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Aline Silveira . Recife, 2010 uma tipografia digital com raízes litográficas

Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

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Projeto de Graduação do curso de Design da UFPE, de julho de 2010. A tipografia Hidromel foi desenvolvida a partir dos caracteres de um rótulo de bebida da década de 1920, parte do acervo litográfico da Oficina Guaianases de Gravura. O documento mostra as metodologias usadas na construção da Hidromel, as referencias visuais utilizadas e o processo construtivo de cada uma das letras.

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Aline Silveira . Recife, 2010

uma tipografia digital com raízes litográficas

Page 2: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Artes e Comunicação

Departamento de Design

Hidromel

Monografia apresentada

como requisito parcial para

obtenção do grau de bacharel

em Design, sob orientação do

Profo. Silvio Campello

Aline Silveira Cavalcanti

2010

uma tipografia digital com raízes litográficas

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para minha mãe.

Page 4: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

agradecimentos

Aos meus amigos, por acreditarem em mim.

Bernardo Reis, pelo carinho e apoio nas horas em que mais precisei.

Carolina Cani, por todas as noites de trabalho, diversão, amizade e chá de frutas vermelhas.

Silvio Campello, meu orientador, por conseguir me deixar mais tranquila.

Isabella Aragão, por me ajudar a descobrir a paixão por tipografia.

Fábio Mariano, pelas críticas construtivas e pela injeção de ânimo.

Evelyn Safh e Tiago Sá, da Safh, pela compreensão com meus horários.

Page 5: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

índice

1. introdução

2. metodologia

3. desenvolvimento

3.1 pesquisa

3.2 versaletes

3.3 versais

3.4 numerais

3.5 caracteres especiais

3.6 espaçamento e kerning

4. testes

5. Hidromel Solid

6. aplicações

7. conclusão

8. referências

5

9

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15

21

37

45

48

55

59

66

70

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introdução

Este projeto de graduação tem como objetivo desenvolver uma

tipografia display a partir do logotipo de um dos rótulos do acervo de matrizes

litográficas do Laboratório Oficina Guaianases de Gravura (LOGG) da UFPE. Esse

acervo é um rico registro histórico de uma técnica de impressão anterior à im-

pressão offset, praticada no parque industrial pernambucano a partir do século

19. O material revela uma intensa produção do interior do estado, e até mesmo

fora dos seus limites, atendendo produtores da Paraíba, Ceará e até da Bahia.

(Barreto Campello, Agra Junior & Aragão, 2008). Os rótulos desse acervo possuem

tipografias originais e soluções gráficas em que se destacam ornamentos, textu-

ras, sombras e outras características que, analisadas com atenção, expressam a

cultura e os costumes da época.

Resultado da prática da litografia, com suas peculiaridades e limitações, os

rótulos possuem logotipos com grande liberdade de movimento. É notável o uso

de réguas e gabaritos em alguns dos rótulos, que, na maioria dos casos, eram

desenhados à mão.

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Page 7: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

A litografia é, talvez, a técnica de impressão que mais se aproxima do ato

de desenhar. Tem como princípio básico a repulsão entre água e óleo, e os

instrumentos mais usados são lápis especiais ricos em gordura, além de lâminas

e pontas-secas para adicionar textura. O desenho é feito diretamente sobre a

matriz, uma pedra calcária específica para esse fim.

Quando um desenho utiliza várias cores, cada cor necessita de uma matriz

diferente. O mesmo papel é impresso várias vezes, dependendo da quantidade de

cores, e precisa estar alinhado com o desenho na pedra, para que as cores casem

perfeitamente e não haja erros de registro. As cores usadas podem ou não ser

sobrepostas, formando novas cores.

A idéia de desenvolver uma tipografia a partir de um dos rótulos surgiu do desejo

de resgatar a estética do material gráfico que foi descoberto e explorar novos usos

para a linguagem tipográfica pernambucana de 90 anos atrás.

Estavam disponíveis para este trabalho diversos rótulos com letreiramento

Reimpressões de alguns dos rótulos

litográficos encontrados na Oficina

Guaianases.

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Page 8: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

marcante, e eram notáveis os vários estilos tipográficos presentes em cada um

deles. Alguns tinham características fortemente caligráficas, outros mostravam

letras de estrutura moderna, com ornamentos e floreios manuais, alguns tinham

ligação com a tradição tipográfica em metal, e alguns poucos eram difíceis de

classificar. Foi um desses últimos o selecionado para este trabalho.

O rótulo escolhido foi o do Hidromel1 São João. Me atraíram as particularidades

presentes no letering principal, de desenho elegante e elaborado, que guarda

semelhanças com o movimento artístico Art Nouveau. Além disso, era um rótulo

de estilo peculiar, mais elaborado que a maioria, e não havia nenhum outro

semelhante a ele dentre os rótulos catalogados.

Na hora de definir se a tipografia a ser desenvolvida seria de texto ou display2,

optei por uma fonte display. Tal escolha se deu pela própria natureza das letras

1 Hidromel é uma bebida alcoólica

fermentada à base de mel e água.

Consumida desde a antiguidade

por celtas, saxões e vikings, sua

fabricação é anterior à do vinho

e à da cerveja. Nos dias atuais,

o hidromel ainda é bastante

apreciado, principalmente em

cidades do interior do país.

Rótulo de Hidromel São João,

escolhido para este trabalho.

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presentes no rótulo. Com uma tipografia display, seria possível dar ênfase aos

ornamentos e às formas mais marcantes dos caracteres, sem as limitações de

legibilidade e economia de espaço que a grande maioria das fontes de texto

apresenta. Não seria uma tipografia fácil de desenhar, mas o rótulo se apresentou

como um desafio, que foi aceito prontamente, devido a seu alto potencial estético.

2 Tipografias de texto são desenhadas para compor textos legíveis, estáveis e visualmente

agradáveis. São fontes feitas para passarem despercebidas ao leitor, e transmitir a

mensagem da melhor maneira possível. Já o desenho de tipografias display se preocupa

menos com a legibilidade e mais com a força estética dos caracteres. As fontes display são

usadas em logotipos, anúncios e qualquer peça gráfica ou digital que precise de ênfase. A

relação entre os caracteres é mais importante do que a letra em si.

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Page 10: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

metodologia

O desenvolvimento da tipografia display, batizada com o nome

de Hidromel, usou conceitos presentes nas três metodologias apresentadas a

seguir. Todas elas foram de grande ajuda a este trabalho. Fábio Lopes mostra,

em sua tese O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica,

as diretrizes para construção de fontes a partir de uma referência já existente.

Karen Cheng, em seu livro Designing Type, lista, passo a passo, as etapas de

desenvolvimento de uma tipografia de texto, e Buggy mostra ser possível

criar uma fonte display a partir de módulos com o método criado por ele e

apresentado no livro MECOTipo.

Karen Cheng, em seu livro Designing Type (2005), não apresenta

uma metodologia definida para criar uma tipografia. Segundo ela, existem

tantas maneiras de desenhar tipos quanto tipografias projetadas. Em vez de

propor um método, Cheng dá diretrizes básicas para construção e derivação das

letras e apresenta etapas que, salvo raras exceções, qualquer projeto de criação

tipográfica precisa seguir.

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Page 11: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

O primeiro passo é definir os parâmetros tipográficos específicos para a fonte

a ser desenhada. Nessa etapa, normalmente, são feitos sketches à mão livre , de

algumas letras-chave, que definem as proporções e a personalidade da tipografia.

Definidas as principais características, já é possível completar o set de caracteres

(letras, números, diacríticos, pontuação e símbolos). Cheng indica de maneira

informal uma certa ordem de desenho dos caracteres e os elementos que podem

ser replicados de uma letra para a outra. Depois de ter todos os caracteres

desenhados, a última etapa, e em muitos casos a mais demorada, é a definição do

espacejamento e kerning da fonte. A relação de uma letra com as outras e também

com o espaço em branco é importantíssima para a qualidade final da tipografia, e

esse estágio do desenvolvimento requer atenção especial.

O processo de desenvolvimento da Hidromel se baseou nesse roteiro. A única

diferença consistiu na etapa inicial: em vez de desenhar as primeiras letras para

definir a estética da fonte, foram analisados os caracteres já disponíveis no rótulo.

O designer Leonardo Buggy lançou em 2007 o MECOtipo, um livro

sobre seu método de ensino de desenho coletivo de caracteres tipográficos. O

método proposto e exemplificado em um de seus experimentos (MECOTipo, p. 23,

2007), mostrou ser possível desenvolver uma fonte display através da combinação

e repetição de 3 formas distintas, chamadas de módulos.

Cada um desses módulos serve a uma finalidade particular. Um é para as linhas

retas, um para as curvas e o último para as diagonais. Todos eles podem ser

rotacionados e espelhados, dependendo da necessidade de cada letra. Buggy

propõe ainda uma árvore de derivação de tipos, que sugere uma ordem para o

desenho das letras, começando por aquelas que fornecem o maior número de

informações básicas necessárias à estética da fonte como um todo. Por exemplo,

a letra H mostra a largura e altura das letras retangulares, a espessura da haste

e o tipo de serifa (se houver). Várias formas presentes nessas primeiras letras

se repetem nas seguintes, facilitando o trabalho e dando consistência visual à

tipografia. A imagem a seguir mostra a árvore de derivação de caixa alta proposta

por Buggy.

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Page 12: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

O conceito de árvore de derivação foi a base para a construção dos caracteres

da Hidromel. Porém, a árvore original precisou ser adapatada à situacão, pois foi

necessário considerar as letras presentes no rótulo, reorganizando sua ordem,

para que as letras já existentes tomassem a posição de letras-chave.

Além do conceito de módulos, o MECOTipo forneceu informações valiosas

sobre equilíbrio formal e compensações visuais necessárias na maior parte dos

projetos tipográficos. A abstração da forma das letras em triângulos, retângulos e

círculos exemplificada no livro serviu para calcular ajustes finos nas dimensões e

espacejamento entre as letras.

A árvore de derivação da Hidromel será explicada e ilustrada na página 25. Os

ajustes de espaçamento serão demonstrados a partir da página 55.

Fabio Lopes, em sua tese, propõe duas categorias de classificação

para esse tipo de projeto, de acordo com a fidelidade ao desenho original: as

fontes construídas a partir de referência concreta, desenvolvidas no intuito

de reproduzir fielmente uma experiência caligráfica, e as fontes construídas a

partir de referência conceitual, que apresentam características associadas a um

conceito mais amplo de caligrafia, sem a preocupação de recriar a referência

concreta em seus mínimos detalhes.

A partir dessa primeira classificação, referente ao tipo de referência de onde parte

o projeto, é feita uma nova divisão, que diz respeito ao tipo de reconstrução que

é feita a partir da caligrafia original: as tipografias podem ser de reconstrução

literal ou inspirada. As fontes de reconstrução literal procuram simular com

exatidão e detalhamento minucioso o registro caligráfico usado como referência.

Já os projetos de construção inspirada não têm como princial objetivo reproduzir

fielmente o original caligráfico, mas desenvolver uma tipografia que se aproxime

desse registro, com a possibilidade de escolher quais características devem ser

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Árvore de derivação de letras proposta por Buggy.

Imagem adaptada de: Buggy, 2007, p. 140, 141

Page 13: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

conservadas e quais podem ser desconsideradas ou adaptadas à nova situação. A

imagem abaixo demonstra graficamente a classificação proposta por Fábio.

Essas definições a respeito do grau de semelhança e fidelidade entre a fonte

digital e o registro caligráfico foram de grande ajuda no desenvolvimento da

Hidromel. Apesar de não ser uma tipografia de raízes caligráficas, seu projeto

partiu de uma referência concreta, o rótulo impresso em litografia. E foi

necessário tomar decisões sobre quão fiel seria o novo desenho em relação à

matriz impressa.

Fábio Lopes apresenta ainda algumas circunstâncias que devem ser levadas em

conta na hora de decidir por um dos dois caminhos para o desenvolvimento de

uma tipografia inspirada em registros caligráficos:

se o original possui partes destruídas, está em

estado ruim de conservação ou caso não apresente o

conjunto completo de caracteres base de um sistema

tipográfico, a tarefa de se realizar um projeto de

natureza literal será enormemente dificultada.

Reproduzir uma letra que não foi sequer produzida

O diagrama apresenta as duas categorias de referência (concreta e conceitual), e os vários níveis de

fidelidade ao registro original que o projeto de uma fonte de simulação caligráfica pode apresentar.

Fábio Lopes, 2009, p. 160

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Page 14: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

ou que se encontra parcialmente destruída no

original é uma tarefa bastante complexa.

(Fabio Lopes, 2009, p. 92)

Ao constatar que o logotipo do Hidromel São João possuía um conjunto bastante

limitado de caracteres (apenas 4 letras), que a matriz litográfica não estava

perfeita depois de muitos anos guardada sem os devidos cuidados e que as falhas

e imperfeições foram reproduzidas na impressão, estava claro que uma tipografia

baseada no rótulo em questão jamais poderia garantir fidelidade total ao desenho

original. Logo, a Hidromel se encaixa na definição de tipografia construída a

partir de referência concreta e construção inspirada. Me senti, então, livre para

reinterpretar o desenho das letras no rótulo, e desenvolver uma tipografia que

mostrasse claramente sua inspiração, mas sem o compromisso de reproduzir as

formas e proporções exatas da impressão litográfica. As decisões tomadas em

relação à forma dos caracteres originais serão detalhadas na página 21.

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Page 15: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

desenvolvimento

Como tinha em mãos uma reimpressão das matrizes das quatro

cores do rótulo de hidromel São João separadas, tive a opção de tomar como

base para o desenho da tipografia dois deles, que continham o nome “São João”.

Surgiu a idéia de criar duas versões da fonte, uma com o contorno e outra com o

preenchimento, como na imagem a seguir. Assim, existiria a possibilidade de uso

da Hidromel em duas cores, exatamente como foi usada no rótulo.

Reimpressão em preto das matrizes

de duas das cores presentes no rótulo.

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Page 16: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

A primeira versão a ser desenhada foi a do contorno, batizada com o nome de

Hidromel outline. O desenho do contorno estava mais definido no rótulo, e seria

mais fácil extrair dali a forma e a estrutura das letras.

Tendo definido qual matriz seria usada para o desenho dos caracteres, a página

com a reimpressão foi digitalizada em 600 ppi, e o desenho foi vetorizado à mão.

Contudo, estava claro que antes de começar a desenhar a tipografia, era

necessário entender sua linguagem estética e saber em que contexto visual

o rótulo de hidromel estava inserido. Numa observação rápida do letering, foi

observada uma semelhança da forma das letras com o design Art Nouveau.

Decidi então pesquisar referências visuais e conhecer melhor a história e as

características do movimento, pois como o conjunto de caracteres disponíveis

era bastante reduzido – apenas duas versais e duas versaletes –, uma referência

estética adicional seria de grande ajuda.

Primeiro desenho vetorial a partir das letras presentes no rótulo.

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Page 17: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

O Art Nouveau

Entre o fim do século 19 e o início do século 20, auge da Belle

Époque, surge um novo movimento artístico: o Art Nouveau (termo cuja tradução

literal é “arte nova”), considerado o primeiro estilo moderno e internacional. O

Art Nouveau teve como epicentro criativo a França, onde surgiu como reação à

mecanização e impessoalidade que chegaram com a Revolução Industrial, mas

logo se espalhou por toda a Europa, sendo interpretado por cada país à sua

maneira.

O estilo teve forte influência do movimento Arts and Crafts, propagado por William

Morris, e se expressou principalmente nas chamadas artes aplicadas (arquitetura,

cartazes, mobiliário, jóias etc). O grande objetivo de seus principais expoentes,

entre eles Victor Horta, Henry Van de Velde, René Lalique e Alphonse Mucha, era

levar a beleza ao cotidiano, objetivo este atingido com sucesso, se observarmos a

enorme quantidade de objetos decorativos e peças gráficas produzidas na época.

Entre suas principais características formais estão a sinuosidade de formas que

remetem à natureza, motivos florais e femininos e uma elegante sensualidade

nas curvas assimétricas e espirais característicos do estilo. Porém, o Art Nouveau

é marcado também por formas geométricas austeras, linhas de contorno

pronunciadas e simplicidade nas formas, características que o aproximam

bastante do estilo que o sucedeu, o Art Déco, caracterizado por formas menos

orgânicas e mais geométricas, menos ornamentadas e mais construtivas. Os

dois estilos muitas vezes se confundem, e, no Brasil, que na época assimilava as

inovações nascidas na Europa com alguns anos de atraso, andaram lado a lado

por algumas décadas.

Nas primeiras décadas do século 20, a influência tanto do movimento Art Nouveau

quanto do Art Déco ainda era forte no Brasil, principalmente na área das artes

gráficas. Ambos os estilos eram indicadores do novo e do moderno, e foram

propagados principalmente em periódicos. A chegada do Art Nouveau no Brasil

coincidiu com uma época de rápida expansão da produção gráfica, o que se

reflete na grande penetração do estilo no design de livros, revistas, cartazes, entre

outras peças gráficas (Rafael Cardoso, 2004).

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Page 18: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

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Exemplos de impressos datados do início do século 20, com tipografias que

seguem o estilo Art Nouveau.

Page 19: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

A produção tipográfica durante o período dominado pelo estilo Art Nouveau

seguiu os mesmos preceitos das outras manifestações formais. A tipografia da

época deve suas formas orgânicas e elegantes, em grande parte, à ascensão da

prática da litografia nos parques gráficos da Europa. A técnica permitia que um

desenho à mão livre fosse reproduzido em larga escala, sem o intermédio de

instrumentos como o cinzel e o buril3.

Com diversas referências visuais em mãos, foi possível verificar se a suposição

inicial referente ao estilo do letering do rótulo estava correta. A imagem na página

anterior é um apanhado de impressos do início do século 20, com tipografias que

seguem a estética em voga na época.

A partir desse material, foram analisadas as letras S, A, O e J desses impressos,

para verificar se apresentavam características em comum com as letras no

logotipo do Hidromel São João. A imagem a seguir mostra a semelhança entre o A

versalete presente no rótulo e outros exemplares da mesma letra.

3 cinzel e buril - instrumentos largamente usados na confecção de matrizes de gravura

(método de impressão em larga escala anterior à litografia), usados para entalhar,

respectivamente, madeira e metal. Seu uso é consideravelmente menos natural para a

mão humana do que o lápis ou a pena, o que interfere nas características gráficas da peça

que está sendo produzida.

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A letra A presente no rótulo, vista em conjunto com outras tipografias

características do estilo Art Nouveau.

Page 20: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Apesar do peso visual diferente, proveniente do método de impressão (a amostra

é de apenas uma das cores do rótulo, mas existe outra matriz, que preenche a

área interna das linhas da letra), notam-se algumas características em comum,

sobretudo a assimetria da letra e as curvas suaves na perna do A. Além disso, as

volutas presentes em outras letras A usadas para comparação estão presentes no

S e no J do rótulo, que, por serem versais, têm formas mais soltas e rebuscadas.

Na busca de referências visuais para o desenvolvimento da Hidromel, além

das peças gráficas já exibidas aqui, foram encontrados vários exemplos na

arquitetura do período Art Nouveau com características semelhantes às das letras

presentes no rótulo: contornos marcantes, elementos estruturais pronunciados,

linhas sinuosas e combinação harmônica entre formas geométricas e orgânicas.

A imagem na página seguinte mostra algumas construções e elementos

arquitetônicos que serviram como referências estéticas adicionais para a

construção da Hidromel.

19

Page 21: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

20

Construções e elementos estruturais do início do século 20, que apresentam estética Art Nouveau.

Page 22: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

versaletes

O primeiro grupo de caracteres a ser desenhado foi o das

versaletes, considerando que seriam mais fáceis de desenhar do que as versais.

Analisando o rótulo do hidromel São João e todo o material pesquisado acerca de

sua estética, uma importante decisão precisava ser tomada acerca da fidelidade

do desenho da fonte em relação às letras originais.

Levando em consideração a classificação da Hidromel segundo o sistema

proposto por Fábio Lopes, de construção inspirada a partir de uma referência

concreta (ver página 13), decidi que a tipografia não seria uma reprodução literal

do logotipo no rótulo, até porque não havia material suficiente para assegurar

fidelidade total à forma original (só haviam quatro letras disponíveis). O logotipo

serviria apenas como ponto de partida e referencial estético para a fonte. Tendo

isso em mente, não seria imperativo conservar o desenho das letras S, A, O e J

exatamente como se apresentam no rótulo. Algumas das ações decorrentes dessa

decisão foram:

1. alterar o formato da espinha do S, que, no rótulo, denota

claramente o uso de um gabarito de desenho, o que não condiz

com a idéia de fluidez e sinuosidade das formas do estilo Art

Nouveau.

2. pensar em uma solução satisfatória para a forma do J, que

mantivesse a forma livre e rebuscada da letra, mas permitisse

sua identificação facilmente. O J presente no logotipo pode ser

facilmente confundido com um I ou um L ornamentado, o que

constitui um problema de legibilidade.

3. alterar as proporções de tamanho entre versais e versaletes. A

diferença entre as dimensões das duas no rótulo é muito pouca,

chegando ao ponto em que a única diferenciação entre as versais

e as versaletes reside na presença de ornamentos em uma delas.

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Page 23: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

referência tipográfica

As fontes criadas no período Art Nouveau devem muito de suas

formas livres à popularização da litografia na produção gráfica. Como já foi dito,

a litografia é a técnica de impressão mais próxima do desenho à mão livre, daí

as formas fluidas das letras presentes em cartazes e gravuras da época. Mas

a liberdade criativa experimentada pelos tipógrafos na época talvez não fosse

possível sem a ruptura com os padrões clássicos, desencadeada por Giambattista

Bodoni no final do século 18.

Ao contrário das versais, de formas mais soltas, as versaletes presentes no rótulo

apresentam linhas retas marcantes e equilíbrio entre rigor geométrico e fluidez

orgânica. A letra A é basicamente formada por um retângulo e um triângulo

unidos por linhas finíssimas, além do ornamento triangular superior. A letra O

possui as mesmas características, tendo as laterais grossas e as áreas superior e

inferior muito finas. Nesse aspecto, as letras se assemelham bastante às formas

das tipografias do período romântico, como a Bodoni e a Didot, que quebraram

os parâmetros de peso e contraste vigentes na época e deixaram muitos

tipógrafos tradicionais escandalizados com a ousadia de suas formas. Algumas

das características dessas tipografias, segundo Robert Bringhurst (Elementos do

Estilo Tipográfico, p. 144-146, 2005), e que foram encontradas nas versaletes do

rótulo, são o eixo racionalista, completamente vertical, intensificado por meio do

contraste exagerado; traço modulado de maneira abrupta; terminais em forma de

círculo; abertura reduzida.

os módulos

A Didot Bold, usada para comparação

com as letras da Hidromel na imagem

ao lado, é uma adaptação, desenhada

por Adrian Frutiger para a Linotype,

baseada nas gravações feitas pelo

tipógrafo francês Firmin Didot, em

Paris, entre 1799 e 1811.

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Page 24: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Ainda na fase de conceito da Hidromel, foi tomada a decisão

de criar os módulos apenas para as partes grossas (pesadas) dos caracteres. As

linhas mais finas terão sua forma livre, a ser definida após o posicionamento

dos módulos em seus devidos lugares, da maneira mais coerente para o desenho

de cada caractere. Essa é uma maneira de não prender completamente a forma

das letras, de modo a preservar o componente orgânico e fluido característico do

período Art Nouveau.

A partir dos caracteres do rótulo, foram identificados e desenhados os três

módulos básicos, que serviriam de fundamento para toda a fonte. Foram

escolhidos, como pode ser observado na imagem seguinte:

a) a haste do A como módulo reto;

b) a terminal da perna do A como módulo para linhas inclinadas e

terminais;

c) um quadrante do bojo do O como módulo de curva;

De acordo com o experimento proposto por Buggy, todos os módulos podem ser

rotacionados e espelhados para atender as necessidades do desenho.

Para o módulo reto, foram consideradas variações com e sem a pequena serifa

triangular, como ele se apresenta originalmente no rótulo. A variação sem a serifa

tem como principal objetivo o uso na junção entre haste e linha.

Apesar de servirem para definir o visual da fonte, os 3 módulos iniciais não eram

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Page 25: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

suficientes para desenhar todas as letras de forma harmoniosa. Então, conforme

surgia a necessidade, um novo módulo era criado, com o cuidado de respeitar a

forma primária, da qual ele se originou. A imagem ao lado mostra a construção

de cinco módulos secundários, sendo dois triangulares, um curvo e dois retos, a

partir dos módulos primários.

derivação das letras

Como já mencionado na introdução, foi construída uma árvore

de derivação de caracteres para a Hidromel, para auxiliar seu desenvolvimento.

A árvore foi baseada no sistema proposto por Buggy, porém como já haviam

algumas letras disponíveis no rótulo, precisou ser completamente reorganizada.

As letras A e O passaram a ser as principais, e a partir delas foram derivadas

todas as outras. Os módulos criados para a Hidromel também influenciaram o

posicionamento de algumas letras. Por exemplo, como a letra A apresenta, em

seu desenho, o módulo reto, todas as letras com hastes retas passaram a ser

derivadas desta. A imagem na página seguinte mostra a árvore de derivação da

Hidromel. Nela podem ser verificadas as diferenças em relação ao modelo original

e as novas soluções encontradas para problemas específicos.

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Page 26: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

as letras

O desenho vetorial das letras foi feito usando o programa Adobe

Illustrator. O software é comumente mais indicado para trabalhos de ilustração,

mas foi escolhido como ferramenta para a Hidromel por possibilitar comparações

lado a lado entre duas versões da mesma letra e copiar e colar elementos de uma

letra para a outra com facilidade, o que seria mais trabalhoso num programa

específico para criação de fontes. Além disso, era possível ter uma visão geral do

conjunto, sem a necessidade de abrir uma nova janela de testes.

Posteriormente, os caracteres foram exportados para o programa FontLab, para

serem transformados em um arquivo de fonte funcional. No FontLab foi feito o

ajuste fino na forma das letras, além das definições de espacejamento e kerning,

que serão mostradas em detalhes a partir da página 55.

No alto, à direita, árvore de derivação proposta por Buggy (MECOTipo, p. 140, 141); abaixo, a

árvore criada para a Hidromel.

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Page 27: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

As imagens e parágrafos nas páginas seguintes mostram os detalhes do

desenvolvimento dos caracteres do conjunto de versaletes, divididos em grupos

de letras que se localizam nos mesmos ramos da árvore, e apresentam soluções

similares. Karen Cheng apresenta, em seu livro, uma organização similar para

o desenho das letras da caixa alta. Apesar de ser voltado para fontes de texto,

várias situações exemplificadas no livro se repetiram na criação da Hidromel, tais

como o uso do mesmo bojo para as letras O e C (Designing Type, 2005, p. 22; 32), os

mesmos ângulos e medidas para as letras A e V (Idem, p. 50) e o aproveitamento

da haste para as letras I, H, T, F e L (Idem, p. 48-49).

A imagem abaixo é um modelo de como será mostrada, ao longo das próximas

páginas, a construção das letras.

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Page 28: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

A, V, W e K

A letra A foi a primeira a ser desenhada. Suas formas vieram

do próprio rótulo, e deram origem a dois dos módulos primários da Hidromel. A

curva suave foi mantida, e a trave é composta apenas por uma linha fina, o que

confere leveza à forma. A partir do A veio a idéia de ter a opção do módulo reto

com suaves serifas triangulares dos dois lados ou de um lado só. O lado que não

apresenta a terminal é usado em toda a fonte para áreas de junção entre haste e

linha.

O V nada mais é que um A rotacionado e sem a trave. As duas letras, quando

postas lado a lado com os ajustes de kerning necessários, se complementam

harmoniosamente. O W herdou os mesmos módulos do A e do V, mas suas linhas

finas precisaram ser alteradas para que a letra não ficasse excessivamente larga.

O módulo triangular foi posteriormente ajustado a essa mudança na curvatura da

linha, para que a letra ficasse visualmente equilibrada.

A letra K é composta pelos mesmos elementos. A altura da linha curva foi

reduzida para formar o braço do K, e foi desenhada uma nova linha para a perna,

que ocupou o espaço restante. O módulo triangular precisou ser adaptado, para

que a parte de cima da letra ficasse mais leve visualmente, tornando o K estável e

equilibrado.

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Page 29: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

O, Q e D

A letra O estava presente no rótulo, e a partir dela foi desenhado

o módulo para formas arredondadas. Seu tamanho foi aumentado em relação ao

original do rótulo, para que seu peso visual ficasse equivalente ao do A, que dava

a impressão de ser maior.

A partir do O vieram as outras letras com bojo. O D é composto pelo mesmo

módulo circular e pelo módulo reto com serifa apenas em um dos lados. Foram

necessários ajustes na forma dos módulos na hora de uni-los às linhas finas (o

que aconteceu com grande maioria das letras arredondadas). O primeiro desenho

da letra conservava a mesma largura do O, mas dessa maneira o bojo ficaria

muito largo. Então, os módulos foram aproximados, proporcionando uma redução

sutil na largura da letra.

A letra Q é formada do O acrescido de uma cauda, para a qual foi necessário

desenhar um novo elemento, pois nenhum dos módulos existentes era

satisfatório. Era importante a coerência visual da cauda com o Q e com as outras

letras. Para desenhá-la, foram pesquisadas várias letras Q de fontes de diversos

estilos, para saber a solução de cada uma para o problema e avaliar qual forma

básica funcionaria melhor para a Hidromel. Foi preciso cuidado também para

que a cauda mantivesse a mesma largura média das hastes, para manter o peso

visual equilibrado.

28

Page 30: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

U e J

Para formar o U, foram necessários os módulos circular e o reto

com serifa dos dois lados. O primeiro desenho da letra apresentava a mesma

largura do O, por causa dos módulos curvos. No entanto, com essas proporções, o

U parecia excessivamente largo e os módulos não se encaixavam, pois a largura

do módulo curvo era maior que a do de linhas retas. Então, os dois módulos

foram ajustados para ter a mesma largura, e a letra sofreu uma pequena porém

significativa redução na largura.

A adaptação na largura dos módulos foi aproveitada na criação da letra J, que

foi desenhada a partir da metade direita do U, com o acréscimo de um módulo

novo, originalmente criado para a letra X, para a finalização de sua cauda. A

primeira versão da letra tinha a mesma altura das outras letras. Mas no decorrer

do processo, foi percebido um potencial de diferenciar o J das outras letras

tornando-o mais longo, estendendo sua cauda abaixo da linha de base, até

um ponto que permitisse o posicionamento da cauda abaixo das outras letras.

Apesar de ter usado a adaptação nos módulos, a versão final da letra acabou

conservando a largura do módulo reto original na sua haste, o que a deixou mais

esguia e elegante.

29

Page 31: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

I e H

A forma dessas duas letras é a mais simples do alfabeto da

Hidromel. Foram compostas basicamente por módulos retos. O I usa o módulo

com serifas em todas as extremidades. No caso do H, foi usada uma lnha reta

perpendicular para unir as duas hastes. A altura da barra do H, nas suas primeiras

versões, era igual à do A. Mas isso deixava seu peso visual desequilibrado,

com muito espaço em branco na parte de cima. Então, a barra foi deslocada

exatamente para o centro das hastes, resolvendo o problema.

S

A letra S, mostrada acima, possui estrutura diferente de todas

as outras. Ela não usa módulos retos nem curvos, e o desenho do S presente

no logotipo original também não foi aproveitado, por apresentar problemas

de harmonia e equilíbrio visual com as outras letras. Em vez disso, foi criada

uma forma nova para sua espinha, que procura manter o mesmo peso visual

e espessura do módulo curvo. A letra foi composta usando a espinha e o novo

módulo triangular, criado para as letras E, F, T e L. Foi dada atenção especial

ao posicionamento e alinhamento dos pontos na curva, e houve o cuidado de

manter apenas a mínima quantidade possível de pontos, em favor da harmonia

da forma do S.

30

Page 32: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

C e G

A letra C se originou da junção do módulo circular com um

triangular secundário, usado pela primeira vez na terminação do S. Esse porém,

foi apenas o ponto de partida. O C formado pelos módulos, sem nenhuma

compensação visual, parecia desequilibrado, como se fosse cair para a esquerda a

qualquer momento: o lado esquerdo (curvo) apresentava peso visual bem maior

que o direito, com pequenos módulos triangulares.

A forma dos módulos foi, então, completamente redesenhada, para dar equilíbrio

à letra. Surgiram dúvidas sobre a necessidade de transformá-la em mais um

módulo, mas optei por deixá-la apenas como uma adaptação, pois não seria

usada em outras letras posteriormente.

O G, assim como o C, faz uso dos módulos redondos em seu bojo. Para formar a

garganta da letra, foi preciso criar uma nova forma, resultante da junção entre

os módulos reto e curvo. A simples combinação dos módulos resultava numa

garganta desproporcionalmente alta, então o módulo cruvo foi cortado, e as duas

formas foram ajustadas para que se encaixassem. Como ocorreu com várias

outras letras, na fase de ajustes finais, os ângulos agudos das terminações na

garganta foram cortados, deixando a forma do G mais suave.

31

Page 33: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

M e N

A primeira versão da letra N consistia em duas hastes formadas

pelo módulo reto unidas por uma linha curva semelhante à usada nas letras

A e V. O formato do N, porém, ficou muito similar ao do H, o que poderia gerar

problemas de legibilidade. Então, foi feita uma adaptação do módulo reto na

extremidade inferior da haste direita, tornando a junção entre a diagonal e a

haste mais harmônica, e diferenciando o N do H. A terminação curva se estende

um pouco além da linha de base, para compensar visualmente a redução no

tamanho da haste.

Surgiram problemas também no desenho do M. A primeira alternativa consistia

em um W rotacionado em 180 graus, o que não funcionou, pois a forma era

pesada e desequilibrada. Foram feitas diversas tentativas seguindo a mesma

idéia, mas nenhuma parecia satisfatória. A solução foi criar uma nova forma

triangular, menor e mais estreita, formada pela interseção das duas curvas,

sem tocar a linha de base. Com essa solução, a letra finalmente ganhou leveza e

equilíbrio.

32

Page 34: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

P R e B

Para desenhar as letras com bojo menor, foi necessária a criação

de um novo módulo, a partir do módulo circular. O módulo serviu para os bojos

do P, do R e o bojo maior do B. A largura das 3 letras é igual à do D.

A letra P foi feita unindo o novo módulo curvo a uma haste reta. Foram

necessários pequenos ajustes na junção entre o módulo e a linha fina que

completa a forma da letra.

Para a perna do R, foram usados os mesmos elementos do P, com a adição de um

módulo triangular. A largura da perna é ligeiramente maior que a do bojo. Assim,

o peso visual das partes superior e inferior da letra fica equivalente, e o R fica

estável. Essa solução é muito comum no desenho do R, em várias tipografias.

Para criar o bojo menor da letra B, foi necessário adaptar novamente a forma do

módulo curvo, pois o novo módulo criado era muito grande para ser repetido duas

vezes na mesma letra. Então, foi criada uma nova forma, menor e um pouco mais

estreita que o módulo.

33

Page 35: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

T, F, E e L

As letras com traves e braços horizontais tiveram soluções muito

parecidas entre si. Todas fazem uso do módulo reto, e, nas primeiras versões, do

módulo triangular, usado nas terminações da trave do T e nos braços das letras

L, E, e F. Porém, o tamanho do módulo era excessivamente grande, então foram

feitos testes de rotação e escalonamento. Ainda não era a solução. A angulação do

módulo funcionou muito bem na composição de letras inclinadas (A, V, R, K), mas

não era uma boa alternativa para letras essencialmente retas. Foi criado então

mais um módulo, um triângulo retângulo (composto por um ângulo reto e dois

ângulos agudos) com um de seus lados côncavo, de dimensões menores que o

módulo triangular original.

O novo módulo foi usado nos dois lados da trave do T, nos braços do E e do F e na

perna do L. Posteriormente, o elemento serviu também para a letra S.

A letra E tem os braços superior e inferior do mesmo tamanho. O braço do meio

é menor e foi construído com um novo elemento triangular, com dois lados

côncavos, semelhante a uma serifa triangular. Esse elemento foi usado também

no braço menor do F.

34

Page 36: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

X. Y e Z

As letras X, Y e Z são formadas basicamente por ângulos agudos

e hastes inclinadas, e apesar de terem sido encontradas soluções satisfatórias

para outras letras com essas mesmas características (A, V, W), nenhum dos

módulos existentes parecia ser indicado para a forma das últimas letras do

alfabeto. O uso dos módulos triangulares unidos por linhas finas proporcionava

formas frágeis e com pouco peso visual, se comparadas às outras letras, que

possuíam hastes retas como estrutura. O uso do móodulo reto nessas letras

estava fora de questão, pois a forma intrínseca das letras não comportaria um

componente vertical sem comprometer sua estrutura.

No início houve uma certa resistência em criar um novo módulo apenas para

essas três letras, por pensar que a unidade da fonte poderia ser prejudicada.

Mas a solução encontrada, de inclinar em 38 graus o módulo reto e ajustar suas

serifas, resolveu o problema. E embora essas letras sejam bem diferentes das

demais, ainda são percebidas como parte do mesmo conjunto.

35

Page 37: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

abcdefghijklmnopqrstuvwxyz

Conjunto completo de versaletes, 110/120 pt.

36

Page 38: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

versais

O conjunto das versais da Hidromel seguiu a mesma estrutura

básica das versaletes, desenhadas anteriormente, e teve como principal

referência estética a forma das letras S e J originais do rótulo. Os elementos

que mais diferenciam as letras maiúsculas das minúsculas são as volutas, os

ornamentos circulares e as linhas menos rígidas. Optei, então, por usar tais

características em quantas letras fosse possível, para que se pudesse discernir

um conjunto de letras do outro. Alem disso, a grande particularidade das letras do

rótulo de hidromel São João estava na presença desses elementos pouco usuais, e

seu uso tornaria a fonte mais interessante visualmente, e mais condizente com a

inspiração original.

Durante a análise do rótulo, observei que a diferença de tamanho entre as versais

e as versaletes era muito pequena. A altura das versaletes correspondia a 85% da

altura das versais. Se fossem mantidas as mesmas proporções, a única diferença

entre os dois conjuntos seria a presença de ornamentos. A decisão de aumentar

o tamanho das versais em 37% resultou numa proporção de 62% de altura das

versaletes em relação às versais, dentro da média recomendada pela maioria dos

designers de tipos para fontes de texto, entre 60 e 65% (Cheng, 2005, p. 76).

Alteração das proporções entre versais e versaletes.

37

Page 39: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

os módulos

Para o desenho das versais, foram criados novos módulos de

construção. Afinal, o conjunto teria que se diferenciar das versaletes de alguma

maneira. Foram desenhados dois novos módulos a partir dos ornamentos das

letras S e J presentes no rótulo, e a combinação deles com os módulos reto, curvo

e triangular usados nas versaletes resultou em mais 4 módulos.

Um dos novos módulos foi criado tendo como base o elemento ornamental

presente no rótulo, o do S. A idéia do círculo unido à linha fina presente nas

hastes foi, então, combinada com os módulos já existentes e adaptada para a

aplicação em outras letras. Dele, surgiram os módulos secundários, que foram

usados na grande maioria das versais. O ornamento presente na cauda do J

também se transformou num módulo, apesar de a forma original da letra ter

sido alterada posteriormente. O módulo foi escalonado para ser usado como

uma espécie de terminal em várias letras. A imagem a seguir mostra a lógica da

criação dos módulos para as versais.

O sistema de combinação de módulos seguiu a mesma lógica presente na

construção das versaletes, de serem unidos entre si através de linhas finas, para

manter a fluidez formal característica do Art Nouveau.

Criação de novos módulos ornamentais para as versais.

38

Page 40: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

as letras

O desenho das versais usou a mesma estrutura de construção

das versaletes, acrescida dos já mencionados elementos ornamentais, para que

os dois conjuntos pudessem ser diferenciados. A imagem abaixo apresenta a

semelhança da estrutura entre algumas letras versaletes e suas correspondentes

capitulares.

Por conta dessas semelhanças estruturais, não há necessidade de detalhar o

processo de criação das versais letra a letra, como foi feito com as versaletes, pois

muitas das informações seriam simplesmente repetidas. Porém, em algumas

situações específicas, a estrutura das versais foi significativamente alterada em

relação à das versaletes, por razões estéticas. É o caso das letras S e J, presentes

no rótulo de hidromel, e as letras E, F e M, cuja construção baseada no desenho

das versaletes não funcionou muito bem. Esses casos especiais serão relatados

nas páginas seguintes.

Elementos em comum entre versais e versaletes.

39

Page 41: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

J

A letra J presente no rótulo serviu como referência para o

desenho de várias outras, mas sua forma foi alterada quase que completamente.

A partir da vetorização da letra presente no rótulo, inicialmente, foram feitos

apenas pequenos ajustes na curva principal e no tamanho da barra superior, para

equilibrar melhor o peso visual. Contudo, a estrutura da letra apresentava um

problema grave: fora do contexto do rótulo, o J se tornava difícil de identificar,

podendo ser confundida com um I maiúsculo extremamente rebuscado.

Para resolver o problema, a curva sinuosa foi abandonada, e o J ganhou uma

cauda que se estende abaixo da linha de base, a partir de uma haste reta com

ornamento na extremidade. A parte superior da letra é semelhante à do I,

finalizada com um módulo triangular.

S

A outra versal presente no rótulo, o S, também sofreu alterações

significativas. Logo na primeira vetorização do logotipo original, percebi que

a forma precisava de ajustes. A espinha tinha uma parte de seu desenho reta,

provavelmente desenhada com o auxílio de uma régua, que quebrava a harmonia

40

Page 42: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

do desenho. A espinha foi, então, completamente redesenhada, tendo como

principal referência de proporção e peso visual o módulo curvo e a espinha do

S versalete. O ornamento superior foi o que deu origem a todos os módulos

ornamentais da fonte, e também teve seu desenho alterado. O triângulo na

extremidade inferior esquerda foi substituído por um dos módulos triangulares

desenhados durante o processo de criação das versaletes. Com essas medidas, a

letra ganhou equilíbrio e harmonia com o resto do conjunto.

E e F

Durante o processo de desenho do E, ilustrado na página

seguinte, notei que a letra parecia demasiado reta e pesada em relação às outras

versais, que apresentavam fluidez e harmonia nas formas. Mesmo acrescentando

o ornamento circular, a letra ainda parecia não fazer parte do conjunto. A

solução veio através da análise de outras tipografias que apresentam versais com

ornamentos e floreios. A maneira como o problema foi resolvido em algumas

delas, em especial as de estilo French Script, pareceu satisfatória para o caso da

Hidromel.

A letra E, então, foi construída com um novo desenho, com características mais

caligráficas, tendo como estrutura módulos curvos, em vez de retos, mas ainda

preservando a ligação estética com os outros caracteres da Hiromel. As relações

41

Page 43: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

de largura e altura, o contraste e o uso dos elementos ornamentais comuns às

outras letras fizeram com que o desenho do E não ficasse deslocado do conjunto.

O mesmo ocorreu com a letra F, cuja primeira versão foi desenhada com a mesma

estrutura do E antigo, e também não parecia se encaixar no conjunto das versais.

A solução encontrada, neste caso, foi, ao invés de usar o E como referência,

aproveitar a forma de outras versais criadas com sucesso através de módulos

retos, como o I e o T. A versão final do F usa o módulo reto na haste e módulos

triangulares na barra superior, que conferem movimento e equilíbrio à forma.

42

Page 44: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

M

O desenho da letra M foi um dos mais difíceis do conjunto das

versaletes, e não foi diferente com as versais. A estratégia de usar a mesma

estrutura das versaletes não funcionou, a presença dos ornamentos parecia

não fazer sentido na forma da letra. Optei então por tentar a mesma técnica

usada para desenhar outras letras problemáticas: procurar similares em outras

tipografias e analisar como foi resolvido o problema naqueles casos. Mais uma

vez, a fonte que apresentou a melhor solução foi a French Script. Suas formas

rebuscadas inspiraram o desenho das linhas e da haste direita do M, que é

uma curva, desenhada sem seguir a forma dos módulos, apenas respeitando as

proporções de peso da letra, finalizada com um ornamento circular.

43

Page 45: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ

Conjunto completo de versais, 90/120 pt.

44

Page 46: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

numerais

O desenho dos 10 algarismos foi uma tarefa mais simples do

que a construção das letras. A principal estratégia para esta etapa do projeto foi

procurar letras que tivessem alguma semelhança com a forma dos números, e

usá-las como referência. Os algarismos foram desenhados utilizando diversos

módulos presentes nas letras, mas boa parte das formas precisou ser desenhada

totalmente, desde o começo.

Os elementos da letra B, por exemplo, serviram como base para os números 3

e 8, e foram usados ainda em outros algarismos com bojo, como o 5, o 6 e o 9.

Porém, a forma do bojo precisou ser alterada para que o peso dos números ficasse

mais equilibrado. O mesmo aconteceu com o módulo redondo, proveniente da

letra O, que foi redimensionado e adaptado para uso no 0, deixando o algarismo

mais estreito que a letra. Essa diferenciação foi intencional, para que os dois não

fossem exatamente iguais, dificultando o entendimento em alguma situação de

uso da Hidromel. O módulo curvo, já com os ajustes, foi utilizado também nos

algarismos 6 e 9.

45

Page 47: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Os algarismos 2 e 7 tiveram como base para seu desenho a letra Z. O ângulo

de inclinação foi alterado em ambos os casos, para dar equilíbrio à forma.

Na construção do 2, o módulo ornamental foi adaptado para compor a curva

superior.

O módulo reto foi usado nos números 1, 4 e 5. Na extremidade superior do 1, foi

acrescentada uma pequena espora, que serve apenas para caracterizar o número.

Para compensar o déficit visual causado pelo ângulo agudo, foi necessário um

aumento discreto na altura do algarismo.

Para o braço do 4, após várias tentativas não satisfatórias com módulos retos e

triangulares, a melhor solução encontrada foi criar um novo elemento, baseado

no módulo reto, mas com uma curva no lado esquerdo, que dá elegância e

equilíbrio ao desenho, além de deixar a forma mais próxima das referências

estruturais do Art Nouveau.

46

Page 48: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

A altura dos algarismos foi definida apenas após terminado o desenho. Foram

feitos testes em 3 alturas diferentes: uma opção com a mesma altura das versais,

outra numa altura intermediária entre as versais e as versaletes, e uma última

versão com a altura das versaletes. A imagem abaixo mostra as diferentes

relações possíveis entre números e letras.

Após compor pequenos textos com palavras e numerais, verificou-se que a

melhor opção para o tamanho dos algarismos seria seguir a proporção de 10/12

entre versaletes e numerais, a intermediária na imagem acima. Foram feitos

ainda pequenos ajustes na largura dos algarismos, para obter unidade visual

entre as letras e os números.

A linha vermelha indica o

tamanho dos numerais em

relação às versais e versaletes.

Um dos testes de relação entre numerais e letras. Hidromel 52 pt.

Conjunto de numerais, 90 pt.

47

Page 49: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

caracteres especiais

O desenho dos caracteres básicos (letras e números) da Hidromel foi concluído,

mas a tipografia não estaria completa sem os diacríticos e os principais caracteres

não-alfabéticos (pontuação e símbolos). Os parágrafos seguintes relatam a

definição do escopo desses caracteres adicionais e seu processo construtivo.

diacríticos

Um diacrítico é um sinal gráfico que se coloca sobre, sob ou

através de uma letra para alterar o seu som, denotar tonicidade ou marcar

qualquer outra característica linguística. Antes de começar a desenhar os

diacríticos, foi necessário definir quais realmente seriam necessários para o

funcionamento da Hidromel, já que existem mais de 200 caracteres dese tipo

apenas no alfabeto latino (Bringhurst, 2005, p. 315-323). Optei por criar os sinais

presentes no alfabeto latino básico (acentos grave, agudo e circunflexo, til e

trema), e apenas para as versaletes. As formas rebuscadas das versais entrariam

em conflito, em alguns casos, com os diacríticos. Além disso, levando em conta o

fato de que esta é uma tipografia display, versais acentuadas não estão entre os

usos previstos mais frequentes da fonte. Então, para evitar problemas formais,

optou-se por reservar os diacríticos para as versaletes.

O desenho dos diacríticos foi pensado desde o começo como um complemento

para a forma das letras. Todo o processo de criação desses sinais levou em conta

seu uso em conjunto com as letras, e não apenas as formas isoladas.

Para o desenho dos acentos grave e agudo, mostrados na página seguinte, a

primeira alternativa testada foi o uso de um dos módulos triangulares presentes

nas letras, mas o tamanho e a angulação destes não resultava numa boa

combinação com as letras. A solução foi desenhar novas formas para os acentos,

com um lado reto e o outro com uma leve curva, para dar movimento e leveza

ao conjunto formado por letra e acento. A forma dos dois acentos é igual, apenas

espelhada.

48

Page 50: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Procurei usar a mesma forma dos acentos grave e agudo na construção do acento

circunflexo. Seu primeiro desenho era formado pela forma de dois acentos (agudo

e grave) rotacionados e unidos. Foram feitas várias alternativas nesse mesmo

conceito, mas nenhuma parecia satisfatória. Por fim, a idéia foi descartada, e

circunflexo foi construído com uma nova forma, mais convencional, apenas com

linhas retas e um ângulo interno que mantivesse seu peso visual equivalente ao

dos outros diacríticos.

O trema é composto simplesmente por dois círculos perfeitos. O til teve sua

forma inspirada na cauda do Q. Foram feitas várias alternativas até chegar à

forma ideal, uma derivação da forma da cauda, com curvas um pouco mais

fechadas.

49

Page 51: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Conjunto de

caracteres

acentuados.

Hidromel 90 pt.

50

Page 52: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

símbolos

Para definir quais caracteres seriam realmente necessários

no conjunto de símbolos, foi levado em conta o estilo da Hidromel e o fato de

estar projetando uma tipografia display. Como seus usos mais prováveis não

envolvem textos longos nem documentos comerciais ou matemáticos, o conjunto

de símbolos não-alfabéticos ficou resumido aos sinais de pontuação, chaves,

colchetes e parênteses, asterisco e alguns caracteres fáceis de ser derivados de

letras já presentes no alfabeto.

O caractere & teve suas formas derivadas diretamente da letra E do conjunto das

versais. Para sua construção, busquei também referências em outras fontes, para

analisar qual a melhor forma possível para o caractere, que é um dos que mais

podem variar entre uma fonte e outra. A decisão de desenhar o & semelhante ao

E maiúsculo foi tomada, em grande parte, por conta da praticidade em usar os

mesmos elementos, apenas reorganizando-os.

Para converter o E em &, seus módulos foram deslocados, para que a forma

pudesse comportar um novo elemento que completa a forma do “et”, derivado do

próprio módulo ornamental presente na letra. A altura do caractere foi reduzida,

para diferenciá-lo ainda mais da letra da qual se originou.

51

Page 53: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

A criação dos caracteres $ e ¢, derivados, respetivamente, das letras S e C do

conjunto de versaletes, foi mais simples. Bastou adicionar o traço vertical, de

espessura um pouco maior que o contorno do caracteres, e fazer pequenas

alterações e compensações visuais na forma das letras originais. No caso do ¢,

as dimensões da letra C foram reduzidas. Já no desenho do $, as terminações

triangulares foram substituídas por pequenos módulos ornamentais.

Os colchetes [] foram criados a partir do módulo reto, com um prolongamento da

terminação em linha reta. Os parênteses () são formados por proporções alteradas

do módulo curvo. As chaves {}, por terem características peculiares, foram

desenhadas com novas formas, mas seguindo as mesmas proporções de peso e

contraste dos demais caracteres. Esses três pares de caracteres foram construídos

para comportar versais e versaletes, sem parecer muito pequenos para umas,

nem grandes demais para outras.

52

Page 54: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

sinais de pontuação

O asterisco é formado pela repetição e rotação de um dos

módulos triangulares usados na tipografia. Os ângulos do módulo foram

ajustados para que a forma pudesse se equilibrar.

O ponto [.], as reticências [...] e o sinal de dois pontos [:] são formados por círculos

perfeitos. A vírgula [,] e o ponto e vírgula [;] seguem o mesmo princípio, com a

adição de uma pequena cauda saindo do círculo. A vírgula deu origem às aspas

simples [‘’] e duplas [“”]. Foram desenhadas também aspas francesas, que foram

derivadas da forma do acento circunflexo, rotacionado e redimensionado.

O ponto de interrogação [?] usa um dos módulos ornamentais, com a forma

adaptada para a construção de sua espinha. A exclamação [!] foi desenhada com

peso semelhante ao das hastes das letras, em sua parte mais grossa. Ambos

os caracteres terminam com uma linha fina na parte de baixo, para manter a

conexão com os outros caracteres da Hidromel. A altura desses dois caracteres

acompanha a das versais, Na página seguinte é possível ver um teste rápido feito

com os sinais de pontuação.

53

Page 55: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Teste com os sinais de pontuação.

Hidromel 52 pt.

54

Page 56: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

espaçamento e kerning

As últimas etapas da criação de uma fonte são os ajustes de

espaçamento (limites horizontais das letras) e kerning (ajustes especiais entre

alguns pares de letras). O espaço entre as letras é normalmente definido pelos

limites horizontais, que determinam a largura do caractere. Essa largura pode ser

maior, igual ou menor que o desenho da letra. Ao definir os limites horizontais de

um caractere, o caractere seguinte só poderá ser posicionado após esse limite. A

imagem a seguir exemplifica essa relação.

espaçamento

O ajuste de espaçamento de cada caractere é feito visando

a melhor relação possível entre as letras, e também entre a letra e o espaço

em branco à sua volta. Existem ajustes métricos automáticos nos softwares de

desenho de tipos, que são um ótimo ponto de partida para o espaçamento.

No caso da Hidromel, foi definido um ajuste de 0 unidades à esquerda do desenho

e 50 unidades à esquerda. No software FontLab, usado neste trabalho, 1 unidade

Interface do software Fontlab, mostrando as definições dos limites horizontais de duas letras.

55

Page 57: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

corresponde a 1/1000 de M 3. Esses valores foram posteriormente alterados em

alguns caracteres específicos.

As letras de formas arredondadas (O, D, Q, C) tiveram as margens direita e

esquerda reduzidas, pois visualmente ocupam menos espaço na página, deixando

mais áreas em branco (Buggy, 2007, p. 144, 145). O mesmo aconteceu com a letra

Y, que é mais estreita na parte inferior, dando a ilusão de ocupar menos espaço.

Essas letras ficaram com parâmetros de -3 unidades à esquerda e 45 unidades à

direita.

3 O M, ou “Em” é uma unidade de medida tipográfica, que define a proporção de largura e

altura da letra em relação ao tamanho da fonte. Inicialmente, a unidade foi derivada da

largura da capital “M” em uma tipografia particular. Mas atualmente, esta unidade não é

definida em termos de uma fonte específica e, portanto, é a mesma para todas as fontes

em determinado tamanho. Assim, em uma em uma fonte de 16 pontos, o M corresponde

a 16 pontos.

Tela de ajustes métricos, no programa Fontlab. Para definir

o espaçamento entre as letras, usei um teste recomendado

por Buggy em seu livro (2007, p. 154, 155), indicado para

esta etapa do projeto.

56

Page 58: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

kerning

Alguns pares de letras específicos apresentam problemas,

mesmo quando seu espacejamento é definido da melhor maneira possível.

São caracteres que, por suas características intrínsecas, deixam espaços muito

maiores ou muito menores do que o normal, quando situados junto a outras

letras. É o caso dos pares AV, AW, LW, entre outros. Uma letra especialmente

problemática é o T maiúsculo, que precisa de ajustes com todas as vogais e boa

parte das consoantes. Para esses casos, é necessário fazer ajustes de kerning.

Kerning é o ajuste individual do espaço entre duas letras específicas, para

compensar o excesso ou a escassez de espaço entre as mesmas, derivados do

desenho desses caracteres em particular. Existem, nos softwares de desenho de

fontes, algumas alternativas de ajuste automático dos pares de kerning mais

comuns. No caso da Hidromel, o kerning foi feito manualmente. Por ser uma

tipografia display, projetada para ser usada em tamanhos maiores, foi necessário

um cuidado redobrado com o espaço entre as letras, já que quanto maior o corpo

da fonte, mais evidentes são os problemas no espaçamento entre as letras.

O kerning da Hidromel foi feito primeiro com pares de letra específicos,

mais conhecidos por apresentarem problemas. Depois, foram ajustadas as

combinações mais prováveis entre vogais e consoantes. Por fim, todas as letras

foram combinadas entre si, para checar o espaço entre elas.

Muitas combinações precisaram de ajustes, especialmente entre as versais, por

causa dos ornamentos característicos da fonte. Não era raro ver um choque entre

extremidades de duas letras, mesmo que suas relações estivessem harmônicas

com todo o resto do conjunto de caracteres.

Exemplo de diferença entre um par

de letras sem kerning, apenas com

o espaçamento normal (esquerda) e

com kerning (direita).

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Depois de combinar versais e versaletes, as letras foram combinadas aos

números, sinais de pontuação e símbolos.

Tela de ajustes métricos do Fontlab. Processo de ajuste

de kerning entre duas letras.

Visão geral do espaçamento e kerning

entre a letra E versalete e as versais.

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Page 60: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

testes

Os testes com os caracteres da Hidromel não foram feitos de ma-

neira isolada, apenas após ter concluído o desenho de todas as letras, números e

símbolos. Para cada caractere desenhado foi feita uma análise junto com outros

já existentes, e cada pequena etapa do desenvolvimento da tipografia era seguida

por testes rápidos de palavras, para que assim eu pudesse me certificar que o pro-

jeto estava no caminho certo. A relação entre as letras, o equilíbrio e a consistên-

cia visual eram constantemente verificados.

Essa estratégia de testar as letras ao longo do processo funcionou muito bem,

pois as situações problemáticas foram identificadas e corrigidas sem que uma

decisão errada afetasse a construção das próximas letras. É provável que o

resultado final da Hidromel fosse bem diferente se a análise das relações entre

as letras ocorresse apenas com o conjunto de caracteres pronto. A imagem na

página seguinte mostra alguns dos testes realizados ainda durante a construção

da Hidromel.

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Área de trabalho do Illustrator, com alguns testes de palavras, ainda durante o processo de

construção das letras.

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Page 62: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Após concluído o desenho dos caracteres e os ajustes de espaçamento e kerning,

foram feitos testes rápidos utilizando frases diversas, como o clássico teste “The

quick brown fox jumps over the lazy dog”, que contém todas as letras do alfabeto,

bem como a versão em português, proposta pela professora Priscila Farias e

recomendada por Buggy em seu livro (2007, p. 151): “Zebras caolhas de Java querem

mandar fax para moça gigante de New York”. A sentença não faz o menor sentido

do ponto de vista semântico, mas se aplica à situação da Hidromel melhor que

a frase em inglês, pois contempla relações que são bastante comuns na escrita

em português, como as combinações “as”; “an”; “br”, “lh”, entre outras. Ambos os

testes podem ser vistos nas imagens abaixo.

Teste com a Hidromel em vários tamanhos.

Teste de

entrelinhamento.

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Page 63: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Nesses testes, foi possível analisar o equilíbrio visual, a uniformidade das

relações de forma e contraforma e a coerência da tipografia como um todo.

Algumas letras sofreram pequenos ajustes em suas formas, foram úteis também

para definir o entrelinhamento padrão da Hidromel. Para isso, precisaram ser

consideradas as letras com cauda e ornamentos que se estendiam além dos

limites normais da fonte (linha de base e linha da caixa-alta). Após os testes, a

relação entre corpo e entrelinha foi definida em 1/1,16

Numa segunda etapa, a Hidromel foi testada novamente, dessa vez impressa e

usando todas as letras, números, símbolos e sinais de pontuação. O intuito desses

últimos testes foi o de encontrar no papel alguma situação que houvesse passado

despercebida na hora dos ajustes. Esse teste foi feito usando diversos textos,

inclusive o deste trabalho de graduação. Foram usados também blocos de “blind

text”, como são chamados os textos feitos apenas para preencher espaço num

projeto de diagramação (um exemplo bem conhecido destes é o Lorem Ipsum).

Esses textos trazem caracteres variados, e combinações de letras, números e

símbolos pouco comuns, mas que podem aparecer eventualmente num texto.

Essa etapa foi repetida várias vezes, com textos diferentes, até ser muito difícil

encontrar erros e problemas visíveis no espaçamento da Hidromel.

Teste com blind text. Hidromel 14 pt.

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Page 64: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Terminada a fase de testes, a tipografia pôde ser considerada pronta e funcional.

Após os últimos ajustes no FontLab, foi gerado um arquivo de fonte TrueType.

As imagens na página seguinte apresentam o espécime da Hidromel Outline, o

conjunto de caracteres e sua apresentação em diversos tamanhos.

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Page 65: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas
Page 66: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Conjunto de caracteres, Hidromel Outline 60 pt.

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Page 67: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

hidromel solid

Como dito anteriormente, a idéia inicial para o projeto da

Hidromel era desenvolver duas versões da fonte, uma com o contorno e outra

com o preenchimento, com o intuito de atingir o mesmo efeito visto no rótulo

de Hidromel São João: a possibilidade de usar a tipografia em duas cores,

proporcionada pela sobreposição de duas matrizes. Com o projeto da Hidromel

Outline terminado, criar a partir dela a nova versão, batizada de Hidromel Solid,

foi uma tarefa trabalhosa, porém simples.

A forma de todos os caracteres e os ajustes métricos (espaçamento e kerning) já

estava definida. Foi necessário apenas remover todas as partes vazadas das letras

e reduzir suas bordas, para minimizar o ganho de pontos e os riscos de erros de

registro na impressão em duas cores. A imagem na página seguinte ilustra todos

os passos necessários para criar uma letra da Hidromel Solid a partir da versão

Outline.

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Page 68: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Diferente da versão presente no rótulo, que consiste apenas nos campos de

preenchimento e não posui hastes nas letras, a Hidromel Solid também pode

funcionar sozinha, sem a versão outline por cima, desde que seja em tamanhos

maiores. Com a redução da espessura das linhas, que já eram finas na versão

outline, o contraste é muito alto, podendo causar desconforto na leitura de textos

longos e problemas de legibilidade em tamanhos inferiores a 24 pt. As imagens

nas páginas seguintes apresentam a Hidromel Solid.

Criação da Hidromel Solid a partir da Hidromel Outline.

Hidromel Solid e Hidromel Outline

sobrepostas. É possível notar a

diferença entre as bordas, ajuste feito

para evitar erros de registro.

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Page 69: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas
Page 70: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

Conjunto de caracteres, Hidromel Solid 60 pt.

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Page 71: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

aplicações

Para demonstrar as possibilidades de uso da Hidromel, foram

criadas algumas aplicações, que põem à prova a eficácia da fonte em situações

diversas.

O cartaz para um festival de música francesa, mostrado na página seguinte,

foi escolhido por ser uma peça gráfica mais livre, cujo objetivo principal é

chamar atenção para o que está sendo divulgado, além da possibilidade de usar

tamanhos de fonte maiores, dadas as dimensões desse tipo de impresso.

É possível ver que a Hidromel pode ser o principal elemento de uma peça gráfica,

e o cartaz faz uso de diferentes combinações entre os dois estilos da tipografia.

É possível usá-las sobrepostas com a mesma cor, para dar peso e legibilidade à

Hidromel Solid, possibilitando seu uso em tamanhos um pouco menores.

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Page 72: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas
Page 73: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

A página de um livro de receitas, exibida abaixo, mostra que a Hidromel pode

ser combinada com outras tipografias, gerando um resultado interessante

e harmonioso. Aqui, ela é usada apenas em títulos e áreas de destaque. A

fonte usada nos textos é a Rotis, fonte de texto serifada humanista. Seu traço

levemente modulado se contrapõe ao alto contraste da Hidromel, conferindo

equilíbrio à página.

Page 74: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

conclusão

Este trabalho de graduação apresentou o desenvolvimento de

uma tipografia display inspirada em um dos rótulos litográficos da Oficina Guai-

anases de Gravura. O rótulo em questão foi o de Hidromel São João, escolhido por

apresentar um letreiramento característico da época (década de 1920), de estética

influenciada pelo movimento artístico Art Nouveau, e com soluções interessantes

para a construção das letras.

No desenvolvimento da tipografia, que ganhou o nome de Hidromel, procurei

manter as principais características observadas nas letras do rótulo. Os módulos

usados na construção dos caracteres, extraídos diretamente do rótulo, ajudaram

a transportar as raízes estéticas do lettering para a fonte, e a manter coerência

visual entre todas as letras, mesmo tendo um conjunto reduzido – apenas quatro

letras – como base para o desenho de mais de 100 caracteres.

Outra ligação forte da Hidromel com as matrizes litográficas é o fato de possuir

dois estilos – Outline e Solid –, através dos quais é possível reproduzir o efeito de

sobreposição de matrizes, acrescentando a possibilidade de uso da fonte em duas

cores.

A experiência de projetar uma tipografia baseada em material já existente,

amparada por uma pesquisa histórica e estética aprofundada e usando diversas

bases metodológicas eficientes foi um exercício de dedicação e paciência. Mas

acima de tudo, foi um trabalho instigante, que não teria sido concluído sem a

paixão por tipografia, despertada nos últimos anos, e a vontade de ver a fonte

sendo usada para os mais variados propósitos.

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Page 75: Hidromel - uma tipografia digital com raizes litograficas

referências

BUGGY, L. A. C. - MECOTipo. Edição do autor, 2007

CHENG, Karen - Designing Type. Yale University Press, 2005

BRINGHURST, Robert - Elementos do Estilo Tipográfico. Cosac Naify, 2005

CARDOSO, Rafael - Uma Introdução à História do Design. Edgard Blücher, 2004

LOPES, Fabio - O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação

Caligráfica. UERJ, 2009

ARAGÃO, Isabella; BARRETO CAMPELLO, Silvio; RAMOS, Hermano; SAMPAIO,

Mariana - Catalogação e Análise dos Rótulos de Aguardente do Laboratório

Oficina Guaianases de Gravura. Anais do 8o Congresso Brasileiro de Pesquisa e

Desenvolvimento em Design. São Paulo, 2008.

WIKIPÉDIA, Litografia - Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Litografia

WIKIPÉDIA, Hidromel - Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Hidromel

WIKIPÉDIA, Diacríticos - Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Diacríticos

Blind Text Generator - Disponível em http://www.blindtextgenerator.de/

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