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 HIERARQUIA E DISCIPLINA Debruço-me em algumas reflexões acerca do movimento reivindicatório a que se lançaram alguns militares do CBMERJ. Faço-o sob dois ângulos distintos, a saber: o de sua legitimidade, de um lado; e o da sua legalidade, de outro. Quanto ao primeiro, é uníssono o sentimento de injustiça que perpassa a situação dos bombeiros. Profissionais que integram uma corporação centenária, a qual goza da mais alta estima da população, pelo caráter nobre da sua missão e, sobretudo, da galhardia com que se investem seus integrantes na consecução da tarefa que abraçaram: vida alheia e riquezas salvar. Não à toa o justo título de heróis que lhes foi outorgado pela sociedade. É efetivamente inadmissível que a contrapartida dessa arriscada atuação seja um vencimento tão parco que os obrigue a literalmente passar necessidades. Assim, desde logo, irmano-me na sua luta por dignidade. Serve o movimento literalmente como um alerta para a dramática situação, bem delineada nos seus momentos altos como um pedido de socorro às avessas, porquanto originado exatamente daqueles que ordinariamente o atendem e destinado àquela que normalmente o emite   a sociedade. Assim, tenho por legitimado o movimento. No que tange à sua legalidade, o movimento não encontra respaldo normativo, seja do ponto de vista penal, administrativo ou civil. E não preciso esforçar-me muito para alcançar tal conclusão. Quaisquer que sejam os movimentos reivindicatórios, eles não autorizam a prática de atos que consumem danos ao patrimônio público ou de terceiros, permitindo-se, em tal hipótese, que a Administração Pública invista contra o seu servidor (ou militar) para que os prejuízos causados sejam indenizados. Do ponto de vista criminal, fossem as ações consentâneas com a lei, não precisariam os militares da anistia que lhes foi concedida pelo Congresso Nacional. Se há anistia, significa que houve crime e é exatamente por aí que se esvai a legitimidade de um movimento que, em sua origem, era aceitável, para convolar- se em algo grave, pois é da essência do direito penal, e também do direito penal militar, reprimir aquelas condutas que atentem contra valores assumidos pela sociedade como mais destacados para a convivência humana ordenada. E aqui, a noção de valor deve ser hierarquizada e situada no contexto da ambiência comunitária de que partem. Explico- me. A CRFB/88, a exemplo das que a precederam, colocam os militares sob o regime estrutural administrativo pautado nos valores da hierarquia e da disciplina. Duas palavras que aqui recebem uma valência semântica ímpar e que justificam a instituição de uma trama normativa pelo Executivo que causaria espanto a qualquer civil (por exemplo, privar da liberdade alguém por não haver se apresentado para trabalhar com a barba feita ou porque seu sapato não está lustrado, exigir que alguém corte o seu cabelo dentro de um padrão pré-estabelecido etc.). Os militares tem assim um ambiente próprio de convivência que não se ajustam aos costumes ordinários da sociedade civil. Decerto que incorporam alguns de seus valores, mas há inúmeros outros que são de uma diversidade tamanha. Pois bem, a intervenção de extraneos nesse processo de julgamento, seja ele um membro do É irrelevante seja Cabral ou Colombo quem Governa o Estado, a movimentação política direcionada ao comandante-em-chefe da força militar, pugnando por seu afastamento não se ajusta ao âmbito estruturante dos princípios que mencionei, e aí já não se está mais na linha legitimadora das reivindicações por dignidade, mas na esteira de uma pura e deturpada afronta à hierarquia.

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Debruço-me em algumas reflexões acerca domovimento reivindicatório a que se lançaramalguns militares do CBMERJ. Faço-o sob doisângulos distintos, a saber: o de sua legitimidade,de um lado; e o da sua legalidade, de outro.

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HIERARQUIA E DISCIPLINA

Debruço-me em algumas reflexões acerca do

movimento reivindicatório a que se lançaram

alguns militares do CBMERJ. Faço-o sob dois

ângulos distintos, a saber: o de sua legitimidade,

de um lado; e o da sua legalidade, de outro.

Quanto ao primeiro, é uníssono o sentimento de

injustiça que perpassa a situação dos bombeiros.

Profissionais que integram uma corporação

centenária, a qual goza da mais alta estima da

população, pelo caráter nobre da sua missão e,

sobretudo, da galhardia com que se investem seus

integrantes na consecução da tarefa que

abraçaram: vida alheia e riquezas salvar. Não à toa

o justo título de heróis que lhes foi outorgado pela

sociedade. É

efetivamente

inadmissível que a

contrapartida dessa

arriscada atuação seja

um vencimento tão

parco que os obrigue a

literalmente passarnecessidades. Assim,

desde logo, irmano-me

na sua luta por

dignidade. Serve o

movimento literalmente como um alerta para a

dramática situação, bem delineada nos seus

momentos altos como um pedido de socorro às

avessas, porquanto originado exatamente

daqueles que ordinariamente o atendem e

destinado àquela que normalmente o emite  – a

sociedade. Assim, tenho por legitimado o

movimento.

No que tange à sua legalidade, o movimento não

encontra respaldo normativo, seja do ponto de

vista penal, administrativo ou civil. E não preciso

esforçar-me muito para alcançar tal conclusão.

Quaisquer que sejam os movimentos

reivindicatórios, eles não autorizam a prática de

atos que consumem danos ao patrimônio público

ou de terceiros, permitindo-se, em tal hipótese,

que a Administração Pública invista contra o seu

servidor (ou militar) para que os prejuízos

causados sejam indenizados. Do ponto de vista

criminal, fossem as ações consentâneas com a lei,

não precisariam os militares da anistia que lhes foi

concedida pelo Congresso Nacional. Se há anistia,

significa que houve crime e é exatamente por aí 

que se esvai a legitimidade de um movimento

que, em sua origem, era aceitável, para convolar-

se em algo grave, pois é da essência do direito

penal, e também do direito penal militar, reprimir

aquelas condutas que atentem contra valores

assumidos pela sociedade como mais destacadospara a convivência humana ordenada.

E aqui, a noção de valor

deve ser hierarquizada e

situada no contexto da

ambiência comunitária

de que partem. Explico-

me. A CRFB/88, a

exemplo das que a

precederam, colocam osmilitares sob o regime

estrutural administrativo

pautado nos valores da

hierarquia e da

disciplina. Duas palavras que aqui recebem uma

valência semântica ímpar e que justificam a

instituição de uma trama normativa pelo

Executivo que causaria espanto a qualquer civil

(por exemplo, privar da liberdade alguém por não

haver se apresentado para trabalhar com a barba

feita ou porque seu sapato não está lustrado,

exigir que alguém corte o seu cabelo dentro de

um padrão pré-estabelecido etc.). Os militares

tem assim um ambiente próprio de convivência

que não se ajustam aos costumes ordinários da

sociedade civil. Decerto que incorporam alguns de

seus valores, mas há inúmeros outros que são de

uma diversidade tamanha.

Pois bem, a intervenção de extraneos nesse

processo de julgamento, seja ele um membro do

É irrelevante seja Cabral ou Colombo quem

Governa o Estado, a movimentação política

direcionada ao comandante-em-chefe da

força militar, pugnando por seu afastamento

não se ajusta ao âmbito estruturante dos

princípios que mencionei, e aí já não se está

mais na linha legitimadora das reivindicações

por dignidade, mas na esteira de uma pura e

deturpada afronta à hierarquia.

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Judiciário, do Parlamento, ou de alguns setores do

próprio Executivo, deve dar-se de maneira

extremamente comedida, a fim de que dela não

advenham o comprometimento de um modelo

centenário que vem demonstrando funcionar

eficientemente. A anistia é uma dessas investidas

que reputo radical, que pode até bem ter se

prestado ao momento político de tensão para,

acalmando os ânimos, restabelecer um clima mais

harmônico. De qualquer forma, não se pode daí 

imaginar que se tenha por revogados os diplomas

normativos que regem a vida militar. Sinaliza, ao

contrário, o cuidado para que não se esvaneça a

linha de deveres a que estão jungidos aqueles

submetidos aos dois pilares essenciais daCorporação: hierarquia e disciplina.

Decerto que hoje não se tem notícia da balbúrdia

com que, no ápice do movimento, foi promovido o

ingresso forçado contra os portões do quartel

central da Corporação, com quebra de viaturas,

impedimento de saída do socorro etc., a ver

  justificada a intervenção da Polícia Militar para

conter a dinâmica exponencial que ali se

deflagrou. Daí se tem a impressão de calmariaque, entretanto, obscurece uma crise institucional

grave, posto que é a própria identidade de uma

estrutura de serviço público que é abalada. E

talvez o mote do movimento, a justificar a

manifestação constante, seja exatamente o direito

constitucional à liberdade de expressão.

Indubitavelmente tem ele assento na Carta, sendo

fruto de uma conquista democrática inestimável,

e não se diga que militares não possam titularizá-

lo, mas não me parece possa o preceito ser

assumido de forma ilimitada. Desconheço

qualquer direito estabelecido na Carta que

ostente esse grau absoluto.

Não discuto que os regulamentos disciplinares,

em muitos pontos, carecem de uma revisão

profunda, a fim de que possam compatibilizar-se

com a Constituição, sob pena de insistir-se em

aplicar o que já não mais vigora. Mas daí não me

parece que os militares não estejam sujeitos a

certas limitações no que tange a expressão de seu

pensamento, as quais ordinariamente não se

aplicam aos civis. Isso, obviamente sem prejuízo

de poderem reivindicar melhores condições de

trabalho ou vencimentos compatíveis com as suas

funções. O que não está ajustada é a insistência

difundida em que, o fato de a Carta da República

assegurar o direito à livre expressão ou à livre

reunião autorize o desmantelamento de pilares

estruturantes do edifício militar.

Assim, por exemplo, é irrelevante seja Cabral ou

Colombo quem Governa o Estado, a

movimentação política direcionada ao

comandante-em-chefe da força militar, pugnando

por seu afastamento não se ajusta ao âmbito

estruturante dos princípios que mencionei, e aí já

não se está mais na linha legitimadora das

reivindicações por dignidade, mas na esteira de

uma pura e deturpada afronta à hierarquia.

Com a tristeza de quem abandonou uma carreira

por questões remuneratórias, fica a esperança do

êxito da reivindicação, mas simultaneamente, a de

que não se faça disso tudo um momento de

aproveitamento político que acabe por ameaçar a

integridade de uma Corporação absolutamente

querida e essencial. E se alguma lição há de ficar

deste episódio, é a de que, tanto o governo

quanto os manifestantes, compreendam que o

único encontro possível deve dar-se pelo diálogo,

por uma verdadeira abertura ao discurso, em quea racionalidade comunicativa se preste de meio a

uma ética pacificadora.

Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha

Juiz Federal e do TRE-ES, Doutor em Direito Público (PUC-MG)

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