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Revista de Psicologia l 133 A histeria: objeto de desejo do Outro Rejane de Melo Moreira 1 Geraldo Majela Martins 2 RESUMO: Objetiva-se com este artigo trabalhar o lugar do desejo na clínica da histérica. A psicanálise nos aponta a importância entre a articulação da teoria com os casos clínicos como fonte valiosa de aprendizagem. Para tal, utilizarei de um fragmento clínico a partir do qual discursarei sobre um ponto importante que apareceu no discurso do analisando: o desejo. PALAVRAS-CHAVE: Histeria, Desejo, Objeto, Sexualidade, Insatisfação. Este artigo teve origem numa observação clínica surgida no curso de uma possível análise, situando-se numa tentativa de tentar melhor compreender e elaborar o que se passava no tratamen- to por meio do discurso da candidata á analise. Os atendimen- tos ocorreram na Clínica de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva, e o artigo acadêmico produzido para a conclusão do Estágio Supervisionado Abordagens Psicanalíticas VII, ministrado e supervisionado pelo Professor Geraldo Majela Martins. Foi por meio do discurso de uma paciente, uma mulher de 33 anos, solteira, independente, que ocupa um cargo adminis- trativo em uma empresa, e que chegou ao consultório com uma queixa principal “preciso de ajuda profissional para enfrentar o medo, a insegurança e a dificuldade de lidar com as pessoas, situações que prejudicam a vida profissional, familiar e afetiva”. Durante as sessões, a cliente traz em seu discurso que é perseguida pela supervisora no trabalho e pelo namorado. Con- sidera que tenha parcela de culpa, devido a erros e omissões. A cliente fala pouco da família e, quando fala, relata que o namora- do é igual ao seu pai, que também perseguia a sua mãe. A cliente se identifica com a mãe, a caracteriza como “guer- reira” e a coloca no lugar da lei. Por outro lado, critica mulheres que têm atitudes masculinas e diz que nunca quer depender de um homem. Temos uma hipótese de que se trata de uma histe- ria, já que sabemos que na histeria tem sempre outra mulher na história, porque é ela que indica o significante fálico, essa mulher, hipotetizamos que seja a mãe e/ou a supervisora. Percebe-se que a cliente, apesar de criticar a perseguição de ambos, sente-se culpada, mas, ao mesmo tempo, sente prazer em provocar dor no outro da relação (neste caso, o namorado). Com suas atitudes relatadas ao longo dos atendimentos, a cliente demons- tra que provoca o namorado, mesmo sabendo que ele não gosta. A cliente apresenta em seu texto o que Freud chamou de masoquismo, que é a designação que abrange todas as atitudes passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a mais extre- ma das quais parece ser o condicionamento da satisfação ao pa- decimento de dor física ou anímica advinda do objeto sexual. (FREUD, 1905, p.150) Freud aponta que: É freqüente poder-se reconhecer que o masoquismo não é outra coisa senão a continuação do sadismo que se volta para a própria pessoa, que com isso assume, para come- çar, o lugar de objeto sexual. A análise clínica dos casos extremos de perversão masoquista mostra a colaboração de uma ampla série de fatores (complexo de castração e a consciência de culpa) no exagero e fixação da atitude sexual passiva originária (FREUD, 1905, p.150). A cliente, por meio de relatos e atitudes, se coloca no lugar de homem da relação, e na família, se considera o homem da casa, identificando-se com sua mãe, que é para ela a lei, que é o homem ao invés do seu pai. O estudo deste fragmento clínico aborda a questão do desejo, que para a histérica está além de suas demandas, pois nada pode lhe ser dado com a finalidade de abrandar suas queixas. A histérica nos mostra que frente à sexualidade não há saber, e que ela vive em um estado de insatisfação que não se restringe somente ao registro sexual, mas que se estende por toda a vida. Quanto mais insatisfeita ela é, mais protegida das ameaças de um gozo ela está. Segundo Martins, o desejo é a lei. Podemos, então, dizer que, em Lacan, o desejo é a lei, porque desejo é sempre in- terdição de, falta de. (MARTINS, 1999, p. 29). Portanto para Martins, desde Freud: [...] o desejo (Wunsch), o voto, é inconsciente. Assim, o de- sejo não são as tendências, as inclinações para os apetites

Histeria e Desejo

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Os autores investigam presença do desejo na clínica da histeria.

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  • Revista de Psicologia l 133

    A histeria: objeto de desejo do OutroRejane de Melo Moreira1

    Geraldo Majela Martins2

    RESUMO: Objetiva-se com este artigo trabalhar o lugar do desejo na clnica da histrica. A psicanlise nos aponta a importncia entre a articulao da teoria com os casos clnicos como fonte valiosa de aprendizagem. Para tal, utilizarei de um fragmento clnico a partir do qual discursarei sobre um ponto importante que apareceu no discurso do analisando: o desejo.

    PALAVRAS-CHAVE: Histeria, Desejo, Objeto, Sexualidade, Insatisfao.

    Este artigo teve origem numa observao clnica surgida no curso de uma possvel anlise, situando-se numa tentativa de tentar melhor compreender e elaborar o que se passava no tratamen-to por meio do discurso da candidata analise. Os atendimen-tos ocorreram na Clnica de Psicologia do Centro Universitrio Newton Paiva, e o artigo acadmico produzido para a concluso do Estgio Supervisionado Abordagens Psicanalticas VII, ministrado e supervisionado pelo Professor Geraldo Majela Martins.

    Foi por meio do discurso de uma paciente, uma mulher de 33 anos, solteira, independente, que ocupa um cargo adminis-trativo em uma empresa, e que chegou ao consultrio com uma queixa principal preciso de ajuda profissional para enfrentar o medo, a insegurana e a dificuldade de lidar com as pessoas, situaes que prejudicam a vida profissional, familiar e afetiva.

    Durante as sesses, a cliente traz em seu discurso que perseguida pela supervisora no trabalho e pelo namorado. Con-sidera que tenha parcela de culpa, devido a erros e omisses. A cliente fala pouco da famlia e, quando fala, relata que o namora-do igual ao seu pai, que tambm perseguia a sua me.

    A cliente se identifica com a me, a caracteriza como guer-reira e a coloca no lugar da lei. Por outro lado, critica mulheres que tm atitudes masculinas e diz que nunca quer depender de um homem. Temos uma hiptese de que se trata de uma histe-ria, j que sabemos que na histeria tem sempre outra mulher na histria, porque ela que indica o significante flico, essa mulher, hipotetizamos que seja a me e/ou a supervisora.

    Percebe-se que a cliente, apesar de criticar a perseguio de ambos, sente-se culpada, mas, ao mesmo tempo, sente prazer em provocar dor no outro da relao (neste caso, o namorado). Com suas atitudes relatadas ao longo dos atendimentos, a cliente demons-tra que provoca o namorado, mesmo sabendo que ele no gosta.

    A cliente apresenta em seu texto o que Freud chamou de masoquismo, que a designao que abrange todas as atitudes

    passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a mais extre-ma das quais parece ser o condicionamento da satisfao ao pa-decimento de dor fsica ou anmica advinda do objeto sexual. (FREUD, 1905, p.150) Freud aponta que:

    freqente poder-se reconhecer que o masoquismo no outra coisa seno a continuao do sadismo que se volta para a prpria pessoa, que com isso assume, para come-ar, o lugar de objeto sexual. A anlise clnica dos casos extremos de perverso masoquista mostra a colaborao de uma ampla srie de fatores (complexo de castrao e a conscincia de culpa) no exagero e fixao da atitude sexual passiva originria (FREUD, 1905, p.150).

    A cliente, por meio de relatos e atitudes, se coloca no lugar de homem da relao, e na famlia, se considera o homem da casa, identificando-se com sua me, que para ela a lei, que o homem ao invs do seu pai.

    O estudo deste fragmento clnico aborda a questo do desejo, que para a histrica est alm de suas demandas, pois nada pode lhe ser dado com a finalidade de abrandar suas queixas. A histrica nos mostra que frente sexualidade no h saber, e que ela vive em um estado de insatisfao que no se restringe somente ao registro sexual, mas que se estende por toda a vida. Quanto mais insatisfeita ela , mais protegida das ameaas de um gozo ela est.

    Segundo Martins, o desejo a lei. Podemos, ento, dizer que, em Lacan, o desejo a lei, porque desejo sempre in-terdio de, falta de. (MARTINS, 1999, p. 29). Portanto para Martins, desde Freud:

    [...] o desejo (Wunsch), o voto, inconsciente. Assim, o de-sejo no so as tendncias, as inclinaes para os apetites

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    e as vontades. O desejo uma significncia. Sua significncia (deutung) dada pela cadeia de significantes. O sonho a significncia do desejo. O que essa significncia? , aquilo que o associante, livremente, diz do sonho. O sonho no o desejo, mais o lugar (topos) onde o desejo se revela. O sonho no o desejo, porque o desejo no nada, ele no tem objeto, metonmico. Portanto, o desejo no o sonho, no o chiste, no o ato falho. (MARTINS, 1999, p. 30).

    Percebe-se que o desejo aquilo que no tem nome, no tem smbolo, aquilo que se identifica com o significante. Para Martins, o desejo no concupiscncia, um apetite sexual, um voto, eleio: seu objeto o prprio desejo desejo de desejar (MARTINS, 1999, p.30).

    A leitura deste trabalho nos leva a pensar tambm sobre as questes da feminilidade e do gozo, que nos aponta, portanto para a subverso desejante da histeria e as manifestaes atuais dos seus sintomas. O desejo na histeria um desejo de insatisfao.

    Para Lacan (1998), o desejo da histrica sustentar o desejo do pai. Justificando esta afirmao, Lacan desenvolveu a frmula que diz o desejo do homem, o desejo do Outro. Logo, a histrica deseja ser o desejo do Outro. Assim, a histrica pula de um objeto a outro, dizendo que no a respondeu, no a satisfez. Por que para a histrica, a insatisfao o que garante o desejo.

    Provar que o desejo na histeria existe dizer que ele continua in-satisfeito, percebe-se que satisfazer este desejo, implica-se em gozar, e o gozar faz com que o desejo se perca. O gozo seria a permanncia do desejo insatisfeito, o que de certa forma, se ope ao prazer.

    Seguindo este caminho, pode-se perceber a estratgia da his-trica, que, na maioria das vezes, como no caso clnico citado, no quer aquele que a quer, mas sim algum inacessvel, mantendo assim seu desejo sempre insatisfeito. Essa a relao da histrica com o desejo, pontuando assim a insatisfao.

    Aprendemos com Lacan que o desejo s pode ser tomado ao p da letra, isso porque preciso transformar a demanda em questo, ou dito de outra forma, o desejo expresso pela lingua-gem, de um enigma a ser decifrado. A linguagem a pea funda-mental para um processo de anlise. Lacan aponta que:

    Para curar a histrica de todos os seus sintomas, a melhor maneira seja satisfazer seu desejo de histrica que para ela o de colocar aos nossos olhos seu desejo de insatisfeito deixa inteiramente fora de campo a questo especfica do por qu ela s pode sustentar seu desejo como desejo insatisfeito. (LACAN, 1998, p.19)

    Ao considerarmos clinicamente a histrica, ou ao determo-nos na histria do saber mdico sobre a histeria, constatamos que a histeria fala, e dela faz falar, ou seja, atravs dela, faz com que se produza um saber sobre o seu enigma. E por meio desses enigmas, Freud se depara com a questo do desejo insatisfeito da histrica e que a partir do desejo do Outro que o sujeito cons-titui o prprio desejo.

    Podemos, assim, concluir e mostrar a importncia da articu-lao entre casos clnicos e teoria, percebe-se que a cliente apre-senta caractersticas e atitudes que nos fazem crer se tratar de uma possvel histeria, uma que ela nunca esta satisfeita com o que tem, se coloca por diversas vezes em lugar de objeto, constituindo as-sim o seu prprio desejo.

    REFERNCIASFREUD, Sigmund. (1905). Trs ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: _______.

    Um caso de histeria, trs ensaios sobre teoria da sexualidade e outros

    trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p.149-151. (Edio standard brasileira

    das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud, 7).

    LACAN, Jacques. O seminrio: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da

    psicanlise (1964). 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

    MARTINS, Geraldo. gua que dorme: mscara do desejo. Conscincia com

    cincia. Belo Horizonte, p. 28-32, jan. 1999.

    NOTAS DE RODAP1 Acadmica do 10 perodo do curso de Psicologia do Centro Universitrio

    Newton Paiva

    2 Professor supervisor de estgio do curso de Psicologia do Centro Universitrio

    Newton Paiva