História Da Filosofia Do Direito - Jean-Cassien Billier e Aglaê Maryioli

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História Da Filosofia Do Direito, de Jean-Cassien Billier e Aglaê Maryioli, não é apenas um livro, mas um convite a um mundo em que as coisas são vivas e pulsantes, são, ademais, convidativas.

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  • HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

    Jean-Cassien Billier

    Professor de Filosofia da Universit de Ia Sorbonne Paris I e do

    Institut Universitaire Europen de Florence

    Agla Maryioli

    Advogada Doutora em Direito pelo Institut Universitaire Europen de Florence Ex-

    professora da Universit Catholique de Louvain-Ia-Neuve e da Universit de

    Rouen

    At

    ?J/;/ W!Q

    Manole

  • Ttulo do original em francs: Histoire de Ia philosophie du droit

    Copyright @ Armand Colin Publisher / VUEF, 2001

    Traduo: Maurcio de Andrade

    Tradutor tcnico e literrio especializado em ingls, francs e alemo Reviso cientfica: Ari Marcelo Solon

    Professor Associado da Universidade de So Paulo

    Professor de Ps-graduao da Universidade Mackenzie

    Editorao eletrnica: Francisco Lavorini

    Capa e imagem da capa: Hlio de Almeida

    SUMRio

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO

    NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

    B494h

    Billier, Jean-Cassien

    Histria da filosofia do direito / Jean-Cassien, Agla Maryioli ; traduo de

    Maurcio de Andrade. - Barueri, SP : Manole, 2005

    Traduo de: Histoire de Ia philosophie du droit Inclui bibliografia ISBN 85-204-1601-2

    Introduo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

    XllI

    1. Direito - Filosofia. 2. Direito - Histria. I. Maryioli, Agla. n. Ttulo.

    PRIMEIRA PARTE

    A FUNDAO GRECO-

    LATINA 04-2906. CDU 340.12 Captulo 1 A fundao grega. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2

    1. Urna fundao relativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . . 2 2. A hiptese de urna viso completa do direito entre os gregos. .

    . 6 3. A completude do direito e da tica no seio da plis e do

    poltico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

    3.1 A questo do direito pela questo do brbaro. . . . . . . . . . 7 3.2

    O ser humano e a lei. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

    3.3 A complexidade do nomos """""""""""'" 14 3.4 tica e direito. . . . . . . .

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 16 3.5 Direito e sophia

    """"""""""""""""" 27 3.6A questo da melhor lei. . . . . . . . . . . . . . . .

    . . . . . . . . . . . 29

    3.7 A lei e sua escrita. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

    4. A completude do direito natural e do direito

    positivo: physis e nomos ............................................................... 34

    4.1 A autonomizao do direito com relao histria. . . . 41

    Todos os direitos reservados.

    Nenhuma parte deste livro poder ser reproduzida, por qualquer

    processo, sem a permisso expressa dos editores.

    proibida a reproduo por xerox.

    Direitos em lngua portuguesa adquiridos pela:

    Editora Manole Ltda.

    Avenida Ceci, 672 - Tambor

    06460-120 - Barueri - SP - Brasil

    Fone: (11) 4196-6000 - Fax: (I 1) 4196-6021

    www.manole.com.br

    [email protected]

    Impresso no Brasil

    Printed in Brazil

  • vi

    HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO SUMRIO vii

    4.2 A referncia a uma fsica particular. . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 4.3 O

    direito como cincia da diviso e da repartio. . . . . . 45

    5. Completude do direito e pluralidade das ordens jurdicas

    no universo grego. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . 48

    Captulo 5 A construo da modernidade ......................................... , ......... 134

    1. A antropologizao do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 134 2.

    Grotius . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

    3. Hobbes .................................................................................................. 138

    4. Espinosa """"""""""""""""""""" 142 5. Pufendorf """""""""""""""""""'" 145 6. Locke

    """""""""""""""""""""'" 145

    7. Rousseau .............................................................................................. 148

    8. Kant ....................................................................................................... 151

    9. A questo dos direitos inalienveis: as declaraes dos

    direitos humanos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166

    10. Hegel ................................................................................................... 181

    11. Os positivismos ................................................................................... 186

    Captulo 2 Personagens da teoria grega do direito. . . . . . . . .

    . 53

    1. Legisladores: Drcon, Slon, Licurgo, Clstenes ........................ 53

    1.1 Drcon................................................................................... 54

    1.2 Slon ..................................................................................... 55

    1.3 Licurgo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

    1.4 Clstenes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

    2. A modernidade dos sofistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

    2.1 A sofstica naturalista: Antifonte, Trasmaco, Hpias,

    Clicles .................................................................................... 59

    2.2 A sofstica convencionalista: O Protrptico de Jmblico,

    Crtias e Protgoras ................................................................ 62

    3. Plato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

    4. Aristteles ........................................................................... 79

    5. Epicuro .............................................................................. 90

    6. Os esticos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . " . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

    TERCEIRA PARTE

    A CRISE DO DIREITO NO SCULO XX

    SEGUNDA PARTE

    A HERANA JUDAICO-CRIST E A CONSTRUO DA MODERNIDADE

    Captulo 6 As teorias formalistas ................................................ 194

    1. O paradigma formalista de Hans Kelsen ....................................194

    1.10 contexto epistemolgico de emergncia do

    normativismo ....................................................................... , .......................................194

    1.2 Uma concepo anti-imperativista do direito. . . . . . . . 200 1.3

    O direito como sistema das normas hierarquizadas ... 202

    1.4 A rejeio do jusnaturalismo................................................204

    1.5 Validade e eficcia da ordem jurdica. . . . . . . . . . . . . . . 206 1.6

    As dificuldades internas do normativismo .. . . . . . . . . . 211 1. 7

    Teoria pura do direito ou teoria do direito puro?

    O dualismo irredutvel do Ser e do Dever-Ser. . . . . . . . . 214

    1.8 O objeto da cincia do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

    2. Carr de Malberg ou o positivismo estadista francs. . . . . . 226

    2.1 O contexto de emergncia da doutrina de Carr

    de Malberg ............................................................................... , ........................................... 226

    Captulo 3 A via romana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 1. A

    herana ambgua. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . 98 2. Teoria do direito e fIlosofia do direito em Roma. . . . . . . . . .

    101

    Captulo 4 Aheranajudaico-crist ......................................112

    1. A fonte bblica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    112 2. O pensamento medieval, o direito segundo Toms de

    Aquino e a evoluo do pensamento escolstico """'" 120

  • viii

    HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO SUMRIO ix

    2.2 A submisso do Estado ao direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . 228

    2.3 A ordem jurdica: hierarquia dos rgos, das

    normas ou das funes? ......................................................... 232

    5.3.1 A idia de pluralismo jurdico. . . . . . . . . . . . . . . . . . 303

    5.3.2 O direito objetivo segundo Lon Duguit .., .................. 313

    5.3.3 O pensamento de Georges Gurvitch ..., ........................ 320

    5.3.4 O fato normativo segundo Gurvitch .., ......................... 321

    5.3.5 O direito social segundo Gurvitch ..., ........................... 324

    5.3.6 A teoria institucionalista do direito de Maurice

    Hauriou . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    330

    5.3.7 O institucionalismo de Santi Romano. . . . . . . . . . . 335

    5.4 As teorias marxistas do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 340

    6. Os tpicos jurdicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 347

    Captulo 7 As teorias antiformalistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237

    1. O decisionismo de Carl Schmitt ............................................... 237

    1.1 A crtica do normativismo .................................................... 239

    1.2 A exceo no fundamento do decisionismo . . . . . . . . . . 240

    1.3 O decisionismo, o normativismo e o institucionalismo .. 246

    1.4 A crtica do liberalismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    248

    2. O realismo americano. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    251 2.1 Primeira tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    252 2.2 Segunda tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . . . . . . 254 2.3 Terceira tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . . . . . . 256 2.4 Quarta tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . . . . . . . . . . . 258

    3. O realismo escandinavo .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    261

    3.1 As teses dos realistas escandinavos ...................................... 261

    3.2 Crtica ao realismo de Alf Ross ........................................... 266

    4. Franois Gny e a Escola do direito livre. . . . . . . . . . . . . . . . 268

    4.1 O pluralismo das fontes de direito. . . . . . . . . . . . . . . . . 269 4.2

    A livre pesquisa do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273

    5. A sociologia do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277

    5.1 Da jurisprudncia dos interesses sociologia jurdica. 277

    5.1.1 A jurisprudncia dos interesses. . . . . . . . . . . . . . . . . 277

    5.1.2 Nas origens da sociologia do direito: concepes

    europias e anglo-saxnicas ............................................... 280

    5.2 O enfoque sociolgico do direito de Max Weber . . . . . . 288

    5.2.1 O formalismo normativista de Max Weber . . . . . . . 289

    5.2.2 A racionalidade weberiana do direito. . . . . . . . . . . 293

    5.2.3 Para uma crtica das teses weberianas """"'" 295 5.2.4 O

    Estado de direito e o decisionismo weberiano " 297

    5.3 As teorias do pluralismo jurdico. . . . . . . . . . . . . . . . . .

    303

    Captulo 8 As teorias idealistas do direito. . . . . . . . . . . . . . . . 351

    1. O neokantismo de DeI Vecchio e de Stammler ..................... ,... 351

    2. A fenomenologia do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    357

    2.1 Edmund Husserl e o mtodo fenomenolgico ...,... 357

    2.2 As anlises de A. Reinach e de Gerhart Husserl ....... ,. 359

    2.3 O existencialismo jurdico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    362 Captulo 9 O renas cimento do direito natural. . . . . . . . . . . . 368

    1. Leo Strauss e a crtica da modernidade ...................................... 368

    2. O renas cimento do direito natural na Alemanha. . . . . . . . . 374

    3. O antimodernismo de Michel Villey* ........................................ 379

    4. Finnis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . '. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . 385

    Captulo 10 As metamorfoses do positivismo jurdico. . . . . . 387 1.

    A designao dos modelos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 387 2. A

    crtica do positivismo tradicional por H. L. A. Hart ...,. 397

    2.1 A definio do direito como textura aberta. . . . . . . . . .

    402 2.2 A estrutura do sistema de direito. . . . . . . . . . . . . . . . .

    . . 406 2.3 Incerteza quanto regra de reconhecimento. . . . . .

    . . . 409

    * Escrito por Jean-Cassien Billier.

  • x HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

    3. O neo-institucionalismo: Neil MacCormick e Ota

    Weinberger ................................................................................. 412

    4. Ronald Dworkin: criao e aplicao do direito. . . . . . . . . . 419 4.1

    A interpretao construtiva do direito. . . . . . . . . . . . . . 419

    4.2 O liberalismo dworkiniano ................................................... 424

    4.3 Princpios e polticas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 426

    5. A reconstruo habermasiana do direito. . . . . . . . . . . . . . . . 429

    5.1 Um modelo de justia processual. . . . . . . . . . . . . . . . . . 433 5.2

    Justificao e aplicao do direito: Klaus Gnther "" 437

    6. A teoria da autopoiese e o direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 440 7.

    A evoluo da teoria italiana do direito e a crtica do

    positivismo jurdico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    448

    8. O questionamento radical do positivismo jurdico. . . . . . . 458

    8.1 A crtica desconstrucionista do direito: o movimento

    dos Critical Legal Studies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 458

    8.2 O ceticismo desconstrucionista de Stanley Fish . . . . . . . 464

    8.3 O neonietzschesmo de Michel Foucault* ........................... 470

    Para Nikita

    Concluso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    476

    Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    479

    * Escrito por ]ean-Cassien Billier.

  • INTROduo

    UMA HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO no obrigatoriamente urna

    filosofia da histria da filosofia do direito. Certamente preciso des-

    confiar de urna neutralidade axiolgica ingnua que pretendesse garantir

    urna apresentao objetiva de um cortejo histrico de doutrinas: a de-

    limitao do quadro histrico, a nfase dada a este ou quele momento da

    histria do pensamento e a prpria leitura de cada um desses momentos

    so diversos pontos de urna inevitvel tornada de posio. Em

    compensao, a pretenso sistemtica e, principalmente, a ambio de

    extrair da cronologia das doutrinas a construo de um sentido geral da

    filosofia do direito podem ser excludas em conjunto pelos autores, o que

    o caso aqui. O que anima esta obra a simples convico de que a

    compreenso dos debates contemporneos sobre a filosofia do direito

    supe urna perspectiva dupla: por um lado, a Histria remetendo o leitor

    contemporneo s problemticas antigas, gregas e latinas, e lhe indicando

    a importncia da raiz judaico-crist; por outro lado, a tentativa de

    desenhar mais precisamente os contornos das construes tericas

    mltiplas e muitas vezes concorrentes do sculo xx. Parafraseando

  • xiv

    HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO INTRODUO xv

    o que diz Ernst Tugendhat nas proposies introdutrias da primeira de suas

    Confrences sur l'thique1, poder-se-ia dizer que o principal erro possvel em

    matria de direito e de filosofia do direito hoje em dia consiste em opor

    esses dois domnios, como se o direito pudesse ser uma doutrina pura em

    atuao nas instituies soberanas sem implicar uma filosofia subjacente,

    ou como se a filosofia poltica geral pudesse fazer abstrao da dimenso

    jurdica. O primeiro caso evidentemente anormal, j que tal posio por

    parte dos juristas seria ainda filosfica, no sentido, por exemplo, de um

    normativismo positivista e estatal inconsciente de si mesmo, ou de um

    "direito jurdico limitado" em todo o sentido da expresso, inicialmente

    hegeliano.2 O segundo seria ainda mais anormal, j que a filosofia desde a

    Antiguidade no deixou de se debruar sobre a questo do direito pela

    pena dos mais ilustres representantes, de Plato e Aristteles at Kant

    e Hegel, isso para no falar - o que este livro far - dos tericos do

    sculo XX. Em suma, para parafrasear as proposies de Tugendhat a

    propsito da tica, o conflito fundamental no aquele que ope o direito

    e a filosofia, mas com toda evidncia aquele que ope diferentes

    concepes da filosofia do direito. Dar ao

    leitor os meios de se orientar por essas diferentes concepes a grande

    ambio deste livro, que tem uma simples vocao pedaggica.

    necessrio tambm explicar aqui as escolhas que orientaram a

    organizao desta obra.

    A primeira consiste em propor um conjunto historicamente dese-

    quilibrado. Um grande espao foi concedido s doutrinas do sculo XX,

    em detrimento de uma exposio detalhada de toda a histria da filo

    sofia do direito ocidental. Essa vontade de estender longamente a parte

    sobre o sculo XX corresponde idia de que talvez ele seja o menos

    conhecido do leitor nefito em matria de filosofia do direito, alm de ser

    evidentemente o mais crucial para que esse mesmo leitor se possa

    orientar nos debates da filosofia do direito contempornea. Convm ob-

    servar, todavia, que esta obra no pretende fazer a histria do presente,

    mas modestamente pr em evidncia as doutrinas que condicionam em

    grande parte os debates contemporneos.

    A segunda consiste em infligir ao leitor um segundo desequilbrio

    na apresentao do imenso perodo que se estende da Antiguidade ao s-

    culo XX. Dessa vez, a Antiguidade greco-Iatina que ocupa a maior par

    te. Essa desigualdade deliberada de tratamento corresponde mesma

    preocupao que motiva a nfase no sculo XX: considerou-se que

    o perodo da histria da filosofia poltica e jurdica que foi mais

    extensamente coberto por grande nmero de estudos, que vo desde as

    mais simples exposies pedaggicas s anlises mais eruditas e

    exaustivas, exatamente o que vai da Renascena ao sculo XX, e

    que por isso tambm o mais bem conhecido. Em vez de fazer uma

    nova exposio sistemtica de todas as doutrinas desse longo perodo,

    preferiu-se no apresentar mais que pontos de referncia, insistindo

    especialmente sobre a originalidade da fonte judaico-crist de parte das

    idias da tradio jurdico-poltica oci

    dental. Essa limitao permitiu, em compensao, dar mais ateno

    Antiguidade, e tentar recolocar as invenes gregas em matria de

    filosofia do direito no corpo completo do pensamento tico antigo.

    O ilustre filsofo italiano Norberto Bobbio declarou um dia que

    amava pouco as histrias da filosofia do direito em si mesmas, porque

    desse modo elas no podiam ser mais que catlogos de doutrinas assaz

    heterogneas: aqui uma teoria poltica, acol uma teoria do direito.3 Este 1 Ernst Tugendhat, Confrences sur l'thique (1993), trad. Marie-Noelle Ryan,

    PUF, 1998, p. 19. Ns parafraseamos muito livremente, porque nessa passagem

    Tugendhat contrape o debate necessrio entre as diferentes concepes morais

    com o debate incerto entre um ponto de vista moral e um ponto de vista no-

    moral.

    2 Encyclopdie, 1830, III, 486.

    3 N. Bobbio, "Nature et fonction de Ia philosophie du droit", in Archives de

    philosophie du droit, n. 7, Sirey, 1962, p. 9.

  • xvi HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

    livro no escapa dessa crtica. Mas tambm evidente que essa

    heterogeneidade revela inevitavelmente aquilo que existe entre as ml

    tiplas vias de acesso filosofia do direito. A obra de Hart, por exemplo,

    remete muito intimamente ao direito, no ponto em que o pensamento

    de Rousseau convida a uma reflexo sobre a lei no quadro amplo de

    uma filosofia mais poltica que jurdica. Mas a prpria diversidade de

    nfase faz a riqueza da histria da filosofia do direito. A vontade de con-

    servar a trama histrica nesta exposio ainda pedaggica: pode-se

    talvez deve-se - ler o mximo sobre a base de uma lenta evoluo do

    pensamento. Assim, quando um leitor moderno descobre um artigo de

    John Mackie sobre Ronald Dworkin, diagnosticando na obra deste ltimo

    uma "terceira teoria do direito"4 entre o positivismo jurdico e o

    jusnaturalismo, o interesse dessa anlise decuplicado pela conscincia

    informada sobre a longa e complexa histria da formao dessas duas

    posies a respeito do direito. O esclarecimento histrico , pois, o ob

    jetivo modesto deste livro.

    PRiMEiRA PARTE

    A FU N DAO G RECO-LATI NA

    JEAN/CAssiEN BilliER

    4 John Mackie, "The third Theory of Law': in Philosophy and Public Affairs,

    v. 7, n. 1, 1977.

  • A FUNDAO GREGA 3

    A FUNDAO GREGA

    dado o risco de perder assim essa luminosa generalidade. Assim, do outro

    lado da Terra, a China no tem o que fazer com uma fundao grega da

    razo e do direito: ela prpria sabe bem como faz-Io.2 Atribuir Grcia

    Antiga a tarefa exorbitante de fundar a razo s pode proceder de uma

    evico do resto do mundo. A GrciaAntiga foi certamente um mundo

    prodigioso; mas ela no foi "o" mundo. Conhece-se, certamente, a clebre

    afirmao de Heidegger em Qu'est-ce que la philosophie?3: ''A filosofia

    grega em seu prprio ser - grego quer dizer, aqui, que a filosofia , em seu

    ser original, de natureza tal que foi em primeiro lugar o mundo grego, e

    somente ele, que ela apreendeu, reclamando-o para se desdobrar". Hegel e

    Husserl no disseram outra coisa antes de Heidegger.

    Sabe-se at que ponto, para o bem e para o mal, pode-se sustentar a

    tese de uma especificidade radical da razo grega e, conseqentemente,

    ocidental. preciso dizer que a posio de herdeiros da "razo" e da

    "democracia" ao mesmo tempo invejvel. A Grcia um ancestral

    muito interessante, no por ser verdadeiro, sem dvida, mas por ser

    esquecido. Todavia, mesmo que aderindo tese husserliana ou

    heideggeriana de uma propriedade original grega da razo filosfica e

    cientfica, preciso admitir que a razo a coisa mais bem compartilhada

    do mundo. O Oriente produziu normas e uma reflexo sobre essas

    normas. Assim, a China teve evidentemente seus "legisladores" (fajia4).

    No entanto, muito claro que, aps o modelo ocidental, a Europa

    constituiu-se baseada em uma origem singular mais complexa, ao

    CApTUlo 1

    1. UMA FUNDAO RELATIVA

    O Ocidente adora ver na Grcia Antiga uma fundao original da

    razo, para no dizer absoluta. A filosofia, como a prpria etimologia da

    palavra revela, seria uma inveno grega. O direito, na forma de um

    debate sobre a fundao da plisl e os avatares da democracia ateniense,

    seria tambm uma descoberta helnica. Portanto, basta um raciocnio

    mnimo, mas muito breve mesmo (uma vez que no tem mais que a

    aparncia de um silogismo) para se deduzir com convico que a Grcia

    Antiga inventa de todas as formas a filosofia do direito. Mas como o

    diabo mora nos detalhes, segundo o famoso ditado anglo-saxo, no

    preciso aprofundar-se desde j nos entrelaados do real e da histria, 2 O que no implica evidentemente no reconhecer a especificidade do pensamento

    chins e conceber ingenuamente como universal idias como "razo" e "direito".

    3 Martin Heidegger, Questions lI, trad. de Kostas Axelos e Jean Beauffret,

    Gallimard, 1968, p. 15.

    4 Ver Franois Jullien, "La pense fondatrice de Ia Chine", in

    Histoire de Ia philosophie, t. 1, Armand Colin, 1998, p. 154; Anne Cheng,

    Histoire de Ia pense chinoise, Le Seuil, 1998.

    l(N.T.) A transcrio das palavras gregas que aparecem nesta obra foi feita

    de acordo com as regras de acentuao do portugus, de modo a facilitar ao

    m

    ximo a pronncia. Vale lembrar, especificamente, que a letra x sempre tem

    som

    de ks (como na palavra "paradoxo" em portugus).

  • 4 HiSTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

    A FUNDAO GREGA 5

    mesmo tempo judaica, crist, grega e romana5. Enfim, isso parece mui

    to banal, pois contm uma dificuldade de abordagem: que forma parti

    cular do direito e da razo inventaram esses prodigiosos ancestrais que

    foram os gregos? O risco de uma questo desse tipo muito consider

    vel para admitir uma resposta simples e unvoca: trata-se de nada menos

    que reivindicar uma identidade filosfica e poltica da Europa em

    face do resto do mundo (chineses, hindus, muulmanos, se bem que,

    neste ltimo caso, a interpretao se torne mais difcil em razo das

    influncias gregas6), ou seja, a excluso do resto do mundo. Trata-se ao

    mesmo tempo de designar a fonte preponderante do modelo de racio

    nalidade poltica ocidental: os gregos ou os romanos, os judeus ou os

    cristos?

    Qual , portanto, o sentido espiritual (Geistig) da Europa, no geo-

    grfica, mas "transcendental': para retomar a questo de Husserl na sua

    Conferncia de Viena de 1935? Em que ele grego? A interrogao so

    bre o primitivo parece conter em si mesma a possibilidade de uma mi

    tologia da origem. Ento, no deixaremos de lado a suspeita de que se

    possa criar os gregos que se queira. preciso dizer deles o que

    Tocqueville

    declarou sobre a Amrica: "Confesso que na Amrica eu quis mais do

    que a Amrica; procurei ali uma imagem da prpria democracia, de suas

    tendncias, de seu carter, de seus prejulgados, de suas paixes; quis

    conhec-Ia, e no foi seno para saber ao menos o que devemos esperar

    ou temer dela"?

    Ento, fica claro por que abrimos esta discusso sobre a fundao

    grega da filosofia do direito sob a gide de uma dupla limitao: essa

    fundao, ao lado da fonte judaico-crist, implica imediatamente

    circunscrever o conjunto da anlise e design-lo como uma histria da

    filosofia do direito ocidental; essa primeira e to emblemtica fundao

    grega certamente est longe de ser imaginria, mas est bem diante de

    todo o teatro de afrontamento das interpretaes: h a Grcia de

    Heidegger, a de Hannah Arendt, a de Leo Strauss, a de Michel Foucault

    etc., depois a dos historiadores e, entre estes, a dos historiadores do

    direito. Nem sempre essas Grcias coincidem. Dizer "os gregos" j um

    grande esforos evidente. E na evoluo das teorias filosficas e das

    instituies gregas, uma curiosidade temporal particular de nossa

    memria ocidental no o menor dos paradoxos: os gregos so para ns,

    globalmente, os inventores da plis, assimilada democracia, e da

    filosofia, assimilada aos grandes nomes de Scrates, Plato e Aristteles.

    Ora, a fase da histria grega durante a qual a plis criada, instituda e

    depois transformada localmente e muito brevemente em plis

    democrtica, vai do sculo VIII ao sculo V a.c. Os filsofos

    considerados maiores no aparecem seno no exato momento em que a

    democracia novamente colocada em questo. H ento nessa histria o

    "enorme paradoxo de dois dos maiores filsofos que j existiram, Plato e

    Aristteles, serem filsofos do sculo IV a.c., e no serem filsofos da

    criao democrtica grega. [...] O resultado disso que nossas fontes,

    quando refletimos sobre a poltica grega, no podem ser os filsofos do

    sculo IV a.c. e, em todo o caso, certamente

    no pode ser Plato, imbudo de um dio inextirpvel pela democracia e

    pelo demos"9.

    5 Rmi Brague, Europe, Ia voie romaine, Criterion,

    1992.

    6 Sobre a questo das fundaes plurais do pensamento e o risco do

    eurocentrismo, ver Histoire de Ia phiIosophie, I, Les penses fondatrices,

    sob dire

    o de ]acqueline Russ, Armand Colin, 1998. (Ver principalmente a

    introduo

    de]. Russ, p. 6.)

    7 Tocqueville, De Ia dmocratie en Amrique, Introduction; citao que serve

    judiciosamente de epgrafe para os ProbIemes de Ia dm-ocratie grecque

    de ]acqueline

    de Romilly, Hermann, 1975.

    8 Rmi Brague, op. cit., p. 77.

    9 Cornelius Castoriadis, "Imaginaire politique grec et moderne': in La monte

    de l'insignifiance, Les carrefours du Iabyrinthe IV, Le Seuil, 1996, p. 163.

  • 6

    HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA

    7

    2. A HIPTESE DE UMA VISO COMPLETA DO

    DIREITO ENTRE OS GREGOS 3. A COMPLETUDE DO DIREITO E DA TICA NO SEIO

    DA PLIS E DO POLTICO

    Tentar designar uma fundao grega da filosofia do direito implica

    ento retomar aqum de Plato e auscultar as instituies e as teorias a

    fim de discemir o que melhor poderia ser a inveno grega como tal. Esse

    empreendimento no mnimo rduo, em razo da prpria riqueza de uma

    civilizao de mltiplas faces que se estende por diversos sculos.

    Contudo, ao preo de aceitar o risco inerente a toda interpretao

    generalista, pode-se propor aqui a idia de uma completude grega no

    enfoque do direito. O que queremos dizer aqui por completude um

    cuidado extremo em dar conta no do direito, mas da totalidade da vida

    humana, em seus aspectos subjetivos e intersubjetivos, para empregar um

    vocabulrio certamente anacrnico ou, se preferirmos, do florescimento

    do indivduo e da coletividade, ou seja, do indivduo no

    seio da coletividade. Esse primeiro aspecto da integridade diz respeito s

    relaes da tica e do direito e, por extenso, da poltica.

    Um segundo modo de completude conceme ao direito de maneira

    mais especfica: o cuidado em dar conta da legalidade, no sentido da

    positividade das leis, produzindo o que sem dvida a primeira grande

    doutrina do direito natural. Reduzir a contribuio grega a uma simples

    doutrina original do direito natural seria amputar essa civilizao de sua

    viva conscincia da legalidade, de sua longa experincia institucional em

    matria de produo de direito positivo. A completude grega da filosofia

    do direito se desenha duplamente: um pensamento que rene

    profundamente o indivduo e a plis, o movimento tico e a esfera

    jurdico-poltica; e o reconhecimento de um par conceitual maior Physis e

    Nomos, Natureza e Conveno, para dizer de outra forma, a norma

    inscrita em uma Natureza superior a toda conveno diante da

    positividade das leis.

    3.1 A questo do direito pela questo do brbaro

    Perante o grego, o outro quer dizer "o brbaro". Curiosamente, a

    alteridade do brbaro no se definiu antes de tudo em termos de

    alteridade, no sentido em que ele seria simplesmente diferente por seus

    costumes, sua compleio e suas regras. O que estrangeiro no brbaro

    que ele no parece ater-se s prprias regras. Uma passagem de Herdoto,

    citada por um estudo sobre o pensamento sofista do qual retomamos aqui

    a anliselO, por exemplo, designa os persas como os homens que adotam

    muito voluntariamente os costumes estrangeiros: os xeinik nomaia,

    literalmente, as convenes estrangeiras. O brbaro, visto por Herdoto,

    por isso um ser incompleto: ele no se define por si mesmo, mas pelo

    outro, por aquele de quem adota as convenes. Essa plasticidade tem

    algo de imediatamente escandaloso: brbaro no aquele que tem outras

    leis, mas aquele que no tem leis prprias, ou que no parece ater-se s

    que poderiam ser as suas.

    A incompletude intrnseca do brbaro se manifesta por dois traos

    essenciais. O primeiro que o brbaro no parece alcanar uma verda-

    deira autarquia, isto , uma autonomia no sentido literal do termo: ele no

    apto a produzir as prprias convenes, as prprias leis. De imediato

    sua identidade incerta: ele no mais que um esboo mvel de identi-

    dades parciais adquiridas em meio a circunstncias contingentes. Em

    oposio, o grego aquele que produz a prpria autonomia, e constitui

    dessa forma sua identidade. O brbaro essencialmente um no-grego,

    antes de ser acidentalmente um persa: ele aquele que no se confere

    uma identidade comunitria autnoma. Ser grego ento estar em

    sociedade

    !O Barbara Cassin, L'effet sophistique, Gallimard, NRF Essais, 1995, p.177-8.

  • 8

    HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA 9

    grega: no incio a comunidade que se confere uma identidade e garante

    assim a de seus membros. O segundo trao ainda mais profundo: o

    brbaro no obedece Lei, mas s leis. Adotando as convenes de uma

    plis, ele pode estar apto a ali viver como brbaro, mas no como grego.

    A relao com a legalidade profundamente diferente: o brbaro no faz

    mais que se curvar a um conjunto de prescries, o grego se curva Lei.

    Apoiando-se em Antifonte e em Xenofonte, Barbara Cassin prope a seguinte

    leitura: "[...] preciso compreender que a plasticidade brbara

    apropriar-se dos contedos estrangeiros - distingue-se essencialmente da

    conduta grega - respeitar as leis da mesma maneira, sejam quais forem.

    Em outros termos, o prprio do grego seria uma certa relao com o legal

    em si" 11. No interdito considerar esse enfoque grego do estrangeiro como

    uma negao de sua forma idiossincrtica de identidade: a recusa de uma

    outra forma de apreenso da legalidade retoma evico de uma

    possibilidade forte de alteridade. Sem dvida preciso dizer que a cons-

    truo de uma identidade forte parece aqui supor, ou acarretar, uma re-

    jeio tambm vigorosa da relao estrangeira com a legalidade.

    Tomando

    sua compreenso (julgada superior) da prpria idia de lei contra a sim-

    ples aceitao (considerada contingente) das convenes de uma plis, os

    gregos apresentam a afirmao de um universal da legalidade. Conside-

    rando a idia de legalidade no que ela tem de universal, sua apreenso do

    legal se torna, de imediato, portadora de universalidade, sendo assim le-

    gitimada como um critrio justo para desconhecer qualquer outra relao

    com o legal.

    3.2 O ser humano e a lei

    como tal, ele no diz a Cidade. A afirmao grega da plis a gnese do

    direito. E essa gnese tambm a gnese do ser humano, digno desse

    nome, finalmente assimilado ao grego. Uma vez que a Cidade o prin-

    cpio e o fim, ela precede e excede o indivduo, noo pouco expressiva

    nesse universo comunitrio. O ser desprovido de Cidade (aplis) ser,

    para Aristteles, o inverso do ser humano: o ser infra-humano, como o

    animal, ou sobre-humano, como Deus. Definitivamente, entre o animal e

    Deus, no h lugar para o indivduo (hkastos), ser inconcebvel no estado

    puro: h apenas o lugar do homem em sua essncia de membro de um

    mundo comum. A individualidade ser pensada eventualmente, mas

    secundariamente a essa pertinncia original. precisamente este ponto

    que pode desvendar a especificidade da inveno grega do direito e do

    poltico: a pertinncia do indivduo a um mundo comum no se limita

    participao tcita de uma comunidade de valores, no sentido, por

    exemplo, daquilo que ser bem mais tarde a tese da sociologia de

    Durkheim; o brbaro bem capaz de uma adeso supostamente no

    reflexiva. O grego saber ele mesmo reconhecer o carter convencional

    (nomos) dos valores que uma comunidade se atribui, e saber obedecer

    conveno como tal. Nesse movimento em direo abstrao

    (da participao espontnea em uma comunidade de valores ao reco-

    nhecimento reflexivo da idia de conveno, isto , de lei) h tudo o que

    compe o gnio prprio da civilizao grega: a passagem de uma razo

    "latente" (a simples idia de comunidade) para uma razo "desenvolvi

    da" (a idia de lei), sob a gide do cuidado teleolgico12 de descobrir a

    boa forma de comunidade pela inveno de boas leis.

    Se a idia moderna de histria estranha ao pensamento grego, no

    obstante h aqui uma profunda descoberta da historicidade: a Cidade no

    se originou dos deuses, nem da prpria Natureza, ela fruto de uma

    criao racional de convenes. Medita-se em Tucdides: "A Dizer o direito ento dizer a Cidade, com a condio de que esta

    seja a plis grega. O brbaro um ser pseudopoltico: ele no diz a Lei

    11 Op. cit., p. 178.

    12 O que globalmente a anlise de Husserl em La Crise de l'humanit

    europenne et ia Phiiosophie, trad. Grard Granel, Gallimard, 1976.

  • 10

    HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAAo GREGA

    11

    ausncia do maravilhoso em meus escritos talvez os torne menos agradveis de

    compreender"13, mas o que preciso entender doravante a voz do

    logos. Ora, prprio do logos, esse todo semntico de linguagem e de

    razo, estar vinculado conveno, uma vez que o mythologos se dava

    pela narrativa do Verdadeiro. Apresentar leis no simplesmente

    apresentar palavras? No disp-Ias pelo que elas so, convenes? No

    nos deixemos enganar: o debate prosseguir longamente, especialmente

    na obra platnica sobre a questo de saber se a linguagem simples

    conveno ou veculo de significaes "naturais". Esse clebre debate do

    Crtilo de Plato, que pe em jogo a tese "convencionalista" de Herm

    genes e a tese "naturalista" de Crtilo e de Scrates, no o do direito?

    Os gregos souberam descobrir que a questo do direito a questo da

    linguagem, e que a questo da linguagem intrinsecamente jurdica.

    Descobrir a fora da conveno e o risco de ela no ser mais que uma

    conveno , portanto, descobrir a fora e o risco de ser humano: ser pelas leis.

    A idia de risco onipresente no pensamento grego. sem dvida em

    torno dela que se organizam os conluios - mas no a confuso da tica e

    do jurdico. De fato, se viver inevitavelmente viver junto, o

    risco do poltico emana dessa reunio. Tem-se muitas vezes

    realado o lxico pejorativo da lngua grega para designar a "multido":

    hmilos, okhlos,plethos sob a pena de Tucdidesl4. preciso se desfazer

    do precon

    ceito absurdo de ver o homem grego antigo apaixonado pela ordem, pela

    razo e seriamente dedicado a uma medida justa em todas as coisas. A

    medida justa o ponto culminante de idealidade proposto ao sbio por

    Aristteles na tica a Nicmaco. O homem grego - mas ele no qual-

    quer homem? - seria antes espontaneamente irracional, entusiasmado,

    passional, em suma, perigoso para si mesmo e para os outros. J faz tem-

    po que o helenismo moderno abandonou o mito de uma Grcia Antiga

    povoada de puros racionalistas "divisando no cu o entendimento puro" 15:

    primeiro Nietzsche, depois os estudos mais recentes como o de E. R. Dodds, Os

    Gregos e o irracional, souberam mostrar as zonas obscuras e passionais do

    esprito grego. A prpria histria da Grcia Antiga no um doloroso teatro de

    paixes polticas contnuas, de guerras e de dissenses? notvel que a

    convico grega de que ser homem no pode ter sentido seno no meio de

    homens seja acompanhada por uma viva conscincia do risco da multido:

    "Quanto maior a multido, mais cego seu corao': afirmar a VII Nemia de

    Pndaro. Portanto, por ser o homem naturalmente perigoso para o homem - algo

    que os gregos sabiam bem antes de Hobbes - que precioso encontrar remdio

    para esse risco. O nico phrmakon ser a idia de dominar o dado pelo

    construdo, o natural pelo reflexivo, o caos para o qual desliza

    insensivelmente o indivduo e a comunidade, pela ordem que se impe ou que

    se encontra. Esta a idia de lei: diante dos riscos de estar reunido e das

    desordens da com

    . petio social espontnea, o Pricles de Tucdides se ope com uma

    frase: ''A lei, que faz a todos, em seus diversos particulares, a parte igual..:'16.

    A anarquia uma anomia: a ausncia de lei. Ora, a anomia ser sempre o

    risco interno, e no apenas externo, das leis. O maior perigo , certamente, a

    ausncia de leis. Mas essa no uma situao abstrata? Tal ameaa

    radical implicaria a possibilidade de uma comunidade humana viver sem

    qualquer tipo de lei, algo que nem o prprio brbaro pode fazer, pois ele sabe se

    fundir nas regras. O ser humano produz regras. Mas para que elas sejam

    realmente do direito, preciso que da idia simples de regra se passe idia mais

    complexa de legalidade. nesse contexto que se pode determinar a

    especificidade do "universo espiritual da plis': para retomar uma expresso de J.-

    P Vernane7 que Pierre Vidal-Naquet comenta nestes ter

    15 Pierre Vidal-Naquet, "La raison grecque et Ia cit" (1967), in La Grece

    ancienne, t. I, Le Seuil, col. Points, 1990, p. 243.

    16 Tucdides, op. cit., 11, 37,1.

    17 J.-P. Vernant, Les Origines de ia pense grecque, PUF, 1981.

    13 Tucdides, Histoire de ia guerre du Pioponnese, Garnier- Flammarion, 1966,

    trad. J. Voilqui, I, p. 43.

    14 Por exemplo, Jacqueline de Romilly, op. cit., p. 25.

  • 12 HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

    A FUNDAO GREGA 13

    mos: ''A originalidade da cidade grega no est no fato de que se trata de uma

    sociedade obediente a regras - toda sociedade corresponde a essa definio - nem

    no fato de que essas regras formam um sistema coerente - uma lei no somente

    dos grupos sociais, mas do prprio estudo desses grupos -, nem mesmo no fato de

    que os participantes dessa sociedade tm vocao para a legalidade e a diviso do

    poder, porque isso verdadeiro

    tambm para muitas sociedades 'primitivas'. [.u] Na Grcia, esses fenmenos

    alcanam o estado consciente: os gregos tomam conscincia da 'crise

    da soberania', por exemplo, ao se confrontar com os imprios vizinhos"18.

    inventando no a idia da lei, mas a conscincia da lei, que os gregos

    descobrem a idia de legalidade. Ora, a anomia como risco interno das leis

    parece ter relao com uma perda da prpria idia de legalidade: o vcio

    ento mais puro e mais pernicioso, pois as leis so arruinadas por dentro.

    A multiplicao literalmente anrquica de decretos, a inflao do corpo

    das leis sob a presso das circunstncias podem minar a idia de legalidade.

    Pense no que diro mais tarde Tcito, depois Rousseau: a multiplica

    o das leis mata a lei. Na GrciaAntiga, Demstenes se queixava dos abusos

    do poder legislador dos homens polticos, no Contra Timcrates: "Nossa cidade,

    julgas, governada por leis e por decretos. Se algum vem destruir

    por uma lei nova a deciso de um tribunal, onde iremos parar? justo

    chamar a isso de lei? No ser antes um desafio s leis (anomia)?"19. O sentido

    da legalidade consiste na conscincia de que o poder no deve ser um

    fato do homem poltico, mas do prprio direito. O poder a priori ilimita

    do da plis salvaguarda em vez de aniquilar, e a liberdade, assim como o

    princpio fundador, respeitada: "o rei alei" (nomos basileus)Z. O fato de que

    a comunidade a nica fonte da lei uma garantia de liberdade.

    Baseado nisso, a negatividade do brbaro projeta uma nova luz sobre

    a intuio grega do jurdico e do tico. O brbaro remete, de fato, a um

    duplo e profundo desprezo: pela liberdade e pela reflexividade.

    politicamente, ele aquele que alia o direito ao exerccio da dominao.

    Sabe-se, por exemplo, que Os Persas de squilo assimilam o brbaro e o

    inimigo, e que, historicamente, em seguida s Guerras Mdicas, a idia de

    barbrie remete a um antagonismo poltico: ".u parece que, ao contato

    com o Imprio Persa representando a primeira forma organizada e

    metdica de dominao que conheceram, os gregos compreenderam

    plenamente, por contraste, que a liberdade era um dos traos distintivos de

    sua civilizao. As Guerras Mdicas so apresentadas por squilo e

    Herdoto como o combate dos cidados gregos livres, defensores de suas

    ptrias, contra os exrcitos de escravos brbaros, tributrios do Grande

    Rei"21. Para o grego, a lei dever ser a forma da liberdade, nunca a da

    dominao. Ora, a questo filosfica

    subjacente consiste em se perguntar por que o brbaro no conhece

    a liberdade e o quadro poltico que torna possvel seu exerccio. Uma

    resposta sugerida pela descrio do brbaro pelos historiadores, prin-

    cipalmente Herdoto: o brbaro o homem de coragem cega, de aes de

    brilho (erga), enquanto o grego apresentado sob os traos da as-

    tcia, da ttica, da reflexo (logos). O desprezo pela liberdade est

    liga

    do a uma carncia de reflexividade. O brbaro um ser dominado por si

    prprio: joguete da prpria coragem e, politicamente, de seus prnCIpes.

    Esse segundo desprezo mais carregado de conseqncias. Pe em

    jogo a relao grega com a liberdade sob a forma da reflexividade, o

    sentido complexo da noo de nomos e, enfim, a relao do jurdico e da

    tica.

    18 Pierre Vidal-Naquet, op. cit., p. 249.

    19 Demstenes, Contre Timocrate, 152; sobre o contexto da crise poltica e

    jurdica desta citao, ver J. de Romilly, op. cit., p. 109.

    20 Citado por Moses I. Finley, Les Anciens Grecs, 1963, trad. Monique Ale

    xandre, Le Seuil, col. Points, reed. 1993, p. 55.

    21 Marie-Franoise Baslez, "Le pril barbare: une invention des Grecs?", in La

    Grece ancienne, sob a direo de Claude Moss, Socit d'dition scientifique,

    1986, reed. Le Seuil, 1986, p. 289.

  • 14

    HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA 15

    3.3 A complexidade do nomos mem, a vontade divina grega se expressa pela vontade humana. Podese

    ento assistir, na Grcia arcaica de Homero, assemblia dos homens

    sbios dando suas sentenas da mesma maneira como so representados

    sobre o cinturo de Aquiles no canto XVIII da llada. "Essa a thmis da

    qual cada magistrado invoca o smbolo, pela mo estendida ou pelo

    cetro. Situada acima das decises humanas, ela transcendente." O justo

    positivo identificado com o justo natural, pois a vontade dos ma-

    gistrados corresponde manifestao da vontade transcendente. Portanto,

    ao mesmo tempo se exprime urna reflexividade em gestao: no seria

    preciso inserir urna vontade humana, a dos sbios magistrados, para ter

    conscincia de maneira reflexiva da vontade divina, e no se deveria

    admirar a liberdade de ao nessa compreenso da lei? O acor

    do com a ordem harmoniosa do universo encantado pelos deuses no

    concebido corno urna submisso brutal da vontade humana vontade

    divina: ele feito pela compreenso ntima e reflexiva da vontade supe-

    rIor que rege o cosmos.

    A thmis j contm em seu poder alguma coisa do nomos. Mas a

    realizao dessa virtualidade pelo desenvolvimento da reflexividade

    dever passar por urna transformao de conceito e, para comear, de

    vocabulrio. "Progressivamente, a palavra dike vai substituindo thmis. A

    dike (de diknymi: mostrar) representa a justia sob um aspecto

    mais intelectual que voluntrio, e vinculada apenas indiretamente

    vontade divina. quando aparece a noo de nomos, de lei, mas com um

    sentido de ordem onto-axiolgica, despojada das nuanas voluntaristas

    modernas favorecidas por tradues latinas imprudentes"24 (assim, a

    idia latina de lex em Ccero, por exemplo, supe a auctoritas, o

    imperium, e no poderia traduzir verdadeiramente o nomos grego, que

    excede o sentido simples da positividade das leis). O nomos remete ao

    desdobramento da liberdade pela compreenso reflexiva da ordem do

    universo. Estabelecer o nomos restabelec-Io, manifest-Io: ele j est

    A passagem do fenmeno simples das regras, quer dizer, do fen-

    meno da prpria sociedade, ao nomos supe uma reflexividade: tudo

    comea por se lanar neste salto que consiste em um abandono voluntrio

    do mito, na emergncia de um pensamento positivo e em urna

    transformao geral da concepo grega de mundo. Na sociedade arcaica

    de Homero ou de Hesodo, o ser humano era assim especificado por seu

    status de ser social e de portador da tcnica. A dimenso propriamente

    poltica desse ser s aparecia em filigrana. a reflexividade que

    engendrar o nomos, porque preciso que o homem apreenda de novo sua

    humanidade corno animal poltico, e portanto jurdico, e no

    simplesmente social. Mas pensa-se no que diro Schelling, depois Ernst

    Cassirer22 (ver, mais tarde e de urna outra maneira, Claude Lvi-

    Strauss):

    a mitologia compreende a evoluo da conscincia e urna forma primeira

    de pensamento positivo. Desde ento, h urna criao progressiva da

    positividade pela reflexividade com base na prpria mitologia. No campo

    do direito e da justia, essa progresso aparece entre os gregos. Na

    reflexo grega original sobre o direito, manifestada sobre o modo

    mitolgico, a idia de justia j bastante complexa. Ela no um sim-

    ples efeito da exterioridade dos deuses, urna pura "heteronomia': se

    quisermos adotar o vocabulrio kantiano: ela j bem ligada a urna clara

    noo de vontade. Assim, "a justia tem primeiro urna significao

    voluntarista. Se ela vem do exterior, que decorre da vontade de um

    deus, de Zeus"23. Esse voluntarismo divino se investe de urna

    humanizao imediata: ao contrrio da vontade divina da religio re-

    velada dos cristos, que se revela de forma direta de Deus para o ho

    22 Por exemplo, em Le mythe de l'tat (1946), trad. Bertrand Vergely,

    Gallimard, NRF, 1993, p. 79.

    23 Jean - Mare Trigeaud, Humanisme de ia iibert et philosophie de ia justice, t.

    I, Biblioteque de philosophie eompare, Bordeaux, d. Biere, 1985, p.

    46. 24 Jean-Mare Trigeaud, op. cit., p. 47.

  • 16

    HIST6RIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA 17

    inscrito na natureza das coisas, ele se identifica originalmente com um

    direito natural. Ora, paradoxalmente, absolutamente necessrio esta

    belecer o que j : preciso manifestar a ordem natural em uma ordem

    positiva. Assim, a idia grega do direito antpoda das concepes da

    modernidade. O direito grego no um simples modo de relaes de

    indivduos, e muito menos de possibilidade dos interesses particulares,

    j que tambm no concerne propriamente fala dos sujeitos do direi

    to: um modo de relao com o mundo. Essa ambio exorbitante se

    encontra tambm na preocupao de universalidade que habita a refle

    xo grega sobre o direito. A plis tem um valor universal porque ela

    estabelece uma nova relao para o mundo, e no somente para a so

    ciedade. Isso explica sem dvida a estranheza, pelo menos aos olhos

    modernos, das teorias jurdico-polticas gregas: enquanto nas doutri

    nas modernas do direito natural o Estado ser o meio da realizao do

    indivduo, ele o principal fim no pensamento grego. Se a liberdade

    individual impensvel e quimrica, o direito no sabe interessar-se por

    ela. O que importa a independncia do Estado, e no a do indivduo.

    A intuio grega diz que quanto mais o Estado for independente, mais

    o cidado ser livre. O elo indissolvel entre o destino do indivduo e o

    da plis faz com que a realizao da ordem universal da natureza no

    possa ser seno coletiva. Cada grego tem, pois, um destino intrinseca

    mente jurdico: ele s se realizar por uma justa manifestao do nomos.

    ver perseguir o mesmo objetivo de harmonia universal, j que natural.

    Pensemos na, no por acaso clebre, noo de isonomia. Ela tem por

    significado poltico e jurdico a participao dos membros da cidade na

    vida pblica em nveis iguais: o exerccio comum, compartilhado,

    equilibrado da soberania sobre o modo grego. (Isso quer dizer que no

    preciso projetar a uma concepo moderna da igualdade dos direitos: os

    escravos, as mulheres, as crianas so outros obstculos do mundo antigo

    para nossa viso moderna da igualdade; o cidado grego da Poltica de

    Aristteles, por exemplo, aquele que participa das assemblias do povo

    ou que exerce uma funo pblica: isso exclui as mulheres, as crianas e

    aqueles que sofreram uma atimia, isto , que foram destitudos dos

    direitos cvicos por uma falta grave.) Jean-Pierre Vernant pde mostrar25

    o que esse exerccio em comum da soberania supunha de igualdade no

    direito palavra e argumentao pblica e de conscincia de dever

    realizar pelo estabelecimento de regras positivas a idia de um justo

    equilbrio natural. A isonomia anterior democracia; ela no a

    democracia ainda, como esclarece um estudo de Pierre Vidal- Naquet e de

    Pierre Lvque consagrado a Clstenes, o Ateniense26, mas de alguma

    forma sua condio de possibilidade. Uma palavra que avance sobre as

    outras, um discurso que se pratique de sbito de maneira hegemnica e l

    est o corpo poltico desequilibrado. A isonomia teraputica: ela

    pretende restabelecer uma justa partilha da palavra e dos

    3.4 tica e direito Da podemos tirar diretamente a relao do jurdico e do tico no

    pensamento grego: so as duas faces de um mesmo remdio

    destinado

    a restituir o justo equilbrio natural. A mesma palavra, eklos,

    designar

    a doena e a injustia: um desequilbrio do corpo e da alma

    individuais

    e um desequilbrio do corpo poltico. A medicina jnica ou

    hipocrtica

    tentar restabelecer a lei de equilbrio natural do corpo, a tica se vin

    cular ao ser completo - no ela essencialmente um remdio entre os

    gregos? -, o poltico, pela via da instituio de uma ordem jurdica, de

    25 Jean - Pierre Vernant, Mythe et socit en Grce ancienne, Maspero, 1974, p. 208.

    26 Pierre Lvque e Pierre Vidal-Naquet, Ciisthne 1'Athnien. Essai sur ia

    reprsentation de l' espace et du temps dans ia pense poiitique grecque de ia fin

    du VIe sicle ia mort de Piaton, Annales littraires de l'universit de Besanon,

    vaI. 65, Les Belles-Iettres, 1973, capo 11, p.31. Referncia retomada e

    claramente exposta em Martine Pcharman, ''L'ide du politique", in Notions de

    phiiosophie, sob a direo de Denis Kambouchner, vaI. III, Gallimard, Folia

    Essais, 1995, p. 93.

  • 18 HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA

    19

    direitos. Ela tem um valor hipocrtico, e por extenso tico. Um texto de

    Alcmon de Crotona faz apelo noo de isonomia para definir a sade

    do corpo, designando a doena como uma monarquia ou tirania exercida

    por um dos elementos corporais sobre os outros. Ora, no de fato uma

    constante do pensamento grego comparar a plis a um homem e o homem

    a uma plis? Como na filosofia platnica, em que o prprio homem

    apresentado como uma cidade onde se confrontam as foras antagnicas

    prontas a acarretar desequilbrios funestos.

    Ser responsvel por si mesmo: responder por seu corpo e por seu

    esprito diante de si mesmo e diante da comunidade. O heri das tragdias

    de squilo ainda era um ser pr-jurdico: ele era o lugar de enfrentamento

    das foras sobre-humanas que vinham intervir no corao de suas

    decises. Nesse sentido, ele ainda no era dotado da autonomia da

    vontade que torna possvel um no mos. E, por conseguinte, bem no seio da

    necessidade implacvel que lhe era imposta, ele descobria uma margem

    de livre escolha sem a qual a responsabilidade por seus atos jamais lhe

    poderia ser imputada.27 Tambm mais tarde, na filosofia de Epicuro na

    poca helenstica, preciso que ele tenha um afastamento mnimo

    possvel da livre escolha diante da necessidade: na fsica de Epicuro, ser

    ao tomo e sua declinao que ser atribuda essa funo fundadora,

    assim como, na tragdia da mais alta Antiguidade, ao hiato possvel da

    vontade individual no corao da necessidade. Se tomarmos como

    exemplo a concepo estica do universo, ponto culminante da deter-

    minao pelo imenso poder do destino, encontraremos sem dvida essa

    necessidade de estabelecer uma liberdade, ainda que seja mnima, para

    tornar pensvel a tica. O args logos, como os esticos nomearam o

    argumento megrico, "o argumento preguioso", enunciava uma necessi-

    dade total e extrema. Se tudo depende do destino, nada mais est em

    nosso poder. Ora, objetou o acadmico Carnades28, "alguma coisa est

    em nosso poder". Contra o argumento preguioso, e contra as conse-

    qncias nocivas para a tica dos argumentos necessitaristas oriundos da

    reflexo de Diodoro Cronos sobre os futuros contingentes, preciso

    descobrir um campo possvel para a liberdade. A resposta estica, pela

    voz de Crisipio, foi sutil: consistiu em distinguir destino e necessidade e

    introduzir duas causalidades, uma adjuvante, que no depende de ns, a

    outra principal ou antecedente, que depende de ns. Mais uma vez o

    pensamento grego soube pensar a liberdade do homem, mesmo no

    corao de um n de necessidades29. que a liberdade a condio de

    possibilidade da tica, do poltico e do jurdico, ou, como escrever Kant,

    da prtica. Por que coisas responderamos se nossos atos no fossem

    imputveis a ns? A tragdia j apresenta essa condio sine qua nono

    Conhece-se a clebre interpretao de Hegel para a An tgo na de

    Sfocles; no final da tragdia, o equilbrio das leis foi restabelecido: se

    um morto foi furtado lei dos vivos, um vivente ser furtado dos viventes

    e devolvido morte. A lei da Cidade e a dos mortos so equilibradamente

    respeitadas. Certamente no se trata aqui de indivduos, mas de relaes

    de equilbrio entre dois universais. Mas a prpria condio da tragdia

    27 Sobre este assunto, ver Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet,

    "bauches de Ia volont dans Ia tragdie grecque", in Mythes et tragdie en Grece

    ancienne, Maspero, 1977, p. 43.

    28 Ccero, De fato, XIV, 31.

    29 Alasdair MacIntyre comenta claramente este episdio estico da liberda

    de concebida em ltima instncia como uma conscincia reflexiva da necessida-

    de: "Since human nature is part of cosmic nature, the law which governs the

    cosmos, that of the divine Logos, provides the law to which human action ought

    to be conformed. At once an obvious question arises. Since human life proceeds

    eternally through an eternally predetermined cycle, how can human beings fail to

    conform to the cosmic law? What alternatives have they? The Stoic answer is

    that men as rational beings can become conscious of the laws to which they

    necessarily conform, and that virtue consists in conscious assent to, vice in

    dissent from, the inevitable order of things". (A Short History of Ethics, A

    History of Moral Philosophy from the Homeric Age to the Twentieth Century,

    Londres, Routledge & Kegan, 1966; p. 105 na reedio de 1998.)

  • 20

    HIST6RIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA

    21

    , por conseguinte, a margem de liberdade na qual se relacionam

    Antgona e Creonte: do ponto de vista do universal, no h escolha

    possvel, pois o equilbrio dever ser restabelecido; do ponto de vista do humano,

    entretanto, preciso postular uma liberdade elementar dos atores. A tica e o

    direito sero remdios dessa liberdade.

    No universo arcaico, incluindo a tragdia, a liberdade ainda in-

    certa: o drama se encontra no enfrentamento de necessidade contra

    necessidade, com um jogo livre, no sentido em que se diz que duas peas

    que no se ajustam perfeitamente compem um conjunto essencial, mas mnimo.

    Necessidade da lei da cidade contra necessidade da

    lei dos mortos, ou ento "[...] o drama arcaico da luta entre o soberano

    - prncipe ou conselho oligrquico - representando o grupo, as famlias

    ciumentas de seus privilgios ancestrais e os indivduos preocupados com

    independncia"3O. Depois tudo se soluciona, e subsistem apenas o Estado e o

    indivduo, "...unidos pelo vnculo inteligvel do nomos. E a

    plis conservar a unidade e a vida enquanto essas duas foras se reco-

    nhecerem uma a outra como verdade, o cidado somente existindo para o

    Estado, o Estado somente existindo para todos os cidados"3l. A plis

    como organismo real e singular (e no como forma do Estado em

    geral, sobre o modelo do Imprio Romano), como totalidade

    tica32 uma das duas faces do controle da liberdade, sendo a outra a

    via tica do organismo singular. Postulamos aqui que o movimento

    originrio da reflexo nico, tornando-a definitivamente unitria.

    Que movimento? Vamos partir de uma problemtica complexa, a

    do Crmides de Plato, consagrado questo da moderao. Seria

    de fato errneo dissociar as formas tica e jurdica do controle. A idia

    de

    moderao sugere que preciso tentar um domnio sobre os excessos.

    Sabe-se que em geral os gregos abominavam a hybris, o excesso: a tica consiste

    fundamentalmente em um regulamento da hybris. Mas necessrio precisar aqui

    que a palavra hybris tem o sentido original de "ao ilegal". A hybris , desde a

    Grcia Antiga, uma violao do nomos: um roubo, por exemplo. O sentido

    passado posteridade - tentar ultrapassar os limites da natureza humana e

    tolamente desafiar os deuses - secundrio. A hybris primeiramente o

    oposto da dike33, uma violao da restrio legap4. Moderar dar a cada

    um o que lhe devido: esse o ideal jurdico da isonomia, esse o ideal

    tico, por exemplo, de um PIa to restabelecendo a justa repartio das

    partes da alma. A unidade dessas duas formas da moderao, ou da

    ponderao, constitui um ideal filosfico grego. precisamente aquele

    que est em questo no Crmides. Scrates encarna a unificao dos

    gneros de vida: o da cidadania e o da vida filosfica. "O sentido

    profundo da refutao socrtica se encontra aqui", sublinha um

    comentrio recente3s: "A sophrosyne no tem qualquer valor poltico

    se a distinguimos de seu valor moral; o valor poltico da sophrosyne

    perfeitamente inconsistente se no se junta a ele a considerao do gnero

    de vida. [...] A refutao de Scrates insiste em afirmar que a distino

    entre negcios privados e negcios pblicos no tem nenhuma pertincia

    e no recupera certamente a distino entre o prprio e o

    estrangeiro, entre o interior e o exterior, pois fazer poltica ou fazer

    seus negcios sempre

    33 Segundo Hesodo: a hybris da "raa de ferro" faz com que "o nico direito

    seja a fora, e que a conscincia no exista mais"; a dike que recebe o encargo de triunfar

    sobre essa desmesura; cf. Jacques Perron, "l'analyse des notions abstraites chez Hsiode",

    Revue des tudes grecques, t. LXXXIX, julho-dezembro de 1976, p. 286.

    30 Franois Chtelet, La naissance de l'histoire, Minuit, 1962; reedio de

    Seuil, col. Points, 1996, t. I, p. 79.

    31Ibidem.

    32 Hegel, Principes de la philosophie du droit, 185.

    34 Sobre este assunto: Werner Jaeger, Paideia, La formation de l'homme grec,

    trad. Andr e Simonne Devyver, Gallimard, NRF, 1964, p. 137-8,510.

    35 Marie- France Hazebroucq, La folie humaine et ses remedes, Platon,

    Charmide ou De la modration, Vrin, 1997, p. 191-3.

  • 22 HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA 23

    ocupar-se de negcios exteriores e estrangeiros. Contudo, na Repblica,

    esses negcios exteriores so aqueles de que cada um deve ocuparse em

    funo do que est no interior da cidade justa, sendo subordinados ao que

    o todo da cidade. Uma vez que perfeita a analogia entre a alma e a

    cidade, as aes privadas do homem justo sero subordinadas ao que ele

    , boa constituio do todo da alma. A moderao da alma remete

    justamente ao conhecimento de si mesmo [...]. A aparente oposio entre

    ao pblica e ao privada encontra resoluo na nica verdadeira

    distino entre o si mesmo e o no-si: ocupar-se realmente de seus

    negcios dispensar para fora de si o no-essencial, para se ocupar

    apenas do essencial, orientar a inteligncia para as realidades inteligveis..

    ."

    Podemos fazer duas breves observaes sobre essa percepo de

    sabedoria socrtica. A primeira que se trata aqui, muito evidentemente,

    do prprio Scrates. No certo que os gregos em seu conjunto tenham

    tido espontaneamente essa viso da completude da tica, do jurdico e do

    poltico. o inverso que parece muito bem sugerido aqui! No se trata de

    uma refutao socrtica, contra um desprezo possvel, e sem dvida

    corrente, pela independncia da esfera jurdico-poltica? Mas no ao

    mesmo tempo a afirmao de um ideal filosfico socrtico e grego da

    unidade necessria das condutas poltica, jurdica e tica? A segunda

    observao concerne oposio da esfera pblica e da esfera privada.

    preciso, sem dvida, ressaltar a originalidade e a complexidade da

    posio global da civilizao grega. Ao contrrio do que ser a grande

    inveno da modernidade europia, trata-se antes de tudo de pensar uma

    unidade superior do privado e do pblico sob a gide de uma distino do

    essencial (a conduta filosfica, sob formas mltiplas e tantas escolas) e do

    no-essencial (a vida sem reflexo, no merecendo ser vivida). H

    realmente uma "vida privada" grega. Assim, no mbito da sexualidade,

    Michel Foucault nos ensina que a esposa pertence a essa esfera

    estritamente privada, da qual se fala muito pouco ou nada. O erotismo

    "pblico", aquele das relaes com as cortess e principalmente aquele da

    homossexualidade,

    valorizad036: pode-se ler a a virtude ou no daquele que sabe amar com

    moderao. O privado parece se realizar no pblico: a tica deve se

    manifestar. Ela est por natureza projetada na esfera das relaes

    jurdicas.

    No sem propsito esclarecer a prtica grega do direito pela pr-

    tica da tica e, especificamente, junto com Michel Foucault, a apreen

    so de regras jurdicas por aquelas que regem a sexualidade. No incio

    a metfora mdica que j mencionamos. Plutarco poder dizer sem

    exagero, no incio dos Preceitos de sade, que filosofia e medicina per-

    tencem a "um nico e mesmo domnio" (mia khora37). "A melhoria, o

    aperfeioamento da alma que se busca na filosofia, a paidia, que esta

    deve assegurar, pinta-se cada vez mais de cores medicinais" ao longo da

    histria da Antiguidade, observa Foucault38. O exerccio filosfico uma

    terapia de si mesmo: ele o tico. Ora, essa atividade consagrada a si

    mesmo no um exerccio de solido, mas uma verdadeira prtica so

    cial: primeiramente, ele ocorre em estruturas mais ou menos

    institucionalizadas, como foram as comunidades neopitagricas ou

    epicuristas, bem como na Academia platoniana ou no Liceu aristotlico.

    preciso um quadro institucional para essa aplicao em si mesmo. Nas

    escolas, a tica tem por objeto o jurdico, em um sentido metafrico

    certamente, pois o domnio do direito o da cidade, e no o da escola.

    Mas a escola uma cidade dentro da cidade. A tica somente se exerce na

    cidade e para a cidade. O caso da figura epicurista tem sem dvida o

    significado de uma decadncia gritante do perodo helenstico: assumindo

    a absteno poltica do sbio, o epicurismo reduz o quadro "polti

    36 Sobre esse assunto, alm de Foucault, ver: Claude Moss, Splendeur et misere

    de Ia courtisane grecquej e Maurice Sartre, L'homosexualit dans Ia Grece ancienne,

    artigos retomados em La Grece ancienne, coleo apresentada por Claude

    Moss, Le Seuil, 1986.

    37 Plutarco, De tuenda sanita te praecepta, 122e.

    38 Michel Foucault, Histoire de Ia sexualit, t. III, "Le souci de soi", Gallimard,

    NRF, 1984, p. 71.

  • 24

    HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA

    25

    co" do exerccio tico a um grupo de amigos. Essa evoluo arranca a tica de

    seu solo poltico. possvel ver nisso uma amarga constatao da ambio

    poltica grega: Lon Robin, em seu estudo sobre A moral antiga39, sugere que "a

    tica, como cincia distinta, se constituiu em uma poca relativamente tardia, e

    depois que os filsofos foram desencorajados de realizar pela via poltica uma

    reforma prtica dos costumes". A tica no se torna uma disciplina autnoma a

    no ser pelo efeito da decadncia da autonomia da prpria plis no mundo

    helenstico. Mas o ideal da idade de ouro da filosofia e da poltica gre

    gas era muito mais se assistirem juntos o indivduo e a plis, um com o

    outro e um para o outro.

    No sculo lU a.c., o desmoronamento das cidades-Estados pe em

    questo essa herana. Se aceitamos o anacronismo, pode-se evocar uma

    espcie de primeira "globalizao": a interpretao dos mundos gregos e no-

    gregos encobre a identidade poltica propriamente helnica. Permanece a

    possibilidade de um desvio na idia de autonomia na tica: que cada um, pelo

    menos se for sbio, se torne uma cidade autrquica. Ora, mesmo nesse

    novo contexto explodido do universo grego, o go

    verno tico permanece como fundamento de todo governo poltico.

    Segundo uma clara e sinttica expresso de Foucault, "a racionalidade do

    governo dos outros a mesma que a racionalidade do governo de si mesmo":

    " o que explica Plutarco no Tratado para o prncipe sem experincia:

    no se poder governar se no se governado. Ora, quem deve dirigir o

    governante? A lei, certo; todavia no preciso entend-Ia como a lei escrita,

    mas antes como a razo, o lagos, que vive na alma do governante e no

    deve jamais abandon-Io"4. A fase "decadente" da ci

    vilizao grega nesse famoso sculo lU a.c., que viu florescer as doutrinas

    epicurista e estica, no faz mais que exacerbar um trao profundo

    da idia grega do poltico: a arte de governar a si mesmo se torna um

    fator poltico cada vez mais determinante das leis no momento em que

    surge uma dvida sobre a fora imperativa e transformadora das leis.

    Para que serve uma boa lei, se ela est a servio de um governante que

    no sabe governar a si mesmo? S a tica pode dar uma consistncia

    forma jurdica.

    Esta ltima proposio exige algumas explicaes. Ela no quer

    dizer que o pensamento grego em geral confunde, para utilizar termos

    modernos, moral e poltica, ou normas morais e normas jurdicas. bem

    evidente que existe um trabalho de distino desses domnios na reflexo

    antiga. Para especific-Io de forma simples e prosaica, basta constatar

    que na obra de Aristteles so bem diferenciados os trabalhos sobre as

    constituies e aqueles sobre a tica a Eudemo ou a Nicmaco. Mas o

    caminho da reflexo, que conduz avaliao dos atos

    individuais ou coletivos, unificado em torno da determinao comum de

    um Bem41. Esse Bem no propriamente nico. Politicamente, sabese

    que a diversidade de Bens foi extrema. Werner Jaeger nos faz ver que os

    Estados gregos "supem ideais espirituais diametralmente opostos" e que

    "esse contraste certamente um dos fatos primordiais da histria poltica

    grega". Alm disso, escreve ele: "trata-se de um elemento capital na

    histria do esprito grego. Ignorar o fato de que o ideal poltico da Grcia

    estava longe de ser uniforme nos tornaria incapazes de compreender a

    prpria essncia da cultura helnica, essa cultura que se caracteriza, para

    terminar, por um violento conflito interno com uma reconciliao em

    sntese harmoniosa e triunfal"42. Mas a pluralidade dos ideais polticos, e

    conseqentemente das concepes do Bem, no pe jamais em questo a

    idia de uma plis como totalidade tica, e no simplesmente como um

    todo poltico. Os gregos "no concebiam que pu

    desse existir uma relao estritamente utilitria e material entre virtude

    39 Lon Robin, La Morale antique, Paris, 1938; PUF, Nouvelle Encyclopdie

    philosophique, 1963, p. 169.

    40 Op. cit., p. 110. 41 Cf Alasdair MacIntyre,A short History of Ethics, op. cit., p. 87. 42

    Werner Jaeger, Paideia, op. cit., p. lll.

  • 26 HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

    A FUNDAO GREGA 27

    cvica e salvaguarda da comunidade. A seus olhos, a plis constitua um

    universal dotado de uma base religiosa"43. Uma vez que a humanitas

    assimilada vida no seio de um Estado, uma vez que viver para o ho

    mem no nunca viver biologicamente e de forma passiva (a forma

    frustrada da bios), mas sempre, de forma ativa, tomar parte na vida

    comum (polituestai), a idia de Lei elevada mais alta dignidade na

    escala da civilizao humana. Nesse sentido, pode-se dizer como Jaeger

    que "a lei representa o estgio mais importante no desenvolvimento da

    cultura helnica" e que ela foi "a forma mais durvel e universal da ex

    perincia moral e judiciria da Grcia"44. Herclito no escreveu que "o

    povo deve combater por suas leis como por suas muralhas"? (Diels, frag

    mento 44). A lei ento a melhor das defesas da cidade, e no se saberia

    cantar seu elogio o suficiente4s. Ora, se legislar uma atividade eminen-

    temente nobre, o apangio dos sbios, ela depressa voltar para o filsofo

    exerc-Ia, prepar-Ia: nas Leis ou na Repblica, Plato se transforma

    de filsofo em legislador; no final da tica a Nicmaco46, Aristteles faz

    seus votos a um legislador para realizar o ideal que ele acaba de formu

    lar. O legislador, como o filsofo e o poeta, um educador. Alis, Jaeger

    observa que um trao prprio da mentalidade grega citar freqente

    mente o legislador ao lado do poeta. PIa to dir no Pedro47 que o legis

    lador um "autor" e que ele semelhante ao poeta. A poesia e a

    legislao

    so prximas uma da outra. Sem dvida remetem a uma mesma sophia, a

    uma mesma sabedoria. O prprio Hesodo, em sua Teogonia48, pe em

    paralelo a sophia do poeta e a sophia dos reis. As mesmas musas devem

    inspirar os poetas e os reis sensatos! O prprio Slon qualificava como

    soph a atividade potica. A aret, a excelncia, pode ser colocada sob a

    tutela da sophia: pelo menos o que afirma um poema de Tognis49. a

    obra de Pierre Hadot que nos pe no caminho dessa preeminncia final da

    sabedoria sobre a legislao, esta no sendo mais que uma das

    manifestaes da primeira. Eis ento (ainda!) uma "idia fundamental na

    Antiguidade", a idia "do valor psicaggico do discurso e da importncia

    capital do domnio da palavra. A palavra opera em dois registros

    aparentemente muito diferentes: o da discusso jurdica e poltica (os reis

    praticam a justia e apaziguam as querelas) e o do encantamento potico

    (os poetas por seus cantos mudam o corao dos homens)"so.

    3.5 Direito e sophia

    No fundo, a lei realmente um problema grego? No ela um sim-

    ples avatar da grande convico de que homem e sociedade podem estar

    doentes e que suas afeces podem e devem ser tratadas pelo discurso? A

    aret, essa clebre excelncia tica, pode ser atingida por homens que se

    dedicam ao amor da sophia: a filo-sofia. Se toda concepo do direito se

    baseia em uma antropologia particular, como sugere, por exemplo, um

    terico contemporneo flamengo, Jan M. Broekmans1, a antropologia dos

    gregos tem de original o fato de que ela se abstm de pensar na idia de

    um mal radical: o homem doente, mas curvel. A idia de lei ento

    extraordinariamente paradoxal: colocada o mais prximo possvel do

    tumulto desencorajador das paixes humanas, situada s portas da hybris

    na qual se afunda sem cessar o humano, ela

    43 Ibidem, p. 127.

    44 Ibidem, p. 144.

    45 Werner ]aeger, Ioge de Ia Loi, BulIetin Guillaume Bud, 1. VIII, 1949.

    46 Aristteles, tica a Nicmaco; a esse respeito, ver: Werner ]aeger,

    Paideia, op. cit., n. 38, p. 511-

    2.

    47 Plato, Phedre, 257d e 278c.

    48 Hesodo, Thogonie, 80-103.

    49 Tognis, Poemes Igiaques, 1072.

    50 Pierre Hadot, Qu'est-ce que Ia phiIosophie antique?, Gallimard, col. Folio,

    1995, p. 41.

    51 ]an M. Broekman, Droit et anthropologie, LGD], 1993 (traduzido do ho

    lands), capo I, sees 2 e 3 principalmente.

  • 28 HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

    IIII1 promete no obstante, com uma desconcertante serenidade, a possibi-

    lidade de uma terapia do homem pelo homem por intermdio do discurso.

    A importncia do legado grego em matria de textos polticos e jurdicos,

    o prestgio inaudito conferido pela inveno da democracia, a obsesso de

    identidade da Europa moderna que, em seus sonhos genealgicos,

    desejar tanto se definir como herdeira direta de Iscrates, de Demstenes

    e de todos os discursos polticos gregos escandidos pela instituio

    escolar (pelo menos at uma poca recente, e que no se espera o retorno,

    quando esses nomes ainda evocavam aos alunos uma idade de ouro

    intelectual e poltica), fizeram sem dvida com que a reflexo

    propriamente jurdica e poltica grega tomasse o lugar, na memria

    coletiva (quer dizer, essencialmente institucional), da ambio mais

    profunda e mais ampla de oferecer ao homem uma salvao quase

    unicamente intra-humana pelo exerccio do logos: a palavra e a refle-

    xo. Os trabalhos de Pierre Hadot, como os de Michel Foucault,

    certamente reequilibram essa imagem. A lei no um problema grego. O

    que preocupa a civilizao grega a restituio do homem ao que digno

    de ser humano, pelos exerccios variados e complementares da diettica,

    da ginstica, da tica e das leis. A lei filosfica no pensamento grego

    porque ela faz parte (e no mais que uma parte) do amor fundamental

    que deve desenvolver pela sophia.

    Esse amor pela sophia tem ocorrncias mltiplas, para no dizer

    formas quase contraditrias na marcha da evoluo das doutrinas filo-

    sficas. Seria absurdo negar as profundas diferenas doutrinais que exis-

    tem entre as concepes da prtica de si e da relao jurdica e poltica

    para com outrem no seio de uma comunidade ao longo de uma histria

    que vai dos pr-socrticos a Pancio de Rodes, isto , at o sculo II a.c.

    Plato,Aristteles, os cirenaicos, os cnicos, depois Epicuro e os esticos,

    para citar apenas os momentos mais marcantes, colocam pedras

    fundamentais e determinantes no edifcio plural do pensamento grego.

    Contudo, no prprio seio dessa variedade, outro trao marcante pode ser

    apontado como uma constante do pensamento grego da lei e do direito. O

    amor pela sophia, o desejo de aperfeioar que se manifestam

    I~

    "

    '111

    1

    II1

    29

    A FUNDAO GREGA

    no esprito grego das leis tm mais isto de extraordinrio: eles se expri

    mem sob a forma de uma confiana no logos escrito. O nomos arcaico

    no escrito: ora, ser considerado como um progresso incontestvel

    do nomos o fato de se tornar um discurso escrito. Sobre este ponto,

    permitimo-nos aqui duas breves anlises.

    3.6 A questo da melhor lei

    A primeira de ordem histrica, mas tem uma implicao filos

    fica evidente. Se a idia grega de lei parece supor inicialmente a

    idia de

    que se possa aperfeioar o ser humano, ou restitu-Io ao que deva ser

    sua essncia, preciso igualmente colocar que a prpria lei perfectvel.

    um problema que se coloca em primeiro lugar de modo prtico, real

    mente prosaico. Aristteles o resume em sua Poltica (lI, 8), quando

    examina a constituio ideal elaborada por Hipodamos de Mileto: "

    til ou nocivo substituir as leis ancestrais por outras leis melhores?" A

    questo saber se h um progresso possvel na ordem das leis e se, de

    modo mais preciso, esse progresso ocorre pelo efeito da substituio de

    leis novas pelas patrioi nmoi, quer dizer, pelas leis ancestrais. Arist

    teles, fiel ao seu mtodo de exame de teses e antteses, faz anlise dos

    argumentos possveis. Por um lado, parece bem estabelecido que as cin

    cias e as tcnicas s conheceram o progresso libertando-se das tradi

    es ancestrais, e que os ancestrais no tinham a cultura nem a

    inteligncia dos contemporneos, o que faz com que obedecer s suas

    prescries seja estpido: o critrio de uma boa lei deve ser a excelncia

    (agathon) e no a velhice. Por outro lado, parece que uma lei no pode

    ser verdadeiramente comparada a uma tcnica ou a uma cincia: a lei

    s exerce uma ao educativa quando se adquiriu o hbito de viver se

    gundo sua prescrio. H, portanto, um risco inerente em toda refor

    ma: uma lei modificada com muita freqncia perder sua fora de lei.

    Esse debate entre uma posio conservadora e um movimento

    reformado r recorrente no pensamento grego do direito. O

    princpio

    do respeito s tradies ancestrais foi por longo tempo muito forte.

    Por

  • "'11

    I1I1

    II11

    ~

    30 HISTRIA DA FilOSOFIA DO DIREITO

    certo houve sobre esse assunto a palavra aparentemente definitiva de

    Hesodo: nomos d' arkhios ristos, a lei dos ancestrais a melhor lei. A

    invocao das patrioi nmoi permaneceu por muito tempo como um

    argumento poltico nos tempos difceis em que se debateram opes

    opostas, mas sempre extremistas: por ocasio do advento de regimes

    autoritrios, de forma tirnica ou oligrquica, a aspirao s patrioi

    nmoi foi o grito de guerra daqueles que reivindicavam a liberdade em

    parte perdida; no advento de uma democracia extremista, o retorno s

    patrioi nmoi foi inversamente a palavra de ordem dos reacionrios ou

    dos moderados. Preciso e clarividente, Tucdides saber relatar suas

    discusses, por exemplo aquelas do ltimo tero do sculo V a.c. Ora, a

    prpria existncia de um debate recorrente sobre o progresso proble-

    mtico das leis mostra a que ponto a civilizao grega no considerava o

    domnio jurdico como uma simples tcnica entre outras. Parece que o

    progresso que tem curso nas cincias e nas tcnicas no poderia ser

    reconduzido na ordem jurdica de forma no problemtica. que a lei

    retoma terapia do ser humano completo, para o qual ela apenas um

    dos tratamentos. No certo que seja inteiramente pensvel um progresso

    na ordem teraputica. Medita-se em Rousseau, bem mais tarde: o

    progresso das cincias e das tcnicas implica menor progresso moral? O

    exame da civilizao grega nos coloca em face de uma situao, no fundo

    sempre paradoxal: os gregos, por um lado, devem acreditar na idia de

    um progresso possvel na ordem dessa tekhne particular que o

    estabelecimento das leis. As leis, no sentido do direito positivo, devem

    ser aperfeioveis, sem dvida alguma. Mas ao mesmo tempo, uma vez

    que o direito no saberia ser verdadeiramente uma tekhne, no certo que

    as novas leis sejam melhores que as antigas: o uso bem estabelecido das

    patrioi nmoi foi aprovado, e j se conhecem suas virtudes e seus

    limites teraputicos. Condena-se, por um lado, o carter "brbaro" de

    certas leis arcaicas (como fazem Tucdides e Aristteles, por exemplo),

    celebra-se tambm o progresso tcnico dos corntios para justificar o

    valor renovador de Atenas em oposio ao imobilismo de Esparta; mas

    pode-se concluir, por outro lado, que sbio e prudente

    31

    A FUNDAO GREGA

    se ater s leis j estabelecidas, mesmo que apresentem algumas eviden

    tes imperfeies. Desde ento, o debate entre as patrioi nmoi e o

    agathon ou o riston, entre o antigo e a "boa" ou a "melhor" lei, remete

    talvez, em ltima instncia, idia de que a melhor das leis no pode

    ser positiva, que ela est inscrita em uma ordem superior: a ordem da

    "natureza", ou das essncias. Se nos permitimos brincar com o duplo

    sentido da palavra arcaico, possvel considerar que o debate jurdico

    na ordem temporal, que preocupa os gregos tanto e de maneira to du

    radoura - as novas leis podem verdadeiramente ser melhores que as an

    tigas? - recorta um debate sobre a fundao das leis na ordem dos

    princpios: o nomos remete physis. O progresso consistir na transfor

    mao do nomos, de palavra em discurso escrito, de tradio perpetua

    da em logos reflexivo. Ora, essa ltima assero tem igualmente um

    alcance problemtico no universo conceitual grego. 3.7 A lei e sua escrita

    Com efeito, e esta ser nossa segunda observao, a lei se tornou,

    no curso da constituio da civilizao grega clssica, uma questo

    de

    escrita: o direito se escreve. Sabe-se por Aristteles que a

    constituio

    ateniense de Slon foi gravada, em seguida de Drcon. O objetivo

    desse

    trabalho de escrever foi primeiro de publicidade: tratava-se de tornar a

    lei visvel para todos. Mas ao mesmo tempo a escrita prende a palavra

    ao tempo e manifesta a permanncia da lei. Isso pouco espantoso para

    a considerao moderna. Ora, essa insistncia na escrita do no mos, que

    assume assim um valor positivo, central no universo grego, ao mes

    mo tempo que espantoso. Ela central primeiro porque toda a socie

    dade poltica, toda a politia, condicionada pela escrita. A cidadania

    supe a roupagem do equivalente a um estado civil. O nome dos ado

    lescentes e o demos ao qual pertencem so escritos sobre tabletes. O

    katalogos, dir Xenofonte em sua Constituio de Esparta, faz parte in

    tegrante da organizao da cidade. Para governar no necessrio re

    gistrar pela escrita (anagraphein) os indivduos e os bens? Uma

    passagem

  • 32

    HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA 33

    de uma esclarecedora introduo s tradues da Constituio de

    Esparta

    de Xenofonte e da Constituio de Atenas de Aristteles atrai nossa aten-

    o para o carter aparentemente paradoxal de uma tamanha valoriza-

    o da escrita pelo direitos2. geralmente admitido, com efeito, que o

    pensamento grego e mais singularmente o pensamento de Aristteles

    depreciaram globalmente a escrita (grmmata) em benefcio da voz

    (phon). A hierarquia aristotlica no De interpretatione faz da voz um

    smbolo dos estados da alma, e da escrita um smbolo da voz; smbolo

    de smbolo, a escrita est mais longe da inteno de significado. Jacques

    Derrida interpretou essa teoria como um fonocentrismo constitutivo

    da metafsica ocidental: um primado da palavra e da voz sobre a escri-

    taS3. verdade que Aristteles e Plato realam o carter confuso das

    leis escritas: por definies gerais, elas no podem atingir a perfeio

    de ser imediatamente explcitas sobre todos os casos particulares. Mas,

    fora essa observao, que menos uma crtica do que uma constatao,

    preciso realmente admitir, com D. Colass4, que "... mesmo que se seguisse

    Derrida em uma colocao luz do logocentrismo de Plato e da filosofia

    ocidental, seria preciso sustentar que, na e