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História Da Filosofia Do Direito, de Jean-Cassien Billier e Aglaê Maryioli, não é apenas um livro, mas um convite a um mundo em que as coisas são vivas e pulsantes, são, ademais, convidativas.
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HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Jean-Cassien Billier
Professor de Filosofia da Universit de Ia Sorbonne Paris I e do
Institut Universitaire Europen de Florence
Agla Maryioli
Advogada Doutora em Direito pelo Institut Universitaire Europen de Florence Ex-
professora da Universit Catholique de Louvain-Ia-Neuve e da Universit de
Rouen
At
?J/;/ W!Q
Manole
Ttulo do original em francs: Histoire de Ia philosophie du droit
Copyright @ Armand Colin Publisher / VUEF, 2001
Traduo: Maurcio de Andrade
Tradutor tcnico e literrio especializado em ingls, francs e alemo Reviso cientfica: Ari Marcelo Solon
Professor Associado da Universidade de So Paulo
Professor de Ps-graduao da Universidade Mackenzie
Editorao eletrnica: Francisco Lavorini
Capa e imagem da capa: Hlio de Almeida
SUMRio
CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO
NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
B494h
Billier, Jean-Cassien
Histria da filosofia do direito / Jean-Cassien, Agla Maryioli ; traduo de
Maurcio de Andrade. - Barueri, SP : Manole, 2005
Traduo de: Histoire de Ia philosophie du droit Inclui bibliografia ISBN 85-204-1601-2
Introduo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..
XllI
1. Direito - Filosofia. 2. Direito - Histria. I. Maryioli, Agla. n. Ttulo.
PRIMEIRA PARTE
A FUNDAO GRECO-
LATINA 04-2906. CDU 340.12 Captulo 1 A fundao grega. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
1. Urna fundao relativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . 2 2. A hiptese de urna viso completa do direito entre os gregos. .
. 6 3. A completude do direito e da tica no seio da plis e do
poltico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
3.1 A questo do direito pela questo do brbaro. . . . . . . . . . 7 3.2
O ser humano e a lei. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
3.3 A complexidade do nomos """""""""""'" 14 3.4 tica e direito. . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 16 3.5 Direito e sophia
""""""""""""""""" 27 3.6A questo da melhor lei. . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . 29
3.7 A lei e sua escrita. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
4. A completude do direito natural e do direito
positivo: physis e nomos ............................................................... 34
4.1 A autonomizao do direito com relao histria. . . . 41
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro poder ser reproduzida, por qualquer
processo, sem a permisso expressa dos editores.
proibida a reproduo por xerox.
Direitos em lngua portuguesa adquiridos pela:
Editora Manole Ltda.
Avenida Ceci, 672 - Tambor
06460-120 - Barueri - SP - Brasil
Fone: (11) 4196-6000 - Fax: (I 1) 4196-6021
www.manole.com.br
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
vi
HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO SUMRIO vii
4.2 A referncia a uma fsica particular. . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 4.3 O
direito como cincia da diviso e da repartio. . . . . . 45
5. Completude do direito e pluralidade das ordens jurdicas
no universo grego. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 48
Captulo 5 A construo da modernidade ......................................... , ......... 134
1. A antropologizao do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 134 2.
Grotius . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
3. Hobbes .................................................................................................. 138
4. Espinosa """"""""""""""""""""" 142 5. Pufendorf """""""""""""""""""'" 145 6. Locke
"""""""""""""""""""""'" 145
7. Rousseau .............................................................................................. 148
8. Kant ....................................................................................................... 151
9. A questo dos direitos inalienveis: as declaraes dos
direitos humanos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166
10. Hegel ................................................................................................... 181
11. Os positivismos ................................................................................... 186
Captulo 2 Personagens da teoria grega do direito. . . . . . . . .
. 53
1. Legisladores: Drcon, Slon, Licurgo, Clstenes ........................ 53
1.1 Drcon................................................................................... 54
1.2 Slon ..................................................................................... 55
1.3 Licurgo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
1.4 Clstenes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
2. A modernidade dos sofistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
2.1 A sofstica naturalista: Antifonte, Trasmaco, Hpias,
Clicles .................................................................................... 59
2.2 A sofstica convencionalista: O Protrptico de Jmblico,
Crtias e Protgoras ................................................................ 62
3. Plato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
4. Aristteles ........................................................................... 79
5. Epicuro .............................................................................. 90
6. Os esticos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . " . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
TERCEIRA PARTE
A CRISE DO DIREITO NO SCULO XX
SEGUNDA PARTE
A HERANA JUDAICO-CRIST E A CONSTRUO DA MODERNIDADE
Captulo 6 As teorias formalistas ................................................ 194
1. O paradigma formalista de Hans Kelsen ....................................194
1.10 contexto epistemolgico de emergncia do
normativismo ....................................................................... , .......................................194
1.2 Uma concepo anti-imperativista do direito. . . . . . . . 200 1.3
O direito como sistema das normas hierarquizadas ... 202
1.4 A rejeio do jusnaturalismo................................................204
1.5 Validade e eficcia da ordem jurdica. . . . . . . . . . . . . . . 206 1.6
As dificuldades internas do normativismo .. . . . . . . . . . 211 1. 7
Teoria pura do direito ou teoria do direito puro?
O dualismo irredutvel do Ser e do Dever-Ser. . . . . . . . . 214
1.8 O objeto da cincia do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
2. Carr de Malberg ou o positivismo estadista francs. . . . . . 226
2.1 O contexto de emergncia da doutrina de Carr
de Malberg ............................................................................... , ........................................... 226
Captulo 3 A via romana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 1. A
herana ambgua. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 98 2. Teoria do direito e fIlosofia do direito em Roma. . . . . . . . . .
101
Captulo 4 Aheranajudaico-crist ......................................112
1. A fonte bblica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
112 2. O pensamento medieval, o direito segundo Toms de
Aquino e a evoluo do pensamento escolstico """'" 120
viii
HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO SUMRIO ix
2.2 A submisso do Estado ao direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . 228
2.3 A ordem jurdica: hierarquia dos rgos, das
normas ou das funes? ......................................................... 232
5.3.1 A idia de pluralismo jurdico. . . . . . . . . . . . . . . . . . 303
5.3.2 O direito objetivo segundo Lon Duguit .., .................. 313
5.3.3 O pensamento de Georges Gurvitch ..., ........................ 320
5.3.4 O fato normativo segundo Gurvitch .., ......................... 321
5.3.5 O direito social segundo Gurvitch ..., ........................... 324
5.3.6 A teoria institucionalista do direito de Maurice
Hauriou . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
330
5.3.7 O institucionalismo de Santi Romano. . . . . . . . . . . 335
5.4 As teorias marxistas do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 340
6. Os tpicos jurdicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 347
Captulo 7 As teorias antiformalistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
1. O decisionismo de Carl Schmitt ............................................... 237
1.1 A crtica do normativismo .................................................... 239
1.2 A exceo no fundamento do decisionismo . . . . . . . . . . 240
1.3 O decisionismo, o normativismo e o institucionalismo .. 246
1.4 A crtica do liberalismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
248
2. O realismo americano. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
251 2.1 Primeira tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
252 2.2 Segunda tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . 254 2.3 Terceira tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . 256 2.4 Quarta tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . 258
3. O realismo escandinavo .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
261
3.1 As teses dos realistas escandinavos ...................................... 261
3.2 Crtica ao realismo de Alf Ross ........................................... 266
4. Franois Gny e a Escola do direito livre. . . . . . . . . . . . . . . . 268
4.1 O pluralismo das fontes de direito. . . . . . . . . . . . . . . . . 269 4.2
A livre pesquisa do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273
5. A sociologia do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
5.1 Da jurisprudncia dos interesses sociologia jurdica. 277
5.1.1 A jurisprudncia dos interesses. . . . . . . . . . . . . . . . . 277
5.1.2 Nas origens da sociologia do direito: concepes
europias e anglo-saxnicas ............................................... 280
5.2 O enfoque sociolgico do direito de Max Weber . . . . . . 288
5.2.1 O formalismo normativista de Max Weber . . . . . . . 289
5.2.2 A racionalidade weberiana do direito. . . . . . . . . . . 293
5.2.3 Para uma crtica das teses weberianas """"'" 295 5.2.4 O
Estado de direito e o decisionismo weberiano " 297
5.3 As teorias do pluralismo jurdico. . . . . . . . . . . . . . . . . .
303
Captulo 8 As teorias idealistas do direito. . . . . . . . . . . . . . . . 351
1. O neokantismo de DeI Vecchio e de Stammler ..................... ,... 351
2. A fenomenologia do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
357
2.1 Edmund Husserl e o mtodo fenomenolgico ...,... 357
2.2 As anlises de A. Reinach e de Gerhart Husserl ....... ,. 359
2.3 O existencialismo jurdico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
362 Captulo 9 O renas cimento do direito natural. . . . . . . . . . . . 368
1. Leo Strauss e a crtica da modernidade ...................................... 368
2. O renas cimento do direito natural na Alemanha. . . . . . . . . 374
3. O antimodernismo de Michel Villey* ........................................ 379
4. Finnis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . '. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 385
Captulo 10 As metamorfoses do positivismo jurdico. . . . . . 387 1.
A designao dos modelos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 387 2. A
crtica do positivismo tradicional por H. L. A. Hart ...,. 397
2.1 A definio do direito como textura aberta. . . . . . . . . .
402 2.2 A estrutura do sistema de direito. . . . . . . . . . . . . . . . .
. . 406 2.3 Incerteza quanto regra de reconhecimento. . . . . .
. . . 409
* Escrito por Jean-Cassien Billier.
x HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
3. O neo-institucionalismo: Neil MacCormick e Ota
Weinberger ................................................................................. 412
4. Ronald Dworkin: criao e aplicao do direito. . . . . . . . . . 419 4.1
A interpretao construtiva do direito. . . . . . . . . . . . . . 419
4.2 O liberalismo dworkiniano ................................................... 424
4.3 Princpios e polticas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 426
5. A reconstruo habermasiana do direito. . . . . . . . . . . . . . . . 429
5.1 Um modelo de justia processual. . . . . . . . . . . . . . . . . . 433 5.2
Justificao e aplicao do direito: Klaus Gnther "" 437
6. A teoria da autopoiese e o direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 440 7.
A evoluo da teoria italiana do direito e a crtica do
positivismo jurdico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
448
8. O questionamento radical do positivismo jurdico. . . . . . . 458
8.1 A crtica desconstrucionista do direito: o movimento
dos Critical Legal Studies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 458
8.2 O ceticismo desconstrucionista de Stanley Fish . . . . . . . 464
8.3 O neonietzschesmo de Michel Foucault* ........................... 470
Para Nikita
Concluso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
476
Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
479
* Escrito por ]ean-Cassien Billier.
INTROduo
UMA HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO no obrigatoriamente urna
filosofia da histria da filosofia do direito. Certamente preciso des-
confiar de urna neutralidade axiolgica ingnua que pretendesse garantir
urna apresentao objetiva de um cortejo histrico de doutrinas: a de-
limitao do quadro histrico, a nfase dada a este ou quele momento da
histria do pensamento e a prpria leitura de cada um desses momentos
so diversos pontos de urna inevitvel tornada de posio. Em
compensao, a pretenso sistemtica e, principalmente, a ambio de
extrair da cronologia das doutrinas a construo de um sentido geral da
filosofia do direito podem ser excludas em conjunto pelos autores, o que
o caso aqui. O que anima esta obra a simples convico de que a
compreenso dos debates contemporneos sobre a filosofia do direito
supe urna perspectiva dupla: por um lado, a Histria remetendo o leitor
contemporneo s problemticas antigas, gregas e latinas, e lhe indicando
a importncia da raiz judaico-crist; por outro lado, a tentativa de
desenhar mais precisamente os contornos das construes tericas
mltiplas e muitas vezes concorrentes do sculo xx. Parafraseando
xiv
HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO INTRODUO xv
o que diz Ernst Tugendhat nas proposies introdutrias da primeira de suas
Confrences sur l'thique1, poder-se-ia dizer que o principal erro possvel em
matria de direito e de filosofia do direito hoje em dia consiste em opor
esses dois domnios, como se o direito pudesse ser uma doutrina pura em
atuao nas instituies soberanas sem implicar uma filosofia subjacente,
ou como se a filosofia poltica geral pudesse fazer abstrao da dimenso
jurdica. O primeiro caso evidentemente anormal, j que tal posio por
parte dos juristas seria ainda filosfica, no sentido, por exemplo, de um
normativismo positivista e estatal inconsciente de si mesmo, ou de um
"direito jurdico limitado" em todo o sentido da expresso, inicialmente
hegeliano.2 O segundo seria ainda mais anormal, j que a filosofia desde a
Antiguidade no deixou de se debruar sobre a questo do direito pela
pena dos mais ilustres representantes, de Plato e Aristteles at Kant
e Hegel, isso para no falar - o que este livro far - dos tericos do
sculo XX. Em suma, para parafrasear as proposies de Tugendhat a
propsito da tica, o conflito fundamental no aquele que ope o direito
e a filosofia, mas com toda evidncia aquele que ope diferentes
concepes da filosofia do direito. Dar ao
leitor os meios de se orientar por essas diferentes concepes a grande
ambio deste livro, que tem uma simples vocao pedaggica.
necessrio tambm explicar aqui as escolhas que orientaram a
organizao desta obra.
A primeira consiste em propor um conjunto historicamente dese-
quilibrado. Um grande espao foi concedido s doutrinas do sculo XX,
em detrimento de uma exposio detalhada de toda a histria da filo
sofia do direito ocidental. Essa vontade de estender longamente a parte
sobre o sculo XX corresponde idia de que talvez ele seja o menos
conhecido do leitor nefito em matria de filosofia do direito, alm de ser
evidentemente o mais crucial para que esse mesmo leitor se possa
orientar nos debates da filosofia do direito contempornea. Convm ob-
servar, todavia, que esta obra no pretende fazer a histria do presente,
mas modestamente pr em evidncia as doutrinas que condicionam em
grande parte os debates contemporneos.
A segunda consiste em infligir ao leitor um segundo desequilbrio
na apresentao do imenso perodo que se estende da Antiguidade ao s-
culo XX. Dessa vez, a Antiguidade greco-Iatina que ocupa a maior par
te. Essa desigualdade deliberada de tratamento corresponde mesma
preocupao que motiva a nfase no sculo XX: considerou-se que
o perodo da histria da filosofia poltica e jurdica que foi mais
extensamente coberto por grande nmero de estudos, que vo desde as
mais simples exposies pedaggicas s anlises mais eruditas e
exaustivas, exatamente o que vai da Renascena ao sculo XX, e
que por isso tambm o mais bem conhecido. Em vez de fazer uma
nova exposio sistemtica de todas as doutrinas desse longo perodo,
preferiu-se no apresentar mais que pontos de referncia, insistindo
especialmente sobre a originalidade da fonte judaico-crist de parte das
idias da tradio jurdico-poltica oci
dental. Essa limitao permitiu, em compensao, dar mais ateno
Antiguidade, e tentar recolocar as invenes gregas em matria de
filosofia do direito no corpo completo do pensamento tico antigo.
O ilustre filsofo italiano Norberto Bobbio declarou um dia que
amava pouco as histrias da filosofia do direito em si mesmas, porque
desse modo elas no podiam ser mais que catlogos de doutrinas assaz
heterogneas: aqui uma teoria poltica, acol uma teoria do direito.3 Este 1 Ernst Tugendhat, Confrences sur l'thique (1993), trad. Marie-Noelle Ryan,
PUF, 1998, p. 19. Ns parafraseamos muito livremente, porque nessa passagem
Tugendhat contrape o debate necessrio entre as diferentes concepes morais
com o debate incerto entre um ponto de vista moral e um ponto de vista no-
moral.
2 Encyclopdie, 1830, III, 486.
3 N. Bobbio, "Nature et fonction de Ia philosophie du droit", in Archives de
philosophie du droit, n. 7, Sirey, 1962, p. 9.
xvi HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
livro no escapa dessa crtica. Mas tambm evidente que essa
heterogeneidade revela inevitavelmente aquilo que existe entre as ml
tiplas vias de acesso filosofia do direito. A obra de Hart, por exemplo,
remete muito intimamente ao direito, no ponto em que o pensamento
de Rousseau convida a uma reflexo sobre a lei no quadro amplo de
uma filosofia mais poltica que jurdica. Mas a prpria diversidade de
nfase faz a riqueza da histria da filosofia do direito. A vontade de con-
servar a trama histrica nesta exposio ainda pedaggica: pode-se
talvez deve-se - ler o mximo sobre a base de uma lenta evoluo do
pensamento. Assim, quando um leitor moderno descobre um artigo de
John Mackie sobre Ronald Dworkin, diagnosticando na obra deste ltimo
uma "terceira teoria do direito"4 entre o positivismo jurdico e o
jusnaturalismo, o interesse dessa anlise decuplicado pela conscincia
informada sobre a longa e complexa histria da formao dessas duas
posies a respeito do direito. O esclarecimento histrico , pois, o ob
jetivo modesto deste livro.
PRiMEiRA PARTE
A FU N DAO G RECO-LATI NA
JEAN/CAssiEN BilliER
4 John Mackie, "The third Theory of Law': in Philosophy and Public Affairs,
v. 7, n. 1, 1977.
A FUNDAO GREGA 3
A FUNDAO GREGA
dado o risco de perder assim essa luminosa generalidade. Assim, do outro
lado da Terra, a China no tem o que fazer com uma fundao grega da
razo e do direito: ela prpria sabe bem como faz-Io.2 Atribuir Grcia
Antiga a tarefa exorbitante de fundar a razo s pode proceder de uma
evico do resto do mundo. A GrciaAntiga foi certamente um mundo
prodigioso; mas ela no foi "o" mundo. Conhece-se, certamente, a clebre
afirmao de Heidegger em Qu'est-ce que la philosophie?3: ''A filosofia
grega em seu prprio ser - grego quer dizer, aqui, que a filosofia , em seu
ser original, de natureza tal que foi em primeiro lugar o mundo grego, e
somente ele, que ela apreendeu, reclamando-o para se desdobrar". Hegel e
Husserl no disseram outra coisa antes de Heidegger.
Sabe-se at que ponto, para o bem e para o mal, pode-se sustentar a
tese de uma especificidade radical da razo grega e, conseqentemente,
ocidental. preciso dizer que a posio de herdeiros da "razo" e da
"democracia" ao mesmo tempo invejvel. A Grcia um ancestral
muito interessante, no por ser verdadeiro, sem dvida, mas por ser
esquecido. Todavia, mesmo que aderindo tese husserliana ou
heideggeriana de uma propriedade original grega da razo filosfica e
cientfica, preciso admitir que a razo a coisa mais bem compartilhada
do mundo. O Oriente produziu normas e uma reflexo sobre essas
normas. Assim, a China teve evidentemente seus "legisladores" (fajia4).
No entanto, muito claro que, aps o modelo ocidental, a Europa
constituiu-se baseada em uma origem singular mais complexa, ao
CApTUlo 1
1. UMA FUNDAO RELATIVA
O Ocidente adora ver na Grcia Antiga uma fundao original da
razo, para no dizer absoluta. A filosofia, como a prpria etimologia da
palavra revela, seria uma inveno grega. O direito, na forma de um
debate sobre a fundao da plisl e os avatares da democracia ateniense,
seria tambm uma descoberta helnica. Portanto, basta um raciocnio
mnimo, mas muito breve mesmo (uma vez que no tem mais que a
aparncia de um silogismo) para se deduzir com convico que a Grcia
Antiga inventa de todas as formas a filosofia do direito. Mas como o
diabo mora nos detalhes, segundo o famoso ditado anglo-saxo, no
preciso aprofundar-se desde j nos entrelaados do real e da histria, 2 O que no implica evidentemente no reconhecer a especificidade do pensamento
chins e conceber ingenuamente como universal idias como "razo" e "direito".
3 Martin Heidegger, Questions lI, trad. de Kostas Axelos e Jean Beauffret,
Gallimard, 1968, p. 15.
4 Ver Franois Jullien, "La pense fondatrice de Ia Chine", in
Histoire de Ia philosophie, t. 1, Armand Colin, 1998, p. 154; Anne Cheng,
Histoire de Ia pense chinoise, Le Seuil, 1998.
l(N.T.) A transcrio das palavras gregas que aparecem nesta obra foi feita
de acordo com as regras de acentuao do portugus, de modo a facilitar ao
m
ximo a pronncia. Vale lembrar, especificamente, que a letra x sempre tem
som
de ks (como na palavra "paradoxo" em portugus).
4 HiSTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
A FUNDAO GREGA 5
mesmo tempo judaica, crist, grega e romana5. Enfim, isso parece mui
to banal, pois contm uma dificuldade de abordagem: que forma parti
cular do direito e da razo inventaram esses prodigiosos ancestrais que
foram os gregos? O risco de uma questo desse tipo muito consider
vel para admitir uma resposta simples e unvoca: trata-se de nada menos
que reivindicar uma identidade filosfica e poltica da Europa em
face do resto do mundo (chineses, hindus, muulmanos, se bem que,
neste ltimo caso, a interpretao se torne mais difcil em razo das
influncias gregas6), ou seja, a excluso do resto do mundo. Trata-se ao
mesmo tempo de designar a fonte preponderante do modelo de racio
nalidade poltica ocidental: os gregos ou os romanos, os judeus ou os
cristos?
Qual , portanto, o sentido espiritual (Geistig) da Europa, no geo-
grfica, mas "transcendental': para retomar a questo de Husserl na sua
Conferncia de Viena de 1935? Em que ele grego? A interrogao so
bre o primitivo parece conter em si mesma a possibilidade de uma mi
tologia da origem. Ento, no deixaremos de lado a suspeita de que se
possa criar os gregos que se queira. preciso dizer deles o que
Tocqueville
declarou sobre a Amrica: "Confesso que na Amrica eu quis mais do
que a Amrica; procurei ali uma imagem da prpria democracia, de suas
tendncias, de seu carter, de seus prejulgados, de suas paixes; quis
conhec-Ia, e no foi seno para saber ao menos o que devemos esperar
ou temer dela"?
Ento, fica claro por que abrimos esta discusso sobre a fundao
grega da filosofia do direito sob a gide de uma dupla limitao: essa
fundao, ao lado da fonte judaico-crist, implica imediatamente
circunscrever o conjunto da anlise e design-lo como uma histria da
filosofia do direito ocidental; essa primeira e to emblemtica fundao
grega certamente est longe de ser imaginria, mas est bem diante de
todo o teatro de afrontamento das interpretaes: h a Grcia de
Heidegger, a de Hannah Arendt, a de Leo Strauss, a de Michel Foucault
etc., depois a dos historiadores e, entre estes, a dos historiadores do
direito. Nem sempre essas Grcias coincidem. Dizer "os gregos" j um
grande esforos evidente. E na evoluo das teorias filosficas e das
instituies gregas, uma curiosidade temporal particular de nossa
memria ocidental no o menor dos paradoxos: os gregos so para ns,
globalmente, os inventores da plis, assimilada democracia, e da
filosofia, assimilada aos grandes nomes de Scrates, Plato e Aristteles.
Ora, a fase da histria grega durante a qual a plis criada, instituda e
depois transformada localmente e muito brevemente em plis
democrtica, vai do sculo VIII ao sculo V a.c. Os filsofos
considerados maiores no aparecem seno no exato momento em que a
democracia novamente colocada em questo. H ento nessa histria o
"enorme paradoxo de dois dos maiores filsofos que j existiram, Plato e
Aristteles, serem filsofos do sculo IV a.c., e no serem filsofos da
criao democrtica grega. [...] O resultado disso que nossas fontes,
quando refletimos sobre a poltica grega, no podem ser os filsofos do
sculo IV a.c. e, em todo o caso, certamente
no pode ser Plato, imbudo de um dio inextirpvel pela democracia e
pelo demos"9.
5 Rmi Brague, Europe, Ia voie romaine, Criterion,
1992.
6 Sobre a questo das fundaes plurais do pensamento e o risco do
eurocentrismo, ver Histoire de Ia phiIosophie, I, Les penses fondatrices,
sob dire
o de ]acqueline Russ, Armand Colin, 1998. (Ver principalmente a
introduo
de]. Russ, p. 6.)
7 Tocqueville, De Ia dmocratie en Amrique, Introduction; citao que serve
judiciosamente de epgrafe para os ProbIemes de Ia dm-ocratie grecque
de ]acqueline
de Romilly, Hermann, 1975.
8 Rmi Brague, op. cit., p. 77.
9 Cornelius Castoriadis, "Imaginaire politique grec et moderne': in La monte
de l'insignifiance, Les carrefours du Iabyrinthe IV, Le Seuil, 1996, p. 163.
6
HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA
7
2. A HIPTESE DE UMA VISO COMPLETA DO
DIREITO ENTRE OS GREGOS 3. A COMPLETUDE DO DIREITO E DA TICA NO SEIO
DA PLIS E DO POLTICO
Tentar designar uma fundao grega da filosofia do direito implica
ento retomar aqum de Plato e auscultar as instituies e as teorias a
fim de discemir o que melhor poderia ser a inveno grega como tal. Esse
empreendimento no mnimo rduo, em razo da prpria riqueza de uma
civilizao de mltiplas faces que se estende por diversos sculos.
Contudo, ao preo de aceitar o risco inerente a toda interpretao
generalista, pode-se propor aqui a idia de uma completude grega no
enfoque do direito. O que queremos dizer aqui por completude um
cuidado extremo em dar conta no do direito, mas da totalidade da vida
humana, em seus aspectos subjetivos e intersubjetivos, para empregar um
vocabulrio certamente anacrnico ou, se preferirmos, do florescimento
do indivduo e da coletividade, ou seja, do indivduo no
seio da coletividade. Esse primeiro aspecto da integridade diz respeito s
relaes da tica e do direito e, por extenso, da poltica.
Um segundo modo de completude conceme ao direito de maneira
mais especfica: o cuidado em dar conta da legalidade, no sentido da
positividade das leis, produzindo o que sem dvida a primeira grande
doutrina do direito natural. Reduzir a contribuio grega a uma simples
doutrina original do direito natural seria amputar essa civilizao de sua
viva conscincia da legalidade, de sua longa experincia institucional em
matria de produo de direito positivo. A completude grega da filosofia
do direito se desenha duplamente: um pensamento que rene
profundamente o indivduo e a plis, o movimento tico e a esfera
jurdico-poltica; e o reconhecimento de um par conceitual maior Physis e
Nomos, Natureza e Conveno, para dizer de outra forma, a norma
inscrita em uma Natureza superior a toda conveno diante da
positividade das leis.
3.1 A questo do direito pela questo do brbaro
Perante o grego, o outro quer dizer "o brbaro". Curiosamente, a
alteridade do brbaro no se definiu antes de tudo em termos de
alteridade, no sentido em que ele seria simplesmente diferente por seus
costumes, sua compleio e suas regras. O que estrangeiro no brbaro
que ele no parece ater-se s prprias regras. Uma passagem de Herdoto,
citada por um estudo sobre o pensamento sofista do qual retomamos aqui
a anliselO, por exemplo, designa os persas como os homens que adotam
muito voluntariamente os costumes estrangeiros: os xeinik nomaia,
literalmente, as convenes estrangeiras. O brbaro, visto por Herdoto,
por isso um ser incompleto: ele no se define por si mesmo, mas pelo
outro, por aquele de quem adota as convenes. Essa plasticidade tem
algo de imediatamente escandaloso: brbaro no aquele que tem outras
leis, mas aquele que no tem leis prprias, ou que no parece ater-se s
que poderiam ser as suas.
A incompletude intrnseca do brbaro se manifesta por dois traos
essenciais. O primeiro que o brbaro no parece alcanar uma verda-
deira autarquia, isto , uma autonomia no sentido literal do termo: ele no
apto a produzir as prprias convenes, as prprias leis. De imediato
sua identidade incerta: ele no mais que um esboo mvel de identi-
dades parciais adquiridas em meio a circunstncias contingentes. Em
oposio, o grego aquele que produz a prpria autonomia, e constitui
dessa forma sua identidade. O brbaro essencialmente um no-grego,
antes de ser acidentalmente um persa: ele aquele que no se confere
uma identidade comunitria autnoma. Ser grego ento estar em
sociedade
!O Barbara Cassin, L'effet sophistique, Gallimard, NRF Essais, 1995, p.177-8.
8
HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA 9
grega: no incio a comunidade que se confere uma identidade e garante
assim a de seus membros. O segundo trao ainda mais profundo: o
brbaro no obedece Lei, mas s leis. Adotando as convenes de uma
plis, ele pode estar apto a ali viver como brbaro, mas no como grego.
A relao com a legalidade profundamente diferente: o brbaro no faz
mais que se curvar a um conjunto de prescries, o grego se curva Lei.
Apoiando-se em Antifonte e em Xenofonte, Barbara Cassin prope a seguinte
leitura: "[...] preciso compreender que a plasticidade brbara
apropriar-se dos contedos estrangeiros - distingue-se essencialmente da
conduta grega - respeitar as leis da mesma maneira, sejam quais forem.
Em outros termos, o prprio do grego seria uma certa relao com o legal
em si" 11. No interdito considerar esse enfoque grego do estrangeiro como
uma negao de sua forma idiossincrtica de identidade: a recusa de uma
outra forma de apreenso da legalidade retoma evico de uma
possibilidade forte de alteridade. Sem dvida preciso dizer que a cons-
truo de uma identidade forte parece aqui supor, ou acarretar, uma re-
jeio tambm vigorosa da relao estrangeira com a legalidade.
Tomando
sua compreenso (julgada superior) da prpria idia de lei contra a sim-
ples aceitao (considerada contingente) das convenes de uma plis, os
gregos apresentam a afirmao de um universal da legalidade. Conside-
rando a idia de legalidade no que ela tem de universal, sua apreenso do
legal se torna, de imediato, portadora de universalidade, sendo assim le-
gitimada como um critrio justo para desconhecer qualquer outra relao
com o legal.
3.2 O ser humano e a lei
como tal, ele no diz a Cidade. A afirmao grega da plis a gnese do
direito. E essa gnese tambm a gnese do ser humano, digno desse
nome, finalmente assimilado ao grego. Uma vez que a Cidade o prin-
cpio e o fim, ela precede e excede o indivduo, noo pouco expressiva
nesse universo comunitrio. O ser desprovido de Cidade (aplis) ser,
para Aristteles, o inverso do ser humano: o ser infra-humano, como o
animal, ou sobre-humano, como Deus. Definitivamente, entre o animal e
Deus, no h lugar para o indivduo (hkastos), ser inconcebvel no estado
puro: h apenas o lugar do homem em sua essncia de membro de um
mundo comum. A individualidade ser pensada eventualmente, mas
secundariamente a essa pertinncia original. precisamente este ponto
que pode desvendar a especificidade da inveno grega do direito e do
poltico: a pertinncia do indivduo a um mundo comum no se limita
participao tcita de uma comunidade de valores, no sentido, por
exemplo, daquilo que ser bem mais tarde a tese da sociologia de
Durkheim; o brbaro bem capaz de uma adeso supostamente no
reflexiva. O grego saber ele mesmo reconhecer o carter convencional
(nomos) dos valores que uma comunidade se atribui, e saber obedecer
conveno como tal. Nesse movimento em direo abstrao
(da participao espontnea em uma comunidade de valores ao reco-
nhecimento reflexivo da idia de conveno, isto , de lei) h tudo o que
compe o gnio prprio da civilizao grega: a passagem de uma razo
"latente" (a simples idia de comunidade) para uma razo "desenvolvi
da" (a idia de lei), sob a gide do cuidado teleolgico12 de descobrir a
boa forma de comunidade pela inveno de boas leis.
Se a idia moderna de histria estranha ao pensamento grego, no
obstante h aqui uma profunda descoberta da historicidade: a Cidade no
se originou dos deuses, nem da prpria Natureza, ela fruto de uma
criao racional de convenes. Medita-se em Tucdides: "A Dizer o direito ento dizer a Cidade, com a condio de que esta
seja a plis grega. O brbaro um ser pseudopoltico: ele no diz a Lei
11 Op. cit., p. 178.
12 O que globalmente a anlise de Husserl em La Crise de l'humanit
europenne et ia Phiiosophie, trad. Grard Granel, Gallimard, 1976.
10
HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAAo GREGA
11
ausncia do maravilhoso em meus escritos talvez os torne menos agradveis de
compreender"13, mas o que preciso entender doravante a voz do
logos. Ora, prprio do logos, esse todo semntico de linguagem e de
razo, estar vinculado conveno, uma vez que o mythologos se dava
pela narrativa do Verdadeiro. Apresentar leis no simplesmente
apresentar palavras? No disp-Ias pelo que elas so, convenes? No
nos deixemos enganar: o debate prosseguir longamente, especialmente
na obra platnica sobre a questo de saber se a linguagem simples
conveno ou veculo de significaes "naturais". Esse clebre debate do
Crtilo de Plato, que pe em jogo a tese "convencionalista" de Herm
genes e a tese "naturalista" de Crtilo e de Scrates, no o do direito?
Os gregos souberam descobrir que a questo do direito a questo da
linguagem, e que a questo da linguagem intrinsecamente jurdica.
Descobrir a fora da conveno e o risco de ela no ser mais que uma
conveno , portanto, descobrir a fora e o risco de ser humano: ser pelas leis.
A idia de risco onipresente no pensamento grego. sem dvida em
torno dela que se organizam os conluios - mas no a confuso da tica e
do jurdico. De fato, se viver inevitavelmente viver junto, o
risco do poltico emana dessa reunio. Tem-se muitas vezes
realado o lxico pejorativo da lngua grega para designar a "multido":
hmilos, okhlos,plethos sob a pena de Tucdidesl4. preciso se desfazer
do precon
ceito absurdo de ver o homem grego antigo apaixonado pela ordem, pela
razo e seriamente dedicado a uma medida justa em todas as coisas. A
medida justa o ponto culminante de idealidade proposto ao sbio por
Aristteles na tica a Nicmaco. O homem grego - mas ele no qual-
quer homem? - seria antes espontaneamente irracional, entusiasmado,
passional, em suma, perigoso para si mesmo e para os outros. J faz tem-
po que o helenismo moderno abandonou o mito de uma Grcia Antiga
povoada de puros racionalistas "divisando no cu o entendimento puro" 15:
primeiro Nietzsche, depois os estudos mais recentes como o de E. R. Dodds, Os
Gregos e o irracional, souberam mostrar as zonas obscuras e passionais do
esprito grego. A prpria histria da Grcia Antiga no um doloroso teatro de
paixes polticas contnuas, de guerras e de dissenses? notvel que a
convico grega de que ser homem no pode ter sentido seno no meio de
homens seja acompanhada por uma viva conscincia do risco da multido:
"Quanto maior a multido, mais cego seu corao': afirmar a VII Nemia de
Pndaro. Portanto, por ser o homem naturalmente perigoso para o homem - algo
que os gregos sabiam bem antes de Hobbes - que precioso encontrar remdio
para esse risco. O nico phrmakon ser a idia de dominar o dado pelo
construdo, o natural pelo reflexivo, o caos para o qual desliza
insensivelmente o indivduo e a comunidade, pela ordem que se impe ou que
se encontra. Esta a idia de lei: diante dos riscos de estar reunido e das
desordens da com
. petio social espontnea, o Pricles de Tucdides se ope com uma
frase: ''A lei, que faz a todos, em seus diversos particulares, a parte igual..:'16.
A anarquia uma anomia: a ausncia de lei. Ora, a anomia ser sempre o
risco interno, e no apenas externo, das leis. O maior perigo , certamente, a
ausncia de leis. Mas essa no uma situao abstrata? Tal ameaa
radical implicaria a possibilidade de uma comunidade humana viver sem
qualquer tipo de lei, algo que nem o prprio brbaro pode fazer, pois ele sabe se
fundir nas regras. O ser humano produz regras. Mas para que elas sejam
realmente do direito, preciso que da idia simples de regra se passe idia mais
complexa de legalidade. nesse contexto que se pode determinar a
especificidade do "universo espiritual da plis': para retomar uma expresso de J.-
P Vernane7 que Pierre Vidal-Naquet comenta nestes ter
15 Pierre Vidal-Naquet, "La raison grecque et Ia cit" (1967), in La Grece
ancienne, t. I, Le Seuil, col. Points, 1990, p. 243.
16 Tucdides, op. cit., 11, 37,1.
17 J.-P. Vernant, Les Origines de ia pense grecque, PUF, 1981.
13 Tucdides, Histoire de ia guerre du Pioponnese, Garnier- Flammarion, 1966,
trad. J. Voilqui, I, p. 43.
14 Por exemplo, Jacqueline de Romilly, op. cit., p. 25.
12 HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
A FUNDAO GREGA 13
mos: ''A originalidade da cidade grega no est no fato de que se trata de uma
sociedade obediente a regras - toda sociedade corresponde a essa definio - nem
no fato de que essas regras formam um sistema coerente - uma lei no somente
dos grupos sociais, mas do prprio estudo desses grupos -, nem mesmo no fato de
que os participantes dessa sociedade tm vocao para a legalidade e a diviso do
poder, porque isso verdadeiro
tambm para muitas sociedades 'primitivas'. [.u] Na Grcia, esses fenmenos
alcanam o estado consciente: os gregos tomam conscincia da 'crise
da soberania', por exemplo, ao se confrontar com os imprios vizinhos"18.
inventando no a idia da lei, mas a conscincia da lei, que os gregos
descobrem a idia de legalidade. Ora, a anomia como risco interno das leis
parece ter relao com uma perda da prpria idia de legalidade: o vcio
ento mais puro e mais pernicioso, pois as leis so arruinadas por dentro.
A multiplicao literalmente anrquica de decretos, a inflao do corpo
das leis sob a presso das circunstncias podem minar a idia de legalidade.
Pense no que diro mais tarde Tcito, depois Rousseau: a multiplica
o das leis mata a lei. Na GrciaAntiga, Demstenes se queixava dos abusos
do poder legislador dos homens polticos, no Contra Timcrates: "Nossa cidade,
julgas, governada por leis e por decretos. Se algum vem destruir
por uma lei nova a deciso de um tribunal, onde iremos parar? justo
chamar a isso de lei? No ser antes um desafio s leis (anomia)?"19. O sentido
da legalidade consiste na conscincia de que o poder no deve ser um
fato do homem poltico, mas do prprio direito. O poder a priori ilimita
do da plis salvaguarda em vez de aniquilar, e a liberdade, assim como o
princpio fundador, respeitada: "o rei alei" (nomos basileus)Z. O fato de que
a comunidade a nica fonte da lei uma garantia de liberdade.
Baseado nisso, a negatividade do brbaro projeta uma nova luz sobre
a intuio grega do jurdico e do tico. O brbaro remete, de fato, a um
duplo e profundo desprezo: pela liberdade e pela reflexividade.
politicamente, ele aquele que alia o direito ao exerccio da dominao.
Sabe-se, por exemplo, que Os Persas de squilo assimilam o brbaro e o
inimigo, e que, historicamente, em seguida s Guerras Mdicas, a idia de
barbrie remete a um antagonismo poltico: ".u parece que, ao contato
com o Imprio Persa representando a primeira forma organizada e
metdica de dominao que conheceram, os gregos compreenderam
plenamente, por contraste, que a liberdade era um dos traos distintivos de
sua civilizao. As Guerras Mdicas so apresentadas por squilo e
Herdoto como o combate dos cidados gregos livres, defensores de suas
ptrias, contra os exrcitos de escravos brbaros, tributrios do Grande
Rei"21. Para o grego, a lei dever ser a forma da liberdade, nunca a da
dominao. Ora, a questo filosfica
subjacente consiste em se perguntar por que o brbaro no conhece
a liberdade e o quadro poltico que torna possvel seu exerccio. Uma
resposta sugerida pela descrio do brbaro pelos historiadores, prin-
cipalmente Herdoto: o brbaro o homem de coragem cega, de aes de
brilho (erga), enquanto o grego apresentado sob os traos da as-
tcia, da ttica, da reflexo (logos). O desprezo pela liberdade est
liga
do a uma carncia de reflexividade. O brbaro um ser dominado por si
prprio: joguete da prpria coragem e, politicamente, de seus prnCIpes.
Esse segundo desprezo mais carregado de conseqncias. Pe em
jogo a relao grega com a liberdade sob a forma da reflexividade, o
sentido complexo da noo de nomos e, enfim, a relao do jurdico e da
tica.
18 Pierre Vidal-Naquet, op. cit., p. 249.
19 Demstenes, Contre Timocrate, 152; sobre o contexto da crise poltica e
jurdica desta citao, ver J. de Romilly, op. cit., p. 109.
20 Citado por Moses I. Finley, Les Anciens Grecs, 1963, trad. Monique Ale
xandre, Le Seuil, col. Points, reed. 1993, p. 55.
21 Marie-Franoise Baslez, "Le pril barbare: une invention des Grecs?", in La
Grece ancienne, sob a direo de Claude Moss, Socit d'dition scientifique,
1986, reed. Le Seuil, 1986, p. 289.
14
HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA 15
3.3 A complexidade do nomos mem, a vontade divina grega se expressa pela vontade humana. Podese
ento assistir, na Grcia arcaica de Homero, assemblia dos homens
sbios dando suas sentenas da mesma maneira como so representados
sobre o cinturo de Aquiles no canto XVIII da llada. "Essa a thmis da
qual cada magistrado invoca o smbolo, pela mo estendida ou pelo
cetro. Situada acima das decises humanas, ela transcendente." O justo
positivo identificado com o justo natural, pois a vontade dos ma-
gistrados corresponde manifestao da vontade transcendente. Portanto,
ao mesmo tempo se exprime urna reflexividade em gestao: no seria
preciso inserir urna vontade humana, a dos sbios magistrados, para ter
conscincia de maneira reflexiva da vontade divina, e no se deveria
admirar a liberdade de ao nessa compreenso da lei? O acor
do com a ordem harmoniosa do universo encantado pelos deuses no
concebido corno urna submisso brutal da vontade humana vontade
divina: ele feito pela compreenso ntima e reflexiva da vontade supe-
rIor que rege o cosmos.
A thmis j contm em seu poder alguma coisa do nomos. Mas a
realizao dessa virtualidade pelo desenvolvimento da reflexividade
dever passar por urna transformao de conceito e, para comear, de
vocabulrio. "Progressivamente, a palavra dike vai substituindo thmis. A
dike (de diknymi: mostrar) representa a justia sob um aspecto
mais intelectual que voluntrio, e vinculada apenas indiretamente
vontade divina. quando aparece a noo de nomos, de lei, mas com um
sentido de ordem onto-axiolgica, despojada das nuanas voluntaristas
modernas favorecidas por tradues latinas imprudentes"24 (assim, a
idia latina de lex em Ccero, por exemplo, supe a auctoritas, o
imperium, e no poderia traduzir verdadeiramente o nomos grego, que
excede o sentido simples da positividade das leis). O nomos remete ao
desdobramento da liberdade pela compreenso reflexiva da ordem do
universo. Estabelecer o nomos restabelec-Io, manifest-Io: ele j est
A passagem do fenmeno simples das regras, quer dizer, do fen-
meno da prpria sociedade, ao nomos supe uma reflexividade: tudo
comea por se lanar neste salto que consiste em um abandono voluntrio
do mito, na emergncia de um pensamento positivo e em urna
transformao geral da concepo grega de mundo. Na sociedade arcaica
de Homero ou de Hesodo, o ser humano era assim especificado por seu
status de ser social e de portador da tcnica. A dimenso propriamente
poltica desse ser s aparecia em filigrana. a reflexividade que
engendrar o nomos, porque preciso que o homem apreenda de novo sua
humanidade corno animal poltico, e portanto jurdico, e no
simplesmente social. Mas pensa-se no que diro Schelling, depois Ernst
Cassirer22 (ver, mais tarde e de urna outra maneira, Claude Lvi-
Strauss):
a mitologia compreende a evoluo da conscincia e urna forma primeira
de pensamento positivo. Desde ento, h urna criao progressiva da
positividade pela reflexividade com base na prpria mitologia. No campo
do direito e da justia, essa progresso aparece entre os gregos. Na
reflexo grega original sobre o direito, manifestada sobre o modo
mitolgico, a idia de justia j bastante complexa. Ela no um sim-
ples efeito da exterioridade dos deuses, urna pura "heteronomia': se
quisermos adotar o vocabulrio kantiano: ela j bem ligada a urna clara
noo de vontade. Assim, "a justia tem primeiro urna significao
voluntarista. Se ela vem do exterior, que decorre da vontade de um
deus, de Zeus"23. Esse voluntarismo divino se investe de urna
humanizao imediata: ao contrrio da vontade divina da religio re-
velada dos cristos, que se revela de forma direta de Deus para o ho
22 Por exemplo, em Le mythe de l'tat (1946), trad. Bertrand Vergely,
Gallimard, NRF, 1993, p. 79.
23 Jean - Mare Trigeaud, Humanisme de ia iibert et philosophie de ia justice, t.
I, Biblioteque de philosophie eompare, Bordeaux, d. Biere, 1985, p.
46. 24 Jean-Mare Trigeaud, op. cit., p. 47.
16
HIST6RIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA 17
inscrito na natureza das coisas, ele se identifica originalmente com um
direito natural. Ora, paradoxalmente, absolutamente necessrio esta
belecer o que j : preciso manifestar a ordem natural em uma ordem
positiva. Assim, a idia grega do direito antpoda das concepes da
modernidade. O direito grego no um simples modo de relaes de
indivduos, e muito menos de possibilidade dos interesses particulares,
j que tambm no concerne propriamente fala dos sujeitos do direi
to: um modo de relao com o mundo. Essa ambio exorbitante se
encontra tambm na preocupao de universalidade que habita a refle
xo grega sobre o direito. A plis tem um valor universal porque ela
estabelece uma nova relao para o mundo, e no somente para a so
ciedade. Isso explica sem dvida a estranheza, pelo menos aos olhos
modernos, das teorias jurdico-polticas gregas: enquanto nas doutri
nas modernas do direito natural o Estado ser o meio da realizao do
indivduo, ele o principal fim no pensamento grego. Se a liberdade
individual impensvel e quimrica, o direito no sabe interessar-se por
ela. O que importa a independncia do Estado, e no a do indivduo.
A intuio grega diz que quanto mais o Estado for independente, mais
o cidado ser livre. O elo indissolvel entre o destino do indivduo e o
da plis faz com que a realizao da ordem universal da natureza no
possa ser seno coletiva. Cada grego tem, pois, um destino intrinseca
mente jurdico: ele s se realizar por uma justa manifestao do nomos.
ver perseguir o mesmo objetivo de harmonia universal, j que natural.
Pensemos na, no por acaso clebre, noo de isonomia. Ela tem por
significado poltico e jurdico a participao dos membros da cidade na
vida pblica em nveis iguais: o exerccio comum, compartilhado,
equilibrado da soberania sobre o modo grego. (Isso quer dizer que no
preciso projetar a uma concepo moderna da igualdade dos direitos: os
escravos, as mulheres, as crianas so outros obstculos do mundo antigo
para nossa viso moderna da igualdade; o cidado grego da Poltica de
Aristteles, por exemplo, aquele que participa das assemblias do povo
ou que exerce uma funo pblica: isso exclui as mulheres, as crianas e
aqueles que sofreram uma atimia, isto , que foram destitudos dos
direitos cvicos por uma falta grave.) Jean-Pierre Vernant pde mostrar25
o que esse exerccio em comum da soberania supunha de igualdade no
direito palavra e argumentao pblica e de conscincia de dever
realizar pelo estabelecimento de regras positivas a idia de um justo
equilbrio natural. A isonomia anterior democracia; ela no a
democracia ainda, como esclarece um estudo de Pierre Vidal- Naquet e de
Pierre Lvque consagrado a Clstenes, o Ateniense26, mas de alguma
forma sua condio de possibilidade. Uma palavra que avance sobre as
outras, um discurso que se pratique de sbito de maneira hegemnica e l
est o corpo poltico desequilibrado. A isonomia teraputica: ela
pretende restabelecer uma justa partilha da palavra e dos
3.4 tica e direito Da podemos tirar diretamente a relao do jurdico e do tico no
pensamento grego: so as duas faces de um mesmo remdio
destinado
a restituir o justo equilbrio natural. A mesma palavra, eklos,
designar
a doena e a injustia: um desequilbrio do corpo e da alma
individuais
e um desequilbrio do corpo poltico. A medicina jnica ou
hipocrtica
tentar restabelecer a lei de equilbrio natural do corpo, a tica se vin
cular ao ser completo - no ela essencialmente um remdio entre os
gregos? -, o poltico, pela via da instituio de uma ordem jurdica, de
25 Jean - Pierre Vernant, Mythe et socit en Grce ancienne, Maspero, 1974, p. 208.
26 Pierre Lvque e Pierre Vidal-Naquet, Ciisthne 1'Athnien. Essai sur ia
reprsentation de l' espace et du temps dans ia pense poiitique grecque de ia fin
du VIe sicle ia mort de Piaton, Annales littraires de l'universit de Besanon,
vaI. 65, Les Belles-Iettres, 1973, capo 11, p.31. Referncia retomada e
claramente exposta em Martine Pcharman, ''L'ide du politique", in Notions de
phiiosophie, sob a direo de Denis Kambouchner, vaI. III, Gallimard, Folia
Essais, 1995, p. 93.
18 HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA
19
direitos. Ela tem um valor hipocrtico, e por extenso tico. Um texto de
Alcmon de Crotona faz apelo noo de isonomia para definir a sade
do corpo, designando a doena como uma monarquia ou tirania exercida
por um dos elementos corporais sobre os outros. Ora, no de fato uma
constante do pensamento grego comparar a plis a um homem e o homem
a uma plis? Como na filosofia platnica, em que o prprio homem
apresentado como uma cidade onde se confrontam as foras antagnicas
prontas a acarretar desequilbrios funestos.
Ser responsvel por si mesmo: responder por seu corpo e por seu
esprito diante de si mesmo e diante da comunidade. O heri das tragdias
de squilo ainda era um ser pr-jurdico: ele era o lugar de enfrentamento
das foras sobre-humanas que vinham intervir no corao de suas
decises. Nesse sentido, ele ainda no era dotado da autonomia da
vontade que torna possvel um no mos. E, por conseguinte, bem no seio da
necessidade implacvel que lhe era imposta, ele descobria uma margem
de livre escolha sem a qual a responsabilidade por seus atos jamais lhe
poderia ser imputada.27 Tambm mais tarde, na filosofia de Epicuro na
poca helenstica, preciso que ele tenha um afastamento mnimo
possvel da livre escolha diante da necessidade: na fsica de Epicuro, ser
ao tomo e sua declinao que ser atribuda essa funo fundadora,
assim como, na tragdia da mais alta Antiguidade, ao hiato possvel da
vontade individual no corao da necessidade. Se tomarmos como
exemplo a concepo estica do universo, ponto culminante da deter-
minao pelo imenso poder do destino, encontraremos sem dvida essa
necessidade de estabelecer uma liberdade, ainda que seja mnima, para
tornar pensvel a tica. O args logos, como os esticos nomearam o
argumento megrico, "o argumento preguioso", enunciava uma necessi-
dade total e extrema. Se tudo depende do destino, nada mais est em
nosso poder. Ora, objetou o acadmico Carnades28, "alguma coisa est
em nosso poder". Contra o argumento preguioso, e contra as conse-
qncias nocivas para a tica dos argumentos necessitaristas oriundos da
reflexo de Diodoro Cronos sobre os futuros contingentes, preciso
descobrir um campo possvel para a liberdade. A resposta estica, pela
voz de Crisipio, foi sutil: consistiu em distinguir destino e necessidade e
introduzir duas causalidades, uma adjuvante, que no depende de ns, a
outra principal ou antecedente, que depende de ns. Mais uma vez o
pensamento grego soube pensar a liberdade do homem, mesmo no
corao de um n de necessidades29. que a liberdade a condio de
possibilidade da tica, do poltico e do jurdico, ou, como escrever Kant,
da prtica. Por que coisas responderamos se nossos atos no fossem
imputveis a ns? A tragdia j apresenta essa condio sine qua nono
Conhece-se a clebre interpretao de Hegel para a An tgo na de
Sfocles; no final da tragdia, o equilbrio das leis foi restabelecido: se
um morto foi furtado lei dos vivos, um vivente ser furtado dos viventes
e devolvido morte. A lei da Cidade e a dos mortos so equilibradamente
respeitadas. Certamente no se trata aqui de indivduos, mas de relaes
de equilbrio entre dois universais. Mas a prpria condio da tragdia
27 Sobre este assunto, ver Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet,
"bauches de Ia volont dans Ia tragdie grecque", in Mythes et tragdie en Grece
ancienne, Maspero, 1977, p. 43.
28 Ccero, De fato, XIV, 31.
29 Alasdair MacIntyre comenta claramente este episdio estico da liberda
de concebida em ltima instncia como uma conscincia reflexiva da necessida-
de: "Since human nature is part of cosmic nature, the law which governs the
cosmos, that of the divine Logos, provides the law to which human action ought
to be conformed. At once an obvious question arises. Since human life proceeds
eternally through an eternally predetermined cycle, how can human beings fail to
conform to the cosmic law? What alternatives have they? The Stoic answer is
that men as rational beings can become conscious of the laws to which they
necessarily conform, and that virtue consists in conscious assent to, vice in
dissent from, the inevitable order of things". (A Short History of Ethics, A
History of Moral Philosophy from the Homeric Age to the Twentieth Century,
Londres, Routledge & Kegan, 1966; p. 105 na reedio de 1998.)
20
HIST6RIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA
21
, por conseguinte, a margem de liberdade na qual se relacionam
Antgona e Creonte: do ponto de vista do universal, no h escolha
possvel, pois o equilbrio dever ser restabelecido; do ponto de vista do humano,
entretanto, preciso postular uma liberdade elementar dos atores. A tica e o
direito sero remdios dessa liberdade.
No universo arcaico, incluindo a tragdia, a liberdade ainda in-
certa: o drama se encontra no enfrentamento de necessidade contra
necessidade, com um jogo livre, no sentido em que se diz que duas peas
que no se ajustam perfeitamente compem um conjunto essencial, mas mnimo.
Necessidade da lei da cidade contra necessidade da
lei dos mortos, ou ento "[...] o drama arcaico da luta entre o soberano
- prncipe ou conselho oligrquico - representando o grupo, as famlias
ciumentas de seus privilgios ancestrais e os indivduos preocupados com
independncia"3O. Depois tudo se soluciona, e subsistem apenas o Estado e o
indivduo, "...unidos pelo vnculo inteligvel do nomos. E a
plis conservar a unidade e a vida enquanto essas duas foras se reco-
nhecerem uma a outra como verdade, o cidado somente existindo para o
Estado, o Estado somente existindo para todos os cidados"3l. A plis
como organismo real e singular (e no como forma do Estado em
geral, sobre o modelo do Imprio Romano), como totalidade
tica32 uma das duas faces do controle da liberdade, sendo a outra a
via tica do organismo singular. Postulamos aqui que o movimento
originrio da reflexo nico, tornando-a definitivamente unitria.
Que movimento? Vamos partir de uma problemtica complexa, a
do Crmides de Plato, consagrado questo da moderao. Seria
de fato errneo dissociar as formas tica e jurdica do controle. A idia
de
moderao sugere que preciso tentar um domnio sobre os excessos.
Sabe-se que em geral os gregos abominavam a hybris, o excesso: a tica consiste
fundamentalmente em um regulamento da hybris. Mas necessrio precisar aqui
que a palavra hybris tem o sentido original de "ao ilegal". A hybris , desde a
Grcia Antiga, uma violao do nomos: um roubo, por exemplo. O sentido
passado posteridade - tentar ultrapassar os limites da natureza humana e
tolamente desafiar os deuses - secundrio. A hybris primeiramente o
oposto da dike33, uma violao da restrio legap4. Moderar dar a cada
um o que lhe devido: esse o ideal jurdico da isonomia, esse o ideal
tico, por exemplo, de um PIa to restabelecendo a justa repartio das
partes da alma. A unidade dessas duas formas da moderao, ou da
ponderao, constitui um ideal filosfico grego. precisamente aquele
que est em questo no Crmides. Scrates encarna a unificao dos
gneros de vida: o da cidadania e o da vida filosfica. "O sentido
profundo da refutao socrtica se encontra aqui", sublinha um
comentrio recente3s: "A sophrosyne no tem qualquer valor poltico
se a distinguimos de seu valor moral; o valor poltico da sophrosyne
perfeitamente inconsistente se no se junta a ele a considerao do gnero
de vida. [...] A refutao de Scrates insiste em afirmar que a distino
entre negcios privados e negcios pblicos no tem nenhuma pertincia
e no recupera certamente a distino entre o prprio e o
estrangeiro, entre o interior e o exterior, pois fazer poltica ou fazer
seus negcios sempre
33 Segundo Hesodo: a hybris da "raa de ferro" faz com que "o nico direito
seja a fora, e que a conscincia no exista mais"; a dike que recebe o encargo de triunfar
sobre essa desmesura; cf. Jacques Perron, "l'analyse des notions abstraites chez Hsiode",
Revue des tudes grecques, t. LXXXIX, julho-dezembro de 1976, p. 286.
30 Franois Chtelet, La naissance de l'histoire, Minuit, 1962; reedio de
Seuil, col. Points, 1996, t. I, p. 79.
31Ibidem.
32 Hegel, Principes de la philosophie du droit, 185.
34 Sobre este assunto: Werner Jaeger, Paideia, La formation de l'homme grec,
trad. Andr e Simonne Devyver, Gallimard, NRF, 1964, p. 137-8,510.
35 Marie- France Hazebroucq, La folie humaine et ses remedes, Platon,
Charmide ou De la modration, Vrin, 1997, p. 191-3.
22 HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA 23
ocupar-se de negcios exteriores e estrangeiros. Contudo, na Repblica,
esses negcios exteriores so aqueles de que cada um deve ocuparse em
funo do que est no interior da cidade justa, sendo subordinados ao que
o todo da cidade. Uma vez que perfeita a analogia entre a alma e a
cidade, as aes privadas do homem justo sero subordinadas ao que ele
, boa constituio do todo da alma. A moderao da alma remete
justamente ao conhecimento de si mesmo [...]. A aparente oposio entre
ao pblica e ao privada encontra resoluo na nica verdadeira
distino entre o si mesmo e o no-si: ocupar-se realmente de seus
negcios dispensar para fora de si o no-essencial, para se ocupar
apenas do essencial, orientar a inteligncia para as realidades inteligveis..
."
Podemos fazer duas breves observaes sobre essa percepo de
sabedoria socrtica. A primeira que se trata aqui, muito evidentemente,
do prprio Scrates. No certo que os gregos em seu conjunto tenham
tido espontaneamente essa viso da completude da tica, do jurdico e do
poltico. o inverso que parece muito bem sugerido aqui! No se trata de
uma refutao socrtica, contra um desprezo possvel, e sem dvida
corrente, pela independncia da esfera jurdico-poltica? Mas no ao
mesmo tempo a afirmao de um ideal filosfico socrtico e grego da
unidade necessria das condutas poltica, jurdica e tica? A segunda
observao concerne oposio da esfera pblica e da esfera privada.
preciso, sem dvida, ressaltar a originalidade e a complexidade da
posio global da civilizao grega. Ao contrrio do que ser a grande
inveno da modernidade europia, trata-se antes de tudo de pensar uma
unidade superior do privado e do pblico sob a gide de uma distino do
essencial (a conduta filosfica, sob formas mltiplas e tantas escolas) e do
no-essencial (a vida sem reflexo, no merecendo ser vivida). H
realmente uma "vida privada" grega. Assim, no mbito da sexualidade,
Michel Foucault nos ensina que a esposa pertence a essa esfera
estritamente privada, da qual se fala muito pouco ou nada. O erotismo
"pblico", aquele das relaes com as cortess e principalmente aquele da
homossexualidade,
valorizad036: pode-se ler a a virtude ou no daquele que sabe amar com
moderao. O privado parece se realizar no pblico: a tica deve se
manifestar. Ela est por natureza projetada na esfera das relaes
jurdicas.
No sem propsito esclarecer a prtica grega do direito pela pr-
tica da tica e, especificamente, junto com Michel Foucault, a apreen
so de regras jurdicas por aquelas que regem a sexualidade. No incio
a metfora mdica que j mencionamos. Plutarco poder dizer sem
exagero, no incio dos Preceitos de sade, que filosofia e medicina per-
tencem a "um nico e mesmo domnio" (mia khora37). "A melhoria, o
aperfeioamento da alma que se busca na filosofia, a paidia, que esta
deve assegurar, pinta-se cada vez mais de cores medicinais" ao longo da
histria da Antiguidade, observa Foucault38. O exerccio filosfico uma
terapia de si mesmo: ele o tico. Ora, essa atividade consagrada a si
mesmo no um exerccio de solido, mas uma verdadeira prtica so
cial: primeiramente, ele ocorre em estruturas mais ou menos
institucionalizadas, como foram as comunidades neopitagricas ou
epicuristas, bem como na Academia platoniana ou no Liceu aristotlico.
preciso um quadro institucional para essa aplicao em si mesmo. Nas
escolas, a tica tem por objeto o jurdico, em um sentido metafrico
certamente, pois o domnio do direito o da cidade, e no o da escola.
Mas a escola uma cidade dentro da cidade. A tica somente se exerce na
cidade e para a cidade. O caso da figura epicurista tem sem dvida o
significado de uma decadncia gritante do perodo helenstico: assumindo
a absteno poltica do sbio, o epicurismo reduz o quadro "polti
36 Sobre esse assunto, alm de Foucault, ver: Claude Moss, Splendeur et misere
de Ia courtisane grecquej e Maurice Sartre, L'homosexualit dans Ia Grece ancienne,
artigos retomados em La Grece ancienne, coleo apresentada por Claude
Moss, Le Seuil, 1986.
37 Plutarco, De tuenda sanita te praecepta, 122e.
38 Michel Foucault, Histoire de Ia sexualit, t. III, "Le souci de soi", Gallimard,
NRF, 1984, p. 71.
24
HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA
25
co" do exerccio tico a um grupo de amigos. Essa evoluo arranca a tica de
seu solo poltico. possvel ver nisso uma amarga constatao da ambio
poltica grega: Lon Robin, em seu estudo sobre A moral antiga39, sugere que "a
tica, como cincia distinta, se constituiu em uma poca relativamente tardia, e
depois que os filsofos foram desencorajados de realizar pela via poltica uma
reforma prtica dos costumes". A tica no se torna uma disciplina autnoma a
no ser pelo efeito da decadncia da autonomia da prpria plis no mundo
helenstico. Mas o ideal da idade de ouro da filosofia e da poltica gre
gas era muito mais se assistirem juntos o indivduo e a plis, um com o
outro e um para o outro.
No sculo lU a.c., o desmoronamento das cidades-Estados pe em
questo essa herana. Se aceitamos o anacronismo, pode-se evocar uma
espcie de primeira "globalizao": a interpretao dos mundos gregos e no-
gregos encobre a identidade poltica propriamente helnica. Permanece a
possibilidade de um desvio na idia de autonomia na tica: que cada um, pelo
menos se for sbio, se torne uma cidade autrquica. Ora, mesmo nesse
novo contexto explodido do universo grego, o go
verno tico permanece como fundamento de todo governo poltico.
Segundo uma clara e sinttica expresso de Foucault, "a racionalidade do
governo dos outros a mesma que a racionalidade do governo de si mesmo":
" o que explica Plutarco no Tratado para o prncipe sem experincia:
no se poder governar se no se governado. Ora, quem deve dirigir o
governante? A lei, certo; todavia no preciso entend-Ia como a lei escrita,
mas antes como a razo, o lagos, que vive na alma do governante e no
deve jamais abandon-Io"4. A fase "decadente" da ci
vilizao grega nesse famoso sculo lU a.c., que viu florescer as doutrinas
epicurista e estica, no faz mais que exacerbar um trao profundo
da idia grega do poltico: a arte de governar a si mesmo se torna um
fator poltico cada vez mais determinante das leis no momento em que
surge uma dvida sobre a fora imperativa e transformadora das leis.
Para que serve uma boa lei, se ela est a servio de um governante que
no sabe governar a si mesmo? S a tica pode dar uma consistncia
forma jurdica.
Esta ltima proposio exige algumas explicaes. Ela no quer
dizer que o pensamento grego em geral confunde, para utilizar termos
modernos, moral e poltica, ou normas morais e normas jurdicas. bem
evidente que existe um trabalho de distino desses domnios na reflexo
antiga. Para especific-Io de forma simples e prosaica, basta constatar
que na obra de Aristteles so bem diferenciados os trabalhos sobre as
constituies e aqueles sobre a tica a Eudemo ou a Nicmaco. Mas o
caminho da reflexo, que conduz avaliao dos atos
individuais ou coletivos, unificado em torno da determinao comum de
um Bem41. Esse Bem no propriamente nico. Politicamente, sabese
que a diversidade de Bens foi extrema. Werner Jaeger nos faz ver que os
Estados gregos "supem ideais espirituais diametralmente opostos" e que
"esse contraste certamente um dos fatos primordiais da histria poltica
grega". Alm disso, escreve ele: "trata-se de um elemento capital na
histria do esprito grego. Ignorar o fato de que o ideal poltico da Grcia
estava longe de ser uniforme nos tornaria incapazes de compreender a
prpria essncia da cultura helnica, essa cultura que se caracteriza, para
terminar, por um violento conflito interno com uma reconciliao em
sntese harmoniosa e triunfal"42. Mas a pluralidade dos ideais polticos, e
conseqentemente das concepes do Bem, no pe jamais em questo a
idia de uma plis como totalidade tica, e no simplesmente como um
todo poltico. Os gregos "no concebiam que pu
desse existir uma relao estritamente utilitria e material entre virtude
39 Lon Robin, La Morale antique, Paris, 1938; PUF, Nouvelle Encyclopdie
philosophique, 1963, p. 169.
40 Op. cit., p. 110. 41 Cf Alasdair MacIntyre,A short History of Ethics, op. cit., p. 87. 42
Werner Jaeger, Paideia, op. cit., p. lll.
26 HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
A FUNDAO GREGA 27
cvica e salvaguarda da comunidade. A seus olhos, a plis constitua um
universal dotado de uma base religiosa"43. Uma vez que a humanitas
assimilada vida no seio de um Estado, uma vez que viver para o ho
mem no nunca viver biologicamente e de forma passiva (a forma
frustrada da bios), mas sempre, de forma ativa, tomar parte na vida
comum (polituestai), a idia de Lei elevada mais alta dignidade na
escala da civilizao humana. Nesse sentido, pode-se dizer como Jaeger
que "a lei representa o estgio mais importante no desenvolvimento da
cultura helnica" e que ela foi "a forma mais durvel e universal da ex
perincia moral e judiciria da Grcia"44. Herclito no escreveu que "o
povo deve combater por suas leis como por suas muralhas"? (Diels, frag
mento 44). A lei ento a melhor das defesas da cidade, e no se saberia
cantar seu elogio o suficiente4s. Ora, se legislar uma atividade eminen-
temente nobre, o apangio dos sbios, ela depressa voltar para o filsofo
exerc-Ia, prepar-Ia: nas Leis ou na Repblica, Plato se transforma
de filsofo em legislador; no final da tica a Nicmaco46, Aristteles faz
seus votos a um legislador para realizar o ideal que ele acaba de formu
lar. O legislador, como o filsofo e o poeta, um educador. Alis, Jaeger
observa que um trao prprio da mentalidade grega citar freqente
mente o legislador ao lado do poeta. PIa to dir no Pedro47 que o legis
lador um "autor" e que ele semelhante ao poeta. A poesia e a
legislao
so prximas uma da outra. Sem dvida remetem a uma mesma sophia, a
uma mesma sabedoria. O prprio Hesodo, em sua Teogonia48, pe em
paralelo a sophia do poeta e a sophia dos reis. As mesmas musas devem
inspirar os poetas e os reis sensatos! O prprio Slon qualificava como
soph a atividade potica. A aret, a excelncia, pode ser colocada sob a
tutela da sophia: pelo menos o que afirma um poema de Tognis49. a
obra de Pierre Hadot que nos pe no caminho dessa preeminncia final da
sabedoria sobre a legislao, esta no sendo mais que uma das
manifestaes da primeira. Eis ento (ainda!) uma "idia fundamental na
Antiguidade", a idia "do valor psicaggico do discurso e da importncia
capital do domnio da palavra. A palavra opera em dois registros
aparentemente muito diferentes: o da discusso jurdica e poltica (os reis
praticam a justia e apaziguam as querelas) e o do encantamento potico
(os poetas por seus cantos mudam o corao dos homens)"so.
3.5 Direito e sophia
No fundo, a lei realmente um problema grego? No ela um sim-
ples avatar da grande convico de que homem e sociedade podem estar
doentes e que suas afeces podem e devem ser tratadas pelo discurso? A
aret, essa clebre excelncia tica, pode ser atingida por homens que se
dedicam ao amor da sophia: a filo-sofia. Se toda concepo do direito se
baseia em uma antropologia particular, como sugere, por exemplo, um
terico contemporneo flamengo, Jan M. Broekmans1, a antropologia dos
gregos tem de original o fato de que ela se abstm de pensar na idia de
um mal radical: o homem doente, mas curvel. A idia de lei ento
extraordinariamente paradoxal: colocada o mais prximo possvel do
tumulto desencorajador das paixes humanas, situada s portas da hybris
na qual se afunda sem cessar o humano, ela
43 Ibidem, p. 127.
44 Ibidem, p. 144.
45 Werner ]aeger, Ioge de Ia Loi, BulIetin Guillaume Bud, 1. VIII, 1949.
46 Aristteles, tica a Nicmaco; a esse respeito, ver: Werner ]aeger,
Paideia, op. cit., n. 38, p. 511-
2.
47 Plato, Phedre, 257d e 278c.
48 Hesodo, Thogonie, 80-103.
49 Tognis, Poemes Igiaques, 1072.
50 Pierre Hadot, Qu'est-ce que Ia phiIosophie antique?, Gallimard, col. Folio,
1995, p. 41.
51 ]an M. Broekman, Droit et anthropologie, LGD], 1993 (traduzido do ho
lands), capo I, sees 2 e 3 principalmente.
28 HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
IIII1 promete no obstante, com uma desconcertante serenidade, a possibi-
lidade de uma terapia do homem pelo homem por intermdio do discurso.
A importncia do legado grego em matria de textos polticos e jurdicos,
o prestgio inaudito conferido pela inveno da democracia, a obsesso de
identidade da Europa moderna que, em seus sonhos genealgicos,
desejar tanto se definir como herdeira direta de Iscrates, de Demstenes
e de todos os discursos polticos gregos escandidos pela instituio
escolar (pelo menos at uma poca recente, e que no se espera o retorno,
quando esses nomes ainda evocavam aos alunos uma idade de ouro
intelectual e poltica), fizeram sem dvida com que a reflexo
propriamente jurdica e poltica grega tomasse o lugar, na memria
coletiva (quer dizer, essencialmente institucional), da ambio mais
profunda e mais ampla de oferecer ao homem uma salvao quase
unicamente intra-humana pelo exerccio do logos: a palavra e a refle-
xo. Os trabalhos de Pierre Hadot, como os de Michel Foucault,
certamente reequilibram essa imagem. A lei no um problema grego. O
que preocupa a civilizao grega a restituio do homem ao que digno
de ser humano, pelos exerccios variados e complementares da diettica,
da ginstica, da tica e das leis. A lei filosfica no pensamento grego
porque ela faz parte (e no mais que uma parte) do amor fundamental
que deve desenvolver pela sophia.
Esse amor pela sophia tem ocorrncias mltiplas, para no dizer
formas quase contraditrias na marcha da evoluo das doutrinas filo-
sficas. Seria absurdo negar as profundas diferenas doutrinais que exis-
tem entre as concepes da prtica de si e da relao jurdica e poltica
para com outrem no seio de uma comunidade ao longo de uma histria
que vai dos pr-socrticos a Pancio de Rodes, isto , at o sculo II a.c.
Plato,Aristteles, os cirenaicos, os cnicos, depois Epicuro e os esticos,
para citar apenas os momentos mais marcantes, colocam pedras
fundamentais e determinantes no edifcio plural do pensamento grego.
Contudo, no prprio seio dessa variedade, outro trao marcante pode ser
apontado como uma constante do pensamento grego da lei e do direito. O
amor pela sophia, o desejo de aperfeioar que se manifestam
I~
"
'111
1
II1
29
A FUNDAO GREGA
no esprito grego das leis tm mais isto de extraordinrio: eles se expri
mem sob a forma de uma confiana no logos escrito. O nomos arcaico
no escrito: ora, ser considerado como um progresso incontestvel
do nomos o fato de se tornar um discurso escrito. Sobre este ponto,
permitimo-nos aqui duas breves anlises.
3.6 A questo da melhor lei
A primeira de ordem histrica, mas tem uma implicao filos
fica evidente. Se a idia grega de lei parece supor inicialmente a
idia de
que se possa aperfeioar o ser humano, ou restitu-Io ao que deva ser
sua essncia, preciso igualmente colocar que a prpria lei perfectvel.
um problema que se coloca em primeiro lugar de modo prtico, real
mente prosaico. Aristteles o resume em sua Poltica (lI, 8), quando
examina a constituio ideal elaborada por Hipodamos de Mileto: "
til ou nocivo substituir as leis ancestrais por outras leis melhores?" A
questo saber se h um progresso possvel na ordem das leis e se, de
modo mais preciso, esse progresso ocorre pelo efeito da substituio de
leis novas pelas patrioi nmoi, quer dizer, pelas leis ancestrais. Arist
teles, fiel ao seu mtodo de exame de teses e antteses, faz anlise dos
argumentos possveis. Por um lado, parece bem estabelecido que as cin
cias e as tcnicas s conheceram o progresso libertando-se das tradi
es ancestrais, e que os ancestrais no tinham a cultura nem a
inteligncia dos contemporneos, o que faz com que obedecer s suas
prescries seja estpido: o critrio de uma boa lei deve ser a excelncia
(agathon) e no a velhice. Por outro lado, parece que uma lei no pode
ser verdadeiramente comparada a uma tcnica ou a uma cincia: a lei
s exerce uma ao educativa quando se adquiriu o hbito de viver se
gundo sua prescrio. H, portanto, um risco inerente em toda refor
ma: uma lei modificada com muita freqncia perder sua fora de lei.
Esse debate entre uma posio conservadora e um movimento
reformado r recorrente no pensamento grego do direito. O
princpio
do respeito s tradies ancestrais foi por longo tempo muito forte.
Por
"'11
I1I1
II11
~
30 HISTRIA DA FilOSOFIA DO DIREITO
certo houve sobre esse assunto a palavra aparentemente definitiva de
Hesodo: nomos d' arkhios ristos, a lei dos ancestrais a melhor lei. A
invocao das patrioi nmoi permaneceu por muito tempo como um
argumento poltico nos tempos difceis em que se debateram opes
opostas, mas sempre extremistas: por ocasio do advento de regimes
autoritrios, de forma tirnica ou oligrquica, a aspirao s patrioi
nmoi foi o grito de guerra daqueles que reivindicavam a liberdade em
parte perdida; no advento de uma democracia extremista, o retorno s
patrioi nmoi foi inversamente a palavra de ordem dos reacionrios ou
dos moderados. Preciso e clarividente, Tucdides saber relatar suas
discusses, por exemplo aquelas do ltimo tero do sculo V a.c. Ora, a
prpria existncia de um debate recorrente sobre o progresso proble-
mtico das leis mostra a que ponto a civilizao grega no considerava o
domnio jurdico como uma simples tcnica entre outras. Parece que o
progresso que tem curso nas cincias e nas tcnicas no poderia ser
reconduzido na ordem jurdica de forma no problemtica. que a lei
retoma terapia do ser humano completo, para o qual ela apenas um
dos tratamentos. No certo que seja inteiramente pensvel um progresso
na ordem teraputica. Medita-se em Rousseau, bem mais tarde: o
progresso das cincias e das tcnicas implica menor progresso moral? O
exame da civilizao grega nos coloca em face de uma situao, no fundo
sempre paradoxal: os gregos, por um lado, devem acreditar na idia de
um progresso possvel na ordem dessa tekhne particular que o
estabelecimento das leis. As leis, no sentido do direito positivo, devem
ser aperfeioveis, sem dvida alguma. Mas ao mesmo tempo, uma vez
que o direito no saberia ser verdadeiramente uma tekhne, no certo que
as novas leis sejam melhores que as antigas: o uso bem estabelecido das
patrioi nmoi foi aprovado, e j se conhecem suas virtudes e seus
limites teraputicos. Condena-se, por um lado, o carter "brbaro" de
certas leis arcaicas (como fazem Tucdides e Aristteles, por exemplo),
celebra-se tambm o progresso tcnico dos corntios para justificar o
valor renovador de Atenas em oposio ao imobilismo de Esparta; mas
pode-se concluir, por outro lado, que sbio e prudente
31
A FUNDAO GREGA
se ater s leis j estabelecidas, mesmo que apresentem algumas eviden
tes imperfeies. Desde ento, o debate entre as patrioi nmoi e o
agathon ou o riston, entre o antigo e a "boa" ou a "melhor" lei, remete
talvez, em ltima instncia, idia de que a melhor das leis no pode
ser positiva, que ela est inscrita em uma ordem superior: a ordem da
"natureza", ou das essncias. Se nos permitimos brincar com o duplo
sentido da palavra arcaico, possvel considerar que o debate jurdico
na ordem temporal, que preocupa os gregos tanto e de maneira to du
radoura - as novas leis podem verdadeiramente ser melhores que as an
tigas? - recorta um debate sobre a fundao das leis na ordem dos
princpios: o nomos remete physis. O progresso consistir na transfor
mao do nomos, de palavra em discurso escrito, de tradio perpetua
da em logos reflexivo. Ora, essa ltima assero tem igualmente um
alcance problemtico no universo conceitual grego. 3.7 A lei e sua escrita
Com efeito, e esta ser nossa segunda observao, a lei se tornou,
no curso da constituio da civilizao grega clssica, uma questo
de
escrita: o direito se escreve. Sabe-se por Aristteles que a
constituio
ateniense de Slon foi gravada, em seguida de Drcon. O objetivo
desse
trabalho de escrever foi primeiro de publicidade: tratava-se de tornar a
lei visvel para todos. Mas ao mesmo tempo a escrita prende a palavra
ao tempo e manifesta a permanncia da lei. Isso pouco espantoso para
a considerao moderna. Ora, essa insistncia na escrita do no mos, que
assume assim um valor positivo, central no universo grego, ao mes
mo tempo que espantoso. Ela central primeiro porque toda a socie
dade poltica, toda a politia, condicionada pela escrita. A cidadania
supe a roupagem do equivalente a um estado civil. O nome dos ado
lescentes e o demos ao qual pertencem so escritos sobre tabletes. O
katalogos, dir Xenofonte em sua Constituio de Esparta, faz parte in
tegrante da organizao da cidade. Para governar no necessrio re
gistrar pela escrita (anagraphein) os indivduos e os bens? Uma
passagem
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HISTRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAO GREGA 33
de uma esclarecedora introduo s tradues da Constituio de
Esparta
de Xenofonte e da Constituio de Atenas de Aristteles atrai nossa aten-
o para o carter aparentemente paradoxal de uma tamanha valoriza-
o da escrita pelo direitos2. geralmente admitido, com efeito, que o
pensamento grego e mais singularmente o pensamento de Aristteles
depreciaram globalmente a escrita (grmmata) em benefcio da voz
(phon). A hierarquia aristotlica no De interpretatione faz da voz um
smbolo dos estados da alma, e da escrita um smbolo da voz; smbolo
de smbolo, a escrita est mais longe da inteno de significado. Jacques
Derrida interpretou essa teoria como um fonocentrismo constitutivo
da metafsica ocidental: um primado da palavra e da voz sobre a escri-
taS3. verdade que Aristteles e Plato realam o carter confuso das
leis escritas: por definies gerais, elas no podem atingir a perfeio
de ser imediatamente explcitas sobre todos os casos particulares. Mas,
fora essa observao, que menos uma crtica do que uma constatao,
preciso realmente admitir, com D. Colass4, que "... mesmo que se seguisse
Derrida em uma colocao luz do logocentrismo de Plato e da filosofia
ocidental, seria preciso sustentar que, na e