Histmed2

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/29/2019 Histmed2

    1/24

    Manuel de Castro Nunes

    O Capuchinho Vermelho

    Laudas para um projecto de trabalhos em Histria da Medicina e da Cultura Mdicaem Portugal.

    vora, 1993.

  • 7/29/2019 Histmed2

    2/24

    Sempre me surpreendeu que to exmio manipulador da res historica nunca se tivessesentido tentado a escrever uma linha sobre histria da medicina.

    Invoco Jaime Corteso, mdico.

    Aonde vais? - perguntou o lobo.Vou levar a ceia minha avozinha. - respondeu a menina.

    Ao Diogo Ramada Curto.

  • 7/29/2019 Histmed2

    3/24

    Apresentao

    Este volume contm dois pequenos ensaios que afinal bem podiam ter sido sintetizadosnum nico. Respondem ambos ao mesmo tipo de inquietaes, preliminares ao

    exerccio definitivo de uma disciplina que queria ser radical.Para ser mais explcito, tenho a declarar que a prpria disciplina era partida preliminar

    a qualquer coisa que no sabia bem determinar, mas tinha que ser algo que desabasserotundamente sobre a modernidade e os seus tpicos e mais que tudo sobre a histria da

    modernidade.Atacar a modernidade pelo seu ponto mais vulnervel, foi a razo da escolha da histriada medicina. Apropriava-me ento de uma ideia que remontava muito longe, prestando

    um culto que honrava a minha empresa. Foi Diego de Torres de Villaroel quem meadestrou na arte da esgrima, ministrando-me os golpes mais seguros e directos para

    rechaar os lugares comuns.Com toda a propriedade, este volume bem poderia ostentar sobre a portada um ttuloque escandalizaria a Vossas Excelncias, Contra Vesalio. Mas com mais propriedade,

    chamar-se-ia Contra Tudo.

    Os dois ensaios nunca foram rigorosamente terminados, nem talvez venham a ser. Eagrada-me sinceramente a ideia de os publicar assim mesmo, pois nunca os conseguireirematar. O ltimo na ordem deste volume, que a da escrita, foi escrito para intervir

    num congresso.Em derradeiro desespero, porque havia uma dzia de ideias que no era capaz de

    pronunciar de outra maneira, cozi entre os dois um texto que nem sei bem qualificar,embora o seu autor lhe tivesse dado o sbio nome de Tratado de Necrologia. Trata-se de

    um fragmento de um livro do meu amigo Damio das Brteas, que apareceu inseridonum dos almanaques que publicava no jornal O GIRALDO de vora.

  • 7/29/2019 Histmed2

    4/24

    Prlogo

    No limiar do exerccio, ou a salutar medicina da Histria.

    Medicina dos corpos? Medicina dos espritos? Ambiguidade sobre que, de reordenaoem reordenao, sempre se constituu o contencioso que ciclicamente revivificou a

    disciplina. O binmio na sua mais radical expresso, o homem sujeito e objecto,ordenador e ordenado.

    Cincia humana? Cincia da natureza? L na charneira onde o natureza se constituu emconscincia.(1)

    Ao homem que decidiu dispor radicalmente dessa ltima liberdade que parece ser o seucorpo, o primeiro julgamento que se lhe manifesta, a primeira segregao ser ainda,

    depois do sacerdote, a do seu mdico. O discurso ltimo e radical do poder da polissobre o eu corpo, o eu sujeito em ltima instncia, o eu real.

    Foucault ento? Foucault sim e no. O feiticeiro, o mago, o saludador, o sangrador emcerto sentido e a nigromante que, furtivos, se reuniram nas clareiras das florestas,transmitiram o seu saber em senha e arderam nas fogueiras, sabiam tanto quanto

    Foucault. E ordenaram tambm a sua condio em retrica e em poder, um outro podertodavia no mesmo espao dos corpos, nos infernos.

    Afinal, toda a medicina aspira a operar sobre os espritos, ou mediantes os corpos nosespritos.(2)

    O mdico e o sacerdote, orare et laborare, entra o fsico e sai o padre, entra o padre esai o fsico, exercendo um nico e o mesmo poder, que o de sangrar e purgar os

    corpos, mas sobretudo os espritos. Com os sacerdotes dos antigos sacrifcios, aprendeuo mdico a dissecar, a apalpar a expessura do sangue, a cartografar os humores. O

    pressgio e o diagnstico, o inexorvel instrumental do diagnstico, alfaias de outrasliturgias. Doente vtima, doente ru, a culpa... e o destino, perversa culpa.(3)

    E a piedade ainda, pelos pobres, pelos pecadores, pelos gafos, pelos cegos, pelosmancos e estorpiados. A misericrdia, a visita e o degredo. Mdicos e sacerdotesesgrimem-se ainda com esse ambguo poder de persuaso, entre a resignao e a

    apoteose da salvao, a penitncia e a ddiva, a espera e o desfecho.Na antecmara de toda a violncia, a hermtica instituio do discurso, a esquiva prtica

    e furtiva. O secreto rito e a liturgia da demonstrao de anatomia, o rigoroso

    instrumento da dissecao, a meticulosa cnica do gesto e do olhar: Rembrandt. O queoperam sobre ti esses estranhos poderes com que te ordenam e reordenam jamais oconhecers; tu, que te julgarias o guardio dos segredos do teu corpo.

    Medicar a ento a histria com a medicina? No, esse foi o programa de Foucault.Medicar a medicina com a histria. Pensar a histria da medicina s pode ser, para mim,

    fazer da histria a clnica da medicina, a clnica do homem. Deitar-se- no cho, naesteira de um pobre consultrio e discorrer sobre os seus pnicos, o ritual aparato dos

    horrores e do hediondo, dos corpos esventrados, dos escalpelos, das tesouras, dosestiletes. E far a histria dos seus medos.

    Porque a histria ser a nica disciplina possvel que deixar que se insinue, naimensido que se enquistou entre o real e o discurso, entre os actos e as retricas, a

    verdade. Porque opera e assume o real como discurso, na sua historicidade, quero dizercomo retrica em absoluto.

  • 7/29/2019 Histmed2

    5/24

    H ento que constituir a histria em medicina, histria tica, hipocrtica, com ainteno de medicar-se e com a disposio cristalina de revelar o seu poder; o seu poderde produzir, de operar e gerar o real. Com a disposio de se reoperar como retrica quereordena os discursos, como poder que revela os poderes, como evidncia que nega esse

    real que no aceitou o discurso como seu nico constituinte. Histria maiutica,

    socrtica.(5)E fora todavia a medicina, como de resto qualquer outra retrica do poder, um discursounvoco como sistema, consciente de si e da sua fico, da sua irrealidade para l de si

    prpria, quero dizer para l da conscincia. Tivera ordem e ento... talvez Foucault.(6)Mas no, na sua desordem nem chegou a descortinar que no se exerce mas acontece,

    nem se surprende de acontecer e de poder acontecer. Apenas retoriza a sua ocorrncia ese ritualiza em espcie.

    O que liga a prtica de um mdico prtica de outro mdico, seno um ritual deinvocao que nada gera, nem sequer as condies universais da ocorrncia? Por isso,

    enquanto no exibirmos os actos, o discurso o poder, ele que oprime.(7)Basta ento que a histria da medicina perscute os discursos, que os surpreenda na rara

    coeso dos seus aparatos, como processi que constituem a continuidade entre os tempose os lugares, como estrutura narrativa e significante que tem um sentido para l do acto,

    em derrapagem para universos cada vez mais longnquos? Para que ento o real serevele e o poder se insinue em acto?

    Discurso, ento, contexto?No, discurso consequncia.

    Discurso, ento, poder?No, discurso oprimido e reprimido pela irreverncia e irreflexo absolutas dos actos.

    No se trata j de histria e arqueologia do discurso e da disciplina, porque redundnciaem absoluto, que a disciplina j histria, a perversa e aparente continuidade entre osactos. Registemos simplesmente as retricas para lhes estilhaar a coeso, para que sesolidarizem em absoluto com os actos e as possamos cartografar no mesmo estracto do

    real.Histria ento dos actos mdicos, irreverentes, absolutos, reais - realeza absoluta - e porisso mesmo prepotentes. Porque os actos de poder acontecem, nem se exercem nem selegitimam; e o nico poder, a nica artimanha da retrica contitu-los em espcie.(8)

    Histria da medicina, histria geral dos actos.

  • 7/29/2019 Histmed2

    6/24

    Notas

    1. Importa-me no perder de vista a medicina como disciplina, ou melhor como prtica

    social. Assumida esta atitude, invocarei a deontologia e a tica, a par com evidentesprticas de ordenao social, tais como a definio da toxicodependncia como resmedica, a vigilncia sobre a sexualidade e a medicina forense.

    Quanto sexualidade, gostaria ainda que no se pensasse apenas em formas de controledemogrfico e planeamento familiar, mas que se compreendesse que a medicina tem um

    papel actual dominante na adequao das atitudes sexuais lgica consumista dasociedade de mercado.

    Uma primeira chamada de ateno, todavia, para Rodrigo de Castro: emMedicusPoliticus, paradigmticos captulos como Quomodo admissa virginitate.

    2. Uma exemplar artimanha da histria da medicina a de tratar das mltiplas formas de

    institucionalizao dos gneros heterodoxos, quando no as omite, no domnio daetnografia ou folklore mdico. Exccluindo-os partida de variadas partilhas de vastas

    esferas do poder social.O que proponho, desde j, uma avaliao mais perspicaz do estatuto de todos esses

    gneros e dos territrios que partilham com a medicina ortodoxa.Mais adiante esforar-me-ei por mostrar que, obrigada a ter que conviver com todos osgneros heterodoxos e espontneos, a medicina ter que legitim-los, incorporando-os

    ou encartando-os.Ver referncia a Morat Roma, Observaam do Achaque (...); Silva Carvalho, no quedeixa perscutar na apresentao de um exemplar de leitura indispensvel,Prodigiosa

    Lagoa Descuberta Nas Congonhas Das Minas Do Sabar (...), Coimbra, Imprensa daUniversidade, 1925.

    Como referncia de atitude, Silva Carvalho,Mezinhas e Remdios de Segredo, Lisboa,1928; Lus de Pina,Ensaio de Folklore Mdico Analtico, Porto, 1932; a vasta obra de

    etnografia mdica de Jos Alberto Pires de Lima.

    3. o momento de invocar um raro espcime bibliogrfico: Francisco MoratoRoma, Observaam do Achaque que Sua Real Magestade Dom Joo IV teve em

    Salvaterra, de que livrou milagrosamente. Em lingoagem para assim todos os grandese pequenos (...), folheto de vinte e seis pginas sem editor, Lisboa, 1665.

    Relata como os seis mdicos da Cmara de Sua Magestade, estando Sua Alteza

    incomodado por grave reteno de urinas, empreenderam violento tratamento, logo pelasangria e depois medicamentoso, que muito repugnou.Na falta de sucesso clnico, se recorreu aos remdios das velhas e invocou a Senhora da

    Conceio. Sua Magestade pediu retrete, estava curado, sem que se pudesse saber sepelas velhas, se pela Senhora, se pelo recurso radical dos mdicos sprolas de asso.

    Seguem-se vinte pginas discorrendo medicamente, exarando diagnstico,profusamente ilustrado com casos de insucesso clnico que atestam, de resto, a autpsia

    como instrumento decisivo de diagnstico.A leitura desta eminente pea retrica, que no deixa de deambular pelos hermticos

    terrenos do saber disciplinar, cujo texto em linguagem cotejado em latim e que,merecendo todavia outras exploraes, me interessou aqui como exemplo lapidar da

    retrica do diagnstico, deve ter presente que Morato Roma foi um ilustreinstrumentalista, que ensinou no Hospital Real de Todos Os Santos, instituio que ser,

  • 7/29/2019 Histmed2

    7/24

    note-se, a chave da minha ideia. E que escreveu o primeiro tratado portugus deenfermagem,Luz da Medicina, Pratica Racional, e Metdica, Guia de Emfermeiros

    (...), Liboa, 1664.Este tipo de literatura, fundada no relato de um caso clnico a que se segue o discursoerudito do diagnstico, torna-se ocorrente desde o princpio do sculo XVII e uma das

    peas paradigmticas e interessantes aRelaam Chyrurgica de hum cazo grave a quesuccedeo mortificarse hum brao, e cortarse com bom successo, de FranciscoGuilherme Casmak, impresso em Lisboa por Giraldo da Vinha, em 1623. Casmak eraChyrurgio del Rey e do seu Hospital e tudo leva a crer que este tipo de relatos estaria

    ligado prtica didctica nos hospitais.Muitos destes relatos so peas de interminveis porfias entre mdicos e cirurgies, em

    que intervm ainda alguns sangradores de estatuto indefinido, algebristas e meioscirurgies, etc. o caso da polmica que se estabeleceu entre Bernardo da Silva Mourae Bernardo da Silva d'Azevedo e tem como resultadosEscrupulos Medicos e Reparo

    Chyrurgico por Narbedo Savil sangrador aprovado, a hum Medico intrometido. Lisboana Officina da Congregao do Oratrio, 1739;Exposio Delphica, apologetico-

    critica, em que se convence uma falsidade, com a verdade declarada, e se propemvarias doutrinas pertencentes sciencia Medica. Por Bernardo da Silva d'Azevedo, na

    oficina de Antnio Pedroso Galro, 1739; e de novo Bernardo da SilvaMoura,Dissertao Medica ilustrada, ou sangria da salvatella defendida (...), Lisboa,

    na Officina da Congregao do Oratrio, 1739.Ainda num corpus de diagnsticos reunidos pelo mdico pacense Jos Rosa Correia nosculo XVIII, BPE CXXI/1-2, pude surpreender uma verdadeira casustica, envolvidos

    os mdicos em porfias.Retomarei o diagnstico a propsito dos mdicos da corte espanhola no sculo XVI,para atacar uma questo ainda mais subtil, que o das juntas ou conferncias que se

    reunem em torno de uma enfermidade crtica ou complicada, em cujo quadro os vriosmdicos operam sucessivamente sobre o doente, em disputa.

    4. A anatomia, cartografia do corpo, produz outro corpo que no j sensitivo masretrico, iconogrfico, simblico, exegtico e hermenutico. A anatomia omite que na

    antecmara da retrica cartogrfica ficou o acto sanguinrio da dissecao. aconsequncia do acto cirrgico, uma ocorrncia que no foi discursiva mas operativa.A devassa do corpo, a retrica do bisturi, esse instrumento da hermenutica da fbrica

    humana. Uma leitura ainda para surpreender o mrbido, Hernni Monteiro, Comentrios Estampas do Tratado de Andr Vesalio, ''De Humani Corporis Fabrica'', Arquivos

    de Anatomia e Antropologia, XXII, Porto, 1942. O comentrio em soneto.

    A aula pblica de anatomia como rito inicitico de superao do timor saguinis etmortis. Insinua-se-me ainda em Rodrigo de Castro a associao, de resto evidente, entrea anatomia e a geografia, bem como a preocupao de no omitir a evidncia do terror.

    Aproveito ainda para discorrer sobre duas prticas:A sangria, como implcita penitncia e exorcismo, oscilando entre a mgica - os

    lunrios e calendrios para as sangrias - e os gneros operatrios da meia cirurgia,paradigma da manipulao instrumentalista ocorrente. Santos Costa, Sobre Barbeiros e

    Sangradores no Hospital Real de Todos os Santos, AHMP, Porto, 1922.E a receita, a retrica do hediondo na receita, mesmo na fase qumica expressa naagressividade da nomenclatura. Lus de Pina, Os Remdios Imundos na Medicina

    Popular, XV Congresso de Antropologia e Arqueologia, Lisboa, 1930, exemplo do

    exerccio da etnografia e das categorias do folklore para reportar ao outro as prticasque nos so prprias.

  • 7/29/2019 Histmed2

    8/24

    5. Maiutica ainda no sentido freudiano.

    6. Cabe aqui uma chamada de ateno para o direito, que gostaria de submeter aomesmo aparato retrico. Ver nota sobre Rodrigo de Castro,Medicus Politicus, em

    particular sobre o captuloJurisprudentiae Medicinae Comparatio.

    7. O que quero dizer em ltima instncia que o acto mdico uma fico, umaartimanha; e que foi a retrica mdica que o constituu em espcie mdica. Fazendo de

    resto, em geral, opes arbtrrias.Na realidade, a medicina, como disciplina, nunca chegou rigorosamente a encontrar oseu objecto, decidindo, segundo as circunstncias, os actos que deve ou no incorporar.E em certas fases de reordenao, sempre que teve que invocar o seu feitio operatrio e

    instrumentalista, no fez seno estilhaar-se. que o acto cirrgico, para exemplo, que em si a violncia e a prepotncia radical, sretoricamente se constitui em medicina. Surpreendo numa carta de foral a excepo

    pena estipulada para os que tirarem sangue a outrem: nem pagaram a dita pena aquelesque castigando sua molher e filhos, e escravos, e criados tirarem sangue.

    O acto do talhante constitui-se em espcie pela retrica alimentar e gastronmica. Paral disso est a carnificina e o predador.

    Nas sociedades tradicionais, os executores de animais esconjuravam o acto, para noterem que sobre ele pronunciar outra retrica. Haveria ainda muito a dizer sobre certas

    prticas fundadoras da cirurgia, como a trepanao.

    8. Rodrigo de Castro, ento. A histria da medicina interessou-se prodigamente peloginecologista, em desabono de uma obra crucial na ordenao do estatuto institucional e

    social do mdico nos sculos XVII e XVIII. E ainda em torno do ginecologista, quegravita uma das mais bizarras porfias da histria da medicina: Ricardo Jorge, fiado em

    Maximiano Lemos, acusa Silva Carvalho de insegurana no latim e de citarinadequadamente Rodrigo de Castro,De Universa Muliebrium. Ambos tinham razo,

    eraDe Universa Mullierum na edio de Colnia em 1606, Tractatus de NaturaMuliebris na edio de Franqueforte em 1668.

    E o que fica omisso, ou a espreitar nos rodaps, esse Rodrigo de Castro a quemRicardo Jorge chama de raspo deontologista, no seu livro sobre Amato.

    O que invoco agora Roderici Castro Lusitani (...) Medicus Politicus Sive De OfficiisMedici-Politici Tractatus (...), Hamburgo, Froboenius, 1614.

    ODe Officiis Medici-Politici Tractatus oferece captulos to importantes para

    surpreender a representao que os mdicos se fazem das suas prticas, como:Adversuseos qui nec medicinam nec medicos reipublicae necessarios esse contendunt;Medicinaars cum militari confertur et cum agricultura;Iurisprudentiae Medicinae

    comparatio;Medicum chirurgicum esse oportere; Quinam auctores sit envolvendi, etqualis esse debeat medici bilbliotheca; etc., etc..

    Importantes captulos sobre o atestado e a simulao da doena, em particular comoinstituio de mendicidade; sobre a loucura e a simulao da loucura; a certificao da

    virgindade das mulheres.

  • 7/29/2019 Histmed2

    9/24

    IA histria irreal.

    Exercer o que culminou no acto de enunciao.

    Ocorre-me ento o momento culminante da epopeia mdica, a consumada e exibidadecomposio da fbrica, que esse corpo que se entrega radicalmente manuipulao

    operatria, o cadver; a minuciosa apoteose da percia.De Humani Corporis Fabrica, a gesta que Vesalio dedicou ao fundador da dinastia queconsagrou a incorporao definitiva dos mdicos na hierarquia do estado, Carlos V.(1)

    (...) aquele uso detestvel de praticarem uns a dissecao e narrarem outros a histriadas partes; estes, maneira de gaios, declamam faustosa e grandiloquamente, na

    ctedra, aquilo que nunca experimentaram, mas somente acumularam na memria (...)

    descrito nos livros dos outros (...) no havendo jamais aplicado as mos dissecaode um cadver (...).

    (...) assim como tudo nas escolas mal ensinado e se passam os dias em questesridculas, assim tambm, no meio de tanto rudo, so propostas aos espectadores

    menos coisas do que um magarefe podia exibir ao mdico no aougue.(2)

    sabido como Sylvius ironizou displicentemente sobre a morfolgica retrica deVesalio e os mrbidos esfolados de Calgar, que serviam para pouco mais do que paradeleitar mulheres e que reputava de reproduzirem os vcios de uma retrica dissociadada manipulao operatria do objecto. Mas no prprio terreno da porfia, a medicina

    culminava de novo no teatro anatmico, cuja materialidade operatria nenhuma retricalivresca, ou iconogrfica, podia suprir. E o que parecia ainda preocupar Sylvius era quena materialidade do acto, na percia operatria, se constitura o hermetismo do ofcio;sendo a devassa pela retrica, ou pela exibio iconogrfica, um exerccio de gratuita

    ostentao.(3)Chyrurgia, manus opus, quasi operationem manualem dixeris, insinua-me Rodrigo deCastro. No ncleo celular da gesta medicinae est o corrosivo e inamovvel emergir dacirurgia com todo o seu instrumental e como pradigma de um discurso que no pode

    deixar de se assumir como acto manipulatrio.(4)Quer-me parecer que a medicina, aquela que se haveria de institucionalizar a partir do

    sculo XVI em referncia ao mito de um Galeno anatomista, cirurgio e urologista e dos

    seus antecessores dissecadores de corpos vivos de sentenciados, se constituu, no seuambiente prprio, em contra poder. Em acto de anti retrica contra as corporaesmgico religiosas que se firmavam em noes de corpo lastro do esprito, corpo

    degredo.Como disciplina nova, moderna, historicizava o discurso mgico e sacerdotal, exibia-lhe

    os rituais e a retrica e ao transform-lo em objecto pulverizava-lhe o espao delegitimidade. O homem reapropriava-se agora de um corpo acto, de um corpo sentidos,

    um corpo funo comparticipante do real e da sua irreverncia.Essa disciplina foi um acto de descrena, enquanto acto. Enquanto disciplina logo se

    negou e se discorreu como poder, como sistema e como crena. Passou-se para o ladodos rituais, institucionalizou-se em espcie retrica e perdeu a fora subtil da sua

    ocorrncia como acto.Sempre que em crise, a disciplina reclamar-se- ainda do seu feitio operatrio e

  • 7/29/2019 Histmed2

    10/24

    instrumental, do prtico, do sangrador, do algebrista, da dissecao, da cirurgia, daexperimentao qumica e fisiolgica (gesta urologiae), contra os manuais, os tratados e

    os licenciados sbios mas ineptos. Omitir as suas partilhas institucionais e que seexerce como as formas mais rigorosas da prepotncia, que se legitimam no eixo do

    discurso cientfico dominante, para se exibir na sua rebeldia, contra os obscurantismos

    retricos, os frades e todos os preconceitos.(5)Esta pequena novela com que quis narrar a gesta medicinae, no seu simplismo semdvida redutor, no mais do que isso, uma novela. Uma boa alegoria e como tal,

    ento, parece negar todo o sentido da minha proposta.O que quero dizer que todo o discurso histrico e historicizvel. E que a histria altima arma que me resta, a ltima partcla de liberdade, porque trata os discursos e as

    retricas (e se trata) como objectos da espcie que so, histricos.A minha histria ento do acto mdico uma nova retrica do acto? No, um acto deretrica, que culminou no instante em que o assumi e negarei de imediato no discurso

    do agir. Mas para que culmine em negao permanente da sua culminncia, que quandofor retrica tenha sido j plenamente acto, quando for poder tenha sido j plenamente

    rebeldia, quando for hermenutica tenha sido j plenamente significado imediato erevelado. Para que se associe, irreversivelmente, com o seu objecto.

    No conheo quem tenha assediado um dogma sem fundar uma crena. O desafio,ento.

    Por isso histria da medicina no, que na histria da medicina que a medicina redundae culmina, porque como medicina existe e s na sua historicidade.

    Que continuidade existe ento entre a prtica de um enfermeiro e a de um mdico, entrea de um dietista e a de um cirurgio, entre a de todos estes e a de um provedor de um

    hospital ou de um psiquiatra? A retrica e os seus poderes, uma espcie de osmose entreos slidos.

    Terei ento que me apropiar destes critrios, destes objectos, desta narrativa e destesrituais para minha histria dos actos, que ter que ser um acto de histria, um acto

    consciente de si como retrica, consciente das suas artimanhas, dos seus ardis.Consciente de que no discurso se constituu no o poder, mas as artimanhas do poder.

    E tive que me surpreender, porque o secreto e peculiar poder da histria da medicina ode multiplicar-se em actos. Actos retricos de erudio, ora mdica, ora histrica, ora

    nem uma coisa nem outra, pulverizados em territrios disciplinares alheios onde exercea sua fico ardilosa, as suas artimanhas.

    que a primeira dificuldade e a primeira artimanha da minha histria dos actos mdicosest, tambm, em constituir uma res medica.

  • 7/29/2019 Histmed2

    11/24

    Notas

    1. Deixo aqui para posterior prospeco um vasto campo de estudo.O livro de Vesalio faz culminar uma tradio milenar de exerccio de um certo aparatode descrio morfolgica dos objectos, que no deixou de ter impacto transdisciplinar.

    S os gemetras tinham, desde a antiguidade, exercido de forma to exmia esseaparato.

    Sabemos do papel que a geometria teve, at ao sculo XVI, como alegoria e ordenadordo discurso poltico enquanto representao do corpo social e suas hierarquias. H que

    avaliar ainda em profundidade o impacto da morfologia anatmica postvesaliana.O sentido que quero dar dedicatria de Vesalio rigorosamente este: durante os

    ltimos anos do sculo XVI e todo o sculo XVII, irrompe em Portugal e em Espanhauma ocorrncia que a histria da medicina nunca quis avaliar. Uma crescente

    importncia dos mdicos no aparelho de estado, consagrada por um vasto aparato legalde que adiante darei conta. Para j, no sendo ainda caso para discorrer longamentesobre o assunto, importa-me simplesmente notar que os mdicos partilham com os

    sacerdotes (os confessores, por exemplo) uma intromisso de excepo na privacidadedos prncipes e do seu corpo e uma condio particularmente conspirativa nos rituais de

    sociabilidade das cortes. Ver em Morato Roma as referncias aos mdicos da corteespanhola e sobretudo a uma autpsia praticada por Mercato no corpo do prncipe. Uma

    rigorosa bibliografia e orientao de pesquisa sobre a enfermidade do Prncipe DomCarlos, filho de Filipe I e depois de Dom Afonso pode encontrar-se em Ricardo Jorge,Amato(...). Ainda requer associao a este tema o papel dos mdicos portugueses no

    processo de abdicao de Dom Afonso VI.Ricardo Jorge, Dom Afonso VI. Ensaio de clnica histrica, in Medicina

    Contempornea, Volume I, Porto 1886.Note-se por ltimo a comparao permanente, Rodrigo de Castro e Vesalio, por

    exemplo, entre a corporis fabrica e o aedificium reipublicae.

    2.De Humani Corporis Fabrica. Aproprio-me aqui, propositadamente e invocando otexto em que se insere, da consumada traduo de Hernni Monteiro, Comentrio s

    Estampas (...), j citado, vigiada pela edio veneziana de Franciscus Senensis,MDLXVIII, que era a de que dispunha.

    3. No princpio do sculo, a historiografia contempornea apropriou-se, reivindicando-a,desta porfia. Discutia-se se Vesalio adiantara algo aos tratados medievais de Berengariode Carpi e de Mondino, seno a proposta de irreverncia das suas aventuras em busca decadveres para dissecar, os relatrios de exerccios objectivos e a iconografia de choquede Calgar, como estmulos para a institucionalizao da prtica. O manual, que em nadasubstituiria o ritual inicitico do teatro anatmico, valeria sobretudo pela sua expresso

    artstica. Hernni Monteiro traa uma panormica dese debate vivo em torno dascomemoraes do quarto centenrio da publicao daFabrica.

    Andre Vesalio no quarto centenrio da publicao da ''Fabrica'', in Arq. de Anat. eAntropol., Tomo XXIII, Lisboa 1945.

    Iconografia das lies e trabalhos anatmicos de Andre Vesalio, in Arq. de Anat. e

    Antropol. XXIII, 1945.Pessoalmente, penso que o tratado de Vesalio vale como representao exibida do

  • 7/29/2019 Histmed2

    12/24

    hermtico terror e do poder do ofcio. Sendo de entender as observaes de Sylvius nosentido de que ele, sagazmente, surpreendera o impacto que o livro teria, como

    representao dos rituais, no exterior da corporao.

    4. Ser nos captulos II e IV, que desenvolverei, para o ilustrar profusamente, o papel da

    cirurgia como ordenador nuclear da gesta medicinae. Mas, para j, queria notar que,como contraponto dos gneros que reclamam intervenes mediatas sobre o objecto, acirurgia representou-se como o paradigma de uma medicina operatria, no sentido deexercer sobre o corpo um poder materialmente visvel. Noto que cirurgia e cura tm a

    mesma raiz etimolgica, sobre o lxico grego que designa mo.

    5. No captulo seguinte, tratarei especificamente desta cronologia mtica. Importa-metodavia notar j uma fico que a histria da medicina constituu: a decadncia, em

    Portugal e Espanha, da prtica e do ensino da medicina durante o sculo XVI e XVII,determinada pela hegemonia da escolstica jesutica e contrareformista em geral, pelarepresso e pelo controle clerical sobre os aparelhos polticos e culturais. Tal situao

    no se deixa surpreender nem na legislao que regulamenta o ofcio, nem na queestatui as instituies acadmicas, nem na literatura mdica.

    Tal como se verifica em Espanha com os Filipes, parece haver em Portugal umcompromisso orgnico entre o estado e as corporaes mdicas, pois sucedem-se emritmo crescente at ao reinado de Dom Joo IV os regulamentos, alvars e privilgios

    reais aos mdicos, cirurgies e boticrios. Ver elenco em anexo.Os estatutos de Dom Joo III para a Universidade de Coimbra instituem j a prticahospitalar como polo do ensino mdico e desde 1596 que se concediam ao lente de

    prima de anatomia da Universidade os cadveres dos justiados e dos estrangeiros quefaleciam no hospital. A reforma de Dom Joo IV, em 1653, reitera estipulando que o

    hospital fornea ao teatro anatmico dois sujeitos humanos por ano.Antonio de Almeida, Coleco de Estatutos, Leis e Alvars Relativos Medicina,

    Cirurgia (...), in Jornal de Coimbra, Coimbra 1813.Em Lisboa, o ensino predominantemen-te ministrado no Hospital Real de Todos osSantos, de que tratarei ainda. Quanto literatura, surprendemos muito cedo um vastoelenco de obras pelas quais os mdicos ou os prticos mais prximos das instituies

    ordenam as prticas dos gneros mais espontneos, manuais para algebristas,enfermeiros, sangradores, cirurgies de meia cirurgia, parteiras.

    Antonio Perez, Suma de Cirurgia, Lisboa, 1573; Joo Fragozo, Cirurgia Universal,Lisboa, 1586; Antonio Francisco da Costa, O Algebrista Perfeito, Lisboa, 1750; Ferreira

    Roque, Tratado de Phlebotomonia, vora, 1722; Antonio Gomes Loureno,Arte

    Flebotmica, Lisboa 1741; Manuel Leyto, Practica de Barbeiros, Lisboa, 1604;Quental Vieira, Guia de Sangradores, Lisboa, 1669; Leonardo de PristoBarreira,Practica de Barbeiros Plebotomanos, ou Sangradores reformada, Coimbra,

    1719.

  • 7/29/2019 Histmed2

    13/24

    IIReconstruir o caos na sua elementar desordem, surpreender um objecto ininteligvel.

    Ou uma teoria geral das artimanhas.

    A histria da medicina geralmente feita por mdicos. esse, de resto, o primeiro doscritrios que a investe na sua autoridade.(1)

    Durante muito tempo andei convencido de que era indispensvel que uma outra histriada medicina fosse experimentada por um doente. No sei j em que lcidas condies,

    ou em que lcido momento, me desenganei de to crassa ingenuidade.Desde muito cedo que em Portugal a histria da medicina se constituu em disciplina

    indispensvel ao exerccio do ofcio e formao do oficial. Em 1911 entroudefinitivamente nos curricula escolares com o nome explcito de Histria e FilozofiaMdica, embora se ensinasse j no contexto da filosofia que constava do curriculum

    desde a Reforma de 1772 da Universidade de Coimbra.(2)

    Desde muito cedo tambm que em Portugal a histria da medicina ficou adstrita a umambiente peculiar, que lhe imprimiu as marcas de um subtil destino. Refiro-me

    gerao que no Porto e em particular na Escola Medico-Cirrgica se aglutinou em tornode Maximiano Lemos.

    Maximiano Lemos acabou o seu curso em 1881. Dois anos antes conclura-o RicardoJorge e no mesmo Jlio de Matos e Jos Leite de Vasconcelos. O Porto era aquele deuma intensa sociabilidade intelectual, que reunia os mdicos memria de Camilo e aum slido ambiente de erudio revolucionria. No firmamento intelectual portuense,pontificavam Joaquim de Vasconcelos, Carolina Mochaelis, Tefilo Braga, Sampaio

    Bruno, Adolfo Coelho.Interessa-me o Bruno, de O Porto Culto, de Os Portuenses Ilustres, interessa-me o

    Tefilo. Para neles antever o que me parece irreversvel, a matriz de uma histria queserve a medicina, porque constroi as fbulas que lhe toleram a ocorrncia retrica.

    Porque a histria da medicina portuguesa tem trs protagonistas, o judeu cristo novo, ocirurgio e o iluminado.

    Eis ento o encanto e a magia da histria da medicina portuguesa, pois tudo concorreupara edificar uma ordem rigorosa. O esboo cronolgico que arruma a dissertao

    inaugural de Maximiano em 1881, que j arrumara em 1860 a de Jos F. A. de GouveiaOsrio, o das Conferncias do Casino, atribui disciplina as configuraes retricas e

    os tpicos definitivos e para a ordem subtil desta arrumao que reclamo a ateno doleitor.

    Primeiro perodo, da criao dos Estudos de Santa Cruz fundao da Universidade.Segundo perodo at fundao do Hospital Real de Todos os Santos. Terceiro perodoat Reforma da Universidade de Coimbra. Eu acrescentaria um mais, que Maximiano

    sentiu um certo acanhamento de pronunciar explicitamente, at criao da EscolaMdico Cirrgica do Porto. Outro depois, claro.(3)

    E haveria, se no fossem os limites que impus a este esboo, de tratar a histria damedicina como a disciplina onde redunda uma peculiar cultura mdica, que o podium

    em que se consagra o peso social e poltico da classe, trao distinto do carcter dasociedade portuguesa da transio do sculo.

    pois como ritual de sociabilidade e socializao da classe, que a histria da mediciname interessa. E para ficar mais claro, interessa-me ainda notar que os grandes

    protagonistas da historiografia da medicina portuguesa se envolveram irreversivelmentena medicina forense e na anatomia. Maximiano foi director do Instituto Mdico Legal

  • 7/29/2019 Histmed2

    14/24

    do Porto, foi anatmico Hernni Monteiro e mdico forense J. A. Pires de Lima.Ricardo Jorge foi higienista, que outra forma de praticar uma medicina de inequvocoenvolvimento na ordenao institucional. E foi regente da cadeira de medicina legal e

    director da Morgue do Porto essa surpreendente personalidade que foi Joo Monteiro deMeira.

    Os mdicos apropriaram-se dos instrumentos institucionais e eruditos e estabeleceramos critrios que haveriam de constituir a histria em estrato, o mais slido, da retricamdica. Inventaram-lhe os protagonistas e edificaram os tpicos e entrelaos da

    narrativa que lhe conferiu ordem. A histria da medicina tornou-se, ento, num nvelnuclear das instituies mdicas em Portugal.(4)

    porventura a razo por que a histria da medicina em Portugal nunca deixou, salvoraras excepes que so algumas incurses de Egas Moniz e de Lus de Pina e as

    peculiares opes temticas de Silva Carvalho, aliciar pelas solicitaes que, um poucopor todo o lado, lhe eram dirigidas pela sociologia, pela etnografia, pela antropologia eque constituiram o primeiro aparato crtico que sobre os critrios internos se exerceu.(5)

    A histria da medicina tornou-se um discurso disciplinar mdico, que fez redundar o

    significado de medicina e de histria; e ainda bem que assim foi, pois esta redundnciadenunciou-me a medicina como histria, a instituio mdica como retrica histrica ou

    narrativa e deixou-me antever o territrio aonde ficara, em degredo, o acto e a prticamdica, j no seu sentido umdico, apenas como acto. Participando da natureza de todosos actos, sem o envolvimento, a coeso e a consequncia que lhe advm das artimanhas

    do discurso.Ora, ainda esta coeso, indissocivel na espcie, entre o acto mdico e a retricamdica, o primeiro instrumento da minha histria dos actos mdicos. J no como

    sujeito discursivo mas como discurso objecto, que no interessa submeter aos meusaparatos, mas estabelecer-lhe com rigor os seus; para que deixe surpreender as suasfantasias, as suas fices, as suas artimanhas, os seus ardis de que no quero seno

    apropriar-me.Porque a minha artimanha consiste em disparar a retrica da histria mdica bem paradentro da retrica mdica, em unidade indissocivel e como instituio nica, para nodeixar assediar o acto em duas frentes. Constituir a res medica em logos medicum, em

    retrica da mesma natureza da histria, em poder, em gesta medicinae.(6)Para mais a histria da medicina, nas suas manhosas artimanhas, opera uma ordemaparente num caos vulcnico. Na sua mais surpreendente e corrente produo, no

    chega a encontrar um objecto; multiplica-se em exerccios de erudio, constelados numespao aberto e sem limites para o qual no dispe de instrumentos de controle, importa

    dados j laborados ou adquiridos por outras disciplinas e nada ou pouco interroga ou

    investiga.(7)A artimanha de manuais como os de Maximiano Lemos, A. J. de Oliveira, AugustoSilva Carvalho, Esaguy, Ferreira de Mira ou Lus de Pina, consiste em, atravs de umesmerado trabalho de enfabulao e apropriando-se para o exercer em vasto horizonte

    cronolgico da narrativa do Compndio Histrico (ver nota 4), edificarem um processusque a rvore genealgica do seu prprio saber, mas tambm da sua autoridade. E que

    consagra a cirurgia como ordenador da gesta medicinae. a artimanha desta enfabulao o primeiro instrumento de que tenho que apropriar-me.

    (8)Porque a unidade ou coerncia do discurso disciplinar mdico, que retoriza como umanica instituio e um nico sistema uma diversidade amontoada de prticas, qumicas,

    cirrgicas, fsicas, mecnicas, matemticas, psquicas, rituais, invocatrias, jurdicas,institucionais, idntica coerncia da retrica da histria mdica que se constitui sobre

  • 7/29/2019 Histmed2

    15/24

    todas estas fracturas e descontinuidades e ainda sobre as prprias a um exercciodisciplinar alucinado pelo objecto. A medicina um manual, um manual de histria da

    medicina.Acontece ento que a histria da medicina invadiu um vasto campo transdisciplinar,

    desde a histria poltica e das instituies, histria das ideias cientficas e da cultura,

    da filologia e da filosofia, etc, etc,. Sem operar qualquer critrio interdisciplinar, seno ode fazer redundar a esmo todo este aparato no ncleo do seu escorreito aparatodiscursivo.

    Como opera esta desordem?Arrogando-se, de seguida, que o discurso, os critrios e o exerccio da histria da

    medicina so de espcie mdica.Sejam ento.

    E seja a minha histria do acto mdico de espcie histrica. E que prossiga uma reshistorica.

    Tudo o que disse ento redunda numa pergunta liminar: como se constituem os actos emespcie mdica?

  • 7/29/2019 Histmed2

    16/24

    Notas

    1. Histria da medicina e histria da filosofia, dois universos que me intressar ainda

    pr em confronto. A histria da filosofia como hermenutica filosfica e comogestaphilosophiae. Roger Cartier, A Histria Cultural, Difel, Lisboa, 1988.

    2. O texto da Reforma de 1772 particularmente explcito quando enuncia o papelorgnico da histria da medicina como extenso (ncleo) do discurso disciplinar

    mdico. Tratando da matria ao estabelecer os contedos da cadeira Instituciones,diz:Estas so as razoens que me movem estabelecer a cadeyra de Historia da Medicinae dos auctores que tractaro della, para que os estudantes no soubessem somente quesorte de livros havio de ler e de que modo; mas tambem a Historia da mesma Arte,que he o caminho para adquirir mais facilmente esta Sciencia. Embora a minha ideia

    seja a de que a histria da medicina se no distingue da prpria disciplina mdica, razo

    da permanente referncia autoridade histrica dos tratados, importa notar que adisciplina est explicitamente constituda em Portugal desde o sculo XVII. Ezequiel deCastro, Historia Medica, 1642; Zacuto Luzitano,De Medicorum Principium Historia,

    1667; Rodrigo de Castro, Manoel de Sa Mattos. No sculo XVI, j as Centuriae deAmato.

    Em Lus de Pina,Medicina e Mdicos na Histria da Filosofia em Portugal, in StudiumGenerale, II, 1-2, Porto, 1952, encontrei a mais radical expresso da conscincia do

    papel da histria da medicina como representao da coeso institucional da corporao.Ainda na suaHistria Geral da Medicina, citada adiante.

    Uma nota para a histria do ensino mdico, que toda a histria da medicina elege paraprimeiro objecto formal. A transmisso, a reproduo e o trnsito das ideias mdicascomo estrutura ideolgica da coeso do grupo. Como deixo explcito, a minha ideia

    que a histria da medicina portuguesa tem um tema nuclear: hospitais versusuniversidades, como ordenadores das grandes revolues no ensino mdico. Mas

    quando falo de ensino mdico, no esqueo os manuais e os tratados. neste duplo sentido que invoco o texto da Reforma de 1772, mas tambm o clssico

    de Maximiano Lemos,Histria do Ensino Mdico no Porto, Porto 1925.

    3. Jos F. A. de Gouveia Osrio,Notas para a Histria da Medicina Portuguesa,Orao Inaugural do Ano Acadmico de 1860/1861, in Gazeta Mdica do Porto, Porto,

    1860.

    Maximiano Lemos,A Medicina em Portugal at aos fins do sculo XVIII, DissertaoInaugural do Ano Acadmico de 1881/1882, Porto, 1881.

    4. Extemporaneamente, mas propositadamente, deixo aqui um fragmento exemplarsobre que se constituu toda retrica da histria mdica posterior.

    (...) os jesutas plantaram na Universidade de Coimbra a venenosa raz da FisicaEscolstica, que depois dos Novos Estatutos Jesuiticos s tem botado discrdias em

    sos e a morte nos enfermos. Sepultaram na ignorancia a verdadeira Fsica; a ChimicaFilosofica e a Farmaceutica; a Botanica; a Anatomia, que j Galeno chamava no seu

    tempo Olho Direito da Medicina.Confundiram o Estudo Practico com a Theoria; fazendo assim especulativas as

    enfermidades materiaes do corpo humano.Trata-se claro do Compndio Histrico...

  • 7/29/2019 Histmed2

    17/24

    Uma magnfica e concisa exposio do ambiente de trabalho e da sociabilidadeintelectual de Maximiano Lemos, encontrei-a no discurso pronunciado na Misericrdiado Porto por Hernni Monteiro, no centenrio do seu nascimento, Maximiano Lemos,Porto, 1960. Tambm no Prefcio de J. A. Pires de Lima a Histria do Ensino Mdico

    no Porto, j citado.

    4. Algumas obras de Lus de Pina e sobretudo aHistria Geral da Medicina revelamque, pelo menos, conhecia um amplo reportrio bibliogrfico e de tendncias. Em SilvaCarvalho surpreende-se um interesse notvel pelo estudo de prticas perifricas, ou porenfermidades que determinam amplos envolvimentos sociais e institucionais.Histriada Lepra em Portugal, Subsdios para a Histria das Parteiras em Portugal, etc.. Ver

    remessa bibliogrfica em anexo.Egas Moniz ainda me merecer referncia em especial.

    6. A conscincia da importncia da histria como ordenador do territrio disciplinar,constituu-a em objecto de uma verdadeira histria da histria. Hernni

    Monteiro,Evoluo do Ensino da Histria da Medicina, Porto, 1932; Lus dePina,Prlogo Histria Geral da Medicina, Porto, 1942. Foi aqui que descobri o

    objecto da minha prpria disciplina.

    7. crucial, tambm por motivos que adiante se tornaro claros, saber at que ponto asada a lume em 1883 dos Documentos Histricos da Cidade de Gabriel Pereira, em quepublica um amplo rol de documentos interessando histria das instituies mdicas,

    regimentos de fsicos e boticrios, alvars, regimentos de albergarias, etc., tersolicitado aos mdicos do Porto abertura para certas reas da histria das instituies

    mdicas. Entre 1889 e 1890 os Arquivos de Histria da Medicina Portuguesapublicaram importantes elencos documentais que interessam histria das instituiesmdicas, como por exemplo: Coleco de Estatutos, Leis, Alvars, Decretos e Ordens,

    Relativos Medicina e Cirurgia, AHMP, Tomos III e IV.Gabriel Pereira a publicou o cdice CXXIII/1-18 da Biblioteca Pblica de vora,cimlio precioso, em cuja capa jaz colada uma carta de Maximiano para o sbio

    eborense. A testar as ligaes entre Maximiano e Gabriel Pereira e a mtua estima,esto as dedicatrias pessoais que todos os exemplares das obras do portuense na BPE

    ostentam.

    8. Os tpicos desta mitologia, que tecem a trama da enfabulao, podem sersurpreendidos em qualquer manual ou bosquejo histrico. Mas tambm na escolha dos

    objectos temticos das monografias: Amato e em geral todos os judeus ou cristosnovos, Ribeiro Sanches, a cirurgia e as gestas da anatomia e as aventuras da dissecao,a urologia, a farmacologia experimental do renascimento ao sculo XIX. Mas,

    sobretudo, a importncia que a cirurgia tem em toda a teia historiogrfica e a oposio,seja real ou construda, entre as instituies hospitalares e as universidades.

    A sucesso dos tempos mticos do processus: a ressurgncia galnica na escolasalernitana, a anatomia e a dissecao; o obscurantismo fradesco medieval; o

    renascimento da anatomia e da cirurgia no sculo XVI, Vesalio, Pareo, a farmacologiade Paracelso a Van Helmont; as dinastias de judeus portugueses e espanhois e a

    corrosiva represso jesutica na Pennsula nos sculo XVII e XVIII; a mo de ferro doMarqus de Pombal, Verney e Ribeiro Sanches; a reviradeira e a resistncia heroica de

    Dom Francisco de Lemos na Universidade de Coimbra.As peas que como paradigma proporia para uma sondagem: Silva Carvalho,A

  • 7/29/2019 Histmed2

    18/24

    Medicina Portuguesa no Sculo XVI, Memrias da Academia das Cincias de Lisboa,Volume III, 1940; Lus de Pina,Histoire de la Medicine Portuguaise (Abrg), Porto,

    1934; Joaquim Alberto Pires de Lima,A Medicina Forense em Portugal - EsbooHistrico, Porto, 1934, indispensvel.

    Curiosamente foi Pires de Lima que na dcada 1930/40 denunciou o decalque

    do Compndio Histrico na edificao dos tpicos da histria da medicina, mas entode um ponto de vista ideologicamente comprometido com os tpicos da historiografiado Estado Novo.Histria da Medicina Portuguesa, Porto, 1936;D. Afonso VI, Porto,

    1938.

  • 7/29/2019 Histmed2

    19/24

    IIIO ambguo domnio de uma histria dos actos mdicos.

    Ainda uma teoria geral das artimanhas.

    Assediarei ento previamente a cidadela pela sua porte nobre. Edificarei uma histria dahistria da medicina, uma archihistria da medicina. Tentarei encontrar a sua ordem

    para surpreender o que j antevejo, o seu caos.Porque no seu caos no j um vestgio de si prpria, mas dos actos mdicos, da sua

    irreverncia e da sua ocorrncia. No foi a medicina que disciplinou os actos mdicos,foram os actos que se quiseram representar em medicina, em instituio que se

    constituisse nas condies, todavia aparentes, que presumem o exerccio discricionriodo acto.(1)

    E se os actos mdicos no tivessem deixado outros vestgios, seno a histria da

    medicina?Poderamos pensar que um bom vestgio de um acto mdico, absoluto e real, umdiagnstico, um certificado, uma sentena jurdica do foro mdico, a expresso de

    indignao ou sofrimento de um doente, ou de alvio, ou de repulsa, uma disposio deum regimento de um hospital, a inexorvel expresso regimentria do estatuto de ummdico, um instrumento operativo do ofcio, uma receita, o aparato instrumental ou

    institucional de uma dissecao ou interveno cirrgica, um grito, um suspiro. E queassim esboara o primeiro aparato de tpicos para a minha histria dos actos mdicos.

    (2)E mesmo assim, no saberia sequer como desempoeir-los, como lhes extrair o cheiro

    bolorento dos arquivos, a no ser em contraponto com a retrica e o discurso disciplinar.Quero dizer que s na medida em que se assume na fico e se introduz esquivamentena artimanha contituindo-se em espcie, que o vestgio e o acto que lhe subjaz pode

    inundar o discurso, contituindo-se numa nova narrativa que, se o no torna acessvel emsi, torna perceptvel a desordem que operou secretamente no real.(3) Porque talvez aretrica no tenha ordenado os actos, mas, na sua historicidade, tenha constitudo ela

    prpria os vestgios.Eis ento que uma histria geral dos actos sempre um exerccio mediatizado pelosvestgios que a retrica disciplinar, como produtora da histria e da historicidade dosobjectos, constituiu. Ora eis que o aparato de uma histria da histria da medicina,

    uma histria que tenha por objecto uma res gestae medicinae, que tem que mediatizar

    at os critrios das opes arquivsticas.(4)Quer isto dizer que nem sequer posso constituir os aparatos que qualifiquem os meusobjectos, sem perscutar a desordem em que a retrica disciplinar edificou os vestgios.Que no j s a desordem prpria irreverente ocorrncia dos actos, mas tambm

    ocorrncia da retrica que os subverteu em espcie.Porque o vestgio algo que se enquistou num subtil estrato entre os actos e a retrica,

    mas que , inexoravelmente, constitudo pela narrativa.Uma histria ento do acto mdico, porque uma histria experimental. De toda a

    histria.Fundar com certeza uma retrica experimental da relao da narrativa com osvestgios, da histria com as histrias de um objecto e de uma disciplina; para

    cartografar as mtuas desordens, as mtuas fracturas e descontinuidades e avaliar asvulnerabilidades.

  • 7/29/2019 Histmed2

    20/24

    Ter que presumir que nada existe seno na sua historicidade, investido nas artimanhasque ela lhe confere e enquistado num processus que constituu a nossa prpria ideia de

    cosmos. Uma Archihistria.Sinteticamente, um acto mdico, nos seus vestgios e na sua historicidade, s existe

    como res medica, embora possamos, retoricamente, constituir actos em si, depurados de

    espcie. Porque o vestgio o constitutivo retrico de um acto.Haverei ento de reconstituir os aparatos que sirvam de suporte minha tentativa deuma histria da histria mdica, em duas frentes: na reconstituio analtica dos

    aparatos retricos da histria da medicina como espcie retrica mdica; nareconstituio dos aparatos retricos que depurem o acto da sua retrica espcie e

    isolem, ento, a histria mdica como constitutiva da medicina, quero dizer da espciedo acto.

  • 7/29/2019 Histmed2

    21/24

    Notas

    1. Ocorre-me aqui citar uma passagem de Lus de Pina,Abrg:En ce qui concerne laprofession on peut dire que les decrets royaux n'ont pu rformer les vieilles habitudes:

    une lgion de personnes, non diplomes, exerant la mdicine, saigneurs, algebristas,barbeiros, mulheres de virtude, etc.Pour viter cet tat de choses, une loi de 1392 oblige tous ceux qui voudraient la

    pratiquer, tre examins par le fisico mor.Para suprir a falta de licenciados, esta multido de prticos ser o suporte da instituio

    mdica ainda no sculo XVIII em Portugal. O papel fundamental do fsico mor e, nocontexto regional, dos mdicos dos partidos, encartar todos estes oficiais menores.

    Mau grado o exame, a sua prtica no necessriamente igual dos mdicos, mesmo seassumirmos a fico que a dos mdicos igual entre si. Quantas vezes no assumida e

    inequivocamente mgica?So as disposies regimentais que lhe conferem espcie mdica. Em outro texto

    desenvolvo de resto este tema at ao absurdo de, com Diego Torres Villaroel, concluirque o que distingue as duas medicinas a forma de locomoo dos seus oficiais.Doctor

    a pie.Ver ainda em Casmak, obra citada, o papel de um algebrista, o seu estatuto e a sua

    condio, nas conferncias de uma junta mdica que amputou um brao a Tristo daCunha. Casmak, que tenta obscuramente no prover explicitamente na razo o

    algebrista, que teimava que o fidalgo tinha o rdio e o cbito fracturados, narra umtratamento em tudo contrrio aos sintomas que nem consegue omitir. O resultado a

    mortificao e amputao. claro que a histria da medicina se apropriou deste assunto para reforar as suas tesesde decadncia e atraso relativo da medicina e da cultura em Portugal at reforma da

    Universidade, sustentando que este exrcito de empricos no diplomados se constituano maior bloqueio a um equilibrado desenvolvimento cientfico. Mais adiante avaliarei

    a contradio sobre que se edificou esta peregrina ideia, que mal pode conviver comaqueloutra de uma medicina catedrtica e especulativa, dominada por telogos, frades e

    todo o gnero de tericos.Resta-me registar que C.R. Boxer, num estudo que considero de leitura obrigatria,

    repete, tambm ele, exaustivamente estema. Some remarks on the social andprofessional status of phisician and surgeons in the iberian world, 16th-18th century,

    Revista de Histria de S. Paulo, Volume L, Tomo 1, 1974. Diznomeadamente:There (neste domnio efectivo das disciplinas empricas, sangradores,

    algebristas, parteiras, etc.) can be no doubt that the teaching and practise of medicineand surgery in Portugal lagged badly that of most West European Countries, includingSpain, France, Itally, England and the Neederlands.

    Para surpreender, mesmo mediatamente, o papel institucional destes oficiais, para almdo clssico de Hernni Monteiro, Origens da Cirurgia Portuense, j citado, ver ainda:Alfredo Lus Lopes, Contribuio para a Histria das Cincias Mdicas em Portugal:

    O Hospital Real de Todos os Santos, Lisboa, 1890; Santos Costa, Sobre Barbeiros eSangradores no Hospital Real de Todos os Santos, AHMP, XII, 1922; Silva

    Carvalho, Os Cirurgies Ambulantes em Portugal e Espanha, Lisboa, 1930. Verremessa bibliogrfica anexa.

    Uma meno especial para Iria Gonalves,Fsicos e Cirurgies Quatrocentistas; As

    Cartas de Exame, in Do Tempo E Da Histria, Volume I, Lisboa, 1965.

  • 7/29/2019 Histmed2

    22/24

    2. Relembro agora a nota (6) ao segundo captulo, para notar esta alucinao que, apartir da publicao dos tomos III e IV dos Arquivos de Histria da Medicina

    Portuguesa, se contituu entre os historiadores da medicina, pela qual lhes pareciapoderem surpreender algo que no tinham vislumbrado, manipulando um novo aparatode vestgios. Sendo todavia uma ruptura aprecivel, aqui se haveria de edificar um novo

    domnio de legitimao da retrica mdica.

    3. Num interessante artigo sobre a literatura mdica no sculo XVI, que o envolveunuma intensa polmica com Ricardo Jorge e que cito em anexo, Silva Carvalho explica-nos as razes porque excluiu oDialogo da Perfeiam e Partes que sam necessarias aoBom Medico, de Afonso de Miranda, do mbito da literatura de natureza restritamente

    mdica. Recusando assim discricionariamente assumir o vestgio e denunciando umcritrio liminar para atribuio de espcie mdica a um objecto.

    ODialogo da Perfeiam, que reproduz um paradigma que anda perdido nas origens dadramaturgia e comdia castelhana, imortalizado por Juan de Mena, um importante

    vestgio da descrena na medicina.

    Na terceira dcada do sculo XVIII, Don Diego de Torres Villaroel, Cathedratico deMathematicas de Salamanca, um dos mais sbios pcaros castelhanos, protaginiza uma

    intensa produo de textos deste gnero, que me parecem obedecer a um programa dedenncia da vulnerabilidade dos tpicos da modernidade, de que a medicina serepresenta como paradigma. Este empreendimento tem eloquentes sequazes em

    Portugal, no domnio de um alucinante universo de literaturas marginais que devepassar a ser abordado com outros critrios, lunrios, prognsticos, calendrios,

    almanaques, como Antnio Pequeno. em Diego de Torres que surpreendo uma notvel conjuno com os assuntos que

    verso neste ensaio:La medicina nadie la conoce; dicese que hai, pero nadie sabe donde vive. El Medico esun embuste politico, que solo sirve de engalanar las republicas: assiste a los enfermos,pero no los sana; es un testigo de los triumphos de la naturaleza, los milagros, y las

    muertes. qui alguma perverso, mas porventura a melhor denncia explcita da minha

    inteno, o querer investir em espcie mdica estes vestgios.No resisto a fazer, mesmo aqui, o registo de alguma produo de Diego Villaroel:Medico para el bolsillo. Doctor a pie, Hypocrates chiquito. Medicina breve, facil, ybarata, para mantener los cuerpos en salud, y curar de los achaques mas comunes.Sirve desde este presente ao, hasta el dia de Juicio particular de cada pobre. Y la

    enva desde Portugal, unos de valde, y otros per su dinero. En Sevilla, en la

    Imprensa Real de Don Diego Lopes de Haro, en calle de Genova. 1734.El Hermitano y Torres. Aventura curiosa, en que se trata lo mas secreto de laPhilosophia, y outras curiosidades de los mysteriosos Arcanos de los Chemistas. En la

    Imprensa de Diego Lopes de Haro, en Sevilla, calle de Genova.

    4. Assim esclareo o sentido da nota (3) ao Prlogo deste estudo. Basta que se perscutea apropriao retrica que, na literatura proposta nessa nota, se faz de um caso, de uma

    enfermidade, ou de uma sucesso de actos e ocorrncias clnicas.A narrao clnica ou cirrgica, que serve de pretexto ao diagnstico, aprisionou os

    actos e as ocorrncias numa trama subtil, transportando-os para um contexto narrativoque edifica a continuidade e um territrio ambguo que j o da retrica.

    esta a natureza dos vestgios.

  • 7/29/2019 Histmed2

    23/24

    IVEntre o hermtico aparato instrumental da percia operatria

    e a retrica do discurso disciplinar.De novo Vesalio e Maximiano.

    No resisto a depr aqui outra fbula. Numa pequena publicao com que Lus de Pinainvocou, na passagem do centenrio do seu nascimento, a memria de Maximiano,

    transcreveu uma faccia de um romance de Joo de Meira.Joo Monteiro de Meira foi o primeiro Professor designado para titular da cadeira de

    Histria e Filosofia Mdica na Escola Mdica do Porto e s no a chegou a exercer porter subitamente morrido num desastre de viao. Foi substitudo por Maximiano. Foi

    todavia um dos fundadores da disciplina na escola portuense e assduo colaborador noempreendimento dos Arquivos. Mas foi como romancista que me proporcionou estepequeno trecho, em que se insinua a mais subtil operao da historiografia mdica.

    Muito poderia ainda discorrer sobre a forma como Lus de Pina enxertou o fragmento

    literrio na sua retrica invocatria. Ele prprio disse bastante:Perdoai-me generosissimamente esta intromisso de Meira no meu discurso. que elecabia aqui com toda a justeza, to ilucidativo o seu caso para a histria dos mdicos

    letrados da Escola Portuense, como foi Maximiano.Eis ento o trecho do Meira:

    Que sim, que conhecia muito bem o Maximiano Lemos, disse o Eusbio Macrio, queera um grande homem, um ilustre escritor, um segundo Jos Agostinho de Macedo; que

    nestas coisas de Medicina, sabia muito de velharias, de livros, de judeus e outrastrapalhadas inteis.

    Que porm a respeito de clnica, no lhe constava que a fizesse e at sabia pouco deremdios, ignorava os unguentos, as prolas e as pomadas.

    O lapidar excerto interessou-me pela descontinuidade que insinua entre a erudiomdica e as condies do exerccio da prtica clnica, quando se trata de representar otodo que a corporao. A ideia a de que a legitimidade em que se investe o prtico

    do exerccio do ofcio, o reverso da complacncia que reverte em desabono da prticasocial e cultural do erudito. Dois saberes em descontinuidade, uma hierarquia: uns

    sabem de judeus e de velharias e outros de remdios e de curas.Mas ainda assim pouco. Por isso interessa-me remastigar Vesalio.

    Penso que uma das razes porque oDe Humani Corporis Fabrica foi to mal recebidoem muitos meios e entre alguns dos mestres de Vesalio, foi porque traa a hermtica

    conspiratividade que envolve os ritos de manipulao operatria. Porque era privilgio

    dos cirurgies aquele irredutvel conhecimento da fbrica humana e porque esseprivilgio tinha por apangio uma conjura, o exerccio conspirativo de um poder secretoinvestido nos seus ritos de iniciao e de coeso. Diante agora de Carlos V expunha-se

    toda a conspiratividade do ofcio, os furtivos roubos de cadveres, as operaes manuaise os aparatos instrumentais e reclamava-se afinal a solidariedade do prncipe.

    Claro, diria Sylvius, s falta a prova inicitica de aplicar as mos dissecao de umcadver, porque o segredo do cirurgio no est na nomenclatura nem na morfologia das

    partes, mas na percia que move a ponta acerada do escalpelo. nesta contradio que culmina, no eixo da sua historicidade, toda a medicina.

    Ora, j notei que a palavra cura, como de resto cirurgia, se constituu sobre o lxicogrego que designa mo.

    Poderia acrescentar agora que a histria da medicina, exercida como a histria dacorporao e do ofcio, a histria de um tenaz, corrosivo e insinuante contencioso

  • 7/29/2019 Histmed2

    24/24

    entre os mdicos e cirurgies. Antes de poder avaliar em profundidade o significadodeste contencioso, ningum sabe nada de histria da medicina.

    E foi sobre este contencioso, medida que se decifrou e se explicitou, que se edificou opapel protagonista da medicina e dos seus tpicos na fundao da modernidade. E no

    contnuo reajustamento do conceito de modernidade.