarias e encargos e Mantenedor da ordem e da justia.
Zeus a prpria expresso do Poder, e toda realeza e exerccio de poder
tm sempre a sua fonte em Zeus (ek d Dis basiles v. 96). As Musas
nascem de Zeus. Uma lei onipresente na Teogonia que a descendncia
sempre uma explicitao do ser prprio e profundo da Divindade
genitora: o ser prprio dos pais se explicita e torna-se manifesto
na natureza e atividade dos filhos. No so fortuitos, portanto, os
eptetos escolhidos para sublinharem, nesta passagem narrativa do
nascimento das Musas, a natureza de seus pais. Da me se diz medousa
(v. 54) e do pai meteta (v. 56). Medousa indica sobretudo a
atividade de cuidar (de), tomar conta de, donde a acepo de reinar,
dominar, "rainha nas colinas de Eleutera". Meteta de mtis (= manha,
sabedoria prtica) envolve a idia de habilidade em encontrar
expedientes e sadas, traduzi-opreservando a dignidade em que os
gregos arcaicos tinham a mtis por "sbio". Esta que por seu esprito
cuidadoso dirige e reina, este que em todas as circunstncias sempre
conhece e tem as vias e os meios,eis o sentido dos eptetos,
condizentes com a atividade do Cantor, nas condies da Cultura em
que Hesodo comps seus cantos. Por outro lado, tambm no casualmente,
o nmero dos encontros amorosos revela-se no nmero das filhas. (Nove
noites copulou com Memria o sbio Zeus, e ela pariu nove moas
unnimes vv. 56 e 60.) As circunstncias do nascimento das Musas
do-se consoante sua natureza, funo e lugares de suas epifanias. As
unies do pai Cronida tm lugar em Eleutera, onde Memria era cultuada
("rainha") provavelmente por uma corporao de cantores, visto que a
estes sobretudo concernem seus poderes; e elas nascem em Piria (que
deve ter sido ento o principal centro de seu culto), perto do
nevado Olimpo, para onde j se pem em marcha, a danar e a cantar. Se
as Musas j vm luz na plenitude de seu ser e no desempenho de suas
funes, entre este momento e as unies de Zeus e Memria h um tempo de
gestao marcado pela circularidade: "quando girou o ano e
25. retornaram as estaes / com as minguas das luas e muitos
dias completaram-se" (vv. 68-9). Nestes dois versos, compostos de
quatro clusulas temporais, a noo de retorno cclico recebe especial
nfase pela repetio do advrbio peri, pelos verbos a que este se
refere, trapon (= retornaram) e etelsthe (= completaram-se como um
crculo que se fecha), alm da prpria palavra grega para indicar
"ano" (eniauts), que designa todo objeto circular como um anel. A
idia temporal de ano, por si mesma j primitivamente ligada de
crculo (cf., v.g., Lat. annus, nus e annulus), exprime-se aqui
redundantemente como um circuito, como um retorno cclico, e em
nenhuma outra parte da Teogonia h este acmulo reiterativo, ainda
que eniauts, o ano-crculo, aparea com verbo indicativo de movimento
circular. Esta redundncia aqui, portanto, um realce significativo,
e no fortuito. Como nos versos de Parmnides "para mim comum (xynn)
I donde eu comece, pois a de novo chegarei de volta" (D.K., 5),
aqui nesta passagem hesidica a circularidade do tempo encadeia o
fim ao princpio, pois que as Musas, o ltimo rebento de uma cadeia
teognica, tornam-se em Hesodo a Divindade primordial, por serem os
Nomes-Numes presentificadores do ser-apario. As Musas distam duas
geraes da Divindade Originria, bisnetas que so da Terra de amplo
seio, sede sempre inabalvel de todos os seres (v. 117); e no
entanto pelas Musas que tm lugar as revelaes, por elas que a
Presena se d como Presena, elas so o fundamento do ser e a mais
pletrica realidade. Terra a sede inabalvel de todos os seres e
bisav das Musas, as Musas so o que funda o ser-apario e bisnetas da
Terra. Esta recorrncia inextricvel, que no seno outro aspecto da
imbricao recproca de linguagem e ser, imbrica a perspectiva do
tempo nesta reciprocidade de linguagem e ser. A nfase que nestes
dois versos citados (68-9) se pe sobre a circularidade assinala um
outro plo da referncia dos entes ao fundamento que os mantm, um plo
outro que o da Terra Me, e assinala a inter-referncia que entre
estes plos-fundamentos se d reciprocamente. Se estes versos no
salientassem a noo de circularidade, este relato do nascimento das
Musas discreparia de todo o esprito religioso e piedade contidos
neste hino-promio. To logo nascem, as Musas instauram o coro e a
festa, acompanhadas das Graas (Khrites) e do Desejo (Hmeros). Este
participa tambm do squito de Afrodite, onde emparelha com Eros (v.
201). A arte das Musas no apenas persuaso (nenhuma delas se chama
Peith, que uma oceanina), mas a da seduo, a envolvncia da beleza e
do apelo sensual. Acompanha-as o Desejo, que elas despertam, e o
companheiro deste, Eros, invade os ouvintes atravs da fora da voz
delas, que pela presena de Eros
26. uma voz amvel (eratn ssan, v. 65) e bem-amvel (ep-raton, v.
67). Uma delas chama-se Erto (Amorosa, v. 78). Os coros delas so
luzentes, brilhantes, no sentido do brilho da pele bem-nutrida
(liparo, v. 63). Junto a elas as Graas e o Desejo tm morada nas
festas, quando cantam e danam (vv. 64-7). Festa em grego se diz
thala, o nome de uma das Graas e de uma das Musas. O primeiro
sentido de thala o de vio, da exuberncia de seiva, da a noo de
abundncia e de festa. a luxria da fecundidade, tal como a Paz
viosa, fecunda, para os camponeses (tethaluian, v. 902), como so
fecundas, florescentes, as esposas dos Deuses (thalern koitin, v.
921, etc), e ainda como. o Cu fundamento-origem da lcida e
dominadora raa dos Deuses Olmpios thalers (v. 138), fecundo,
opulento de Vida e de smenes, vido de cpulas. Na exuberncia da
festa, do canto e da dana, na fecunda exaltao da Vida e da Alegria,
as Musas fazem-se acompanhar de suas meio-irms, as Graas filhas de
Zeus e Eurnome (vv. 907-9) e "de cujos olhos brilhantes esparge-se
o amor solta-membros, e belo brilha o olhar sob os clios" (vv.
910-1). No poder das Musas, entre tantos encantos vibra tambm o
sex- appeal. Como assinala Clmence Ramnoux1, "os gregos conheciam
trs maneiras de se impor: pela violncia (ba), pela persuaso (peith)
e pela seduo". Esta ltima funo das Khrites, Graas, sequazes-irms
das Musas, e a estreita conexo entre ambos os grupos se revela
tambm na homonmia (Thala-Thala) e proximidade onomstica (Eutrpe-
Euphrosyn) entre indivduos de um e outro grupo. 1) La nuit et les
enfants de la nuit. Paris, Flammarion, 1959, pp. 70-1.'Em verdade
C. Ramnoux omite, nessa enumerao, a mais importante dessas
maneiras: a mtis, que amplamente estudada por Vernant e Detienne no
belssimo livro Les ruses de 1'intelligence. La mtis des Grecs.
Paris, Flammarion, 1974. Na procisso para o Olimpo, em que cantam a
realeza paterna, as Musas desempenham a funo decorrente da natureza
de sua me, Memria (vv. 68-75), assim como na subseqente descrio de
sua habitual atividade de patrocnio dos reis (vv. 80-93) elas se
mostram na funo herdada do ser de seu pai, Zeus soberano. No
cortejo em que to logo nascem vo ao Olimpo, as Musas danam e cantam
o poderio de Zeus, suas armas (o trovo e o raio), a vitria sobre
seus predecessores pela qual conquista o poder, e a perfectiva
ordenao do mundo e (re-)distribuio de honrarias que Zeus levou a
cabo ao assumir a soberania. Este tema de seus cantos e de sua dana
coincide com o prprio tema da Teogonia: o poder e a ordem de Zeus,
e a luta feroz pela qual se impem. O canto das Musas com que Zeus
se compraz no Olimpo coincide com a cano que Hesodo compe e canta
inspirado pelas mesmas Musas: a Divindade se d na cano.
27. Curiosamente, Hesodo diz que "isto elas cantavam tendo o
palcio olmpio" (v. 75). Vimos j que o verbo grego ter (kho)
conserva a dupla acepo de habitar e de manter. As Musas tm por
habitao o palcio olmpio e elas o mantm pela fora do canto. porque
elas o cantam que ele se d entre os homens como sublime Presena.
Mantendo o palcio olmpio em seu canto, elas o mantm como
presentificao da ordem e do poder de Zeus, elas revelam esta ordem
e poder de Zeus, i.e., elas o fazem ingressar no reino luminoso do
ser, do no-esquecimento. Mas a ordem e o poder de Zeus so, para
Hesodo, o prprio mundo, a suprema e mxima realidade. Como as Musas
podem faz-lo ingressar no reino do Ser, se o reino do Ser no seno
essa ordem e poder de Zeus? Eis um outro aspecto da complexo de
linguagem, tempo e ser. Todo o dilema se dissolve se substituirmos
a ordem predominantemente causai em que estamos habituados a pensar
a conexo entre os fatos por uma ordem de concomitncia, sem qualquer
determinao causai: a ordem e o poder de Zeus, que por si mesmos a
realidade suprema, e o Canto, pela natureza da fora que lhe prpria,
fazem-nos ingressar no reino do Ser, o qual eles so tanto quanto o
Canto o Canto na fora e natureza do Canto. Em verdade, se esta voz
que so as Musas o suporte da cratofania de Zeus, tambm uma
explicitao do prprio ser de Zeus. Elas prolongam e exprimem o ser
da Soberania Suprema na importncia que elas tm para os reis, na
medida em que elas que fundamentam e amparam o exerccio da realeza
entre os homens. Hesodo solda o segmento em que as Musas se mostram
como expresso do poder materno (Memria, o canto ontofnico e
presentificador) ao segmento em que elas explicitam o ser paterno
(Zeus, o exerccio do poder e da autoridade) atravs de dois versos
(vv. 79-80) em que se reala Kallipe, a Belavoz. Kallipe portanto o
elo que irmana reis e cantores, e, por esta interseco entre o canto
e a realeza, cujo elemento comum a Belavoz, podemos ter uma noo
mais clara e mais bem definida do que entendiam por Belo os gregos
arcaicos. Reis so nobres locais que guardavam frmulas no-escritas
(dkai) consagradas pela tradio como normativas da vida pblica e
social. Estes senhores, por seu poderio e riqueza, detinham a
autoridade de dirimir litgios e querelas, mediante a aplicao das
frmulas corretas, i.e., itheeisi dkeisin (v. 86), cujo conhecimento
e conservao era privilgio deles. A palavra Dke, que em grego veio a
significar "Justia", cognata do verbo latino dico, dicere (=
dizer), e designava primitivamente estas frmulas pr- jurdicas2. Os
reis, portanto, dependiam do patrocnio de Memria, para preservarem
as dkai, do de Zeus, para poder aplic-las em cada caso, e do
28. das Musas, para que esta aplicao fosse eficiente e
bem-sucedida, se no tambm para os fins anteriores. 2) Cf.
Benveniste, mile. Le vocabulaire des institutions indo-europennes.
Paris, Minuit, 1969,2vol.,pp. 107ss. O bom xito dos reis em sua
funo judicatria dependia sobremaneira de suas "palavras de mel", do
dom da seduo persuasora. Esta capacidade de "persuadir com brandas
palavras", tanto quanto a convenincia geral da sentena dada no
julgamento, que asseguravam aos reis o gozo da boa reputao e
popularidade. Alm disso, a administrao da justia no era de modo
algum um ato meramente cvico, mas tambm de carter religioso e at
mgico,na medida em que a ordem social no se distinguia ainda, para
a mentalidade mtica e arcaica, da ordem natural e at da ordem
temporal (i.e., cronolgica). A injustia social acarretaria
distrbios nas foras produtivas e na ordem da natureza: peste e
esterilidade nos rebanhos, escassez nas colheitas e portanto penria
e fome, e ainda filhos que no se assemelham aos pais ou que j
nascem encanecidos (cf. Trabalhos, vv. 180- 200 e 214-247). A
manuteno da boa ordem social pelos reis era solidria da ordem da
natureza e dos acontecimentos, a sacralidade da justia social
transcendia o carter civil das aes ao envolver o prprio cosmo e
suas foras fecundantes e produtivas. Encontrar a frmula correta,
pronunci-la com autoridade e incutir a aceitao dela no nimo dos
contendentes praticar a reta justia, e assegurar a pacificao social
e a ordem da natureza (pela mutualidade desta com a justia). E essa
atividade se funda no uso eficiente das Palavras, tanto quanto a do
Cantor. Por outro lado, este poder de pronunciar a frmula justa e
eficiente um dom com que as Musas como fadas madrinhasdotam os reis
a cujo nascimento elas assistem e aos quais elas honram,o que
implica uma vocao que acompanha o indivduo ao longo da vida e para
a qual ele deve ter-se preparado desde idade precoce. Ento,
recapitulando o paralelo entre reis e cantores: 1) a funo de ambos
tem fundamento no uso eficiente de palavras das quais eles so os
nicos guardies, sob o patrocnio de Memria; 2) para ambos, o uso
desta Palavra uma especializao, uma qualifi- cao que os distingue
dos demais e para a qual se prepararam longamente e desde cedo,
assistidos pelas Musas; 3) a autoridade de ambos se estriba na
seduo e no fascnio que atravs da Palavra exercem sobre seu
entourage; 4) o uso que ambos fazem da palavra tem repercusses nos
destinos da comunidade e na ordem do mundo: o rei-juiz assegura com
o bom uso de
29. frmulas (dkai) e de palavras persuasivas uma ordem que ao
mesmo tempo pblica e csmica, o cantor assegura atravs de suas canes
a conscincia que a comunidade tem de si e de suas conquistas e
presentifica a esta comunidade os seus Deuses e as dimenses do
cosmo. Em ambos os casos a Palavra tem o poder sobre o mundo, sua
configurao e suas foras produtivas. uma Palavra poderosa, cujo uso
implica Foras divinas e o destino dos homens; e, 5) portanto, ambos
so alunos e protegidos das Musas, ainda que a realeza como tal seja
para os reis sempre oriunda de Zeus, de quem a Realeza Suprema, e
aos cantores, por seu turno, e s a estes, concorra o patronato que
Apoio dispensa aos citaredos. A ordem social no seno o aspecto que
entre os homens assume a ordem da natureza: una e nica vige em
ambas a harmonia invisvel3 mais forte e mais poderosa do que todas
as suas manifestaes. Na administrao da justia, baseada no uso
correto e eficaz da Palavra, os reis colaboram com a manuteno desta
ordem csmica, com o que asseguram sua comunidade o equilbrio, a
opulncia e o futuro prspero. Os reis so operadores e colaboradores
dos acontecimentos que se do no cosmo, porque so Senhores da
Palavra. O poder que tm da Palavra lhes d o poder sobre
acontecimentos sociais e csmicos. Os poetas tambm so, igualmente,
Senhores da Palavra. Este privilgio incomparvel, que irmana reis e
cantores, que d a Hesodo autoridade para repreender e invectivar os
reis venais, cujas sentenas e justia so subornveis mediante
presentes (ele invectiva-os nos Trabalhos).A condio dada por este
privilgio de custodiar o poder da Palavra, Hesodo designa-a
piedosamente pela qualificao de servo das Musas dada ao cantor
(Mouson therpon, v. 100), enquanto pelo exerccio deste mesmo poder
os reis so diotrephes, "sustentados por Zeus",ouna bela frmula
clssica, "aluirmos de Zeus" (v. 82). Belavoz a mais importante das
Musas, porque ela que acompanha os reis venerandos (vv. 79-80). A
voz bela no porque seja agradvel e requintada, bela no por
caractersticas que consideraramos formais, mas por este poder,
compartilhado por reis e poetas, de configurar e assegurar a Ordem,
por este poder de manuteno da Vida e de custdia do Ser. O cantor
servo das Musas o guardio do Ser, os reis alunos de Zeus so os
mantenedores da Ordem (do Cosmo), a ambos por igual patrocina e
sustenta Belavoz Bela, por seu poder influir decisivamente nas
fontes do Ser e da Vida, pela sua pertinncia s dimenses do mundo e
ao sentido e totalidade da Vida. 3) harmone aphans. Cf. Herclito,
frag. 54 D.K.
30. V A QUDRUPLA ORIGEM DA TOTALIDADE As figuras que o
pensamento arcaico elaborou so, freqentemente, como que centro de
coincidentia oppositorum. Reunindo em si atributos contraditrios,
aspectos dspares e conflitantes da realidade, estas figuras os
transcendem e integram em seu ser profundo, e podem revelar-se sob
aspectos antitticos. Se esta transcendncia de todos os atributos o
modo de ser prprio da Divindade, o pensamento arcaico marcadamente
sensvel experincia numinosa est muito mais apto e preparado para
captar e compreender as mltiplas nuances enantiolgicas do que nos
permitem faz- lo nossos hodiernos hbitos de rigor conceitual.
Ambigidade e pletora de sentidos so caractersticas destas figuras.
Nosso esforo por compreend-las e por transp-las numa linguagem
conceituai deve estar atento e precavido de que, se esta transposio
possvel, o pensamento arcaico tem outros mdulos de organizao,
outras instncias e outra modalidade de coerncia. Ao buscarmos o
sentido de uma destas figuras, devemos antes contar com nuances
cambiantes que refletem aproximaes ou identificaes para ns inslitas
entre estas figuras, e no com noes unvocas. O pensamento arcaico
concreto e simblico, enquanto o nosso pensamento, abstrato, aspira
univocidade. O mais profcuo parece-me ir circulando em torno destas
figuras, em sucessivas abordagens, que sempre as apanhem de novo de
um novo ponto de vista. Assim, nesta abordagem em crculos
sucessivos, obteremos, em vrias vises superpostas, as diversas
implicaes e correlaes em que vigem e vivem estas figuras. Este
mtodo de circunvolues e retomadas parece-me justificar-se por si
mesmo, j que no de outro modo que o pensamento arcaico procede:
jamais aborda um objeto de uma nica e definitiva vez descartando-se
dele depois, mas sempre o retoma dentro de outras referncias,
circunvoluindo atravs de enfoques sucessivos e por vezes
contrastantes1, como em verdade se verifica por toda a Teogonia
hesidica. 1) Frnkel, Hermann. Early Greek Poetry and Philosophy.
Trad. ingl. de Moses Hadas e James Willis. Oxford, Basil Blackwell,
1975, p. 105. Se perguntarmos pelo significado das Potestades
originrias, os primeiro nomeados, nos versos 116-22 que abrem aps o
Promio a cosmogonia de Hesodo, teremos muitas respostas diversas de
scholars que se preocuparam sobretudo com o sentido da palavra Khos
nestes versos, e,
31. alm destas respostas por vezes incongruentes, deparamos com
uma enigmtica questo. Versos cuja autenticidade alguns editores
suspeitaram e outros aceitaram, e cuja interpretao tambm variou,
tornam controvertvel o nmero destas Divindades originrias: so trs
ou quatro? Khos, Terra e Eros ou Khos, Terra, Trtaro e Eros?M. L.
West admite em sua edio crtica a legitimidade dos versos que nesta
passagem (116-22) a tradio nos legou: "Sim bem primeiro nasceu
Caos, depois tambm "Terra de amplo seio, de todos sede irresvalvel
sempre, "dos imortais que tm a cabea do Olimpo nevado, "e Trtaro
nevoento no fundo do cho de amplas vias, "e Eros: o mais belo entre
deuses imortais "solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
"ele doma no peito o esprito e a prudente vontade". F. Solmsen
atetiza (i.e., suspeita) o verso 119: "e Trtaro nevoento no fundo
da Terra de amplas vias". Neste verso entretanto M. L. West,
aceitando-o, recomenda que se leia Trtaro como um elemento
primordial distintocontra uma outra possibilidade, que a de ler a
palavra Trtaro como complemento do verbo tm do verso anterior (= os
imortais tm o Olimpo e o Trtaro). Ambas estas leituras remontam aos
antigos, que j sentiam o problema: uma a Plutarco, Comuto, Pausnias
e Damscio (a que seguida por West), outra a Tefilo e Estobeu. Se
acolhermos a proposta de West, que me parece mais bem fundada na
tradio e autoridade dos Antigos (e mais bem encaixada no sentido do
contexto), as Potestades que esto nas Origens so em Hesodo: Khos,
Terra, Trtaro e Eros. Mas em que relao se encontram entre elas
estas Potestades? Por que esta multiplicao do Ser original? O que
significam, nestes versos, estes quatro primeiro nomeados? Como se
distinguem e quadruplamente se renem? Porque dificilmente seria
concebvel esta multiplicao da Origem em quatro seres independentes
e absolutos, e sem nenhum significado e funo para esta
quaternidade. Como assinala Paula Philippson2, h na Teogonia trs
eficientes recursos com que se determinam a natureza e sentido de
cada Deus. Primeiro, o nome por si mesmo significativosalvo excees
de nomes cuja antigidade ou etimologia no-grega tornaram opacos (e
neste caso Hesodo, seguindo uma tendncia da poca Arcaica, procura
resgatar-lhes a significao por meio de trocadilhos e jogo de
palavras). Segundo recurso so os eptetos com que cada personagem
pode ser, no estilo pico, amplamente qualificado. E, por fim, cada
Deus se define por seu ponto de insero na sua linhagem genealgica:
toda descendncia uma explicitao do ser e natureza da Divindade
genitora; quanto mais alta e prxima da origem uma Divindade,
32. tanto mais rica e extensa em suas possibilidades de
determinao, pois ela contm em si como virtualidade todos os poderes
e seres que dela descendem. 2) Philippson, Paula. Origini e forme
dei mito greco. Trad. it. de ngelo Brelich. Milo, Einaudi, 1949,
pp. 48-9. Terra, alm da clareza do nome, tem um epteto que lhe
define o ser: "de todos sede irresvalvel sempre". a segurana e
firmeza inabalveis, o fundamento inconcusso de tudo (pnton hdos, v.
117), nela e por ela tm a sua sede os Deuses Olmpios (pnton hdos...
athanton, vv. 117-8). Esta referncia aos Imortais que tem o Olimpo
exprime integramente o que h de sagrada proximidade nesta mais
remota origem: o Olimpo representa para Hesodo a mais atual e a
mais forte experincia numinosa (nele Zeus tem sua sede). esta
atualidade numinosa (expressa nos Deuses Olmpios) que Hesodo lembra
ao nomear Terra como Potestade original, porque a apario e presena
da Terra como sagrada origem de tudo implica j uma experincia atual
que a destes habitantes do Olimpo, os seus mais perfeitos e belos
descendentes estes "Deuses doadores de bens", como tambm os designa
Hesodo (v. 111). O Trtaro nevoento (invisvel) e fica no fundo da
Terra de largos caminhos. O verso 720 o situa "to longe sob a Terra
quanto da Terra o Cu". A simetria estabelecida por este verso
altamente significativa. J que o Cu uma espcie de duplo da Terra
(cf. vv. 116-7), o Trtaro "no fundo da Terra" uma espcie de duplo
especular e negativo da Terra e do Cu (que so ambos "sede
irresvalvel para sempre"). Os vv. 740-5 o descrevem como um "vasto
abismo" (khsma mga) onde se anula todo sentido de direo e onde a
nica possibilidade que se d a queda cega, sem fim e sem rumo. O
Trtaro, "temvel at para os Deuses imortais", o lugar onde "se
estabelece a casa temvel da Noite trevosa, a oculta por escuras
nuvens" (vv. 744-5). O Trtaro, portanto, o duplo especular e
negativo (conforme a simetria descrita no verso 720 e vigorosamente
enfatizada nos subseqentes vv. 721-5) da Terra e do Cutanto quanto
o Cu um duplo perfeito e positivo da Terra que o "pariu igual a si
mesma" (v. 126) "para cerc-la toda ao redor e ser aos Deuses
venturosos sede irresvalvel sempre" (vv. 127-8). A localizao do
Trtaro ("no fundo da Terra") e sua natureza simtrica e negativa
quanto da Terra (lugar da queda sem fim nem rumo e do imprio da
Noite) ao mesmo tempo que o ligam ntima e essencialmente Terra (de
que ele o contra ponto) aproximam-no e aparentam-no a Khos, em cuja
descendncia se incluem rebos (regio infernal) e Noite. A Eros sob a
forma de uma pedra-dolo era dirigido em Tspias pela
33. poca de Hesodo um culto agrcola da fecundidade. Eros a
Potestade que preside unio amorosa, o seu domnio estende-se
irresistvel sobre Deuses e sobre homens ("de todos os Deuses e de
todos os homens doma no peito o esprito e a prudente vontade"). Ele
um desejo de acasalamento que avassala todos os seres, sem que se
possa opor-lhe resistncia: ele solta- membros (lysimels). O melhor
comentrio que conheo a este epteto de Eros uma ode de Safo em que
ela descreve seu estado de paixo amorosa que, num crescente, beira
a lassido, abandono e palidez da morte, enquanto sua bem-amada
entretm-se com um homem . E o melhor comentrio que conheo a Eros
como fora csmica de fecundao este fragmento de As Danaides de
squilo: 3) Cf. Page. Lyrica Graeca Selecta. Oxford, Oxford
University Press, 1968, frag. 199, p. 104. Essa ode, eu a traduzi
assim: Parece-me par dos Deuses ser o homem que ante a ti senta-se
e de perto te ouve a doce voz e o riso desejoso. Sim isso me
atordoa o corao no peito: to logo te olho, nenhuma voz me vem mas
calada a lngua se quebra, leve sob a pele um fogo me corre, com os
olhos nada vejo, sobrezum- bem os ouvidos, frio suor me envolve,
tremo toda tremor, mais verde que relva estou, pouco me parece
faltar-me para a morte. Mas tudo ousvel e sofrvel... "O Amor (ros)
de acasalar-se domina a Terra. "Ama (eri) o sagrado Cu penetrar a
Terra. "A chuva ao cair de seu leito celeste "Fecunda a Terra, e
esta para os mortais gera "As pastagens dos rebanhos e os vveres de
Demter". Eros, enquanto um dos quatro elementos que so a Origem, ao
ser nomeado e ao presentificar-se o seu domnio, envolve j a
referncia a todos os homens e todos os Deuses, que surgiro depois
dele. Tal como a Terra, ao ser nomeada como Origem, traz com sua
nomeao a presena dos imortais que tm o Olimpo nevado. E como
potncia cosmognica, como fora de fecundao da Terra pelo Cu atravs
da chuva-smen, como fora de acasalamento e da multiplicao da vida,
Eros est tanto mais perto e
34. aparentado ao Cu e Terra (estas sedes sempre seguras dos
Deuses e mbitos da luz e da vida) quanto o Trtaro, por sua natureza
hipoctnica, noturna e letal, est mais perto e aparentado ao Khos
com sua descendncia tenebrosa e mortfera. O nome Khos est para o
verbo khano ou sua variante khsko (= "abrir- se, entreabrir-se" e
ainda: "abrir a boca, as fauces ou o bico") assim como o nome ros
est para o verbo ero ou sua variante ramai (= "amar, desejar
apaixonadamente"). Tal como ros a fora que preside a unio amorosa,
Khos a fora que preside separao, ao fender-se dividindo-se em dois.
A imagem evocada pelo nome ros a da unio do par de elementos
masculino e feminino e a resultante procriao da descendncia deste
par. A imagem evocada pelo nome Khos a de um bico (de ave) que se
abre, fendendo-se em dois o que era um s. ros a potncia que preside
procriao por unio amorosa, Khos a potncia que preside procriao por
cissiparidade. Se a palavra Amor uma boa traduo possvel para o nome
ros, para o nome Khos uma boa traduo possvel a palavra Cissura ou
(e seria o mais adequado, se no fosse pedante): Cissor. ("Sim bem
primeiro surgiu Cissor, depois tambm 'Terra de amplo seio, de todos
sede irresvalvel sempre, "dos imortais que tm a cabea do Olimpo
nevado, "e Trtaro nevoento no fundo do cho de amplas vias, "e Amor
que o mais belo dos deuses imortais"...) H na Teogonia duas formas
de procriao: por unio amorosa e por cissiparidade. Os primeiros
seres nascem todos por cissiparidade: uma Divindade originria
biparte-se, permanecendo ela prpria ao mesmo tempo que dela surge
por esquizognese uma outra Divindade. Assim rebos e Noite nasceram
do Khos (v. 123). Assim Terra primeiro pariu igual a si mesma o Cu
constelado, pariu as altas Montanhas e depois o Mar infrtil (vv.
126-32). Toda a descendncia de Khos nasce por cissiparidade, exceto
ter e Dia, que constituem exceo tambm por serem dentro desta
linhagem os nicos positivos e luminosos. Tudo o que provm de Khos
pertence esfera do no-ser; todos os seus filhos, netos e bisnetos
(exceto ter e Dia) so potncias tenebrosas, so foras de negao da
vida e da ordem. Seus filhos so rebos e Noite. rebos uma espcie de
antecmara do Trtaro e do reino do que morto. Noite, aps parir ter e
Dia unida a rebos em amor, procria por cissiparidade as foras da
debilitao, da penria, da dor, do esquecimento, do enfraquecimento,
da aniquilao, da desordem, do tormento, do engano, da desapario e
da morte em suma, tudo o que tem
35. a marca do No-Ser. Estas potncias negativas, toda a
linhagem de Khos, so geradas por cissiparidade; ter e Dia, potncias
positivas, so excees desta linhagem e geradas por unio amorosa.
Neste caso, h uma simetria especular entre os genitores e os
gerados: rebos a regio subterrnea, ttrica e noturna ligada ao reino
dos mortos; ter (Aithr vem de atho = "queimar, abrasar") a regio
superior e de esplndida luminosidade do cu diurno. Nem Noite nem
Dia so aqui perodos cronomtricos, no tm vnculos com o Sol e os
astros (estes nascem de uma outra linhagem, independente e sem
conexo com a de Khos); Dia e Noite aqui so princpios ontolgicos, a
exprimirem imageticamente a esfera do Ser e a do No-Ser. Esta
oposio especular (rebos: ter: Noite: Dia) subsumida no jogo
enantiolgico que a mundiviso exposta na Teogonia. Dia e Noite, Ser
e No-Ser, guardam em si uma relao ntima e profunda entre si: o Ser
vige e configura-se segundo uma estrutura configurada pelo No-Ser,
de tal forma que o pensamento que pensa o que o Ser no pode no
pensar o No-Ser. rebos, as trevas infernais, tem s que invertidas a
mesma posio e natureza que ter, a luminosidade celeste,e mais: o
masculino ter e seu par o Dia (que feminino em grego: Hemre) nascem
do par acasalado rebos e Noite. Do mesmo modo, "no fundo do cho"
(i.e., da Terra) est o Trtaro. Vimos j a mesma simetria especular
entre Trtaro e Terra-Cu; e agora fica mais claro para ns o que
significa, enquanto situao do Trtaro, esta expresso "no fundo do
cho" (mykhi khthons, v. 119). Terra, como assento inabalvel e
inconcusso de todas as coisas (Ser), tem "no fundo do cho" este seu
duplo invertido, o Trtaro, que pura Queda cega sem direo e sem fim,
a total ausncia e negao do Fundamento, uma imaginosa expresso do
No-Ser. "No fundo do cho" significa "no mago da Terra", mas um mago
onde a Terra no mais Terra e sim seu contrrio: no mago do Ser
encontramos sua gemelaridade com o No-Ser. Tendo em vista a
afinidade e confinidade de Trtaro com rebos e, portanto, com Khos
(de cuja natureza rebos como descendente uma explicitao),
prossigamos o exame do sentido e funo desta Potestade que, do
Quaternrio Original, Hesodo nomeia primeiro. Trtaro, Khos e seus
filhos rebos e Noite so expresses diversas de diversas situaes e
modalidades em que manifesta a violncia da Negao (do No-Ser).
Trtaro e rebos, que nos nferos se confinam, exprimem o No-Ser
topograficamente como o nfimo alm da extrema circunscrio aonde se
estendem a luz do Cu e a firmeza da Terra. Noite e seus filhos (vv.
211-32) exprimem-no metafisicamente como o princpio de destruio e
de perda que
36. sob vrias formas atua dramaticamente na vida humana. Khos,
como outra expresso metafsica do No-Ser, um princpio cosmognico e
para diz-lo com exatido e integralmente tambm ontogentico. Como
princpio cosmognico, Khos a potncia que instaura a procriao por
cissiparidade, um princpio de cissura e de separao, e como tal
ope-se a ros, que, como princpio cosmognico, instaura a procriao
por unio de dois elementos diversos e separados, masculino e
feminino. Ambos, Khos e ros, esto lado a lado de Terra de amplo
seio, de todos sede inabalvel sempre. A rigor, Khos e ros, enquanto
potncias cosmognicas, so paredros de Terra, que, sim, o assento
sempre firme, o Fundamento Originrio. Khos e ros, portanto, ladeiam
a Terra - Ser como puros princpios ativos e energticos, de
naturezas opostas e contrapostas, como paredros (par-dro) deste
Assento Primordial (pnton hdos). ros, princpio da unio, estril,
dele mesmo no surge nenhum rebento, ele de si mesmo nada produz.
Khos, princpio de diviso e separao, prolfico e tem atravs de sua
filha Noite numerosos descendentes : todos eles, incorpreos como
ele, so como ele puros princpios ativos e energticos, sem substncia
fsica. Que o princpio da unio seja estril e o da diviso e separao
prolfico eis algo muito congruente com a sensibilidade e viso
gregas. No Banquete de Plato, Eros filho da Indigncia (Pena) e do
Expediente (Poros) herdando da me a incurvel penria e do pai a
inesgotvel habilidade. Na sabedoria de Herclito, Plemos (a Guerra)
o pai de todas as coisas e o rei de todas as coisas (cf. frag. 53
D.K.); a Guerra (que, nomeada no verso 228 da Teogonia como Hysmnas
te Mkhas te, descendente e portanto uma das expresses
explicitadoras da natureza de Khos) um princpio cosmognico fecundo
e construtivo. Khos e ros, nesta leitura que estou propondo,
prefiguram na Teogonia hesidica as duas foras motrizes que em
Empdocles encadeiam e desencadeiam o ciclo do processo csmico:
Neikos e Aphrodte, dio e Amor. Como princpio ontogentico, Khos uma
imagem mtica que, ao pensar o No-Ser em termos cosmognicos,
compreende tambm o No-Ser na condio gemelar em que No-Ser e Ser se
encontram enquanto Ser e No-Ser igualmente esto na raiz da
constituio de cada ente. A relao entre Khos e Terra no se d do
mesmo modo que a relao entre Eros e Terra. Neste Quaternrio
Original a simetria no esttica, mas dinmica: a tensa simetria de
uma unidade qudrupla e agnica. Dada a diversidade de natureza entre
as duas foras de procriao, h uma prioridade de Khos sobre Eros, e
Hesodo marca-a clara e reiteradamente. Para que mais bem se
determine que prioridade a de
37. Khos, examinemos por quais modos ela se marca: 1) como
prioridade temporal de Khos sobre Terra e Eros, expressa no advrbio
peita (= "depois") no v. 116: "Sim bem primeiro nasceu Khos, depois
tambm Terra (...)"; 2) com a situao j citada de Trtaro (cuja
homologia com Khos, parece-me, j est bastante evidente para no ser
preciso demonstr-la aqui) "no fundo do cho". Ou seja: Khos no s
ladeia como paredro a Terra tal como Eros o faz, mas ainda sob a
imagem de Trtaro est no fundo da Terra; o domnio de Khos estende-se
da colateralidade profundidade, enquanto Eros permanece paredro; 3)
com os versos 736-8 (repetidos em 807-9): "da Terra trevosa e do
Trtaro nevoento / e do Mar infrtil e do Cu constelado, / de todos,
so contguos as fontes e os confins". Aqui Terra e Trtaro (Khos) so
apresentados como numa contigidade em que ambos igualmente se
fundamentam. A discusso sobre o que significa a prioridade temporal
deixarei para quando tratar da concepo hesidica de tempo, j que
peita (= "depois") no verso 116 no tem de modo algum um sentido
cronolgico e implica outras dimenses do Real que no os aspectos de
que estou tratando aqui. A inscrustao de Trtaro ( Khos) no fundo da
Terra e a contigidade de "fontes e confins" entre Trtaro ( Khos) e
Terra so, a meu ver, exemplos das retomadas e repeties com que o
pensamento arcaico aborda os temas de sua reflexo. Ambas estas
passagens do Poema (e no s elas) exprimem em termos mticos que
tanto quanto o No-Ser se determina e se define a partir da
determinao e definio do Ser, o Ser se determina (onticamente) e se
define (num discurso) pelo No-Ser e pelo conceito de No-Ser.
Entendendo-se Khos- Trtaro como um princpio ontogentico, estas
passagens citadas significam que cada ente se determina no tanto
pelo que ele , mas pelo que ele no e pelo contraste (contigidade)
do que ele com o que ele no : tal como uma silhueta, cada ente ou
cada coisa se determina e se define contra o pano de fundo 'e de
dentro e de frente e de fora, mltiplo fundo) do que ele ou ela no .
Terra e Trtaro, que no s se confinam nos Meros mas tm contguos
fontes e confins, nomeiam ambos esta unidade antagnica em que se do
a totalidade do Ser e tambm o No-Ser. A expresso mtica Terra e
Trtaro equivale expresso filosfica estica ti, que, exprimindo o
gnero supremo, engloba Ser e No-Ser, mas tendo eles em Hesodo um
antagonismo e
38. uma identidade que no tiveram expresso no Estoicismo.
Antagonismo e identidade pelos quais Trtaro se revela como uma
contra-imagem do Cu ao revelar-se o Cu o igual e duplo da Terra.
Simetria de Terra-e-Cu contrapostos especularmente ao Trtaro. E
assim tambm ter e Dia espelham rebos e Noite. E assim tambm Khos e
Eros, como princpios cosmognicos, se espelham. (Note-se bem: como
princpios cosmognicos, dado que como princpio ontogentico e
ontolgico Khos tem um peso e uma envergadura que Eros no tem.)
39. VI TRS FASES E TRS LINHAGENS Uma tardia instituio cultural,
que a civilizao europia elaborou ao longo de sculos, marca
profundamente hoje a nossa viso de mundo e entendimento das coisas:
essa interioridade psicolgica, onde se enrazam e se originam nossas
decises e nossos atos, e que se nos d como o fundamento e o estofo
da personalidade. Somos de tal modo marcados por ela que nos causa
espanto e at uma sensao de aporia a lembrana de que essa dimenso
interior no de modo algum um dado inerente natureza humana, mas sim
uma inveno ou descoberta que, por situar-se no centro organizador
de nossa cultura, tem implicadas em si todas as perspectivas que,
no mbito de nossa cultura, nos restam abertas de entendimento e
viso. Assim, parece-nos sem terceiro termo possvel a distribuio de
todos os fenmenos em duas categorias absolutas: ou so contedos de
uma interioridade psicolgica, ou uma realidade exterior e objetiva.
E por um consenso unnime e inequvoco, h um elenco de fatos
entendidos como interiores, subjetivos e por isso dotados de um
grau inferior de realidade, dependentes e segundos, aos quais se
ope uma realidade absoluta, forte e boa, entendida como exterior e
objetiva. Configurado pelas fronteiras entre o interior-subjetivo e
o exterior-objetivo, est o Sujeito, detentor e custdio da dimenso
interior e seus contedos, e fundado neste fulcro ntimo que a
vontade,essa fonte permanente e inesgotvel de todas as decises e
aes, e por cuja imanncia e constncia o Sujeito se torna em
quaisquer circunstncias responsvel por seus atos presentes e
passados, desde que a origem deles se defina como constituda por
esta fonte que a vontade. No entanto, esse esquema dicotmico das
coisas, essa complexa instituio que a vontade e essa decorrente
valorao do exterior-objetivo como realidade primeira e mais forte,
por mais naturais e reais que possam hoje nos parecer, dificilmente
encontram uma correspondncia, prxima ou distante, na viso de mundo
apresentada na Teogonia hesidica. No se verificam na mais antiga
cultura grega. So os lricos gregos que na poca Arcaica fazem a
descoberta da profundidade e intensidade espirituais, preparando
caminho para ulterior construo de uma interioridade subjetiva
oposta exterioridade objetiva A novidade do i