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A OBRA ClARA Lacan; a ciência, a filosofia Jean-Claude Milner . -4 /Jtinc; i. . à'P q Portanto não me decid 1 11 illise p Vocação de da psica· ano Orém, POde-se observar que Utn Sado tomei como tio condutor c momento do sujeito que 0081 dero um correlato essencial da Ciência: um momento historicamente definido do qual talvez devamos sa· ber se é estritamente repetível na ex· P erlência, aquele e se chama · cartes e qu . u em vão, uma vez nos gu'o d' . f\0 nao 10 rmu\ar nossa \V\• e nos \e"ou a da do su\e\\o, como bet e a "erdade ... sao - r entte o sa d\\J\sao . e a. "etd ade") " c,êfl-c'a. \..acan. Jorge Zahar Editor Transmissão da Psicanálise

Jean-Claude Milner - A Obra Clara - Lacan, A Ciência, A Filosofia

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La obra clara. En portugués.

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  • A OBRA ClARA Lacan; a cincia, a filosofia Jean-Claude Milner .

    -4 /Jtinc; i. . q~lnto 'P q Portanto no me decid1 11illise p Vocao de ~incia da psica ano P~s Orm, POde-se observar que Utn Sado tomei como tio condutor c ~erto momento do sujeito que 0081dero um correlato essencial da Cincia: um momento historicamente definido do qual talvez devamos sa ber se estritamente repetvel na ex Perlncia, aquele inauguoracdoog~tC: ~::; e se chama cartes e qu . u em vo, uma vez ~ nos gu'o d' . f\0 nao 10rmu\ar nossa \V\

    e nos \e"ou a da do su\e\\o, como q~ e~net\men\a bet e a "erdade ... sao - r entte o sa d\\J\sao . e a. "etdade")

    " ~ c,fl-c'a. \..acan. ~J.

    Jorge Zahar Editor Transmisso

    da Psicanlise

    1\ v

    Transmisso da Psicanlise diretor: Marco A ntonio Coutinho Jorge

    23 O pai c sua funo em psicanlise JoiiPf)or 24 A histeria J.-1>. Nasio

    25 Holderlin c a questo do pai Jean Laplanche

    26 Eles no sabem o que fazem Slmoj Zi::ek 27 A ordem sexual Gmrd Pommier

    28 A neurose infantil da psicanlise Gmrd Pommier

    29 Pulso c inconsciente Noga Wine

    30 Cinco lics sobre a teoria de Jacqucs Lacan 1. -D. Nasio

    31 Psicossomtica 1. -/J. Nasio

    32 Fi m de uma anlise. finalidade da psicanlise Ala in Didier- H(i// 33 frcu d c a mulher Paul-mrent As.wun

    34 Conversas com o Homem dos Lobos Karin Ohhol::.er

    35 Eros c verdade Jolm Rajchman 36 Leitura das pcrvcrsiics GcorKeS mtcri-Laura

    37 O o lhar em psicanlise J. -I>. Nas i o

    38 Amor. dio, separao Mmul Mannmli

    39 O homem diante da nmrtc Mwul Mannoni

    40 O real c o sexual Claflde Cont 41 Introduo s obras de frcud. Fcrcnczi. Groddcck. Klein, Winnicott, Dolto, Lacan .!. -1>. Nasio

    42 Metapsicologia freudiana Paui-111rcnt Assoun

    43 A obra clara .Jean-Ciaudc Milncr

    44 O gozo do trgico Patrick Guronuml

    ISBN 85-7110-347-X

    .lll~ll[[llllll!l!~~~ JZE Jorge Zahar Editor

  • A OBRA CLARA Lacan, a cincia, a filosofia "Lacan , como ele prprio diz, um autor cris-talino. Basta l-lo com ateno." partindo desse inusitado pressuposto que Jean-Ciaude Milner se prope estudar as relaes entre o pensamento de Lacan, a cincia e a filosofia. Seu piv terico a teoria lacaniana, que sou-be preservar e elaborar os pontos de choque e de atrao entre esses diferentes discursos. O resultado um livro magistral, cuja impor-tncia vem sendo cada vez mais sublinhada desde seu lanamento na Frana. Freud j~ais negou seu aval ao "ideal da cin-cia", e almejava inscrever a psicanlise no qua-dro j existente das outras disciplinas ci~ntficas. Lacan, em contrapartida, ao contestar a cincia "ideal" como modelo para a psican-lise, pretendeu detectar na prpria psicanlise os fundamentos epistemolgicos de seus prin-cpios e mtodos. A formulao viu-se assim invertida, a psicanlise tornando-se capaz de

    ' questionar a cincia. Em 1965, Lacan j in-, quiria: "O que ser uma cincia que inclua a

    psicanlise?" Contudo, considerando a cincia essencial para a existncia da psicanlise, Lacan vai requerer precisamente uma teoria qual o Eu se mostra refratrio: a da cincia moderna com sua litera-lidade - a cincia e a letra so indiferef\les s boas formas. ao passo qu~ o Eu e o imagi-nrio so gestaltistas ... Milner estabelece trs diferentes perodos na obra de Lacan, a qual considera ter permane-cido inacabada: o primeiro classicismo, o se-gundo classicismo e a desconstruo. Representado sobretudo pelos Escritos. o pri-meiro classicismo consiste no desenvolvimento progressivo e quase sistemtico do programa articulado no Discurso de Roma, de 1953, e

    se instaura atravs' da nfase na linguagem e na estrutura: o que se produz nesse perodo, com as doutrinas do significante e da homo-fonia, uma antilingistica. O segundo classicismo, cujos principais repre-sentantes so o Seminrio 20 (Mais, ainda) e os textos L' tourdit e Radiophonie, comea em 1970 e abrange o desenvolvimento dos ma-temas: o que se produz af, com a teoria dos discursos, uma antipolitica e uma antifi~ losofia. A desconstruo o perodo da emergncia do n borromeano: o que se produz ento, pe-lo desvio da letra, uma antimatemJica, e o interesse de Lacan pelos ns se d na exata medida em que resistem a uma matematizao integral, diferena dos outros objetos topo-lgicos (banda de Moebius, cross-cap ). Como diz o autor, seu proje~o "constatar cla-ramente que existe pensamento em Lacan. Pen-samento, isto , algo cuja existncia impe-se a quem no o pensou".

    JBAN-CLAUDE Mn.NER, nascido em 1941 , professor de lingstica na Universidade de Pa-ris vn. Foi discpulo de Althusser e Barthes, tendo aderido Escola Freudiana de Paris em 1964, sob a liderana de Jacques Lacan, e inte-grado o conselho de redao do peridico Cahiers pour l'Analyse. Seus trabalhos tratam sobretudo de efetuar uma leitura da lingstica a partir da teoria lacaniana. autor de vrios livros, entre os quais L'amour de la langue ( 1978), Ordres et raiso11.s de la langue (1982), Les noms indistincts ( 1983), De L' cole (1984), Archologie d'un chec ( 1993).

  • A OBRA CLARA Lacan, a cincia, a filosofia "Lacan , como ele prprio diz, um autor cris-talino. Basta l-lo com ateno." partindo desse inusitado pressuposto que Jean-Ciaude Milner se prope estudar as relaes entre o pensamento de Lacan, a cincia e a filosofia. Seu piv terico a teoria lacaniana, que sou-be preservar e elaborar os pontos de choque e de atrao entre esses diferentes discursos. O resultado um livro magistral, cuja impor-tncia vem sendo cada vez mais sublinhada desde seu lanamento na Frana. Freud j~ais negou seu aval ao "ideal da cin-cia", e almejava inscrever a psicanlise no qua-dro j existente das outras disciplinas ci~ntficas. Lacan, em contrapartida, ao contestar a cincia "ideal" como modelo para a psican-lise, pretendeu detectar na prpria psicanlise os fundamentos epistemolgicos de seus prin-cpios e mtodos. A formulao viu-se assim invertida, a psicanlise tornando-se capaz de

    ' questionar a cincia. Em 1965, Lacan j in-, quiria: "O que ser uma cincia que inclua a

    psicanlise?" Contudo, considerando a cincia essencial para a existncia da psicanlise, Lacan vai requerer precisamente uma teoria qual o Eu se mostra refratrio: a da cincia moderna com sua litera-lidade - a cincia e a letra so indiferef\les s boas formas. ao passo qu~ o Eu e o imagi-nrio so gestaltistas ... Milner estabelece trs diferentes perodos na obra de Lacan, a qual considera ter permane-cido inacabada: o primeiro classicismo, o se-gundo classicismo e a desconstruo. Representado sobretudo pelos Escritos. o pri-meiro classicismo consiste no desenvolvimento progressivo e quase sistemtico do programa articulado no Discurso de Roma, de 1953, e

    se instaura atravs' da nfase na linguagem e na estrutura: o que se produz nesse perodo, com as doutrinas do significante e da homo-fonia, uma antilingistica. O segundo classicismo, cujos principais repre-sentantes so o Seminrio 20 (Mais, ainda) e os textos L' tourdit e Radiophonie, comea em 1970 e abrange o desenvolvimento dos ma-temas: o que se produz af, com a teoria dos discursos, uma antipolitica e uma antifi~ losofia. A desconstruo o perodo da emergncia do n borromeano: o que se produz ento, pe-lo desvio da letra, uma antimatemJica, e o interesse de Lacan pelos ns se d na exata medida em que resistem a uma matematizao integral, diferena dos outros objetos topo-lgicos (banda de Moebius, cross-cap ). Como diz o autor, seu proje~o "constatar cla-ramente que existe pensamento em Lacan. Pen-samento, isto , algo cuja existncia impe-se a quem no o pensou".

    JBAN-CLAUDE Mn.NER, nascido em 1941 , professor de lingstica na Universidade de Pa-ris vn. Foi discpulo de Althusser e Barthes, tendo aderido Escola Freudiana de Paris em 1964, sob a liderana de Jacques Lacan, e inte-grado o conselho de redao do peridico Cahiers pour l'Analyse. Seus trabalhos tratam sobretudo de efetuar uma leitura da lingstica a partir da teoria lacaniana. autor de vrios livros, entre os quais L'amour de la langue ( 1978), Ordres et raiso11.s de la langue (1982), Les noms indistincts ( 1983), De L' cole (1984), Archologie d'un chec ( 1993).

  • Transmisso da Psicanse diretor: Marco Antonio Coutinho Jorge

    J ean-Claude Milner

    A OBRA CLARA . Lacan, a cincia, a filosofia

    TradUfo: PROCPIO ABREU

    Reviso tcnica: MARCO ANTONIO COUTINHO

    psicanalisra

    Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro

  • Ttulo original: L'reuvre duirt (lAcan, la science, la philosophit:) Traduo autorizada da primeira edio francesa publicada em 1995 por Editions du Seuil, de Paris, Frana, na coleo "L'ordre philosophique" Copyright ~ 1995, ditions du Seuil Copyright ~ 1996 da edio brasileira: Jorge Zahat Editor Ltda. rua Mxico 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (021) 240-0226/ fax: (021} 262-5123

    Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizada desta publicao. ~ todo ou em parte. constitui violao do copyrigbt. (Lei 5.988)

    M598o

    CIP-Brasil. Catalogao-na-ronte Sindicalo Nacional dos Edtores de Livros. RJ.

    Milner. Jean-Claude A obra clara: Lacan, a cincia, a filosofia I

    iean-Claude Milner; tr aduo, Procpio Abreu; reviso tcnica, Marco Antonio Coutinho. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996

    - (Transmisso da psicanlise)

    TradufYD de: L'

  • Ttulo original: L'reuvre duirt (lAcan, la science, la philosophit:) Traduo autorizada da primeira edio francesa publicada em 1995 por Editions du Seuil, de Paris, Frana, na coleo "L'ordre philosophique" Copyright ~ 1995, ditions du Seuil Copyright ~ 1996 da edio brasileira: Jorge Zahat Editor Ltda. rua Mxico 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (021) 240-0226/ fax: (021} 262-5123

    Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizada desta publicao. ~ todo ou em parte. constitui violao do copyrigbt. (Lei 5.988)

    M598o

    CIP-Brasil. Catalogao-na-ronte Sindicalo Nacional dos Edtores de Livros. RJ.

    Milner. Jean-Claude A obra clara: Lacan, a cincia, a filosofia I

    iean-Claude Milner; tr aduo, Procpio Abreu; reviso tcnica, Marco Antonio Coutinho. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996

    - (Transmisso da psicanlise)

    TradufYD de: L'

  • Introduo

    No me proponho esclarecer o pensamento de Lacan. No tenho nem autoridade nem qualificao para isso. Ademais, o projeto de tal elu-cidao no parece especialmente urgente. Lacan , como ele mesmo diz, um autor cristalino. Basta l-lo com ateno. Acho, claro, que tais leituras devem ser guiadas, mas para isso existem instituies srias e obras excelentes. Na verdade, a bibliografia lacaniana distin-gue-se pela quantidade e pela qualidade de seus ttulos. Considerando as necessidades presentes, os comentrios de que hoje dispomos so desde j perfe itos. Mas com uma ressalva: os melhores no so nem os mais acessveis, nem. os mais bem conhecidos.

    verdade que um Lacan segundo a ordem das razes no existe. Dois sculos foram necessrios para que o pensamento de Descartes fosse exposto de acordo com os princpios que ele prprio formular a. Kant requer a cada perodo releituras atentas; por mais rgi da a forma escolstica que lhe havia legado W oi f, ela no o preservou de desvios. Podemos portanto supor que um dia, em breve talvez, ser precso retornar a Lacan, como o prprio Lacan teve de retornar a Freud. O erro de leitura aqui previsvel e provavelmente necessrio; ele faz parte da gravidade dos destinos. Deve-se ainda dar-lhe tempo para que se desdobre . Na Frana, em todo caso, o tempo no foi suficiente (no direi o mesmo das Amricas, mas no escrevo com elas em mente).

    No portanto oportuno faze r acerca de Lacan uma apresentao que o apreenda em sua lgica interna- seja esta, de fato , consistente ou no - e o exponha de maneira to completa que eventuais contra-sensos sejam corrigidos. Meu intuto bem di~tinto: no se trata de esclarecer o pensamento de Lacan, nem de rccificar o q ue

    7

  • 8 A obra clara

    dele disseram, mas de deix.ar claro que existe pensamento em Lacan. Pensamento, isto , algo cuja existncia se impe a quem no o pen-sou.

    Os servidores da exatido e da clareza supem essa existncia como dada. Eles tm razo. Supem tambm que o melhor mtodo para eles o de esclarecer Lacan por Lacan; mais urna vez, eles tm razo. Sejam quais forem as obras, as mais irrepreensveis elucidaes obedecem a esse princpio. Mas quando no se supe a exiscncia dada, preciso proceder de outro modo.

    O nico suporte que assegura a veracidade da existncia de um pensamento so as proposies. Dizer que existe pensamento em Lacan corresponde portanto a dizer que nele existem proposies. Mas nada existe, se no tiver propriedades. E nada tem propriedades, se estas no forem, ao menos parcialmente, independentes do meio. preciso portanto estabelecer que existem e m Lacan proposies suficiente-mente robustas para serem extradas de seu prprio campo, para su-portarem mudanas de posio e modificaes do espao discursivo. Mas tampouco necessrio ser exaustivo; basta que algumas proprie-dades desse tipo sejam reconhecidas para algumas proposies. Assim caracterizado, o programa se define em exterioridade e em ncomple-tude.

    Tenciono reconstituir apenas certas articulaes; alm disso, pre-tendo no reinseri-las num dispositivo global, que pretenderia tomar visvel a construo geral da obra (veremos em que sentido o termo "obra" pode ser aqui entendido). Serei, por exemplo, levado a dar certa importncia questo da cincia. Sabemos que Lacan a abordou com alguma insistncia; entretanto, no verdade que a partir dela possamos deduzir, em detalhe, o conjunto dos conceitos fundamentais da psicanlise. Adernais, Lacan, nessa questo, no cessa de no se autorizar por si mesmo. Como se a questo da cincia fosse decisiva -a ponto de ser preciso a ela voltar de forma repetitiva- e como se, no entanto, ela fosse suficientemente estranha ao essencial para que um garante exterior- Koyr, especialmente- bastasse. Com-parativamente, o paradigma da lingstica estrutural ganhou a impor-tncia que conhecemos, e, no entanto, em nenhum momento conse-guimos nos persuadir de que Lacan tenha praticado os trabalhos pr-prios a essa disciplina: como se sua pura e simples existncia bastasse, e~malte exterior vedando e proteg~ndo os espaos a serem conquis-tados.

    Introduo 9

    Ora, eu sustento que existe um bom uso da exterioridade. O prprio Lacan colocou-a em prtica; legtimo p-la em prtica em relao a ele.

    A doutrina lacanana da cincia derivada de Koyr, mas ela submete Koyr a fins que lhe so alheios. Por conseguinte, ela ma-nifesta propriedades da doutrina de Koyr, por vezes mantidas em estado latente nos textos de referncia. Da mesma fonna, Lacan revela propriedades da doutrina estrutural, na medida exata em que se mantm em relao a da numa paradoxal posio de incluso externa. Se, em contrapartida, :partimos da doutrina da cincia e da estrutura, empe-nhando-nos em desdobrar em si mesmas as teses discriminantes, a exterioridade dlestas pennite violentar o ambiente natural das propo-sies lacania01as; evidenciamos assim propriedades objetivas e quase materiais.

    Para esbarrar nas paredes, no necessrio, dizia Lacan, conhecer a planta da casa. Ou melhor: para encontrar as paredes ali onde esto, melhor no conhecer a planta, ou se porventura a conhecemos, melhor no lev-la em conta. Existem duas maneiras de se reconhecer a imagem de 1um objeto. Podemos partir do interior deste objeto e, por uma lei ou uma composio de leis, gerar-lhe os contornos. Assim faz. o gemetra ao traar um crculo; assim faz o lingista ao construir uma gramtica. Podemos tambm partir dos lados e do exterior, levar em conta a p1resena dos corpos vizinhos; estabelecer como esses corpos, por sua disposio lateral, detenninam a fonna de um espao onde se aloja o objeto. Assim fazem os rios e as cidades, materialmente organizados pdos obstculos que os encerram e os ignoram. Escolhe-mos aqui a se!gunda via: descrever alguns relevos exteriores que o discurso lacallJiano confrontou, contornou e erodiu, no sem deles receber urna forma e no sem lhes conferir uma. Podemos chamar isso de materialismo discursivo.

    Afinal, assim que se leg1timam as tcnicas de leitura to ca-ractersticas

  • 8 A obra clara

    dele disseram, mas de deix.ar claro que existe pensamento em Lacan. Pensamento, isto , algo cuja existncia se impe a quem no o pen-sou.

    Os servidores da exatido e da clareza supem essa existncia como dada. Eles tm razo. Supem tambm que o melhor mtodo para eles o de esclarecer Lacan por Lacan; mais urna vez, eles tm razo. Sejam quais forem as obras, as mais irrepreensveis elucidaes obedecem a esse princpio. Mas quando no se supe a exiscncia dada, preciso proceder de outro modo.

    O nico suporte que assegura a veracidade da existncia de um pensamento so as proposies. Dizer que existe pensamento em Lacan corresponde portanto a dizer que nele existem proposies. Mas nada existe, se no tiver propriedades. E nada tem propriedades, se estas no forem, ao menos parcialmente, independentes do meio. preciso portanto estabelecer que existem e m Lacan proposies suficiente-mente robustas para serem extradas de seu prprio campo, para su-portarem mudanas de posio e modificaes do espao discursivo. Mas tampouco necessrio ser exaustivo; basta que algumas proprie-dades desse tipo sejam reconhecidas para algumas proposies. Assim caracterizado, o programa se define em exterioridade e em ncomple-tude.

    Tenciono reconstituir apenas certas articulaes; alm disso, pre-tendo no reinseri-las num dispositivo global, que pretenderia tomar visvel a construo geral da obra (veremos em que sentido o termo "obra" pode ser aqui entendido). Serei, por exemplo, levado a dar certa importncia questo da cincia. Sabemos que Lacan a abordou com alguma insistncia; entretanto, no verdade que a partir dela possamos deduzir, em detalhe, o conjunto dos conceitos fundamentais da psicanlise. Adernais, Lacan, nessa questo, no cessa de no se autorizar por si mesmo. Como se a questo da cincia fosse decisiva -a ponto de ser preciso a ela voltar de forma repetitiva- e como se, no entanto, ela fosse suficientemente estranha ao essencial para que um garante exterior- Koyr, especialmente- bastasse. Com-parativamente, o paradigma da lingstica estrutural ganhou a impor-tncia que conhecemos, e, no entanto, em nenhum momento conse-guimos nos persuadir de que Lacan tenha praticado os trabalhos pr-prios a essa disciplina: como se sua pura e simples existncia bastasse, e~malte exterior vedando e proteg~ndo os espaos a serem conquis-tados.

    Introduo 9

    Ora, eu sustento que existe um bom uso da exterioridade. O prprio Lacan colocou-a em prtica; legtimo p-la em prtica em relao a ele.

    A doutrina lacanana da cincia derivada de Koyr, mas ela submete Koyr a fins que lhe so alheios. Por conseguinte, ela ma-nifesta propriedades da doutrina de Koyr, por vezes mantidas em estado latente nos textos de referncia. Da mesma fonna, Lacan revela propriedades da doutrina estrutural, na medida exata em que se mantm em relao a da numa paradoxal posio de incluso externa. Se, em contrapartida, :partimos da doutrina da cincia e da estrutura, empe-nhando-nos em desdobrar em si mesmas as teses discriminantes, a exterioridade dlestas pennite violentar o ambiente natural das propo-sies lacania01as; evidenciamos assim propriedades objetivas e quase materiais.

    Para esbarrar nas paredes, no necessrio, dizia Lacan, conhecer a planta da casa. Ou melhor: para encontrar as paredes ali onde esto, melhor no conhecer a planta, ou se porventura a conhecemos, melhor no lev-la em conta. Existem duas maneiras de se reconhecer a imagem de 1um objeto. Podemos partir do interior deste objeto e, por uma lei ou uma composio de leis, gerar-lhe os contornos. Assim faz. o gemetra ao traar um crculo; assim faz o lingista ao construir uma gramtica. Podemos tambm partir dos lados e do exterior, levar em conta a p1resena dos corpos vizinhos; estabelecer como esses corpos, por sua disposio lateral, detenninam a fonna de um espao onde se aloja o objeto. Assim fazem os rios e as cidades, materialmente organizados pdos obstculos que os encerram e os ignoram. Escolhe-mos aqui a se!gunda via: descrever alguns relevos exteriores que o discurso lacallJiano confrontou, contornou e erodiu, no sem deles receber urna forma e no sem lhes conferir uma. Podemos chamar isso de materialismo discursivo.

    Afinal, assim que se leg1timam as tcnicas de leitura to ca-ractersticas

  • 10 A obra claro

    preendercmos portanto com que, sobre pontos claramente primordiais quanto lgica doutrinai interna, poucas coisas sejam ditas. Nem o desejo, nem o objeto a, nem o falo, nem, de maneira geral, nada que legitime a existncia de proposies clfnicas sero abordados. Mas, se alguma coisa faltar, no ser uma fa lha, principalmente se o que faltar for indi spensvel.

    A grandeza de todos os materialismos autnticos reside no fato de no serem eles totalizantes. Que o De natura rerum c O capital estejam inacabados, isso se deve ao acaso e, justamente por essa razo, isso decorreu de uma necessidade s istemtica. Sua incompk tude au-toriza que os tratemos de maneira parcial. s obras no-totalizantes convm leituras no totalizantes. Se permitido comparar grandes coisas, o Lacan que proponho se revelar confinnado caso se revele to incompleto quanto Lucrcio ou Marx.

    Conseqncia ltima: nenhum engajamento pessoal dever ser percebido. Nem temor, nem esperana. Nem admirao, nem desdm, nem indiferena. Nem memria, nem esquecimento. No me pareceu apropriado ter que dizer o que pessoalmente penso de Lacan ou, graas a Lacan, da conjuntura que o inclui e que ele esclarece. Era preciso adotar o ponto de vista do curso d'gua que faz advir paisagem existncia. Isso no significa que necessariamente eu no pense nada sobre nada daquilo que falo - j me expus em outras circunstncias - . mas um pensamento pessoal no teria sido aqui nem um pouco pertinente.

    Isso supondo que um pensamento pessoal tenha qualquer perti-nncia. Estou, com efeito, cada vez mais convencido de que o pen-samento algo srio demais para ser entregue s pessoas, a no ser a tftulo excepcional. Lacan provavelmente uma dessas excees; h outras; por definio, elas valem unicamente por sua raridade. Em todo caso, elas dispensam aqueles que falam sobre isso de reivindicar a minima exceo para si mesmos. Se pensamento deve haver no curso corrente do mundo, tenho por mxima tica aceitvel fazer de maneira com que haja o mais possvel. O 4ue faz tambm com que sua existncia se imponha ao maior nmero possvel de seres pensantes. Esta , para falar a verdade, a nica justificativa que podemos propor para que um texto qualquer exista, em vez de no existir. Com uma condio entretanto: que, salvo exceo, o pensamento seja somente o dos obje tos.

    CAPTULO I

    Consideraes sobre uma obra

    O que de hbito chamamos "a obra de Lacan" apresenta-se sob duas formas . Temos, por um lado, os textos escritos por Lacan para serem publicados; por outro, dispomos dos seminrios, transcritos e editados por outros que no Lacan - alguns deles sob o controle direto de Lacan . Os textos anteriores a outubro de 1966 foram reunidos num volume intitulado os Escritos; os mais importantes textos posteriores - mas no todos - foram publicados na revista Scilicet. Considero que todos os textos escritos para publicao tm um status semelhante, seja qual for sua data ou lugar; tom arei a liberdade decham-los em seu coniunto: os Scripta. Em tomo dos seminrios surgiram diversas controvrsias; por motivos de fundo, que rpido surgiro, irei ater-me edio em vias de publicao pela Seuil; ela tem por ttulo Le Sminaire, cada volume constituindo um livro, identificado por um algarismo romano e um ttulo, desse conjunto unitrio. 1

    impossvel no se interrogar sobre a relao entre essas duas massas de textos. O que orresponde na verdade a se interrogar sobre o que chamamos "a obra de Lacan". No apenas sobre o que a compe materialmente, mas mais radicalmente sobre o que aut9riza que falemos de obr~ a respeito de Lacan. Agi como se essa questo fosse simples. Ora, ela merece um ame atento.

    A noo de obra moderna. Ao menos se a considerarmos num sentido est-ito, como esse princpio de unicidade que permite introduzir no mltiplo da cultura2 um desconto e diferenciaes. Essa unicidade est centrada em torno de um sistema de nomeaes - o nome do autor e o ttulo da obra - , subsumindo produes materiais, em particular do texto, sob o regime do Um. A questo de saber se h um ou vrios textos de resto inteiramente secundria, j que a nomeao que os constitui em Um: em outras pa.lavras, a obra no

    J1

  • 10 A obra claro

    preendercmos portanto com que, sobre pontos claramente primordiais quanto lgica doutrinai interna, poucas coisas sejam ditas. Nem o desejo, nem o objeto a, nem o falo, nem, de maneira geral, nada que legitime a existncia de proposies clfnicas sero abordados. Mas, se alguma coisa faltar, no ser uma fa lha, principalmente se o que faltar for indi spensvel.

    A grandeza de todos os materialismos autnticos reside no fato de no serem eles totalizantes. Que o De natura rerum c O capital estejam inacabados, isso se deve ao acaso e, justamente por essa razo, isso decorreu de uma necessidade s istemtica. Sua incompk tude au-toriza que os tratemos de maneira parcial. s obras no-totalizantes convm leituras no totalizantes. Se permitido comparar grandes coisas, o Lacan que proponho se revelar confinnado caso se revele to incompleto quanto Lucrcio ou Marx.

    Conseqncia ltima: nenhum engajamento pessoal dever ser percebido. Nem temor, nem esperana. Nem admirao, nem desdm, nem indiferena. Nem memria, nem esquecimento. No me pareceu apropriado ter que dizer o que pessoalmente penso de Lacan ou, graas a Lacan, da conjuntura que o inclui e que ele esclarece. Era preciso adotar o ponto de vista do curso d'gua que faz advir paisagem existncia. Isso no significa que necessariamente eu no pense nada sobre nada daquilo que falo - j me expus em outras circunstncias - . mas um pensamento pessoal no teria sido aqui nem um pouco pertinente.

    Isso supondo que um pensamento pessoal tenha qualquer perti-nncia. Estou, com efeito, cada vez mais convencido de que o pen-samento algo srio demais para ser entregue s pessoas, a no ser a tftulo excepcional. Lacan provavelmente uma dessas excees; h outras; por definio, elas valem unicamente por sua raridade. Em todo caso, elas dispensam aqueles que falam sobre isso de reivindicar a minima exceo para si mesmos. Se pensamento deve haver no curso corrente do mundo, tenho por mxima tica aceitvel fazer de maneira com que haja o mais possvel. O 4ue faz tambm com que sua existncia se imponha ao maior nmero possvel de seres pensantes. Esta , para falar a verdade, a nica justificativa que podemos propor para que um texto qualquer exista, em vez de no existir. Com uma condio entretanto: que, salvo exceo, o pensamento seja somente o dos obje tos.

    CAPTULO I

    Consideraes sobre uma obra

    O que de hbito chamamos "a obra de Lacan" apresenta-se sob duas formas . Temos, por um lado, os textos escritos por Lacan para serem publicados; por outro, dispomos dos seminrios, transcritos e editados por outros que no Lacan - alguns deles sob o controle direto de Lacan . Os textos anteriores a outubro de 1966 foram reunidos num volume intitulado os Escritos; os mais importantes textos posteriores - mas no todos - foram publicados na revista Scilicet. Considero que todos os textos escritos para publicao tm um status semelhante, seja qual for sua data ou lugar; tom arei a liberdade decham-los em seu coniunto: os Scripta. Em tomo dos seminrios surgiram diversas controvrsias; por motivos de fundo, que rpido surgiro, irei ater-me edio em vias de publicao pela Seuil; ela tem por ttulo Le Sminaire, cada volume constituindo um livro, identificado por um algarismo romano e um ttulo, desse conjunto unitrio. 1

    impossvel no se interrogar sobre a relao entre essas duas massas de textos. O que orresponde na verdade a se interrogar sobre o que chamamos "a obra de Lacan". No apenas sobre o que a compe materialmente, mas mais radicalmente sobre o que aut9riza que falemos de obr~ a respeito de Lacan. Agi como se essa questo fosse simples. Ora, ela merece um ame atento.

    A noo de obra moderna. Ao menos se a considerarmos num sentido est-ito, como esse princpio de unicidade que permite introduzir no mltiplo da cultura2 um desconto e diferenciaes. Essa unicidade est centrada em torno de um sistema de nomeaes - o nome do autor e o ttulo da obra - , subsumindo produes materiais, em particular do texto, sob o regime do Um. A questo de saber se h um ou vrios textos de resto inteiramente secundria, j que a nomeao que os constitui em Um: em outras pa.lavras, a obra no

    J1

  • 12 A obra clara

    necessariamente um livro, nem mesmo necessariamente um livro. A obra no uma matria, uma forma e uma fonna que organiza a cultura.

    Um marxista conseqente sustentaria que ela , na ordem do pensamento, o equivalente do que a forma mercadoria na ordem das coisas. Do mesmo modo que a riqueza das sociedades nas quais reina o modo de produo capitalista se anuncia como um imenso acmulo de mercadorias (j se ter a reconhecido a primeira frase do primeiro livro do Capital), a cultura, para os modernos, anuncia-se como um imenso acmulo de obras; cada uma delas vale por um , mediante a garantia que confete a essa unicidade a assoiao de um autor (geralmente nomeado, mas o anonimato uma variante admis-svel) e de um ttulo (geralmente dado pelo autor, mas nem sempre); na ordem dos escritos, essa associao estabilizada pela publicao, a qual manifesta a homologia da obra e da mercadoria: do mesmo modo que no existe mercadoria seno proposta para ttoca, s existe obra, num sentido estrito, publicada.

    Nem sempre foi assim. Nos tempos modernos, porm, o dispo-sitivo que acaba de ser descrito prevalece e inclusive se amplia, mutatis mutandis, a todos os domnios da cultura; as diversas artes esto doravante submetidas forma de obra, cada uma determinando o que para ela funciona como equivalente da publicao (representao tea-tral, exposio, programa de televiso, censura etc.). possvel fur-tar-se a esse di spositivo, mas h um preo a ser pago: renunciar a se inscrever na cultura. Podemos ento falar de loucura- assim se deve entender a definio de Foucault: a loucura como ausncia de obra. O que consiste em defini r ao mesmo tempo a loucura como limite . externo da cultura. lsso no significa, evidentemente. que a cultura no tenha fora para reabsorver as produes da loucura; basta-lhe, para isso, reinscrev-las na forma de obra, mas, no mesmo instante, o nome loucura ler deixado de ser pertinente. Os exemplos, sabemos, so numerosos e o rtulo da arte bruta no foi inventado para outros fins.

    Entretanto, no s a loucura que est em causa, com seu cortejo de sofrimentos e dramas. Ao contrrio do que poderamos imaginar, p-ginas e mais pginas dos escritos modernos multiplicam-se serena-mente fora da forma da obra. Globalmente, os escritos derivam da cincia e de seu paredro, a tcnica. nesse sentido, oom efeito, que devemos entender a crena recorrente segundo a qual nem a cincia

    Introduo 13

    nem a tcnica pertencem cultura. Longe de querer denunciar com isso um preconceito de ignorantes ou de humanistas (o que nem sempre foi a mesma coisa), preciso discernir a uma relao estrutural: a excluso mtua de dois sistemas que se definem por essa mesma ex-clusG. Uma conseqncia: o que atua na cincia no se inscreve na forma de obra; esta forma, verdade, ocorre vez por outra, mas no tempo ullerior, quando cessou a eficcia de cincia. Einstein consti-tui-se em obra somente no instante em que a c incia considera que, teod absorvido, ela se sente no direito de esquec-lo. Somente ento. a cultura, como fora-da-cincia, vem substituir a amnsia sis-temtica da cincia em progresso, como fora-da--cultura. 3

    Basta portanto que um moderno se veja convocado a um s tempo pela cincia e pela cultura para que a questo da obra se lhe apresente e exija uma deciso. Entre ambas. a escolha foi por vezes crucial. Este foi o desafio proposto aos alunos de Saussure. Sabemos que eles tomaram o partido da obra., sustentando que a mera compilao dos trabalhos cientficos no bastaria para salvar um nome prprio ao qual se apegavam. Da nasceu este "todo orginico" chamado Cours de linguistique gnrale, sem que se saiba se este tulo fora concebido como singular ou pJurat: O sucesso dos editores deve-se justamente ao fato de que o singular se imps a todos (dizemos o Curso); a partir da, existe de fato uma obra de Saussure, constituda pela associa de um nome de autor e de um texto, entendido como unitrio; a partir da, Saussure ingressa nas fileiras da cuJtura. 4

    Freud, por sua vez. teve que fazer a escolha por si mesmo. Po-demos inclusive lhe atribuir uma estratgia; tudo se passa como se tivesse preferido o desvio pela forma de obra para estabelecer o que a publicao propriamente cientfica no lhe permitia. A esse respeito, o sonho da monografia botnica (L' interprtation des rves, Paris, PUF, 1967, cap. v, p.l53s.) merece serlembrado. "Escrevi a monografia de uma certa planta. O livro est diante de mim, viro precisamente uma pgina etc." As associaes giram em torno de um fracasso: "fiz de fato , outrora, algo como a monografia de uma planta; era um trabalho sobre a coca, que chamou a ateno de K. Koller para as propriedades anestsicas da cocana. Eu mesmo havia indicado esse uso, mas no havia aprofundado a ques to ... " (ibid.). Advm da a

    A palavra cours, no precedida de artigo definido, tanto pode ser singular como plural. (N.T .)

  • 12 A obra clara

    necessariamente um livro, nem mesmo necessariamente um livro. A obra no uma matria, uma forma e uma fonna que organiza a cultura.

    Um marxista conseqente sustentaria que ela , na ordem do pensamento, o equivalente do que a forma mercadoria na ordem das coisas. Do mesmo modo que a riqueza das sociedades nas quais reina o modo de produo capitalista se anuncia como um imenso acmulo de mercadorias (j se ter a reconhecido a primeira frase do primeiro livro do Capital), a cultura, para os modernos, anuncia-se como um imenso acmulo de obras; cada uma delas vale por um , mediante a garantia que confete a essa unicidade a assoiao de um autor (geralmente nomeado, mas o anonimato uma variante admis-svel) e de um ttulo (geralmente dado pelo autor, mas nem sempre); na ordem dos escritos, essa associao estabilizada pela publicao, a qual manifesta a homologia da obra e da mercadoria: do mesmo modo que no existe mercadoria seno proposta para ttoca, s existe obra, num sentido estrito, publicada.

    Nem sempre foi assim. Nos tempos modernos, porm, o dispo-sitivo que acaba de ser descrito prevalece e inclusive se amplia, mutatis mutandis, a todos os domnios da cultura; as diversas artes esto doravante submetidas forma de obra, cada uma determinando o que para ela funciona como equivalente da publicao (representao tea-tral, exposio, programa de televiso, censura etc.). possvel fur-tar-se a esse di spositivo, mas h um preo a ser pago: renunciar a se inscrever na cultura. Podemos ento falar de loucura- assim se deve entender a definio de Foucault: a loucura como ausncia de obra. O que consiste em defini r ao mesmo tempo a loucura como limite . externo da cultura. lsso no significa, evidentemente. que a cultura no tenha fora para reabsorver as produes da loucura; basta-lhe, para isso, reinscrev-las na forma de obra, mas, no mesmo instante, o nome loucura ler deixado de ser pertinente. Os exemplos, sabemos, so numerosos e o rtulo da arte bruta no foi inventado para outros fins.

    Entretanto, no s a loucura que est em causa, com seu cortejo de sofrimentos e dramas. Ao contrrio do que poderamos imaginar, p-ginas e mais pginas dos escritos modernos multiplicam-se serena-mente fora da forma da obra. Globalmente, os escritos derivam da cincia e de seu paredro, a tcnica. nesse sentido, oom efeito, que devemos entender a crena recorrente segundo a qual nem a cincia

    Introduo 13

    nem a tcnica pertencem cultura. Longe de querer denunciar com isso um preconceito de ignorantes ou de humanistas (o que nem sempre foi a mesma coisa), preciso discernir a uma relao estrutural: a excluso mtua de dois sistemas que se definem por essa mesma ex-clusG. Uma conseqncia: o que atua na cincia no se inscreve na forma de obra; esta forma, verdade, ocorre vez por outra, mas no tempo ullerior, quando cessou a eficcia de cincia. Einstein consti-tui-se em obra somente no instante em que a c incia considera que, teod absorvido, ela se sente no direito de esquec-lo. Somente ento. a cultura, como fora-da-cincia, vem substituir a amnsia sis-temtica da cincia em progresso, como fora-da--cultura. 3

    Basta portanto que um moderno se veja convocado a um s tempo pela cincia e pela cultura para que a questo da obra se lhe apresente e exija uma deciso. Entre ambas. a escolha foi por vezes crucial. Este foi o desafio proposto aos alunos de Saussure. Sabemos que eles tomaram o partido da obra., sustentando que a mera compilao dos trabalhos cientficos no bastaria para salvar um nome prprio ao qual se apegavam. Da nasceu este "todo orginico" chamado Cours de linguistique gnrale, sem que se saiba se este tulo fora concebido como singular ou pJurat: O sucesso dos editores deve-se justamente ao fato de que o singular se imps a todos (dizemos o Curso); a partir da, existe de fato uma obra de Saussure, constituda pela associa de um nome de autor e de um texto, entendido como unitrio; a partir da, Saussure ingressa nas fileiras da cuJtura. 4

    Freud, por sua vez. teve que fazer a escolha por si mesmo. Po-demos inclusive lhe atribuir uma estratgia; tudo se passa como se tivesse preferido o desvio pela forma de obra para estabelecer o que a publicao propriamente cientfica no lhe permitia. A esse respeito, o sonho da monografia botnica (L' interprtation des rves, Paris, PUF, 1967, cap. v, p.l53s.) merece serlembrado. "Escrevi a monografia de uma certa planta. O livro est diante de mim, viro precisamente uma pgina etc." As associaes giram em torno de um fracasso: "fiz de fato , outrora, algo como a monografia de uma planta; era um trabalho sobre a coca, que chamou a ateno de K. Koller para as propriedades anestsicas da cocana. Eu mesmo havia indicado esse uso, mas no havia aprofundado a ques to ... " (ibid.). Advm da a

    A palavra cours, no precedida de artigo definido, tanto pode ser singular como plural. (N.T .)

  • 14 A obra clara

    glria e o sucesso de Koller, como demonstra o volume comemorativo que Freud acabava de receber naquela mesma manh. Freud pensa ento com melancolia em seu prprio livro (a prpria Traumdeutung) que ele tarda em concluir: se pudesse [ ... ) v-lo acabado diante de mim" (p. \55). Evoca enfim sua paixo j uvenil penos livros: eu queria colecion-los, ter muitos ... " (p. l55).

    Interpretao: a monografia e o livro esto em conjuno-disjun-o; o sonho soletra a renncia monografia, isto , cincia normal, na qual existem jubileus e laboratrios, e a preferncia dada ao livro, ou seja, forma de obra e cultura; a Traumdewtung, como livro, ir testemunh-lo. De fato, monografia e livro derivam do mesmo para-digma- por isso que a primeira pode "representar" o segundo -, mas, ao derivar do mesmo paradigma, opem-se: mutuamente, como fariam dois fonemas. Esta oposio repete a da cincia cultura, a respeito da obra. Freud decerto partira conquista da cincia biomdica (jlectere Superos); com este objetivo, empunhou a arma da monografia; mas rejeitaram-no, ou, pelo menos, negligenciaram-no. Ele teve que substituir sua .estratgia inicial pela do livro, mas o livro aqui apenas o testemunho emprico da forma de obra, inscrita no campo fnebre da cultura (Acheronta movebo).

    Conhecemos a seqncia: a cultura foi suficientemente forte para se impor cincia e tcnica mdicas. A forma de obra vencera a monografia.

    No sem pagar um alto preo: foi bando selvagem" ao qual Freud teve que se acomodar, ele que sonhava com o laboratrio, com a honesta colaborao cientfica, com alunos fiis e jubileus. Sabemos tambm que Freud se esforou de todas as maneiras em conformar a psicanlise cincia normal; a conquista do universo moderno exigia esse tributo. Para ~ssa estratgia, a lnternaciooallfoi o meio escolhido.

    Que ela fosse uma figura adequada da cinc;ia nonnal, podemos decerto duvidar; sob muitos aspectos, a cincia normal distingue-se justamente por ser robusta o bastante para no precisar criar tais instituies; a nitidez dos paradigmas, em conjuntO com a rede herdada das universidades medievais e, por que no dizer, da Igreja, eis o que basta para tudo determinar. Mais que na cincia1, a bem da verdade, nos jogos do estdio - os cinco anis olmpicos - e em suas imperiosas federaes que faz pensar a IPA dos sete anis.5 Entretanto, podemos garantir o seguinte: por mais exorbitanlle que fosse aos olhos dos bons costumes da cincia normal, a Internacional - segundo Freud, pelo menos - devia tomar o lugar de tais costumes. Seu

    Introduo 15

    protocolo pode ser assim resumido: tanto na psicanlise quanto na cincia, no haver obra, exceo de Freud; haver apenas mono-grafias.

    Lacan, tambm, teve que escolher. Ao final da Segunda Guerra, a Internacional triunfara; a psicanlise se inscrevera no universo or-ganizacional da cincia normal e, como toda cincia digna desse nome no universo moderno, ela segregara sua prpria tcnica. Seria preciso, a partir disso, resignar-se unicamente monografia? Sabemos que, mais experiente e mais genuinamente modesto que muitos outros, Lacan hesitou. Em favor do silncio, por vezes: " entreguei-me, aps Fontenelle". escreveu ele em 1946, " a essa fantasia de ter a mo cheia de verdades para mais bem fech-la sobre elas" (Propos sur la causalil psychique, . , p.l51). Em favor tambm da revista erudita; esta foi durante muito tempo seu modelo - La Psychanalyse asse-melha-se, com as devidas ressalvas, ao majestoso e breve empreen-dimento das Recherches Philosophiques, a que Lacan esteve associado durante a dcada de 30. Ora, esse modelo epe-se diametralmente ao da obra: qualquer revista digna desse nome deriva da forma mono-grafia.

    Ora, os Escritos so publicados no horizonte da obra. Lacan havia portanto escolhido. Ao mesmo tempo, afirmava que ao menos haveria uma obra a mais na psicanlise. O gesto era tanto mais sur-preendente na medida em que ia contra um movimento prprio de Lacan.

    Lacan desenvolveu o tema da poubellication , o qual encerra uma doutrina da obra: sustentar que a publicao deriva da lixeira sustentar que o publicado deriva do dejeto; como s existe obra pu-blicada, pode-se concluir que toda obra, como tal, deriva do dejeto. Reconhecemos a uma teoria da civilizao; ela oriunda de Bataille: pertencer civilizao, por oposio ao brbaro que a recusa ou ao louco que dela se isenta, saber tratar o lixo e o excremento. A cultura, como elemento da civilizao, a obra como elemento da cul-tura, a publicao como dimenso da obra, o papel como suporte eleito pelo publicado e pelas fezes deixam-se decifrar sob essa luz. Que o dejeto seja a mesma coisa que o claro prprio para capturar o desejo certamente decisivo (teoremas do objeto pequeno a), mas aqui no importa.

    Amlgama de poubelle ("lixeira") e publicatirm ("publicao"). (N.R.T.)

  • 14 A obra clara

    glria e o sucesso de Koller, como demonstra o volume comemorativo que Freud acabava de receber naquela mesma manh. Freud pensa ento com melancolia em seu prprio livro (a prpria Traumdeutung) que ele tarda em concluir: se pudesse [ ... ) v-lo acabado diante de mim" (p. \55). Evoca enfim sua paixo j uvenil penos livros: eu queria colecion-los, ter muitos ... " (p. l55).

    Interpretao: a monografia e o livro esto em conjuno-disjun-o; o sonho soletra a renncia monografia, isto , cincia normal, na qual existem jubileus e laboratrios, e a preferncia dada ao livro, ou seja, forma de obra e cultura; a Traumdewtung, como livro, ir testemunh-lo. De fato, monografia e livro derivam do mesmo para-digma- por isso que a primeira pode "representar" o segundo -, mas, ao derivar do mesmo paradigma, opem-se: mutuamente, como fariam dois fonemas. Esta oposio repete a da cincia cultura, a respeito da obra. Freud decerto partira conquista da cincia biomdica (jlectere Superos); com este objetivo, empunhou a arma da monografia; mas rejeitaram-no, ou, pelo menos, negligenciaram-no. Ele teve que substituir sua .estratgia inicial pela do livro, mas o livro aqui apenas o testemunho emprico da forma de obra, inscrita no campo fnebre da cultura (Acheronta movebo).

    Conhecemos a seqncia: a cultura foi suficientemente forte para se impor cincia e tcnica mdicas. A forma de obra vencera a monografia.

    No sem pagar um alto preo: foi bando selvagem" ao qual Freud teve que se acomodar, ele que sonhava com o laboratrio, com a honesta colaborao cientfica, com alunos fiis e jubileus. Sabemos tambm que Freud se esforou de todas as maneiras em conformar a psicanlise cincia normal; a conquista do universo moderno exigia esse tributo. Para ~ssa estratgia, a lnternaciooallfoi o meio escolhido.

    Que ela fosse uma figura adequada da cinc;ia nonnal, podemos decerto duvidar; sob muitos aspectos, a cincia normal distingue-se justamente por ser robusta o bastante para no precisar criar tais instituies; a nitidez dos paradigmas, em conjuntO com a rede herdada das universidades medievais e, por que no dizer, da Igreja, eis o que basta para tudo determinar. Mais que na cincia1, a bem da verdade, nos jogos do estdio - os cinco anis olmpicos - e em suas imperiosas federaes que faz pensar a IPA dos sete anis.5 Entretanto, podemos garantir o seguinte: por mais exorbitanlle que fosse aos olhos dos bons costumes da cincia normal, a Internacional - segundo Freud, pelo menos - devia tomar o lugar de tais costumes. Seu

    Introduo 15

    protocolo pode ser assim resumido: tanto na psicanlise quanto na cincia, no haver obra, exceo de Freud; haver apenas mono-grafias.

    Lacan, tambm, teve que escolher. Ao final da Segunda Guerra, a Internacional triunfara; a psicanlise se inscrevera no universo or-ganizacional da cincia normal e, como toda cincia digna desse nome no universo moderno, ela segregara sua prpria tcnica. Seria preciso, a partir disso, resignar-se unicamente monografia? Sabemos que, mais experiente e mais genuinamente modesto que muitos outros, Lacan hesitou. Em favor do silncio, por vezes: " entreguei-me, aps Fontenelle". escreveu ele em 1946, " a essa fantasia de ter a mo cheia de verdades para mais bem fech-la sobre elas" (Propos sur la causalil psychique, . , p.l51). Em favor tambm da revista erudita; esta foi durante muito tempo seu modelo - La Psychanalyse asse-melha-se, com as devidas ressalvas, ao majestoso e breve empreen-dimento das Recherches Philosophiques, a que Lacan esteve associado durante a dcada de 30. Ora, esse modelo epe-se diametralmente ao da obra: qualquer revista digna desse nome deriva da forma mono-grafia.

    Ora, os Escritos so publicados no horizonte da obra. Lacan havia portanto escolhido. Ao mesmo tempo, afirmava que ao menos haveria uma obra a mais na psicanlise. O gesto era tanto mais sur-preendente na medida em que ia contra um movimento prprio de Lacan.

    Lacan desenvolveu o tema da poubellication , o qual encerra uma doutrina da obra: sustentar que a publicao deriva da lixeira sustentar que o publicado deriva do dejeto; como s existe obra pu-blicada, pode-se concluir que toda obra, como tal, deriva do dejeto. Reconhecemos a uma teoria da civilizao; ela oriunda de Bataille: pertencer civilizao, por oposio ao brbaro que a recusa ou ao louco que dela se isenta, saber tratar o lixo e o excremento. A cultura, como elemento da civilizao, a obra como elemento da cul-tura, a publicao como dimenso da obra, o papel como suporte eleito pelo publicado e pelas fezes deixam-se decifrar sob essa luz. Que o dejeto seja a mesma coisa que o claro prprio para capturar o desejo certamente decisivo (teoremas do objeto pequeno a), mas aqui no importa.

    Amlgama de poubelle ("lixeira") e publicatirm ("publicao"). (N.R.T.)

  • 16 A lfbra clara

    Ora, assim sendo, Lacan consentiu em publicar; vale dizer que consentiu na obra; vale dizer que consentiu na lixeira. Era preciso que seus motivos fossem graves.

    S as. excluses de 1963 foram motivo suficientemente grave. Uma vez mais, a cincia normal havia fechado suas portas, ainda que sob os traos de imitadores inconfessos; uma vez mas, era preciso recorrer cultura para romper os lacres; uma vez mais, Orfeu teve de cantar para atravessar o Aqueronte. A resposta vem com os Escritos de 1966, isto , o livro, no que ele tem de mais clssico.

    Como Freud antes dele, Lacan precisava da cultura para se fazer ouvir. Mais nitidamente que Freud, sabia que isso correspondia a escolher a via do fnebre e do dejeto. No apenas a pedra tumular que cada livro apresenta. com sua capa trazendo, como um epitfio, o nome de um indivduo, seus ttulos (o do texto assume o lugar de todos os outros), uma data, um lugar; no apenas o cadver de papel (caro data vennib;,s), mas o que no tem nome em Hngua nenhuma: o livro enquanto critrio de esquecimento (poublier, diz tambm La-can). Mais abertamente ainda que no caso de Freud, a escolha fora imposta pela deciso explcita de uma Autoridade. 6

    Contra a lntemacionaJ, Lacan teve sucesso. Podemos afirmar que existe, na psicanlise, pelo menos uma obra exterior de Freud: a de Lacan. Eis o que marca a verdadeira vitria de Lacan e a verdadeira derrota da Internacional. Nada tenho a pronunciar sobre a questo emprica de saber se haver outras obras. Nada tenho a pronunciar sobre a questo terica de saber se urna obra pode deixar de s-lo. Resta somente estabelecer o que, em Lacan, constitui obra.

    Ser o conjunto das publicaes, Scripta e Seminrio, tomado em sua dupla integralidade? Ser o conjunto nico dos Scripta, at mesmo o volume nico dos Escritos? Ser, ao contrrio, apenas a srie dos seminrios? Por baixo de certas controvrsias subalternas que se ma-nifestaram. podemos assim reconstituir uma questo real.

    Durante muito tempo acreditei que O Seminrio de Lacan fosse uma obra, que fosse, a bem da verdade, a nica verdadeira obra de Lacan. Eu aprovava portanto o ttulo geral que seu editor havia lhe dado- substantivo singular e artigo definido; aprovava que as divises fossem apresentadas como "livros" numerados e intitulados; que as

    Amlgama de poubelle ("lixeira") e oublier ("esquecer"). (N.R.T.)

    Introduo 17

    subdivises desses livros no fossem apresentadas como "sesses" ou "aulas", mas como captulos, eles prprios numerados e dotados de um ttulo; que esses captulos fossem, por sua vez, subdivididos em partes, elas tambm numeradas; aprovava o projeto de publicarem o texto dessa obra segundo as regras mais testadas da filologia eras-mtana (exaustividade, preciso, exatido), pois a filologia indisso-civel da emergncia da obra: ela confere o status de obra ao que ela trata, pelo menos no tempo em que o trata (assim, Erasmo deve inserir os Evangelhos na forma de obra, a partir do momento em que os submete s regras da filologia; eis o que faz dele um radical mpio aos olhos de Lutero); em contrapartida, a forma de obra requer a filologia para assegurar seu domnio sobre qualquer texto (a obra de um contemporneo - Breton, Proust, Attali - estar consumada como obra no dia em que tivermos suscitado e resolvido a seu respeito os problemas filolgicos clssicos - dataes, estabelecimento do texto, classificao das variantes, levantamento das imitaes e em-prstimos etc. Esta a funo usual da Bibliothque de La Pliade).

    Restava o sentimento de uma inadequao. Que obra, no sentido estrito e moderno, permanece assim diretamente ligada a um ensino falado e a um calendrio anual explicitamente fixado? Qual a relao entre O Seminrio e os Scripta? Se estes ltimos, apesar de sua mul-tiplicidade sem ordem visvel, derivavam da obra, podia ser pela mesma razo? Se dela em nada derivavam, em que consistiam?

    Os precedentes mais convincentes provinham da Antigidade. Analisados em conjunto, Pl ato e Aristteles tambm haviam produ-zido ditos e escritos que derivavam de dois princpios diferentes. Do-cumentos arcaicos, decerto, mas a filologia, tal como se constituiu no Renascimento, e a cultura, tal como se constituiu no sculo XIX, re-pousam ambas em um anacronismo de princpio: certo ou errado, preciso agir como se a Antigidade fosse tambm passvel da forma de obra. A aproximao estava portanto autorizada.

    Mas pensar em Plato e Aristteles era de imediato pensar na combinao de duas distines: a distino entre ensino escrito e ensino oral, por um lado; a distino entre escritos exotricos e escritos esotricos, de outro. Admitindo-se para tal que a relao entre as duas distines se estabelece da seguinte maneira: o exotrico escrito, o esotrico oral (eventualmente transcrito).

    Sabemos que a questo do esotrico interessava a Lacan, que evoca freqentemente a famosa lio sobre o Bem, ncleo do que uma certa tradio afirma constituir o ensino secreto e no escrito de

  • 16 A lfbra clara

    Ora, assim sendo, Lacan consentiu em publicar; vale dizer que consentiu na obra; vale dizer que consentiu na lixeira. Era preciso que seus motivos fossem graves.

    S as. excluses de 1963 foram motivo suficientemente grave. Uma vez mais, a cincia normal havia fechado suas portas, ainda que sob os traos de imitadores inconfessos; uma vez mas, era preciso recorrer cultura para romper os lacres; uma vez mais, Orfeu teve de cantar para atravessar o Aqueronte. A resposta vem com os Escritos de 1966, isto , o livro, no que ele tem de mais clssico.

    Como Freud antes dele, Lacan precisava da cultura para se fazer ouvir. Mais nitidamente que Freud, sabia que isso correspondia a escolher a via do fnebre e do dejeto. No apenas a pedra tumular que cada livro apresenta. com sua capa trazendo, como um epitfio, o nome de um indivduo, seus ttulos (o do texto assume o lugar de todos os outros), uma data, um lugar; no apenas o cadver de papel (caro data vennib;,s), mas o que no tem nome em Hngua nenhuma: o livro enquanto critrio de esquecimento (poublier, diz tambm La-can). Mais abertamente ainda que no caso de Freud, a escolha fora imposta pela deciso explcita de uma Autoridade. 6

    Contra a lntemacionaJ, Lacan teve sucesso. Podemos afirmar que existe, na psicanlise, pelo menos uma obra exterior de Freud: a de Lacan. Eis o que marca a verdadeira vitria de Lacan e a verdadeira derrota da Internacional. Nada tenho a pronunciar sobre a questo emprica de saber se haver outras obras. Nada tenho a pronunciar sobre a questo terica de saber se urna obra pode deixar de s-lo. Resta somente estabelecer o que, em Lacan, constitui obra.

    Ser o conjunto das publicaes, Scripta e Seminrio, tomado em sua dupla integralidade? Ser o conjunto nico dos Scripta, at mesmo o volume nico dos Escritos? Ser, ao contrrio, apenas a srie dos seminrios? Por baixo de certas controvrsias subalternas que se ma-nifestaram. podemos assim reconstituir uma questo real.

    Durante muito tempo acreditei que O Seminrio de Lacan fosse uma obra, que fosse, a bem da verdade, a nica verdadeira obra de Lacan. Eu aprovava portanto o ttulo geral que seu editor havia lhe dado- substantivo singular e artigo definido; aprovava que as divises fossem apresentadas como "livros" numerados e intitulados; que as

    Amlgama de poubelle ("lixeira") e oublier ("esquecer"). (N.R.T.)

    Introduo 17

    subdivises desses livros no fossem apresentadas como "sesses" ou "aulas", mas como captulos, eles prprios numerados e dotados de um ttulo; que esses captulos fossem, por sua vez, subdivididos em partes, elas tambm numeradas; aprovava o projeto de publicarem o texto dessa obra segundo as regras mais testadas da filologia eras-mtana (exaustividade, preciso, exatido), pois a filologia indisso-civel da emergncia da obra: ela confere o status de obra ao que ela trata, pelo menos no tempo em que o trata (assim, Erasmo deve inserir os Evangelhos na forma de obra, a partir do momento em que os submete s regras da filologia; eis o que faz dele um radical mpio aos olhos de Lutero); em contrapartida, a forma de obra requer a filologia para assegurar seu domnio sobre qualquer texto (a obra de um contemporneo - Breton, Proust, Attali - estar consumada como obra no dia em que tivermos suscitado e resolvido a seu respeito os problemas filolgicos clssicos - dataes, estabelecimento do texto, classificao das variantes, levantamento das imitaes e em-prstimos etc. Esta a funo usual da Bibliothque de La Pliade).

    Restava o sentimento de uma inadequao. Que obra, no sentido estrito e moderno, permanece assim diretamente ligada a um ensino falado e a um calendrio anual explicitamente fixado? Qual a relao entre O Seminrio e os Scripta? Se estes ltimos, apesar de sua mul-tiplicidade sem ordem visvel, derivavam da obra, podia ser pela mesma razo? Se dela em nada derivavam, em que consistiam?

    Os precedentes mais convincentes provinham da Antigidade. Analisados em conjunto, Pl ato e Aristteles tambm haviam produ-zido ditos e escritos que derivavam de dois princpios diferentes. Do-cumentos arcaicos, decerto, mas a filologia, tal como se constituiu no Renascimento, e a cultura, tal como se constituiu no sculo XIX, re-pousam ambas em um anacronismo de princpio: certo ou errado, preciso agir como se a Antigidade fosse tambm passvel da forma de obra. A aproximao estava portanto autorizada.

    Mas pensar em Plato e Aristteles era de imediato pensar na combinao de duas distines: a distino entre ensino escrito e ensino oral, por um lado; a distino entre escritos exotricos e escritos esotricos, de outro. Admitindo-se para tal que a relao entre as duas distines se estabelece da seguinte maneira: o exotrico escrito, o esotrico oral (eventualmente transcrito).

    Sabemos que a questo do esotrico interessava a Lacan, que evoca freqentemente a famosa lio sobre o Bem, ncleo do que uma certa tradio afirma constituir o ensino secreto e no escrito de

  • 18 A obra clara

    Plato. Da mesma forma, ele demonstrava o mais vivo interesse pela questo do Aristteles perdido,? cuja tese pode ser assim resumida: a maior parte do que Aristteles escreveu est perdida; esses textos adotavam, no mais das vezes, a forma do dilogo e eram considerados um milagre da lngua grega; eles desenvolviam um ensino exotrico; o que lemos sob o nome de Aristteles no foi escrito por ele e constitui a transcrio, por alunos, unicamente do ensino oral e eso-trico. Da uma oposio simples entre Plato e Aristteles: do pri-meiro, conhecemos toda a obra exotrica escrita e nada da obra eso-trica (supondo que tenha existido); do segundo, s conhecemos a obra esotrica, salvo alguns fragmentos exotricos retransrnitidos pela tradio manuscrita.

    A oposio, conhecida de todos, sob certos aspectos anuncia o que distingue Freud e Lacan: uma vez que, do primeiro, temos apenas escritos, dele nos restaria apenas o exotrico (as Transactons da So-ciedade de Viena, publicadas tardiamente, no revelam primeira vista nada de muito novo); uma vez que, do segundo, dispomos no s de escritos, mas tambm de um ensino oral, dele teramos dois ensinos: o exotrico dos Escritos, o esotrico do Seminrio, cujo peso material no cessa de crescer ao longo dos. anos.

    A distino entre exotrico e esotrico, a bem da verdade, cristalina. De um ponto de vista descritivo, concorda-se em geral quanto ao seguinte: o ensino exotrico de Aristteles dirige-se queles que esto fora da filosofia (exo) e que (ainda?) no escolheram o modo de vida terico; o ensino esotrico dirige-se queles que esto dentro da filo-sofia (eso); eles escolheram este modo de vida prprio e j realizaram o percurso supostamente necessrio. Quanto ao conceito, no poderia portanto haver nada de mais completo, ou de mais preciso, ou de mais claro, nos escritos exotricos do que nas transcries esotricas; ao contrrio, pode haver o mais completo, o ~ais preciso, o mais claro, nas transcries esotricas. Se h algo a mais nos escritos exotricos em relao s transcries esotricas, isso no poderia derivar do conceito, mas de outra coisa, cujo nome conhecemos: a protrptica. Isto , esse procedimento discursivo que tem por funo rrncar o sujeito da doxa a fim de volt-lo para a theoria. Aquilo mesmo que Aristteles, no dizer dos Antigos, realizara e levara ao mais alto ponto de perfeio (cf. W. Jaeger, Aristotle, Oxford, Clarendon Press, 1967, cap. IV). Aquilo tambm que, no dizer de certos modernos, constitui o nico mbil dos dilogos de Plato.

    lmroduo 19

    Admitindo-se tudo isso, eu sustentava que O Seminrio de Lacan estava para os Scripta, assim como o texto conservado de Aristteles em relao ao Aristteles perdido (ou o eventual ensino perdido de Plato, em relao ao Plato preservado): ele era esotrico ao passo que os Scripta eram exotricos. A partir da, conclua que O Seminrio era indispensvel interpretao dos Scripta e, por conseguinte, plena realizao da obra. Como a publicao do Seminrio estava inacabada, isso queria dizer que a obra tambm estava; sua interpre-tao desse modo nada podia pretender de definitivo; nada dos Scripta podia esclarecer O Seminrio; s O Seminrio podia, de direito, es~ clarecer O Seminrio e s podamos utilizar os Scripta para conjecturar a parte ainda no pub1icada do Seminrio.

    Nessa questo, eu concordava com o conjunto dos intrpretes. Alguns am mais longe; no temiam dizer que, corno escritos, os Scripta derivavam de uma instncia inferior, em relao ao ensino forjado- a famosa Palavra, que desde Scrates ou Jesus Cristo forja os discpulos encerrando um incomparvel tesouro. Da comentrios indefinidos sobre as marcas do falar, supostamente constitutivas do Seminrio. De onde se passa com desenvoltura Presena c figura de um Mestre, de quem se deve fazer a Apologia, comemorar o Pro-cesso, se no a Paixo, e relatar os gestos ou ditos memorveis.

    Hoje, aps ter lido atentamente e vrias vezes o que foi publicado do Seminrio, atirmo que estava enganado. Os seminrios de Lacan so exotricos e no esotricos; os Scripta q ue so esotricos - no sentido em que o corpus aristotlico o . Os primeiros so tecidos de protrptica - aluses, floreios literrios ou eruditos, diatribes, des-construo da doxa; os segundos tendem a disso se livrar. Os primeiros buscam capturar o ouvinte (projetado, pela transcrio, em situao material de leitor, mas pouco importa) no ponto de imaginrio onde a conjuntura do momento o colocou; tendo-o capturado, buscam de~ saloj-lo desse lugar natural atravs de um movimento violento, que em Lacan, ao contrrio de Plato, toma de preferncia a forma da diatribe, at mesmo da invectiva: dilogos monolgicos e impoldos.s Os segundos podem, por certo, comportar a protrptica, mas o que eles tm de decisivo indiferente a isto: o leitor (que tem bem mais a fazer do que se projetar em ouvinte fictcio) deve decifrar, even-tualmente nas entrelinhas, urna tese de saber.

    verdade que os seminrios dirigem-se aos analistas e aos ana-lisandos. Poderamos portanto supor-lhes essa forma de clausura in-terna que caracterizava o esotrico das escolas gregas. A questo,

  • 18 A obra clara

    Plato. Da mesma forma, ele demonstrava o mais vivo interesse pela questo do Aristteles perdido,? cuja tese pode ser assim resumida: a maior parte do que Aristteles escreveu est perdida; esses textos adotavam, no mais das vezes, a forma do dilogo e eram considerados um milagre da lngua grega; eles desenvolviam um ensino exotrico; o que lemos sob o nome de Aristteles no foi escrito por ele e constitui a transcrio, por alunos, unicamente do ensino oral e eso-trico. Da uma oposio simples entre Plato e Aristteles: do pri-meiro, conhecemos toda a obra exotrica escrita e nada da obra eso-trica (supondo que tenha existido); do segundo, s conhecemos a obra esotrica, salvo alguns fragmentos exotricos retransrnitidos pela tradio manuscrita.

    A oposio, conhecida de todos, sob certos aspectos anuncia o que distingue Freud e Lacan: uma vez que, do primeiro, temos apenas escritos, dele nos restaria apenas o exotrico (as Transactons da So-ciedade de Viena, publicadas tardiamente, no revelam primeira vista nada de muito novo); uma vez que, do segundo, dispomos no s de escritos, mas tambm de um ensino oral, dele teramos dois ensinos: o exotrico dos Escritos, o esotrico do Seminrio, cujo peso material no cessa de crescer ao longo dos. anos.

    A distino entre exotrico e esotrico, a bem da verdade, cristalina. De um ponto de vista descritivo, concorda-se em geral quanto ao seguinte: o ensino exotrico de Aristteles dirige-se queles que esto fora da filosofia (exo) e que (ainda?) no escolheram o modo de vida terico; o ensino esotrico dirige-se queles que esto dentro da filo-sofia (eso); eles escolheram este modo de vida prprio e j realizaram o percurso supostamente necessrio. Quanto ao conceito, no poderia portanto haver nada de mais completo, ou de mais preciso, ou de mais claro, nos escritos exotricos do que nas transcries esotricas; ao contrrio, pode haver o mais completo, o ~ais preciso, o mais claro, nas transcries esotricas. Se h algo a mais nos escritos exotricos em relao s transcries esotricas, isso no poderia derivar do conceito, mas de outra coisa, cujo nome conhecemos: a protrptica. Isto , esse procedimento discursivo que tem por funo rrncar o sujeito da doxa a fim de volt-lo para a theoria. Aquilo mesmo que Aristteles, no dizer dos Antigos, realizara e levara ao mais alto ponto de perfeio (cf. W. Jaeger, Aristotle, Oxford, Clarendon Press, 1967, cap. IV). Aquilo tambm que, no dizer de certos modernos, constitui o nico mbil dos dilogos de Plato.

    lmroduo 19

    Admitindo-se tudo isso, eu sustentava que O Seminrio de Lacan estava para os Scripta, assim como o texto conservado de Aristteles em relao ao Aristteles perdido (ou o eventual ensino perdido de Plato, em relao ao Plato preservado): ele era esotrico ao passo que os Scripta eram exotricos. A partir da, conclua que O Seminrio era indispensvel interpretao dos Scripta e, por conseguinte, plena realizao da obra. Como a publicao do Seminrio estava inacabada, isso queria dizer que a obra tambm estava; sua interpre-tao desse modo nada podia pretender de definitivo; nada dos Scripta podia esclarecer O Seminrio; s O Seminrio podia, de direito, es~ clarecer O Seminrio e s podamos utilizar os Scripta para conjecturar a parte ainda no pub1icada do Seminrio.

    Nessa questo, eu concordava com o conjunto dos intrpretes. Alguns am mais longe; no temiam dizer que, corno escritos, os Scripta derivavam de uma instncia inferior, em relao ao ensino forjado- a famosa Palavra, que desde Scrates ou Jesus Cristo forja os discpulos encerrando um incomparvel tesouro. Da comentrios indefinidos sobre as marcas do falar, supostamente constitutivas do Seminrio. De onde se passa com desenvoltura Presena c figura de um Mestre, de quem se deve fazer a Apologia, comemorar o Pro-cesso, se no a Paixo, e relatar os gestos ou ditos memorveis.

    Hoje, aps ter lido atentamente e vrias vezes o que foi publicado do Seminrio, atirmo que estava enganado. Os seminrios de Lacan so exotricos e no esotricos; os Scripta q ue so esotricos - no sentido em que o corpus aristotlico o . Os primeiros so tecidos de protrptica - aluses, floreios literrios ou eruditos, diatribes, des-construo da doxa; os segundos tendem a disso se livrar. Os primeiros buscam capturar o ouvinte (projetado, pela transcrio, em situao material de leitor, mas pouco importa) no ponto de imaginrio onde a conjuntura do momento o colocou; tendo-o capturado, buscam de~ saloj-lo desse lugar natural atravs de um movimento violento, que em Lacan, ao contrrio de Plato, toma de preferncia a forma da diatribe, at mesmo da invectiva: dilogos monolgicos e impoldos.s Os segundos podem, por certo, comportar a protrptica, mas o que eles tm de decisivo indiferente a isto: o leitor (que tem bem mais a fazer do que se projetar em ouvinte fictcio) deve decifrar, even-tualmente nas entrelinhas, urna tese de saber.

    verdade que os seminrios dirigem-se aos analistas e aos ana-lisandos. Poderamos portanto supor-lhes essa forma de clausura in-terna que caracterizava o esotrico das escolas gregas. A questo,

  • lO A obra clara

    entretanto, que Lacan considera que seus ouvintes no conseguiram ocupar a posio deles na anlise. Que o analista enfim se coloque como analista e o analisando como analisando, que cada um entre de fato em anlise, esta a finalidade geral de cada seminrio particular. Ela supe um movimento bem exatamente anlogo ao que, na pro-trptica, faz passar do exterior do bios theoretkos (exo) ao interior (eso). Nos Scripta, considera-se consumado o movimento.

    H portanto, em Lacan como em Aristteles, o esotrico e o exotrico; h tambm o escrito e o falado. Mas, de Lacan a Aristteles, a relao se cruzou e propriamente se inverteu: o esotrico escrito, o exotrico falado e transcrito. Por conseguinte, deve-se concluir: do ponto de vista do pensamento, nada h e jamais nada haver a mais nos seminrios do que nos Scripta. Mas sempre pode haver algo a mais nos Scripta do que nos seminrios. Nada nos seminrios pode modificar a interpretao dos Scripta , tudo nos Scripta relevante para a interpretao dos seminrios.

    Da uma conseqncia inevitvel no que conceme obra de Lacan. Se tal obra existe, ela est por inteiro nos Scripta. Ora, por definio, todos os Scripta foram publicados. Em outras palavras, a obra existe desde j por inteiro no momento em que escrevo, a despeito da publicao dos seminrios no ter sido completada.

    O singular gramatical e o artigo definido do ttulo O Seminrio no devem ser lidos como as marcas da obra. Designam apenas a unicidade de uma instituio que se manteve, em locais diversos, ao longo dos anos. Se todavia pensarmos nos textos transcritos, o plural seria mais apropriado; assim sendo, falarei de preferncia dos semi-nrios. Por outro lado, o plural gramatical do nome Scripta leva em conta somente a disperso material dos textos; ele no deve prejulgar a existncia ou a inexistncia da obra, que depende apenas de critrios de pensamento.

    Quem no gostaria de poder ler o conjunto dos dilogos de Aris-tteles? Da mesma' forma, a publicao dos seminrios de importncia documental incomparvel. No entretanto garantido que ela possa facilitar o acesso aos Scripta por vias protrpticas; pois a protrptica circunstancial; uma vez passadas as circunstncias, ela pode se tomar opacidade. Foi o que aconteceu com os dilogos de Plato, que se tomaram obscuros no que tm de exotrico. Logo, possvel que os seminrios obscuream os Scripta (afinal, do mesmo modo que a Teodica menos clara que a Monadologia, ou os Prolegmenos menos claros que a Crtica da raz.o pura, ou a Correspondncia de

    Introduo 21

    Flaubert menos clara que Um corao singelo, ou os Pastiches menos claros que Em busca do tempo perdido). Ningum contestar que justamente a possa residir uma fonte de interesse ap~x.onado, mas convm no nos enganarmos quanto natureza das cOisas.

    verdade que a prpria diviso entre exotrico e esotrico requer ajustes. Ela supe uma repartio clara entre os textos. Mas esta re partio deixa-se reconstituir com menos n!ti.dez. do que afirmei. ~ara ser exato, preciso considerar que a linha d!vlsna percorre os Scnpta e os prprios seminrios. Em cada um dos dois conjuntos, pode~se reconhecer a co-presena de proposies que derivam da protrptlca e de proposies que derivam da doutrina. As primeiras, diversamente de Plato e de Aristteles, no assumem a forma tcnica do dilogo;9 isso se explica com facilidade: a tcnica do dilogo perdeu-se sim- plesmente porque, entre os modernos, toda tcnica literria obsoleta. Norden (Die antike Kunstprosa, Leipzig, t898, r, p.48) formulara em teorema que nenhum escrito antigo um atechnon; a recproca verdadeira: todo escrito moderno, ao menos na medida em que moderno, um atechnon. isso que faz com que ele seja sempre nico em seu gnero, onde encontramos a marca do Um insubstituvel, caracterstica da forma de obra.

    Ora, Lacan um moderno. Utiliza portanto livremente poderes do atechnon e do insubstituvel. Semelhante nesse aspecto a Andr Breton, cujo Nadja constitui o horizonte, pouco percebido, mas todavia determinante, de todo escrito lacaniano. Logo, quer se trate dos se-minrios ou dos escritos, reina a o atechnotJ. No h resduo das technai escolsticas, legado pela tradio universitri a (partes, cap-tulos, pargrafos considerados distintos das frases) que Lacan no tenda a deixar de lado - nem um pouco por ignorncia, ou desprezo, mas porque elas no seriam pertinentes. A protrptica assume em conseqncia, no espao do pargrafo escrito, a forma atcnica da conversa erudita, retomada de Macrbio, por intermdio de La Mothe Le Vayer (citado por exemplo em Kant avec Sade, ., p.787). E como essa conversa no pode mais assumir a forma do dilogo, resta-lhe a forma que no a do dilogo: o excursus. 10

    No espao da frase, a protrptica negativa no mais dispe dos recursos da provocao e da diatribe para desalojar, atravs de seu movimento violento, a doxa adormecida de seu lugar de repouso. Surgem ento os procedimentos ditos ordinariamente " gongric:_os". Um mnimo de infonnao basta para perceber que eles nada tem a ver com Gngora. Do estrito ponto de vista da histria dos estilos,

  • lO A obra clara

    entretanto, que Lacan considera que seus ouvintes no conseguiram ocupar a posio deles na anlise. Que o analista enfim se coloque como analista e o analisando como analisando, que cada um entre de fato em anlise, esta a finalidade geral de cada seminrio particular. Ela supe um movimento bem exatamente anlogo ao que, na pro-trptica, faz passar do exterior do bios theoretkos (exo) ao interior (eso). Nos Scripta, considera-se consumado o movimento.

    H portanto, em Lacan como em Aristteles, o esotrico e o exotrico; h tambm o escrito e o falado. Mas, de Lacan a Aristteles, a relao se cruzou e propriamente se inverteu: o esotrico escrito, o exotrico falado e transcrito. Por conseguinte, deve-se concluir: do ponto de vista do pensamento, nada h e jamais nada haver a mais nos seminrios do que nos Scripta. Mas sempre pode haver algo a mais nos Scripta do que nos seminrios. Nada nos seminrios pode modificar a interpretao dos Scripta , tudo nos Scripta relevante para a interpretao dos seminrios.

    Da uma conseqncia inevitvel no que conceme obra de Lacan. Se tal obra existe, ela est por inteiro nos Scripta. Ora, por definio, todos os Scripta foram publicados. Em outras palavras, a obra existe desde j por inteiro no momento em que escrevo, a despeito da publicao dos seminrios no ter sido completada.

    O singular gramatical e o artigo definido do ttulo O Seminrio no devem ser lidos como as marcas da obra. Designam apenas a unicidade de uma instituio que se manteve, em locais diversos, ao longo dos anos. Se todavia pensarmos nos textos transcritos, o plural seria mais apropriado; assim sendo, falarei de preferncia dos semi-nrios. Por outro lado, o plural gramatical do nome Scripta leva em conta somente a disperso material dos textos; ele no deve prejulgar a existncia ou a inexistncia da obra, que depende apenas de critrios de pensamento.

    Quem no gostaria de poder ler o conjunto dos dilogos de Aris-tteles? Da mesma' forma, a publicao dos seminrios de importncia documental incomparvel. No entretanto garantido que ela possa facilitar o acesso aos Scripta por vias protrpticas; pois a protrptica circunstancial; uma vez passadas as circunstncias, ela pode se tomar opacidade. Foi o que aconteceu com os dilogos de Plato, que se tomaram obscuros no que tm de exotrico. Logo, possvel que os seminrios obscuream os Scripta (afinal, do mesmo modo que a Teodica menos clara que a Monadologia, ou os Prolegmenos menos claros que a Crtica da raz.o pura, ou a Correspondncia de

    Introduo 21

    Flaubert menos clara que Um corao singelo, ou os Pastiches menos claros que Em busca do tempo perdido). Ningum contestar que justamente a possa residir uma fonte de interesse ap~x.onado, mas convm no nos enganarmos quanto natureza das cOisas.

    verdade que a prpria diviso entre exotrico e esotrico requer ajustes. Ela supe uma repartio clara entre os textos. Mas esta re partio deixa-se reconstituir com menos n!ti.dez. do que afirmei. ~ara ser exato, preciso considerar que a linha d!vlsna percorre os Scnpta e os prprios seminrios. Em cada um dos dois conjuntos, pode~se reconhecer a co-presena de proposies que derivam da protrptlca e de proposies que derivam da doutrina. As primeiras, diversamente de Plato e de Aristteles, no assumem a forma tcnica do dilogo;9 isso se explica com facilidade: a tcnica do dilogo perdeu-se sim- plesmente porque, entre os modernos, toda tcnica literria obsoleta. Norden (Die antike Kunstprosa, Leipzig, t898, r, p.48) formulara em teorema que nenhum escrito antigo um atechnon; a recproca verdadeira: todo escrito moderno, ao menos na medida em que moderno, um atechnon. isso que faz com que ele seja sempre nico em seu gnero, onde encontramos a marca do Um insubstituvel, caracterstica da forma de obra.

    Ora, Lacan um moderno. Utiliza portanto livremente poderes do atechnon e do insubstituvel. Semelhante nesse aspecto a Andr Breton, cujo Nadja constitui o horizonte, pouco percebido, mas todavia determinante, de todo escrito lacaniano. Logo, quer se trate dos se-minrios ou dos escritos, reina a o atechnotJ. No h resduo das technai escolsticas, legado pela tradio universitri a (partes, cap-tulos, pargrafos considerados distintos das frases) que Lacan no tenda a deixar de lado - nem um pouco por ignorncia, ou desprezo, mas porque elas no seriam pertinentes. A protrptica assume em conseqncia, no espao do pargrafo escrito, a forma atcnica da conversa erudita, retomada de Macrbio, por intermdio de La Mothe Le Vayer (citado por exemplo em Kant avec Sade, ., p.787). E como essa conversa no pode mais assumir a forma do dilogo, resta-lhe a forma que no a do dilogo: o excursus. 10

    No espao da frase, a protrptica negativa no mais dispe dos recursos da provocao e da diatribe para desalojar, atravs de seu movimento violento, a doxa adormecida de seu lugar de repouso. Surgem ento os procedimentos ditos ordinariamente " gongric:_os". Um mnimo de infonnao basta para perceber que eles nada tem a ver com Gngora. Do estrito ponto de vista da histria dos estilos,

  • 22 A obra clara

    trata-se muito mais da escrita artstica, mantida vi v a desde os Goncourt, na estufa confinada do mundo hospitalar, graas aos cuidados de m-dicos cultos e amantes do belo (Cirambault, Du Boulbon). Salvo que Lacan a utilizou com oulros fins; o lexema raro, o semantema inusitado, a sintaxe afetada devem impedir o leitor de se entregar a seu pendor lingstico, faz-lo desconfiar das sucesses lineares e das disposies simtricas, compeli-lo ao saber que advir.

    Aos incessantes excursus, s frases complexas que preparam as vias do saber, vinculam-se as proposies que derivam da trarismis-sibilidade do saber. Estas so bem difcrentes.II Sua diferena salta aos olhos quando Lacan recorre s escritas matemticas. Mas desde antes do materna propriamente dito, a proposio transmissvel dei-xa-se reconhecer- ass~nalada por sua sintaxe (amais simples possvel) c por sua recorrncia: E cmodo design-la pelo nome de logion, um tenno extrado da filologia dos Evangelhos, mas para fins inteiramente leigos.

    Da existncia dos logia, concluiremos que Lacan, leitor de Leo Strauss, 12 no praticava sistematicamente a arte de escrever e no exigia as tcnicas de leitura que Leo Strauss afinnava ter restitudo. Essa arte e essas tcnicas supem, cum efeito, (I) que as proposies verdadeiramente importantes s raramente aparecem de forma com-pleta em uma obra (eventualmente nunca); (2) que via de regra as proposies muitas vezes repetidas s o so com alguma variao, eventualmente nfima, mas sempre reveladora; (3) que as proposies repetidas de forma estritamente idnticas (quando existem) so desig-nadas por isso mesmo como inessenciais ou fragmentrias; (4) que o carter principal das proposies repetidas (com ou sem variao) , na maioria das vezes, sua superficialidade, sua grosseira inadequao quanto aos dados mais evidentes, at mesmo sua incoerncia (so estes os traos que devem suscitar a ateno e justificar uma leitura de "segundo tempo"); (5) que uma obra assim composta majorila-riamcnte tecida de proposies inessenciais, andinas e ilgicas (a reside o enigma a ser desvendado); (6) que em geral toda proposio de uma obra tal, para ser relacionada ao que importante, coerente , e no trivial, deve ser lida como um fragmento a ser completado; o mtodo consiste em conect-la a outras proposies da obra, aparen-te mente pouco compatveis, at mesmo contraditrias. com a proposta estudada, mas igualmente parciais.13

    Nada disso verdadeiro para os logia: eles so a um s tempo recorrentes, verfdicos, essenciais c suscetveis de serem interpretados

    Introduo 23

    integralmente por si mesmos. Eles no so nem andinos, nem incon- , sistentes, nem incompletos. Tampouco so enigmticos. Se assim pa-recem a um leitor menos atento, que sua afirmao est sempre em antecipao do pensamento (assero de certeza antecipada). No es-tenogramas de pensamentos estabelecidos, mas antes hologramas de pensamentos vindouros, eles so lidos no futuro do presente composto. Eles so para si mesmos a fonte de sua prpria luz; a transparncia lhes advm mediante uma incansvel recorrncia ao idntico e um manejo repetido c quase material - o prprio Lacan engaja-se nesse trabalho, da a recorrncia-, no mediante o estabelecimento de uma conexo. Os logia derivam do bem dizer.

    Alm disso, verdade que Lacan praticou o "semidizcr" (c f. infra, p.l37); o que implica que certas proposies de saber s se deixam ler como resseco do verdadeiro e como fragmentao; o que implica tambm que algumas outras -s vezes so as mesmas -misturam teses de saber e procedimentos protrpticos (digresses, escrita artstica). Nem umas nem outras so portanto logia, e no h, na ordem do saber, seno logia em Lacan. Mas o semidizer ele prprio subordinado ao bem dizer, sendo apenas uma via de acesso. Ora, o bem dizer (seja por lapso, chiste ou achados de lngua), joga-se num nico lance. S h logion se houver lance vencedor, mas no jogo do logion, s se ganha ou s se perde ao se jogar uma nica vez. 14

    verdade que a arte de bem dizer difcil; talvez ela s possa subsistir a ttulo de um mandamento tico (Tlvision, p.65); talvez apenas o semi dizer seja prudente. Para que a mesa no seja abandonada, preciso s vezes dividir a aposta, fingir encontrar Leo Strauss que cr somente no semidizer e reserva o logion para Deus. Da partidas mais modestas, em que se ganha apenas ao se multiplicarem as ten-tativas.

    Assim se entrelaaro as frases de status diverso: contornos pro-lrplicos e proposies de saber. Mas seu enlace, sendo em si mesmo atcnico, s pode se consumar de maneira instvel; por isso s pode ser lido na forma atenuada da justaposio (digresso, desvio, esca-pada). Para aquele que tem apego ao saber, o protrptico revela-se portanto um tecido conjuntivo, que parasita o fio da transmissibilidade. Para aquele que se apega s conversas eruditas, repletas de idias geniais, de ,indicaes luminosas, de erudio douta, de audcias es-tilsticas, a proposio matcmatizada revela-se opaca e esqueltica.

  • 22 A obra clara

    trata-se muito mais da escrita artstica, mantida vi v a desde os Goncourt, na estufa confinada do mundo hospitalar, graas aos cuidados de m-dicos cultos e amantes do belo (Cirambault, Du Boulbon). Salvo que Lacan a utilizou com oulros fins; o lexema raro, o semantema inusitado, a sintaxe afetada devem impedir o leitor de se entregar a seu pendor lingstico, faz-lo desconfiar das sucesses lineares e das disposies simtricas, compeli-lo ao saber que advir.

    Aos incessantes excursus, s frases complexas que preparam as vias do saber, vinculam-se as proposies que derivam da trarismis-sibilidade do saber. Estas so bem difcrentes.II Sua diferena salta aos olhos quando Lacan recorre s escritas matemticas. Mas desde antes do materna propriamente dito, a proposio transmissvel dei-xa-se reconhecer- ass~nalada por sua sintaxe (amais simples possvel) c por sua recorrncia: E cmodo design-la pelo nome de logion, um tenno extrado da filologia dos Evangelhos, mas para fins inteiramente leigos.

    Da existncia dos logia, concluiremos que Lacan, leitor de Leo Strauss, 12 no praticava sistematicamente a arte de escrever e no exigia as tcnicas de leitura que Leo Strauss afinnava ter restitudo. Essa arte e essas tcnicas supem, cum efeito, (I) que as proposies verdadeiramente importantes s raramente aparecem de forma com-pleta em uma obra (eventualmente nunca); (2) que via de regra as proposies muitas vezes repetidas s o so com alguma variao, eventualmente nfima, mas sempre reveladora; (3) que as proposies repetidas de forma estritamente idnticas (quando existem) so desig-nadas por isso mesmo como inessenciais ou fragmentrias; (4) que o carter principal das proposies repetidas (com ou sem variao) , na maioria das vezes, sua superficialidade, sua grosseira inadequao quanto aos dados mais evidentes, at mesmo sua incoerncia (so estes os traos que devem suscitar a ateno e justificar uma leitura de "segundo tempo"); (5) que uma obra assim composta majorila-riamcnte tecida de proposies inessenciais, andinas e ilgicas (a reside o enigma a ser desvendado); (6) que em geral toda proposio de uma obra tal, para ser relacionada ao que importante, coerente , e no trivial, deve ser lida como um fragmento a ser completado; o mtodo consiste em conect-la a outras proposies da obra, aparen-te mente pouco compatveis, at mesmo contraditrias. com a proposta estudada, mas igualmente parciais.13

    Nada disso verdadeiro para os logia: eles so a um s tempo recorrentes, verfdicos, essenciais c suscetveis de serem interpretados

    Introduo 23

    integralmente por si mesmos. Eles no so nem andinos, nem incon- , sistentes, nem incompletos. Tampouco so enigmticos. Se assim pa-recem a um leitor menos atento, que sua afirmao est sempre em antecipao do pensamento (assero de certeza antecipada). No es-tenogramas de pensamentos estabelecidos, mas antes hologramas de pensamentos vindouros, eles so lidos no futuro do presente composto. Eles so para si mesmos a fonte de sua prpria luz; a transparncia lhes advm mediante uma incansvel recorrncia ao idntico e um manejo repetido c quase material - o prprio Lacan engaja-se nesse trabalho, da a recorrncia-, no mediante o estabelecimento de uma conexo. Os logia derivam do bem dizer.

    Alm disso, verdade que Lacan praticou o "semidizcr" (c f. infra, p.l37); o que implica que certas proposies de saber s se deixam ler como resseco do verdadeiro e como fragmentao; o que implica tambm que algumas outras -s vezes so as mesmas -misturam teses de saber e procedimentos protrpticos (digresses, escrita artstica). Nem umas nem outras so portanto logia, e no h, na ordem do saber, seno logia em Lacan. Mas o semidizer ele prprio subordinado ao bem dizer, sendo apenas uma via de acesso. Ora, o bem dizer (seja por lapso, chiste ou achados de lngua), joga-se num nico lance. S h logion se houver lance vencedor, mas no jogo do logion, s se ganha ou s se perde ao se jogar uma nica vez. 14

    verdade que a arte de bem dizer difcil; talvez ela s possa subsistir a ttulo de um mandamento tico (Tlvision, p.65); talvez apenas o semi dizer seja prudente. Para que a mesa no seja abandonada, preciso s vezes dividir a aposta, fingir encontrar Leo Strauss que cr somente no semidizer e reserva o logion para Deus. Da partidas mais modestas, em que se ganha apenas ao se multiplicarem as ten-tativas.

    Assim se entrelaaro as frases de status diverso: contornos pro-lrplicos e proposies de saber. Mas seu enlace, sendo em si mesmo atcnico, s pode se consumar de maneira instvel; por isso s pode ser lido na forma atenuada da justaposio (digresso, desvio, esca-pada). Para aquele que tem apego ao saber, o protrptico revela-se portanto um tecido conjuntivo, que parasita o fio da transmissibilidade. Para aquele que se apega s conversas eruditas, repletas de idias geniais, de ,indicaes luminosas, de erudio douta, de audcias es-tilsticas, a proposio matcmatizada revela-se opaca e esqueltica.

  • 24 A obro clara

    Cabe ao leitor dar prova de tato, mesmo conselho de Lacan para o analista, e no confundir a natureza das proposies.

    Compreendemos ento a verdadeira relao entre os Scripta e os seminrios: os dois conjuntos contm proposies de saber e pro-posies protrpticas, mas, do ponto de vista do saber, nada h nos seminrios que no esteja nos Scripta; 15 do ponto de vista da protrptica e da conversa erudita, pode haver coisas distintas nos Scripta e nos seminrios; se h algo nos segundos que no se encontra nos primeiros, sempre derivado da conversa erudita, no do saber; mas o inverso no verdadeiro. Em todo caso, aquele que se interes